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1 Um Potentado nas Juntas: notas sobre a atuação de Henrique Lopes de Araújo nas juntas de procuradores em Minas Gerais na década de 1710. Tarcísio de Souza Gaspar Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo Professor de História do IFSULDEMINAS Esta comunicação aborda a atuação de Henrique Lopes de Araújo, capitão-mor de Vila Rica entre 1713-1733, nas Juntas de Procuradores ocorridas em Minas Gerais na década de 1710. Pretende-se explorar aspectos biográficos da personagem em contraste com os conflitos políticos oriundos da administração portuguesa nas Minas neste período. Refletidos e discutidos nas Juntas, tais conflitos permitem avaliar o posicionamento político e as aspirações pessoais desta personagem que, de origem vil ou popular, elevou-se à posição de potentado mineiro, enriquecido por suas posses e nobilitado em seu posto militar, e, como tal, passou a frequentar espaços institucionais e administrativos, na qualidade de “homem principal” ou “homem bom”. As Juntas de Procuradores foram um mecanismo político-institucional sistematicamente utilizado no governo das Minas durante as décadas de 1710 e 1720. Resultavam da convocação, feita pelo governador, aos homens principais, aos procuradores das câmaras e às demais autoridades religiosas, militares, judiciárias e administrativas da região, que, neste caso, atuavam como representantes dos “Povos” da capitania. As Juntas consistiam na reunião destes procuradores, na presença do general e de seu secretário, no fito de analisar, discutir, propor alternativas ou deliberar ações governativas e fiscais no âmbito das Minas. O direito real sobre o quinto da extração aurífera ocupou o centro das atenções, ao lado das deliberações acerca de taxas e tributos incidentes sobre o comércio de mercadorias. Debateram-se, quase sempre polemicamente, as diferentes formas de arrecadação, o método de cobrança e o montante dos quintos. Até meados do século XVIII, todos os meios de cobrança foram acertados localmente, através das Juntas de Procuradores, que, neste caso, podiam concordar com ordens régias anteriores – como foi a regra – ou, no limite, contrariá- las, suscitando momento de instabilidade política. A década de 1710 foi período fundamental na definição dos mecanismos de

Um Potentado nas Juntas: notas sobre a atuação de Henrique ... · As Juntas de Procuradores foram um mecanismo político-institucional ... sua carta patente e outra carta real,

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Um Potentado nas Juntas: notas sobre a atuação de Henrique Lopes de Araújo nas

juntas de procuradores em Minas Gerais na década de 1710.

Tarcísio de Souza Gaspar

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo

Professor de História do IFSULDEMINAS

Esta comunicação aborda a atuação de Henrique Lopes de Araújo, capitão-mor de Vila

Rica entre 1713-1733, nas Juntas de Procuradores ocorridas em Minas Gerais na década de

1710. Pretende-se explorar aspectos biográficos da personagem em contraste com os conflitos

políticos oriundos da administração portuguesa nas Minas neste período. Refletidos e

discutidos nas Juntas, tais conflitos permitem avaliar o posicionamento político e as

aspirações pessoais desta personagem que, de origem vil ou popular, elevou-se à posição de

potentado mineiro, enriquecido por suas posses e nobilitado em seu posto militar, e, como tal,

passou a frequentar espaços institucionais e administrativos, na qualidade de “homem

principal” ou “homem bom”.

As Juntas de Procuradores foram um mecanismo político-institucional

sistematicamente utilizado no governo das Minas durante as décadas de 1710 e 1720.

Resultavam da convocação, feita pelo governador, aos homens principais, aos procuradores

das câmaras e às demais autoridades religiosas, militares, judiciárias e administrativas da

região, que, neste caso, atuavam como representantes dos “Povos” da capitania. As Juntas

consistiam na reunião destes procuradores, na presença do general e de seu secretário, no fito

de analisar, discutir, propor alternativas ou deliberar ações governativas e fiscais no âmbito

das Minas. O direito real sobre o quinto da extração aurífera ocupou o centro das atenções, ao

lado das deliberações acerca de taxas e tributos incidentes sobre o comércio de mercadorias.

Debateram-se, quase sempre polemicamente, as diferentes formas de arrecadação, o método

de cobrança e o montante dos quintos. Até meados do século XVIII, todos os meios de

cobrança foram acertados localmente, através das Juntas de Procuradores, que, neste caso,

podiam concordar com ordens régias anteriores – como foi a regra – ou, no limite, contrariá-

las, suscitando momento de instabilidade política.

A década de 1710 foi período fundamental na definição dos mecanismos de

2

arrecadação do quinto, debatidos no interior das Juntas. O que estava em jogo nas reuniões

ultrapassava a mera obediência às determinações régias. Importaram também conflitos sociais

latentes nas Minas. Isto porque, quanto aos quintos, escolher entre uma e outra forma de

cobrança significava contrariar interesses díspares de diferentes grupos sociais. Decidir quais

grupos ou fatias da sociedade colonial deveriam suportar o ônus do quinto transformou-se em

dilema político fundamental, motivo de acomodação, negociação ou revolta. A historiografia

divisou a contradição entre mineradores e comerciantes, mas é possível estender o alcance

social dos quintos até grupos mais empobrecidos da população. De regra, é aceita a tese de

que o grupo social propriamente ligado à extração aurífera tenha pressionado, com sucesso,

no sentido de pulverizar a arrecadação do quinto entre os demais setores da sociedade. Em

1715, no governo de dom Brás Baltasar da Silveira, através do acordo por quotas fixas, em

rejeição à ordem real que preconizava a cobrança por bateias, este modelo favorável aos

mineradores se perpetuou por cerca de 20 anos, sendo alterado apenas em 1735, quando o

acordo da capitação sinalizou alteração da balança em proveito dos comerciantes. Seja como

for, é certo que, neste período, o quinto transformou-se em tema sensível ao conjunto da

população mineira, do pobre faiscador, homens livres pobres, de escravos libertos, artífices e

oficiais mecânicos, dos comerciantes e agricultores, até chegar aos grandes mineradores, com

suas respectivas escravarias. Por conseguinte, as deliberações a respeito do tema, tomadas nas

Juntas, alcançavam lastro peculiar e envolviam fatores políticos que interessam a toda a

comunidade.

Henrique Lopes não esteve presente às duas primeiras Juntas de Procuradores

convocadas por autoridade real nas Minas. A 10 de novembro de 1710, diante de 30

moradores locais, que deviam “assistirem em nome dos Povos à dita Junta”, o governador

Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho mandou ler, na voz do secretário de governo,

Manuel Pegado, sua carta patente e outra carta real, preocupada com a “melhor forma para a

conservação desta nova conquista, considerando-se os meios mais úteis para o seu aumento”.

Iniciado o “sossego dos povos”, após a pacificação da contenda entre forasteiros e paulistas,

era preciso erigir vilas nas quais “estes povos vivessem regalados e experimentassem a paz e

concórdia de administração de justiça”. Buscavam-se meios para remediar as despesas que a

Fazenda Real havia de contrair com o novo governo, a fim de suprir os ônus de ordenados,

soldos, salários de ministros, cabos e terços levantados no local. A “boa arrecadação dos

3

quintos” também foi tema da reunião, no intuito de que os circunstantes refletissem acerca do

“meio mais suave” com que se haveria de executar a cobrança do direito real. Solicitou-se dos

procuradores que fizessem pareceres sobre os assuntos abordados e os botassem no papel.1

Vinte dias depois, a 1º de novembro, outra Junta, à qual compareceram os mesmo

indivíduos da primeira, não conseguiu chegar a acordo quanto à forma de arrecadação dos

quintos. A maior parte dos procuradores opinara pelo método das bateias. Mas, o general o

considerou diminuto, visto que “não iguala ao que hoje se cobra com os descaminhos que se

faz”. Outros aludiram à Casa de Fundição. Diante do impasse, Antônio de Albuquerque adiou

a decisão para Junta futura. 2

Dentre os 30 indivíduos presentes às Juntas, contavam-se os vigários da vara, os

capitães-mores e sargentos-mores dos distritos de Caeté, Sabará, Ouro Preto, Ribeirão do

Carmo e Rio das Mortes, os procuradores da Fazenda Real e mais quatro “sujeitos” de cada

um dos distritos, “achados pelos moradores deles”, conforme ordem do governador. Alguns

destes homens teriam participação constante nas futuras Juntas convocadas pelos

governadores das Minas durante as décadas de 1710 e 1720, a exemplo de Raphael da Silva e

Souza, capitão-mor de Ribeirão do Carmo, e Felix de Azevedo Carneiro e Cunha, procurador

de Ouro Preto, entre outros. Embora os sumários destas duas Juntas não mencionem qualquer

classificação, ao contrário do que se verificará em reuniões posteriores, não há dúvida: ali

estiveram presentes homens de prol, uma primeira fatia dos “homens bons” ou “homens

principais” dos distritos mineradores, dentre os quais contavam-se as figuras do mestre-de-

campo Pascoal da Silva Guimarães, do tenente-general Manuel de Borba Gato e de Francisco

Pereira do Aguilar, registradas nas Juntas de fins de 1710.

Vamos encontrar a trêmula rubrica de Henrique Lopes alguns meses depois, a 8 de

julho de 1711, no termo de ereção de Vila Rica, postada ao fim do documento, na

antepenúltima posição, entre 24 presentes.3 A timidez desta colocação pode ser medida em

contraponto às quatro primeiras assinaturas do termo, que correspondiam, nesta ordem, às

1 TERMO de uma junta geral que fez nestas Minas o Sr. Gov. e Cap. Gen. Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho sobre o estabelecimento e melhor forma que selaria de tomar para esta nova conquista e sua conservação; e meio mais suave que se devia eleger para a boa arrecadação dos quintos de S. Majestade. 10 de novembro de 1710. APM, SC 06, fl. 9. 2 TERMO da segunda Junta que se fez por ordem do sr. governador e capitão general Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, para se continuar o que se havia proposto e principiado no primeiro antecedente. 1º de dezembro de 1710. APM, SC 06, fl. 11-11v. 3 TERMO de ereção de Vila Rica. 8 de julho de 1711. APM, SC 06, fl. 24.

4

pessoas do governador Antônio de Albuquerque, seguido de Felix de Azevedo Carneiro e

Cunha, Antônio Francisco da Silva e Pascoal da Silva Guimarães. [NOTA] Único feito por

seus dedos, este sinal de Henrique Lopes certamente diferenciava-se da rubrica que ele

próprio grafaria em documentos futuros, quando passou a utilizar-se, possivelmente, de um

carimbo para reproduzir seu autógrafo.

Compreende-se esta precaução. Naquele ano de 1711, embora considerado, ao lado

dos demais criadores de Vila Rica, uma das “pessoas e moradores principais” dos arraiais de

Antônio Dias e do Ouro Preto, Henrique Lopes ainda prescindia de qualquer qualidade

nobilitante, como a que ganharia dois anos depois, ao assumir o posto de capitão-mor das

ordenanças de seu distrito. Portanto, a rubrica do termo de ereção flagra nosso personagem

em momento desprevenido, de transição, extraordinariamente desconcertante, instado a pôr

sobre o papel, pela primeira vez nas Minas, sua assinatura em documento oficial. Se na antiga

condição de homem vil era possível expor-se canhestro, mal concertando o nome com a tinta,

a “pessoa principal” precisava demonstrar-se minimamente letrada, capaz de exarar sua

assinatura com destreza. Fosse analfabeto ou detentor de alguma falha motora, que lhe

dificultasse o movimento de escrita, o fato é que o recurso ao carimbo, se não impedia que

pessoas próximas ao ato duvidassem de sua habilidade letrada, ao menos concedia a Henrique

Lopes de Araújo a oportunidade de representar-se no papel com grafia modelar, adaptada à

estética das assinaturas esperadas de homens bons. Ele iniciava ali sua tortuosa escalada de

qualificação. E deve ter se dado conta de que, para fazer-se nobre no Brasil colonial, urgia

representar, no papel, oficialmente, uma boa imagem de si. Na próxima Junta em que tomou

parte, em 1713, Henrique Lopes já ostentava uma destra assinatura, deitando o carimbo sobre

a folha, ação que doravante sempre tornou a repetir em documentos ligados à administração

portuguesa.4

Termo de Ereção, 8 de jul. de 1711 Termo de Junta de 7 de dez. de 1713

A tremules da assinatura no termo de ereção de Vila Rica era condizente com o

passado tortuoso da personagem. Natural da cidade de Braga, Henrique teve trajetória obscura

4 Termo de 7 de dezembro de 1713 sobre quintos. APM, SC 06, fl. 26v.

5

em Portugal. Seu nascimento deve ter ocorrido entre as décadas de 1650 e 60, pois no exame

de provanças a que foi submetido em 1732 constatou-se ter mais de 70 anos de idade. Através

deste documento, sabemos que nascera de pai clérigo; “sua mãe e as duas avós mulheres de

segunda condição, o avô paterno seringueiro, e o materno lavrador que vivia de alguma

fazenda própria em que trabalhava”; abandonado por seus familiares, tornou-se criança

enjeitada e, na juventude, foi “criado de servir; depois fora abegão e guardador de éguas, e

passando para o Brasil degredado por dez anos por causa de uma morte que fez, fora

taverneiro no Rio de Janeiro e que fazia covos de pescar (redes de pesca) depois fora

mercador de loja aberta”.5 Consta ter contraído matrimônio em Potugal, na vila de Alhanda,

com Ana Maria.

Do Rio de Janeiro, endireitou-se para Minas em data desconhecida, possivelmente

integrando o importante fluxo de forasteiros que daquela cidade migrou para o sertão colonial

entre fins do século XVII e início da centúria consecutiva. Sua presença em Ouro Preto era

tida por pioneira, pois os imóveis que ali possuiu estavam isentos de impostos junto à câmara

e “nunca pagaram foro por serem feitas pelos primeiros povoadores destas Minas, tempo em

que ainda não havia Senado”.6

Na chegada às minas, atuara como taverneiro e açougueiro. Um relato anônimo do

Códice Costa Matoso, ao descrever a paisagem pobríssima dos primeiros anos de Ouro Preto,

menciona a presença da personagem em Antônio Dias. Segundo o informante, o primitivo

arraial de Vila Rica do Pilar “não tinha mais moradores que o coronel Francisco do Amaral e

seu sobrinho Bento do Amaral, a igreja eram quatro forquilhas, forrada de esteiras de taquara

e coberta de palha”. Já no arraial vizinho de Antônio Dias “só havia um corte de carne de um

homem chamado Henrique Lopes”.7

Pois o açougue abriu-lhe as portas da fortuna. Durante a década de 1700, Henrique

Lopes cumpriu as promessas do eldorado: enriqueceu nas atividades comerciais e extrativas.

Em 1711, já detinha status de indivíduo principal de Ouro Preto, assinando, como se viu, o

5 HABILITAÇÃO de Henrique Lopes. ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, Letra H, Maço 4, Doc. 31. 6 Documento citado por MENEZES, Ivo Porto de. “Os Palácios dos Governadores em Ouro Preto.” Cadernos de

Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 12, n. 13, p. 39-58, 2005; p. 42. 7 NOTÍCIAS do que ouvi sobre o princípio destas Minas. Códice Costa Matoso. Coordenação Geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999, v. 1, p. 218. Veja-se ainda Revista do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (RPHAN), n. 3, 1939, p. 295-316; p. 315.

6

termo de criação de Vila Rica.8 Possuía propriedades agrícolas em Bom Sucesso, nas

proximidades do arraial de Padre Faria, onde mantinha madeiras de corte e “frutos que tinham

e produziam, como eram bananas, milho e outras plantas”9; e, principalmente, lavras,

faisqueiras e terras minerais em Antônio Dias. Era senhor de, pelo menos, 45 cativos, segundo

lista de 1718, constituindo-se em um dos maiores proprietários de escravos de Vila Rica.10

Rapidamente alcançou distinção hierárquica, empossado no cargo de capitão-mor das

ordenanças de Ouro Preto. Sua carta-patente foi concedida a 23 de dezembro de 1713, por

dom Brás Baltasar da Silveira. O documento dizia que, tendo em vista a conveniência de

prover-se o posto “em pessoa em que concorram merecimentos, nobreza e capacidade”,

nomeava-o na certeza de que “em tudo o de que o encarregar procederá com grande

satisfação”. O general ainda recomendava aos soldados das ordenanças total obediência a seu

superior.11 Em abril de 1714, foi anexada ao corpo das ordenanças a tropa de auxiliares de

Antônio Dias, comandada por Paulo Borges, que passou à sujeição do capitão-mor.12 A

patente lhe foi renovada por dom Pedro de Almeida, o Conde de Assumar, e, mais tarde, já na

década de 1720, por dom Lourenço de Almeida.13 Henrique Lopes logrou transformar-se,

enfim, depois de sua ascensão material e simbólica nas Minas, na figura do potentado

mineiro, enriquecido pela Fortuna e nobilitado por seu poder e representatividade locais.

Em fins de 1713, com a chegada do novo governador, dom Brás Baltasar da Silveira,

reavivou-se a discussão sobre o quinto. A 7 de dezembro, o general convocou uma Junta de

Procuradores, em sequência a uma junta anterior da qual, aparentemente, não se tomou nota,

para deliberar sobre o método da cobrança. Esta reunião ocorreu em Vila Rica, na residência

onde dom Brás se hospedou durante o mês de dezembro de 1713, antes de fixar-se

definitivamente na Vila do Carmo – o imóvel ouro-pretano tratava-se possivelmente da

grandiosa e dispendiosa casa mandada construir pelo próprio Henrique Lopes de Araújo, que

dali a 2 semanas seria agraciado com a patente das ordenanças por seu hóspede. Foram

8 CREAÇÃO de villas no Periodo Colonial: Villa Rica. RAPM, v. 2, 1897, p. 84-85. 9 CARVALHO, Teophilo Feu de. “Reminiscências de Vila Rica”. RAPM, v. 20, 1924, p. 339-352. 10 LISTAS dos Quintos reais de Vila Rica. APM, CC Códice 1028. Veja-se MATA, Karina Paranhos da. “Representação social e Riqueza nas Minas do Ouro: perfil dos proprietários de escravos na primeira metade do setecentos”. Artigo disponível na internet. Endereço eletrônico: www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_119.pdf. 11 APM, SC 09, fl. 73; RAPM, v. 21, 1927, p. 585; ATAS da Câmara de Vila Rica. Anais da Biblioteca nacional, v. 49, 1927, p. 297. 12 CARTA passada a Henrique Lopes de Araújo. 06 abr. 1714. APM, SC 09, fl. 20. 13 RAPM, v. 4, 1899, p. 103-105.

7

convocados “os três ouvidores gerais das comarcas destas Minas, os eclesiásticos delas,

procuradores dos Povos e nobreza deles”, totalizando 48 signatários. Nota-se, de antemão, a

ausência dos procuradores das câmaras. Os representantes apresentaram a dom Brás um papel

assinado por todos, em que se comprometiam a pagar 30 arrobas de ouro anuais, desde que,

suspensos os registros nos caminhos, corresse livre o ouro, como quintado. O governador

acatou a proposta, conquanto alertasse que, futuramente, a vontade do soberano pudesse

alterar a resolução tomada. O anfitrião lavrou a vigésima quarta assinatura.14

A postura de Henrique Lopes na Junta coadunou-se, portanto, neste momento, em

uníssono, com a vontade dos homens bons da governança em Minas. O ajuste de trinta

arrobas era proveitoso àqueles indivíduos detentores de plantel escravista direcionado à

mineração. A segunda opção de método, por bateias, onerava exclusivamente os senhores

envolvidos na faina extrativa, com emprego de escravos mineradores. A se levar em conta as

listas de posse de escravos de fins da década de 1710, Henrique Lopes despontava como

grande possuidor de mão-de-obra cativa, o que leva a pensar que sua atividade econômica

estivesse concentrada majoritariamente na exploração de ouro, não obstante a sua inserção

comercial. Nestas condições, o acordo era-lhe francamente favorável.

No entanto, uma descrição da Junta dada por dom Brás, repleta de equívocos ou lapsos

factuais e cronológicos, não se sabe se realizados de maneira intencional, deixa entrever o

clima de tensão e discórdia grassado entre os procuradores. Escrevendo ao rei, o governador

relatou que, na abertura da reunião, lembrara aos presentes a promessa que haviam feito a

Antônio de Albuquerque, confiando-lhe a disposição de pagarem entre 8 e 10 oitavas de ouro

por bateia. Retorquiram que a promessa era falsa, pois houvera sido dada por “quatro homens

que não tinham negros, porque todos os outros foram de contrário parecer, como o eram os

presentes, pelos grandes prejuízos que se seguiriam se a cobrança se fizesse na forma

referida”. Discorreram variamente sobre outros meios de cobrança, sem chegar a consenso

nem tampouco acatar método contrário à vontade de todos. O governador os teria então

ameaçado, garantindo que mandaria cobrar os quintos como fosse, por arrendamento ou

bateias, não permitindo que o panorama de desorganização e descaminho dos quintos, até ali

reinante, se perpetuasse. Diante de ameaça, apenas então os procuradores teriam chegado ao

14 TERMO de 7 de dezembro de 1713 sobre quintos. APM, SC 06, fl. 26v.

8

acordo de trinta arrobas.15

Um mês depois, outra Junta teve como sede a câmara de Vila Rica. Nesta reunião,

estiveram presentes os oficiais do Concelho ouro-pretano, os procuradores das demais vilas

(aparentemente representantes de suas respectivas câmaras) e distritos de Minas e “os homens

bons e da governança” – primeiro emprego de tal terminologia. A Junta ratificou a decisão

anterior, enfatizando que o acordo tinha validade momentânea, por período de um ano,

prevendo-se um novo acordo para os anos seguintes. As câmaras deveriam responsabilizar-se

pelo levantamento das trinta arrobas, cada uma em seu distrito, através de cálculo estimativo

do que cada morador estava apto a pagar. Diferentemente da Junta de dezembro de 1713, esta

assembléia teve como foco o acerto com os oficiais das câmaras de Minas. Henrique Lopes de

Araújo, afastado do ambiente concelhio por impedimento oriundo de sua nobreza demasiado

duvidosa, não foi convocado a tomar parte.16 O pleito teve a participação de apenas 22

pessoas, dentre elas o governador.17

O general, aliás, considerou o resultado benéfico. Via com bons olhos a defensa dos

mineradores, que “devem ser mais favorecidos por serem os de que depende a duração destes

povos”. A cobrança por bateias significaria um duro golpe para a elite mineradora, “mais

ainda no tempo presente em que estão empenhados pela [menor] abundância de ouro, a

respeito de faltarem os descobrimentos, por terem [se] ausentado os Paulistas, que são os

descobridores”.18

Em prosseguimento à resolução tomada, dom Brás convocou nova Junta a 12 de abril

de 1714, a fim ratear entre as três comarcas de Minas o montante de 30 arrobas. Para tanto,

convocou cinco procuradores, um de São João del Rei (Comarca do Rio das Mortes), dois de

Vila Real (comarca do Rio das Velhas), um de Ouro Preto e outro da Vila do Carmo

15 CARTA de Dom Brás Baltasar da Silveira ao rei, sobre o primeiro ajuste dos quintos de seu governo. Vila Rica, 10 de janeiro de 1714. APM, SC 04, fls. 363-364. 16 RAMOS, Donald. A Social History of Ouro Preto: stresses of dynamic of urbanization in colonial Brazil,

1695-1726. University Of Florida, 1972, p. 162-63. Segundo notou o autor, embora rico e detentor da principal patente de milícias, Henrique Lopes jamais obteve assento na câmara de Vila Rica, fosse como fiscal ou vereador. O historiador atribuiu este fato ao impedimento oriundo do passado vil e mecânico da personagem, que lhe vetou a possibilidade de galgar espaço na governança local. Ramos destaca ainda o registro de óbito da esposa de Henrique Lopes, Ana Maria, lavrado na Matriz de Antônio Dias em 1728, que omitiu o título de “dona”, em geral concedido às esposas de capitães-mores, lacuna que pode simbolizar a natureza negativa de sua nobreza. 17 TERMO que se fez na junta e resolução que se tomou sobre o pagamento dos quintos de Sua Majestade que Deus guarde. 6 de janeiro de 1714. APM, SC 06, fl. 28-28v. 18 CARTA de Dom Brás Baltasar da Silveira ao rei, sobre o primeiro ajuste dos quintos de seu governo. Vila Rica, 10 de janeiro de 1714. APM, SC 04, fl. 365.

9

(Comarca de Ouro Preto). Proporcionalmente, coube à Comarca de Ouro Preto a maior

contribuição (12 arrobas), seguida do Rio das Velhas (10 arrobas) e Rio das Mortes (5

arrobas). A Comarca do Rio das Velhas ainda comprometia-se a acrescentar 2 arrobas de

ouro, tendo em vista o opulento comércio de gados que se fazia através do sertão do São

Francisco, vindo da Bahia.

Entretanto, sendo informado do ajuste, o rei rejeitou a proposta. A 16 de novembro de

1714, escreveu a dom Brás argumentando-lhe que o método por quota fixa era especialmente

nocivo. Dava margem à desigualdade na cobrança, “fintando-se em mais o que devia pagar

menos, e em menos o que devia pagar mais, no que receberiam prejuízo esses vassalos e se

perturbaria o sossego em que se haviam”. Igualmente, distribuía à atividade comercial,

sobretudo ao abastecimento de gados via São Francisco, parte do ônus do quinto, tributando o

comércio e “havendo-se por ele os quintos de ouro que [apenas] os mineiros tinham obrigação

de pagar”. A imposição sobre mercadorias tornaria dificultosa a taxação futura do giro

comercial, que devia ser tributado separadamente.19 Em vista disso, ordenava a cobrança

imediata por bateias, botando-se cada escravo minerador a 10 oitavas de ouro.20

A medida sabia-se de força, disposta a suscitar reação. O rei, que inicialmente

estipulara a bateia em 12 oitavas de ouro, resignou-se à diminuição de 2 oitavas, a fim de

melhor encaminhar a aceitação da ordem. Delegava-se ao governador a responsabilidade de

computar, em lista, o número de escravos existentes nas Minas, para conhecer o montante a

ser arrecadado para a Real Fazenda.

Mas, pouco mais de dois meses depois da expedição da missiva real, e, portanto, ainda

ignorante de seu teor, o governador convocou nova Junta, a 1º de fevereiro de 1715, a fim de

ratificar o ajuste dos quintos deste ano. Em seu palácio na Vila do Ribeirão do Carmo,

recepcionou 40 procuradores, entre os quais estavam os três ouvidores de comarca, os

vigários da vara, representantes das câmaras e da nobreza das Minas. Ante a ausência de nova

determinação régia, os assistentes optaram por renovar o acordo por quota fixa. O novo termo

radicalizou a autonomia e independência das câmaras em tudo o que dissesse respeito à

arrecadação, vistas como centros de resolução da matéria, imunes à intervenção do

19 CARTA do Rei a dom Brás Baltasar da Silveira, resolvendo que a arrecadação dos quintos devia ser feita por bateias. Lisboa a 16 de Novembro de 1714. APM, SC 04, fls. 103-105. 20 CARTA do rei a dom Brás Baltasar da Silveira, permitindo-lhe cobrar a 10 oitavas de ouro a bateia. Lisboa, 16 de Novembro de 1714. APM, SC 04, fls. 106-107.

10

governador e das demais autoridades administrativas da capitania e, inclusive, detentoras da

prerrogativa de mobilizar as tropas de ordenanças na consecução da cobrança. Henrique

Lopes de Araújo rubricou a vigésima quarta assinatura, reempregando o carimbo que

imprimia seu autógrafo, surpreendentemente à frente de Pascoal da Silva Guimarães, que

anotou a antepenúltima assinatura.21

Dois dias depois, uma reunião entre governador e ouvidores equacionou o rateio das

trinta arrobas, discriminado por vilas. Coube a Vila Rica e Vila do Carmo as maiores

contribuições (seis arrobas cada), seguidas por Sabará (4 arrobas), São João del Rei (4

arrobas), Vila Nova da Rainha (3 arrobas), Pitangui (3 arrobas) e Vila do Príncipe (1 arroba).

Ainda previram-se imposições sobre as entradas de mercadorias, a serem recolhidas pelas

câmaras para auxiliar na complementação da quota.22

A negativa real chegou às Minas entre fins de fevereiro e início de março. Pode-se

medir o rebuliço causado pela notícia através da profusão e amplitude das juntas deliberativas

então convocadas pelo governador. Cerca de 60 procuradores, número recorde, realizaram

diversas reuniões na igreja principal (pois a residência do general não comportava a

audiência) da Vila do Carmo entre os dias 11 e 13 de março, num intenso e polêmico clima de

negociação, que acabou por desgastar politicamente a figura do governador, ao mesmo tempo

em que preparou terreno para as sublevações que se seguiriam.

Conforme relato de dom Brás, antes mesmo de iniciados os trabalhos da Junta, o

governador teria recorrido informalmente aos procuradores, a fim de persuadi-los ao aceite do

método por bateias. Mas, o aliciamento demonstrou-se inútil “e não houve um que em tal

conviesse”.23 Aparentemente, Henrique Lopes de Araújo não pode ser contado entre os

protestantes, já que não assinaria o termo registrado dois dias depois.

Na primeira Junta, feita a leitura da ordem real ante os presentes, dom Brás

argumentou-lhes que a vontade do soberano devia ser obedecida e que ele, governador,

“estava resoluto a executar e que eles eram obrigados a consentir”. A reação dos procuradores

foi comedida. Prometeram reunir-se no dia seguinte, oficializando em papel um

posicionamento acerca do tema. Pela manhã consecutiva, trouxeram um termo sem

21 TERMO sobre os quintos. 1º de fevereiro de 1715. APM, SC 06, fls. 40-41v. 22 TERMO da repartição das 30 arrobas que parece ter sido feito no dia antecedente. 3 de Fevereiro de 1715. APM, SC 06, fl. 44-44v. 23 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao Rei. Vila de Nossa Senhora do Carmo, 25 de março de 1715. APM, SC 04, fl. 390.

11

assinaturas, no qual contrariavam a ordem do rei. Considerando que as bateias eram

“impraticáveis”, re-apresentavam a oferta de 30 arrobas, nos termos já combinados, incluindo

a taxação de mercadorias para o levantamento da quota; ou, no caso de desaprovação real,

propunham o pagamento de 24 arrobas de ouro, orçadas exclusivamente entre “todos os

homens que tem negros como mineiros, roceiros e senhores de engenhos, ficando livres as

cargas para a contribuição que S. Majestade lhes mandar impor, como também os gados e

negros”.24 Dom Brás teria lhes ordenado que assinassem o papel, obtendo ouvidos surdos.25

Diante da insistência do general no aceite das bateias a 12 oitavas por escravo, a

assembléia tornou-se explosiva. Os procuradores alegaram jamais terem anuído ao método,

mesmo no tempo de Antônio de Albuquerque. Expuseram que as lavras encontravam-se

diminutas, com jornais limitados a meia oitava de ouro por dia de trabalho, enquanto os gastos

contraídos no sustento dos escravos, na compra de materiais de mineração e na realização de

obras exploratórias cresciam. Muitos senhores teriam abandonado a atividade mineradora,

preferindo tornarem-se roceiros e senhores de engenho, com escravos dedicados ao trabalho

agrícola. Percebendo a reação ostensiva, dom Brás teria proposto então o abatimento das

bateias, de 12 para 10 oitavas; mas, o estratagema surtiu efeito inverso e a tensão aumentou. O

general protestara “três vezes pela fidelidade que deviam a V. Majestade, de quem eram

vassalos, [...] e todos se levantaram por três vezes dizendo a uma voz que não convém, não

convém bateias, nem pagar por elas nem meia oitava de ouro”. Neste momento, os ouvidores

intercederam junto ao general, aconselhando-o que desistisse do projeto e “não desse causa a

se perderem estas Minas”, evidenciando-se o estopim de uma sublevação. A Junta foi

suspensa, extraordinariamente sem resultado.26

Após o encerramento da sessão, alguns procuradores teriam falado extra-oficialmente

com o governador, permitindo-lhe sugerir alternativas para o impasse, que, não obstante,

continuou sem solução. O trabalho da Junta foi retomado no dia seguinte. Chegou-se ao ajuste

de manter a quota de 30 arrobas; e, no caso de o rei exigir a separação das imposições sobre a

entrada de cargas, escravos e gados, os mineradores, isoladamente, deveriam pagar 24 arrobas

24 TERMO sobre as 24 arrobas de Quintos, ficando livres as cargas, gados e negros. 13 de março de 1715. APM, SC 06, fl. 47. 25 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao Rei. Vila de Nossa Senhora do Carmo, 25 de março de 1715. APM, SC 04, fl. 390. 26 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao Rei. Vila de Nossa Senhora do Carmo, 25 de março de 1715. APM, SC 04, fl. 391-392.

12

de ouro.27

O termo de 13 de março de 1715 foi o primeiro a colocar-se consciente e publicamente

contrário a uma determinação régia. Fato que demonstra, sem dúvida, a sua excepcionalidade

e importância. Esta junta congregou o maior número de signatários, com 61 assinaturas,

dentre elas a do governador. Um conjunto alargado de procuradores tomou parte na decisão.

Além do general, os ouvidores Luís Botelho e Manuel da Costa Amorim, acrescidos de um

procurador da Coroa e outro da Fazenda Real, formavam o grupo de funcionários diretamente

vinculados à administração portuguesa (8,1% dos presentes). Dois vigários da vara, três juízes

ordinários, seis vereadores oriundos das câmaras de Vila Rica e Vila do Carmo, mais oito

procuradores designados pelas câmaras de Vila Real, São João Del Rei, Vila Rica e Vila do

Carmo, além do capitão-mor de Vila Nova da Rainha, constituíam os representantes dos

concelhos civis e eclesiásticos (32,7%). As outras 36 assinaturas diziam respeito às “pessoas

principais” das Minas, que, neste caso, classificavam-se como “procuradores dos Povos”, tal

como está inscrito junto ao nome de Manuel Antunes de Lemos, o dono da casa onde dom

Brás Baltasar da Silveira residia na Vila do Carmo.28 Chama atenção a presença maciça e

majoritária deste grupo (59%).

Os procuradores dos Povos, selecionados por serem considerados integrantes do grupo

de homens “bons” ou “principais”, representavam a partição mais heterogênea e fluída das

juntas. Eram discricionariamente escolhidos a cada assembléia por indicação do governador e,

portanto, dependiam de convocação individual para este fim. Embora seja possível divisar um

conjunto de pessoas cujos nomes tiveram assento quase permanente – o que leva a considerar

a perspectiva de uma classe constituída e identificável –, a verdade é que o grupo de homens

principais variou de uma junta para outra, seja em função dos critérios subjetivos ou políticos

seguidos pelo general, seja pela própria fluidez imanente à categoria de homens principais.29

Talvez por conta disto Henrique Lopes tenha ficado de fora da Junta de 13 de março, não

obstante o número alargado de procuradores então convocados.

27 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao Rei. Vila de Nossa Senhora do Carmo, 25 de março de 1715. APM, SC 04, fl. 394. 28 TERMO de 13 de março de 1715 sobre bateias. APM, SC 06, fl. 48-50. CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao rei, propondo a compra de casas para residência dos governadores em mãos de Manoel Antunes, por seis mil oitavas de ouro, pois em todos os governos há casas para este mister e as que existem no Ribeirão do Carmo são todas de palha. Vila do Carmo, 22 de maio de 1714. APM, SC 04, fls. 369-370. 29 O levantamento dos nomes dos procuradores, de suas biografias e de suas respectivas participações nas juntas é uma das ações em andamento nesta pesquisa.

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Dom Brás justificou seu fracasso na Junta alegando ao rei não ter tido condições

técnicas e políticas de obrar contrariamente à vontade dos procuradores. Faltavam-lhe tropas

para reprimir alterações que certamente estourariam na hipótese de que mandasse executar a

ordem de sua Majestade. E mesmo que as tivesse, de pouco adiantariam, devido à “liberdade”

em que se encontravam os mineiros. Nenhuma força militar seria capaz de “sujeitar a uns

homem que vivem por entre matos tão cerrados”. A tensão gerada na Junta podia redundar em

revolta armada, fomentada por procuradores descontentes, e, neste caso, “seria mui dificultoso

aquietá-los e prejudiciais as perdas e danos que se seguiriam não somente à quietação dos

mesmos povos, como ao serviço de V. Majestade”.30 Neste sentido, as Juntas constituíam

espaços de negociação e conflito, em que se gestavam estratégias de governo e controle

social, ao mesmo tempo em que formas tradicionais ou extremadas de resistência, como as

revoltas, também se faziam presentes na mesa de negociação. Em todo caso, a explicação

dada pelo governador precisa ser lida sob a ótica do bom governo, lugar-comum caro à

administração portuguesa. Se o respeito às ordens régias devia orientar o procedimento dos

governadores, é certo que nem sempre deviam obedecê-las à risca, quando o contexto local

desaconselhasse a sua adoção. A ameaça de revolta, motim ou alteração dos Povos fornecia

justo argumento para o abandono de medida impopular, mesmo se ordenada pelo rei.

O que se seguiu entre os meses de março e abril está envolto em penumbras factuais e

cronológicas difíceis de explicar. Pressionado por Lisboa, dom Brás arquitetou neste período

a “indústria” que lhe permitiria conseguir o alcance da ordem real. Escreveu carta à câmara de

Vila Real, em que garantia o aceite do Senado de Vila Rica ao método por bateias. Os oficiais

de Sabará responderam que, neste caso, seguiriam o mesmo caminho de Ouro Preto.

Enviando seu secretário a Vila Rica, o governador conseguiu convencer os camaristas locais,

utilizando-se do aceite dado por Vila Real. Reuniu-se de imediato na câmara de Vila Rica

com os oficiais daquele senado, acrescidos dos camaristas da Vila do Carmo e dos homens

principais das duas vilas, e todos assinaram termo de aceite das bateias.31 Entretanto, há

desacordo factual entre as datas da carta enviada pelo governador ao rei, noticiando o

30 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao rei cientificando-o da grande mágoa em que fica de não poder executar as ordens de Sua Majestade, fazendo com que os quintos sejam pagos por bateias e concluindo por pedir um sucessor no governo da capitania. Vila do Carmo, 28 de março de 1715. APM, SC 04, fls. 394-395 31 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao rei, confirmando a sua de 15 de março deste ano e noticiando que os povos tinham resolvido a pagar os quintos por bateias. do Carmo, 8 de maio de 1715. APM, SC 04, fls. 408- 412.

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estratagema utilizado para o aceite das bateias, supostamente escrita a 8 de maio de 1715, e do

termo de Junta, feito no dia 18 de maio.32

Henrique Lopes de Araújo lavrou com seu carimbo a vigésima sexta assinatura do

termo de aceite, entre 38 presentes. A participação do capitão-mor nesta junta e o voto

favorável que concedeu ao projeto das bateias lhe valeriam, posteriormente, o argumento de

que sua atuação política em Minas ocorrera sempre em favor metropolitano. Alguns anos

mais tarde, quando dom Lourenço lhe renovou a patente de ordenanças, o documento

lembrava que

na ocasião em que Sua Majestade ordenou se pagassem os quintos por bateias ser [Henrique Lopes] um dos que votaram na junta que se fez nesta Vila Rica, que se executassem as ordens de Sua Majestade e com o mesmo zelo se houve em todas as mais juntas que se fizeram para aumento da Fazenda Real e nas cobranças dos quintos mandando os seus oficiais a fazê-las com grande cuidado e diligência33

De fato, a presença nas Juntas deveria significar para Henrique Lopes de Araújo não

só o reconhecimento local de sua condição de homem principal, mas também a oportunidade

ímpar de destacar-se no serviço real. O trato direto com governador, ouvidores e demais

autoridades, proporcionado nas sessões, permitia exteriorizar inclinações políticas e ambições

pessoais dos participantes. Procuradores que se expusessem publicamente simpáticos às

demandas reais levadas à votação nas juntas poderiam ganhar o favor e a amizade de

governadores e demais autoridades régias, que passavam a enxergar nestes indivíduos

posições aliadas aos propósitos de suas gestões. Portanto, o espaço cênico das juntas

propiciava aos atores a chance de individualizar-se, de ganhar caracteres positivos aos olhos

da administração metropolitana. O uso que fez deste mecanismo, sobretudo ao utilizar seu

desempenho nas juntas para obter renovações de patente e realizar pedidos de mercê, dá a

entender que Henrique Lopes de Araújo visava criar de si, através daquele espaço

institucional, a imagem de fiel vassalo, garantindo assim trocas simbólicas e políticas que lhe

rendiam o agrado real e a expectativa de retribuição dos serviços prestados.

Num primeiro momento, a “indústria” arquitetada pelo governador obteve êxito. Com

a aprovação da Comarca de Ouro Preto, dom Brás solicitou ao ouvidor do Rio das Velhas,

Luis Botelho de Queiros, realizasse junta com os camaristas de Vila Real e demais pessoas

principais daquela comarca, para aprovar as bateias. Neste ínterim, tomara a precaução de,

32 TERMO de aceitação das Bateias. Vila Rica, 18 de maio de 1715. APM, SC 06, fls. 53-54. 33 CARTAS – patentes. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 4, 1899, p. 103-105.

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sob falso pretexto, requisitar a presença em Ouro Preto de um dos procuradores do Rio das

Velhas, que havia dado voto contrário ao método na junta de 13 de março. Conhecedor da

inclinação política do procurador e ciente de que o mesmo “tinha parciais naquele povo o quis

separar dele por que não maquinasse alguma sublevação”. A junta aprovou as bateias, mas os

moradores do Morro Vermelho em Vila Nova da Rainha e, em seguida, os de Vila Real do

Sabará se amotinaram, pegando em armas e exigindo o retorno de seu procurador, que se

encontrava na Vila do Carmo, requisitado pelo governador.34

Ao saber das alterações, dom Brás dirigiu-se a Sabará, sendo recebido com hostilidade

pelos homens locais, que rechaçavam a adoção das bateias. Apenas o capitão-mor Clemente

Pessoa de Azevedo dispusera-se a favor da autoridade. Os demais procuradores e homens

principais haviam se retirado para suas roças, omitindo-se na execução do termo que tinham

assinado na junta presidida pelo ouvidor Luis Botelho. Isolado, o governador deu meia volta.

No retorno às Minas Gerais, foi cercado em Raposos, onde pernoitava, por grupo de

amotinados que lhe exigiram revogar o disposto. Dom Brás cedeu à vontade dos rebeldes,

após longa negociação, que varou a madrugada. Chegando à Vila do Carmo, a notícia das

alterações de Vila Nova da Rainha e Sabará também tumultuou o clima político local e o

general sentiu-se pressionado a suspender por completo o projeto das bateias. O recuo

resultou, inclusive, na anulação do ajuste conseguido na junta de 13 de março, mantendo-se

válido o acordo firmado na reunião de fevereiro, que desobrigava a quota de 24 arrobas a ser

paga por mineradores.35

O ajuste de fevereiro, muito favorável ao interesse minerador, deu a tônica dos

acordos seguintes firmados por dom Brás. Em 22 de julho de 1716, uma junta renovou o

método por quota fixa. Três dezenas de procuradores estiveram presentes, dentre eles,

Henrique Lopes de Araújo, que rubricou com seu carimbo habitual a vigésima quinta

assinatura, na qualidade de procurador de Vila Rica. A junta notabilizou-se, aliás, pela maciça

participação de representantes oriundos desta localidade. Ao todo, 16 homens principais

assinam como delegados de Ouro Preto, inclusos o mestre de campo Pascoal da Silva

34 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao rei confirmando a sua de 8 de maio do presente ano e expondo as complicações que surgiram sobre o pagamento dos quintos por bateias, salientando a atitude do povo de Vila Nova da Rainha. Vila do Carmo, 26 de junho de 1715. APM, SC 04, fl. 412. 35 CARTA de dom Brás Baltasar da Silveira ao rei confirmando a sua de 8 de maio do presente ano e expondo as complicações que surgiram sobre o pagamento dos quintos por bateias, salientando a atitude do povo de Vila Nova da Rainha. Vila do Carmo, 26 de junho de 1715. APM, SC 04, fls. 413-418.

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Guimarães e o engenheiro militar Pedro Gomes Chaves. A própria sessão ocorrera em Vila

Rica, possivelmente na casa do capitão-mor.36 Aproveitando-se da reunião convocada para

decisão sobre os quintos, os procuradores ainda propuseram a feitura de outro termo, em que

deliberaram sobre assuntos diversos, solicitando-se, especialmente, a diminuição do valor das

esmolas pagas aos vigários por serviços religiosos, o envio de visitadores probos e maior

agilidade no julgamento dos feitos crimes. 27 representantes assinaram estas petições e

Henrique Lopes de Araújo lavrou com seu carimbo a décima oitava rubrica. 37

Um dia depois, ainda em Vila Rica, os procuradores retomaram junta sobre os quintos,

a fim de ajustar as imposições sobre as entradas de cargas, negros e gados. Depois de

“controverterem entre si os ditos procuradores sobre esta matéria”, chegaram à resolução de 1

oitava por cabeça de gado, oitava e meia por carga de fazenda seca e meia oitava por carga

molhada. Escravos entrados pela primeira vez nas Minas pagariam 2 oitavas. As câmaras

deveriam patrocinar a feitura de listas dos escravos existentes em suas repartições, para o que

divulgariam editais convocando os senhores à declaração de plantel. Previram-se penas à

omissão da posse de escravos, especialmente no caso de proprietários religiosos. Não se

sabem os nomes de todos os procuradores presentes a esta junta, pois as folhas de assinatura

estão incompletas; é provável que Henrique Lopes tenha tomado parte da última reunião

realizada em sua casa, assim como os cerca de 30 procuradores que já haviam assistido às

juntas do dia anterior.38

No ano seguinte, dom Brás realizou o derradeiro acordo de seu mandato. A 14 de

agosto de 1717, na casa onde residia na Vila do Carmo, acertou com os procuradores a

manutenção da quota de 30 arrobas anuais, mesmo que o novo governador nomeado pelo rei,

dom Pedro de Almeida, sucessor de dom Brás, trouxesse orientação contrária ao método.

Cientes de que o rei desaprovara o ajuste por quota fixa, “os moradores e roceiros do campo”

duvidavam que o método fosse “do real agrado” e, portanto, solicitavam a confirmação do

36 TERMO de 22 de julho de 1716 sobre quintos. APM, SC 06, fls. 60-61. Acerca do engenheiro militar Pedro Gomes Chaves veja-se BASTOS, Rodrigo Almeida. “Lacunas da Historiografia da Arquitetura desenvolvida no Brasil do século XVIII”. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 11, n. 12, 2004, p. 51-59. 37 TERMO de 22 de julho de 1716 sobre os párocos e administração da justiça. APM, SC 06, fls. 67-68. 38 TERMO de 23 de julho de 1716 sobre a forma de cobrança dos quintos. APM, SC 06, fl. 68v-69. À folha 69, contam-se as assinaturas de dom Brás Baltasar da Silveira, dos ouvidores Manuel Mosqueira da Rosa e Valério da Costa Gouvea, e dos procuradores Francisco Viegas Barboza, Francisco da Costa e Silva, Manoel Dias de Meneses, Manuel Gomes da Silva, Joseph Luiz Sal, João Ferreira, Miguel de Azevedo Dias e Francisco [?] Silva. As folhas numeradas entre 70 e 74, que deveriam conter as assinaturas dos demais procuradores, inclusive de Henrique Lopes, estão ausentes.

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acordo. Argumentaram ser prudente que os cobradores dos quintos, nomeados pelas câmaras,

“do exemplo que têm de fazer uma cobrança tão geral dos seus vassalos sem o seu [real]

beneplácito”, estivessem respaldados contra possíveis alterações. O pedido foi deferido.39

Henrique Lopes de Araújo assinou o termo, encerrando o último serviço de dom Brás à frente

das Minas, governador com quem o capitão-mor detinha, ao que tudo indica, ótimo

relacionamento.

Com tal desfecho, arrematava-se o período político em que as câmaras administraram,

com autonomia ímpar, a cobrança dos quintos e a imposição sobre a entrada de escravos,

cargas e gados. Igualmente, ratificou-se a hegemonia do interesse minerador, que obteve êxito

na ação de partilhar o ônus do quinto entre os demais grupos sociais das Minas. Ao mobilizar

os tributos sobre as entradas no levantamento da quota, os mineradores diminuíam o montante

a ser arrecadado entre os detentores de plantel escravista, cujos maiores expoentes eram, sem

dúvida, senhores dedicados à atividade exploratória. Alguns meses depois, a troca do

governador iria alterar o panorama favorável.

Chegado à Vila Rica e no período em que ali permaneceu, durante o mês de dezembro

de 1717, dom Pedro de Almeida instalou-se na casa há pouco mandada construir por Henrique

Lopes de Araújo, em obra dispendiosa que, segundo se disse à época, custou-lhe uma fortuna

em ouro. Falou-se igualmente que, ao se colocar como provedor do palácio governamental, o

capitão-mor estivesse interessado na renovação de sua patente militar. Tais informações

confirmam-se no relato de viagem, escrito por um anônimo, que descreve a trajetória do

Conde de Assumar do Rio de Janeiro até Vila Rica e Ribeirão do Carmo, onde tomou posse

do governo da capitania de São Paulo e Minas de Ouro. Segundo o relator, a primeiro de

dezembro de 1717, estando a comitiva em Vila Rica,

Tornou sua exa. [dom Pedro de Almeida] a montar a cavalo para ir jantar à casa do capitão-mor Henrique Lopes, o qual para esta ocasião fez umas casas, que lhe custaram mais de três arrobas de ouro, só a fim (como dizem muitos) de que sua exa. lhe confirmasse a sua patente. Podendo com menos dispêndio ficar airoso, se tinha crido a muitas pessoas, que o aconselhavam, dizendo-lhe que hospedasse a sua exa. nas casas em que morava, e que em lugar de três arrobas que havia de gastar, que pusesse uma por fruta na mesa; mas não puderam acabar com ele isto; por que é incapaz de se lhe dar conselho e aceitá-lo. Comprou também para esta função três negros choromeleiros, que até custaram quatro mil cruzados. As casas estavam muito bem ornadas com cortinas nas portas de damasco carmezim e as cadeiras e cama do mesmo; e todos estes aparatos deu a sua exa. por adorno do seu Palácio da Vila do Ribeirão. Vestiu seis negros para

39 TERMO de 14 de agosto de 1717 sobre os quintos. APM, SC 06, fls. 67-68.

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pajens, e os quatro choromeleiros de pano berne, forros de espernegam da mesma cor; e no primeiro dia que chegou sua Exa. apareceu com três vestidos e pela noite com um de pano negro, ricos todos, mas no seu mal e desproporcionado feitio pareciam uns trapos; sempre andou com um colar no chapéu e seu broche, e finalmente tão ridículo em tudo que era o objeto de sua exa. É natural de Alhandra, e casado na mesma vila. No seu princípio, foi taberneiro e hoje se acha rico, sem filho, nem filha, que o herde, e ele já de uma idade avançada.40 Embora nutrisse aparente antipatia pela figura do capitão, o escrevente realça

elementos políticos e culturais significativos, na descrição que dá do anfitrião. A ambição por

postos e cargos militares; o clientelismo em torno da autoridade governamental; o

comportamento rústico e a origem plebéia de um poderoso e rico minerador; todos estes itens

formam tópicos simbólicos muito propriamente ligados ao contexto de formação da sociedade

mineradora, na primeira metade do século XVIII, ao mesmo tempo em que fornecem um

instantâneo vívido da personalidade de Henrique Lopes.41

Nos primeiros meses de governo, dom Pedro de Almeida pouco pôde fazer com

relação aos quintos, uma vez que o ajuste válido entre julho de 1717 e meados do ano

consecutivo fora firmado por dom Brás. Em março de 1718, ocorreram as primeiras juntas

convocadas por Assumar. O general considerava o mecanismo das juntas nocivo à

governabilidade da capitania e um reduto hostil aos interesses régios nas Minas. Por conta

disso, tinha por bem diminuir a freqüência com que eram convocadas, e, outrossim, limitar o

raio de ação dos procuradores. Conforme argumentou com o rei, a repetição de juntas era “de

pouca utilidade” ao serviço real,

pois sempre a elas vêm os ditos procuradores com dúvidas impertinentes já preparadas e já sugeridas por outras, movendo-se para votarem em semelhante matéria pelas paixões que as dominam, e regulando as razões que há para acrescentar a fazenda de V. Majestade pelas que eles têm para os seus interesses particulares e, além disto, vendo outro sobre todos maior inconveniente que, quando os governadores cegamente não consentem com o gasto daqueles que neste país tem adquirido autoridade, lá quase dão o seu sentimento para o dito ajuste dos quintos, para fazerem dele torcedor até terem conseguido aquilo que muitas vezes apesar da sem razão e das injustiças desejam.42

Nesta circunstância, à mercê de alguns procuradores poderosos, que se enxergavam como “o

40 RPHAN. n. 3, 1939, p. 314-15. Choromeleiros eram tocadores de Choromela ou charamela, instrumento de sopro. Veja-se MONTEIRO, Mauricio. “Música e Mestiçagem no Brasil”. Artigo disponível na Internet. Endereço Eletrônico: http://nuevomundo.revues.org/index1626.html#ftn2. Acesso: 09/02/2009. 41 CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros: de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo

dourado – 1693-1737. Tese de doutoramento. FFLCH/ USP. 2002. 42 Carta de dom Pedro de Almeida ao rei, sobre a Junta deste ano e sobre os quintos. Vila do Carmo, 26 de março de 1718. APM, SC 04, fl 511.

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poder e autoridade dos Povos”, “pouco ficava que fazer aos governadores se eles

continuassem naquela forma”. Urgia, portanto, controlar as juntas e impedir que os

procuradores se sentissem suficientemente fortes a ponto de contrariar a vontade e as ações do

governador. Com este intuito, Assumar forcejou no sentido de conseguir ajuste do quinto

válido por período maior que o anual, a fim de desfazer a lógica seguida por dom Brás, que

convocou reuniões a cada 12 meses para renovar o acordo sobre a matéria.

Na primeira junta que presidiu, a 1º de março de 1718, dom Pedro propôs que os

procuradores deliberassem método a ser adotado nos anos seguintes em obediência ao

princípio de que a Fazenda Real deveria receber incremento, na mesma proporção em que

haviam crescido as povoações de Minas. Apenas 16 procuradores assinaram o termo,

acatando a proposta do governador, “com o acrescentamento que pudesse caber na

possibilidade dos Povos de sorte que não fossem oprimidos”.43 No dia seguinte, outra junta,

com os mesmos representantes, aprovou a idéia, também trazida por Assumar, de fabricar

listas exatas do número de escravos existentes nas Minas, “por se entender que se ocultavam

muitos”, para o que as câmaras nomeariam, entre seus homens principais, provedores dos

quintos, responsáveis por quantificar o plantel escravista de suas respectivas localidades.44 Por

fim, no dia 3 de março, uma terceira junta ratificou novamente proposta levada pelo

governador, segundo a qual os Povos da capitania pagariam a quota de 25 arrobas de ouro,

excluindo-se, em proveito da Fazenda Real, as imposições sobre a entrada de cargas, negros e

gado.45

Henrique Lopes de Araújo esteve ausente das três juntas. Aliás, chama atenção o

número reduzido de procuradores convocados por Assumar. Desde Antônio de Albuquerque,

as juntas que tiveram por matéria votar acordos sobre o quinto eram comumente freqüentadas

por número não inferior a 30 pessoas, o que deduz abatimento de quase 50% no conjunto de

procuradores chamados pelo novo governador. Pode-se enxergar neste fato a postura mais

seletiva e ao mesmo tempo mais antipática de Assumar na consideração das juntas. Mais que

isso, tratava-se de esforço consciente no sentido de esvaziar a importância das sessões,

restringindo assim a atuação política dos procuradores. O próprio general confessou ao rei que

43 TERMO do ajuste que se fez com os procuradotes das câmaras e povos destas Minas a respeito dos quintos do ano de 1719 e os mais. 1º de março de 1718. APM, SC 06, fl. 80v-81. 44 TERMO de 2 de março de 1718 sobre os quintos. APM, SC, 06, fls. 82-82v. 45 TERMO de 3 de março de 1718 sobre os quintos. APM, SC 06, fls. 83-83v.

20

seu intuito era

desvanecer os fumos que já lhes subiam às cabeças, em primeiro lugar dividindo-as e embaraçando quanto muitos deles assistissem à Junta, em segundo, cuidei em preveni-los e deixá-los como surpreendidos tirando-lhes a ocasião que eles podiam esperar praticar alguma das suas costumadas destrezas, e assim por esta causa tomei a resolução de deixar acertados os pagamentos dos quintos dos anos vindouros, sem embargo de que os procuradores só viessem com a tenção de justar a forma de cobrança dos quintos do presente.46

Entretanto, embora compartimentadas e esvaziadas, as juntas haviam sido igualmente

tensas. Os procuradores teriam relutado no aceite das propostas, sobretudo quanto ao ajuste

plurianual do quinto. Assumar revelou que não lhe custara pouco “reduzi-los a que

assinassem o dito termo, pondo a maior dúvida em se falar nos anos vindouros”. Encerradas

as juntas, sobraram queixas e formaram-se os primeiros indícios conspiratórios contrários à

prática governativa do general. Conforme notícia que lhe fora transmitida em sigilo pelo

ouvidor do Rio das Mortes e por particulares de sua confiança, os oficiais da Câmara de Vila

Rica haviam reprovado o novo ajuste e ”andavam urdindo alguma máquina para se dar volta a

tudo o que se assentou na junta”. Na sessão, um dos procuradores, camarista e juiz em Vila

Rica, explicitara-se oposto à resolução tomada e “em suas conversações particulares depois

disto soube que em nenhum nada estava contente”.47

Um ano depois, em julho de 1719, quando uma lei régia obrigou que a metodologia de

arrecadação dos quintos fosse alterada, abandonando-se a forma por quota fixa e exigindo-se

a construção de casas de fundição, Assumar teve de retomar diálogo com os procuradores.

Mas, mesmo ciente do teor polêmico da medida, o general preferiu manter sua postura

seletiva, convocando número reduzido de procuradores. Apenas 23 pessoas decidiram acatar a

ordem real, prevendo-se que as fundições entrariam em funcionamento em meados de 1720.

Ao fazer isso, dom Pedro assumia compromisso notadamente distante da prática seguida por

seu antecessor, dom Brás, que, sob condições semelhantes, em 1715, pressionado a impor

alteração nos quintos, convocara número recorde de procuradores, em junta com 61

assinaturas, conjunto quase três vezes maior que o de 1719.

Merece destaque ainda a maneira pela qual o governador definiu perante os

procuradores a função política daquela junta:

46 Carta de dom Pedro de Almeida ao Rei. Vila do Carmo, 26 de março de 1718. APM, SC 04, fl. 511 47

CARTA de dom Pedro de Almeida ao Rei. Vila do Carmo, 26 de março de 1718. APM, SC 04, fl. 515.

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visto o que continha a dita lei só se devia tratar da sua inteira observância visto ser assim vontade expressa e irrevogável de El Rei nosso senhor de a ter considerada na sua altíssima compreensão e que ninguém duvidaria que a dita lei inviolavelmente devia desde logo ser executada com toda a prontidão por ser razões mui urgentes; a primeira porque mandando assim El Rei nosso sr. era indispensável sua execução; a segunda porque a fidalidade e obediência dos vassalos não estava mais na sua mão que resignar-se humildemente à vontade do seu soberano; a terceira porque sendo o exmo. Sr. Conde o executor da dita lei estava de ânimo de observar à risca, e sem discrepância; [...] não pedia pareceres, nem ouvirá réplica, nem escusa alguma, porque na ocasião presente nada se devia reputar àquele ato pelas costumadas juntas que antes se faziam, em que se pedia a [conveniência dos] Povos, mas que suposta a devida resignação que em todos reconhecia, só queria ouvir aos circunstantes, como zelosos do serviço de S. Majestade, e inteligentes do país, o seu paracer sobre os sítios mais convenientes para se erigirem as casas de fundição e os lugares em que se deviam estabelecer em ordem a sua maior segurança, e atalhar os descaminhos que podia haver na extração do ouro. 48

Novamente, Henrique Lopes de Araújo não foi convidado por Assumar a tomar parte

na junta, fato que tornou a se repetir em todos os pleitos presididos pelo general. A se levar

em conta a condição adquirida pelo capitão-mor durante o governo de dom Brás, período em

que participou da maioria das juntas, a nova situação era-lhe muito desfavorável. O mesmo se

pode dizer para o caso de Pascoal da Silva Guimarães, também ignorado nas convocações de

Assumar. E, não obstante, quando a Revolta de Vila Rica estourou, o militar teria se

destacado como fiel vassalo, não aderindo ao movimento e opondo-se a ele, como potentado

aliado ao governador, atuante no foco da rebelião. Pelo menos é esta a imagem criada nas

petições posteriormente exaradas por Henrique Lopes. Avaliar em que medida é possível

conhecer e certificar a posição política do capitão-mor, tida por sempre favorável às

determinações de governadores e da própria metrópole, constitui tarefa que não pode ter lugar

aqui. Mas, será sugestivo supor que nem tudo é o que parece.

48 TERMO sobre quintos e Casas de Fundição. 16 de junho de 1719. APM, SC 06, fl. 91.