Uma Abordagem Ao Suporte Teológico Do Louvor Nos Salmos - Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

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    UMA ABORDAGEM AO SUPORTE TEOLGICO DO LOUVOR NOS SALMOS

    Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, para o Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil, em abril de 2006

    Produzi um livro intitulado A teologia dos salmos. Foi elaborado a partir de aulas que preparei para uma disciplina de mestrado em Teologia, com o mesmo ttulo. As aulas foram ampliadas, repensadas, reescritas e saiu o livro. Esta preleo no tem a ver com o material anterior. Na realidade, nem sequer o consultei. Estou realizando uma srie de estudos, em minha igreja, sobre o livro de Salmos, comentando-os um a um. O estudo apostilado e distribudo igreja. Conclumos o 129 e entraremos no 130, na semana que vem. Nestes estudos, tenho feito uma abordagem exegtica e histrica, e arranjado o material por este prisma: Como isto se adequa igreja de Cristo?. Uma de minhas queixas pregao contempornea e busca de parmetros contemporneos na Bblia o fato de que o Novo Testamento deixou de ser o eixo hermenutico para muitos intrpretes. So pessoas fascinadas pela liturgia pomposa do judasmo, e desagradadas da simplicidade crist. Ou que se refugiam no sacerdcio veterotestamentrio, em que o lder detentor do Esprito, fugindo do sacerdcio universal de todos os salvos, no Novo Testamento, que socializa a liderana. Quem quer exclusivismo refugia-se no Antigo Testamento. Mas nesta perspectiva, ele interpretado sem se compreender que parcial e submetido ao Novo Testamento. Para mim no basta dizer o que h nos salmos, mas como o que foi encontrado nos salmos foi assimilado pelo evangelho. Por isto que, apesar do ttulo, concluirei sempre com o Novo Testamento.

    Muitos dos nossos cnticos caberiam numa sinagoga. Outros caberiam em qualquer lugar, to volteis so. Mas somos cristos e no judeus, somos pastores e ministros de msica cristos. Um dia desses recebi um e-mail discordando de um ponto de vista que expendi. Normalmente no respondo. Recebo mais de 80 dirios e h gente que pede explicaes de passagens bblicas, esboos de sermes e at que eu traduza trechos da Bblia para a sua interpretao. Mas este mereceu considerao. O remetente se intitulou de rabino judaico cristo, de uma comunidade judaico crist. Perguntei o que era isso. Mas no obtive resposta. No somos judaicos cristos nem nossas comunidades so judaico crists. Somos cristos e nossa perspectiva deve ser crist.

    Nesta linha, refleti sobre o que pesquisei e produzi Analisei, como tenho feito, como um cristo, pela perspectiva do Novo Testamento. Como o louvor recebeu suporte teolgico no livro de Salmos? Como a igreja viu isto? Assim, temos aqui nossa palestra, Uma abordagem ao suporte teolgico do louvor no livro de Salmos. produto de estudo no preparo deste material, da disciplina do mestrado, do livro, dos estudos ministrados igreja, e de lecionar por mais de 30 anos a disciplina Antigo Testamento. Mesmo assim, um produto incipiente, limitado e falho. Mas que nos ajudar a pensar um pouco.

    Dividi-o em quatro reas: celebrao, as dimenses, a motivao e o conceito de Deus.

    1. A CELEBRAO DO CULTO No sempre festiva. Em muitos momentos trgica. H festa, mas h dor. H riso, mas h choro. Os salmos de imprecao mostram o choro. Neste choro h clamor por justia, como quando se diz que feliz quem arrebentar as criancinhas babilnicas nas pedras, como lemos no Salmo 137.8: Babilnia, voc ser destruda! Feliz aquele que fizer com voc o mesmo que voc fez conosco aquele que pegar as suas crianas e esmag-las contras as pedras!. Para ns soa como vingana, mas no contexto hebreu de que a punio no seria no alm, e sim aqui, pedido de justia. Mas era uma palavra desabrida expressando violncia. No apenas em nvel nacional, como no texto lido, mas em nvel individual, tambm, como lemos no Salmo 109.8-14: Seja a

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    sua vida curta, e outro ocupe o seu lugar. Fiquem rfos os seus filhos e a sua esposa, viva. Vivam os seus filhos vagando como mendigos, e saiam rebuscando o po longe de suas casas em runas. Que um credor se aposse de todos os seus bens, e estranhos saqueiem o fruto do seu trabalho. Que ningum o trate com bondade nem tenha misericrdia dos seus filhos rfos. Sejam exterminados os seus descendentes e desapaream os seus nomes na gerao seguinte. Que o SENHOR se lembre da iniqidade dos seus antepassados, e no se apague o pecado de sua me. Havia o choro pelos pecados, quer em nvel nacional, como lemos no Salmo 79.8-9 (No cobres de ns as maldades dos nossos antepassados; venha depressa ao nosso encontro a tua misericrdia, pois estamos totalmente desanimados! Ajuda-nos, Deus, nosso Salvador, para a glria do teu nome; livra-nos e perdoa os nossos pecados, por amor do teu nome), quer em nvel individual, como lemos em 51.1-2: Tem misericrdia de mim, Deus, por teu amor; por tua grande compaixo apaga as minhas transgresses. Lava-me de toda a minha culpa e purifica-me do meu pecado). Havia a repreenso aos infiis de Israel, bem como aos pagos. Havia o choro pela enfermidade e a possvel morte, sempre terrvel para o homem do Antigo Testamento, como lemos no Salmo 38.233: Pois tu tens sido o meu refgio, uma torre forte contra o inimigo. Para sempre anseio habitar na tua tenda e refugiar-me no abrigo das tuas asas, onde o salmista atribui sua doena a uma punio divina por causa de pecado.

    Havia a gratido nacional (Cuidas da terra e a regas; fartamente a enriqueces. Os riachos de Deus transbordam para que nunca falte o trigo, pois assim ordenaste. Encharcas os seus sulcos e aplainas os seus torres; tu a amoleces com chuvas e abenoas as suas colheitas - Sl 65.9-10) e tambm a individual (Coloquei toda minha esperana no SENHOR; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito de socorro. Ele me tirou de um poo de destruio, de um atoleiro de lama; ps os meus ps sobre uma rocha e firmou-me num local seguro. Ps um novo cntico na minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus. Muitos vero isso e temero, e confiaro no SENHOR- Sl 40.1-3). Havia simplesmente a contemplao: Quando contemplo os teus cus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali firmaste - Sl 8.3).

    Como se pode observar uma vasta gama de sentimentos era coberta no culto. Isto nos abre um horizonte. O culto a expresso dos sentimentos humanos diante de Deus. No como uma reunio formal em um encontro solene, no Itamarati, em que as gafes devem ficar de fora. Tudo empacotado ou conservado em formol, um rito imperturbvel, seco, pois s sua ministrao confere graa. Esta viso sacramental, de que o rito confere graa dispensa a vida e a pessoalidade. H muito culto assim, tipo sacramental.

    O culto profundamente pessoal, mesmo quando o foco a nao. Isto porque o hebreu no se via parte do grupo. A tocante orao de Esdras (Ed 9) um exemplo disto. Ele no cometeu os pecados que o povo cometeu, mas em momento algum ele diz: eles pecaram. Diz ns pecamos. H uma profunda socialidade no Antigo Testamento, que se v no culto.

    Esta socialidade se v no Novo Testamento, com as exortaes que terminam com uns aos outros. Confessem os seus pecados uns aos outros e faam orao uns pelos outros... (Tg 5.18). 1Corntios 11.33 (Portanto, meus irmos, quando vocs se reunirem para a Ceia do Senhor, esperam uns pelos outros) nos mostra que a socialidade chegava ao gape, o jantar festivo dos cristos, aqui chamado de Ceia. Mesmo que o gape em Corinto terminasse em vexame, vemos que havia um senso de comunidade. Lembremos que o gape era o final do culto. Em Romanos 1.11-12, Paulo mostra este mesmo esprito. Ele quer repartir bnos e diz que ele e a comunidade se animariam mutuamente. H mutualidade no culto cristo. No entraremos no teor das instrues de Paulo em 1Corntios 14, mas ali vemos tambm que o culto era um momento de fraternidade, em que a comunidade reunida se via ligada a um Senhor e partilhando de um mesmo tesouro espiritual, e de um mesmo destino.

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    O Novo Testamento no exorta a amaldioar, e sim o contrrio: Peam que Deus abenoe quem persegue vocs, sim, peam que ele abenoe e no que amaldioe (Rm 12.14) e No paguem a ningum o mal como mal (Rm 12.17). Aqui, uma das motivaes das oraes e dos cnticos nos salmos refutada. Mostro isto por duas questes. A primeira que o louvor da igreja deve expressar a f e a tica da igreja, e no a f e tica de Israel. O segundo que, do jeito que a coisa vai, daqui a pouco algum compor um corinho imprecatrio. Desculpem, corinho agora louvor. Um louvor imprecatrio. Devemos cantar a f crist com as motivaes crists.

    O culto pessoal, mas no intimista. No contrape idades, mas do povo como um todo. Deve-se evitar a ditadura da idade bem como a ditadura da esttica. O culto um peclio da comunidade como um todo. Mesmo na pessoalidade, Israel e a Igreja mantiveram a noo de grupo. O intimismo produz isolamento, perda de viso de histria, torna-se catarse individual. O culto no apenas celebrao festiva. Expressa a dor, a perplexidade, cria laos fraternos. pessoal, mas objetivo, no meramente subjetivo.

    No dirigir-se aos infiis e aos pagos, os salmistas mostram que o culto tambm proclama o juzo de Deus e chama ao arrependimento. O culto evangeliza. Paulo disse isso em 1Corntios 14 ao dizer que ao ouvir com clareza a mensagem de Deus, o incrdulo se converte (v. 24). O culto deve tambm anunciar as grandezas de Deus, como os proslitos viram na primeira pregao da igreja em Atos, no dia de pentecostes. O culto expressa a nossa f a Deus, aos irmos e ao mundo. Com isto, entramos no segundo tpico desta palestra.

    2. AS DIMENSES PESSOAIS DO CULTO Ouvi algum definir o culto cristo como eu diante de Deus. parte, no toda a verdade. O culto cristo envolve trs pessoas: eu, Ele (com letra maiscula para caracterizar bem quem esse ele), e os outros. Comentei no tpico anterior que no um culto intimista, mas que proclama. O intimismo sentimentaliza o culto. A abertura para outras pessoas torna o culto uma proclamao glorificadora dos atos de Deus.

    Muito do contedo dos salmos centraliza-se nos atos de Deus. O raciocnio teolgico era bem simples. Israel s existia porque Iahweh fez alguma coisa. O salmo 80 o salmo da videira, tema tambm caro a Isaas, como se v em seu captulo 5. Este tema ser retomado e reformulado por Jesus. Em Joo 15, ele a videira, e no mais Israel. Voltando aos atos de Deus por Israel, a videira transplantada e cuidada, por todo o livro de Salmos, Deus fez algo pelo povo. Fixemo-nos, para no abrirmos muito o leque, no Salmo 80.8-11: Do Egito trouxeste uma videira; expulsaste as naes e a plantaste. Limpaste o terreno, ela lanou razes e encheu a terra. Os montes foram cobertos pela sua sombra, e os mais altos cedros, pelos seus ramos. Seus ramos se estenderam at o Mar, e os seus brotos, at o Rio. Este o tema mais forte no livro de Salmos e deve ser o tema mais forte no culto: redeno.

    A redeno foi nacional. O chamado para louvar a Iahweh nacional e este louvar deve provocar um testemunho universal. Tanto que em algumas vezes o chamado ao louvor universal: Os soberanos das naes se juntam ao povo do Deus de Abrao, pois os governantes da terra pertencem a Deus; ele soberanamente exaltado (Sl 47.9). Ele tem uma soberania que as naes so chamadas a reconhecer.

    O culto nunca eu-Ele, mas eu-Ele-os outros. Eis o Salmo 45.17: Perpetuarei a tua lembrana por todas as geraes; por isso as naes te louvaro para todo o sempre. O culto devia testemunhar dos atos de Iahweh por Israel e levar as demais naes a crerem nele. uma deturpao da f de Israel que a redeno, produto da eleio, tenha se transmutado. Em vez de se

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    ver como povo de Deus, Israel viu Deus como sua propriedade. Mas o culto no devia produzir um exclusivismo e sim ser um ato de testemunho. O culto tinha finalidades missionrias, como lemos em Salmo 67: Que Deus tenha misericrdia de ns e nos abenoe, e faa resplandecer o seu rosto sobre ns, para que sejam conhecidos na terra os teus caminhos, a tua salvao entre todas as naes. Louvem-te os povos, Deus; louvem-te todos os povos. Exultem e cantem de alegria as naes, pois governas os povos com justia e guias as naes na terra. Louvem-te os povos, Deus; louvem-te todos os povos. Que a terra d a sua colheita, e Deus, o nosso Deus, nos abenoe! Que Deus nos abenoe, e o temam todos os confins da terra. O poder de Iahweh por Israel cantado e testemunhado pela nao deveria produzir a converso dos gentios.

    Nos salmos individuais, o esquema o mesmo. O eu sofre, expressa isso a Ele, e os outros vem como Ele age e ficam impressionados. No Salmo 40, o salmista relata como Deus o socorreu e proclama isso para que outros creiam: Coloquei toda minha esperana no SENHOR; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito de socorro. Ele me tirou de um poo de destruio, de um atoleiro de lama; ps os meus ps sobre uma rocha e firmou-me num local seguro. Ps um novo cntico na minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus. Muitos vero isso e temero, e confiaro no SENHOR (40.1-3). Da mesma forma, quando o eu peca, pede perdo a Ele e conta isso para os ouros. Vejamos no mais famoso salmo penitencial, o 51, ficando apenas com os versculos 1-2 e 13: Tem misericrdia de mim, Deus, por teu amor; por tua grande compaixo apaga as minhas transgresses. Lava-me de toda a minha culpa e purifica-me do meu pecado (vv. 1-2) e, a seguir: Ento ensinarei os teus caminhos aos transgressores, para que os pecadores se voltem para ti (v. 13).

    No estou dizendo nada que no saibam, mas ressalto isto: o culto tem uma dimenso interna (eu), tem uma dimenso vertical (Ele) e tem uma dimenso horizontal (o outro). No mero exerccio espiritual ou psicolgico. buscar a Deus e reparti-lo com os outros. A deturpao do pietismo, no o pietismo em si, que declara que h apenas o adorador e Deus. H contas por acertar que dizem respeito ao adorador e Deus. H aspiraes, queixas e pedidos que dizem respeito ao adorador e Deus. Mas o culto tridimensonal. A teologia e o planejamento do culto devem ter isto em mente: ele populariza nosso relacionamento com Deus.

    Esta viso missionria do culto reforada pelo fato de que o primeiro culto pblico da igreja funcional, com a presena do Esprito Santo, foi um culto evangelstico, com quase 3.000 converses. O culto no um fofocar sobre Deus, mas uma proclamao da redeno que Deus efetuou pelo seu povo. Ele redimiu Israel. Ele redimiu a Igreja. Todo culto acaba tendo e deve ter mesmo um elemento de proclamao. Submeto-me a comentrios e crticas, mas faz parte de minha perspectiva teolgica e minha igreja local assumiu isto: o culto evangeliza. O maior nmero de batismos em nossa igreja e nas que anteriormente pastoreei, foram de pessoas cujas vidas foram impactadas pelo culto. No tenho constrangimento algum em fazer apelo e perguntar quem deseja aceitar a Cristo como Senhor da sua vida. Pois o culto que a mim mais comove aquele em que eu e minha igreja conseguimos mostrar pessoa sem Jesus que vale a pena crer nele, o Grande Redentor.

    Culto no passatempo. reflexo, adorao, comunho, mas tambm proclamao e um chamado a entregar a vida ao Senhor. O culto deve produzir impacto nas vidas das pessoas e no apenas mant-las ocupadas ou entretidas. O culto a mensagem. O que foi dito aps mensagem de Pedro deve ser dito aps o culto: O que faremos? (At 2.37).Por isso culto e mensagem devem caminhar juntos. E isto ns fazemos. Muitas vezes o ttulo do culto o ttulo da mensagem. No temos uma colcha de retalhos, mas um todo que marcha que a frente, harmoniosamente. Um de nossos cultos, neste ms, teve um profundo impacto na vida das pessoas. Contive-me para no chorar. E quanto terminou, algumas palmas foram ensaiadas. No

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    de festa, porque a igreja tradicional e o pastor tambm . Mas palmas de profunda satisfao. assim que penso o culto: eu-Ele-os outros. Isto realizador.

    Assim j tangenciamos nosso terceiro tpico.

    3. A MOTIVAAO DO CULTO Alguns lampejos no tpico vencido anteciparam o contedo deste tpico. A maior motivao para o culto so os atos de Deus. Algo foi mencionado no tpico anterior, mas porque era impossvel dissociar por completo o assunto. Sem negar o fato de que a Escritura a revelao proposicional de Deus, como Schaffer gosta de dizer, cabe aqui o ttulo de um livro de Ernest Wright, O Deus que age. A Bblia a Palavra de Deus, e mais, ainda, o livro dos atos de Deus. Ele no apenas falou. Ele agiu. Iahweh o Deus agiu na histria, no tempo e no espao pelo seu povo. O povo o louva pelo que ele fez. Como mencionado anteriormente, cabe aqui o salmo da vinha, o 80, onde se mostra o Deus de Israel agindo na histria pelo seu povo.

    Tambm a ao de Deus pelo individual focada como motivao do culto, mas quero falar um pouco mais sobre a ao de Iahweh na histria pelo seu povo. A f manifestada nos dois Testamentos uma f histrica, no meramente intimista, subjetiva e sentimental. O culto celebra um evento histrico. No Antigo e no Novo Testamentos. Lembremos da palavra de Paulo, no seu famoso discurso diante de Agripa: O rei est familiarizado com essas coisas, e lhe posso falar abertamente. Estou certo de que nada disso escapou do seu conhecimento, pois nada se passou num lugar qualquer (At 26.29). Ou seja, o que ele estava pregando acontecera. E no acontecera de modo que passasse despercebido. Era notrio. Todo o discurso de Paulo apela para que Deus fizera na histria, na pessoa de Jesus. A f crist est assentada na histria. O culto deve celebrar os atos de Deus na histria, o fato de que a histria seu palco da ao e que ele age na histria. A f no pode ser reduzida a sentimentos e sensaes. Certas abordagens litrgicas transformam o cristianismo em melosidade emocional, em tagarelice sentimental. O sentido histrico da f deve ser refletido pelo culto, porque cremos que ela caminha para um ponto, em que tudo converge para Cristo. o que lemos em Efsios 1.9-10: E nos revelou o mistrio da sua vontade, de acordo com o seu bom propsito que ele estabeleceu em Cristo, isto , de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensao da plenitude dos tempos.

    Da mesma forma, a pregao do Novo Testamento no se constitui de recomendaes morais ou preceitos ticos ou filosficos. algo que aconteceu na histria, a cruz de Cristo. O culto celebra atos divinos na histria. E aponta para a consumao da histria, o fim de tudo submetido a Cristo, quando se ouvir o grito do trono: Aquele que estava assentado no trono disse: Estou fazendo novas todas as coisas! E acrescentou: Escreva isto, pois estas palavras so verdadeiras e dignas de confiana (Ap 21.5).

    O culto neopentecostal centra-se na subjetividade do adorador, em atos que Deus realizou ou teria realizado ou realizar na sua vida. A historicidade da f crist tem sido esquecida. Com isto a pregao se torna sentimental, intimista e a-histrica. O prprio uso da Bblia mostra o descaso com a histria. A Bblia deixa de ser normativa e passa a ser indicativa. Ela no a norma, mas apenas a legitimadora de prticas do grupo. Uma conseqncia desta posio que mesmo se declarando que os eventos aconteceram, eles no so relevantes para a f. O relevante a forma como aquela histria aplicada. Nesta viso hermenutica, que pe o foco no intrprete, no no texto, o texto deixa de ser relevante. Quem usa tal mtodo pode no se dar conta disto, mas os desdobramentos so inevitveis. Ser o passo seguinte. O culto neopentecostal j est sinalizando o que acontecer: existe o adorador e seu problema. Deveria dizer o adorador e Deus, mas o conceito de Deus est diludo nesta forma de neopentecostalismo, mais para uma fora espiritual que um xam pode controlar que para o Deus pessoal e relacional da Bblia.

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    Querem ver aonde isto leva? Qual a escatologia que voc j viu nas pregaes da IURD? A IURD pode t-la, pois est na sua declarao de f, mas no pregada. O senso de histria se esvai aos poucos. Nem relevante.

    O culto cristo herdou do culto judaico a mesma noo de histria que permeia as duas religies. O mundo caminha para um ponto determinado por Deus. Deus intervm na histria no apenas para que algum consiga um emprego, mas intervm e intervir definitivamente para consecuo do seu propsito. Diferentemente do culto neopentecostal, um culto cristo deve enfatizar um Deus com propsito, no manipulvel. Est se pregando e cultuando um Deus do varejo. O culto deve mostrar um Deus do atacado, que cuida do todo, no apenas da parte. Um culto cristo deve celebrar Deus como Senhor da histria. A mim, pessoalmente, os cultos mais comoventes so os que apresentam a volta de Cristo. No por escapismo, mas porque reforam em mim a sensao de que no estou numa religio que busca manipular foras espirituais para meu benefcio, mas sim que fao parte de um projeto de Deus para este mundo.

    Isto fortalece a f. O crente entende que est dentro de um projeto divino, que Deus no perdeu o controle da histria. Passa a ter uma f varonil, adulta, em que se engaja como colaborador de Deus no projeto do Senhor, e deixa de lado aquela f infantil em que a unha encrava do adorador di mais que a fome da frica.

    A perda da cruz em nosso meio alarmante. Ela tem sido substituda pela pomba. O objetivo e histrico, Cristo e sua cruz, foi substitudo pelo subjetivo, o Esprito, geralmente interpretado equivocadamente. O neopentecostal confunde sua psiqu com o Ruah. De uma viso teolgica centrada no objetivo (Cristo, a cruz, a Bblia), passamos a uma teolgica centrada nas sensaes. A liturgia neopentecostal atrai porque trata do ntimo, mas comete um erro. Deixa o histrico de lado. A liturgia crist deve ter um forte senso de histria, deve mostrar (porque a liturgia a expresso cltica da teologia) uma teologia que v o todo, e no o fragmento.

    Em outras palavras, a ortodoxia teolgica depende da viso litrgica. Os conservadores ou tradicionais (prefiro ser histrico) esto perdendo a batalha. Eles tm um ensino mais bem articulado. Os neopentecostais tm um ensino mais bem expressado. Por isto o culto precisa ser bem pensado. Ele exprime os sentimentos do adorador, glorifica a Deus, mas expressa a teologia e mostra no apenas a viso de Deus que temos, mas a viso de mundo que nutrimos. O culto deve mostrar o Deus do particular, a pessoa, mas tambm o Deus do todo, do mundo, da histria. Porque um Deus que apenas Deus do particular deixar de ser Deus e perder seu valor em pouco tempo.

    4. O CARTER DE DEUS Os atos de Deus nunca so mostrados dissociados do seu carter. A teologia nos ensina que o carter de Deus que motiva seus atos. por isso que o atributo de Deus que mais cantamos seu amor, junto a com a sua santidade. Seu amor santo. Os salmos mostram o ser de Deus junto com o seu agir.

    O salmo 136 talvez seja o que melhor explicita isto. Ele historia ao de Iahweh desde a criao at a entrada em Cana. Comea com louvor sua bondade (v. 1) e a seu poder (vv. 2-3) e depois se historia sua ao. Cada afirmao tem como resposta o refro o seu amor dura para sempre (NVI e NTLH). A Verso Revisada traduz por misericrdia. O hebraico hesed, talvez a palavra mais rica em contedo e matizes no hebraico bblico. Crabtree o traduz por amor eterno. o amor que no pode aumentar nem diminuir, que no depende do valor do

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    objeto amado, ms liga-se ao carter de quem ama. O portugus misericrdia (misere cardia, dor no corao) o que chega mais perto, mas no o explica.

    Tambm sua fidelidade conduz seu relacionamento com os homens. Esta palavra traduz ora emet, de onde nos vem amm, uma concordncia que mostra integralidade, ou emunah, que tem a idia de um carter invarivel. No Salmo 138.2, fidelidade aparece junto com seu amor: Voltado para o teu santo templo eu me prostrarei e renderei graas ao teu nome, por causa do teu amor e da tua fidelidade; pois exaltaste acima de todas as coisas o teu nome e a tua palavra. O carter santo, amoroso e imutvel de Deus garantem o seu relacionamento com seu povo. Por imutvel no se deve pensar em fixista, imobilista, mas em um carter que no apresenta traos de instabilidade.

    A questo aqui no teologizar sobre Deus, mas mostrar que seu carter fundamental para suas aes e que os salmos cantam seu carter. O culto exalta o carter de Deus, o que ele . Deus seja buscado pelo que , e no pelo que pode fazer por ns. Quando o culto pe a nfase no carter de Deus alcana seu clmax teolgico. a exaltao de Deus por causa do que Deus . Se o culto deve ser prtico, no sentido de falar de realidades, e no de abstraes, no pode ser utilitrio. De novo o problema do neopentecostalismo surge aqui: eu te dou para tu me ds. No caso especfico das ofertas, estas devem ser dadas por gratido, e no para subornar a Deus.

    O culto no ter alcanado seu propsito se apenas produziu excitao e sentimentos positivos. T-lo- alcanado se cada adorador puder dizer o que est em Joo 11.16: Ento Tom, chamado Ddimo, disse aos outros discpulos: Vamos tambm para morrermos com ele. Precisamos ter cautela para no criarmos uma comunidade interesseira. O culto deve produzir sentimentos nobres, como a gratido, a consagrao e o desejo dedar a vida por Jesus. Isto est meio dmod hoje, quando s se pensa em prosperidade. Mas Jesus questionou um grupo que o procurava, com palavras duras que devem suscitar uma reflexo nossa, neste aspecto: Quando a multido percebeu que nem Jesus nem os discpulos estavam ali, entrou nos barcos e foi para Cafarnaum em busca de Jesus. Quando o encontraram do outro lado do mar, perguntaram-lhe: Mestre, quando chegaste aqui?. Jesus respondeu: A verdade que vocs esto me procurando, no porque viram os sinais miraculosos, mas porque comeram os pes e ficaram satisfeitos (J 6.24-26).

    A nfase nos atributos de Deus faz o adorador refletir sobre quem Deus e no sobe o que ele pode fazer, pe o foco sobre a pessoa divina e no sobre suas bnos.

    Os cnticos do Apocalipse deveriam receber mais reflexo nossa no tocante aos cnticos que elaboramos e at mesmo numa teologia da liturgia. Eles conseguem juntar o carter de Deus com os atos de Deus. H dois cnticos em Apocalipse 4 e mais dois em Apocalipse 5. Entre muitos, fiquemos com estes. Apocalipse 4.8 exalta a santidade, o poder e a eternidade de Deus: Santo, santo, santo o Senhor, o Deus todo-poderoso, que era, que e que h de vir. A nfase nos atributos divinos. Apocalipse 4.11 sua dignidade e seu poder criador e sustentador: Tu, Senhor e Deus nosso, s digno de receber a glria, a honra e o poder, porque criaste todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas.

    No captulo 5, o primeiro cntico exalta a Cristo como Senhor e Intrprete da histria (ele toma o livro que traz a histria dos homens) e tambm sua obra na cruz. O que ele e o que ele fez: Tu s digno de receber o livro e de abrir os seus selos, pois foste morto, e com teu sangue compraste para Deus gente de toda tribo, lngua, povo e nao. Tu os constituste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinaro sobre a terra. A seguir vem o segundo cntico, que uma recitao com um responso, interrompidos pela declarao de Joo: Digno o Cordeiro

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    que foi morto de receber poder, riqueza, sabedoria, fora, honra, glria e louvor! Depois ouvi todas as criaturas existentes no cu, na terra, debaixo da terra e no mar, e tudo o que neles h, que diziam: quele que est assentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glria e o poder, para todo o sempre! (Ap 5.12-13). Aqui Jesus exaltado pela sua ressurreio porque est no trono, ou seja, pela sua soberania. O Cristo ressuscitado e glorificado exaltado aqui.

    Muitos cnticos so esotricos e difceis de entender: mergulhar nos teus rios, beber nos teus rios, voar nas tuas asas. Este linguajar me soa sem contedo e no me parece refletir nada de cristo. Assemelha-se mais a uma viagem espiritual. O culto no uma viagem espiritual. Os cnticos no so para produzir a sensao de que nos elevamos dos momentos aqui na terra, mas so para refletir o ser e o agir de Deus, a pessoa e a obra de Jesus. Este esoters evanglico produto de um erro: o culto centrado no adorador. A vida no culto parece ser o mais importante na vida crist. Como algum definiu, a vida crist cada vez mais algo que acontece num determinado dia, num determinado lugar, sob o comando de determinadas pessoas. O culto deve produzir maturidade espiritual para que o crente seja uma pessoa que viva sua vida crist fora do culto. Se ele refletir sobre a Divindade mais do que sobre seus sentimentos, se desfrutar mais da Divindade que de suas sensaes, isto ser possvel.

    CONCLUSO Ao chegar ao fim volto ao incio. Abordei quatro reas: celebrao, dimenses, motivao e o conceito de Deus. So, na minha viso, as quatro pilastras do culto. Sua forma, quem ele envolve, o motivo pelo qual o prestamos e quem o Deus a quem o prestamos. Este foi posto por ltimo no por ser o menos importante. Pelo contrrio, por ser o clmax. Um personagem do cenrio brasileiro, o crtico musical Nelson Motta, autor de uma frase que me chamou a ateno. Ele a proferiu ao ver o cenrio poltico brasileiro: Atualmente, no s mrito ser ignorante, como tambm pecado mortal estar entre os melhores, os mais talentosos e competentes. Tambm no cenrio evanglico se pode aplicar esta frase. Esto mediocrizando nossos cultos sob a desculpa de poder espiritual. H uma pobreza que d gosto. A Bblia a Palavra de Deus, mas uma obra literria de flego e o estilo de alguns de seus escritores fantstico. O estilo de Joo absolutamente genial. Algumas obras musicais do passado marcaram a cultura musical para sempre. A maior parte dos cnticos no durar at a prxima Copa do Mundo. Ns no podemos ser medocres. Que o Deus a quem adoramos seja glorificado foi o desejo que me norteou na confeco deste trabalho. Suceda isto em nossa vida nestes momentos de reflexo.