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    Um pequeno itinerrio do olhar-cmera em Aloysio Raulino (e um dedo de prosa entre

    Hannah Arendt e Marie-Jose Mondzain)

    por Victor Guimares

    Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles,

    e nesse interespao ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos.Hannah Arendt

    E o cinema, vejo muito bem porque o adotei.Para que ele me ensinasse a perceber,

    incansavelmente pelo olhar, a quedistncia de mim comea o outro.

    Serge Daney

    no o pas torturado, esmagado e prostitudosuas noites encarceradas em cofres fortes

    e posta venda a preos de ocasiono esse pas fantasmagrico que se quer presente o tempo todo

    e tenta invadir at mesmo o nosso sonhoporm outro pas, redescoberto agora, mais uma vez

    neste encontro dos nossos olharesoutro pas que ainda lateja sob o tapete trmulo do terceiro mundo

    Claudio Willer, dito por Aloysio Raulino emInventrio da Rapina (1986)

    EntreLacrimosa (1970), filme que Aloysio Raulino e Luna Alkalay (sua esposa,

    grande cineasta e colaboradora fundamental poca) realizam ainda na universidade, eInventrio da Rapina (1986), obra de maturidade, filmado quinze anos depois,

    possvel traar um itinerrio por entre um dos motivos mais recorrentes na obra autoral

    de Raulino: o olhar-cmera, esse momento em que um personagem encara o antecampo

    (e, consequentemente, o espectador). Nesses inmeros momentos em que o

    enquadramento destaca um rosto e busca a frontalidade do olhar dos sujeitos filmados,

    Raulino enseja construes formais variadas, ao mesmo tempo em que faz emergir as

    metamorfoses de uma atitude esttica e poltica que acompanhar toda a sua trajetria.

    Em um texto publicado nos Cahiers du Cinma em 1977, Pascal Bonitzer

    discorria sobre o olhar predominante no cinema: trata-se do olhar objetivo, que alterna

    livremente entre o plano-detalhe e o plano geral, e que no pertence nem a um dos

    personagens da narrativa nem ao espectador (uma vez que nosso olhar regrado e

    dirigido por ele). Personagens, atores, espectadores, operadores de cmera e

    realizadores esto implicados, de diversas maneiras, mas esse olhar no propriamente

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    de ningum: ele carece de algum (BONITZER, 1977, p. 41). Trata-se de um olhar

    sem nome, sem pessoa, um olhar desencarnado que hegemnico na fico clssica,

    mas tambm opera no campo do documentrio (por exemplo, nos filmes sob a

    influncia da escola inglesa de Grierson). Para Jacques Aumont (2004), esse modo

    transparente do olhar que garante uma clivagem radical entre o campo (o espao queconstitui a cena visada pela cmera) e o antecampo (esse espao invisvel atrs da

    cmera, onde se jogam o ponto de vista e a enunciao).

    Para Bonitzer, h uma lei que rege essa modalidade do olhar (concernente aos

    atores, aos figurantes e a qualquer um que atravesse o campo da tomada) e se expressa

    sob a forma do famoso imperativo: no olhe para a cmera. Essa interdio um dos

    elementos centrais na garantia da denegao espectatorial: sabemos bem que o olhar da

    cmera no v tudo e que o mundo que se materializa na tela obra de um artifcio, mas crucial que o personagem no nos devolva o olhar, pois assim nos daramos conta

    sensivelmente da filmagem, de que h um antecampo, uma enunciao, e o fluxo da

    fruio estaria bloqueado. Mesmo a cmera subjetiva no faz mais do que elidir o

    problema (BONITZER, 1977, p. 42), posto que mantm ainda a separao entre o

    mundo do filme e aquele do espectador. Por outro lado,

    Se o mais frgil figurante perdido num canto do campo lanar o maiscurto olhar para a cmera, uma fissura, um buraco aparece no tecidoflmico e toda sua realidade essa realidade dos acontecimentosque em algum lugar sabemos fraudada que ameaa escapar por esse

    buraco, como o contedo de um tonel por seu orifcio (BONITZER,1977, p. 41).

    O olhar-cmera (regard-camra) , nesse sentido, o momento em que se opera

    uma ruptura decisiva: de um golpe, a clivagem habitual entre os dois mundos

    perturbada, e todo um novo jogo de relaes tridicas entre a cena, a enunciao e o

    espectador se coloca em movimento. Tripla afirmao: do sujeito que filma e constri (a

    cena), do sujeito que olha e experimenta sensivelmente essa construo (da cena) e

    daquele que devolve o olhar para ambos (na cena, problematizando-a e desconstruindo-

    a por dentro). Tripla implicao inevitvel: de quem encara, de quem filma e do

    espectador. Tripla transformao: da cena em jogo tenso de olhares, da imagem em

    mediao explcita, do filme em territrio de (des)encontros.

    Se, como nos diz Marie-Jose Mondzain, a imagem alcana a sua visibilidade

    na relao que se estabelece entre aqueles que a produzem e aqueles que a olham e se

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    sua natureza a de ser a expectativa de um olhar (MONDZAIN, 2009, p. 30), o olhar-

    cmera se constitui como uma figura singular, na medida em que relana e multiplica o

    jogo entre o visvel, o invisvel e o olhar que os coloca em relao (e que, nessa figura

    especfica, desdobra-se necessariamente em trs). O olhar que, na cena, encara quem

    filma (e, por extenso, mira a comunidade dos espectadores) desestabiliza ascoordenadas do sensvel e embaralha as expectativas.

    No repertrio crtico, a interpretao do olhar-cmera est quase sempre

    vinculada ao rompimento da distncia entre o mundo da fico e aquele do espectador,

    gesto reflexivo definidor do cinema moderno (de Harriet Andersson em Monika e o

    Desejo, de Bergman, a Jean Seberg no ltimo plano de Acossado, de Godard). Nos

    filmes de Raulino, no entanto, o aparecimento dessa figura compe uma investigao

    recorrente e nuanada, que alcana um grau de variao impressionante e enseja umconjunto de implicaes estticas, ticas e polticas profundas.

    Um pequeno itinerrio: deLacrimosa aInventrio da Rapina

    Recentemente foi aberta uma avenida em So Paulo. Ela nos obriga a ver a

    cidade por dentro. s duas cartelas inicias de Lacrimosa, segue-se um longo plano-

    sequncia, que descortina a beira da Marginal Tiet: de dentro do Fusca, vemos o mato

    que se acumula nas encostas, lampejos da indstria metalrgica, casebres de madeira,

    outdoors publicitrios, at que o carro entra em uma favela e h um corte. Aps uma

    nova cartela, uma alterao radical do regime formal construdo at ali: o primeiro plano

    dentro da favela o retrato fugaz de um menino, que nos olha frontalmente.

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    O olhar da criana duro, grave e inesquecvel, mas no dura muito. A cmera

    de Raulino logo procurar reiteradamente, por vezes beirando a perseguio outros

    rostos, outras formas de nos colocar diante desses olhares que desestabilizam a cena e

    tomam de assalto nossa ateno. A fora da imagem provm do desejo de ver, e seu

    poder o de encarnar o desejo sem nunca o satisfazer (MONDZAIN, 2009, p. 31).

    Desejo da cmera de descobrir algo nos rostos, desejo (ou recusa) do espectador de

    acompanh-la nessa descoberta, desejo do filme de fazer de todos os desejos (ou das

    recusas) um problema.

    O clculo, os silncios inslitos, as segundas intenes, o esprito subterrneo,

    o segredo, tudo isso o intelectual vai abandonando medida que imerge no povo, dir

    alguns anos depois a narrao composta de citaes de Frantz Fanon de O Tigre e a

    Gazela (1976). mpeto primeiro dessa busca incessante pelo olhar-cmera: imergir no

    povo, buscar no encontro com esses habitantes da margem uma sorte de resposta ao

    aniquilamento cotidiano. Toda a sequncia na favela deLacrimosabuscar um contraste

    entre as cartelas denuncistas (O lixo o nico meio de sobrevivncia, Cheiro

    insuportvel) e os retratos, entre as imagens do rio poludo e os olhares dos moradores.

    A montagem parece querer forar uma dialtica impossvel, como se quisesse encontrar

    nesses olhares uma insurgncia rebelde contra a situao aviltante. H um

    extraordinrio bal entre a cmera e um homem que dana, mas o sentimento que

    persiste o de uma incitao contrariada, que o filme encena com desespero. Ao final,

    imagem de um mapa do Brasil em branco sobre um fundo negro, segue-se o poema de

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    ngel Parra: Quisiera volverme noche/para ver llegar el da/que mi pueblo se

    levante/buscando su amanecida.

    Em O Tigre e a Gazela, a tenso entre a crnica da dominao e os lampejos de

    resistncia ganha novas formas. Aps um conjunto de trs planos do olhar misterioso deum homem negro que segura uma criana branca (o contraste entre as cores ser ao

    mesmo tempo tema filosfico e forma encarnada na fotografia altamente contrastada),

    uma cartela nos diz que o colonialismo no se contenta em encerrar o povo em suas

    malhas, mas se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o,

    aniquila-o. ento que aparece pela primeira vez uma senhora negra, que canta uma

    ode conciliatria Princesa Isabel, que diz que no h mais preconceito de cor.

    Animada ora por uma percusso furiosa, ora por uma msica que quase um lamento, a

    cmera novamente persegue o rosto dos transeuntes, dos mendigos que habitam as ruas

    de So Paulo. O enquadramento busca a mirada, mas inicialmente o olhar furtivo,

    ocasional, desviante. A interao entre os planos, os textos e os fragmentos de msicas,

    no entanto, conduz um crescendo de intensidade, como se do rosto do povo fosse

    emergindo gradualmente a revolta. Seu olhar no me fulmina, no me imobiliza mais.

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    Sua voz j no me petrifica. No me perturbo mais em sua presena. Na verdade, eu o

    contrario, diz a voz over.

    ento que descobrimos a camaradagem alegre entre dois rapazes negros, que

    sorriem encostados num prtico. A cmera se detm no retrato deles por um momentoe, animada pela cano de Luiz Melodia, parte decidida em sua direo, se aproxima at

    o desfoque, mergulha no rosto e atinge a granulao da imagem. S ento que aquela

    mulher (aquela que por um momento fora uma sorte de confirmao dos efeitos do

    colonialismo) pode reaparecer, cantando novamente um hino patritico, mas dessa vez

    aquele que nos diz que j raiou a liberdade, e que longe v temor servil. Aps essa

    segunda apario, o filme imergir renovado no povo, brao dado com o Milagre dos

    Peixesde Milton Nascimento, nas imagens do carnaval. Agora a fotografia contrastada

    explode na celebrao carnavalesca, converte-se em epiderme festiva e brilhante.

    H catarse, mas no h sntese dialtica. Tigre e gazela permanecero por todo o

    filme como vetores ambivalentes do olhar. Do modo semelhante, a montagem vertical

    que conjuga os textos de Fanon, os excertos musicais e as imagens opera por frices

    vertiginosas, sem homonmia ou ilustrao possvel. Reencontramos Mondzain: O

    sensvel excede as palavras e a palavra excede a experincia sensvel. Se o dito e o visto

    se excedem mutuamente, que existe entre eles uma relao de incomensurabilidade

    que funda o livre jogo de suas misturas sem adequao (MONDZAIN, 2003, p. 156).Ou poderamos invocar Jean-Marie Straub1: " preciso que um filme destrua a cada

    minuto, a cada segundo, aquilo que dizia no minuto precedente, porque estamos a

    sufocar sob os clichs e preciso ajudar as pessoas a destru-los".

    O incio de O Porto de Santos(1978) marcado por uma potica que reenvia s

    sinfonias urbanas vanguardistas, prxima de um Propos de Nice(Jean Vigo, 1930). A

    montagem conjuga o elemento arquitetnico figura humana de forma apaixonada,

    belssima. Porm, a partir da segunda apario da palavra labor, quando o filme passa ase dedicar vida noturna da zona porturia, o rosto volta a ocupar o centro das atenes.

    Num plano, uma jovem mulher est diante do espelho, preparando a maquiagem. Ela

    alterna entre o olhar para si e o olhar para a cmera, fuma e nos encara com

    sensualidade e deciso.

    1Em entrevista ao catlogo da retrospectiva de Straub e Huillet na Cinemateca Portuguesa.

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    O espelho est l, mas seu reflexo turvo, esfumaado, e o que vemos j no se

    presta s nossas identificaes: o olhar-cmera desafia a pulso escpica e nos devolve

    uma mirada estrangeira. Toda a economia especular do cinema (baseada na

    identificao e em nossa projeo nos personagens em cena) se desconstri por dentro:

    o olhar no espelho nos encara de volta, mas, como num conto de Poe, o rosto que a

    superfcie especular reflete o de outrem.

    A partir da o filme adentrar os bares e os prostbulos, numa busca celebratria

    por esses rostos femininos que sorriem e nos devolvem um olhar pleno de um prazer

    indescritvel. Se em Lacrimosa havia um desconforto renitente, e se em O Tigre e a

    Gazela havia uma descoberta gradual da resistncia, nas mulheres e nas travestis de O

    Porto de Santos a alegria e o gozo que saltam aos olhos de imediato. Se l a forma

    respondia com a urgncia do conflito provocado a frceps ou com a alternncia entre

    constatao e incitao, aqui surge a pose, a encenao ldica, o prazer do encontro. Se

    l a montagem precisava traar paralelos entre o exterior e os retratos, aquitestemunhamos uma celebrao alegre da multiplicidade das criaturas da noite. Tem

    uns que gostam de poesia e outros gostam de gibi. Outros so marginais, outros no so.

    Uns do pra trabalhar, outros do pra roubar. Ento a vida, filho, cheia de muitas

    coisas, diz uma voz na banda sonora, enquanto vemos as esplendorosas imagens

    noturnas de Santos.

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    Inventrio da Rapinamultiplica as formas do olhar-cmera. A frontalidade do

    rapaz negro que nos encara e diz que no voltar mais firma (Eu no t devendo nada

    pra vocs. Vocs que to devendo pra mim, meu!) contrasta com os travellingsque

    descortinam a frieza dos olhos das esttuas cheias de pombos, que inventariam os

    vestgios monumentais da dominao (os ndios, os escravos, os operrios) ao som deum irnico Hino Nacional. H o olhar afetuoso da esposa e a mirada curiosa do filho,

    mas tambm h os olhos esbugalhados do prprio Raulino, que narra o desconforto e a

    fuga de um encontro com um negro alto, muito magro, muito faminto, como se

    tivesse chegado do inferno. Vemos a inscrio Viva meu Brasil ser apagada da areia

    pelas ondas, e vemos tambm esse movimento de cmera que se desloca de um

    sanfoneiro na rua (sob o olhar dos transeuntes) para um menino, que nos encara

    fixamente.

    Ajuda-me a desembrulhar esta cidade, diz o poema de Claudio Willer. O

    mpeto revelatrio das cartelas de Lacrimosa ainda ressoa, mas agora rebate

    implacavelmente na extraordinria sequncia das crianas de rua que danam vendadas,

    como se uma interdio material contrariasse o impulso mais profundo da cmera de

    Raulino: o desejo de encontrar, incessantemente, desesperadamente, na confrontao

    desses olhares, esse outro pas que ainda lateja/sob o tapete trmulo do Terceiro

    Mundo.

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    Se a imagem s se sustenta na dessemelhana, na distncia entre o visvel e o

    sujeito do olhar (MONDZAIN, 2009, p. 24), o que as operaes de Raulino promovem

    um mergulho sensvel na espessura das distncias, uma dana vertiginosa sobre a

    superfcie das cises, um salto de corpo inteiro no abismo entre ns e os outros.

    O olhar-cmera e o mundo

    Por que o olhar-cmera no cinema de Aloysio Raulino pode ser um problema

    relevante no apenas para a histria das formas cinematogrficas, mas tambm para a

    poltica? Como um trao formal to singular pode nos dizer algo sobre a natureza da

    atividade poltica em geral? O que o olhar de um homem negro nas ruas de So Paulo

    (figurado em um filme de 1976) tem a ver com as nossas formas de viver em comum

    (no presente)?

    Uma continuao possvel dessas perguntas pode ser encontrada no dilogo com

    a filosofia de Hannah Arendt. No primeiro captulo dA vida do esprito, dedicado ao

    tema da aparncia, a autora comear por afirmar (contrariando uma antiga e duradoura

    concepo da filosofia ocidental) que ser e aparecercoincidem. Essa afirmao que

    ser justificada em uma impressionante discusso sobre a natureza fenomnica do

    mundo contraria uma srie de dualidades do pensamento ocidental hegemnico, como

    causa/efeito, ideia/matria, essncia/aparncia. Na concepo arendtiana, o ser no se

    contrape mera aparncia (cuja essncia ou causa se encontraria noutro lugar), mas

    constitudo fundamentalmente como aparncia e como superfcie. E se os seres vivos

    so ao mesmo tempo sujeitos e objetos capazes de perceber e de serem percebidos em

    seu aparecer mltiplo , tambm sua mundanidade sua pertena a um mundo

    comum constitudo intersubjetivamente que os constitui.

    Aparncia, superfcie, mundanidade. Nada e ningum existe neste mundo cujo

    prprio ser no pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que ,

    medida que aparece, existe no singular (ARENDT, 2010, p. 17). Arendt escreve contra

    as falcias metafsicas, mas poderia estar se referindo ao cinema documentrio: Estar

    vivo significa ser possudo por um impulso de auto-exposio que responde prpria

    qualidade de aparecer de cada um. As coisas vivas aparecem em cenacomo atores em

    um palco montado para elas (ARENDT, 2010, p. 18). Ou mais adiante: Parecer

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    corresponde circunstncia de que toda aparncia, independentemente de sua

    identidade, percebida por uma pluralidade de espectadores (ARENDT, 2010, p. 19).

    nesse sentido que o primado da aparncia no diz respeito apenas metafsica

    e fenomenologia, mas poltica: o que aparece se expe sempre para algum, quepercebe e ento julga. Lemos num dos fragmentos de O que poltica?: A poltica

    surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, no

    existe nenhuma substncia poltica original. A poltica surge no intra-espao e se

    estabelece como relao (ARENDT, 2004, p. 23). Tambm ela, a poltica, superficial

    e constituda por uma relao.

    A singularidade da poltica reside justamente nesse aparecer conjunto dos

    corpos, na atividade desses seres-aparncia que se expem uns aos outros e constituem,

    juntos, um mundo comum. Se o mundo aparece no modo do parece-me, dependendo

    de perspectivas particulares determinadas tanto pela posio no mundo quanto pelos

    rgos especficos da percepo (ARENDT, 2010, p. 31), a poltica seria ento esse

    espao que surge entre as aparncias-seres, onde se julga e se joga o comum.

    No por acaso que Hannah Arendt buscar definir a poltica a partir do juzo de

    gosto kantiano. Se a poltica diz respeito construo de um mundo comum

    atravessado pelo dissenso entre os homens , justamente na faculdade de julgar, no

    discernimento livre e sem critrio normativo prvio, que reside sua potncia. Aparncias

    superficiais e mltiplas, sem substncia, que se expem a uma multiplicidade de

    espectadores incumbidos da tarefa de julgar e de construir um mundo comum em

    liberdade. No estamos distantes das consideraes de Marie-Jose Mondzain:

    O poder quer sempre controlar o amor e o dio e, na medida em que aemoo visual tem relaes com estas paixes, o dispositivo quemostra, a forma escolhida para mostrar, o lugar atribudo voz, orisco apanhado num enquadramento, numa montagem, so, por isso,

    gestos polticos onde se compromete o destino do espectadorrelativamente sua liberdade (MONDZAIN, 2009, p. 45).

    Agora temos mais alguns elementos para continuar a questo que abria esta

    seo a partir de novos termos. O problema que movia este ensaio as variaes do

    olhar-cmera nos filmes de Aloysio Raulino agora no parece pertencer unicamente

    histria das formas, mas vida em comunidade: os olhares daquele rapaz e daquela

    criana no incio de O Tigre a Gazela dizem respeito, ontem e hoje, s partilhas que

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    constituem o pas, aos lugares bem demarcados nos quais encaixamos os pobres

    cotidianamente, ao sequestro dirio de sua fala e de seu olhar, ao seu devir-povo e sua

    capacidade de resistir, e ao nosso lugar (espectatorial e poltico) em tudo isso. A cada

    vez que o filme for exibido ou a cada vez que essa forma voltar a existir, mesmo em

    outras obras , essas questes sero relanadas e expostas, uma vez mais, aos sentidos e faculdade de julgar dos espectadores.

    Talvez no haja nenhuma surpresa nisso. A histria das formas a nossa

    histria. O mundo das formas o nosso mundo. As superfcies frgeis, as aparncias

    mundanas que so as imagens e que somos, se levamos a srio as concepes de

    Hannah Arendt no existem no vazio, mas sempre encarnadas (ou incorporadas) numa

    forma ou noutra. E nossa responsabilidade, nosso compromisso tentar traduzi-las,

    historiciz-las, compar-las, tecer novas relaes, incessantemente. No h desviopossvel: como partcipes de uma comunidade incumbida da empreitada inesgotvel de

    julgar as imagens, essa nossa tarefa e nossa deciso.

    Referncias bibliogrficas:

    ARENDT, Hannah. O que poltica?Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

    _______________.A vida do esprito. 2010. Relume Dumar, 2010.

    AUMONT, Jacques. O olho interminvel: cinema e pintura. So Paulo: Cosac Naify, 2004.

    BONITZER, Pascal. Les deux regards. Cahiers du Cinma n. 275, Avril 1977, pp. 40-46.

    MONDZAIN, Marie-Jose. Le lieu critique. In:Le commerce des regards. Paris: Seuil, 2003.

    ______________________.A imagem pode matar?Lisboa: Nova Vega, 2009.