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Trabalho para a disciplina de Música Contemporânea – CMU 2015 Um panorâma dos modelos de escuta no século XX Augusto Piccinini USP – [email protected] Resumo: O rompimento com os parâmetros musicais tradicionais do tonalismo por parte da música do século XX representou uma mudança incisiva na relação do público com essa nova música. Um modelo de escuta outrora adequado mostra-se estanque e antiquado frente a uma música que não mais se compromete com parâmetros tradicionais, agravando ainda mais este afastamento as novas incursões da música em estúdio e a incorporação do ruído enquanto dado composicional. A partir da preocupação com estes fenômenos, ao longo da segunda metade do século XX, diversos modelos de escuta foram sendo propostos. Realizaremos um panorâma deste modelos. Palavras-chave: Música. Contemporânea. Modelos. Escuta. Abstract: The rupture with tonal music’s traditional parameters by twentieth century music represented an incisive change within the relationship between this new music and the general public. A listening model once suitable turns into an old-fashionable one when faced with a new music which is no longer concerned with traditional musical parameters. Concerned with these massive changes, many listening model were created over the twentieth century; and we shall take an overview on these models. Keywords: Contemporary. Music. Listening. Models. Introdução A música que surge a partir do século XX rompe em diversos níveis com a música anterior dos séculos XIX, XVIII e XVII. Uma grande quantidade de textos da segunda metade do século passado trata deste rompimento com a música tonal, atribuindo a este fenômeno o afastamento da música de concerto contemporânea por parte do grande público. Deve-se notar, contudo, que os motivos deste afastamento não estão unicamente relacionados a uma suposta perda de comunicabilidade desta nova música e tampouco com a lógica de indústria cultural que foi se constituindo aos poucos em torno da música popular. Há também um conflito entre um modelo de escuta antiquado e uma música com novas exigências, o primeiro buscando elementos que já não são primordiais, ou sequer utilizados, na segunda. O modelo de escuta tradicional é absolutamente fundado no tonalismo e constitui-se a partir das noções de melodia, direcionamento harmônico, âmbitos de intensidade e altura restritos e instrumental limitado. Devemos incluir também a noção de uma métrica baseada em pulsos regulares e o uso de formas composicionais comuns, como a forma sonata ou o tema com variações. Todos esses elementos atuam em conjunto e conduzem a escuta do ouvinte de música

Um Panorâma Dos Modelos de Escuta No Sec XX

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Panorâma dos modelos de escuta no século XX. Augoyard, Schaeffer, Schafer, Oliveros, Smalley, Ferraz.

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  • Trabalho para a disciplina de Msica Contempornea CMU 2015

    Um panorma dos modelos de escuta no sculo XX

    Augusto Piccinini USP [email protected]

    Resumo: O rompimento com os parmetros musicais tradicionais do tonalismo por parte da msica do sculo XX representou uma mudana incisiva na relao do pblico com essa nova msica. Um modelo de escuta outrora adequado mostra-se estanque e antiquado frente a uma msica que no mais se compromete com parmetros tradicionais, agravando ainda mais este afastamento as novas incurses da msica em estdio e a incorporao do rudo enquanto dado composicional. A partir da preocupao com estes fenmenos, ao longo da segunda metade do sculo XX, diversos modelos de escuta foram sendo propostos. Realizaremos um panorma deste modelos.

    Palavras-chave: Msica. Contempornea. Modelos. Escuta.

    Abstract: The rupture with tonal musics traditional parameters by twentieth century music represented an incisive change within the relationship between this new music and the general public. A listening model once suitable turns into an old-fashionable one when faced with a new music which is no longer concerned with traditional musical parameters. Concerned with these massive changes, many listening model were created over the twentieth century; and we shall take an overview on these models.

    Keywords: Contemporary. Music. Listening. Models.

    Introduo

    A msica que surge a partir do sculo XX rompe em diversos nveis com a msica anterior dos sculos XIX, XVIII e XVII. Uma grande quantidade de textos da segunda metade do sculo passado trata deste rompimento com a msica tonal, atribuindo a este fenmeno o afastamento da msica de concerto contempornea por parte do grande pblico. Deve-se notar, contudo, que os motivos deste afastamento no esto unicamente relacionados a uma suposta perda de

    comunicabilidade desta nova msica e tampouco com a lgica de indstria cultural que foi se constituindo aos poucos em torno da msica popular. H tambm um conflito entre um modelo de escuta antiquado e uma msica com novas exigncias, o primeiro buscando elementos que j no so primordiais, ou sequer utilizados, na segunda.

    O modelo de escuta tradicional absolutamente fundado no tonalismo e constitui-se a partir das noes de melodia, direcionamento harmnico, mbitos de intensidade e altura restritos e instrumental limitado. Devemos incluir tambm a noo de uma mtrica baseada em pulsos regulares e o uso de formas composicionais comuns, como a forma sonata ou o tema com variaes. Todos esses elementos atuam em conjunto e conduzem a escuta do ouvinte de msica

  • tradicional e sequer estamos levando em considerao questes de retrica, teoria dos afetos ou msica programtica. Este um modelo, porm, que foi se tornando cada vez mais estanque frente a msica do sculo XX.

    A primeira guinada deste afastamento talvez tenha acontecido com a incorporao do timbre enquanto dado composicional na obra de Debussy e, depois, a gradual incorporao do rudo na msica, em especial com os intrumentos de percusso. Cinquenta anos depois, e usufruindo dos recursos tecnolgicos deixados pela segunda guerra mundial, o trabalho em estdio -pela msica concreta ou pela msica eletrnica levaria ainda mais adiante o rompimento com noes tradicionais musicais. Paralelamente, o crescimento dos centros urbanos acarretou tambm em um crescimento da poluio sonora, fator que possivelmente modificou, ainda que inconscientemente, a relao das pessoas com os sons nos quais elas esto imersas.

    A partir deste momento, e ao longo do sculo XX e XXI, a preocupao com o lugar da msica contempornea na sociedade levou criao de diversos modelos de escuta. Estes modelos so, em geral, multidisciplinares e podem ser divididos entre duas posturas distintas: uma que visa a criao um vocabulrio adequado descrio e anlise dos sons e outra que procura mudar as atitudes de escuta diante destes sons. Na primeira postura, podemos considerar Pierre Schaeffer um pioneiro, influenciando todas as que seguiram; da segunda, John Cage.

    Faremos um panorma de alguns modelos desses modelos de escuta, tratando de seus pontos principais, observando em que medida eles se baseiam em uma proposta multidisciplinar e situando-os entre as duas posturas j descritas. Foram selecionados os modelos criados por Pierre Schaeffer, Murray Schafer, Jean Franois Augoyard, Denis Smalley, Pauline Oliveros e Slvio Ferraz.

    Schaeffer, a Escuta Reduzida e o Objeto Sonoro

    Pierre Schaeffer fez uso deste binmio - escuta reduzida/objeto sonoro - em seu Tratato dos Objetos Musicais, publicado em 1966. Neste livro, que uma das maiores contribuies de Schaeffer para a msica contempornea, alm, claro, da inveno da musique concrte Schaeffer parte para a criao de uma taxonomia e uma morfologia dos sons atravs de um mtodo fortemente baseado na fenomenologia de Edmund Husserl.

    Antes de entender a escuta reduzida, Schaeffer designa outros quatro tipos de escuta no-reduzidas: escutar (couter), ouvir (ouir), entender (entendre), compreender (comprendre).

  • couter significa escutar algo ou algum e, atravs do som, identificar a fonte, o evento ou a causa. Ouir o tipo mais elementar de escuta e se refere, simplesmente, a escuta passiva e inconsciente dos sons. Entendre a escuta atenta e focada em que o ouvinte tem a inteno de ouvir sons de seu interesse com a finalidade de descrev-los. Por fim, Comprendre a escuta que abstrai significados ou valores do som atravs de uma linguagem ou cdigos cultural pr-estabelecidos; neste sentido, o som entendido como um signo e a escuta semntica. Ao longo do texto, Schaeffer elabora diversos grficos e quadros para para caracterizar estas escutas a partir de alguns binmios (o tratato repleto deles), como por exemplo: abstrata/concreta, subjetiva/objetiva, ordinria/especializada, natural/cultural.

    Todos esses tipos de escuta atuam simultneamente, em maior ou menor grau, e so considerados naturais por Schaeffer, inatas a todo indivduo. A escuta reduzida, por outro lado, uma artificialidade que s pode ser alcanada atravs de uma reduo fenomenolgica, ou poche. Este tipo de prtica, em que a conscincia volta-se sobre si mesma e atenta sua prpria atividade perceptiva, tem por funo criar um parnteses, ou uma suspeno no problema da existncia do mundo externo e seus objetos. No caso da escuta, particularmente, isso significa um desprendimento de padres de escuta habituais. Disso resulta que os sons devem ser ouvidos por eles mesmos, como objetos sonoros, desprendendo-os de sua fonte sonora original e de seus possveis significados culturais. Para tanto, necessria uma situao de escuta acusmtica.

    O termo acusmtico remonta a uma prtica de ensino usada por Pitgoras em que o mestre lecionava para os alunos atrs de uma cortina; dessa forma, os alunos no se distrairiam com sua presena fsica. A situao de escuta acusmtica implica que a fonte sonora no visvel e os sons so ouvidos e entendidos fora de seu contexto original.Temos, portanto, uma dissociao entre o visual e o auditivo, fator que facilita a escuta reduzida ao potencializar aspectos intrnsicos do som. A descoberta de Schaeffer desta peculiaridade da experincia acusmtica se deve, primeiro, ao seu trabalho na Radiodiffusion Television Francaise (RTF) o rdio pressupe uma situao acusmtica - e, segundo, aos seus experimentos com a msica concreta. Dois experimentos so especialmente importantes: o closed groove e o cut bell. O primeiro experimento, closed groove, consistia em criar discos de vinil com sulcos fechados para que um determinado fragmento gravado fosse repetido indefinidamente. Da repetio contnua resultava que o som ia perdendo cada vez mais qualquer carga de significado ou contexto. O segundo experimento, cut bell, consistia em manipular os fragmentos gravados, geralmente sons de instrumentos musicais com ataques bem definidos, cortando-lhes os milisegundos iniciais. Schaeffer observou que, ao manipular os sons dessa forma, muito da nossa percepo de timbre depende, alm do contedo espectral, do envelope dinmico geral, em especial dos ataques. Ambos experimentos apontam para a escuta reduzida ao criar novos

  • fenmenos sonoros que no podem mais ser entendidos em seu contexto original ou como provenientes de uma fonte sonora presente.

    Da escuta reduzida nasce o objeto sonoro, que seu correlato. Removendo da percepo do som tudo o que no ele mesmo, pode-se escut-lo em toda sua materialidade, substncia e dimenso. Neste sentido, o termo objeto sonoro diz respeito a todo evento que pode ser ouvido como um todo coerente e apenas atravs da escuta reduzida. Apesar de ser mais facilmente percebido em situae acusmticas, o objeto sonoro no simplesmente o sinal fsico gravado, pois este pode ser esticado, invertido ou cortado, o que resulta em um fenmeno sonoro completamente distinto. Ele tambm no uma simples traduo de um sinal fsico (variaes de presso no ar). Existe, de fato, uma correlao entre o sinal fsico e o objeto sonoro percebido, mas um no uma cpia direta do outro: ocorrem distores (anamorphoses) devido fatores psicolgicos e fisiolgicos. Um exemplo clssico da diferena que existe entre esses dois fenmenos o do rastreamento de fundamentais, em que um som que no existe fsicamente e no pode ser observado em um espectrograma gerado apenas pelo nosso sistema auditivo. O objeto sonoro pertence percepo auditiva.

    Ao longo de seu tratado, Schaeffer desenvolve extensivamente estes conceitos em busca de uma teoria musical generalizada, sem notao e adequada a todos sons possveis. Este teoria musical almejada mais descritiva do que operatria, ou seja, baseia-se mais no ato de ouvir no que no ato de fazer. Logo, temos um modelo de escuta que, alm de propor uma atitude de escuta fenomenolgica, tambm cria um vocabulrio para a descrio dos sons. Os termos que Schaeffer desenvolve para esse vocabulrio, porm, so numerosos e fogem do escopo deste trabalho.

    Schafer, o Ear Cleaning e a Paisagem Sonora

    Propostas por Raymond Murray Schafer, compositor e educador canadense, os conceitos de paisagem sonora e ear cleaning esto intimamente relacionados e so considerados suas maiores contribuies para a rea de educao musical. Ao mesmo tempo que prope uma mudana na atitude de escuta das pessoas frente aos sons da sociedade moderna, Schafer prope um lxico para um solfejo destes sons - apesar de fortemente baseado em Pierre Schaeffer situando-se, deste modo, entre as duas tendncias que observamos entre os modos de escuta.

    Estes dois conceitos foram elaborados paralelamente ao longo de diversas publicaes. Em 1967 foi publicado o texto Ear Cleaning: notes for an experimental music course, em que Schafer descreve uma srie de exerccios aplicados durante uma oficina de msica experimental oferecida por ele calouros da Universidade Simon Fraser. Schafer, ao propor uma limpeza dos

  • ouvidos, tem por objetivo sensibilizar os alunos sons que eles nunca haviam percebido antes atravs de investigaes empricas e reflexes. Para cada parmetro sonoro apontado no texto (rudo, silncio, som, timbre, amplitude, melodia, textura, ritmo e paisagem sonora), segue-se uma reflexo histrica, uma tentativa de definio e alguns exerccios que vo de escutas direcionadas improvisaes e composies coletivas. Anos depois, em 1986, este e outros textos foram compilados no livro The Thinking Ear, em que somaram-se ao conceito de limpeza dos ouvidos outros tantos relatos de cursos oferecidos por Schafer crianas e jovens em que ele discute sobre o uso da voz e a palavra na msica, sobre problemas da educao musical e sobre a criatividade em geral na sala de aula. Um outro texto adicionado esta coleo, The New Soundscape de 1968, j apontava para uma formalizao do conceito de paisagem sonora.

    Em 1977 publicado o livro The Tuning of the World - que seria republicado em 1994 com o ttulo The Soundscape em que trabalho o conceito de paisagem sonora. A multidisciplinaridade deste conceito pode ser observada no prprio termo soundscape - ou paisagem sonora - , um neologismo que empresta a idia de uma paisagem visual para descrever a ecologia sonora que existe em determinados ambientes e situaes. No s, Schafer enxerga trs reas do conhecimento que contribuem para sua pesquisa: primeiro, a acstica e a psicoacstica, com as quais se aprende as propriedades fsicas do som e a forma como ele percebido pelas pessoas; segundo, a sociologia, que pode indagar sobre como uma sociedade se comporta com os sons e de que maneira estes afetam seu comportamento; terceiro, com as artes, em especial a msica, que representariam as paisagens sonoras ideais dos homens de cada poca. O projeto idealizado por Schafer que deveria resultar disso em si tambm multidisciplinar: a interdisciplina do projeto acstico, em que msicos, engenheiros acsticos, psiclogos e socilogos estudariam a paisagem sonora mundial.

    O conceito de paisagem sonora nasce de uma preocupao com as mudanas nos ambientes acsticos aps revolues industriais, em que os sons possuem qualidades e intensidades muito distintas de qualquer outra poca da histria. O advento da eletricidade permite, por exemplo, sons contnuos e de amplitude exageradamente elevada. O projeto de Schafer, neste sentido, o de controle da poluio sonora que afeta tanto a sade auditiva das pessoas ( boilermakers disease, surdez) e mental. Mas, para tanto, preciso antes limpar os ouvidos para que, em uma escuta atenta, se descubra que sons desejamos censurar e que sons desejamos preservar.

    The Tuning of the World dividido em duas partes. Na primeira parte, Schafer traa um panorma histrico da paisagem sonora, abarcando paisagens da natureza, paisagens rurais e pastoris e paisagens urbanas industrializadas. Um interldio separa as duas partes do livro, em

  • que so tratadas relaes entre os assuntos da primeira parte e a msica. A segunda parte contm as ferramentas de anlise que Schafer designa para a paisagem sonora.

    O primeiro aspecto a se observar nas paisagens sonoras sua fidelidade. Paisagens hi-fi, ou de alta fidelidade, so as que possuem uma boa relao sinal/rudo, o que permite uma melhor distino entre os sons que a compem. Paisagens lo-fi, por outro lado, so saturadas de sons e os sinais acsticos individuais so obscurecidos. Seguindo em sua taxonomia, Schafer trata de algumas formas de classificao dos sons individuais de uma paisagem sonora. Estes sons podem ser classificados de acordo com sua caracterstica fsica ou com o modo como so concebidos dessa forma, faz uso de alguns critrios definidos por Pierre Schaeffer; eles podem ser classificados de acordo com sua funo ou significado, o que nos aproxima do campo da semitica; e podem ser classificados de acordo com as emoes ou afetos que eles suscitam, uma abordagem esttica e, portanto, sujeita s particularidades culturais ou individuais do ouvinte.

    Dentro de uma paisagem, estes sons podem assumir diferentes funes. Sons fundamentais (keynote sounds) so produzidos pela natureza, no costumam ser ouvidos conscientemente e marcam uma determinada paisagem por sua presena (sons do vento, pssaros, insetos, trfego de automveis, etc). Sinais sonoros (sound signals) so sons ouvidos conscientemente e que no costumam fazer parte de uma determinada paisagem, chamando a ateno por esse motivo. Marcas sonoras (soundmarks) so sons exclusivos de determinada paisagem e devem, segundo Schafer, ser preservadas.

    O projetista acstico praticante da disciplina idealizada por Schafer deve estar ciente destes aspectos e saber ouvi-los; por isso, a prtica do ear cleaning seria fundamental. Esta disciplina teria como refrencia as peculiaridades humanas da audio e da voz - paisagens sonoras que dificultam a comunio humana ou situaes que oferecem risco ao aparelho auditivo so, neste sentido, mais inumanas e prejudiciais. A funo do projetista privilegiar paisagens saudveis, preservar marcas sonoras e reparar paisagens sonoras desequilibradas. Schafer sugere para os eventuais estudantes prticas como gravaes de paisagens sonoras, soundwalks (passeios auditivos guiados) e dirios sonoros.

    Augoyard e os Sonic Effects

    Jean Franois Augoyard faz uso do termo efeito sonoro (sonic effect) em seu livro Sonic Experience: A Guide to Everyday Sounds de 1995. Fruto de anos de pesquisa de diversos membros do Centre de recherche sur Lespace sonore et lenviroment urbain (CRESSON) na Frana, este livro surge da preocupao por parte de seus idealizadores com o fenmeno da

  • ubiquidade sonora nos espaos urbanos e com a inexistncia de um lxico adequado descrio dos sons aos quais as pessoas esto submetidas nestes espaos. Nota-se, logo de incio, a multidisciplinaridade deste projeto, que abarca as reas de acstica, urbanismo, arquitetura, msica, psicologia, sociologia e esttica.

    Ao longo da primeira parte do livro,algumas teses so apresentadas. A primeira, e mais importante, a de que nenhum som pode ser analisado como independente das condies espaciais e temporais de sua propagao. Alm disso, deve-se considerar que todo som moldado, em parte, pela subjetividade do ouvinte, que varia de acordo com sua capacidade auditiva, atitude de escuta e cultura. Temos, neste relativismo, um claro afastamento da noo de escuta reduzida proposta por Schaeffer.

    Na busca por um instrumental analtico para as paisagem sonoras urbanas, Augoyard percebe que j existiam ferramentas quantitativas extremamente sofisticadas para medio acstica, gravao e anlise, carecendo, porm, de ferramentas qualitativas que pudessem ser usadas em conjunto com as quantitativas. Augoyard observa que as duas principais ferramentas em voga na poca o objeto sonoro de Schaeffer e a paisagem sonora de Schafer - no eram adequadas ao seu propsito. Para o uso no mbito estritamente urbano, o conceito de objeto sonoro lhe pareceu elementar demais, ao passo que o conceito de paisagem sonora lhe pareceu amplo demais. O efeito sonoro, enquanto uma via intermediaria, responde aos trs critrios pr-estabelecidos no incio da pesquisa: uma ferramenta multidisciplinar, pois abarca as reas de acstica, arquitetura, psicologia, etc; pode ser usado em diversas escalas de situaes urbanas, ao passo que ferramentas puramente quantitativas no servem para medio de espaos muito grandes ou muito pequenos; integra dimenses que vo alm de critrios estticos (nota-se, aqui, um afastamento das idias expressas por Schafer, que defendia uma certa assepsia sonora com as paisagens hi-fi).

    Enquanto ferramentas, os efeitos sonoros serviriam funes como assistncia em medies acsticas, anlise de situaes sonoras complexas e intervenes arquiteturais e urbansticas. Porm, ao criar um vocabulrio descritivo adequado estas funes, a categoria de efeito sonoro acaba por se tornar, tambm, uma ferramenta educacional para auxiliar em experincias auditivas, logo, um modelo de escuta para situaes sonoras urbanas.

    Na segunda parte do livro apresentado um repertrio de efeitos sonoros, analisando-os segundo alguns domnios: acstica; arquitetura e urbanismo; psicologia e fisiologia da percepo; sociologia e cultura; esttica musical; expresses na literatura e na mdia. So listados, ao todo, 83 efeitos sonoros, mas apenas 16 deles so trabalhados de forma extensiva: filtragem, reverberao, ressonncia, cut out, drone,mascaramento, onda, anamnese, metamorfose, remanescncia, sindoque, ubiquidade, nicho, imitao, repetio e sharawadji.

  • Smalley e a Espectromorfologia

    Denis Smalley, compositor de msica eletroacstica neozelands, escreveu sobre espectromorfologia pela primeira vez em 1986 em seu texto Spectromorphology and structuring process. Nove anos depois, publicaria um artigo tratando do mesmo assunto, mas de forma mais extensiva, chamado Spectromorphology: explaining sound shapes. A questo adjacente a ambos os textos o problema da anlise e da escuta na msica eletroacstica. Focando-se especficamente neste tipo de msica, Smalley tenta criar uma ferramenta analtica adequada descrio da experincia auditiva. Este, alis, o ponto chave do trabalho de Smalley, em que todos os parmetros e conceitos empregados voltam-se, antes de qualquer coisa, experincia perceptiva.

    Espectromorfologia, neologismo criado por Smalley, surge da ruptura que a msica eletroacstica promove com a msica tradicional ao no se submeter ao limites dos modelos sonoros vocais e instrumentais. Consequentemente, ao mesmo tempo que a msica eletroacstica tem sua disposio uma paleta de sons que extrapola estes modelos, ela tambm desprende esses sons dos gestos fsicos que normalmente os acompanham atravs da prtica acusmtica. Entendendo que a escuta musical tradicional sofre com esses dois aspectos, Smalley prope um novo modelo multisensorial e centrado na percepo sonora. Este modelo, por sua vez, deve ser aplicvel a uma grande variedade de msicas eletroacsticas que no se fundam em parmetros tradicionais nota definida e mtrica bem como peas instrumentais em que existe a idia de uma sntese instrumental e a criao de texturas complexas (ex: Grisey, Murail, Saariaho, Xenakis).

    Uma escuta espectromorfolgica, antes de mais nada, deve se desvincular da escuta tecnolgica. Este tipo de escuta, que ocorre quando a tecnologia empregada em uma msica se torna mais importante e evidente do que a msica em si, deve ser ignorada na medida do possvel. O problema que se mostra para Smalley que, em sua busca por um mtodo fundado em uma espcie de consenso perceptivo, no caberia uma escuta especializada como essa. E mais, a ausncia de informao gestual ou de relaes sonoras causais na msica eletroacstica no pode ser substituida por informaes como os tipos de sntese sonora, tratamentos ou programas de computador empregados pelo compositor.

    Alm da escuta tecnolgica, deve-se evitar a escuta reduzida de Schaeffer, que requer um bloqueio de qualquer distrao, ou melhor, de qualquer qualidade extrnseca do som para que as qualidades intrnsecas venham tona. O modelo espectromorfolgico, enquanto modelo multisensorial, tambm focado nas qualidade intrnsecas sonoras, mas no abole o extrnseco;

  • pelo contrrio, os dois interagem e se conectam. A essa conexo Smalley nomeia source bonding, que pode ser definido como a tendncia natural de relacionar sons com supostas causas ou fontes, e de relacionar sons uns com os outros pois ele aparentam possuir uma mesma origem. Esse tipo de relao intertextual entre elementos intrnsecos e extrnsecos pode ser usada intencionalmente por compositores, porm ela tambm pode surgir na propria atividade de escuta do ouvinte que, frente a imensa variedade e ambiguidade sonora da msica eletroacstica, imagina e cria suas prprias relaes.

    Em seu texto de 1995, Smalley divide seu pensamento espectromorfolgico em trs aspectos: o morfolgico, preocupado com o desdobramento do som no tempo; o espectral, preocupado com a qualidade espectral do som e com sua distribuio dentro do espao espectral; e o espacial, preocupado com o parmetro de espacializao do sonora muito peculiar da msica eletroacstica.

    As noes de gesto e textura so centrais dentro da morfologia. O gesto sonoro est relacionado a atividade fsica humana e , ao mesmo tempo, visual, ttil e proprioceptivo. Quando ouvimos um som, naturalmente deduzimos ou imaginamos uma atividade gestual humana ou uma trajetria energtica do movimento que anloga trajetria, ou morfologia, do som. A importncia deste parmetro na escuta musical tradicional, que foi por muito tempo ignorado nas atividades de anlise, s veio a tona com a msica eletroacstica. Uma msica gestual governada por um senso de linearidade narrativa que joga o tempo para frente; o gesto tem um comeo (onset), um meio (continuant) e um fim (termination), elementos que sempre estiveram presentes na msica tradicional e que continuam, ainda hoje, a condicionar nossa escuta e criar expectativas. Os gestos, porm, podem ser muito esticados ao ponto de sairem da escala da fisicalidade humana e entrar num campo textural. A textura, portanto, se concentra na atividade interna do som em detrimento de uma direcionalidade temporal. Textura e gesto quase sempre coexistem dentro de uma obra e um se desdobra no outro; por este motivo, a msica eletroacstica dificilmente pode ser segmentada hierarquicamente da mesma forma que a msica tradicional que se constri a partir de elementos mnimos como a nota e a mtrica. Smalley segue desenvolvendo as noes de gesto e textura ao longo do texto, criando parmetros de crescimento e desenvolvimento para elas.

    No campo espectral, Smalley define dois pares de extremos pelos quais um som pode se configurar. O primeiro o que vai da nota ao rudo. O critrio de nota pode ser pensado de duas formas: uma externa, em que a nota entendida como altura definida ignorando-se seu contedo espectral; uma interna, em que o ouvido entra na nota procurando sua configurao espectral. Quando tratamos de grupos de notas, estas tambm podem ser de dois tipos: quando as notas e os intervalos entre elas so claramente percebidos, temos uma relao de altura

  • intervalar; quando a nota e os intervalos no so claramente percebidos, temos uma relao de altura relativa. O rudo tambm possui dois critrios, mas estes so complementares, sendo o primeiro critrio o de granulao e o segundo o de saturao. Mesmo sendo dois extremos, uma nota pode mostrar-se ruidosa e um rudo pode ter aspecto de nota. O segundo par de extremos o que vai do som harmnico ao som inarmnico e que gradua em que medida a configurao espectral de um som respeita ou no a proporo da srie harmnica.

    Ainda dentro da espectralidade, Smalley define alguns critrios de densidade e distribuio para descrever a forma como os sons podem ocupar o espao espectral, ou seja, o campo sonoro que abrange os limites da audibilidade. Ao passo que na msica tradicional este campo j conhecido de antemo em funo da prpria fisicalidade dos instrumentos e da voz, na msica eletroacstica ele ser construido ao longo pea.

    O ltimo aspecto da espectromorfologia a espacializao. A espacializao um procedimento particular da msica eletroacstica e, enquanto tal, consitui uma categoria de experincia sonora por si s; Smalley, para ressaltar a importncia disso, por vezes trata este aspecto como spatiomorphology. Ela tambm tem funes estruturais, demarcando e colocando em movimento mudanas espectromorfolgicas do som.

    Oliveros e o Deep Listening

    Em 1967, a compositora e professora norte-americana Pauline Oliveros publicou um texto para a revista Source Magazine: Music of the Avant-garde intitulado Some Sound Observations. Neste texto, Oliveros descreve diversos eventos sonoros escutados por ela durante o momento da escrita (sons de tratores, latidos de ces, farfalhar de folhas, etc) e observa a forma como esses sons foram lhe trazendo idias e memrias. Em seguida, em 1971, Oliveros comps uma srie de peas chamadas Sonic Meditations. Incomodada com a forma como diversos intrpretes no pareciam escutar uns aos outros de forma atenta durante suas performances, este conjunto de peas buscava sanar essa deficincia, propondo uma situao de ateno e foco; so obras abertas, verbais e que dependem da interao entre os intrpretes (no necessariamente msicos) para acontecer.

    Nestes dois trabalhos esto as bases para o conceito de Deep Listening, desenvolvido por Oliveros ao longo de sua trajetria como instrumentista, compositora e professora, e formalizado com sua publicao de 2005, Deep Listening: A Composers Sound Practice. Neste livro so apresentados os principais pontos do Deep Listening, um roteiro com exerccios em grupo e uma srie de peas verbais para sua prtica.

  • O Deep Listening, como descrito neste livro, uma prtica que visa uma expanso perceptiva dos sons de maneira a incluir todo o contnuo temporal/espacial sonoro termo usado por Oliveros muitas vezes ao longo do texto- e a conectar o ouvinte ao ambiente e s pessoas ao seu redor. Trata-se de uma escuta profunda e atenta que almeja expandir a conscincia dos sons e suas interrelaes no limite do que humanamente possvel auditivamente. semelhana da proposta de Ear Cleaning, em Oliveros est explcita uma crtica ubiquidade sonora urbana e atrofiao da audio que isso causa , porm, no parece haver uma predileo esttica pelos sons hi-fi ou por qualquer outro tipo de som. Temos, portanto, uma proposta de atitude de escuta mais prxima da idealizada por Cage, em que a qualidade dos sons pouco importa. Portanto, Oliveros no prope nenhum tipo de sistema taxonmico para os sons.

    A prtica do Deep Listening uma prtica meditativa fortemente baseada em religies orientais (hindusmo, budismo tibetano). Assim como a meditao religiosa, a meditao auditiva usada para acalmar a mente, relaxar o corpo e promover receptividade ou concentrao. Essa prtica deve estimular as pessoas criativamente nas artes e na vida e, atravs de uma escuta imparcial, promover compaixo e compreenso.

    A segunda parte do livro consiste em definir um roteiro ideal de uma aula de Deep Listening, envolvendo exerccios corporais e de respirao (muitos deles da yoga), improvisaes vocais e rtmicas, meditaes auditivas direcionadas tematicamente, gravaes de campo, entre outros. tambm sugerido que os alunos mantenham um dirio para anotaes sobre as meditaes.

    Na terceira parte do livro apresentado um repertrio de peas para a prtica do Deep Listening compostas por Oliveros e por outros deep listeners. Estas peas so todas feitas a partir de instrues verbais e baseiam-se na meditao auditiva. Alm disso, possuem um forte carter cerimonial, ou seja, envolvem um grupo de pessoas que devem se organizar no espao de uma maneira especfica ou exercer determinadas funes. Contudo, interessante notar que nem todas as pessoas tem por finalidade produzir sons: algumas so apenas propostas de reflexo ou de escuta direcionada, o que refora, mais uma vez, como o Deep Listening um modelo totalmente centrado na atitude de escuta.

    Ferraz e a escuta multimodal

    Slvio Ferraz, em suas aulas de anlise musical no departamento de msica da Universidade de So Paulo, prope um modelo de anlise e escuta partindo do princpio que toda percepo na verdade multimodal. Isso significa que uma experincia, inclusive a

  • esttica, percebida com todos os sentidos conjuntamente. O sistema complexo da escuta, por sua vez, relaciona-se com os outros sentidos tomando termos emprestados e traduzindo sensaes para o mbito do som. Podemos observar, por exemplo, como a maioria dos termos que so geralmente usados para descrio de qualidades sonoras so na verdade metforas, termos como rugoso, spero, agudo, encorpado, brilhante, que so de ordem ttil, proprioceptiva, visual etc. Na lngua portuguesa, paradoxalmente, talvez os nicos dois termos que servem essncialmente ao som so silncio e rudo.

    Ferraz desenvolve, a partir de Ferneyhough, trs aspectos da escuta musical: o aspecto de figura, o de textura e de gesto. Dos trs, o aspecto de figura foi o mais analisado ao longo da histria, permanecendo os outros dois esquecidos at o sculo XX.

    O primeiro aspecto, figural, pertence a ordem da viso. o olho dentro da msica e, enquanto tal, preocupa-se com o que do mbito notacional partituras e tablaturas. Por esse motivo, seus elementos caem na categoria hors temps de Xenakis, ou seja, so elementos que existem fora de uma temporalidade, so abstratos por exemplo, escalas, conjuntos de notas, acordes, prolaes rtmicas. O que h de visual neste tipo de escuta o reconhecimento de procedimentos sonoros anlogos a procedimentos notacionais como inverses, transposies, retrogradaes, movimento de vozes, etc.

    O segundo aspecto o textural, que de ordem ttil. Este aspecto, apesar de difcil definio, pode ser considerado a partir de trs parmetros: sua densidade vertical (nmero de elementos simultneos), sua densidade horizontal (nmero de eventos dentro de um determinado intervalo de tempo) e sua superfcie ou espessura (mbito dentro do qual as densidades so consideradas).

    O terceiro aspecto o gestual, que de ordem proprioceptiva. Neste aspecto so projetadas na msica as sensaes do prprio corpo, e tambm suas limitaes fsicas, como a noo de equilbrio e gravidade. O gesto pode ser simblico e ter significado social (como, por exemplo, o passus durisculus barroco) ou pode ser puramente um fluxo de energia, com comeo, meio e fim. Uma mesma figura, carente de temporalidade, pode suportar diversos gestos, ou seja, pode acontecer em diversos andamentos e com diferentes fraseados.

    Concluso

    Observamos que todos estes modelos de escutas so, em diferentes medidas, multidisciplinares. O uso de conceitos da fsica acstica e da psicoacstica so os mais recorrentes e bvios, mas constatamos tambm incurses por partes destes modelos nas reas de

  • arquitetura, urbanismo, sociologia,filosofia, pedagogia e religio (meditao). Quanto as duas posturas delimitadas no incio do texto (criao de um lxico e mudana na atitude de escuta), constatamos que modelos de escutas se situam em diferentes pontos entre os dois extremos, sendo o deep listening o nico que foca exclusivamente em uma mudana de atitude de escuta; todos os outros modelos criam, em diferentes graus de complexidade, seus prprios vocabulrios. evidente a influncia do trabalho de Schaeffer sobre todos os outros modos de escuta, mesmo nos dois outros trabalhos que, de certa forma, refutam a noo de escuta reduzida (Smalley e Ferraz), afirmando um modelo de escuta que depende, ou de elementos extrnsecos, ou da relao com os outros sentidos.

    Bibliografia:

    SCHAFFER, M. The thinking ear. Canad: Arcana Editions, 1986. 390p.

    SCHAFFER,M. A Afinao do mundo. 2 edio. Brasil: Editora Unesp, 1977. 381.

    AUGOYARD, J.F. Sonic Experience: a guide to everyday sounds. Canad: McGill-Queens University Press, 2005. 216p.

    CHION, M. Guide des objets sonores: Pierre Schaeffer et la recherche musicale. Frana: Buchet Chastel, 1994.

    FERNEYHOUGH, B. BOROS,J. Shatering the vessels of received wisdom. Perspectives of New Music. vol 28, n 2, pg 6-50, 1990.

    SMALLEY,D. Spectromorphology: explaining sound-shapes. Organized Sound, vol 2, pp107-126, 1997.

    OLIVEROS,P. Deep Listening: A Composer's Sound Practice. EUA: iUniverse Inc., 2005.