10
Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque de Castro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional de História da Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP, 2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7) 1 UM QUASE BARTLEBY: R ODOLFO GARCIA E SUA PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA LIMIAR  Vitor Claret Batalhone Júnior  Rodolfo Augusto de Amorim Garcia nasceu em Ceará Mirim, no Rio Grande do  Norte, no dia 25 de maio de 1873. Após ter estudado no Colégio Militar d o Ceará e na Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro, graduou-se bacharel em direito na famosa “Escola do Recife”. Além disso, Rodolfo Garcia atuou de maneira destacada como bibliotecário e historiador. Ao longo dos primeiros anos da década de 1910, Garcia radicou-se na capital federal onde conheceu Capistrano de Abreu, seu grande amigo e mestre. Esse último foi também um grande historiador, tendo sido recorrentemente identificado como o único historiador brasileiro capaz de produzir obra superior à  História geral do Brasil  de Francisco Adolfo de Varnhagen. Entretanto, nem Capistrano nem Garcia realizaram tal tarefa (ABL, s/d: s/p). 1  Entre as publicações assinadas por Rodolfo Garcia, podemos mencionar os  Nomes de aves em língua tupi, de 1913; o  Dicionário de Brasileirismos, datado de 1915; sua colaborção ao  Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil , organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para o qual escreveu sobre  Etnografia Indígena  e  História das Explorações científicas no Brasil ; elaborou ainda o Catálogo dos Livros, Folhetos, Documentos, Retratos, Bustos, Máscaras etc. ,  pertencentes à Biblioteca, Arquivo e Museu do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, obra de referência que foi publicada em número especial da Revista do IHGB, referente à edição comemorativa do Centenário da Independência do Brasil; além de seu Sistemas de classificação bibliográfica: da classificação decimal e suas vantagens e do Ensaio sôbre a hist ória política e administrati va do Brasil (1500-1810). Aparentemente, Rodolfo Garcia parece não ter escrito nenhuma grande obra. Porém apenas parece que o autor não o tenha feito (ABL, s/d: s/p). 2   Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista CAPES. 1  Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350>. Acessado em: 17/02/2011. 2  Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350>. Acessado em: 17/02/2011.

Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 1/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

1

UM QUASE BARTLEBY:

R ODOLFO GARCIA E SUA PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA LIMIAR  Vitor Claret Batalhone Júnior ∗ 

Rodolfo Augusto de Amorim Garcia nasceu em Ceará Mirim, no Rio Grande do

 Norte, no dia 25 de maio de 1873. Após ter estudado no Colégio Militar do Ceará e na

Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro, graduou-se bacharel em direito na

famosa “Escola do Recife”. Além disso, Rodolfo Garcia atuou de maneira destacadacomo bibliotecário e historiador. Ao longo dos primeiros anos da década de 1910,

Garcia radicou-se na capital federal onde conheceu Capistrano de Abreu, seu grande

amigo e mestre. Esse último foi também um grande historiador, tendo sido

recorrentemente identificado como o único historiador brasileiro capaz de produzir obra

superior à História geral do Brasil  de Francisco Adolfo de Varnhagen. Entretanto, nem

Capistrano nem Garcia realizaram tal tarefa (ABL, s/d: s/p).1 

Entre as publicações assinadas por Rodolfo Garcia, podemos mencionar os

 Nomes de aves em língua tupi, de 1913; o  Dicionário de Brasileirismos, datado de

1915; sua colaborção ao  Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil ,

organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para o qual escreveu sobre

 Etnografia Indígena e  História das Explorações científicas no Brasil ; elaborou ainda o

Catálogo dos Livros, Folhetos, Documentos, Retratos, Bustos, Máscaras etc.,

 pertencentes à Biblioteca, Arquivo e Museu do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, obra de referência que foi publicada em número especial da Revista do

IHGB, referente à edição comemorativa do Centenário da Independência do Brasil;

além de seu Sistemas de classificação bibliográfica: da classificação decimal e suas

vantagens e do Ensaio sôbre a história política e administrativa do Brasil (1500-1810).

Aparentemente, Rodolfo Garcia parece não ter escrito nenhuma grande obra. Porém

apenas parece que o autor não o tenha feito (ABL, s/d: s/p).2 

∗ Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista CAPES.1

  Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350>.Acessado em: 17/02/2011.2  Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350>.Acessado em: 17/02/2011.

Page 2: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 2/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

2

Em 1853, Herman Melville publicou seu  Bartleby, o escrivão: uma história de

Wall Street , no qual contara a história ficcional de um indivíduo que trabalhava numescritório de Wall Street como copista manual de documentos. O fato curioso era que,

quando alguém o indagava sobre sua opinião ou lhe demandava uma ação qualquer,

Bartleby se limitava a responder: “Eu preferiria não o fazer”.

Já no final do século XX, no ano de 2000, o escritor catalão Enrique Vila-Matas

se inspirou no personagem criado por Herman Melville e publicou um interessante livro

intitulado Bartleby e companhia, no qual discutiu através de um ensaio ficcional, aquilo

que ele denominou de “síndrome de Bartleby”. Tal síndrome seria uma espécie de pulsão negativa face ao ato da criação literária, dando origem àqueles que o autor

identificou como sendo os “escritores do Não”: autores que ou escreveram

 pouquíssimas obras e depois se silenciaram profundamente, ou que, apesar de serem

reconhecidos publicamente em relação aos seus potenciais literários, nunca chegaram a

compor as tão esperadas grandes obras.

 No ano de 1900, a Tipografia Laemmert, sediada no Rio de Janeiro,

encomendou a Capistrano de Abreu um amplo projeto de anotação crítica da  História

 geral do Brasil   de Varnhagen (MATTOS, s/d: s/p). Essa edição revista e anotada

constituiria a terceira edição da  História geral , uma vez que as duas primeiras edições

foram publicadas por Varnhagen ainda em vida. A primeira edição da História geral do

 Brasil foi publicada em Madrid, em dois volumes, entre os anos 1854 e 1857. Já a

segunda edição, corrigida e aumentada pelo próprio autor, foi publicada em Viena em

1877. Entretanto, a terceira edição revista e anotada, sob a responsabilidade de

Capistrano de Abreu, acabou sendo publicada apenas muitos anos depois da encomenda

feita pela Tipografia Laemmert, pois em 1906 um incêndio na casa de edição destruiu

 boa parte dos materiais. De qualquer forma, o primeiro volume da terceira edição

acabou sendo publicado em 1907 (CEZAR, 2002: 540-541).

Alguns anos após tal incidente, Rodolfo Garcia tomou parte no projeto de

anotação crítica da terceira edição da  História geral do Brasil . Todavia, Capistrano de

Abreu acabara falecendo em 1927, de forma que a terceira edição integral da obra de

Varnhagen foi publicada apenas nos anos seguintes (GONTIJO, 2007: 42). Assim, a

maior parte dos volumes foi anotada e revisada especialmente por Rodolfo Garcia.

Page 3: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 3/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

3

Enquanto trabalharam juntos, Rodolfo Garcia também acompanhou Capistrano

em outros importantes empreendimentos, principalmente no que tange a publicação dedocumentos que os autores consideravam fundamentais para a consecução de uma

história e de uma historiografia brasileiras mais completas do que as de seus

antecessores. Dessa forma, o grande nome e a grande obra a serem batidos eram

Varnhagen e sua História geral do Brasil .

Para compor o hercúleo trabalho de anotação da referida obra do Visconde de

Porto Seguro, Capistrano e Garcia recorreram a inúmeros documentos e monografias

históricas, muitos deles previamente conhecidos, outros, porém, inéditos. No que tangeos documentos históricos primários utilizados, alguns daqueles que aparecem entre as

notas de rodapé e de finais de seções merecem atenção privilegiada devido à sua

frequência de utilização e aos anexos textuais que encontramos em suas edições. Entre

tais documentos, destacamos a coleção da  Primeira visitação do Santo Ofício às partes

do Brasil , os Tratados da terra e gente do Brasil   de Fernão Cardim, o  Diário da

navegação de Pero Lopes de Sousa e a História do Brasil  de Frei Vicente do Salvador.

Encontramos em todas essas edições, prefácios, introduções críticas e notas

escritas ou por Capistrano de Abreu ou por Rodolfo Garcia, sendo que em algumas

ocasiões existem textos de ambos os autores. Todavia, dentro desse conjunto, os textos

mais importantes assinados por Rodolfo Garcia encontram-se nas edições da  Primeira

visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de

 Mendoça: Denunciações de Pernambuco (1593-1595) e nos Tratados da terra e gente

do Brasil  de Fernão Cardim.

A partir de 1922, a coleção da Primeira visitação do Santo Officio ás partes do

 Brasil  foi editada, contendo os volumes, a adição de prefácios, introduções e notas de

Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Tais edições tiveram como origem uma

demanda da Sociedade Capistrano de Abreu, a qual havia projetado uma série de

 publicações de documentos históricos intitulada “Eduardo Padro” (ABREU, 1935:

XXIX). Sob a responsabilidade de Capistrano de Abreu ficaram os volumes das  

Confissões da Bahia (1591-92) e das Denunciações da Bahia (1591-1593). No caso das

 Denunciações de Pernambuco (1593-1595), o estudo introdutório ficou a cargo de

Rodolfo Garcia.

Entretanto, o fato interessante é que enquanto Rodolfo Garcia trabalhava no

Page 4: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 4/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

4

 processo de anotação da  História geral do Brasil   ele também trabalhava na edição

crítica dos documentos históricos em questão. Dessa forma, tais documentos, assimcomo a História geral , passaram a compartilhar um mesmo núcleo discursivo lastreado

sobre um conjunto de referências similares. As notas de rodapé adicionadas por Garcia à

 História escrita pelo Visconde contém inumeráveis referências e citações das edições

dos referidos documentos que Rodolfo Garcia tratava de anotar e prefaciar

concomitantemente ao seu trabalho de anotação da  História geral do Brasil . Houve

momentos em que a própria versão da obra de Varnhagen serviu como referência em

notas de rodapé ou no próprio corpo do texto, a informações que visavam garantir asnarrativas existentes nos prefácios e introduções críticas adicionados aos documentos

aqui discutidos. Isso possibilitou o surgimento de um movimento de autorreferenciação

discursiva através do qual tanto a  História geral  passou a fundamentar os anexos

textuais presentes nos volumes editados com a colaboração de Rodolfo Garcia, quanto

tais documentos passaram a fundamentar as notas adicionadas ao “monumento”

varnhageniano.

Ao mesmo tempo em que Garcia trabalhava para oferecer uma versão anotada

da História geral ao longo do ano de 1929, era escrito o prefácio e publicado o volume

das  Denunciações de Pernambuco. O mesmo fenômeno é observável no apêndice

textual que introduz Tratados da terra e gente do Brasil  de Fernão Cardim, o qual conta

com uma Introducção Geral  escrita por Rodolfo Garcia.

Em 1923, sob os auspícios da presidência de Afrânio Peixoto na Academia

Brasileira de Letras (ABL), foi esboçada uma tentativa de “começar a publicação de

duas séries de obras raras e preciosas”, tratando dos “classicos nacionaes”. Esses

volumes constituiriam a coleção Biblioteca de Cultura Nacional, que deveria abranger

obras e documentos classificados dentro das seguintes especificações: história,

literatura, “dispersos” e bio-bibliografia (ABL, s/d: s/p; GARCIA, 1939: 7-8).3 

Posteriormente, o empreendimento passou a se chamar Coleção Afrânio Peixoto.

Segundo o então presidente, tais edições deveriam ser “enriquecidas de introducção

 bibliographica, e de notas elucidativas, das quaes serão encarregados os nossos

confrades que tiveram pendor por esse gênero de estudos” (PEIXOTO apud GARCIA,

3  Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&sid=127>.Acessado em: 17/02/2011.

Page 5: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 5/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

5

1939: 7). Os escolhidos entre seus pares em função do “pendor por esse gênero de

estudos” foram Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. A partir de então, ambos osautores estavam encarregados de executar uma terefa considerada essencial para a

constituição da história e da historiografia brasileiras.

Os Tratados da terra e gente do Brasil  de Fernão Cardim são uma das poucas

obras desse projeto que foram efetivamente publicadas. Antes de serem editados sob a

forma de um corpo textual único e homogêneo, os Tratados de Fernão Cardim eram

constituídos por três códices singulares. O primeiro recebera o título de  Do Clima e

Terra do Brasil , o segundo, de  Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil , sendo oúltimo tratado conhecido como Narrativa epistolar  ou Informação da Missão do Padre

Christovão de Gouvêa às partes do Brasil (GARCIA, 1939: 8).

Além de ter escrito a referida  Introducção Geral , Rodolfo Garcia também

adicionou notas ao texto da edição integral de Do Clima e Terra do Brasil  publicada por

Capistrano de Abreu em 1885. Essa edição foi estabelecida especialmente a partir de um

manuscrito original existente na Biblioteca de Évora e de um códice existente no

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, contando também com o cotejamento da

versão publicada em inglês por Samuel Purchas em 1625 (GARCIA, 1939: 15).

Já a  Narrativa espistolar   ou  Informação da Missão do Padre Christovão de

Gouvêa às partes do Brasil   foi publicada primeiramente por Francisco Adolfo de

Varnhagen em 1847. O Visconde de Porto Seguro também se utilizou de um códice

existente na Biblioteca de Évora para publicar em Lisboa sua edição da  Narrativa

epistolar , obra que seria bastante utilizada na composição da  História geral do Brasil .

Mais uma vez as notas ficaram a cargo de Rodolfo Garcia, pois nem Varnhagen e nem

Eduardo Prado, que trabalhou num edição para o IHGB em 1902, conseguiram

adicionar as notas desejadas (GARCIA, 1939: 9-10).

 Na sua  Introducção Geral , Garcia esboçou uma pequena biografia do jesuíta,

configurando-lhe não somente como um “precursor” da escrita da História do Brasil,

mas também como um dos primeiros indivídous a compor a linhagem dos “patriotas”

 brasileiros (GARCIA, 1939: 10-11). Dessa forma, Rodolfo Garcia criou as condições

 para que se tornassem pensáveis as idéias de uma nacionalidade e de uma história

especificamente brasileiras que estariam em processo contínuo de formação desde pelo

menos o século XVII. Dentro dessa história, Fernão Cardim foi conformado tanto como

Page 6: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 6/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

6

uma personagem quanto como um autor. Entretanto, Rodolfo Garcia sempre

caracterizou a obra do jesuíta Cardim antes como um documento do que como aquiloque ele poderia definir como sendo uma obra historiográfica autêntica segundo sua

concepção.

Como afirmado anteriormente, também na  Introducção Geral   aos Tratados  de

Fernão Cardim podemos observar o referido movimento circular de autorreferenciação

do discurso histórico enunciado por Rodolfo Garcia nas notas de rodapé, nos prefácios e

introduções que escreveu para as edições da  História geral do Brasil e dos documentos

cujas edições críticas ficaram sob a sua responsabilidade. Portanto, encontramosnovamente alguns indícios que nos permitem pensar que os estudos realizados por

Rodolfo Garcia para compor as edições de tais documentos coloniais e da História geral

do Brasil teriam sido realizados simultaneamente.

Parece que de certa forma, as possibilidades de se contar a história do Brasil sem

tocar nesses documentos ou na  História geral   escrita por Varnhagen eram restritas e

apenas aumentavam à medida que monografias e novos estudos eram realizados, assim

como novos documentos eram descobertos, criticados, editados e publicados. Isso nos

leva a uma última questão.

Capistrano de Abreu acreditava que um dos elementos essenciais para a

composição da escrita de uma “História Pátria” mais completa, mais verdadeira do que

as compostas por seus antecessores compreendia como etapa básica de trabalho o

rastreamento, o descobrimento e a apuração crítica de documentos considerados

fundamentais. Através desse procedimento necessário básico, Capistrano acreditava

 poder indicar e fechar as lacunas referentes à história e à historiografia brasileiras,

especialmente aquelas que se referiam ao passado colonial, como por exemplo, o

 período das bandeiras. Segundo o autor, o conhecimento histórico sobre o século XVI e

sobre as bandeiras era escasso, demandando de maneira imperativa, estudos que

esclarecessem tais intervalos sombrios sobre o passado brasileiro (ABREU, 1931: 199,

204-205). Dessa forma, Capistrano deixa entrever uma concepção segundo a qual

existiria uma estrutura fenomênica do passado com existência efetiva em potencial para

além das representações historiográficas. Aproveitando o exemplo das bandeiras,

 podemos considerar que essas somente se tornariam objeto de pesquisa pertinente a um

 projeto ou questionário mínimo de trabalho caso algum indivíduo-historiador assim o

Page 7: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 7/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

7

demandasse cognitivamente, mas não por força necessária emanada do objeto história

do Brasil enquanto uma entidade que se acreditava suficiente. Isso não significa que as bandeiras não foram uma realidade determinada do passado, mas apenas que as

 bandeiras não são um objeto necessário da composição de uma estrutura-objeto que

identificamos como a história do Brasil.

Rodolfo Garcia comungava tal crença com Capistrano de Abreu. O fato de ele

ter herdado com tanto empenho, mérito e zelo a tarefa de anotar e prefaciar a  História

 geral do Brasil  assim como os documentos coloniais aqui referidos é um indício disso,

mesmo que Rodolfo Garcia não tenha expressado tal crença historiográfica comum tãoclaramente como o fez Capistrano de Abreu.

Para finalizar esta reflexão sobre a prática historiográfica realizada por Rodolfo

Garcia, prática essa que optamos por classificar como limiar, uma vez que foi

construída em grande parte nos limites do discurso historiográfico efetuado pelo autor,

ou seja, aquele discurso que se encontra nos anexos textuais das notas de rodapé,

 prefácios e introduções críticas adicionadas às obras e aos documentos historiográficos

 por ele processados, voltemos ao escrivão criado por Herman Melville e principalmente

à “síndrome de Bartleby” teorizada literariamente por Enrique Vila-Matas.

Como afirmado anteriormente, tal síndrome seria uma espécie de pulsão

negativa em reação ao ato de criação literária. Aqueles que fossem portadores da

síndrome seriam os “escritores do Não”, os quais teriam criado poucos textos e depois

teriam se calado literariamente ou, apesar de serem reconhecidos como grandes autores

literários em potencial, nunca chegaram a escrever suas esperadas páginas de gênio.

Garcia, assim como Capistrano, não chegou a escrever uma grande obra

historiográfica. Poderíamos pensar que talvez o autor tivesse sido contaminado pela

“síndrome de Bartleby”, escrevendo “apenas” alguns anexos textuais e se calado

 posteriormente sem conseguir efetuar sua tão esperada grande obra. Teria o peso da

totalidade da referida estrutura fenomênica que os autores acreditavam existir para além

das representações historiográficas que criamos acerca do passado esmagado suas

 pretensões de escrever uma nova e mais completa grande história geral do Brasil? Teria

a pulsão pelo controle máximo dos documentos históricos desorientado a prática

historiográfica de Rodolfo Garcia, levando-o a uma enseada de silêncio em lugar da tão

Page 8: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 8/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

8

almejada nova história geral do Brasil? Teriam sido os documentos em excesso antes

um obstáculo do que um conjunto útil de ferramentas para o trabalho cognitivo dohistoriador?

Já adianto que não possuo aqui tais respostas. Todavia, tendo a pensar que

Rodolfo Garcia possuísse uma espécie de imunidade à “síndrome de Bartleby”, pois não

faltou ao autor uma obra imensa e processada com frequência. Garcia escreveu muito,

estudou muito, mas o resultado de seu trabalho é mais perceptível em espaços textuais

heterodoxos. Suas notas, prefácios e introduções compõem junto aos seus poucos

estudos editados singularmente, uma obra imensa. Como poderia então ter sido o autorum enfermo de Bartleby? Rodolfo Garcia poderia antes ter sido um quase Bartleby, ou

melhor, um Bartleby às avessas, pois me parece que sua tão aguardada grande obra da

“História Pátria” foi escrita de certa forma, e em coautoria com Capistrano de Abreu,

nos limites espaciais e discursivos que passam amiúde despercebidos, ou seja, as notas

de rodapé, prefácios e introduções.

Referências Bibliográficas

ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos: (crítica e história). 1. série. Rio de

Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1931.

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Biografia de Afrânio Peixoto. Disponível

em:<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&s

id=127>. Acessado em: 17/02/2011.

 ___________. Biografia de Rodolfo Garcia. Disponível em:

<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid

=350>. Acessado em: 17/02/2011.

 ___________. Discurso de posse de Rodolfo Garcia. Disponível em:

<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8478&si

d=30>. Acessado em: 17/02/2011.

CEZAR, Temístocles. L'écriture de l'histoire au Brésil au XIXe siècle: essai sur une

hétorique de la nacionalité: Le cas Varnhagen. Tese de Doutorado.

Paris: EHESS, 2002.

Page 9: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 9/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

9

GARCIA, Rodolfo. Escritos avulsos. Rio de Janeiro: Divisão de Publicações e

Divulgação, 1973. ___________. Introducção. In: MENDOÇA, Heitor Furtado de. Primeira visitação do

Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de

Mendoça: Denunciações de Pernambuco (1593-1595). São Paulo: Ed. Paulo

Prado, 1929.

 ___________. Introducção Geral. In: CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do

Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.

 ___________. Sistemas de classificação bibliográfica: da classificação decimal e suasvantagens. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Bibliotecários, 1969.

GONTIJO, Rebeca. Capistrano de Abreu, viajante. Revista Brasileira de História. São

Paulo, v.30, n.59, p.15-36, 2010.

 ___________. História e historiografia nas cartas de Capistrano de Abreu. História. São

Paulo, v.24, n.2, p.159-185, 2005.

 ___________. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia.

Anos 90: revista do Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre,

v.14, n.26, p.41-76, dez., 2007.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. Capítulos de Capistrano. Disponível em:

<http://www.historiaecultura.pro.br/modernosdescobrimentos/desc/capistrano/

frame.htm>. Acessado em: 19/09/2010.

MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street. São Paulo:

Cosac Naify, 2005.

MENDOÇA, Heitor Furtado de. Primeira visitação do Santo Officio as partes do

Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendoça: Confissões da Bahia

(1591-92). Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1935.

 _________. Primeira visitação do Santo Officio as partes do Brasil pelo licenciado

Heitor Furtado de Mendoça: Denunciações de Pernambuco (1593-1595). São

Paulo: Ed. Paulo Prado, 1929.

SALVADOR, Vicente do, Frei. Historia do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1931.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, Visconde de Porto Seguro. História geral do

Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. 3. ed. Integral. São

Paulo: Melhoramentos, 1927-1936.

Page 10: Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

7/23/2019 Um Quase Bartleby (Oficial_ANAIS 5SNHH)

http://slidepdf.com/reader/full/um-quase-bartleby-oficialanais-5snhh 10/10

Camila Aparecida Braga Oliveira; Helena Miranda Mollo; Virgínia Albuquerque deCastro Buarque (orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional deHistória da Historiografia:  biografia & história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP,2011.(ISBN: 978-85-288-0275-7)

10

 _________. História geral do Brasil: antes da sua separação e independência de

Portugal. 4.ed. integral. São Paulo: Melhoramentos, 1948-1953.VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil,

1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.