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Os sons, cheiros e águas da floresta escondem cenários e costumes ainda desconhecidos da maioria dos viajantes que desbravam a grande e famosa selva. Descobrir essa outra mata é uma aventura surpreendente Amazônia Um recanto na TEXTO LUíS PATRIANI | FOTOS FERNANDO MARTINHO (PARALAXIS) Nas comunidades caboclas da Amazônia, os bichos de estimação muitas vezes são animais selvagens, como os macacos-barrigudos 54 Setembro 2012

Um recanto na Amazônia · passageiros não perdem tempo, sobem para o terraço da embarcação e passam a rastrear, com olhos e câmeras fotográficas, cada ponto de interesse nas

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Os sons, cheiros e águas da floresta escondem cenários e costumes ainda desconhecidos da maioria dos viajantes que desbravam a grande e famosa selva. Descobrir essa outra mata é uma aventura surpreendente

AmazôniaUm recanto na

texto Luís Patriani | fotos Fernando Martinho (ParaLaxis)

Nas comunidades caboclas da Amazônia, os bichos de estimação muitas vezes são animais selvagens, como os macacos-barrigudos

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Aos poucos, a grandiosa selva

revela seus segredos, entre canais e igapós

Ancorado no cais de Novo Airão, cidade amazonense, na margem direita do Rio Negro, o barco Jacaré Açu está pronto para iniciar a expedição de cinco dias pela Floresta Amazônica rumo à distante comunidade ribeirinha de Xixuaú, no Rio Jauaperi, sul do Estado de Roraima. A partida para o interior da selva não poderia ser de

lugar mais apropriado. O tranquilo município, distante 179 quilômetros de Manaus, é conhecido pela presença de botos cor-de-rosa e está encravado no meio do Parque Nacional do Arquipélago de Anavilhanas, o segundo maior conjunto de ilhas fluviais do mundo, atrás apenas do Arquipélago de Mariuá, também localizado no Rio Negro.

A embarcação nem bem solta suas amarras e centenas de canais e igapós formados no meio das 400 ilhas que compõem Anavilhanas – a área total do parque é de 350 mil hectares – surgem no cenário e transformam o curso do rio em um labirinto. Entusiasmados pela perspectiva de mergulhar a fundo na icônica Amazônia, os passageiros não perdem tempo, sobem para o terraço da embarcação e passam a rastrear, com olhos e câmeras fotográficas, cada ponto de interesse nas águas, matas e céu da grande selva. “É a terceira vez que venho aqui, mas a sensação é a de que não conheço quase nada. É tudo tão grande, tão selvagem. A Amazônia apaixona e inspira”, diz a cantora e violonista Nicole Salmi, contratada por Ruy Carlos Tone, proprietário da Katerre, agência especializada em roteiros pela Amazônia, para embalar a viagem com suas harmoniosas canções.

O primeiro protagonista a se revelar no roteiro é o próprio Rio Negro, com 1.700 quilômetros de extensão – em alguns pontos, sua largura chega a somar 35 quilômetros – e que nesta época do ano está muito cheio por causa das intensas chuvas que caíram na região entre os meses de novembro e março e provocaram a maior cheia dos últimos 110 anos. Sua calha se mostra bem maior do que no período da seca, quando é possível ver praias de areia branca e fina e o

ACIMA, as casas no formato de palafitas são fundamentais para a população ribeirinha

sobreviver às cheias do Rio Negro; apesar da presença dos jacarés-açus, as crianças brincam

tranquilamente nos igarapés. ABAIxo, gavião carcará faz voo rasante na água para pescar

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Com 70 metros de altura, as samaúmas são as maiores árvores da Amazônia

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Os viajantes vão em busca de conhecer

o modo de vida das comunidades

ribeirinhas

seu José, ao lado da esposa, se divide entre o artesanato e o trabalho na

cooperativa de xixuaú. NA PÁGINA Ao LADo, no meio da trilha, açaizeiro

destaca-se na densa floresta tropical

nível de água está tão alto que as árvores nas encostas parecem baixas, mas, na verdade, 3 metros do tronco estão submersos.

A expectativa de ser atacado por insetos, para surpresa e felicidade de todos, não acontece aqui. Ao contrário do Rio Solimões (os dois rios se juntam em Manaus para formar o Rio Amazonas), as águas com alto índice de acidez do Negro e seus afluentes inibem a procriação de mosquitos e pernilongos. O motivo é a decomposição de sedimentos orgânicos, como restos de folhas, arbustos e troncos que se dissolvem na água, deixando-a com a cor escura e liberando grandes quantidades de ácido. A antiga formação geológica, na qual se formou a calha do Rio Negro, também é a responsável pela sua coloração. A estabilidade do terreno impede erosões nas margens e evita que o barro se misture ao leito. A diferença de cor com o Solimões é notória e virou atração turística. Na capital amazonense, as águas não se misturam por longos 6 quilômetros por causa das temperaturas, densidades e velocidades da correnteza diferentes.

A viagem segue e o Arquipélago de Anavilhanas ainda se faz presente, e são necessárias oito horas de navegação para percorrê-lo de uma extremidade a outra. O Jacaré Açu, por sua vez, com 64 pés de tamanho e três andares, navega firme e tranquilo, no ritmo do rio, cujas águas correm devagar, a cerca de 2 km por hora. O motor, se comparado com outras embarcações daqui, é silencioso, perfeito para não concorrer com os sons da floresta.

O sino toca: a primeira refeição com sabor amazônico está servida. Tucunaré com molho arubé, espécie de mostarda extraída do processo de fervura do tradicional tucupi, que merece uma menção à parte tamanha sua importância na cultura gastronômica da região Norte. O processo para se chegar ao molho é meticuloso. Primeiro, a raiz da mandioca brava é descascada, ralada e espremida até que o líquido possa descansar para, enfim, decantar o il

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Domingo é um dia pacato e o único

lugar movimentado na Vila de Moura

é a pequena biblioteca

amido do tucupi. Em seguida, a parte mais importante. Cozinhá-lo por pelo menos oito horas até que o venenoso ácido cianídrico seja eliminado. Conta a lenda que Jacy (Lua) e Iassytatassú (Estrela Dalva) resolveram conhecer o interior do planeta Terra. Ao atravessar um abismo, a cobra Caninana Tyiiba picou o rosto de Jacy, que começou a derramar suas lágrimas sobre uma plantação de mandioca. Daí surgiu o tycupy (tucupi).

Enquanto acontece o banquete temperado com cultura e mitos indígenas, preparado pelos chefs Claudio Fortes e Zizélia Pacheco, a Amazônia continua a revelar sua cara. Um de seus símbolos surge voando e fazendo barulho. São duas araras-vermelhas que passam por cima do barco cruzando o rio de um lado para outro. Depois, é a vez de um regatão, embarcação usada na Amazônia para vender mercadorias nas comunidades ribeirinhas, se destacar nas águas.

A primeira parada acontece nas Terras de Madada, propriedade da Katerre que fica em um igarapé com formato de baía, perfeita para nadar com segurança. Na parte alta da encosta foi construída uma cabana de dois andares com cozinha e redário. A ideia é proporcionar ao viajante a experiência de passar a noite em plena floresta e, no dia seguinte, acordar com a paisagem do nascer do sol, que acontece na margem oposta do Rio Negro, a 20 quilômetros. “Nas viagens de oito dias, ancoramos aqui para dormir. Quem quiser tem a opção de ficar na tenda, onde cabem até 16 redes. Dessa vez, por termos apenas cinco dias, vamos continuar navegando até Xixuaú”, comenta Ruy, um paulistano completamente apaixonado pela grandiosa floresta. “Eu passo metade do ano na Amazônia e a outra em São Paulo, onde fica a minha família. Mas sempre que dá trago minhas filhas para cá.”

No segundo dia, o sol mal surge e o Jacaré Açu já está atracado na pequena Vila de Moura. O povoado de 568 habitantes, que sobrevivem da pesca e de empresas que exploram a extração de pedras, normalmente é pacato, mas fica praticamente deserto no domingo. O único movimento é surpreendente e vem da pequena biblioteca localizada ao lado da escola. Lá dentro, um grupo de crianças e adolescentes, coordenados por três professoras, se dedica a uma animada sessão de leitura. Atenta em um canto da sala, Maria Teresa Meinberg, passageira do Jacaré Açu, fica emocionada com o evento. Ela foi umas das três idealizadoras do projeto Vagalume, que abastece com bons livros as bibliotecas de comunidades

essenciAis

como chegarl as companhias taM e Gol têm voos diários para Manaus a partir de r$ 397 e r$ 420, respectivamente. novo airão dista 179 quilômetros da capital amazonense, e a estrada é asfaltada e está em boas condições.

melhor épocal o período das chuvas acontece entre novembro e março e alaga parte da floresta, propiciando passeios de canoa nos igarapés da selva. na seca, a paisagem muda e o destaque fica com as praias de areia branca que surgem nas margens dos rios.

Quem levaKaterreR. São Domingos, 3, Novo Airão; tel.: (92) 3365-1644. katerre.com.l especializada em roteiros pela amazônia, a Katerre oferece viagens regulares e privativas para anavilhanas, Parque nacional do Jaú, alto e Médio rio negro, Jauaperi-apuaçú, serra do aracá e Jauaperi-xixuaú. a tarifa por pessoa para a expedição de cinco dias na comunidade de xixuaú custa r$ 2.995, em suíte com camarote duplo e climatizado. o valor é para grupos de, no mínimo, quatro pessoas e inclui três refeições diárias mais tira-gosto, sucos, água mineral, caipirinha de frutas, guia bilíngue, telefone de satélite para emergências, seguro viagem, passeios e atrações de terceiros.

Onde comerLeão da aMazôniaRio Negro (saídas do porto de Novo Airão a cada 30 minutos); tel.: (92) 3365-1110. l Localizado às margens do rio negro, em novo airão, o restaurante Leão da amazônia é comandado pelo chef francês Jean Christophe, que se rendeu à culinária da região e elaborou pratos como paella do rio negro, feita com arroz, ervilha, feijão-branco, pimentão, tomate, camarão, páprica, açafrão e peixes regionais (tucunaré, tambaqui e dourado).

Graças ao projeto Vagalume, os alunos da professora Ziza Carvalho estão mais

interessados em leitura. NA PÁGINA Ao LADo, borboletas amarelas se alimentam de sais

minerais na Praia do elias, no Rio Negro

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ACIMA, no segundo andar do Jacaré Açu, a gostosa sala de estar também serve para descansar. À DIReItA, a limpa água do Rio

Negro reflete o céu da Amazônia. ABAIxo, o chef francês Jean Christophe mostra, com

orgulho, o almoço feito em um tacho de farinha

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Quem dá as boas-vindas é um casal de araras-canindé que mora no alto de um buriti

carentes da Amazônia Legal, formada pelos Estados do Amazonas, Acre, Amapá, Pará, de Rondônia, Roraima e do Tocantins e parte de Mato Grosso e do Maranhão. “Não participo mais do projeto, mas me orgulho e fico feliz por ver que os livros chegam às mãos dessas crianças”, comenta Maria Teresa, que trabalha atualmente com turismo comunitário e vai conhecer de perto a comunidade de Xixuaú, destino da expedição. “Desde que os livros começaram a chegar, o interesse dos meus alunos pela leitura melhorou muito”, conta a professora Ziza Carvalho, 40 anos, segurando o livro Branca de Neve e as Sete Versões, de José Roberto Torero, cujo fim da história tem sete desfechos diferentes e estimula a criatividade dos pequenos.

O barco parte de Moura. No cais, as crianças se aglomeram e acenam para os visitantes, tão raros por essas bandas. Ainda é preciso navegar muito para chegar em Xixuaú de madrugada. No horizonte formado pela mata tropical, sobressaem as copas das samaúmas, a árvore mais alta da Amazônia. Sagrada para muitas tribos indígenas, elas chamam-na de “mãe das árvores”, a espécie chega a ter 70 metros de altura e o diâmetro de seu tronco, no qual se destacam as raízes tubulares, pode alcançar 3 metros.

A noite se aproxima. O crepúsculo se dá na entrada do Rio Jauaperi, já em Roraima. Com o céu ainda salpicado por nuvens avermelhadas pela luz que incide de baixo para cima, um grupo de papagaios passa fazendo algazarra. As águas do Jauaperi, conhecido como rio dos jacarés, estão lisas e prateadas. E, apesar da fama, quem recepciona os visitantes são botos-coxi, de cor acinzentada. De noite, enfim, um jacaré-açu, não o barco, mas sim um réptil de 4 metros de comprimento (alguns atingem mais de 5 metros e pesam meia tonelada), surge nadando tranquilamente.

O dia amanhece e, como previsto pelo plano de navegação, o barco está devidamente amarrado ao cais do povoado de Xixuaú, encravado em uma área de proteção de 190 mil hectares, vizinha ao território dos índios Waimiri-Atroari. Quem dá as boas-vindas, além do sol, é um casal de araras-canindé que mora no alto de um buriti.

A comunidade tem apenas 64 habitantes que vivem da manufatura da castanha de caju e do incipiente turismo comunitário, que se vale de cinco confortáveis chalés construídos no estilo maloca para receber turistas, em sua maioria europeus, que vêm para cá desfrutar da intocada natureza e

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Na bagagem, o sentimento de

ter conhecido um povo orgulhoso

de habitar a Amazônia

vivenciar a rotina dos ribeirinhos. A organização dos moradores em uma associação e cooperativa aconteceu graças a Paul e Christopher Clark, dois irmãos escoceses que se estabeleceram na região no início da década de 90 para reunir caboclos dispersos na região e formar uma comunidade com acesso à escola e à saúde. O objetivo era, e ainda é, manter os nativos em seus locais de origem e evitar o êxodo para as grandes cidades. A parceria da dupla durou até 1998, quando Paul foi embora para montar a diferenciada escola Viva Amazônia, na comunidade de Gaspar, mantida graças a recursos estrangeiros e com a ajuda de Ruy, grande incentivador para que os povos ribeirinhos tenham acesso à educação de qualidade.

Alheio aos projetos de pedagogia, Raimundo, também conhecido por Guri, rema sua canoa com destreza entre os troncos e galhos da floresta inundada. Seu conhecimento dos meandros da selva e dos animais não foi aprendido na escola. “Quem me ensinou tudo foi meu pai, o seu José, que trabalha atualmente com artesanato feito com a semente de açaí.” Guri usa seus sentidos para rastrear e localizar os bichos que se escondem na floresta. Um ruído quase imperceptível é o suficiente para ele descobrir ariranhas brincando nos barrancos ou uma família de macacos-aranha andando no alto das castanheiras. Frases como “Este cheiro é do porco catitu” ou “A onça passou por aqui, veja o cocô dela” se sucedem conforme o guia se embrenha na mata.

A expedição se aproxima de seu fim. Após quase dois dias experimentando a rotina de Xixuaú, é hora de retornar a Novo Airão. Na bagagem, além de alguns colares feitos por seu José, pai do Guri, vai o sentimento de ter conhecido uma Amazônia intocada, exuberante e, acima de tudo, com um povo orgulhoso por habitar a maior floresta tropical do planeta. LP

o fim de tarde no Rio Negro realça as cores das águas e matas da Amazônia.

NA PÁGINA Ao LADo, botos cor-de-rosa aparecem para comer no restaurante da

Marilda Medeiros, em Novo Airão

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