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UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA
MASCULINA - 1
A criatividade e a engenhosidade na produção dos mitos
expressivos de uma realidade, situação ou condição humano-
sócio-histórica pode ser exemplificada em dois xinguanos mitos
indígenas das flautas, registrados por Villas Boas, e nos quais
temos igualmente evidente o papel do herói civilizador: instituir
novas realidades de interesse coletivo, modificar uma condição e
situação política, social, religiosa, cultural, econômica, filosófica.
(Villas Boas, Orlando; Villas Boas, Cláudio. Xingu: os índios, seus
mitos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1976)
O primeiro mito indígena das flautas traduz processos de
iniciação masculina na busca de integração do arquétipo animi na
personalidade de um homem; o segundo mito traduz processos
iniciáticos femininos num contexto civilizatório de mudança
cultural promovida por mulheres. Ambos têm por teleologia a
promoção de qualidade cultural de vida das pessoas pertencentes
a uma comunidade étnica dada mediante cuidado do homem e da
mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a
que pertencem.
O homem e a mulher indígenas pertencem milenarmente a uma
cultura autêntica e integrada. Ribeiro, em sua classificação das
culturas, define autêntica aquela cultura cujas criações,
2
produções, heranças e tradições sociais correspondem
legitimamente aos interesses de desenvolvimento autônomo das
sociedades detentoras daquelas tradições e heranças; integrada
qualifica a cultura cujos conteúdos e componentes históricos
(políticos, sociais, pedagógicos, filosóficos, científicos,
econômicos, artísticos, jurídicos e legais) são internamente
congruentes. (Ribeiro, Darcy. Os Brasileiros. I Teoria do Brasil.
3a. ed. Vozes: Petrópolis. 1978.)
As culturas autêntica e integrada, quais a indígena, estão
contrapostas às culturas espúrias e às marginais. Na mesma
referência classificatória, Ribeiro qualifica de espúrias aquelas
culturas em que o repertório dos seus valores e sistemas
culturais, de organização interna e externa justificam domínios
exógenos a si mesmas; marginais são as culturas em que as
pessoas que as formam se dividem em grupos sociais
contrapostos uns aos outros de tal modo que a consciência social
desses grupos produz inter-discriminações, geradoras de
tensionalidades e frustrações sociais.
O Brasil tem se desenvolvido, desde a sua conquista, colonização
e neocolonização, como cultura espúria e marginal; nesse mesmo
Brasil, há o paradigma civilizatório indígena que representa uma
cultura autêntica e integrada. Isso significa que a sociedade
brasileira espúria e marginal produz gerações de homens com
3
masculinidade não fálica (deformada, deficiente, desviante,
problemática), enquanto a sociedade indígena brasileira forma
gerações de homens com masculinidade fálica (autêntica,
integrada).
As sociedades não indígenas em geral produzem tormentos e
crises amarradas aos conceitos desintegrantes de consenso, de
adaptação e de equilíbrio; as sociedades indígenas produzem
coesão sócio política desenvolvendo convivência solidária,
integração comunalista e completude comunitária. Essa coesão
sociopolítica indígena não é dada, mas permanentemente mantida
à luz referencial das Tradições, resguardadas pelo Conselho dos
Anciãos.
O homem indígena vivencia ritos de passagem desde o nascimento
para formar e desenvolver nele mesmo a autenticidade e a
integração culturais da sociedade comunal indígena a que
pertence; portanto, ao chegar à idade adulta (entre 20, 25 a 40,
45 anos) ou madura ( a partir dos 40 ou 45 anos) dificilmente
terá sentimentos de fracasso, de vazio, de perda de significado
da existência, de deslocamento e de fragmentação sociocultural.
Ainda vivenciará outros ritos de passagem exatamente porque a
vida histórica é um permanente ciclo de passagens, mas tais ciclos
não estão num contexto de crises quais as vigentes em
sociedades não indígenas.
4
O mito das flautas é um rito de passagem na idade madura de um
homem indígena, conquanto tenha fundamentos para os homens de
qualquer idade, principalmente para as sociedades não indígenas
nas quais os homens, às vezes, morrem jovens ou velhos
infantilizados e bestializados sem quaisquer expressões de
personalidade masculina autêntica e integrada.
Após relembrar o primeiro mito, registrado por Villas Boas, farei
detalhadamente os comentários que julgo pertinentes. Para tais
comentários utilizo de todos os meus conhecimentos para
explicitar as significações histórico-sócio-culturais das ações dos
personagens indígenas do mito: veremos que a civilização indígena
elabora, há milênios, uma pedagogia da cultura com a mesma
complexidade historicamente simbólica de várias outras
civilizações, quais a grega. E, por isso, utilizo-me do conhecimento
adquirido sobre mitologia grega para entender aquela
complexidade da mitologia indígena com cuidado pelas diferenças
culturais porque a primeira procede de uma cultura
fundamentalmente patriarcal, marcada por relações de não
cuidado, e a segunda de uma cultura dominantemente matriarcal,
marcada por relações de cuidado.
5
FLAUTAS DOS JACUÍ E FLAUTAS DE IANAMÁ.
Jacuí é o nome indígena para a personificação de homens-peixes
moradores do fundo das águas e tocadores de uma flauta de
mesmo nome a eles pertencente.
O herói civilizador e morubixaba Ianamá em sua atividade
cotidiana de pesca no seu pesqueiro, o Kranhãnhã, ouvia os Jacuí
diariamente tocando flauta, até que um dia pediu ajuda ao seu avô
Mavutsinim, possivelmente um grande morubixaba, para capturar
os Jacuí e suas flautas.
O avô Mavutsinim instrui Ianamá para que prepare uma grande
rede, cinco charutos e uma pequena panela de pimenta: armando a
grande rede na boca do lago, Ianamá esperava a chegada dos
peixes para flechá-los.
Ianamá flechou inúmeros peixes durante o dia todo; apenas com
noite alta ouviu o som das flautas dos Jacuí que vinham do fundo
das águas e iam se aproximando da rede.
Bem próximos da rede e quase nela encostando os Jacuí, no
entanto, voltaram para o fundo das águas tocando suas flautas.
A diária visita de Ianamá ao seu kranhãnhã, a aproximação e
distanciamento diário dos Jacuí sempre tocando suas flautas,
permitiram a Ianamá aprender todas as músicas por eles tocadas.
6
Certo dia, estando no seu kranhãnhã, Ianamá ouviu o som das
flautas dos Jacuí bem mais cedo do que habitualmente estava
acostumado a ouvir.
Cada vez mais próximos pela madrugada, ao clarear o dia os Jacuí
finalmente caíram na rede.
Os Jacuí começaram as tentativas de se livrarem da rede e,
então, Ianamá trouxe a rede para dentro da canoa.
Com o seu charuto espargiu fumaça sobre as flautas e esclareceu
aos Jacuí que sua intenção não era machucá-los e matá-los, mas
queria-os para si. Ao dar estes esclarecimento derramou pimenta
sobre as flautas e voltou para a sua aldeia Tacoatsiát.
Ao chegar, o seu avô Mavutsinim reconheceu as flautas dos Jacuí
como verdadeiras e pediu para que Ianamá as tomasse por modelo
e fizesse outras tantas flautas de madeira.
Ianamá foi para o mato e cortou taquara: fez três flautas de
taquara mas estas não produziram som.
Pelo resultado negativo das flautas de taquara, Ianamá pegou
vários outros tipos de paus e fez outras tantas flautas, mas
nenhuma produziu som.
Com os resultados novamente negativos, Ianamá pegou o pau
ivurapaputã, fez outras flautas, mas também não produziram
nenhum som.
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De todos os paus conhecidos, Ianamá fez flautas sem que as
mesmas produzissem qualquer som.
Certo dia e estando nas suas atividades de caçador, Ianamá
deparou-se com uma cutia, dela se aproximando.
A cutia disse a Ianamá que ele não era gente sábia; se soubesse
sobre muitas coisas não se aproximaria dela daquele jeito.
Ianamá apontou a flecha para o animal e este pediu-lhe que não o
matasse pois lhe contaria algo que sabia.
Sentaram-se e a cutia revelou-lhe o que até então desconhecia: a
flauta de Jacuí é feita dos paus irracuitáp ou imurã.
Instruído sobre os tipos de paus para confecção das flautas de
Jacuí, Ianamá saiu à procura dos mesmos e, encontrando-os,
produziu de três pedaços de irracuitáp inúmeras flautas.
As inúmeras flautas de Ianamá agora produziam som e todas
foram guardadas, lotando o espaço do tapãim.
Diariamente Ianamá tocava músicas junto com os Jacuí, mas
utilizando-se da flauta de Jacuí e não aquelas por ele produzidas
e guardadas no tapãim, a Casa das Flautas.
O Sol e a Lua diariamente ouviam de suas aldeias distantes os
sons daquelas músicas tocadas por Ianamá e Jacuí, até que um dia
resolveram ir à aldeia de Ianamá para descobrir com o quê este
produzia o som daquelas músicas.
8
Ao ver o Sol e a Lua se aproximarem da aldeia, Ianamá pediu ao
seu povo que nada falassem sobre o assunto das flautas.
O Sol e a Lua esclareceram o motivo de sua presença na aldeia de
Ianamá: ouviam diariamente o som das músicas tocadas e queriam
saber o que eram aquelas músicas.
Tendo visto no tapãim (Casa das Flautas) as flautas de Ianamá,
pediram-lhe algumas: Ianamá retirou três daquelas flautas por
ele produzidas e presenteou o Sol e a Lua que, logo em seguida,
partiram para as suas aldeias.
À noite, Ianamá e os Jacuí tocavam com as flautas de Jacuí: o
Sol e a Lua ouviram, percebendo a diferença entre o som das
flautas de Ianamá presenteadas e o som das flautas de Jacuí que
ouviam de longe. Resolveram voltar à aldeia Tacoatsiát de Ianamá,
pedindo para que lhes fossem mostradas as flautas tocadas por
Ianamá e os Jacuí.
A grande questão era que as músicas tocadas diariamente pelos
Jacuí e por Ianamá com as flautas de Jacuí eram ouvidas por
todo o mundo; diversamente, as músicas tocadas pelo Sol e pela
Lua com as flautas de Ianamá presenteadas não eram ouvidas por
todo o mundo.
Ianamá mostrou as flautas, afirmando ao Sol e à Lua que as
flautas por ele tocadas eram as mesmas daquelas presenteadas.
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Partindo para a aldeia Morená do seu avô Mavutsinim, o velho, o
Sol foi por aquele esclarecido porquê as suas músicas não eram
ouvidas por todo mundo: as flautas tocadas por Ianamá são as
flautas de Jacuí; as presenteadas são as flautas de Ianamá por
ele mesmo produzidas com a madeira irracuitáp.
Diante da revelação, o Sol e a Lua resolveram promover uma
grande festa, convidando Ianamá com a intenção de envenená-lo.
O Sol e a Lua foram para o mato retirar cipó de matar peixe:
entregaram o cipó às suas mulheres para que preparassem um
veneno e enchessem duas grandes cuias com o mesmo para serem
servidas durante a festa.
Os pariát, mensageiros do Sol e da Lua, foram por estes
mandados à aldeia de Ianamá convidá-lo para a festa.
De longe, Ianamá ouviu os gritos dos pariát e avisou ao seu povo
que o Sol os convidaria para uma festa com a intenção de
envenená-los.
Tendo chegado à sua aldeia, os pariát foram convidados por
Ianamá a se sentarem e ficaram conversando. No fim da conversa
foi-lhes perguntado sobre o dia da festa, ficando combinado a
presença de todos naquela mesma noite.
Ianamá ficou o dia inteiro em sua aldeia e na manhã seguinte
preparou-se com o seu povo para viajar à Aldeia Morená –a aldeia
do Sol.
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O povo e Ianamá chegaram à noite e acamparam em lugar
previamente preparado pelos pariát, próximo à Aldeia Morená.
Algum tempo após a chegada, os pariát foram convidar para a
dança Ianamá e o seu povo.
Na ocaríp, o pátio da Aldeia, os convidados dançaram o uruá e,
dentro do tapãim (Casa das Flautas), dançaram o jacuí; em
seguida, o Sol pediu que Ianamá dançasse sozinho e, após fazê-lo,
foram servidos peixe e caium a todos os convidados.
Naquela mesma noite após a festa promovida pelo Sol, os
convidados dançaram o jacuí em seu acampamento
No dia seguinte e após a pintura corporal os convidados foram
conduzidos pelos pariát para o pátio da Aldeia Morená.
Na condição de morubixaba, Ianamá sentou-se num banco,
enquanto o seu povo dançava. Após uma breve dança foram
convocados para a competição de luta.
Ao terminarem a luta o povo de Ianamá recebeu mingau e, então,
o Sol convidou Ianamá para entrar na Casa das Flautas, o tapãim.
Dentro da Casa das Flautas, o Sol indagava em intervalos de
minutos se Ianamá estava ali, se sentia bem, se ainda permanecia
ali, se ainda continuava vivo. A todas às indagações e para
decepção do Sol, Ianamá sempre respondia que estava ali, estava
bem e estava vivo, sem parar de beber o cauim com veneno.
11
Dois homens jovens se afastaram do povo de Ianamá e, vestindo
a roupa de calango e de rato levada por Ianamá, foram à casa do
Sol para transarem com a sua mulher.
Sol parece ter muitas mulheres porque, ao chegarem à sua casa,
os dois jovens homens foram recebidos por mais de uma mulher.
Ou, então, na casa do Sol estavam a sua mulher e a mulher da Lua.
De qualquer modo, os dois jovens homens foram recebidos e
aceitos pelas mulheres, entraram, transaram e retornaram à
Aldeia Morená.
Todos estavam bem: o veneno preparado pelo Sol não atingia
Ianamá e o seu povo.
Ao veneno preparado pelo Sol somente resistiam abelha e acari;
portanto, o povo de Ianamá era abelha enquanto o povo do Sol era
peixe.
Afastou-se o Sol e foi até sua casa para bater em suas mulheres;
retornou em seguida à companhia de Ianamá e por este foi
caçoado pela imprestabilidade e fraqueza do seu veneno, incapaz
de fazer mal a ele e ao seu povo.
Por dois motivos o Sol e a Lua estavam contrariados com as suas
mulheres: porque prepararam um veneno ineficaz e porque
transaram com os jovens homens convidados. E, assim
contrariados, despediram-se de Ianamá que ainda reafirmou a
impossibilidade do Sol e da Lua de matarem a ele e ao seu povo.
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No dia seguinte, Ianamá planejou a realização de uma festa e
iniciou a preparação de veneno para o Sol; tudo pronto, mandou
avisar ao Sol e à Lua que em cinco dias promoveria uma festa em
sua Aldeia, convidando-os para a mesma.
O mensageiro chegou à Aldeia Morená, e foi conduzido para o
meio da aldeia aonde, sentado num banquinho, aguardou o
morubixaba Sol.
No dia combinado, o Sol, a Lua e seu povo se dirigiram para a
aldeia de Ianamá; do mesmo modo, ao chegarem foram acampados
nas proximidades da Aldeia, tendo-lhes sido servido peixe e
beiju.
Naquela noite ficaram dançando e na manhã seguinte fizeram
suas pinturas corporais para a festa.
Mavutsinim foi ao acampamento do Sol pedir-lhe para que
fizessem uma festa bonita e sem brigas: com Mavutsinim à
frente, o Sol, a Lua e o seu povo foram para o centro da aldeia de
Ianamá.
Sol e Lua vestiram a roupa de piranha, não escondendo sua feiúra
e braveza; o pessoal dos dois também estavam vestidos de bicho
bravo.
O sábio Mavutsinim aconselha Ianamá a não sair para servir
mingau aos seus convidados, o que deveria ser feito por sua
mulher; mas o povo de Ianamá discordou do conselho de
13
Mavutsinim porque é o homem e não a mulher o responsável por
levar a comida aos convidados.
O próprio povo de Ianamá distinguiu um homem para levar o
mingau aos convidados.
Durante a refeição, Mavutsinim repetiu o apelo para que não
houvessem brigas; percebendo a raiva de todos, soprou ar de si
na direção do povo e mandou-os de volta à Aldeia Morená.
O vento do sopro de Mavutsinim, ao bater no povo do Sol e da
Lua, fez com que todos rodopiassem em direção à Aldeia do Sol,
ainda quebrando panelas e derramando o mingau.
No momento em o Sol e o povo voltavam para a sua Aldeia sob o
impacto do sopro de Mavutsinim, Ianamá ainda dizia:
O Sol não pode me matar.
Se ele é maior do que eu deveria ter achado o Jacuí.
Eu achei o Jacuí.
Sol não achou o Jacuí e por isso está bravo comigo.
Após todos estes episódios, o Sol ainda tentou matar Ianamá na
tentativa de tomar-lhe o Jacuí; mas nem o Jacuí foi tomado de
Ianamá e nem este foi morto.
*
Jacuí tanto pode ser um homem ou vários homens quanto é o
nome de suas flautas, de suas músicas, de suas danças e de seus
14
cantos. Num primeiro momento de leitura ou de narração são
tidos por espíritos-peixes ou espíritos das águas, moradores do
fundo das águas. De qualquer modo, Jacuí é símbolo arquetípitico
de masculinidade.
Ao contemplari e considerare a história narrada pelos homens
indígenas e registrada por Villas Boas percebemo-nos diante de
um mito de iniciação masculina: primeiro por causa do elemento
água, depois porque o mito fala do fundo das águas; além disso, há
moradores no fundo dessas águas e esses moradores são homens.
Porque as sociedades indígenas são dominantemente matriarcais
e comunais, a vida de um homem se forma e se desenvolve com a
vida de toda a comunidade étnica a que pertença e seguindo o
inalienável valor das Tradições; a formação e o desenvolvimento
do homem indígena, individualmente considerado, é a formação e
o desenvolvimento da sociedade indígena, sempre coletivamente
considerada.
O comunalismo e o comunitarismo milenar das comunidades
étnicas indígenas traduzem legitimamente o espírito repúblico em
seu fundamento - o interesse comum, oposto ao individualismo e
ao liberalismo.
Simbolicamente, a morada no fundo das águas pode significar o
mergulho no fundo das águas. Da mesma forma, pode ser uma
condição de vida antecipatória quando, no mundo contemporâneo,
15
homens realmente moram por algum tempo dentro dos oceanos ou
no espaço. Pela destruição das condições de vida no solo da terra,
há quem veja no fundo dos oceanos ou no espaço a possibilidade
não longínqua de residências humanas.
Aprendemos na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e no
estudo da Mitologia a significação da água, quase um sinônimo de
inconsciente: nas sociedades indígenas não existem a reificação e
o circunzoneamento de algo conceitual como o inconsciente e, por
isso, mesmo usando a palavra inconsciente esta significa energias,
forças, vivências ou experiências corpopsíquicas simbolizáveis e
não simbolizáveis, desde que símbolo seja usado no sentido
estrito junguiano e não seja sinônimo de sinal.
E, ainda: energias, forças, vivências ou experiências
corpopsíquicas simbolizadas, simbolizáveis e não simbolizáveis é
um empréstimo da teoria da personalidade de Carl Ramson Rogers
e a sua experiencial (e não experimental) noção-chave de
simbolização, mais plausível que os conceitos de representação,
de conscientização.
Utilizando-me do pensamento rogeriano direi que a simbolização
das vivências e das experiências indígenas, expressas no corpo
dos homens e das mulheres, estão sempre acessíveis e disponíveis
à corpopsique indígena: não são interceptadas e aquela
simbolização é sempre completa, adequada, correta, ou seja, há
16
congruência entre as vivências e as experiências e a simbolização
das mesmas na corpopsique. Tais vivências e experiências são
congruentes, ou seja, não estão em desacordo entre o eu indígena
que experiencia e a experiência propriamente dita. Por isso o
homem e mulher indígenas são integrados a sua personalidade
étnica sem as vulnerabilidades, as angústias, sem as ameaças e
sem os desajustamentos (desorganização) psíquicos e corporais
comuns às sociedades não indígenas aonde existem desacordos
(brutais e cruéis) entre o eu da experiência e a experiencialidade.
O homem e mulher indígenas não experienciam sentimentos de
ameaça que os fariam deformar a experiência, interceptar a
experiência ou desenvolver rigidez perceptual; ao contrário, os
homens e as mulheres não indígenas e num contexto de valores
desintegradores do patriarcado se sentem permanentemente
ameaçados e, por isso, deformam e interceptam experiências e
não raro sendo modelos lastimáveis de rigidez perceptual.
Todas essas afirmações não são gratuitas: a vida indígena, do
nascimento à morte, está instituída como promotora daquela
congruência, autenticidade e completude, mediante ritos de
passagem integrativos. Seguindo a sabedoria junguiana, não se
trata de perfeição, mas de completude: ou seja, não estou
defendendo a perfeição da civilização indígena, mas
(re)conhecendo a sua completude.
17
Voltando ao mito das flautas, o fundo das águas expressa o
inconsciente coletivo, o território do fundo de si mesmo, o
território do Self ou do centro do Si Mesmo; significa que
estamos lidando com forças mágicas, ou seja, forças
inconscientes, simbólicas, arquetípicas.
Símbolo não é sinal, não é ícone, não é representação; é coisa,
objeto, situação, pessoa ou grupo de pessoas em torno do qual e
no qual se aglutinam e se expressam forças mágicas, arquetípicas.
Mágico é o nome para tudo aquilo em que estão em jogo forças
inconscientes; magia é, pois, a capacidade ou a habilidade para
lidar com aquelas forças inconscientes. Eis o poder e a função dos
Grandes Pajés.
Morar no fundo das águas significará, no contexto do mito das
flautas, morar dentro de si mesmo, estar integrado consigo
mesmo: os Jacuí, moradores do fundo das águas, personificam o
arquétipo animi –o arquétipo da integração masculina.
As suas flautas representam o deus Falo e, daí o caráter de mito
de integração masculina; as suas músicas, as suas danças e os
seus cantos expressam a potência fálica, a força fálica e a
energia fálica integradas ou a serem integradas na personalidade
masculina. Podemos dizer da cativação, do encantamento, do
enamoramento, da fascinação do herói Ianamá pelos Jacuí, suas
flautas, seus cantos, suas músicas.
18
O som, o canto, a música das flautas enfeitiçaram, afetaram
Ianamá; as sociedades modernas e contemporâneas não formam
homens e homens integrados porque produzem deformações,
coerções e interceptações contra o enfeitiçamento, contra a
afetividade e exatamente por isso são todos esses homens
punidos com a deformação, a caricaturização, o infantilismo de
suas masculinidades. É o que fez o mundo romano com o másculo
deus grego Eros e a masculinidade não fálica e infantilizada do
deus Cupido; é o que fez o mundo grego com os másculos deuses
Hermaphrodictus e Dioniso, reduzindo-os à masculinidade
indefinida ou feminóide: as novelas, os filmes, os seriados, os
programas da mídia contemporânea são repositórios de exemplos
desses homens deformados, apesar de sua beleza física (não
fálica) e apesar do tamanho dos seus geniais e de seus músculos
ou dos esforços para representar uma sedução que não possuem.
A força de atração da masculinidade fálica integrada diante de
uma masculinidade em processo de integração é arquetipicamente
irresistível: Ianamá ouve e tacitamente quer os Jacuí e as flautas
para si.
O querer para si significa a vontade e o desejo de ter ou
descobrir em si integradas aquela energia, potência e força
fálicas.
19
Se o homem não for nesse momento adequadamente orientado e
não estiver com os homens adequados haverá distorções, desvios
e canalizações indevidas capazes de interromper, complicar e até
destruir o processo de iniciação masculina. E é exatamente isso
que tem acontecido com os homens na sociedade brasileira, tanto
adolescentes quanto jovens, adultos e até idosos.
A mais clara possibilidade de distorções é interpretar aquela
cativação fálica como desejo sexual e desejo genital por um
homem de carne e osso ou mesmo desejo sexual e genital por
mulheres, aonde estas são qualificadas de "pratos" para comer ou
"cachorras" para apanhar e lamber o dono. Em ambos os casos, o
rapaz ou o homem de qualquer idade canaliza indevidamente a
energia fálica para a energia genital, muitas vezes afogando-se
nela e mantendo-se infantilizado, bestializado.
*
Ao longo dos dias em sua atividade de pescar Ianamá vem ouvindo
o som e a música de flautas, vindos no fundo das águas. Ele não vê
quem toca mas ouve a música e o canto vindo do fundo das águas.
"Vem ouvindo" é gerúndio; estamos num processo.
Ianamá está cativado pela expressão fálica dos outros homens,
simbolizados nos sons dos cantos e das músicas das flautas,
ouvidos no fundo das águas: está num processo de iniciação
masculina num ciclo de sua vida adulta e, por isso, está
20
diariamente na sua atividade de pescar. Ele não está aprendendo
a pescar para integrar-se a si mesmo; está usando o seu
aprendizado de pesca já desenvolvido noutros ciclos de seu
desenvolvimento como instrumento de integração.
O morubixaba Ianamá tem o seu Kranhãnhã, o seu pesqueiro, e
têm ouvido músicas de flautas vindas do fundo das águas.
A pescaria no kranhãnhã de Ianamá é o momento do encontro de
homens e encontro de um homem consigo mesmo.
A cativação fálica pelos sons e músicas das flautas o fazem
aprendê-las. Ou seja, Ianamá incorpora o espírito masculino
daqueles que já o possuem integrados em si. Ele ainda não os têm
completamente integrados mas, pelo seu aprendizado em
contemplari e considerare, permite-se cativar e incorporar aquele
espírito fálico a ser formado e desenvolvido dentro dele mesmo.
Qualquer recusa à cativação fálica significa destruição do
homem, de sua masculinidade ou do processo de iniciação:
estamos lidando com o deus Falo cujas expressões tanto estão no
arquétipo do andrógino quanto no arquétipo animi.
Contrariar ou desrespeitar o deus Falo tanto pode gerar os
possíveis exageros deformantes do deus Príapo, simbolizando a
inflação masculina, quanto à autocastração simbolizada no deus
egípcio Átis, realizada em cima da árvore pinheiro.
21
Ianamá, em cativação fálica diante da música das flautas, sobe
numa árvore na tentativa de ouvir melhor aquele canto. E nessa
mesma árvore sobe várias vezes para ouvir aquela música.
Tanto na tradição mítica indígena quanto na tradição mítica de
outros povos, a árvore é símbolo do deus Falo: na expressão
simbólica judaica é Árvore da Vida e em nosso contexto de vida
masculina é árvore do conhecimento, da consciência e da
descoberta masculina; na alquimia é árvore filosofal.
A árvore é o símbolo do deus Mercúrio; Jung deu atenção
especial ao estudo desse deus: dentre os seus inúmeros símbolos
além de árvore está o de tronco de árvore e arbusto que nos
remetem às expressões míticas da potência e da força fálicas
imanentes ao deus Falo encarnado no homem.
A árvore também é símbolo do deus Príapo. E esta imagem de
Príapo é uma advertência para que o homem tenha cuidado ao ser
em si a expressão do deus Falo: o deus Príapo tanto pode
expressar potência e força fálicas integradoras quanto
destruidoras do próprio homem. Esse cuidado está expresso nos
atos de Ianamá subir algumas vezes na árvore para ouvir melhor o
som das flautas e dela descer para pescar outras tantas vezes,
voltando em seguida a subir na mesma.
Desastroso será ver no ato de subir e descer da árvore
referência ao coito, independente de qualquer orientação sexual:
22
a advertência para esse desastre possível está no próprio símbolo
dos deuses Mercúrio e Príapo como árvore.
Do ponto simbólico, a destruição secular de matas e florestas
pelos homens representa a disputa inútil dos homens modernos
com o deus Falo: inútil porque os perdedores inevitavelmente
somos nós, ainda que todas as árvores do mundo sejam
derrubadas.
Ao invés de derrubar árvores, algumas vezes Ianamá coexistia
com elas, utilizando-lhes para ampliar sua capacidade de ouvir e
de ver. Será o caso de nos perguntarmos há quanto tempo não
subimos em árvores?
Algumas vezes, Ianamá descia da árvore para flechar alguns
peixes mas, quase imediatamente, subia novamente na árvore para
ouvir melhor a música das flautas. Vejamos que Ianamá traz em si
desenvolvida a sensibilidade, sobretudo a musical.
Em cativação fálica pelo som e música das flautas procura pelo
avô Mavutsinim, narrando-lhe sobre o que vem ouvindo, a sua
sensibilidade para o que está ouvindo, a cativação fálica em que
está por aquela música e o avô esclarece tratar-se dos Jacuí.
Agora sabendo que o som e a música das flautas vêm dos Jacuí,
Ianamá pergunta a Mavutsinim sobre os meios a serem por ele
usados para pegá-los.
23
A importância do diálogo masculino pelo qual os homens entre si
expõem suas dúvidas e questões, suas experiências e
expectativas, suas vontades e desejos é uma fonte de
esclarecimentos, de atenção masculina de cuidado, de apoio mútuo
ao desenvolvimento da masculinidade.
Todos os dias, ao entardecer, Ianamá ouvia a música dos Jacuí.
O entardecer é o caminho do meio da jornada: Ianamá não é um
adolescente, é um homem maduro. É o líder da Aldeia
Tacoastsiát, ou seja, é um morubixaba, um cacique, um Maioral.
Na civilização indígena estamos falando de um homem maduro, a
partir dos 35 ou 40 anos, na "passagem do meio".
Apesar de ser um repositório de saberes fundamentais para
qualquer idade, o mito das flautas é para os homens no
entardecer da vida a que chamamos homens de meia idade, a
idade do lobo.
E é com o pensamento de um homem indígena no horizonte da
tarde que Ianamá pergunta ao avô Mavutsinim como pegar os
Jacuí tocadores de flauta com aquele som e aquela música
cativante?
Vejamos a importância do mediador masculino nesse processo
iniciático: vivendo a cativação fálica pelos Jacuí, Ianamá busca o
conselho de um homem mais velho e notadamente respeitável – o
seu avô Mavutsinim. Esse homem notadamente respeitável
24
também pode ser um grupo de homens e daí a importância da
minha sugestão para um grupo de cuidado para homens.
Em qualquer idade, o homem precisa do apoio de outros homens
mais velhos e notadamente respeitáveis: aparecerão muitos
outros homens, inclusive os colegas de escola, vizinhos, parentes,
mas é fundamentalmente essencial que sejam homens mais velhos,
notadamente respeitáveis e que já tenho em si integrados o
arquétipo animi ou, pelo menos, em processo avançado de
individuação masculina.
Se isso não acontecer e eu sei que em nossa sociedade atual
raramente isso acontece, o homem se infantiliza, se bestializa,
não desenvolve masculinidade fálica: esta é a situação da maioria
dos homens contemporâneos e é lamentável que isso seja assim
porque as conseqüências estão evidentes à nossa volta e, talvez,
em nós mesmos a todo minuto.
Eugene Monick chama aquele apoio entre homens de colegialidade
masculina. E é colegialidade porque não adianta apressar a
consecução do processo iniciático: o trágico e dramático para o
homem é retardar, interromper ou destruir o movimento da
iniciação.
E é por isso que Ianamá segue a primeira orientação do avô
Mavutsinim com tranqüilidade: orientado para fazer uma grande
25
rede, Ianamá se mantém três dias, de manhã à noite, concentrado
e dedicado ao labor para confeccionar a grande rede.
Concentração e dedicação extremas com o labor são duas
atitudes fundamentais para o desenvolvimento da criatividade e
da engenhosidade.
Fazer uma grande rede é o primeiro exercício masculino para o
desenvolvimento da criatividade e engenhosidade de Ianamá e
para as quais se entrega com concentração e dedicação extremas.
A rede, na língua tupi pyçá, além do seu caráter prático como
armadilha é uma mandala e, provavelmente, uma mandala
masculina; trabalhando três dias na confecção de uma grande
rede, Ianamá está construindo a sua mandala.
A rede indígena individual para pescar em rios e lagoas chama-se
tarrafa.
No trabalho de três dias, de manhã à noite construindo a sua
mandala, confeccionando a grande rede tarrafa, está o exercício
de tecidura da própria masculinidade: escrevo isso emocionado
porque realmente é um processo magnífico, ampla e
profundamente imanente à iniciação do homem indígena, contado
com tanta naturalidade. É uma sabedoria civilizatória magnífica,
um paradigma de formação da masculinidade quase totalmente
desconhecido no Brasil dos últimos quinhentos anos e todo esse
desconhecimento é profundamente lamentável.
26
Vejo Ianamá tecendo cuidadosamente em três dias, de manhã à
noite, a sua mandala masculina em forma grande rede: ele não
está trabalhando. Está cuidando de si: isso é laborar, cultivare a
terra de si mesmo.
De manhã à noite é um ciclo de tempo (khrónos): na civilização
indígena khrónos não é cronologia, não é uma sucessão linear de
segundos, minutos, horas... É um ciclo. O ciclo experiencial de
tempo para que Ianamá tecesse a sua rede, construísse a sua
mandala foi de três dias, de manhã à noite.
O ciclo de Ianamá abrange três horizontes: o horizonte da
manhã, o horizonte da tarde e o horizonte da noite. Ou, talvez
quatro: o horizonte da aurora, o horizonte do meio dia, o
horizonte do entardecer, o horizonte da meia noite.
O homem indígena brasileiro aprendeu, há milênios, a tecer a sua
rede assim como a aranha.
A rede indígena individual tem a mesma essência mítica que o
Labirinto grego.
O rei grego Minos, filho de Zeus, determinou a construção de um
lugar no seu palácio de Cnossos e o célebre artista ateniense
Dédalo constrói o famoso Labirinto.
Vejam a escandalosa diferença entre o homem grego e o homem
indígena: ambos, em seus respectivos mitos estão em processo de
individuação. Mas o rei Minos é patriarcal e não forma a sua rede
27
de individuação; pede a outro que o faça e esse artista, ele sim,
está em processo de integração do arquétipo animi, e por isso faz
o Labirinto e o faz magnífico. Entretanto, Minos não consegue a
sua individuação, apesar do Labirinto para colocar o Minotauro,
filho de sua esposa Pasífae que o traiu apaixonada por um touro.
Para transar com um touro, recorre à arte genial de Pasífae que
lhe fabrica uma novilha perfeita de bronze, dentro da qual entra
e transa com aquele touro de seu próprio marido. Nasce, então o
Minotauro, colocado dentro do Labirinto.
Ao contrário dessa história grega, também magnífica, o homem
indígena brasileiro que está sob nossa atenção é Ianamá: ele
pesca e a pesca é uma atividade fálica magnífica para o homem
em seu processo de individuação.
A vara de pescar simboliza o deus Falo a que o próprio homem
faz de si porque prepara a vara para pescar e com ela
(representando o deus Falo que o próprio homem encarna em si
pelo seu pênis) fisga, pesca o que lhe será fundamental no
processo individuante: durante a pesca, o homem aprende a
contemplari e a considerare e é por isso que fica em absoluto
silêncio, olhando para a água, lançando sua vara e mergulhando a
linha na água, mantendo-a cuidadosamente tesa com o fio do anzol
mergulhado e na ponta do qual está a isca que ele coletou ou
extraiu da terra, armazenou, cuidou e enfiou no anzol. E, assim
28
mergulhado o anzol com a minhoca (outro símbolo do deus Falo)
até que acontece a Presença e o homem traz para si peixe, anzol,
minhoca e vara.
Vejam quantos processos masculinos de criatividade e de
engenhosidade, quantas forças inconscientes estão em jogo na
pescaria aonde as capacidades de concentração e de dedicação
são desenvolvidas: e é isso que Ianamá está fazendo, todos os
dias. E, ouvindo as flautas de Jacuí se aproximarem e se
afastarem, se aproximarem e se afastarem com o seu som e com
a sua mágica: vêm do fundo das águas, aproximam-se do barco e
se afastam, voltando para o fundo das água. E tanto vem e vão
diariamente que Ianamá aprende seus sons, suas músicas, passa a
conhecer os seus movimentos de aproximação e de afastamento.
Tudo isso mostra a atividade de pescar como uma atividade
fálica, propícia à iniciação masculina com seu caráter
fundamentalmente pedagógico e não para pegar peixes.
A questão não é pegar peixes, deixar "cair no anzol", mas é o
aprendizado do contempari, do considerare, do silêncio, da
concentração, da espera... Hábitos de cuidado.
E ainda mais um aprendizado: o mito indígena das flautas nesse
processo de individuação masculina de Ianamá: ele não usa vara,
anzol, iscas e palácio. O mato, o lago, o barco e a rede são os
cenários da individuação masculina.
29
Barco e rede foram confeccionados por Ianamá porque o homem
indígena, com criatividade e engenhosidade, confecciona ele
próprio o seu barco e a sua rede: ele é o senhor do processo de
sua individuação. Não é um processo solitário porque a
colegialidade masculina forma a rede de companheiros apoiadores
e a individuação do homem indígena significa coesão sociopolítica
para toda a coletividade: esta é mais uma diferença fundamental
e um ensino indígena para a contemporaneidade.
O homem não é uma individualidade-estrela: é um companheiro de
viagem humana cuja jornada é comunitária.
A sabedoria expressa no significado mítico da rede pode ser
revelado e partilhado com os pescadores indígenas do Brasil.
O aprendizado indígena inicia-se na infância para a pesca de
subsistência, incluindo-se a produção dos instrumentos para a
atividade pesqueira e a técnica de pescar: meninos de três ou
quatro anos já são exímios pescadores para a idade.
Apesar da variável importância para todo homem indígena o
aprendizado e o trabalho de caçar, de coletar e cultivar vegetais,
o trabalho de pescar e o alimento da pesca são fundamentais.
Para o trabalho de pescar, o menino e todos os homens jovens,
adultos e velhos aprendem várias outras artes: a arte da procura,
da extração e da coleta de mineral ou animal para fazer os
instrumentos de pesca; a arte de nadar e de mergulhar porque
30
também pescam com as próprias mãos; a arte de fabricar canoas,
jangadas ou barcos; a arte de fabricar arco e flecha; a arte de
fabricar rede; a arte de produzir atrativas armadilhas portáteis
e fixas; a arte de fabricar arpões ou farpões para fisgar; a arte
de pescar com vara de cipó e anzol; a arte do conhecimento dos
peixes.
Como se vê, na civilização indígena a arte de pescar é arte
pedagógica complexa para formação e desenvolvimento do homem
corporalmente integrado desde a infância.
Ianamá, portanto, era mestre de todas as artes aprendidas
desde a infância indígena de um homem.
A segunda instrução do avô Mavutsinim é para Ianamá preparar
cinco charutos: outro exercício masculino para o desenvolvimento
da criatividade e da engenhosidade, da concentração e do senso
de dedicação de Ianamá.
A criativa e engenhosa arte indígena de produzir e usar charutos
foi adotada no mundo inteiro.
Charuto é símbolo fálico, referente ao deus Falo: prepará-lo é
também preparar o próprio pênis, preparar-se para que a energia
psíquica de um homem se transforme em energia fálica cuja
potência e força está simbolizada no charuto.
Vale reafirmar: símbolo fálico não é símbolo sexual, não é símbolo
genital.
31
Na civilização indígena, o charuto também é símbolo da paz e, por
isso, o charuto indígena é um artefeito: prepará-lo significa
cultivar o tabaco, coletá-lo, levar porções para secagem em casa,
coletar folhas de palmeira para enrolar o fumo, triturar com as
mãos as folhas secas de fumo, envolver o fumo nas folhas de
palmeira, realizar o acabamento.
E, por que cinco? Seria este o número de homens que formavam o
grupo de apoio ao processo de iniciação de Ianamá? Talvez sim,
além da simbologia do número cinco.
Cada mão e cada pé humanos têm cinco dedos.
O quinto dedo da mão é o mínimo e a tradição cabalística o liga ao
coração: na mitologia grega representa o deus Hermes (o deus
masculino e romano Mercúrio). Infelizmente, na mitologia
indígena ainda não sei se corresponderia a algum deus.
O quinto chakra, centro ou plexo vital é chamado Vishuda ou
plexo da laringe, controlador da fonação e da respiração: é
qualificado de "centro da Grande Pureza" e sua energização é
feita pelo índigo. Curiosamente, o índigo é planta corante azul
domesticada e usada pelos povos indígenas brasileiros há muitos
séculos, somente notado e explorado no Rio de Janeiro em 1749
por um cirurgião francês: somente a partir de 1779 existirão
centenas de manufaturas de índigo no Brasil para atender à
demanda de Portugal. (Dean, Warren. A Ferro e fogo: a história e
32
a devastação da mata atlântica brasileira.São Paulo: Companhia
das Letras. 2002)
A cor energizante do plexo laríngeo, localizado na garganta, é o
verde-azulado.
Do ponto de vista indígena, é o plexo do som, da voz, da palavra; o
quinto tom indígena essencial mora na garganta e é exatamente a
vogal e, interpretada como a própria expressão da alma pela
palavra. O quinto tom indígena (e) é nêe-porã, a fala sagrada do
ser.
O número cinco é o número dos orixás Iemanjá, originalmente
deusa dos rios e posteriormente deusa das águas salgadas e
Oxum é a deusa das águas doces.
Estou fazendo todas essas ligações para testificar que,
quaisquer que sejam os conhecimentos e as inter-relações com
outros culturas, o avô indígena brasileiro Mavutsinim sabia o
significado do número cinco no processo de individuação masculina
quando orientou Ianamá para que preparasse cinco charutos.
A orientação foi para PREPARAR e não para pegar prontos cinco
charutos: o exercício masculino, repito, é para o desenvolvimento
da criatividade e da engenhosidade nas quais estão envolvidas as
capacidades de concentração e de dedicação.
A terceira orientação era para Ianamá preparar uma panelinha
de pimenta: até o momento não sei a significação simbólica dessa
33
panelinha de pimenta no contexto da iniciação masculina de
Ianamá. Pode ser uma criação específica de Mavutsinim para os
ritos mágicos na iniciação de Ianamá; de qualquer modo, é um
desafio de pesquisa também para o leitor e a leitora.
Uma correlação que me vem à mente é entre a orientação de
Mavutsinim para que Ianamá prepare uma panelina de pimenta
para o encontro iniciático de um homem com outros homens e a
atitude de Zeus enviando Pandora (mulher feita de argila,
modelada e animada pelo deus Hefesto) para a perdição dos
homens com a jarra de larga boca que trouxera do Olimpo e
dentro da qual continha todas as desgraças, degradações,
flagelos e calamidades atormentadoras da humanidade e que
foram lançadas sobre essa mesma humanidade porque a
curiosidade da terrivelmente bela e irresistível Pandora fez com
que esta destampasse a jarra!
Na mitologia grega temos o símbolo patriarcal do presente de
Zeus aos homens na Jarra de Pandora ou o símbolo patriarcal do
presente da deusa Perséfone, a "esposa" raptada por Hades
(Plutão), o deus ctônico das trevas brumosas nas entranhas da
terra: Perséfone dá uma caixinha à Psiqué dentro da qual
supostamente existia a beleza imortal mas que, na verdade,
continha o sono da morte. Ambas as mulheres, Pandora e Psiqué,
portaram um presente de um deus e de uma deusa; sem cuidado
34
para com as orientações dos deuses, abriram jarro e caixinha,
uma espalhando todas as desgraças no mundo e outra impondo a si
mesma o sono da morte.
Ao contrário dos ricos e terríveis presentes dos deuses gregos
aos homens e mulheres mortais, temos símbolo da panelinha de
pimenta no rito de iniciação de um homem indígena.
O barro em que Cuidado modelou a criatura humana é o mesmo
barro com que o homem e a mulher indígena modelam suas
panelas, inclusive aquela panelinha dentro da qual Ianamá colocará
pimenta.
Originárias das Américas, há inúmeros tipos de pimenta
conforme as características dos seus frutos e com as cores
verde, amarela ou vermelha: não há informações sobre qual ou
quais foram as utilizadas por Ianamá.
As propriedades das pimentas são várias: tempero picante,
estimulante secretório de saliva, produz vermelhidão, congestiona
ligeiramente a pele quando é aplicada sob a mesma, conserva
certos alimentos. Foi uma das especiarias cultivadas e coletadas
pelos povos indígenas brasileiros em toneladas, atendendo ao
mercado europeu durante a colonização portuguesa do Brasil e,
portanto, incorporada à culinária mundial.
Na ciência culinária indígena, a pimenta também é colocada
dentro de peixes e carnes para cozinhar, retirando depois do
35
cozimento um caldo com o qual preparam uma papa a que se
nomeiam mingau.
Ainda caminharemos no mito para compreender melhor a
simbólica dessa pimenta no mito das flautas.
Com as três orientações de Mavutsinim, repito, Ianamá ficou
três dias envolvido na confecção da rede individual.
O símbolo do número três na mitologia indígena e em outras
mitologias não indígenas é fundamentalmente um símbolo
arquetípico masculino, relativo ao homem.
Civilizações se ergueram fundadas no simbolismo de tríades e
trindades: as tríades divinas babilônicas (Anu, o deus do céu –Bel,
o deus da terra –Ea, o deus das profundezas particularmente do
fundo das águas; Adad, o deus do céu e da terra – Sin, a lua –
Shamash, o sol; Sin, a lua –Shamash, o sol –Ishtar, a mãe dos
deuses); a unidade divina egípcia expressa em trindade (Ka, o
deus pai; Ka, o deus filho; Ka-mutef, a força procriadora do
deus); a trindade do mito egípcio de Osíris-Horus-Ísis; as três
pessoas da trindade católica (Pai, Filho, Espírito Santo); o deus
grego Zeus teve três filhos divinos –Hermes, Dioniso e Apolo;
Dioniso, o deus transformação, tem três ciclos iniciáticos
expressos em três epítetos (Iaco, Brômio e Zagreu); Três são os
grandes imortais gregos (Zeus, o céu; Posídon, o mar; Hades, o
mundo subterrâneo).
36
A qualificação grega para o deus Hermes é Trimegisto, ou seja,
três vezes máximo.
Na tradição cristã, no monte Tabor três personagens se
encontram: Jesus, Moisés e Elias; três são as testemunhas do
encontro: Pedro, João e Tiago.
Três é o número do chakra Manipura, Hapiruraka, do umbigo ou
plexo solar, o centro vital da região umbilical que se representa
com o triângulo, com o lótus ou rosa de doze pétalas, com o fogo,
sua cor de energização é o vermelho e associa-se à visão, ao ânus
e à expansividade, às emoções, ao sistema nervoso simpático.
Na Tradição da Mitologia Indígena o três é o terceiro tom
essencial, a vogal o: é o tom do angá-mirim fogo cuja moradia é no
umbigo. Para os Grandes Pajés indígenas esse tom essencial, essa
rede plexiforme de energia chama-se Kuaracymirim, o centro
vital promotor da integração entre céu e terra, ou seja, do ser
consigo e com o mundo circundante.
O plexo ou centro umbilical, o Kuaracymirim tanto simboliza o
vínculo mãe e filho quanto é o local no corpo aonde se dá o
primeiro rito de separação dentro dos ritos de passagem na vida
do ser humano: a cicatriz umbilical resulta do corte, da cisão
entre a vida no ambiente interno do útero e a vida no ambiente
externo do mundo. O nascimento humano é um rito de passagem.
37
O relato do mito indígena de Ianamá por homens indígenas no
século XX evidencia que estes homens milenarmente cultivam a
significação simbólica de Kuaracymirim em suas vidas: por isso, no
mito indígena das flautas aparecem referências fundamentais ao
número três –o número de Kuaracymirim.
*
Na madrugada de um dia Ianamá parte para o seu Kranhãnhã (o
seu lugar de pesca) levando os três artefeitos por preparados
sob orientação de Mavutsinim. Faço questão de falar em
artefeitos e não em coisas.
O primeiro ato de Ianamá ao chegar no seu Kranhãnhã com os
três artefeitos é armar a rede e armá-la na boca do lago.
A ancestralidade simbólica e mítica da boca é conhecida por
todos. Em nosso contexto indígena, colocar ou armar a rede na
boca do lago simboliza a ligação estabelecida por Ianamá entre o
território e espaço do ambiente de seu corpo íntimo-relacional ao
território e ao espaço do ambiente do seu corpo íntimo-ambiental.
Não é um interno e outro externo, mas o íntimo de si e o íntimo
das águas, aqui simbolizando o íntimo ainda não integrado em si
mesmo: uma ligação com o seu Self e no qual a rede comparece
como mediação.
Outra imagem explicitativa de armar a sua rede na boca do lago
será a ligação entre a consciência relacional e a consciência íntima
38
de Ianamá; do ponto de vista do arquétipo animi ele está ligando
ou querendo promover a integração da sua masculinidade à sua
feminilidade.
Imageticamente, o lago, o rio ou o mar é masculino, compondo-se
das águas supostamente femininas: a imagem do uno na
diversidade e aqui está tanto a simbólica do arquétipo da
integração masculina, o animi, quanto a simbólica do arquétipo da
integração masculino e feminino, o andrógino.
Mas a água é símbolo do inconsciente e o inconsciente humano,
apesar do dogma heterossexista de Jung, não é feminino.
O inconsciente humano, ou seja, o território sélfico, é psicóide,
ou seja, andrógino.
Andrógino é o arquétipo aonde masculinidade feminilidade
masculino feminino são unidade: esse é o território do Uno
expresso pelos gregos na união do másculo deus Hermes com a
deusa Afrodite e de cuja união nasce o másculo deus
Hermaphróditus.
As deformações do másculo Hermaphróditus são expressões da
incapacidade dos homens gregos patriarcais para integrarem em
sua personalidade o arquétipo animi; daí, a relevância da mitologia
indígena diante da grega pois que aquela expressa a
concretização, a objetivação no corpo do homem indígena da sua
capacidade de integrar o arquétipo animi. E essa integração do
39
arquétipo animi no homem indígena está milenarmente expressa
em seu corpo –uma numinosa manifestação do arquétipo animi
integrado à corpopsique de um homem.
A objetivação daquela numinosidade do corpo do homem indígena
só pode ser expressa com o seu caráter in-nocens, não nocivo:
uma expressão registrada pelos portugueses como inocência
significando equivocadamente ingenuidade, pureza.
Inocência do homem –e também da mulher- indígena significa não
nocividade.
Não podemos falar, pois, em águas que são femininas, mas em
águas andróginas, referindo-nos à simbologia do inconsciente.
Essa é a diferença corpopsíquica do homem indígena em sua
cultura dominantemente matriarcal com homens não indígenas de
culturas dominantemente patriarcais e seus sistemas culturais
mecânico-causalistas-dualistas aonde o inconsciente é símbolo do
feminino.
A rede armada na boca do lago que está no karanhãnhã
(pesqueiro) de Ianamá significa exatamente o ato inaugurante do
processo ligativo para integração do arquétipo animi em sua
corpopsique: armar a rede na boca do lago e esperar é o rito
antecipatório daquela integração porque, antes do animi, o
arquétipo do andrógino deverá ser integrado.
40
Esse momento cíclico de integração do arquétipo do andrógino é
fundamental: raramente há descrição na mitologia grega de sua
consecução nos homens gregos. A maioria deles não o conseguiu a
integração do andrógino e avançar para a integração do animi.
Talvez a chamada civilização ocidental como um todo nunca tenha
conseguido a integração do arquétipo andrógino e do arquétipo
animi, justificando a quase inexistente bibliografia sobre este
último.
O fundamento do arquétipo do Andrógino é a Unidade das
Diversidades e está em inúmeros símbolos, entre os quais: o
Antropos Primordial, o Uróboro (serpente ou dragão engolindo a
própria cauda), o Ovo Cósmico, a Unidade Primordial, a Árvore
das Vidas, o Homem Zodiacal, a Prima Materia, a Pedra Filosofal,
o Mercúrio.
Na Mitologia Grega, todos os deuses andróginos simbolizam tanto
o arquétipo do andrógino (da integração masculino feminino na
corpopsique de homens e mulheres) quanto se interconectam ao
arquétipo animi (da integração masculina): não pode haver
integração do animi sem antes haver a integração do andrógino. E
isto porque aceito a tese demonstrada de Hopcke para o qual a
orientação sexual de uma pessoa ou de quaisquer grupos de
pessoas se determina pela interação complexa entre os
arquétipos do masculino, do feminino e do andrógino. Ora, para
41
que um homem integre sua masculinidade (animi) precisa formá-la
e esta formação também se interconecta à formação de sua
identidade, função e orientação sexual; a formação da orientação
sexual depende da integração do andrógino, do feminino e do
masculino. (Hopcke, Robert H. Jung, junguianos e a
homossexualidade. 2a. ed..São Paulo: Siciliano. 1993). Na verdade,
são processos cíclicos e complexos, não mecânico-causalistas.
E o paradigma histórico de integração realizada do arquétipo
animi é a individuação do homem indígena: os homens gregos e
romanos, por exemplo, tentaram aquela integração mas foram
frustrados porque, durante o processo, deformaram,
ridicularizaram ou fizeram elipse dos deuses Andróginos, sendo
por isso mesmo punidos pelo deus Falo.
Na Antigüidade grega alguns dos modelos de encarnação do deus
Falo para integração do arquétipo do Andrógino são os deuses
Mercúrio, Dioniso, Hermaphróditus, Narciso, Adônis, Príapo.
Lembrando que deuses são símbolos significantes de forças e
potências arquetípicas com suas energias em movimento, todos os
processos de transformação e de integração dessas forças,
potências e energias foram frustrados tanto na antiguidade
grega quanto na modernidade e contemporaneidade.
Os homens não têm feito outra coisa a não ser cortarem árvores
(autocastração), destruindo matas, e se afundarem na boca do
42
lago. A destruição da quase totalidade da Mata Atlântica e a
progressiva destruição da floresta Amazônica no Brasil
expressam exatamente o movimento dos homens destruindo
homens e, é óbvio, destruindo inúmeras outras vidas.
Da sexolatria e da sexolalia da contemporaneidade, vivenciadas
nas várias formas da psicopatologia do ficar e suas conseqüências
na irresponsabilidade reprodutiva, junto ao tráfico sexual de
pessoas e à mercantilização dos corpos como bem de consumo, a
imbecilização de adolescentes e jovens pelo cultivo da razão ébria
e da razão entorpecente, tudo isso são expressões histórico-
sociais de não integração e de desintegração dos arquétipos do
Andrógino e conseqüente não integração do arquétipo animi.
A destruição ou o processo destrutivo daqueles arquétipos está
evidenciada nos autocídios, nos homicídios e suas várias
expressões (infanticídio, parricídio, matricídio, feminicídio...), nos
acidentes de trânsito aleijantes ou fatais, nas várias formas e
alvos das violências.
No mito das flautas, desde o movimento de Ianamá ir para o
mato, no seu Karanhãnhã abrir a sua rede na boca do lago, subir e
descer da árvore, ouvir os Jacuí se aproximarem e se afastarem
e esperar, está revisando a integração do arquétipo Andrógino em
sua corpopsique: esta revisando porque na sua idade madura já o
tem integrado. E é por isso que os Jacuí, simbolizando o arquétipo
43
animi, tocam e Ianamá ouve-lhes o canto das flautas e por eles se
cativa, se aproximam e se afastam: é como se fosse uma
aproximação e afastamento para conferir se realmente Ianamá
têm em si integrado o arquétipo do Andrógino e reconhecê-lo
verdadeiramente apto para o novo ciclo de integração.
A boca do lago (ou do rio, de um afluente do rio, do mar), a
armação da rede na boca do lago, a espera do homem pelos peixes
é o primeiro momento cíclico masculino de possibilidade de
integração do arquétipo do andrógino: provas e testes comporão
esse primeiro momento e, sem a presença do cuidado, o homem
sucumbe. No caso de Ianamá ele está revisando todo esse
processo porque já o fez no ciclo da adolescência.
Para não sucumbir Ianamá seguiu cuidadosamente as orientações
do avô Mavutsinim que é o símbolo do Velho Sábio, desenvolveu as
artes fundamentais para desenvolvimento da masculinidade fálica,
cuidou em si mesmo dos símbolos e dos ritos da transformação de
sua energia psíquica em energia fálica, não reduziu essa energia
fálica em energia sexual e nem canalizou essa energia sexual em
energia genital. Não é um homem bestializado; ao contrário, é um
homem em processo de individuação. E, até o momento, tem
caminhado com segurança e equilíbrio, atento às orientações
protetoras do avô Mavutsinim.
Esperar pelos peixes...
44
Há vários tipos de peixes: há os que são símbolos de integração
do arquétipo do andrógino, há os que são símbolos de integração
do arquétipo animi. Do mesmo modo, há os que são símbolos dos
arquétipos anima e animus.
Entre vários outros, Ianamá mata para alimentar-se durante o
dia corvinas, tucanarés, peixes-cachorro, bicuda. Talvez estes
que foram mortos, preparados, assados e ingeridos expressem
aproximações cada vez mais integrativas do homem indígena com
os símbolos e processos do mundus archetypus, do mundo
arquetípico, até o desenvolvimento do Nous na corpopsique
masculina.
Nous, a Água Divina dos alquimistas, o Espírito Santo da igreja
católica ou os Jacuí da civilização indígena, é símbolo da razão, da
razão geradora da integralidade, da unidade intelecto sabedoria
amor.
Para comer os peixes por ele pescados importante é a referência
de que Ianamá os assou: a presença do fogo.
Fogo, tanto quanto serpente e peixe, é símbolo do Nous, de
Mercúrio, da razão, mas da razão iluminada, não dividida: a visão
patriarcal de mundo grego reduziu essa razão não aleijada à
inteligência ou capacidade de manipular o mundo com o
pensamento.
45
Uma diferença absoluta entre paradigmas de formação da
masculinidade entre a civilização indígena e a grega está na
conquista do fogo: na indígena, o morubixaba e herói civilizador
Kanassa, cuidando do interesse público, sai à procura do fogo,
vivenciando vários ritos de passagem até integrá-lo em si e
partilhá-lo com os povos indígenas; na grega, o deus Prometeu
engana e rouba de Zeus uma fagulha de fogo dos seus raios e traz
para os homens sendo por isso mesmo punido. Estamos diante de
dois paradigmas civilizatórios e dois processos de iniciação
masculina tanto opostos quanto contrapostos.
Baste-nos saber, no momento, que no contexto da iniciação
masculina o fogo, o peixe, a árvore, o Nous são um só símbolo da
energia psíquica ativada em seus processos de transformação em
energia fálica em sua potência e força fálicas.
Os peixes caídos na rede, flechados e, depois, preparados,
assados e comidos são movimentos simbólicos desse processo
ativador, transformativo e assimilador a ser realizado com
cuidado porque o que está acontecendo, durante todo o dia (que
podem ser ciclos de dias) é a integração do arquétipo do
Andrógino na corpopsique masculina.
A integração do arquétipo animi está simbolizada nos Jacuí e
estes, apesar de se aproximarem muitas vezes da rede até tocá-
la, voltam para o fundo das águas, tocando suas flautas. Sempre
46
tocando, aproximam-se de Inamá e de sua rede, mas se afastam e
voltam para a sua morada subterrânea.
Se o homem não tiver cuidado com as forças integradoras do
arquétipo do Andrógino, tais forças se voltam contra ele,
desintegrando-o, reduzindo-o, imbecilizando-o. Além disso, o não
cuidado com o arquétipo do Andrógino faz com que as forças
integradoras do arquétipo animi, apesar de se circunavegarem a
personalidade masculina, se afastem, podendo ir para o fundo das
águas e não voltar mais. Essa não volta não é desaparecimento: o
homem vai sendo inundado, vai sendo corroído por dentro num
processo simbolizado na castração e na autocastração.
Na evitação da castração e da autocastração, Ianamá continua
ouvindo por dias as flautas de Jacuí, contempla a aproximação e o
afastamento dos Jacuí, aprende suas músicas de tanto ouví-las,
até que em determinado dia ouve as flautas mais cedo do que
estava acostumado a ouví-las. Essa escuta mais cedo do que o
habitual vai sendo contínua ao longo do dia até a noite e somente
pela madrugada o canto está bem próximo da boca do lago.
É muito importante destacar esse movimento de aproximação
cada vez mais intensa e que se processa num ciclo de tempo: mais
cedo do que a hora habitual, a noite, a madrugada. O mito está
dizendo sobre a ampliação da escuta de Ianamá coincidente à
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aproximação cada vez mais intensa dos Jacuí: a integração não é
um processo técnico e tecnológico, pragmático e instantâneo.
Após um ciclo anterior de inúmeras aproximações e afastamentos
e um outro ciclo de aproximações cada vez mais intensas sem
afastamentos, somente no surgir da aurora os Jacuí entraram na
rede.
Aurora consurgens (o surgir da aurora) é aurora mística, mítica:
expressa o fechamento de um ciclo noturno e a abertura de outro
ciclo diurno numa gradação de encontro entre noite e dia; é um
despertar ou a acentuação e a amplificação do despertamento, da
iluminação.
Aurora consurgens é momento de nascimento do sol e, como tal, símbolo
da chegada e da presença da razão, daquela razão iluminada, não dividida.
Jung registra ser símbolo da revelação da luz.(Jung, Carl Gustav. Um
Mito moderno sobre coisas vistas no céu. Petrópolis: Vozes.
1988)
O registro indígena quase imperceptível da Aurora consurgens
nos remete às ligações com a mitologia grega e a deusa Aurora
com seus dedos cor-de-rosa e vestido de açafrão, cujo
despertamento leva luz aos Imortais e à humanidade num
magnífico espetáculo de luzes e cores no céu.
A deusa Aurora é a deusa que impede a ultrapassagem dos
limites da deusa Noite, aquela que abre as portas do céu, a que
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descerra as pálpebras do dia, a que inaugura a claridade a ser
continuada pelo Sol; junto aos deuses Sol, Noite e o próprio Sono,
a deusa Aurora altera a rotina, o hábito e as realidades de deuses
e de homens, impondo delimitações às faixas do tempo.
Aurora ou Eos é, na primeira geração das divindades gregas, filha
de Hiperion e Téia; portanto, irmã do deus Hélio (posteriormente
Apolo) e Selene (a Lua).
O deus e os heróis com quem Aurora se uniu foram: o deus Ares,
amante da deusa Afrodite. deus da guerra, das lágrimas, da
violência e do sangue derramado, assassino de Adônis; o gigante
herói e caçador Oríon; o herói Céfalo; o titã belo e vigoroso
Titono; e Astreu, filho de Crio e Euríbia.
No contexto mítico e simbólico da Aurora consurgens abrindo as
portas do dia, os Jacuí da mitologia indígena são o símbolo do
arquétipo animi e entram na rede de Ianamá: entram somente a
partir da Aurora porque simbolizam a luz do animi como revelação
da claridade na masculinidade de Ianamá. Realmente, o ciclo de
integração do arquétipo Andrógino estava completado na
corpopsique de Ianamá e a Aurora anuncia o novo ciclo –o de
integração do arquétipo animi.
No mesmo momento em que os Jacuí se mexem e repuxam a rede,
Ianamá puxa a rede para dentro do barco: Ianamá recolhe os
Jacuí e com eles as flautas.
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Enquanto sopra fumaça do charuto sobre as flautas comunica aos
Jacuí a sua intenção de levá-los consigo e tê-los para si.
A fumaça do charuto espargindo as flautas talvez pudesse ser
um ato indígena de narcotização dos peixes; mas a armadilha de
pesca indígena mediante tonteamento dos peixes é feita com o
suco de certos vegetais venenosos, coletados, macerados,
socados e batidos na água.
O esparzimento das flautas com fumaça do charuto não era um
ato indígena de narcotização de peixes; mesmo com a propriedade
estimulante do tabaco. a tradição indígena de fumar charuto e, ao
invés de tragar a fumaça, expelí-la, é um ato de pacificação, de
neutralização de quaisquer estímulos para brigas e rusgas. Por
isso, o charuto indígena é símbolo de paz que, quando
compartilhado entre os homens significa apreço e hospitalidade: o
uso universal da fumaça produzida por defumadores e incensos
vem da tradição indígena.
A fumaça espargida por Ianamá sobre as flautas era, pois, um
ato mítico de criação e de manutenção de ambiente de
pacificação: por isso junto e imediatamente ao ato de puxar a
rede para dentro do barco com os Jacuí expele fumaça do
charuto sobre as flautas, ao mesmo tempo esclarecendo a sua
intenção de não matá-los.
Após esse ato de pacificação, derrama pimenta sobre as flautas.
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Há na tradição indígena o hábito de preparar pimenta com sal e
ao queimar o preparado produzir fumaça para afugentar animais,
gente e males. Talvez o ato de jogar pimenta e produzir fumaça
com o charuto tenham os objetivos gerais de pacificação e de
afugentação de quaisquer males possíveis.
Recolhimento da rede no barco com os Jacuí e as flautas, sinal de
pacificação com fumaça sobre as flautas, verbalização de
intenção não maléfica, afugentação de males possíveis com
pimenta previamente preparada com sal e jogada sobre as
flautas: eis os atos indígenas de segurança, de proteção e de
cuidado que Ianamá faz a um só tempo em seu primeiro encontro
corpo a corpo com os Jacuí e suas flautas.
Um dos atos de segurança, de proteção e de cuidado é a
verbalização explícita de que a intenção não era para provocar a
morte dos Jacuí: verbalizar intenções é ato de cuidado
fundamental junto aos demais atos de segurança e de proteção.
Talvez pela não verbalização seja que várias pessoas cometem
erros, apesar das suas boas intenções: voltamos à importância de
harmonia do plexo laríngeo, o centro vital da fonação, da palavra
falada, o tom nêe-porã.
Após os atos de segurança, de proteção e de cuidado, Ianamá
parte para a sua Aldeia Tacoatsiát; seu avô Mavutsinim
reconhece os Jacuí e dá duas novas orientações: guardar as
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flautas de Jacuí e, tendo-as por modelo, fazer outras tantas
flautas de madeira.
Todas as flautas de madeira feitas de todos os paus conhecidos
por Ianamá não produziram som.
Num certo dia e a caminho da pescaria no seu Kranhãnhã, Ianamá
encontra a cutia que dá o nome dos paus que deve procurar e
fazer flautas de madeira.
Cutia, da língua tupi aku'ti, é um roedor que mede até seis
centímetros e, no Brasil, são de cinco espécies: animal silvestre
da caça indígena, sua carne é muito saborosa.
Apesar de apontar-lhe sua flecha, Ianamá não mata a cutia pois
esta lhe revela o nome das madeiras a serem buscadas para
confecção das flautas: após a revelação, presenteia o animal com
pimenta e vai à procura da madeira indicada.
Com três pedaços de madeira de irracuitáp faz flautas
produtoras de som e faz em tal quantidade que enche o tapãim, a
Casa das Flautas.
Novamente a simbólica ligada ao número três, do plexo
Kuaracymirim, também conhecido como plexo solar ou celíaco:
isso nos faz ver na busca, no encontro e no corte de três pedaços
da madeira movimentos iniciáticos de ampliação da emotividade,
da capacidade de ver e isso associado à ação estimulante ou
inibitória do sistema nervoso simpático com maior ou menor
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liberação do seu neurotransmissor, a noradrenalina, sobre a pupila
do olho, sistema circulatório, respiratório, digestivo,
genitourinário, tegumentar e medula da supra-renal. Em todos
esses movimentos está um processo de consciência e de manejo
das próprias energias corporais nas situações da vida, de
assenhoramento de si mesmo.
Após guardar na Casa das Flautas as flautas por ele mesmo
fabricadas, Ianamá pega as flautas de Jacuí e toca: todos os dias
ele toca as flautas de Jacuí.
Na mitologia indígena Ianamá é o fabricador de flautas e
flautista; na mitologia grega Hermes é o inventor da flauta de pã
que imediatamente após a sua invenção a negocia com o deus
Apolo em troca do seu caduceu, o cajado de ouro do deus Sol e
que, com Hermes, está envolto com duas serpentes em sentidos
inversos.
Ianamá não negocia com as flautas; fabricou as suas e torna-se
flautista com as flautas dos Jacuí: enquanto o homem indígena
não negocia sua masculinidade, não vende suas habilidades, não
comercia suas virtudes e artefeitos, os deus gregos trapaceiam
com tudo isso e comerciam, perdendo sua harmonia e
masculinidade.
Após o maracá, a flauta é um dos principais e milenares
artefeitos musicais fabricados e tocados pela civilização
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indígena: as mais comuns são as flautas transversas, flautas de
osso, flautas globulares nasais, flautas de pan, detalhadamente
estudadas por Travassos. (Travassos, Elizabeth. Glossários dos
instrumentos musicais. In: Ribeiro, Berta G., coordenação. Suma
etnológica brasileira: volume 3 – Arte Índia. Petrópolis:
Vozes/Finep. 1986; p.180-188)
Pode-se dizer que a civilização indígena se funda na pedagogia do
canto, da dança e da música: uma civilização celebrativa,
responsável pela socialização pedagógica daquelas artes na vida
cotidiana do homem e da mulher brasileira,
Na civilização indígena as artes do canto, da dança e da música
associam-se fundamentalmente à pedagogia celebrativa do
cotidiano, utilizadas como instituição terapêutica promotora e
mantenedora de qualidade de vida étnica.
Tão fundamental é o canto, a dança e a música na civilização
indígena que os homens e as mulheres fazem de seu próprio corpo
um instrumento musical: sobretudo para as macroetnias Tupi e
Guarani, o corpo é flauta e a harmonia ecofísica e ecocósmica
desse corpo mantém-se pelo cuidado diário com a ritmicidade
mediante a dança, a música e o canto.
O cultivo permanente do canto, da dança e da música como
instituição pedagógica, cultivada desde a infância, convenceu
milenarmente os povos indígenas de que o exercício dessas artes
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tem poder curativo: não apenas nos cerimoniais de cura espiritual
dirigidos pelos Grandes Pajés mas no cotidiano de todos os
homens e mulheres indígenas existe a consciência rítmica de que
o canto, a dança e a música são forças pedagógicas e
terapêuticas.
A fundamentalidade do canto, da dança e da música na civilização
indígena tornam o seu povo um povo celebrativo: conforme já
destaquei no capítulo dois desta obra, celebram os nascimentos
de seus filhos, os casamentos, os noivados das moças, a entrada
dos rapazes no mundo dos homens, as estações do ano, a época
das colheitas, o sucesso das pescas, as vitórias sobre etnias
hostis, festejam as lutas guerreiras, as manifestações religiosas,
a morte das pessoas. Portanto, as atividades de Ianamá de fazer
flautas e ser flautista estão dentro da instituição milenar do
canto, da dança e da música no cotidiano da civilização indígena
que introduz comunitariamente tais aprendizados pedagógicos e
terapêuticos desde a mais tenra idade de suas crianças.
A vida celebrativa dos povos indígenas integrou-se ao culto
africano dos orixás no Brasil, ampliando-lhe e dando consistência
histórica nacional aos ritos e rituais afro-brasileiros: portanto,
no campo do sincretismo, primeiro há que se (re)conhecer uma
cultura musical indígena, luso-indígena, afro-indígena e, apenas
posteriormente, uma cultura musical afrobrasileira.
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O corpo masculino de Ianamá expressa todo o resultado de
crescimento e de desenvolvimento da milenar cultura indígena do
corpo, particularmente no que se refere à característica de um
corpo culturalmente musical.