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Capítulo Um -E , DE REPENTE — disse o velho americano de camisa branca —, sobre todo aquele inferno, de repente, voou um pombo. Fez-se silêncio. Seu hebraico inesperado e o pombo que surgiu de sua boca surpreenderam todos os presentes. Até mesmo aqueles que não entendiam o que ele estava dizendo. — Pombo? Que pombo? O homem — alto e bronzeado como só os americanos podem ser, de mocassins e com uma juba branca — apontou para a torre do mosteiro. Muito tempo se passara, mas ele ainda se lembrava do terrível combate que havia sido travado ali. — E esquecer — declarou — jamais esquecerei. — Não somente o cansaço e o terror, não somente a vitória. — Uma vitória que surpreendeu ambos os lados — completou. Assim como os pequenos detalhes, aqueles cuja importância só salta aos olhos depois: por exemplo, de vez em quando, um projétil perdido, ou talvez intencional, atingia o sino do mosteiro. — Eis aí, exatamente este sino — E ele voltava a emitir um som agudo, estranho de se ouvir, que se alongava e cessava, mas prosseguia retumbando na escuridão por longo tempo. — E o pombo? — Um som estranho. No início, era agudo e alto, como se o pró- prio sino tivesse ficado surpreso, e então ia enfraquecendo, como o que doi mas não mata, até ser atingido novamente. E um de nossos feridos chegou a dizer:“Sinos costumam receber os golpes do lado de dentro, e não de fora.” — E riu consigo mesmo, como se apenas naquele momento ele tivesse entendido. Seus dentes ficaram à mostra, e eram muito brancos. — Mas, e o pombo? Que pombo era aquele? — Um homing pigeon. Noventa e nove por cento de chance de ser um pombo-correio do Palmach. Lutamos a noite inteira e, pela ma- nhã, duas ou três horas depois de o sol raiar, nós o vimos alçar voo. O hebraico que ele articulava sem um cuidado prévio era bom, apesar do sotaque, mas homing pigeon em inglês soava mais agradável e correto do que “pombo-correio” em hebraico, ainda que ele tivesse pertencido ao Palmach. — Como vocês sabiam? — Enviaram conosco um treinador de pombos. Era assim que se chamava. Um especialista em pombos com um pequeno pombal às Um Pombo e um Menino

Um Pombo e um Menino - Primeiro Capítulo

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Primeiro capítulo de Um Pombo e um Menino, livro de estreia no Brasil de Meir Shalev.

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Capítulo Um

-E, DE REPENTE — disse o velho americano de camisa branca —, sobre todo aquele inferno, de repente, voou um pombo.

Fez-se silêncio. Seu hebraico inesperado e o pombo que surgiu de sua boca surpreenderam todos os presentes. Até mesmo aqueles que não entendiam o que ele estava dizendo. — Pombo? Que pombo? O homem — alto e bronzeado como só os americanos podem ser, de mocassins e com uma juba branca — apontou para a torre do mosteiro. Muito tempo se passara, mas ele ainda se lembrava do terrível combate que havia sido travado ali. — E esquecer — declarou — jamais esquecerei. — Não somente o cansaço e o terror, não somente a vitória. — Uma vitória que surpreendeu ambos os lados — completou. Assim como os pequenos detalhes, aqueles cuja importância só salta aos olhos depois: por exemplo, de vez em quando, um projétil perdido, ou talvez intencional, atingia o sino do mosteiro. — Eis aí, exatamente este sino — E ele voltava a emitir um som agudo, estranho de se ouvir, que se alongava e cessava, mas prosseguia retumbando na escuridão por longo tempo. — E o pombo? — Um som estranho. No início, era agudo e alto, como se o pró-prio sino tivesse ficado surpreso, e então ia enfraquecendo, como o que doi mas não mata, até ser atingido novamente. E um de nossos feridos chegou a dizer:“Sinos costumam receber os golpes do lado de dentro, e não de fora.” — E riu consigo mesmo, como se apenas naquele momento ele tivesse entendido. Seus dentes ficaram à mostra, e eram muito brancos. — Mas, e o pombo? Que pombo era aquele? — Um homing pigeon. Noventa e nove por cento de chance de ser um pombo-correio do Palmach. Lutamos a noite inteira e, pela ma-nhã, duas ou três horas depois de o sol raiar, nós o vimos alçar voo. O hebraico que ele articulava sem um cuidado prévio era bom, apesar do sotaque, mas homing pigeon em inglês soava mais agradável e correto do que “pombo-correio” em hebraico, ainda que ele tivesse pertencido ao Palmach. — Como vocês sabiam? — Enviaram conosco um treinador de pombos. Era assim que se chamava. Um especialista em pombos com um pequeno pombal às

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costas. Talvez ele tenha conseguido libertá-lo antes de ser morto, ou tal-vez o pombal tenha se quebrado e o pombo fugido. — Ele foi morto? Como? — Como? Por acaso faltava aqui alguma maneira de ser morto? Você só precisava escolher: com uma bala, um estilhaço na cabeça, na barriga, na maior artéria da coxa. Às vezes, instantaneamente; outras vezes, aos poucos, algumas horas depois de você ter sido atingido. Seus olhos amarelos se cravaram em mim. — Veja só que coisa — ele gracejou —, fomos ao combate com pombos-correio, como na Grécia antiga. E, DE REPENTE, sobre todo aquele inferno, os combatentes vi-ram um pombo. Surgido dos bulbos de fumaça, resgatado das mortalhas de poeira, ele alçou voo. Por cima dos gemidos e gritos, por cima dos sussurros de estilhaços na friagem do ar, por cima dos caminhos invi-síveis de projéteis, por cima da explosão das granadas, do rugido das metralhadoras e do estrondo dos canhões. A visão de um simples pombo: azul-acinzentado com pernas escarlate e duas listras escuras como as pontas de um xale de orações enfeitando as asas. Um pombo como milhares de outros, parecido com qualquer outro pombo. Somente os ouvidos de um especialista pode-riam captar o vigor daquelas batidas de asas, duas vezes mais fortes do que as de um pombo comum. Somente os olhos de um especialista poderiam discernir o peito largo e profundo, ou o bico que prosseguia pela inclinação da testa em linha reta, ou a típica inchação de cor clara ligando-o à cabeça. Somente o coração de um apaixonado por pombos poderia captar e guardar as lembranças saudosas que se acumulavam na ave, que lhe indicavam uma direção e lhe derramavam forças. Mas esses olhos já haviam escurecido, os ouvidos já tinham ficado surdos, o coração se esvaziara e se calara. Restara somente o pombo, sua nostalgia de casa, seu último desejo. Acima. Sobre o sangue, sobre o fogo e as colunas de fumaça. Sobre os feridos cuja carne estava perfurada, mutilada, queimada, silen-ciada. Sobre aqueles cujo corpo ficaria como despojo, mas cuja alma se extinguia. Sobre os que morreram e, com o passar dos dias, que morre-riam mais uma vez com a morte de quem deles se lembrava. Acima. Mais alto e mais distante, até que o tiroteio fizesse um tique-taque enfraquecido, os gritos cessassem, o cheiro se dispersasse, a fumaça clareasse e os mortos ficassem parecidos uns com os outros, como um único bloco compacto, e os vivos se despedissem deles e se-guissem cada um o seu destino, assombrados: qual havia sido o seu mé-

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rito? E seus companheiros que jaziam à sua frente, qual havia sido o seu pecado? E, então, um rápido olhar para os lados, e direto para casa, em linha reta, como pombos-correio retornando. Para casa, com o coração agitado mas corajoso, com os olhos dourados assustados, mas comple-tamente arregalados, sem perder nenhum detalhe da paisagem que pu-desse ajudar. As pálpebras tensionadas por causa da obscuridade e da poeira. A cauda, curta e arredondada, adornando mais uma listra fina que remetia à linhagem damascena antiga. A cabeça redonda, pequena, cheia de nostalgia e lembranças: o pombal, cada compartimento, o ar-rulho do parceiro, o cheiro quente de ninho e incubação. A mão de uma mulher jovem passando sobre a vasilha, o chacoalhar dos grãos deposi-tados nela chamando-o, o olhar da mulher vasculhando o céu, esperando por ele, e suas palavras — “Venha, venha, venha” — tudo isso era convi-dativo e aconchegante. — Não somente eu.Todos o vimos — disse o velho americano — e, ao que parece, eles também, pois todas as armas se calaram de uma só vez, as nossas e as deles. Nenhuma atirou, nenhuma granada explo-diu, todas as bocas pararam de gritar, e se fez um silêncio tão profundo que ouvimos suas asas batendo no ar. Por um instante, todos os olhares e todos os dedos o acompanharam, pois ele fazia o que todos nós querí-amos: voltar para casa. A essa altura, o velho americano estava muito agitado. Andava de um lado para o outro. Passava a mão espalmada nos espessos e bran-cos fios de sua juba. — Era isso que ele era, um homing pigeon. Aquilo era tudo que ele queria, e aquilo era tudo que ele sabia fazer. Subiu, renunciou à vol-ta que costuma ser descrita nos livros, a que os pombos-correio fazem antes de tomar a direção correta, e voou, sem esperar mais. Como uma flecha que foi atirada para lá, a noroeste, se não me engano; sim, pelo relógio de sol, não estou enganado. Direto para lá, e vocês nem podem imaginar como ele desapareceu depressa. Em questão de segundos. Cheio de saudade e de pressa. Estive-ra lá e sumira. A mão que o arremessara baixara, o olhar acompanhan-do-o ainda, o sino ainda vibrando, recusando-se a silenciar. O sino, os últimos sons sendo resgatados para o distante mar do absoluto silêncio, e o pombo, com seu azul-acizentado sendo engolido por seu gêmeo no horizonte e já não estando mais lá. E embaixo, os dedos voltando aos gatilhos e os olhos aos alvos, e os canos voltando a ribombar e as bocas a gemer e a se abrir e a tragar o ar, a gritar e respirar os últimos suspiros. Agora o homem se dirigia a seus amigos. Passou a falar em in-glês, descreveu, explicou, apontou para o “mais ou menos ali, depois dos

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pinheiros” e o “exatamente aqui”. Contou a respeito de um blindado ira-quiano que “circulava por aqui como dono da casa, com metralhadora e canhão”. Gesticulava como um anfitrião generoso. — Ali mesmo, era lá que eu estava deitado com a metralhadora. Naquele canto do telhado. Mas, naquela outra casa, havia um franco-ati-rador e ele me enfiou uma bala. E foi logo se inclinando com a flexibilidade que as pessoas de sua idade não têm, arregaçou a calça, mostrou duas cicatrizes claras en-tre o joelho e o calcanhar: — Estão vendo? Bem aqui. A pequena é o buraco da entrada, e a grande, o da saída. E nosso guerrilheiro me levou nas costas para bai-xo, voltou ao telhado para me substituir e foi atingido por um projétil de morteiro. — Voltando, então, ao hebraico, que era dirigido apenas a mim: — Um rapaz maior e mais saudável do que eu. Pobre coitado. Foi rasgado ao meio e morreu em um segundo. Ele falava e recontava, libertando as lembranças guardadas por tanto tempo. Que respirassem um pouco de ar e esticassem as pernas, que vissem o lugar em que estavam, que discutissem e comparassem: O que havia sido trocado? O que não estava por inteiro? O que merecia ser mantido e o que não mais? — E o rapaz que havia trazido os pombos? — prossegui com meus próprios interesses. — O treinador de pombos que você mencio-nou? Você disse que ele foi morto.Você viu exatamente onde? Os olhos voltaram a se fixar em mim, olhos amarelos de leão. Uma grande mão bronzeada descansou em meu ombro, enquanto outra grande mão bronzeada se ergueu e apontou. Tinha manchas senis, as unhas feitas, um relógio de ouro adornando o pulso e a manga branca e bem passada a ferro arregaçada. Era fácil imaginar aquela mão seguran-do o cabo de um fuzil, acariciando a cabeça do neto, batendo na mesa, apalpando quadris e coxas. — Ali. Um bom e agradável vigor jorrou em mim de repente, como se aqueles fossem os olhos de um pai observando o filho, como se aquela mão fosse a mão de um pai deslizando da cabeça até o ombro — condu-zindo, oferecendo apoio e força. — Onde? Mostre-me exatamente onde — insisti. Ele inclinou a cabeça branca em minha direção, como todas as pessoas altas na minha vida fazem ao falar com pessoas baixas: — Ali. Entre o canteiro de grama e os balanços em que as crian-

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ças estão brincando. Você está vendo? Lá havia uma pequena construção de pedra, de dois por dois metros, não mais que isso, um tipo de depó-sito para ferramentas de jardinagem. Nós nos concentramos no pátio interno e nos quartos do convento, enquanto os soldados do segundo batalhão se protegeram naquele prédio, no outro lado deste beco, e o blindado detonava todo aquele que colocasse a ponta do nariz para fora. Mas aquele treinador de pombos, só o demônio sabe por que e como, saiu e, de alguma forma, chegou lá, e foi lá também que o achamos de-pois que tudo acabou. NÃO CONSEGUI MAIS ficar ali. Conduzi-os até o Behemoth — esse é o nome que minha mulher deu ao grande Chevrolet Suburban que ela comprou para mim — e partimos em direção à Colônia Alemã. Agora eu sentia completamente o meu cansaço. Um grupo pe-queno pode incomodar e exigir mais do que um ônibus lotado de turis-tas. O dia clareou em Tel-Aviv, prosseguimos pelo Kibutz Hulda e a his-tória do comboio que recebeu seu nome, interrompemos para um lanche leve de sanduíches em Mitzpé-Harel, descemos e seguimos pela Estrada Burma em direção a Hamasrek e aos pontos estratégicos de Shaar-Ha-gai, para mais informações e observações. De lá, eu os levei ao cemitério de Kiriat Anavim, e então su-bimos até Jerusalém, ao convento e à surpresa: a de que o mais velho dos seis americanos que eu guiava — um senador, seu secretário, seu conselheiro e três homens de negócios, todos convidados do Ministério das Relações Exteriores — havia sido membro do Palmach e participara do combate que eu tentava descrever para eles. E dessa surpresa parti-mos para outra ainda maior: o pombo-correio que voara de repente dos arquivos de sua memória. — Você o conhecia? — perguntei. — Quem? — O treinador de pombos que você mencionou. Seu rosto ocupou o espelho retrovisor do Behemoth. — Não exatamente. Ele não fazia parte do grupo de comba-tentes. Tinha vindo instalar o pombal da brigada. Disseram que era um excelente profissional, que havia se ocupado com pombos desde a infân-cia. Seus olhos não relaxaram; cravaram-se em mim como espi-nhos. — Não me lembro mais do nome dele. Tombaram muitos ami-gos meus, e muitos anos já se passaram. No sinal de trânsito em frente ao cemitério da Colônia Alemã,

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dobrei à esquerda e, como a rua estava engarrafada com carros e pes-soas, aproveitei o fluxo lento para expor minha mercadoria enquanto prosseguíamos: refaim, filisteus, ingleses, alemães. — Prestem atenção, meus senhores, aos versículos da Bíblia inscritos nas vergas das igrejas. E ali está a velha estação de trem de Jerusalém, atualmente desativada, mas, quando eu era criança, viajava daqui a Tel-Aviv com a minha mãe. Num trem a vapor. Dá para acreditar nisso? O trem seguia lentamente, fazendo barulho, rangendo pelos trilhos sinuosos nos barrancos. Lembro-me dos pequenos canteiros bem cultivados dos árabes, do outro lado da fronteira, da espuma de sabão que se acumulava nas águas dos esgotos. O vento soprava grãos de fuligem da locomotiva e você os sacudia dos cabelos e se alegrava: estávamos indo para casa. Para Tel-Aviv... O cheiro de pão, ovo cozido e tomate, provisões para a viagem que você sempre levava, voltou invadir minhas narinas. Minha testa es-tremecia — como agora, enquanto escrevo estas palavras — diante de seu jogo de sempre: amassar o ovo cozido, dizer Plaf!, e rir. Eu sempre me surpreendia e você sempre ria. O farfalhar de seus dedos no papel, espalhando uma pitada de sal, e sua singela canção: “A locomotiva já está apitando...” Assim você cantava: com uma entonação infantil — “A locomotiva já está apitando, quem não sentar não vai viajar...”, e o sorriso que se abria em seu rosto quanto mais nos afastávamos de Jerusalém. Um sorriso de alegria e de satisfação. Para casa. Para Tel-Aviv. Sim, eles acreditam. E por que não? A excursão estava muito bem organizada, e os sanduíches, o café e o suco aguardavam por eles, no tempo e nos lugares previamente determinados, proporcionando credi-bilidade e viabilidade também às lembranças do guia e suas explicações. Na varanda da cinemateca, concretizaram-se também a mesa reservada, as promessas do pôr do sol e a paisagem. Esse é o Monte Sion, e lá, o Túmulo do Rei Davi, se alguém estiver interessado nesse tipo de lugar e história, e abaixo se encontra a Represa do Sultão, com uma torneira para dar de beber a quem está com sede e cansado. E lá — as montanhas de Moab, douradas à última luz do dia. — Sim, tão próximas, é possível estender a mão e tocá-las. Ali estava Moisés, no Monte Nebo, e olhava para a Terra Prometida. Ele também achava que era muito próximo, só que era do outro lado. — Talvez seja este o verdadeiro problema de vocês — observou um dos homens de negócios do grupo, vestido com uma ridícula cami-sa safari cheia de bolsos, do tipo que turistas e jornalistas estrangeiros gostam de usar quando chegam ao Oriente Médio. — Tudo aqui é tão

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pequeno, próximo e apertado, que de cada lugar você vê mais e mais lu-gares. E o guia turístico — sou eu, mamãe; não se esqueça nem se engane — reagiu com um “É evidente”, e acrescentou em tom elogioso com um “Correto”. De fato, é pequeno e muito apertado, e tomado de pessoas, acontecimentos e lembranças. — De forma tão judaica, eu diria — ele completou, e então misturou história e etimologia, verdade e ficção, e mostrou o Vale Ben-Hinom, ou Inferno, e contou a respeito do festival de cinema, e dos tú-mulos dos caraítas, e do terrível culto ritual a Moloch; quem pediu café frio? Os bebês sacrificados clamam sobre os altares. Ao cair da tarde, conduzi meu pequeno e respeitável grupo ao Hotel King David, onde um importante membro do Parlamento israe-lense — “justamente da oposição”, argumentou o organizador da visita e funcionário do Ministério das Relações Exteriores — jantaria com eles e depois teria uma conversa para responder às perguntas da delegação sobre assuntos atuais,“pois o ministro não apenas concorda, mas tam-bém insiste que ouçam opiniões opostas”. Fui para o quarto reservado em meu nome — nem todos os grupos são tão generosos como este —, tomei banho e telefonei para casa. Seis toques e um grande alívio: sem resposta. Liora não está em casa. Ou talvez esteja em casa, mas sabe que sou eu e decidiu não aten-der. Ou talvez tenha sido o próprio aparelho de telefone, que mais uma vez identificou quem está ligando e mais uma vez optou por ignorar a chamada e se calar. — Alô... — eu disse.— Alô... — E depois: — Liora? Sou eu. Se você estiver aí, pode fazer o favor de atender? Mas foi a minha própria voz que respondeu, uma voz concisa e educada: “Você ligou para Liora e Yair Mendelsohn; agora não podemos atender”, e depois da minha voz — a voz dela. Impaciente e cativante com seu inglês e sua rouquidão: “Deixe sua mensagem após o sinal.” Desliguei e, em seguida, telefonei para o celular de Tirtza. Ela nunca atende com “Alô”. Às vezes, responde “Sim”, outras vezes, “Só um momento, por favor”, e então posso ouvi-la dando instruções a seu pes-soal, e ouço com prazer. — Estou com você — ela disse. — Você quer vir a Jerusalém,Tirale? Deram-me uma cama grande demais, uma lua cheia e uma janela de frente para as muralhas da Cidade Velha. — É você, queridinho? Pensei que fosse o chato do engenheiro do Departamento de Obras Públicas.

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Tirtza não me chama pelo nome. Às vezes, ela se dirige a mim como “Irale”, como o pai dela me apelidou quando éramos crianças, para que pudesse exclamar “Vejam só Irale e Tirale” quando nos via juntos, e outras vezes, carinhosamente, me chama de “queridinho”. — Sou eu. Outro chato. Ela riu. Agora está convencida, finalmente. Não é aquele chato, mas este chato. E quando Tirtza ri, fico feliz: junto com esse grande riso posso perceber um elogio a mim. — Onde você está? — No King David. Então, você vem? Ela tornou a rir. De fato,uma bela proposta: ela e eu, a cama e a janela com a lua e as muralhas, uma proposta muito tentadora, mas amanhã pela manhã um grande projeto espera por ela na Baía de Haifa, e ela tem duas reuniões com funcionários do Ministério da Defesa — uma com o mais imbecil da construção e a outra com o mais simpático do financeiro.— E espero que possamos nos encontrar também em nossa casa, pois precisamos tomar algumas decisões. Ignorei o “nossa casa”. Perguntei que decisões eram essas. — O de sempre: cores, detalhes, esquadrias de janelas. Não se preocupe, eu decidirei. Você só precisa estar presente. — Amanhã. Termino com esses americanos e parto em segui-da. — Como eles são? — Você não vai acreditar. Um deles esteve no Palmach. — Você me ama? — Sim. E sim — antecipei-me, respondendo também à per-gunta seguinte, que ela sempre faz:“Está com saudades de mim?” — Você quer ouvir o que mais já conseguimos fazer na reforma da casa? — Preciso lhe contar uma coisa que esse homem disse. — Histórias só na cama. Antes de dormir. — Estou na cama. — Nós dois. Não só você. Amanhã à noite. Vamos inaugurar a lua cheia e você me contará tudo. E me traga um sanduíche de omelete do bar do Glick. Peça que coloquem muito sal e tostem um pouco a mi-nha pimenta. E diga a eles que é para mim. Não se esqueça. Para a filha de Meshulem Freid! Vesti-me, olhei-me no espelho e decidi desistir do jantar, do membro importante do Parlamento, que era da oposição, e de suas opi-niões contrárias. Despi a roupa, voltei para a enorme cama, tirei um co-chilo breve e irritante diante da lua e das muralhas, acordei mais cansa-do do que já estava antes, vesti-me e fui até o bar.

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