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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE RUBEN PIROLA FILHO A DITADURA DO MAU-HUMOR UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO EVANGÉLICO BRASILEIRO NO PERÍODO DO REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985 Orientadora: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro São Paulo 2018

UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO EVANGÉLICO …tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/4162/5/Ruben... · 2020. 3. 30. · universidade presbiteriana mackenzie . ruben pirola

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RUBEN PIROLA FILHO

A DITADURA DO MAU-HUMOR

UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO

EVANGÉLICO BRASILEIRO NO PERÍODO DO

REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985

Orientadora: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro

São Paulo

2018

2

RUBEN PIROLA FILHO

A DITADURA DO MAU-HUMOR

UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO

EVANGÉLICO BRASILEIRO NO PERÍODO DO

REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985

Dissertação de mestrado do Curso de Ciências da Religião, da Universidade Presbiteriana Mackenzie para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião

Orientadora: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro

São Paulo, 2018

3

P671d Pirola Filho, Ruben A ditadura do mau-humor: uma análise sobre o humor no movimento evangélico brasileiro no período do regime militar, dos anos 1964 a 1985 / Ruben Pirola Filho – 2018. 235 f.: il.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.

Orientador: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro Bibliografia: f. 164-168

1. Movimento evangélico 2. Humor 3. Ditadura Militar 4. Brasil 5. Cristianismo reformado I. Ribeiro, Lidice Meyer Pinto, orientador

LC BX4834.B6

Bibliotecário Responsável: Eliezer Lírio dos Santos – CRB/8 6779

4

5

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos os que insistem em

viver e a tornar essa vida tão dolorida em uma

experiência bem-humorada – para si e para os

outros. Afinal esta vida é única e não vale a pena

vivê-la com amargor, pois o Supremo Criador,

Deus, é humor!

6

AGRADECIMENTOS

A Deus e Pai do meu Senhor Jesus, a quem amo e sirvo, e que me curou do

mau-humor e que me ajuda a me manter assim e com olhos de graça diante de quem

quer que seja!

Aos meus amados pais (mãe e à memória do meu velho, inspiração e exemplo

de bom-humor). Aos familiares e em especial à minha esposa Joyce que comigo

sofreu as agruras da vida de pesquisador no Brasil, pela ajuda constante e

compreensão pelas muitas ausências. Às minhas filhas Rebeca e Raquel, genros

amados e netos Davi e Felipe, que me fazem olhar para o futuro com esperança e

...graça.

Aos meus companheiros de trabalho cristão – muitos dos quais estão presentes

nesta pesquisa e que muito deram de si para viabilizarem uma igreja cristã coerente

com o seu chamado e missão neste país (gente que muito fez – e faz – pela causa

do evangelho e os quais tenho por amigos, companheiros e sou admirador: Jaime

Kemp, Jasiel Botelho, Nelson Bomílcar, Maurão, Reverendo Evandro Silva e outros

citados nesta pesquisa), e da minha comunidade A Casa da Rocha, que me apoia e

me isentou de muitos dos meus afazeres para este trabalho.

Aos professores, desta jornada no Curso de Mestrado em Ciências da Religião

da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a minha mais profunda gratidão, em

especial à minha orientadora profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro, pela amizade e

dedicação; e aos colegas de jornada acadêmica nesses dois últimos anos e em

especial, ao apoio e incentivo da minha amiga profa Sueli Silva, do Colégio

Mackenzie.

7

Ruben Pirola Filho

A DITADURA DO MAU HUMOR - UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO EVANGÉLICO

BRASILEIRO NO PERÍODO DO REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985

RESUMO

Este estudo analisa o desenvolvimento de uma nova postura e uma consequentemente nova linguagem de propaganda religiosa surgida no movimento evangélico brasileiro durante o período do regime militar, mais bem-humorada e mais contextualizada culturalmente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pautada por referenciais no movimento, que tiveram importância capital no momento, trazendo uma contribuição nas artes – música, animação de bonecos, nas artes gráficas, na comunicação impressa e na formação de uma nova geração de fiéis – imprimindo novos padrões de comportamento, e de linguagens no âmbito da vivência religiosa. Como procedimentos metodológicos foram adotados principalmente o registro das observações com fotos, letras de músicas, e em entrevistas. A fundamentação teórica do estudo se deu sobretudo a partir dos referenciais da sociologia e da antropologia das religiões, das artes e da comunicação. As análises e interpretações dos dados revelam que o humor e a religião não devem ser separados ou vistos como irreconciliáveis. Também é possível, a partir das análises realizadas, perceber uma permanente tensão entre o humor e a religião institucionalizada, especialmente entre os que ainda desejam manter-se no poder dentro do campo religioso, mesmo à custa dos seus ideais e profissão de fé. O humor que torna leve um discurso, também ameaça os que não conseguem ver leveza ou naturalidade na relação com o Imanente, a Divindade. As análises revelam ainda que o humor pode ser um aliado poderoso na comunicação dos valores da espiritualidade e da religião cristã e que os que se aproveitaram dele, conseguiram arrebanhar mais fiéis, tocando a cultura brasileira com muito mais eficácia, antes até de terem tido acesso na mídia de massa.

Palavras-chave: cristianismo, humor, movimento evangélico, ditadura militar brasileira, cristianismo reformado.

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Ruben Pirola Filho

THE DICTATORSHIP OF THE LACK OF HUMOR - AN ANALYSIS OF HUMOR IN THE BRAZILIAN EVANGELICAL MOVEMENT DURING

THE MILITARY REGIME, YEAR 1964 1985

ABSTRACT

This study analyzes the development of a new posture and consequently a new language of religious propaganda emerged in the Brazilian evangelical movement during the period of the military regime, more humorous and better contextualized culturally. It is a qualitative research, based on references in the movement, which had a crucial importance at that time, bringing a contribution in the arts –music, puppet animation, graphic arts, print communication and also in the development of a new generation of believers – establishing new patterns of behavior and languages within the scope of religious experience. The methodological procedures adopted were mainly recording the observations with photos, musical recordings, audio records and interviews. The theoretical basis of the study was primarily based on the references of sociology and the anthropology of religions, arts and communication. Analyzes and interpretations of the data reveals that humor and religion should not be separated or viewed as irreconcilable. It is also possible, from the analyzes carried out, to perceive a permanent tension between humor and institutionalized religion, especially among those who still wish to remain in power within the religious field, even at the expense of their ideals and profession of faith. The humor that makes a speech light, also threatens those who cannot see lightness or naturalness in relation to the Immanent, the Godhead. The analysis also reveals that humor can be a powerful ally in communicating the values of spirituality and the Christian religion. Those who took advantage of it, managed to gather more followers, touching the Brazilian culture much more effectively, even before they even had access to mass media.

Keywords: Christianity, humor, evangelical movement, Brazilian military dictatorship, Reformed Christianity.

9

Sumário

Lista de ilustrações e cartuns.........................................................................10

Introdução......................................................................................................12

1. O humor como característica do ser humano e seu percurso na

história.................................................................................................15

1.1. O humor na religião cristã.............................................................20

1.2. O humor do Messias, o homem Jesus.........................................29

1.3. O humor contra o poder, na Reforma Protestante do século

XVI......................................................................................................34

2. Os evangélicos na ditadura militar – humor e resistência..................40

2.1. Os evangélicos e o humor engajado...........................................56

2.2. O cenário para um novo tempo na espiritualidade evangélica......75

3. O humor na propaganda e espiritualidade evangélica - inovação na

vivência do sagrado.............................................................................87

3.1. A contracultura cristã evangélica emerge lá fora.........................87

3.2. O imperativo missionário protestante brasileiro e os desafios da

sua cultura...........................................................................................89

3.3. Os ministérios paraeclesiásticos juvenis – o novo sopro de ar do

humor na espiritualidade evangélica...................................................94

10

3.4. Acampamentos – Os sagrados territórios de refúgio e formação da

juventude...........................................................................................115

3.5. Uma nova linguagem no ritual do serviço religioso – odres novos

para vinho novo.................................................................................124

3.6. A pregação e crítica à incoerência no humor evangélico e na

linguagem da publicidade nas metáforas visuais...............................131

4. Considerações finais....................................................................................158

Referências Bibliográficas......................................................................................165

Apêndice................................................................................................................170

11

Lista de figuras

Figura 1 - Como “De onde vêm os monges” na ótica de Lutero e Cranach.............36

Figura 2 - O contraste na fé: a paixão de Cristo e a opulência do papa...................37

Figura 3 - Cartaz de Glauco Vilas-Boas, para o VI Salão de Humor de Piracicaba em

1979.........................................................................................................................66

Figura 4 - O clima de suspeição da época................................................................69

Figura 5 - O trabalho infantil, na visão de Claudius (arquivo CECIP) ........................69

Figura 6 - Claudius e a Polícia Militar........................................................................70

Figura 7 - A aspiração do cidadão e a repressão......................................................70

Figura 8 - A glória e o luto, em visões distintas de uma mesma realidade?.............73

Figura 9 - A luz no fim do túnel na década de 1980, sob a ótica de Canini.................73

Figura 10 - A briga do cristão Canini contra o pensamento do ateu Freud..............74

Figura 11 – O humor de Canini no engajamento ecológico......................................74

Figura 12 - Visões de jornais da época....................................................................136

Figura 13 - As capas da Revista Elo, impressas em papel de luxo e em cores......137

Figura 14 - As ilustrações que usavam a linguagem da publicidade e do humor.....137

Figura 15 - Ilustração da revista que fugia à estética religiosa da época.................138

Figura 16 - As histórias em quadrinhos da publicação...........................................139

Figura 17- As histórias com referências bíblicas.....................................................141

Figura 18 - Nas aplicações do texto, situações da vida em comunidade...............142

Figura 19 - A defesa da fé num encarte da Revista Elo...........................................142

12

Figura 20 - Cartaz em formato A2 de um programa de evangelismo de 1978........143

Figura 21 - Camiseta com a linguagem da publicidade ao serviço da fé.................144

Figura 22 - Exemplo de folhetos de persuasão e de propaganda religiosa..............144

Figura 23 - Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba....................................155

Figura 24 - A adoção de mais leveza – no design e no tratamento coloquial, nas

capas de boletins....................................................................................................156

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Introdução

O humor está ligado ao nosso cotidiano, à vida em sociedade e poucos não

enxergam a sua onipresença mesmo que nos interlúdios cômicos de uma vida levada

à sério.

Esta pesquisa pretende analisar como o humor foi usado como linguagem – na

cultura e na tradição cristã, a sua vivência e o seu uso na propagação da fé nos

primórdios da história da igreja, quando a Igreja chega mesmo a classificar o humor

como uma afronta à vida penitente do fiel, apesar das afirmativas e registros bíblicos

que parecem contraporem-se à ideia, o seu uso na Reforma Protestante de 1517 e

especialmente analisamos o humor no período da ditadura militar no Brasil, uma

época não só de cerceamento das liberdades civis, e quando na sociedade, em

resistência ao clima que perdurara mais de uma década, o humor emerge com força,

refinado em produtos culturais (publicações, teatro, músicas, etc...) e na imprensa.

Fazemos uma análise da postura das igrejas protestantes históricas diante do

arbítrio, como estas, negando sua tradição e pensamento teológico, contribuem

ainda mais para o mau humor que se instaurou após a deflagração do golpe militar.

Apesar disso, este trabalho questiona como o humor se apresenta na relação com o

sagrado e analisa como ele contribuiu, estabelecendo algumas bases para o

fantástico crescimento do movimento cristão protestante e evangélico brasileiro1

1 O termo movimento cristão protestante e evangélico brasileiro, utilizado nessa dissertação, tem uma definição sociológica que se refere ao campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante europeia do século XVI, ou pertencentes ao ramo do protestantismo histórico (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista). Embora utilizemos aqui também o termo igreja evangélica, tanto para o protestantismo histórico como também para o ramo pentecostal: Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção e Universal do Reino de Deus, (MARIANO, 1999, p. 10). Nesta análise, destacamos dentro deste último grupo, a denominação das Assembleia de Deus como a maior e mais antiga denominação.

14

quando a sua pregação sai dos púlpitos e se transforma em produtos culturais

(publicações, teatro, músicas, etc...).

Analisamos ainda a validade, a compatibilidade do humor e a sua contribuição

para uma espiritualidade sadia – no compreender o sagrado; e o seu papel na

comunicação da religião, registrando alguns dos primeiros intervenientes, quando do

regime ditatorial no país, cooperaram para o grande crescimento da igreja

protestante ou evangélica brasileira.

No primeiro capítulo, conceituamos o humor, estabelecendo as diferenças de

gênero do cômico e a sua epistemologia e presença na história, analisando como foi

visto e vivido, especialmente considerando-o como característica do ser humano.

No segundo capítulo, analisamos como o humor foi presente na sociedade

durante o regime militar, usando-a como arma de resistência, analisamos ainda

como os evangélicos usaram-no de modo engajado e político-ideológico e ainda

apontamos as crises geradas por uma postura até incoerente no meio evangélico e

protestante com as suas próprias bases de fé, e que antecederam um novo tempo

na sua espiritualidade e proselitismo.

No terceiro capítulo, analisamos o humor na espiritualidade evangélica, e a

inovação na vivência e propaganda do sagrado, pesquisando os movimentos que

surgiram nos anos anteriores ao período do nosso estudo na Europa (rebeliões

estudantis na França, em 1968) e nos Estados Unidos (Jesus Movement)2 e que

influenciaram uma contracultura cristã evangélica também no nosso país, a partir da

instauração de organizações que aqui começaram a atuar, especialmente entre os

jovens, trazendo um novo ar para a espiritualidade. Dentre as suas iniciativas, esteve

2 Trataremos do movimento, no capítulo 3, 3.1. A Contracultura cristã evangélica emerge lá fora

15

a utilização estratégica de acampamentos e retiros que influenciaram gerações a

partir daquele momento, com liberdade, e o bom humor na espiritualidade e mais

ainda poderoso, numa contextualização nunca antes vista, dos valores evangélicos,

interpretados e veiculados através da produção de música, teatro, literatura e até de

humor gráfico.

Finalizando o estudo, usando como metodologia, a pesquisa qualitativa,

trazemos entrevistas exclusivas com alguns dos intervenientes que protagonizaram

uma nova era, que souberam aliar valores universais do cristianismo a uma realidade

brasileira, juntando o humor e o sagrado, e que estiveram na gênese de uma arte

cristã evangélica, reformada autóctone, tais como o pastor da Igreja Presbiteriana,

Reverendo Evandro Silva (1935), ex-palhaço, ex-humorista e escritor, que já nos

idos de 1950 já fazia humor nos palcos do país; Jasiel Botelho (1947), pastor

presbiteriano, fundador do movimento Jovens da Verdade, FLAM – Faculdade

Teológica Latino Americana, cartunista, artista plástico e humorista; Mauro Oliveira,

o Maurão (1952), artista de origem presbiteriana, escritor e compositor de humor,

com cerca de 8 DVDs e CDs gravados e animador de bonecos, o pastor e missionário

americano de origem batista; Jaime Kemp (no Brasil desde 1967), fundador da

Missão Vencedores Por Cristo, pioneiro na organização de grupos musicais que

recebiam treinamento e que por sua vez, reproduziam o modelo nas suas igrejas, e

talvez, o maior incentivador de uma nova geração de compositores e músicos

cristãos nacionais; Nelson Bomilcar (1955), pastor de origem batista, teólogo e

escritor, da primeira geração de compositores com ritmo e poesia nacionais, com

participação em mais de 300 produções musicais, e também a apresentação do

trabalho pioneiro deste pesquisador, nas Histórias em Quadrinhos e no humor gráfico

de propaganda evangélica.

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1 - O humor como característica do ser humano e seu percurso na história

O humor sempre foi visto como uma ameaça ao sagrado, uma profanação no

que toca o questionamento das verdades absolutas, especialmente na religião

institucionalizada. Mas essa é uma marca do ser humano, nos diferenciando dos

outros animais. O humor revela uma necessidade humana de sentir bem, prazer e

de se inserir socialmente. Não importa o quão introspectivo ou tímido seja alguém,

ele sempre buscará ser parte do seu meio e de estabelecer uma relação de troca

com os demais. É patente a relevância que a experiência cultural imprime no humor.

Ele não só faz rir, mas também incomoda, no sentido em que afronta e o faz

com poder tal que também aproxima até pessoas de posições e ideias conflitantes.

Colson (2002) afirma ainda que o humor pode ser construído pelo falante ao

criar efeitos de contraste entre o significado de um comentário e o contexto a que se

refere. As funções do humor são discutidas nos estudos de Freud (1905) que sugere

que seu objetivo seja: a) fazer do ouvinte/leitor um aliado contra a pessoa de quem

se deseja expressar julgamento hostil - o prazer provocado pelo riso faz com que ela

nutra simpatia, pela pessoa que o provocou; b) exteriorizar sentimentos que, do

contrário, estariam reprimidos por coibições internas; e, c) obter prazer de forma

socialmente aceita, através da exposição de outras pessoas ao ridículo. Holmes

(2000) chega a atribuir ao humor um caráter político, em que a sua ocorrência pode

estar associada ao desejo de contestar o poder de pessoas de status superior.

17

Em 2017, Jô Soares, ator, humorista e escritor brasileiro, afirmou que “o humor

é um modo de enxergar a vida, de interpretá-la”3, o que quase sempre produz

conflitos.

Na sua obra sobre o Riso, Berger (2017), percebe que esse modo de interpretar

a vida, e gerar conflitos, talvez advenha das incoerências ou incongruências

humanas. Algo tão natural como ato de enxergar, vendo, claro, para além do que se

vê. Ele define o humor desta forma

O humor – isto é, a capacidade de se perceber algo como engraçado – é

universal; não há cultura humana sem ele. [O humor] pode ser seguramente

percebido como um elemento necessário da humanidade. Ao mesmo tempo,

o que parece engraçado às pessoas, e o que elas fazem para provocar uma

resposta humorística, difere enormemente de época a época e de sociedade

a sociedade. Colocado de outra forma, o humor é uma constante

antropológica e é historicamente relativo. Ainda assim, para além ou por trás

de toda relatividade, existe um algo que o humor supostamente percebe. Este

algo é, precisamente, o fenômeno do cômico (que, se você preferir, é o

correlato objetivo do humor, a capacidade subjetiva). De suas expressões

mais simples às mais sofisticadas, o cômico é experienciado como

incongruência. (BERGER, 2017, p.347)

Sobre a funcionalidade do riso e para diferenciá-lo como um fenômeno

atribuído ao homem, o autor, citando ainda Henri Bergson, na sua obra O Riso (Le

Rire) publicado em 1900, afirma que

o riso é um fenômeno estritamente humano. Outros animais podem

demonstrar sintomas parecidos com o riso, mas apenas os seres humanos

verdadeiramente riem. E acrescenta que o riso é um fenômeno coletivo e,

portanto, tem funções sociais (BERGER, 2017, p. 73)

Ao escrever sobre o riso, Kant chegou a dar um status epistemológico à

experiência cômica, no contexto de uma teoria estética, a respeito da natureza do

3 Jornal Hoje, da Rede Globo de Televisão, às 13h53 do dia 28/11/2017

18

belo. Ele afirma que essa natureza não é apenas um processo fisiológico, mas

também uma percepção distinta da realidade. Berger reformula o conceito afirmando

que a experiência cômica, assim como a estética (talvez como uma variante desta),

fornece uma percepção da realidade diferente daquela oferecida pela razão

(BERGER, 2017, p. 62).

Do ponto de vista teórico, Berger define a sua posição, embora sem se

preocupar em oferecer uma exposição sistemática das alternativas apresentadas no

texto do seu “O Riso Redentor”. Dentre os principais grupos teóricos ou paradigmas

relativos ao estudo do humor e do riso apresentados - Berger defende a da

Superioridade, em que ao degradar outros, eleva-se o nosso próprio status, e o riso

dirigido ao infortúnio dos outros refletiria a nossa suposta superioridade, ideia que

pode ser encontrada em autores como Platão, Aristóteles, Thomas Hobbes e outros.

Apresenta-nos ainda a teoria do Alívio - defendida especialmente por Freud (1960

[1905]), que analisa o humor e o riso em termos de uma função catártica, isto é, em

termos da liberação de energia psíquica que ocorre quando rimos de algo que, de

outra forma, estaria reprimido. E por fim, a da Incongruência, às vezes chamada de

teoria da ambivalência, tem em Kant seu principal expoente e, em linhas gerais,

defende que o riso deriva de uma incongruência entre quadros de referência

distintos. Ele trouxe um status epistemológico à experiência cômica ao sugerir que

ela envolve (ou gera) uma percepção distintiva da realidade. O que provoca o riso é

a percepção de algo contraditório, isto é, uma incongruência.

Francis Hutcheson (Thoughts on Laughter – Reflexões sobre o Riso), citado

por Berger (2017, p.64) também faz a mesma proposta e sugere que o riso, é a

resposta à percepção da incongruência.

19

Ao considerar que o riso é causado pelo contraste entre a perfeição e a

imperfeição, Moses Mendelsohn (Philosophical Writings - Escritos Filosóficos, 1761),

também enfatiza a subjetividade na percepção desse contraste, concluindo que o

que faz uma pessoa rir, entristece outra.

Helmut Plessner, também citado por Berger, responde à indagação se existe

alguma incongruência subjacente que possa ser observada, acima e para além das

relativizações, num viés antropológico: O ser humano é incongruente em si mesmo

(BERGER, 2017, p.346)

Ele afirma na sua obra, que é possível que o senso de humor perceba,

reiteradamente, a incongruência inerente ao ser humano e que toda ela é,

inconfundivelmente humana, pois o homem é o único animal capaz de alguma forma,

de situar-se fora de si. Ele é o único animal capaz com capacidade de ação e não

somente comportamento. Quando o ato de equilíbrio contínuo entre ser um corpo e

ter um corpo colapsa, o corpo assume o controle e tanto o riso quanto o choro

manifestam essa queda, num processo que não é apenas físico, mas também

psicológico e todos estamos familiarizados com as consequências cômicas dessa

incongruência no nosso dia a dia, como por exemplo, quando, num culto, na igreja,

em meio à abstrações e pensamentos dos mais sublimes precisamos ir ao banheiro,

em meio ao mais solene dos momentos e isso, não pode ser experimentado por um

chimpanzé.

Mas há ainda há uma perspectiva ontológica no cômico, e Pascal a formulou

“situando o homem entre o nada e o infinito” (BERGER, 2017, p. 347), quando

olhamos para os micróbios através de um microscópio e nos sentimos imensos;

20

então olhamos através de um telescópio os astros e algumas das bilhões de estrelas

e nos vemos como insignificantes perto disso tudo e essa incongruência é percebida.

Parece-nos, que o humor invade áreas proibidas e, apesar de não parecer

sério, é a percepção mais séria dessa vida, mesmo quando caminha “longe demais”,

quando toca uma realidade que se deseja “maquiar”.

O humor parece questionar as verdades absolutas, os dogmas e as autoridades

que as encarnam. Isto, é claro, tem a resistência dos que interpretam os textos

sagrados e falam em Nome de Deus. Não é por acaso que os ditadores não admitem

o humor dos escritores e humoristas gráficos. “O poder da charge4 cria e destrói

ícones com seu simbolismo exacerbado. A função do humor é questionar o poder a

todo o momento, por isso é revolucionário” 5.

Henri Bérgson em "O riso - ensaio sobre a significação do cômico" (1980),

afirma que o riso tem um caráter social e o homem está no centro dessa

manifestação, sendo o fio condutor do humor e o seu riso o dos outros e sobre os

outros - é uma forma de libertação.

O riso, entretanto, é coisa séria. Para Platão o riso afasta o homem da

verdadeira sabedoria. “O riso e o risível seriam prazeres falsos, experimentados pela

multidão medíocre de homens privados da razão”, observa Alberti (1999, pg. 45).

Bakthin afirma

Na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário, associa-se à

violência, às interdições, às restrições. Há sempre nessa seriedade

um elemento de medo e de intimidação. Ele dominava claramente na

4 Charge é a modalidade do desenho gráfico carregado de leitura crítica, ideológica, e onde, diferente do cartum, se permite que identifique personalidades e fatos pontuais e não simplesmente representam situações do cotidiano. 5 José Alberto Lovetro, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, in Folha de São Paulo, 26.02.06.

21

Idade Média. Pelo contrário, o riso supõe que o medo foi dominado.

O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o

poder, a violência, as autoridades empregam a linguagem do riso.

(BAKTHIN, 1987, p. 78)

Mas se na cultura clássica havia a condenação, havia também quem

encontrava saúde no riso. Para Aristóteles, "O homem é o único ser vivente que ri"6.

E essa premissa gozava de imensa popularidade e a ela atribuía-se um sentimento

ampliado: o riso era considerado como o privilégio espiritual supremo do homem,

inacessível às outras criaturas. Para Hipócrates, teorizando sobre o riso, fazia

observações sobre a importância da alegria e do entusiasmo do médico e dos

pacientes no tratamento das doenças (BAKTHIN, 1987, p. 58)

1.1. O humor na religião cristã

E a religião? Como ela encara o riso, a galhofa, o escárnio? Especialmente na

cristã, sempre foi visto com reservas e não poucos autores são unânimes em negar

a sua existência nesse meio, onde as noções de pecado, de transgressão, em face

ao juízo divino não parecem aceitar bem a afronta que o humor representa. A virtude

tal como a define a religião cristã não permite o riso como o faz algumas religiões

como o budismo em que suas estátuas de Buda se apresentam risonhas.

Nietzsche afirmou que acharia o cristianismo mais crível se, ao menos os

cristãos parecessem mais redimidos. Basta que vejamos as celebrações da ceia, ou

da eucaristia, como os penitentes apresentam-se como tais, embora o memorial –

ao menos na ótica protestante – seria a da alegre redenção pelo sacrifício do

6 ARISTOTELES, Sobre a alma (De partibus animalium), livro III, cp. X

22

Cordeiro de Deus, o Cristo. Pois o pensador e filósofo alemão certamente tinha isso

em mente, quando usava chamar a sua filosofia anticristã de “ciência alegre”.

Berger chegou a afirmar que “não parece haver nenhuma história geral do

humor na história cristã” (BERGER, 2017, p. 330).

A constatação que “o cristianismo é pouco propício ao riso” e que ele não seria

natural nessa religião, séria por excelência, Georges Minois - o autor de História do

Riso e do Escárnio – afirma categórico que as suas origens, os seus dogmas e a sua

história o provam (MINOIS, 2003, p. 111).

Desde o Antigo Testamento, os hebreus já registravam anedotas do cotidiano

e em outras religiões isso nunca esteve longe da aparente indissociável sisudez da

“pregação oficial”. Desde os primórdios parece-nos que o homem responde alguns

dos seus desafios existenciais pelo humor, do sarcasmo, da anedota. Em especial

no Talmude, uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das

discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo,

sendo um texto central para o judaísmo rabínico, há humor de sobra. Na escritura

que define e dá forma ao judaísmo, alicerçando todas as leis e rituais judaicos, há

piadas e jogos de palavras, a menção de rabinos usando humor para manter a

atenção de seus alunos e até cenas do cotidiano judaico. Enquanto o Pentateuco,

ou os cinco livros de Moisés (Chumash) apenas alude aos Mandamentos, o Talmud

os explica, discute e esclarece e sabidamente, há as bases para o conhecido humor

da cultura judaica.

É inegável o fato que nas escrituras do “carrancudo e irado Deus da Velha

Aliança”, há registros, que afirmam que o Todo Poderoso afinal, também ri de toda

vã pretensão – ou incongruência - da criatura finita e débil, como as dos Salmos 2

23

verso 4: “Do seu trono nos céus o Senhor põe-se a rir e caçoa deles”, ou do 37, verso

13: “o Senhor, porém, ri dos ímpios, pois sabe que o dia deles está chegando”, ou

ainda do 59, verso 8, em que o escritor sagrado atribui ao Eterno, a expectativa da

sua reação de escárnio, diante dos povos inimigos: “Mas tu, Senhor, vais rir deles;

caçoarás de todas aquelas nações”.

Mesmo quando o patriarca da fé Abrahão e sua esposa Sara riram quando,

bastante idosos, receberam o anúncio de que seriam abençoados com um filho,

numa patente reação de falta de crédito à palavra do Altíssimo, não consta que

houve da parte dos céus, nenhuma reprimenda ou condenação, em Gn 17,15; 18: 1-

15).

No livro do profeta Isaías que como todo profeta, replicava seriamente a palavra

do seu Deus, há o registro mais que irônico, atribuída ao Deus dos hebreus

“Não se assombrem, nem tenham medo. Por acaso não ouviram o

que já lhes anunciei? Porque vocês são minhas testemunhas. Por

acaso há outro Deus além de mim? Não há outra Rocha além de mim.

Não que eu saiba.” (Isaías 44:8)

Há aqui, a expressão, numa bem construída e humorada afirmação da

exclusividade do divino em que, termina numa ironia impensável para alguém que

se apresenta como único, opondo-se a si próprio, como se não o fosse. Se essa

fosse uma declaração de um fiel, certamente enfrentaria ele a fúria dos sacerdotes,

ou do povo, ao confessar a dúvida sobre a existência de outro além do Senhor de

Israel. Esse humor de contraposição de ideias, de contraste, sempre é de uma ironia

admirável, ainda mais, atribuindo-a ao Criador e Todo Poderoso.

Mas e as escrituras cristãs, neo-testamentárias, como veem o humor? Por

séculos, questionou-se se Jesus teria ou não alguma vez rido, uma vez que não se

24

encontra em todo o texto do Novo Testamento, um só registro sobre isso. Sobre ter

chorado, há memória e foi incluída, em João 11, capítulo 35, mas não de um riso do

Messias sequer. Contra ele, há registros de terem dele rido quando afirmou, em

Lucas 8:34 e 35, “Ela não está morta, mas dorme", sobre uma menina que jazia já

sem vida, pouco antes de tê-la ressuscitado. Ou quando nos seus últimos momentos

e diante do seu sofrimento na crucificação, em Lucas 23:35, quando “as autoridades

o ridicularizavam. ‘Salvou os outros’, diziam; ‘salve-se a si mesmo, se é o Cristo de

Deus, o Escolhido’".

Numa passagem emblemática, no evangelho de S. João capítulo 2, Jesus

aparece naquele que foi o seu primeiro milagre relatado, num casamento, em Caná

da Galiléia e não há qualquer nota afirmando que ele lá esteve para “oficializar” as

bodas, como parecer registrar que o seu único e plausível propósito foi o de divertir-

se com os demais convidados, para além dos noivos e, quando acabou o vinho –

símbolo bíblico da alegria – tratou ele de renovar o estoque, mesmo tendo de

transformar água – dedicada às abluções cerimoniais – em mais vinho.

Outra parte da vida de Jesus, mostra-nos o seu mais fino humor, também no

evangelho de S. João, capítulo 8, que de um modo inusitado aponta a incoerência

dos presentes, quando, próximos de apedrejarem uma mulher apanhada em

adultério, tal como exigia a lei de Moisés, escreve algo na areia. Ato contínuo,

pergunta qual dos presentes estaria sem pecado, então que fosse o primeiro a atirar

pedra contra a pecador e volta ele a escrever com o dedo na areia. O que teria Jesus

escrito na areia? Seria uma lista de pecados que, por certo sabia daqueles zelosos

da vida alheia? Fato é, que não sobrou um, além dele e da mulher, que, para além

de livrar-se do martírio, ainda recebeu dele nada além de um conselho: “vai-te, e não

peques mais!”, no verso 11. Se não houve registro de risos naquele episódio,

25

também não seria demais imaginar que quem quer que o tivesse assistido, como o

apóstolo João, o narrador, por exemplo, tivesse caído na gargalhada.

Parece-nos, entretanto, no Novo Testamento, que o riso e o escárnio, sempre

estiveram do lado dos dignos de condenação, os inimigos da fé, como em 2 Pedro

3:3: “Antes de tudo saibam que, nos últimos dias, surgirão escarnecedores

zombando e seguindo suas próprias paixões”. O texto parece nos afirmar que uma

das marcas dos condenáveis dos “últimos dias”, seria a do humor, sendo ela,

portanto, digna de rejeição. Se essa é a marca dos escarnecedores, então a tristeza,

a seriedade penitente, seria a característica dos fiéis?

O escárnio e o riso, afinal, fazem-nos crer que nas escrituras estão sempre

associados aos que se opõem à virtude e à santidade exigida aos cristãos fiéis. Mas

ao lermos com atenção, mesmo não havendo registros sobre Jesus ter rido, as suas

parábolas e metáforas estão cheias de humor refinado e de ironia. Ou até a sua

postura, quando parecia gostar de responder perguntas com outras perguntas.

Se no início, a igreja era uma comunidade de iguais, que vivia, segundo o relato

do livro dos Atos dos Apóstolos, no capítulo 2, verso 46: “Todos os dias, (...). partiam

o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade

de coração”, gerava no povo à sua volta “simpatia”, em que nos parece claro que

essa “alegria” com que viviam, denotava bom-humor e era marca daquela nova fé

que brotava, e com o passar dos tempos, pareceu desaparecer.

Pelo ano 300 da nossa era, os pais da Igreja, como São João Crisóstomo,

Tertuliano e Cipriano, levantaram-se contra os espetáculos antigos como o mimo, a

mímica e a gozação, ou burla, e Crisóstomo, afirmava categórico que o riso e a burla

não provinham de Deus, mas eram emanações do diabo, por isso, Bakthin, citando

26

Reich, afirma “o cristão devia conservar uma seriedade constante, o arrependimento

e a dor em expiação dos seus pecados” (BAKTHIN, 1987, p. 116).

Na idade média, os festejos carnavalescos ocupavam um lugar muito

importante na sociedade. Se no espaço dos templos, sagrados e sérios, não era

possível a alegria “frívola” do riso, da porta para fora, eram comuns, além dos

carnavais, a celebração da “festa dos tolos”, da “festa do asno”, e um “riso pascal”

(risus paschalis), celebração popular muito livre e consagrada pela tradição. Mas

havia ainda as festas religiosas onde se tinha um aspecto cômico popular, como na

Festa do Templo, acompanhadas por feiras, cortejos onde se exibia anões, monstros

e animais diversos.

A palavra carnaval é vem, ao que tudo indica, do latim, carnis levale, cujo

significado seria algo como “retirar a carne”. O significado está relacionado com o

jejum durante a quaresma e também com o controle dos prazeres mundanos. Isso

demonstra uma tentativa da Igreja Católica de enquadrar uma festa pagã bastante

enraizada na cultura popular e possivelmente derivadas de outras nascidas na

Antiguidade, tanto na Mesopotâmia quanto na Grécia e em Roma, o que havia de

comum nas festas e que está ligado ao carnaval, era o caráter de subversão de

papéis sociais e até, por conta das festas de origem greco-romana, como os

bacanais, festas dedicadas ao deus do vinho, Baco (ou Dionísio, para os gregos),

eram marcadas pela embriaguez e pela entrega aos prazeres da carne.

A Igreja buscou então ressignificar essas comemorações. A partir do século

VIII, com a criação da quaresma, tais festas passaram a ser realizadas nos dias

anteriores ao período religioso. A Igreja pretendia, dessa forma, manter uma época

27

para as pessoas cometerem seus excessos, antes do período da severidade da

penitência religiosa.

Mas nenhuma dessas festas ficavam sem uma organização cômica, com os

seus bufões, e os bobos, que marcavam uma tremenda diferença em relação às

normas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado Feudal.

Sobre essas festas, Bakthin pontua que elas

ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas

totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e

ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um

segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade

Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles

viviam em ocasiões determinadas.

lsso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem

levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a

consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista.

Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também

quadro evolutivo histórico da cultura europeia nos séculos seguintes.

A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no

estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos

primitivos encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua

organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que

convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia ("riso

ritual"); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos ou injuriosos;

paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos (BAKTHIN, 1987,

p.5).

Fica claro que nessas festividades, o caráter cômico libertava os seus

participantes de todo dogmatismo religioso, eclesiástico, do misticismo, e eram

desprovidos de qualquer caráter mágico ou encantatório. No carnaval,

especialmente, não havia separação entre atores e o público. Todos igualmente o

viviam, mais do que apenas o assistiam, dentro da única lei possível que durava o

28

seu período, o da liberdade. O carnaval era assim uma segunda vida do povo,

baseada no princípio do riso, sem separações de ordem hierárquicas, que

celebravam a desigualdade. Na festa popular, todos eram igualmente gente que

antes dela estavam separados. O riso ali não era produzido diante de um fato,

isolado, mas era patrimônio de todos. Seria essa uma amostra de uma sociedade

fraterna cristã tal como preconizada nos evangelhos?

Escrevendo sobre esse período, Umberto Eco, no seu romance “O nome da

Rosa”, traz-nos um enredo cheio de mistérios, de tramas e assassinatos, em que

uma obra de Aristóteles sobre o riso é guardada a sete chaves num mosteiro.

Destruindo-o, poderiam então extinguir o riso.

Ao explicar o porquê do medo do riso, o protetor da obra responde que

“O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne (...) este

livro poderia ensinar que se libertar do medo do diabo é sabedoria.

(...) O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei

é imposta pelo medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus”. (ECO,

1989, p. 487, 488).

Rabelais (1494-1553) foi, ao lado de Cervantes (1547-1616) e Shakespeare

(1564-1616), os grandes da literatura que marcaram uma mudança capital na história

do riso. A atitude em relação ao riso, estabelece as fronteiras entre o século XVII e

seguintes da época do Renascimento. Entre os séculos XVII e XVIII, a definição da

atitude era a seguinte:

o riso não pode ser uma forma universal de concepção do mundo; ele pode

referir-se apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente típicos da vida

social, a fenômenos de caráter negativo; o que é essencial e importante não

pode ser cômico; a história e os homens que a encarnam (reis, chefes de

exército, heróis) não podem ser cômicos; o domínio do cômico é restrito e

específico (vícios dos indivíduos e da sociedade); não se pode exprimir na

29

linguagem do riso a verdade primordial sobre o mundo e o homem, apenas o

tom sério é adequado; e por isso que na literatura se atribui ao riso um lugar

entre os gêneros menores, que descrevem a vida de indivíduos isolados ou

dos estratos mais baixos da sociedade; o riso é ou um divertimento ligeiro, ou

uma espécie de castigo útil que a sociedade usa para os seres inferiores e

corrompidos (BAKTHIN, 1987, pg 57).

No Renascimento, já justificavam o riso enquanto forma universal da

concepção do mundo fundamentando-se em Hipócrates, um teórico do riso em seu

gênero, que possuía um papel muito importante nessa época, pelas suas

observações sobre a importância da alegria e do entusiasmo do médico e dos

pacientes no tratamento das doenças. Outra fonte da filosofia do riso nessa época

era a célebre fórmula de Aristóteles: "O homem é o único ser vivente que ri" –

(Aristóteles, Sobre a alma - De partibus animalium, livro III, cap. X). A terceira fonte

da filosofia do riso no Renascimento é Luciano, sobretudo a personagem Menipo,

que se ri no reino de além-túmulo, que tanto influenciou Rabelais, frisa Bakthin.

Da gargalhada dos carnavais medievais à ironia dos romances renascentistas

e mesmo vitorianos, a história do humor pode bem revelar os dilemas de cada época.

Na América do Norte, a grande depressão dos anos 1930 e a baixa autoestima

da população produziram a era de ouro das Histórias em Quadrinhos com o

surgimento dos super-heróis da literatura infanto-juvenil, e no Brasil, em pleno auge

dos “anos de chumbo” da recente ditadura dos anos 1970, mais de 70% da temática

de Histórias em Quadrinhos traziam o terror. Já no final deste período, o drama

existencial tomou lugar dos assuntos políticos, de resistência e outros não pessoais.

Neste período justamente, o movimento evangélico de todos os matizes, estabelece

marcos e fundamentos para um crescimento sem igual das suas hostes ao utilizar o

humor, a crítica, a ironia para desbancar nas décadas seguintes a religião, ou a sua

30

vertente, predominante. O humor desde sempre surge como uma rebelião ao drama

humano. Uma afronta ao sofrimento. Mas não foi sempre bem quisto, especialmente

pelos que detinham o poder, o capital simbólico, a liderança religiosa.

Durante séculos, imaginamos, o riso esteve na religião, ainda que reprimida.

Na ordem religiosa, o humor era algo condenável na mesma medida em que se

impunha a obediência e submissão. Mas rir e expor ao ridículo o poder é um

fenômeno bastante conhecido. Trata-se desse riso subversivo de que falam tantas

paródias da afronta popular do colonialismo, das potencias imperialistas, do poder

do clero e da igreja e a que se refere também Bakhtin ao analisar o riso popular.

1.2. O humor do Messias, o homem Jesus

Não cremos haver maior piada que o fato de o Messias, em hebraico: משיח,

transl. Māšîªħ, Mashíach, Mashíyach, ou "Ungido", o esperado pelos judeus por

milênios, que restauraria a glória de Israel e o levaria a um patamar jamais visto pela

humanidade, veio na contramão das expectativas: Jesus, o Cristo, seria assim, o

Anti-Ele-mesmo.

O Novo Testamento cristão fala sobre a genealogia de José como da linhagem

de onde viria o “Esperado das Nações”, entretanto, Jesus, acaba por vir de uma

virgem, engravidada pelo próprio Espírito Divino e José, que era em última análise o

descendente legal de Davi e Salomão, e não a jovem esposa e genitora do Cristo,

não era o seu pai (Mat. 1:18-23). Na narrativa, acabou ele por ser adotado, num

gesto que para o D’us dos hebreus, certamente tem ainda maior valor do que o

nascimento natural, posto que ele próprio já relativizara a relação filial natural,

quando afirmou “Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que

31

cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre? Mas ainda que essa se

esquecesse dele, contudo eu não me esquecerei de ti”, em Isaías 49:15. Dentro

desta lógica, surge o primeiro grande empecilho para que os judeus nele pusessem

sua fé, uma grande e escandalosa anedota, dessas que surpreende quem espera

que uma narrativa termine conforme a lógica da sucessão de ideias e fatos.

O “Grande e Esperado de Israel”, não surge sob as luzes do poder, os holofotes

dos palcos e em honra, pompa e circunstância, como um rei, mas chega a este

mundo, pobre, perseguido e exilado e ainda por cima, oriundo de uma região

periférica à história bíblica, marginal à vida religiosa dos hebreus. E parece estar-se

nas tintas com a lógica e previsões humanas, numa suprema e tremenda gozação,

ou escárnio, para com as expectativas da criatura. Na lógica da narrativa do Novo

Testamento, o Supremo cumpre com as suas promessas, mas fá-lo, como uma

piada, de modo a zombar da previsibilidade e linearidade do pensamento comum.

Ao ser esperado pelos hebreus com todo o seu poder, o Messias escandaliza-lhes a

perspectiva e a toda a estrutura de poder da religião e as que cercam a sua liderança,

invertendo definições a afirmar categoricamente que sob a ótica do Homem Deus, o

maior é o que mais serve e não aquele que é mais servido (Lucas 22:26). Num

caminho descendente e não o contrário, seu ideal de “crescimento” e de promoção,

aponta para a criança como um ideal, aliás, um requisito supremo para quem deseja

aspirar a entrada aos céus: “Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e

disse: ‘Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como

crianças, jamais entrarão no Reino dos céus’”, segundo o evangelho de Mateus

capítulo 18, versos 2 e 3. Ao invés de esconderem-se atrás dos galões e medalhas

da espiritualidade “madura”, têm todos de se converter numa criança, o que poderia

32

ser traduzido por “de coração simples, pronto a revelar sua real condição, sem

máscaras ou fantasias sociais, humilde, sincero e porque não, bem-humorado”?

Ao invés de reclamar para si um séquito de serviçais, serve mais do que todos

e exemplifica ele próprio, o seu ideal – na sua lógica e suprema anedota – “mata-se

o santo para fazer viver o pecador”, e não o que sempre fez – e faz - a religião.

Nessa suprema sucessão de piadas, e ao lermos com rigor o Novo Testamento,

vê-se que Jesus é achado em mais registros em tavernas e mesas do que nos

templos, mais nas sombras condenadas do que nas luzes da religião. E mais: parece

nunca estar à vontade no meio dos líderes religiosos, quanto cercado de gente ruim:

bêbados, comilões e pecadores, até mesmo chegando a ser “rotulado” como um

desses (“Eis aí um homem comilão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores”,

em Mateus 11:19). Além disso, nunca usava de palavras duras contra o errado, o

“desviado”, fosse ele um penitente pecador, um publicano arrependido ou uma

prostituta condenada, fosse ainda o quebrantado de alma; antes, o fazia contra os

maiorais da religião, atacava sem piedade, o religioso, os líderes do Sinédrio, o

“atravessador” do sagrado, o médium, o sacerdote detentor da virtude ou da patente

do Imanente. Seu humor sarcástico era destilado para com os doutores da lei,

expondo-lhes as posturas incoerentes de quem pregava, exigia, mas não vivia, como

os “cães do verdureiro”, que nem comiam o produto à venda, nem deixavam que

dele se aproximassem para comer, ou como, nas palavras do Messias, esperado por

Israel, afirma: "Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o

Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar

aqueles que gostariam de fazê-lo”, em Mateus 23:13. Apesar disso, como um pai

amoroso que prefere rir-se da rebeldia ou teimosia dos filhos a destruí-los, era assim

que parece ter reagido aos “exigentes para com a vida alheia” em toda a sua vida.

33

Numa ocasião, chegou a chamar os auto-indulgentes religiosos de “filhos de

uma geração adúltera e perversa”, em Mateus capítulo 12, verso 39, num possível

eufemismo para religiosos “filhos de uma puta perversos”? Entretanto, ninguém em

tempo algum, ou houve quem, em religião alguma, apresentara como ele, o Divino,

o Imanente, o Numinoso supremo, como ...pai – o “Pai Nosso”. Num tempo em que

possivelmente, os judeus até lavavam a boca para referir-se a Deus - mesmo sem

nomeá-lo – Jesus tratou-o como Abba-Pai, em Marcos 14:36. Ao fazê-lo, dirigindo-

se a Deus como “meu Pai”, não só impressionou seus discípulos, como chocou ainda

pelo fato de utilizar a palavra aramaica Abbá, visto esse termo fazer parte do balbucio

infantil. Ora, tal feito, era para o judaísmo algo tão impensável como desrespeitoso.

Invocar o Supremo com um nome tão familiar era abominável. Na realidade, Jesus

abriu o caminho para a intimidade com Deus. Foi algo único e inaudito “Jesus ter

tomado essa iniciativa e falar a Deus como uma criança fala com o seu pai, com

simplicidade, intimidade e sem temor, o que foi seguido pelos seus discípulos e

estimulado por Paulo nas suas cartas (Gálatas 4:6 e Romanos 8:15). E que pai é juiz

e não amigo dos filhos? Qual pai não se permite e aos seus filhos o humor? Se ele

se apresentou como a Imagem do Deus-Pai, como então, esse Pai, teria reagido à

falta de fé de Pedro, como Jesus fez ao chamá-lo para fora do barco e com ele

andasse sobre as águas como descrito no episódio pelos evangelistas? Certamente

como o Cristo-homem, quando desafiou o aprendiz à fé, e socorreu-o quando este

sucumbiu, e não o repreendeu, porém não deve ter deixado disfarçar um sorriso

maroto, com toda a comicidade daquela experiência. Do contrário, como teria agido

um ser que a tudo lhe era descortinado, como os instantes e o tempo futuro e a

verdadeira – e pobre – condição humana?

34

Seguindo o raciocínio, nessa condição de onisciente, como não teria se

expressado diante da insistente apelação das irmãs de Lázaro quando este estava

profundamente enfermo e certamente morreria, contrariando a sua agenda, já cheia,

sabendo que iria ressuscitá-lo no espaço de algumas horas, ou dias, como no caso?

Com certeza rir-se-ia do nosso assombro diante da inevitabilidade e

irremediabilidade da morte. Mas a piada disso, como quem ri de uma anedota, cuja

definição pressupõe uma narrativa cujo final quebra a sua lógica e nos cria uma crise

resolvida pelo riso, ele ...chorou. E aquele choro permaneceu, lá no tal verso, o único

que ficou como história e certificação de que o “Filho de Deus” jamais sorriu, mas

deixou-nos as suas lágrimas por sina implacavelmente determinante do viver cristão

pelos séculos seguintes. Mas fica claro, patente, inconteste, supormos o contrário -

ele, certamente possuía um espírito bem-humorado.

Como não imaginar as gargalhadas, ou no mínimo o esforço por segurar o riso

quando Jesus, num humor fino, desses melhores dos nossos dias, responde a uma

questão levantada pelos principais dos sacerdotes, e os escribas e os anciãos,

querendo o provar: “"Com que autoridade estás fazendo estas coisas? Quem te deu

autoridade para fazê-las?” em Marcos 11:28 a 33

Respondeu Jesus: "Eu lhes farei uma pergunta. Respondam-me, e eu lhes

direi com que autoridade estou fazendo estas coisas. O batismo de João era

do céu ou dos homens? Digam-me! "Eles discutiam entre si, dizendo: "Se

dissermos: ‘do céu’, ele perguntará: ‘Então por que vocês não creram nele?’

Mas se dissermos: ‘dos homens’... " Eles temiam o povo, pois todos

realmente consideravam João um profeta. Eles responderam a Jesus: "Não

sabemos". Disse então Jesus: "Tampouco lhes direi com que autoridade

estou fazendo estas coisas".

35

É certo que o mais fino humor fica patente neste episódio, como previsível nos

é a reação que tiveram, não só os discípulos, o povo à volta que assistia o embate

(e cuja presença está contida na narrativa sobre o medo dos religiosos à resposta

que dariam), como a de Jesus, que não deve ter conseguido evitar uma boa risada.

O humor aproxima, mas também ameaça, na revelação da nossa humanidade

e, portanto, a nossa fraqueza, e nossas incongruências. No interior das religiões, no

campo, nas disputas pelo capital simbólico, o humor surge como uma ameaça ao

poder, às intermediações de uma classe - o clero ou sacerdócio - o que na visão

luterana ou reformada já não cabe mais7. Assim, para manter-se o status, o nomos,

não pode permitir-se o humor, antes, a regra, a frieza da distância como

normatização das relações. Ao menos era o que se supunha nos limites da religião.

1.3. O humor contra o poder, na Reforma Protestante do século XVI

Ao citar o dominicano Dominique Cerbelaud, para quem “Indubitávelmente, o

cristianismo faz a apologia da humildade, mas essa virtude não suscita hilariedade”

(CERBELAUD. 1996, p. 56), Minois afirma que segundo o autor, essa visão, contrária

ao humor que ameaça a fé permanece rechaçada pelas esferas do poder. Ele afirma

Depois de dois mil anos, o cristianismo esteve mais vezes em posição

dominante que em posição dominada; aliado íntimo dos poderes, sempre

disputou com eles posição suprema. E isso não favorece nem o humor nem

a ironia, qualidades julgadas subversivas. O tom pomposo e peremptório das

encíclicas e dos decretos conciliares o confirma: não se brinca com essas

coisas. (MINOIS. 2003, p. 124)

7 Um dos pilares capitais do pensamento reformado, é a teologia do “sacerdócio universal”, isto é, todos podem chegar-se à Deus Pai, somente pela intermediação do sacrifício de Jesus, o Cristo, dispensando-se a intermediação da Igreja, dos Santos, ou dos ...sacerdotes profissionais, ou do clero.

36

Aliás foi durante o século XVI que o poder da Igreja, e do clero foi afrontado ao

máximo – por dentro da própria igreja - por ocasião da Reforma Protestante.

Curiosamente, o reformador e monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546),

usou com esmero dois artifícios fantásticos dignos de séculos mais à frente – a

imprensa e o humor.

Usando a linguagem do riso, Lutero ousou ultrapassar os limites do espaço

sagrado da arte circunscrita aos templos da Igreja e da academia, alcançando as

ruas, feiras livres, e tabernas, copiado – sem direitos e livremente por pessoas

comuns que as ofereciam ou vendiam, propagando as propostas.

Ele usou a charge, a sátira e músicas populares (e indo às ruas valendo-se

também das cópias feitas pelas prensas – recém-inventadas - como arma) tornando

viral a sua pregação contra os “desvios” do papado de Roma.

O melhor é que o humor serve como veículo propagador mais do que a má-

notícia. Pois o riso faz até dos retratados, dos escarnecidos, os seus maiores

divulgadores. Os reformadores ao que tudo indica, tiveram dentro de Roma, os seus

maiores aliados na disseminação das suas ideias, nas bulas, nos atos, nas

reprimendas públicas que chamavam a atenção do público.

Lutero e o seu bom amigo e companheiro de anos de “pregação” contra Roma,

Lucas Cranach, chamado “o velho” (1472-1553), pintor e desenhista germânico

renascentista, autor também de gravuras e xilografias, produziram cartuns altamente

ácidos dignos de merecerem reações maiores que às da redação do Charles Abdo

de Paris recentemente. Este feito, foi capaz de espalhar por toda a Alemanha as

37

propostas do movimento, em apenas quatorze dias. E em quatro semanas, toda a

cristandade da época8.

Fonte: www.economist.com/node/21541719

8 The Economist magazine - Social media in the 16th Century - printed edition.17 de dezembro de 2011

Figura 1 - Como “De onde veem os monges” (“Where monks came from”) na ótica de Lutero e Cranach – o demônio defeca-os simplesmente.

38

Figura 2 - O contraste na fé: a paixão de Cristo e a opulência do papa. Xilogravura “Sauritts des Papsts”, de Lucas Cranach the Elder

Fonte: Biblioteca Estadual da Baviera

Martinho Lutero e a Reforma, consagraram na sua teologia, uma volta às

escrituras como “única regra de fé e prática” dos cristãos, a eliminação da

intermediação do clero (e da Igreja, dos Santos ou da Virgem Maria), bastando para

isso a fé na obra vicária de Jesus e considerando todos os fiéis como sacerdotes e

santos, iguais em natureza, abolindo as hierarquias e uma estrutura vertical de

poder. Como extensão, defenderam ainda a ideia de que o cristão seria, um “operário

de Deus”, e consideravam todo trabalho - religioso ou não, e profissão - como

vocação visando a glória de Deus. O dualismo sagrado x profano não teria assim

lugar, ou não como Roma a definia.

39

O humor das festas, do burlesco vulgar às portas dos templos, tinha

definitivamente dado lugar ao humor, do lado de dentro, engajado e seria usado

como arma da religião nos séculos seguintes.

Como afirma Minois a respeito do riso, sobretudo a partir do século XVII em

diante

O riso não é mais um sopro vital, um modo de vida; tornou-se

uma faculdade de espírito, uma ferramenta intelectual, um

instrumento a serviço de uma causa, moral, social, política, religiosa

ou antirreligiosa. Ele se decompôs em risos mais ou menos

espirituais, em risos funcionais, correspondendo a necessidades

precisas. (MINOIS. 2003; p.409).

Na Alemanha nazista, Dietrich Bonhoeffer, teólogo protestante morto pelo

regime por conspirar contra Hitler, escreveu na prisão sobre como a fé suporta a fé

na adversidade, em meio ao terror e ao medo9 - e da nossa frágil condição humana.

O riso funciona como “uma afirmação última da liberdade do espírito humano, mas

também da aceitação final da fraqueza do homem e a solução definitiva para o

problema da vida, pela negação de qualquer solução final em poder da humanidade”,

como conclui Reinhold Niebuhr, teólogo americano10.

Como veremos mais a frente, a colonização e as iniciativas missionárias no

Novo Mundo, encarregaram-se de trazer para ele, a fé sisuda, avessa ao riso e ao

humor, mesclando a mensagem religiosa com o ranço das suas culturas de origem

– da Europa ou, mais tarde da América, não conseguindo desassociar uma da outra.

9 THIEDE, Werner. Das verheissende Lachen, Humor in theologischer Perspektive. 1986, p. 127 10NIEBUHR, Reinhold. Discerning the Signs of the Times. New York: Scribner, 1946, p. IIIss

40

Na ditadura brasileira, dos anos 1964-1985, o humor teimaria em sobreviver ao

clima patrocinado pela repressão na sociedade. E, veremos a seguir, como as igrejas

de matriz reformada, acabando por sacrificar alguns dos seus mais caros ideais, por

conta de uma postura do “cuidado” ou se queremos chamar, de uma postura de

dominação, ou da manutenção do status quo, por medo da ameaça comunista e,

contrária à religião, não conseguiu ficar imune ao humor, como aliás, também não o

pode evitar, o regime militar.

41

2 - Os evangélicos na ditadura militar – humor e resistência

Os anos de grandes instabilidades sociais e que produziram rebeliões na

Europa (rebeliões estudantis na França, em 1968, a Primavera de Praga) também

não estavam assim tão distantes da efervescência política no Brasil do início dos

anos 1960, especialmente, na madrugada do dia 10 de abril de 1964, quando o humor

parece desaparecer como fumaça.

O governo de João Goulart havia sido encerrado à força por líderes civis e

militares conservadores, num golpe de estado que iria determinar as relações de

poder e o clima na sociedade brasileira pelos vinte e um anos seguintes.

Apoiados por uma boa parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários

rurais, setores conservadores da classe média e em especial, da Igreja Católica,

cujos fiéis eram a maioria da população, pediram e estimularam a intervenção militar,

objetivando pôr um ponto final à ameaça de esquerdização do governo. Essa

ameaça era algo que assustava o ocidente, muito graças à polarização política fruto

da guerra fria. Além disso, os que apoiavam o movimento, sonhavam também com

uma reorganização do cenário econômico. Naqueles dias também é importante

ressaltar, que o golpe também foi recebido com alívio pelo governo norte-americano,

satisfeito de ver que o Brasil não seguia o mesmo caminho de Cuba.

Mas rapidamente a euforia conservadora brasileira dá lugar ao clima de

apreensão com o fechamento do congresso e a prisão de centenas de políticos de

esquerda ou dos que não aceitaram passivamente o golpe. Seguiu-se a isso, um

período de repressão, de abusos aos direitos humanos, de censura e controle dos

meios de comunicação.

42

No campo religioso, a Igreja Católica continuava hegemônica, porém o

desencanto com a fé era previsível, pelas muitas divisões no seu campo - das quais

as denominações protestantes também experimentariam - conflitos e, na sequência

expurgos, eram germinados. “Conflitos” é o que Bordieu conceitua como “uma forma

particular da luta pelo monopólio”, isto é, a oposição entre a ortodoxia e a heresia,

conflito que se estabelece no subcampo dos sábios, ou os teólogos e a elite

intelectual da denominação religiosa (BORDIEU, 2005, p. 63).

Muitos grupos defendiam reformas sociais que também demandavam

mudanças nas estruturas eclesiásticas e não poucas denominações viram posições

de vanguarda como as que levaram pessoas a romperem com a Igreja, mais

reacionária a mudanças.

Desde 1950, é sabido haver processos de polarização tanto na sociedade civil

como dentro da Igreja Católica, que se dividiu, entre as alas moderada e

conservadora, com ações de caráter assistencialista; e de outro lado, a “Igreja

dos pobres” que, segundo o pensamento de Gustavo Gutiérrez, assumia uma

posição nítida em relação à luta de classes: em que não era possível negá-la e não

tomar partido em favor das classes exploradas. Segundo ele, tentar situar-se neste

“lugar” significa uma ruptura radical com o modo de viver, de pensar, de comunicar

a fé na Igreja de hoje. (GUTIÉRREZ, 1985, p. 271).

Expurgos aconteciam e novas igrejas surgiam; enquanto pessoas deixavam a

sua para aventurarem-se numa nova fé (o crescimento pentecostal e neopentecostal

já se fazia sentir), outras trocavam-nas por coisa alguma.

O conceito de campo desenvolvido por Bourdieu (2015), enfatiza a existência

de tensões, de lutas por poder dentro de cada campo. Isso se manifesta, por

43

exemplo, quando novas pessoas, novas ideias, buscam legitimar sua posição em

relação a um grupo ou a uma normativa dominante, que, por sua vez, tenta defender

a sua posição excluindo a concorrência e não legitimando o novo.

Bourdieu afirma ainda que o dominante num campo religioso é o conjunto de

pessoas que detém o capital simbólico específico desse campo, composto por

regras, crenças, técnicas, conhecimentos, história, hierarquia. Ao fazer uso desse

capital simbólico, o dominante busca manter-se no poder, fundamentando sua

autoridade com base nesse capital simbólico e tendendo à defesa da ortodoxia e à

busca pela exclusão dos recém-chegados que, então, adotam estratégias de

subversão como as da heresia, para construir a sua legitimidade própria. Naquela

altura, ter ideias progressivas era o mesmo que ser herege, numa posição que tudo

fazia para ultrapassar as fronteiras da ideologia política para fincar-se na teologia,

especificamente, conservadora.

No Brasil do interior, a fé do catolicismo rústico, mais e mais era moldada não

mais pela tradição dos pais, ou pelo reforço da solidariedade do grupo da vizinhança

que fortalecia laços e formavam comunidades, onde ritos e associações eram um

reforço de solidariedade intra-grupal e intra-familiar (QUEIROZ, 1968, p. 128), era

mais e mais confrontada pela cultura de massas chegada pelo rádio ou TV, e

também como de novas crenças como o pentecostalismo, mais ousados no uso

dessas tecnologias.

Segundo Silas Luiz de Souza, com o crescimento expressivo dos pentecostais,

a disputa pelo espaço ganhou novos atores. Denominações do protestantismo

44

histórico11 perderam muitos membros para os pentecostais e algumas, como o

presbiterianismo perderam o poder da manipulação do sagrado, minimizado

simbolicamente pela proximidade com o poder, pois para o autor, tarefa mais

importante que cultivar experiências emocionais, era ajudar o governo a transformar

o país (SOUZA, 2014, p. 280).

Via de regra, os pentecostais eram conservadores na teologia e mantinham-se

alienados politicamente, os católicos estavam divididos entre os que se mantinham

à parte da luta política, e os que viam a aspiração por uma “Igreja dos pobres”

durante o Vaticano II, convocado pelo Papa João XVIII, e na Conferência de Medellín

(1968), confirmada em Puebla (1979), muitos padres passaram a apoiar, desde o

final da década de 1970, os movimentos organizados contra os militares, dentre eles

as guerrilhas urbanas e rurais. As Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s)

arregimentavam fiéis que não se sentiam contemplados no tradicionalismo católico

que ecoava desde os concílios. Por outro lado, as CEB´s revelavam a possibilidade

de estabelecer diálogos com as camadas populares, sendo dessa forma, a presença

do povo na Igreja Católica. A teologia que dava suporte ao ativismo religioso nessas

comunidades seria a da Libertação, sustentados pelos textos e pensamentos

libertários de líderes como os Freis Leonardo Boff, Frei Beto, de Carlos Mesters, de

Dom Hélder Câmara e de Oscar Beozzo que, associados à pedagogia de Paulo

Freire, conquistavam espaços para a reflexão e a opção de uma religiosidade voltada

para os “pobres”, “oprimidos” ou simplesmente “excluídos”. O evangelho seria

11 O termo protestantismo, utilizado nessa dissertação, tem uma definição sociológica que se refere ao campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante europeia do século XVI, ou pertencentes ao ramo do protestantismo histórico (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista). Embora utilizemos aqui também o termo igreja evangélica, tanto para o protestantismo histórico como também para o ramo pentecostal: Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção e Universal do Reino de Deus, (MARIANO, 1999, p. 10).

45

interpretado à luz das necessidades das populações empobrecidas, incluindo-se os

desempregados, os moradores de rua, os trabalhadores rurais sem-terra, os

migrantes, as crianças de rua, dentre outros.

No protestantismo histórico, professores e pastores ligados às faculdades de

teologia, e entre a juventude das escolas e universidades, um evangelho social, ou

libertário seria assimilado à luz das ideias de Niebhur, Richard Shaull e Rubem Alves.

Esse último provocava o conservadorismo protestante com seu livro, publicado em

1977, “Protestantismo e repressão”, mais tarde relançado como “Religião e

repressão”, inspiraria a muitos novos pastores e lideranças leigas.

Para não “expor” o fiel das igrejas protestantes, evangélicas aos “perigos” da

polarização política e às radicalizações, era confortável – e recomendável - que ele

se mantivesse tão “neutro” quanto possível.

Peter Berger e Pierre Bourdieu, concordam sobre o caráter da religião na

legitimação da ordem social. Diferente de Bourdieu, no qual a religião oculta o caráter

de dominação social de uma classe sobre a outra, para Berger a religião remeteria

a um “cosmos” sobrenaturalizado, num processo de ocultamento, de “alienação”; ou

seja, o não reconhecimento do caráter humano da criação da sociedade. Berger nos

afirma que, nesse sentido, a religião seria legitimadora. O mundo social é chamado

por ele de nomos e seria um reflexo microscópico do “cosmos”. Em termos religiosos

o nomos seria a ordem sagrada que se reafirma frente ao caos. No seu trabalho “O

Dossel Sagrado - Elementos para uma teoria sociológica da religião”, afirma que

estar contra a ordem social seria o desastre total

Assim como a legitimação religiosa interpreta a ordem da sociedade

em termos de uma ordem açambarcante e sagrada do universo,

46

assim ela relaciona a desordem que é a antítese de todos os nomos

socialmente construídos ao abismo-hiante do caos que é o mais

velho antagonista do sagrado. Ir contra a ordem da sociedade é

sempre arriscar-se a mergulhar na anomia. Ir contra a ordem da

sociedade como é legitimada religiosamente é, todavia, aliar-se às

forças primevas da escuridão. (BERGER, 2015, pg. 52)

Não se sabe com exatidão, sobre o engajamento real dos evangélicos, tanto

nos movimentos que sustentaram o regime no período, quanto de resistência a ele,

mas era nítida a polarização dentro dos seus quadros, e de uma franca maioria

percebida, que insistia em apregoar uma “neutralidade”, escudada no discurso de ter

que cuidar das “coisas do alto”12. Assim, ser um fiel protestante, evangélico, ou não-

católico, era ser de direita e sustentador do regime. Era mister lutar contra o

comunismo que condenava a fé, fechava igrejas, e encarcerava cristãos, e esta

ameaça real pairava sobre a nação. Nas igrejas protestantes, o que mais se ouvia

era uma exegese malfeita de Romanos, capítulo 13, verso 1: “Todos devem sujeitar-

se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus;

as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Nessa interpretação, até o

voto na oposição era considerado “pecado” (pelo Ato Institucional Número Dois, de

27 de outubro de 1965, e do Ato Complementar nº 4, de 20 de novembro de 1965,

que, baixados pelo regime militar, terminaram com o pluripartidarismo existente,

naquela época, no Brasil, extinguindo-se os 13 partidos políticos legalizados no País

e determinara a implantação do bipartidarismo. A partir dali, somente duas correntes

políticas, a situacionista formada pela ARENA – Aliança Renovadora Nacional - e a

corrente oposicionista formada pelo Movimento Democrático Brasileiro - MDB -

12 Hoje, a Comissão Nacional da Verdade, tem dados mais concretos sobre essa participação das igrejas. www.cnv.gov.br

47

disputavam votos. A ARENA era chamada de "A situação" e o MDB de "A oposição").

Cristão fiel, não votava na oposição, e expoentes das denominações históricas,

militavam em favor do regime aberta ou veladamente.

Sobre esse alinhamento ideológico evangélico, e a colaboração ao golpe,

mesmo com flagrante desrespeito aos direitos humanos, Magali Cunha afirmou

À medida que o golpe de 1964 se configurou como uma ditadura civil-

militar com toda a carga de violações do regime democrático e dos

direitos humanos imposta à população, as igrejas evangélicas,

particularmente suas lideranças nacionais, representantes do

governo eclesiástico, aprofundaram as posições de apoio. O apoio se

concretizava em colaboração, por, pelo menos três formas:

propaganda nas reuniões religiosas e nas mídias oficiais; repressão

interna, com perseguições e expurgos; contribuição com o aparato

repressivo do regime, com denúncias e delações. (CUNHA, 2015,

p.198)

Paralelamente, as sociedades religiosas, influenciadas por essa polarização,

viram-se obrigadas a optar ora por uma comunidade conservadora, cada vez mais

legalista, como forma de manter o seu capital simbólico, que já não respondia às

demandas seculares, ora por outra mais engajada nas questões seculares, porém

sem poder atender, a contento, as demandas espirituais do seu público.

Silas de Souza, cita que para o segmento reformado, o conceito de

responsabilidade social da igreja cristã “era facilmente diagnosticado como

esquerdista ou comunista, o que de pronto deveria ser acusado como má teologia e

recusado como heresia” (SOUZA, 2014, p. 281).

Havia uma crise em curso e as igrejas viram uma barreira erguer-se entre elas

e os seus fiéis, entre elas e a sociedade. Afeitos às mudanças de fora e as demandas

48

de um período de repressão política, outras posturas foram exigidas às

comunidades, mas não sem disputas.

Segundo ainda Bourdieu (2015, p.244) o “campo do poder é o espaço das

relações de força entre agentes e instituições que têm em comum possuir o capital

necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou

cultural, especialmente)”. O capital simbólico correspondente ao conjunto de rituais

(como as boas maneiras ou o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. E

segundo Bourdieu, os sacerdotes dispõem de autoridade de função, que dispensa

conquista, continuamente confirmada em virtude do fato de sua autoridade ser

legitimada pela função, pela posição ocupada no campo religioso. Já a autoridade

do profeta deve ser sempre conquistada, no conjunto de determinado estado de

relação de forças. Nas palavras do autor:

“O profeta opõe-se ao corpo sacerdotal da mesma forma que o

descontínuo ao contínuo, o extraordinário ao ordinário, o extra-

cotidiano ao cotidiano, ao banal, particularmente no que concerne ao

modo de exercício da ação religiosa, isto é, à estrutura temporal da

ação de imposição e de inculcação e os meios a que ela recorre”

(BOURDIEU 2015, p. 89)

Com uma crescente consciência das debilidades do regime, especificamente

na supressão de direitos civis, da repressão, uma cultura de contestação, de

protesto, de desconfiança, de crítica, em todas as esferas da sociedade fazia

aumentar a tensão e ameaçar não só o regime, as tradições, a “normalidade”,

também no campo religioso que como aponta Bordieu, tinha sua parcela de

responsabilidade:

49

“A igreja contribui para a manutenção da ordem política, ou melhor,

para o reforço simbólico das divisões desta ordem, pela consecução

de sua função específica, qual seja a de contribuir para manutenção

da ordem simbólica” (BORDIEU, 2015, p. 70)

As igrejas evangélicas – na sua maioria – mostravam-se conservadoras,

tentando conter o ânimo dos fiéis, e na manutenção dessa ordem.

Rubem Alves chegou a afimar que um pretenso liberalismo que deveria ser

uma das principais características do protestantismo brasileiro, na transição do

século XIX para o século XX, mas que de nenhum modo se fez presente na maioria

das igrejas evangélicas brasileiras durante a ditadura. Em 1979 no seu artigo13, pôs

em xeque a noção de que o protestantismo tivesse uma estrutura democrática,

contra uma posição do catolicismo quanto ao tema. O livre exame da Bíblia, bandeira

histórica desde a Reforma do século XVI deveria conter uma suposta democracia

protestante, permitindo interpretações diversas, a diversidade de opiniões, e o

surgimento de outras denominações religiosas protestantes, por motivos de

discordância sobre algumas doutrinas, interpretações teológicas ou rituais. Para

Alves, é justamente aí que a intolerância no protestantismo se revela. A Igreja

Católica, com sua estrutura aparentemente rígida, permite o lugar para a divergência,

permitindo a coexistência de vários segmentos religiosos garantindo assim a unidade

católica. Daí, concluiu que, no protestantismo, “os cismas não são a expressão do

liberalismo individual, mas o resultado do autoritarismo institucional” (ALVES, 1979).

A intolerância e a intransigência, eram assim, as marcas do protestantismo no país.

13 ALVES, Rubem. A ideologia do protestantismo. Rio de Janeiro. Cadernos do ISER, n. º 8, abril de 1979

50

Assim como a sua falta de humor, de leveza, numa postura e pregação cada

vez mais fria e distante dos fiéis.

Dentro das igrejas históricas, mais progressistas que o ramo pentecostal

histórico - publicações denominacionais foram testemunhas – desse período e

demonstraram apoio ao golpe militar: eram O Brasil Presbiteriano (Igreja

Presbiteriana do Brasil), O Estandarte (Igreja Presbiteriana Independente), O Jornal

Batista (Igreja Batista), o Expositor Cristão (Igreja Metodista), O Mensageiro da Paz

(Igreja Assembleia de Deus no Pará e Convenção Nacional das Assembleias de

Deus). De acordo com esses órgãos, jornais oficiais das suas respectivas

denominações, “o apoio ao regime que se instituía em 1964 foi imediato e

entusiasmado” (CUNHA, 2015, p. 192).

Em 1968, a Igreja Metodista brasileira, passara por uma crise sem precedentes

que culminara no fechamento da Faculdade de Teologia, do bairro de Rudge

Ramos, em São Bernardo do Campo-SP, resultou na expulsão de cerca de

70 jovens estudantes da instituição, por divergências políticas, teológicas e

ideológicas presentes na denominação.

Apesar disso, as edições do jornal oficial da denominação, o Expositor Cristão,

publicados no período, silenciaram-se diante dos fatos em questão.

Por outro lado, a Revista Cruz de Malta, nascida em 1927, especialmente a

partir de 1982, durante o enfraquecimento da ditadura militar passou a se ocupar

com temas que circulavam nas cartilhas dos movimentos sociais que tomavam conta

do país e que ocupavam os meios acadêmicos de influência marxista. Seus estudos

bíblicos eram ilustrados com fotografias e, de maneira pioneira, com humor através de

51

charges314 que traziam assembleias de trabalhadores, a situação dos moradores da

periferia das cidades em situações desumanas e trabalhadores rurais em situação

de perigo.

A redemocratização do país, as greves operárias, as manifestações massivas

dos professores, as campanhas salariais dos trabalhadores do campo e as

reivindicações das associações de bairro ocupavam os seus estudos, antes dirigidos

à representação das sociedades metodistas de jovens.

Enquanto isso, o grosso do protestantismo insistia em referendar o regime,

identificando-se como um grupo conservador. Qualquer iniciativa de cunho

assistencial, de ação social, era logo vista entre eles como uma posição político-

ideológica, alinhada à esquerda. Cristão não tinha de se envolver em ação social, ou

de caridade, coisas próprias de alguém com preocupações “terrenas”, e sim das

demandas e assuntos mais “espirituais”. Pregar o evangelho era uma proposta

subjetiva e ligada aos céus, não ao chão. “Nós não somos deste mundo” era o jargão

popularizado entre os “crentes evangélicos”, cristãos de matriz protestante

tradicional ou mesmo das novas correntes.

Essa divisão, fruto de uma visão histórica, separava a vida “sagrada” daquela

ordinária, do dia a dia, ou “secular”, os dois modos de ser no mundo. Durkheim,

afirma que a própria essência da religião está na distinção da realidade em duas

14 Charge e cartum (do inglês cartoon) – são termos sinônimos, e se referem a desenhos jornalísticos de caráter crítico e humorístico, geralmente satirizando personagens, fatos e situações da atualidade. Mas também há diferenças – sutis, mas importantes – entre elas. Em primeiro lugar, chama-se charge, termo importado da língua francesa “carga”, um sinônimo de crítica violenta, num uso figurado do sentido militar de “carga” ou “ataque” e é o desenho onde se pode reconhecer uma pessoa ou situação, portanto é uma crítica carregada de pessoalidade. Mas chamamos também cartum de história em quadrinhos, quando ultrapassa um desenho só mas desenvolve uma narrativa sequencial – que também pode ser encontrado menor, ao que chamamos “tirinha”, geralmente em publicações periódicas, em três ou quatro quadros.

52

esferas, a do “sagrado” e a do “profano”. Para ele, a primeira delas se compõe de

um conjunto de crenças e ritos que formam certa unidade o que se chama

genericamente de “religião” que envolve tanto uma dimensão cognitiva/cultural

(crenças) quanto uma dimensão material/institucional (ritos). Para ele, o que

caracteriza o sagrado é o fato de estar apartado das coisas cotidianas. Mircea Eliade,

na sua obra “O Sagrado e Profano”, separa as percepções entre uma e outra esfera

e afirma que para o homem das sociedades arcaicas, “a vida como um todo é

suscetível de ser santificada. São múltiplos os meios por que se obtém a

santificação, mas o resultado é quase sempre o mesmo: a vida é vivida num plano

duplo; desenrola-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma

vida transumana, a do Cosmos ou dos deuses”. Para o religioso, acrescenta o autor,

as suas experiências são sempre religiosas, pois o seu mundo é sagrado (ELIADE,

1992, p. 81). Em contrapartida,

quanto ao cristianismo das sociedades industriais, principalmente o

dos intelectuais, há muito que perdeu os valores cósmicos que

possuía ainda na Idade Média. Isto não implica necessariamente que

o cristianismo urbano seja “degradado” ou “inferior”, mas apenas que

a sensibilidade religiosa das populações urbanas encontra- se

gravemente empobrecida. A liturgia cósmica, o mistério da

participação da natureza no drama cristológico tornaram-se

inacessíveis aos cristãos que vivem numa cidade moderna. Sua

experiência religiosa já não é “aberta” para o cosmos; é uma

experiência estritamente privada. A salvação é um problema que diz

respeito ao homem e seu Deus; no melhor dos casos, o homem

reconhece-se responsável não somente diante de Deus, mas

também diante da História. Mas nestas relações, homem, Deus, a

história, o cosmos, não têm nenhum lugar. O que permite supor que,

mesmo para um cristão autêntico, o mundo já não é sentido como

obra de Deus. (ELIADE, 1992, p. 86).

53

O cristão brasileiro já não era rural, o religioso do campo, de uma fé tradicional,

seja pela sua exposição ao “mundo”, pela cultura de massas, ou pelo êxodo para os

grandes centros e ele não sabia mais como “juntar” o sagrado ao seu dia a dia e às

demandas da sua vida, cada vez mais complexa e em turbulência num mundo em

mudanças e de instabilidade política. Geertz (1978), afirma que o profano e o

sagrado dialogam cotidianamente e, mais que isso, mostram-se como opositores e

complementares a ponto de produzirem uma teia de significados, Berger (1985),

afirma uma relação entre o profano e o sagrado e não uma dicotomização entre

ambos. Para ele, o profano é afetado pelo sagrado na medida em que este último,

sendo legitimado e reverenciado como verdade suprema, evita o caos que se

evidenciaria no caráter profano das rotinas da vida cotidiana. Essa percepção, de

afastamento das coisas cotidianas, desperta crises, reações, sentimentos e

emoções e elas pareciam não ser percebidas pelos sacerdotes, ou pelas igrejas.

Usarski (2006, p.40) ao citar Nathan Söderblom, afirma, que “numa cosmovisão

dualista, o sagrado representa a esfera complementar ao profano, ambos, por sua

vez, constituem o ser em sua totalidade. Do ponto de vista do profano, o sagrado é

o ‘totalmente outro’ e representa um fenômeno sui generis, ontologicamente

independente e autônomo”. Na ótica cristã e mais especificamente na fé reformada,

evangélica – brasileira - o profano é mantido como execrável, em constante

oposição ao sagrado e, portanto, digno de todo o esforço pela distância,

particularmente naqueles tempos de sedução de ideologias ameaçadoras.

Se no pensamento católico, baseados nessa ideia de uma estrutura dualística,

dividindo o conceito de natureza e graça, que afirma que o homem está em um

estado de natureza pura que precisa de uma adição de graça, ou, além de suas

54

faculdades naturais, Deus teria dotado os seres humanos de um dom ou faculdade

sobrenatural que os capacita a ter um relacionamento com Deus”. Esse pensamento

trouxe a visão que as coisas humanas são independentes das divinas, apesar de

andarem juntas. O dualismo de São Tomás de Aquino, produziu o pensamento de

viver como homem natural e homem espiritual, coexistindo em um só ser. Um

homem vive com o sagrado e com o profano ao mesmo tempo. Partindo dessa

premissa de Aquino, o pensamento vigente na cristandade é que se ia a missa para

um ato sagrado, enquanto trabalhar era o lado profano. Mas essas realidades eram

ligadas a um só homem. Os únicos que poderiam “viver exclusivamente do sagrado”,

eram os monges, o clero, pois não se envolviam com “assuntos mundanos”. Na ótica

protestante, embora os reformadores tivessem quebrado essa visão dualística da

vida, o conceito de sacerdócio versus leigos (o sagrado versus profano) deu lugar à

doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes. Nessa visão, toda a criação é

boa, e as várias formas de manifestações culturais eram divinas. Para os

reformadores, especialmente João Calvino, o trabalho episcopal não é mais digno

do que o trabalho manual ou cultural, pois tudo deve ser feito para a glória de Deus.

Apesar disso, essa herança dualista, que separava o sagrado do profano, de origem

grega e católica (de Aquino), imperava até no meio protestante, evangélico. As suas

obrigações, portanto, enquanto fiel, restringia-se à frequência aos cultos, à vida

devocional nas casas e ao proceder exemplar, mas nada que significasse envolver-

se nas questões “menores”, “mundanas” (leia-se, na política!), pois este “não

pertencia a este mundo”.

Segundo publicou artigo no Estandarte, órgão oficial da Igreja Presbiteriana

Independente, no artigo “Seria o ecumenismo a solução para a igreja?” (O

Estandarte, Ano 81, n. º 3, São Paulo, 15 de fevereiro de 1973, p. 4) o Rev. Antônio

55

Miguel dos Santos, corroborando para tal pensamento, tão corrente entre os

evangélicos daquela época

A igreja, fosse ela Católica ou evangélica, deveria preocupar-se

apenas com a “salvação dos pecadores”, pois “Jesus não mandou

seus discípulos fazerem obra de assistência social. Elas aparecem

como decorrência da pregação do evangelho e não como meio de

pregar o evangelho”.

Era essa, precisamente, a pregação quase que oficial no ramo evangélico, cuja

missão maior passava longe da realidade e dos desafios da sociedade, que não de

ordem existencial, da esfera da espiritualidade. A maior batalha então, era para ser

travada na mente, não nas ruas, ou numa urna de voto.

Weber parece afirmar na sua ótica sobre a Reforma de 1517 em “A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo”, que o protestantismo havia deixado a

experiência pela palavra, como que desencantando o mundo ao discutir o incontido

processo de racionalização. Se para a fé cristã o verbo virou carne, para o

protestante “normal”, mata-se então a carne. Esta racionalização está repleta de

consequências negativas, não apenas para a relevância social da religião, como

também para o desenvolvimento da própria sociedade moderna. Nas homilias

dominicais, exegeses demasiadamente apologéticas, teologicamente cuidadas –

mais para se evitar repressões dentro do campo religioso – distanciavam-se da vida

dos fiéis. Via-se mais “sermões de prova”, que aplicações que diziam respeito à vida

ordinária das pessoas.

Para ilustrar bem essa postura de distanciamento da realidade de vida dos fiéis,

comum nas igrejas evangélicas ou de matriz protestante, especialmente na Igreja

56

Presbiteriana do Brasil e seu órgão máximo de comunicação, o jornal Brasil

Presbiteriano, “a preocupação seria apenas ‘refletir o pensamento oficial da Igreja’,

o que significava também combater formalmente o comunismo, de acordo com a

decisão da Comissão Executiva do Supremo Concílio”. (SOUZA, 2014, p. 189).

O espírito da época, do regime, era representado pela frase: “O preço da

liberdade é a eterna vigilância”, com o incentivo da vigilância de todos contra todos.

Em repartições públicas ou lugares de aglomeração, essa recomendação era visível

em cartazes – que muitas vezes traziam estampados rostos de “inimigos da nação,

ou “terroristas” que é como o governo chamava, dos assaltantes de bancos aos seus

opositores de consciência e ideológicos mais conhecidos. Esta frase, atribuída por

alguns a Thomas Jefferson, outros a Napoleão Bonaparte, foi por bons anos,

creditada à eminência parda do regime, e considerado por muitos como o homem

por detrás dos militares, general Golbery do Couto e Silva15 que apesar do status de

ministro de estado e homem do poder, preferia os subterrâneos aos holofotes, e dá-

nos a ideia do clima de suspeição, da qual nem as igrejas – e especialmente os

púlpitos – estavam isentos. Daí, pode-se imaginar os quão cuidadosos, o quão

exatos, os sacerdotes estavam sob medida vigiados e, por extensão e na mesma

proporção, os sermões produzidos, protocolares e “frios”.

Conforme ainda Souza, o discurso de reprovação do comunismo e de questões

sociais, presentes não apenas na imprensa “chapa branca” dos presbiterianos (e não

só!), como “nos sermões e nas lições para a Escola Dominical desde há muito tempo,

15 Golbery do Couto e Silva, foi um general e geopolítico brasileiro, e um dos criadores do Serviço Nacional de Informações (SNI). Durante o governo de Ernesto Geisel, a partir de março de 1974, foi o responsável pela chamada política que marcou o início do processo de abertura política.

57

pois o comunismo identificado com o ateísmo jamais poderia fazer parte do

pensamento cristão” (SOUZA, 2014, p.189).

O humor e a crítica então, como marcas do gênero humano e que tanto

marcaram a vida e o pensamento da Reforma Protestante do século XVI,

desaparecera da vida dos seus fiéis (?) herdeiros protestantes do Brasil do século

XX, dos seus líderes e dos púlpitos. Como bem observaria anos mais tarde, na errata

à edição do “Quando tudo começou: história do I Salão Brasileiro de Humor e

Quadrinhos” (2016), Alexandre Silveira Souza Vivacqua, professor de Filosofia da

Universidade Federal de Minas Gerais,

O pensar luta contra a futilidade, contra a perversidade e contra a

arrogância. O pensamento crítico luta contra o pensamento vulgar

que é a subserviência.

Naquele Brasil, protestante significava tudo, menos ser protestante.

2.1. Os evangélicos e o humor engajado

Naquele período de exceção, não faltavam profetas surgindo no protestantismo

brasileiro. Uns foram “excomungados”, forçados a deixar as congregações de

origem, outros, refinaram o seu discurso, opondo-se ao corpo sacerdotal, mas em

nuances não tão perceptíveis a este, mas bem recebidos pelos fiéis. O mesmo

Bordieu explica que

Assim como o sacerdote alia-se à ordem ordinária, o profeta é o

homem das situações de crise quando a ordem estabelecida ameaça

romper-se ou quando o futuro inteiro parece incerto. O discurso

profético tem maiores chances de surgir nos períodos de crise aberta

58

envolvendo sociedades inteiras; ou então, apenas algumas classes,

vale dizer, nos períodos em que as transformações econômicas ou

morfológicas determinam, nessa ou naquela parte da sociedade, a

dissolução, o enfraquecimento ou a obsolescência das tradições ou

dos sistemas simbólicos que forneciam os princípios da visão do

mundo e da orientação da vida! (BORDIEU, 2015, p73).

Ele explicava aqui como além de surgir nesses momentos de ruptura da ordem

ou da normalidade, os profetas tinham a vantagem sobre os que teimavam em seguir

o curso das tradições e explicar o mundo conforme a sua visão particular ou, no caso,

sua tradição, geralmente uma sub-cultura que pouco dizia respeito à vida cotidiana,

cheia de uma preconceituosa com relação à tudo que vinha de fora, do “mundo”, que

é como era chamada qualquer manifestação, expressão, ou produção cultural não

religiosa, incluindo-se aí a política, a economia, etc...

Citando Marceu Mauss, acrescenta o autor

“Fomes e guerras suscitam profetas, heresias: contatos violentos

influem sobre a própria repartição da população e sua natureza,

mestiçagens de sociedades inteiras (é o caso da colonização) fazem

surgir forçosamente novas ideias e novas tradições” (BORDIEU, p.

74)

Nessa linha, os grupos não só os que nasciam dentro das igrejas cresciam,

como as novas igrejas e missões – como se chamavam as organizações

paraeclesiásticas – obtinham público para o seu discurso.

Embora algumas denominações do movimento evangélico/protestante

mantinham-se conservadoras, mais e mais grupos, menores, faziam crescer sua

desconfiança – e militância – contra o militarismo e o regime de exceção.

59

O Brasil, naquele caldeirão de contestação e crítica, já não se conformava com

velhas fórmulas, simplistas ou superficiais. Uma certa “burrice” oficial, do arbítrio, dos

discursos-prontos e repetidos à exaustão clamavam por uma reação e uma nova

articulação da sociedade, civil ou religiosa, que no seu meio, especialmente os mais

jovens pediam por mudanças em novos arranjos que via-se nascer. Foi a época de

maior poder dos leigos, aos conjuntos de música não tradicionais que fugiam dos

padrões de corais e dos hinos de matriz norte-americanos (ou alienígenas), grupos

de evangelismo que, nas ruas onde atuavam, não tinham a tutela da “velha-guarda”

dos sacerdotes, num mecanismo observado por Bordieu, “constância e rotina podem

ser obra de indivíduos, inovação e revolução podem constituir a obra de grupos, de

subgrupos, de seitas, de indivíduos agindo por e para os grupos.” (BORDIEU, 2015,

p. 74).

Nas artes, o humor da sociedade, como crítica, refinou-se ao máximo para

escapar da censura que a tudo selecionava, num esforço sacerdotal para descobrir-

se e impedir que os hereges, ou profetas, questionassem sua “versão oficial da vida”,

o que bem faziam esses, na marginalidade e bem como afirmou Berger, “a

marginalidade inspira uma perspectiva cômica” (BERGER, 2017., pg. 24). Millôr

Fernandes, jornalista, cartunista e escritor, chegou a zombar do esforço de controle

do pensamento e da expressão numa afirmação amplamente conhecida: “Um ditador

pode bem retocar uma versão oficial, mas não consegue evitar uma caricatura”. Há

aí, algum tipo de compreensão acerca do mundo social que escapa ao poder.

Peter Berger, na sua obra O Riso Redentor (2017), conceituou a sensibilidade

cômica contemporânea, como sardônica ou sarcástica, baseada no escárnio e nos

jogos de palavra, e a relaciona a outras características da modernidade, como ao

60

intelectualismo e a tentativa do controle emocional. O humor dos carnavais

medievais desaparece à medida que a modernidade o domestica, institucionalizando

na figura do bobo da corte e da comédia formal. Para Berger, parece que o mesmo

processo que seculariza o mundo moderno explica também o desencantamento do

humor e sua adaptação a um período histórico que se julga superior a todos os outros

em função de sua suposta racionalidade. Para Berger, o mundo moderno

desencantado gerou as suas próprias incoerências e o humor pode ser uma delas,

estando a sensibilidade cômica contemporânea como expressão do

desencantamento, e também uma reação a ele. E foi assim que a sociedade refinou

o seu humor frente ao terror, em várias frentes.

Se o regime ditatorial conseguiu arregimentar uma enorme massa de

opositores contra si, nas esferas religiosas, aconteceu o mesmo, especialmente na

Igreja Católica e muito mais timidamente, e sem a chancela oficial da denominação,

nas igrejas evangélicas.

Foi o caso de membros da conservadora Assembleia de Deus, como o do

professor de escola dominical e evangelista auxiliar de pastor que junto com a sua

postura de típico líder pentecostal, servia na sua congregação, mas militava com

fervor contra o regime e as práticas latifundiárias, como Manoel da

Conceição16 (mais tarde, fundador do Partido dos Trabalhadores) provando

que no Nordeste, a luta no campo alcançou e mobilizou setores evangélicos

progressistas17. Conceição, acabou preso, espancado brutalmente e definitivamente

16 ARAÚJO, Helciane de Fátima Abreu. Memória, mediação e campesinato: as representações de uma liderança sobre as lutas camponesas da Pré-Amazônia maranhense. Manaus: Edições UEA, 2010. 17 CONCEIÇÃO, Manoel da. Essa terra é nossa: depoimento sobre a vida e as lutas de camponeses no Estado do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1980.

61

incapacitado fisicamente pelos órgãos de segurança18. O pluralismo no meio

evangélico não era apenas doutrinário.

As maiores denominações evangélicas nos anos 1960, as Igrejas Presbiteriana

do Brasil (IPB), Presbiteriana Independente (IPI), Assembleias de Deus (AD), Batista

(IB) e Metodista (IM), viam nos seus quadros, vozes que divergiam e alinhavam-se

numa resistência ao regime, sendo que a Presbiteriana do Brasil, a Batista e as

Assembleias de Deus, foram muito mais próximas, institucionalmente, aos militares

do que as igrejas Presbiteriana Independente e Metodista.

Nas publicações das Igrejas Metodista e Presbiteriana Independente via-se

claramente uma polarização entre as correntes dentro das denominações e a

linguagem do humor estava presente, de um lado e de outro. No Estandarte, órgão

oficial da IPI, Aldroaldo José de Almeida, registrou na sua tese de doutorado, que

“Os artigos e matérias, publicados no jornal oficial da IPI, entre 1963 e 1964, foram

bastante refratários e intolerantes ao comunismo, com textos que se caracterizaram

ora pela ironia ora pelo tom apocalíptico.” (ALMEIDA, 2016, p. 43).

A mais importante publicação da IPB, O Brasil Presbiteriano, logo após o golpe,

em maio de 1964, recém dirigido pelo Rev. Boanerges Ribeiro que governaria com

mão de ferro a igreja, declarou, reagindo à deposição do governo civil:

“Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão se regozijando

com os resultados da gloriosa revolução de março-abril: o expurgo de

comunistas, e seus simpatizantes, da administração do nosso

querido Brasil. [...] Pastores, Seminaristas, Presbíteros, crentes, não

podem abraçar a ideologia vermelha e permanecer na igreja. Se

quiserem ser comunistas, que o sejam, mas renunciem a jurisdição

18 cnv.gov.br/images/pdf/depoimentos/vitimas_civis/Manoel_Conceicao_16.11.2013.pdf

62

da Igreja e não contaminem o rebanho. Uma ou outra coisa. Ou Cristo

ou Belial. [...]. É preciso o expurgo!” (SOUZA, 2011) 19

Os presbiterianos tiveram nomes célebres na luta contra o arbítrio. Dentre eles,

a família de missionários norte-americanos Wright, que chegou a perder um de seus

membros, Paulo Stuart Wright, desaparecido e certamente assassinado pelos

órgãos de repressão do regime militar em 1973, sob o governo do General

Garrastazu Médici. Seu irmão Jaime Wright, estudou Teologia e pós-graduação na

Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (EUA), em 1950, tendo voltado ao

Brasil e radicado inicialmente em Ponte Nova, na Bahia, para dirigir o Instituto de

Educação Presbiteriano Ponte Nova e em 1968, chegou à direção da Missão

Presbiteriana do Brasil Central, responsável pela expansão da igreja pelos estados

centrais do país, sediada em São Paulo.

Nos anos seguintes, foi uma voz incômoda tendo denunciado o regime por

violações aos direitos humanos à órgãos internacionais, tendo fundado, junto com

Jan Rocha e Luiz Eduardo Greenhalgh, o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos

nos Países do Cone Sul e participado em iniciativas ecumênicas de resistência,

trabalhando pela causa na Arquidiocese de São Paulo e na coordenação do projeto

“Brasil Nunca Mais” que resultou na publicação de um livro - um inventário sobre a

tortura no Brasil durante os 21 anos de ditadura. Faleceu em Vitória-ES, em 1999.

Mas nem só artigos apoiando o golpe estavam nas publicações protestantes.

No seu número 11, do ano 90, o Estandarte trouxe um artigo cheio de fino humor de

resistência. Na edição, citando um texto Leonardo Boff, padre católico, Ercília Ferraz

19 Brasil Presbiteriano, maio de 1964, p. 7 apud SOUZA, Silas de. Presbiterianismo no Brasil. In: SILVA, Elizete; SANTOS, Lyndon de Araújo; ALMEIDA, Vasni de (orgs.). Op. Cit., p. 206.

63

de Arruda Pollice, diaconisa e professora de adolescentes na Escola Dominical

da IPI de Bauru, São Paulo, faz uma referência à truculência com que o regime lidava

contra os seus opositores: “Jesus não morreu naturalmente, foi condenado sem

provas, torturado e violentamente eliminado”.

Entre os Batistas, grupo também do lado do regime, há de se ressaltar um

pioneiro do rádio na denominação e de voz opositora à ditadura, David Malta pastor

da Igreja Batista Barão da Taquara, na região de Jacarepaguá, no início da década

de 1950. Nesse mesmo período, ajudou a fundar o movimento “Diretriz Evangélica”,

incentivava os evangélicos a uma participação ativa, baseada no engajamento

político e social. Seu programa radiofônico na Rádio Copacabana, sediada no antigo

estado da Guanabara, além de escrever para o jornal Diretriz Evangélica e na coluna

n’O Jornal Batista, onde ele e Hélcio da Silva Lessa eram os responsáveis. Ele

identificava-se com setores da esquerda e com o evangelho social, muito embora

fosse contra o comunismo, era identificado com a corrente liberal (NASCIMENTO,

1963, p.5).

No Expositor Cristão, órgão da Igreja Metodista, igreja com relações mais

próxima com a Igreja Católica dentre todas as denominações protestantes, detalhe

que vale ressaltar, pois a defesa de uma prática evangélica ecumênica entre os

metodistas coincidiu, na maioria das vezes, com ações mais engajadas do ponto de

vista político e social protagonizadas por estas duas igrejas. Vale também dizer que

este veículo de comunicação foi importante na promoção do debate em torno da

situação nacional sob a ótica evangélica, tanto dentro quanto fora dos arraiais

metodistas. Nas suas páginas, publicaram artigos nomes como Rubem Alves,

Richard Shaull, Jether Ramalho e Waldo César, significativos para a compreensão

64

da formação de um grupo evangélico que teve como características o ecumenismo,

o engajamento político e o diálogo com os movimentos de esquerda.

Se a denominação Metodista teve homens como bispo emérito Isaías

Fernandes Sucasas e o reverendo José Sucasas Júnior, que cooperaram com

órgãos de repressão na delação inclusive de membros da igreja20, teve também

alguns nomes importantes no humor nacional, especial e significativamente, contra

a exceção, Claudius Ceccon, cartunista de renome.

Entretanto se o grosso das publicações denominacionais eram espelho de um

posicionamento conversador não só política, mas esteticamente alinhado, coube a

uma publicação nascida no interior de Minas Gerais, Barbacena, um conteúdo

editorial de arrojo e uma linguagem bem-humorada, o Jornal Ultimato (hoje ainda em

circulação, com o nome de Revista Ultimato). Ela foi fruto da iniciativa do

presbiteriano Elben M. L. César, seu Diretor-fundador. Seu primeiro número veio a

público em janeiro de 1968 e, apesar da convicção evangélica de seu fundador e de

seus colaboradores, o Ultimato não estava vinculado a nenhuma denominação

protestante. Para Elben César, tratava-se de se criar um periódico “sem cor

denominacional” e que preenchesse a lacuna que outros jornais evangélicos não

cumpriam: propagar a fé evangélica fora dos arraiais evangélicos. E a sua linguagem

era excelentemente adequada e dela chegaram a fazer parte, alguns cartuns e

ilustrações, bem à frente das demais publicações, sérias demais para talvez, não

“comprometer a instituição que representava”.

20ALMEIDA, Adroaldo José Silva. "Pelo Senhor, marchamos": os evangélicos e a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2016

65

Segundo afirmam os editores, a Ultimato não era aberta geralmente aos

cartuns, pois entendia que sua força, por ser temporal, de consumo rápido, criado a

partir de um fato da vida, não conseguiria sobreviver à periodicidade – bimensal – da

publicação, isso quando tudo corria bem. Mesmo com a resistência do seu diretor,

Reverendo Lenz César, alguns cartuns foram publicados de Renato Canini, outro

evangélico expoente do cartum nacional que publicara em veículos de expressão,

fora dos círculos religiosos.

Apesar de prescindir dessa expressão artística, a revista trouxe por anos, um

fino humor, contando dentre os seus articulistas mais proverbiais nesse assunto e

mais à esquerda da visão política da maioria evangélica, o Rev. Robinson Cavalcanti

(1944-2014), bispo anglicano, professor, teólogo e pastor de muitas gerações de

cristãos espalhados pelo país. O bispo Cavalcanti influenciou gerações com a sua

inteligência arguta e senso de humor. O pastor e comediante presbiteriano Jasiel

Botelho, fundador da organização Jovens da Verdade, de quem falaremos à frente,

admitiu que voltou a fazer humor após ter ouvido o anglicano numa conferência e

depois de anos numa luta contra o que achava ser um desvio na sua vocação

ministerial cristã, onde não caberiam em absoluto, o humor, a ironia e a crítica da

sua arte21.

Vale ressaltar a importância da Revista Paz e Terra, surgida, em 1966, cujo

nome foi inspirado na famosa Encíclica Pacem in Terris. A Revista era destinada ao

púbico intelectual e cristão de esquerda, e discutia questões tabus, naquele contexto

sociocultural. Temas como, marxismo, guerras, sexualidade, e o papel da religião e

21 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

66

das igrejas. Ela fora um lançamento de Ênio Silveira, de orientação comunista e

proprietário da Editora Civilização Brasileira. Paz e Terra foi um espaço importante

para as esquerdas durante o Regime Militar, que lutavam pelas liberdades individuais

e pelo retorno ao Estado democrático e de direito. Como principais nomes dos seus

articulistas, estavam Waldo César, Moacyr Felix, Rubem Alves e Alceu de Amoroso

Lima, na altura, talvez o maior articulador da esquerda protestante. Ele era um

comunista não filiado ao PCB e foi um importante intelectual católico (DIAS, 2014, p.

99).

Também é merecedora de citação, o trabalho na denominação Metodista, do

artista gráfico Laan Mendes de Barros que por muitos anos foi editor de arte das

publicações da denominação tornando-o bastante conhecido por criações de

ilustrações alternativas sobre a cultura brasileira, e até hoje conhecido pela sua

postura progressista político-social.

Um dos mais expressivos feitos que liga o humor a uma das mais

conservadoras igrejas no período desta pesquisa, foi o nascimento do primeiro salão

de humor do mundo, criado na então Universidade Mackenzie em 1973, instituição

centenária mantida pela Igreja Presbiteriana do Brasil, IPB, em plenos anos

chamados de chumbo da ditadura com uma repressão mais severa por parte dos

militares22.

Naquele ano, estudantes da instituição lotaram o Teatro Ruy Barbosa, no

campus de Higienópolis, em São Paulo-SP, para o que foi batizado de 1º Salão

Brasileiro de Humor e Quadrinhos (e o mais antigo do mundo). No ano seguinte ele

22 AGUIAR NETO, Benedito GUIMARÃES; DOS SANTOS, Gabriel Ferrato; GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres; QUEIROZ, Adolpho; DOS SANTOS, Fernando Coelho; COSTA, Gualberto e CAMOLESE, Rosângela Maria Rizzolo. 1973, Quando Tudo Começou. São Paulo: Gráfica CS, 2016

67

acontece na cidade paulista de Piracicaba e hoje continua como um dos mais

importantes do mundo e conhecido pelo seu compromisso com democracia, a arte,

a pluralidade e a diversidade, tendo virado um marco em prol das lutas políticas do

país e pelos grandes nomes do humor nacional e mundial que por ali passaram.

Figura 3 - Cartaz criado por Glauco Vilas-Boas, para o VI Salão de Humor de Piracicaba em 1979, talvez traduzindo o cuidado com o que haveria de vir, no lado de fora, ao término – iminente do período de exceção.

Fonte: Arquivo digital do autor

Outra das maiores vozes discordantes do regime político, foi o Rev. Roberto

Vicente Themudo Lessa (1941 – 2005), pastor tido como um dos pilares da Igreja

68

Presbiteriana Independente, e o seu Som do Evangelho, coluna que publicou por 8

anos no jornal Folha da Tarde, publicavam sua posição de resistência ao golpe.

Um dos grandes nomes do cartum nacional, Claudius Cecon, é um metodista

nascido em 1938 e arquiteto, de origem gaúcha, de Garibaldi-RS. O cartunista,

simplesmente conhecido por Claudius participou da 4a Consulta, a mais polêmica e

mais importante de todas, que ficou conhecida como a Conferência do Nordeste23,

tomando assento como integrante da promotora do evento, a CEB – Confederação

Evangélica do Brasil, em 1962, promovida pelo Setor de Responsabilidade Social da

Igreja (SRSI). Esta conferência histórica reuniu alguns dos principais intelectuais

brasileiros da época, como Celso Furtado, Paul Singer, Rubem Alves e Gilberto

Freyre, para, juntamente com vários pastores e teólogos protestantes, discutir o

processo revolucionário pelo qual o Brasil passava, bem como a participação cristã.

Nos anos seguintes, até partir como exilado para a Europa pelo regime, esse

cartunista foi um dos mais expressivos nomes do humor feito por cristãos

evangélicos no país e é parte da geração que revolucionou o humor gráfico brasileiro,

junto com Millôr, Jaguar e Fortuna!

Claudius editou sua arte nos mais importantes jornais e revistas alternativos

brasileiros (especialmente no Pasquim24, Caros Amigos e Pif-Paf). Também, serviu

23 Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/310/a-conferencia-do-nordeste-e-o-movimento-igreja-e-sociedade Acesso em: 04 set. 2017 24 O Pasquim foi um semanário alternativo brasileiro, editado de 1969 a 1991. Nascido no cenário da contracultura da década de 1960 teve seu apogeu na oposição ao regime militar. Chegou a mais de 200 mil exemplares em meados dos anos 1970, feito considerável para uma publicação tida como marginal, tendo se tornado um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro. Nascido com uma temática comportamental O Pasquim se tornou mais politizado à medida que aumentava a repressão da ditadura, principalmente após a promulgação do ato institucional no 5 que suprimiu o estado de direito. O Pasquim, que foi um dos principais porta-vozes da resistência, viu passar pela sua redação, além dos seus fundadores, como o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro, Sérgio Cabral, nomes como Ziraldo, Millôr, Manoel "Ciribelli" Braga, Miguel Paiva, Prósperi, Claudius,

69

a uma série de organizações e institutos que o acompanharam desde seu exílio

iniciado em Genebra, na Suíça: Idac (Instituto de Açăo Cultural), Ibase (Instituto

Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e Cecip (Centro de Criaçăo de

Imagem Popular). No Idac, ele trabalhou com o pedagogo Paulo Freire; no

Ibase, atuou com Betinho, o irmăo do Henfil, e no Cecip, foi parceiro de Eduardo

Coutinho. Claudius atuou, também, numa TV alternativa (a Maxambomba).

Autor de vários livros, a maioria deles voltados para temas ligados à educaçăo

e à saúde, ele teve sua obra como cartunista reunida em “Claudius”, livro prefaciado

por Jânio de Freitas e enriquecido com artigos de Millôr Fernandes, Cássio Loredano

e Ferreira Gullar.

No cartum a seguir, o primeiro à esquerda, uma crítica com alusão ao DOPS25,

órgão temido por prender e, nas suas dependências, torturar e até matar presos

políticos. Os valores do evangelho, na defesa dos direitos civis, da infância e contra

o trabalho infantil. A profissão de fé em defesa da vida, através do humor gráfico.

Fortuna, Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa, Carlos Leonam e Sérgio Augusto, e também dos colaboradores eventuais Ruy Castro e Fausto Wolff. 25 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 30 de dezembro de 1924, durante o Estado Novo e mais tarde, relançado no Governo Militar. O órgão, que tinha a função de assegurar e disciplinar a ordem militar no país, foi instituído em 17 de abril de 1928 pela lei nº 2304 que tratava de reorganizar a Polícia do Estado.

70

Figura 4 - O clima de suspeição da época

Fonte: acervo digital do autor

Figura 5 - O trabalho infantil, na visão de Claudius.

Fonte: arquivo CECIP

71

Figura 6 - Claudius e a Polícia Militar.

Fonte: Arquivo CECIP

Figura 7 - A aspiração do cidadão e a repressão.

Fonte: Arquivo CECIP

72

Mas a época de ouro do humor nacional, especialmente no cartum, teve outro

grande nome dentre os cartunistas de origem evangélica: Renato Canini (1936-

2013), ilustrador e cartunista a quem coube “abrasileirar” Zé Carioca, personagem

da Disney, tal como vemos até hoje, nos anos 1970. Gaúcho de Paraí, Rio Grande

do Sul, foi contratado ainda na década de 1950, como desenhista da Secretaria

de Educação e Cultura do Estado, onde produzia para a revista infantil e educativa

intitulada Cacique, enquanto produzia charges e tiras para o jornal Correio do Povo,

para a TV Piratini e para diversas publicações alternativas. Como cristão evangélico,

começou sua carreira, a convite do pastor metodista William Schisler Filho para

ilustrar a revista “Bem-Te-Vi”, da Igreja Metodista, por isso, acabou por vir residir-se

em São Paulo, em 1967. Dois anos depois foi trabalhar na Editora Abril, onde

desenhou e escreveu para a revista “Recreio”. Lá criou o cawboy Kactus Kid e

participou do Projeto Tiras com o indiozinho Tibica. Na editora, colaborou ainda nas

revistas “Pancada, Patota e Mad” e ilustrou mais de cinquenta livros infantis.

Canini dava pistas a respeito da sua fé, nos personagens e histórias que criava:

“O Tibica foi publicado em vários jornais do país. Ele era tinha uma consciência

ecológica: amava a Deus e a natureza”; e certa vez declarou: “O doutor fraude, eu

fiz porque sou evangélico, como contraponto do verdadeiro Doutor Fraude (Freud),

que é ateu”. Quando entrevistado, não escondia: “Eu sou crente mesmo, sabe?”;

“Quero conhecer o que puder sobre Deus cada vez mais”. Gostava dos hinos

tradicionais, e em carta que enviou à Ultimato26 em 2001, disse: “Como alguém que

se criou cantando belos hinos tradicionais, como ‘Quão bondoso amigo é Cristo’,

26 Revista com sede na cidade mineira de Viçosa, na Zona da Mata, foi fundada em 1968 como um tabloide de oito páginas em papel jornal, e é de cultura cristã reformada. Como editora, começou a publicação de livros em 1993, tendo hoje mais de 150 títulos em catálogo.

73

‘Santo, Santo, Santo’ e tantos outros, é com tristeza que tenho acompanhado a

mediocridade dos nossos hinos modernos, com raras exceções”27.

Canini casou-se, com quase 60 anos de idade, com Maria de Lourdes,

professora universitária e que também desenhava. Os dezessete anos de

casamento, segundo ela, foram de muito companheirismo.

A simplicidade e a humildade eram características marcantes da vida e do

trabalho do cartunista: “Todos os desenhistas veneram ele pela grande simplicidade

que ele conseguiu no traço. Em meia dúzia de traços ele resolvia tudo” - comentou

o cartunista Santiago. Luís Fernando Veríssimo declarou: “Sou fã do Canini, do seu

traço fino, diferente e despojado”. O editor do último livro dele, “Pago pra Ver”

(IEL/Corag, 2012), ressaltou a sua humildade: “Ele é genuíno o tempo todo. Embora

seja considerado um dos melhores do mundo no humor, o Canini jamais se gabaria

disso. Porque, na verdade, não se gaba de nada”. Ele era avesso a novidades

tecnológicas e a viagens. Os desenhos dele para Ultimato chegavam pelos Correios,

alguns feitos em papel de rascunho e “tratados” por meio de cortes e cola no papel.

Não gostava nem de viagens curtas. Confessou que nem sequer conheceu o Rio,

palco das histórias de Zé Carioca.

27 Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/346/morre-o-cartunista-renato-canini> Acesso em: 05 out. 2017.

74

Figura 8 - A glória e o luto, em visões distintas de uma mesma realidade?

Fonte: Arquivo digital do autor

Figura 9 - A luz no fim do túnel - possivelmente uma referência ao projeto – secreto– de desenvolvimento de um artefato atômico pelas Forças Armadas na década de 1980, sob a ótica de Canini.

Fonte: Arquivo digital do autor

75

Figura 10 - A briga do cristão Canini contra o pensamento do ateu Freud, no seu personagem “Dr. Fraude”

Fonte: Arquivo digital do autor

Na arte de Canini, a sua fé era professada na defesa da natureza e das

liberdades civis e na sua crítica ao pai da psicanálise, Sigmund Freud, ateu confesso.

Figura 11 – Exemplos do seu humor – ou mandato cristão - no engajamento ecológico

Fonte: Arquivo digital do autor

76

Outra referência ligada ao humor neste período, digno de registro, foi a de

Cláudio Marra, outro pastor presbiteriano que dedicou muitos anos da sua vida a

dirigir todo o departamento da Editora Abril, na época, a maior publicadora de

Histórias em Quadrinhos de toda a América Latina, embora não propriamente com

conteúdo político de resistência, sendo responsável pela edição de dezenas de

revistas, com milhões de exemplares mensais, tais como toda a linha de Walt Disney,

de Maurício de Souza, bem como as dos super-heróis das gigantes Marvel e DC

Comics. Marra começou sua carreira na Editora Abril, em 1969, como letrista das

publicações Disney e não demorou muito para chegar topo, ao cargo de Chefe de

Redação. Em 1969 começou seus estudos na Faculdade Teológica Batista, de onde

sairia para plantar igrejas na África do Sul. De volta ao país, ainda em 1976, retomou

a carreira nos quadrinhos, tendo permanecido até 1989 –testemunhando muitas das

transformações sofridas pelo setor. Hoje, o pastor Cláudio Marra serve como escritor

e editor da Editora Cultura Cristã oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil 28.

2.2. O cenário para um novo tempo na espiritualidade evangélica

Magali Cunha, no seu “A explosão gospel” revela que o alinhamento das

lideranças evangélicas com os ideais da ditadura, havia provocado uma

desarticulação sem precedentes dos movimentos de juventude protestantes que

acabou por estabelecer uma apatia entre a juventude e que acabou por ser

preenchido nos anos 1970 por organizações paraelesiásticas, que já tinham surgido

28 Disponível em: <http://www.deusnogibi.com.br/entrevistas/claudio-marra/> Acesso em: 13 out. 2017.

77

por volta dos anos 1950 e pelos grupos musicais que surgiram como alternativa para

a atuação da juventude.

Nesse momento, grupos até mesmo dentro das igrejas já tinham adquirido a

capacidade de usar o mesmo artifício de linguagem, do humor, no caso,

moldando sua pregação numa forma mais próxima do público, menos pesada,

menos erudita teologicamente que os sacerdotes que ainda não se davam conta das

mudanças à sua volta, mas totalmente adaptadas e entendidas pelos fiéis, ou pelo

público “não-alcançado”, ou não religioso.

Bordieu enfatiza que

“Em resumo o profeta não é tanto o homem “extraordinário” de que

falava Weber, mas o homem das situações extraordinárias, a respeito

das quais os guardiães da ordem pública não têm nada a dizer, pois

a única linguagem de que dispõem para pensa-las é a do exorcismo.

É pela capacidade de realizar, através de sua pessoa e de seu

discurso como palavras exemplares, o encontro de um significante

que lhe era preexistente, mas somente em estado potencial e

implícito, que o profeta reúne as condições para mobilizar os grupos

e as classes que reconhecem sua linguagem porque nelas se

reconhecem.” (BORDIEU, 2015, p. 75)

Como nas artes da época, de muita efervescência criadora, as igrejas, pelo

surgimento de profetas, de que falava Bordieu, adquiriram novas e surpreendentes

formas de pregação, tirando-a dos púlpitos ou moldando a sua linguagem a partir

deles. Paralelamente à revolução política, as transformações do Brasil da época,

surge uma revolução simbólica. O mesmo autor conclui citando Karl Marx que

“...uma revolução simbólica supõe sempre uma revolução política,

mas a revolução política não basta por si mesma para produzir a

revolução simbólica que é necessária para dar-lhe uma linguagem

78

adequada, condição de uma plena realização: “A tradição de todas

as gerações mortas pesa excessivamente sobre o cérebro dos vivos.”

(BORDIEU, 2015, p. 77)

Ao repensar a linguagem, que antes a segregava na periferia da sociedade,

grupos oriundos das igrejas evangélicas ocupou escolas, teatros, universidades,

cinemas e usando ainda vigorosos recursos e meios tais como bonecos, a música,

o teatro, a dança, as Histórias em Quadrinhos, e etc... Qualquer lugar ou situação,

virou campo santo, lugar de culto, fazendo valer a frase de John Wesley, pregador

inglês: “O mundo é a minha paróquia”.

Como registrou a pesquisadora Magali Cunha na sua obra, grupos de música

marcaram a passagem de uma música litúrgica tradicional a outra mais adequada à

contemporaneidade, com poética e música entendidas como expressões

demoníacas por algumas igrejas e pelo despojamento dos artistas em relação ao

uso de vestimentas e da informalidade da linguagem (CUNHA, 2007, p.81). Essa luta

pelo domínio do modo de exercício da ação religiosa era o que Bordieu nominava.

As igrejas hostilizavam os que classificavam de “rebeldes”, os “hereges”, os

“mundanos”, enfim tanto quanto se beneficiavam deles, pelos frutos, na forma de

novos conversos que vinham como fruto de uma pregação que fugia ao “normal” e

que reconheciam sua linguagem porque nelas se reconheciam, menos erudita e mais

prática, menos formal e mais simples e coloquial.

Algumas não conseguiram capitanear esse benefício e, sem espaço no campo

onde atuavam, abriram novas agremiações ou associações, missões, igrejas...onde

podiam viver esse novo modo de fé, mas é fato que já no final ali, nesses anos de

79

“arranque” do movimento evangélico, o embrião de uma dessecularização que viria

a surgir, mais presentemente se fazia ver, como aponta Lísias Nogueira Negrão:

As análises de Weber foram válidas para um período encerrado da

história do Ocidente: o apogeu da racionalidade num mundo

desencantado, em que o sagrado se exilou. Mais recentemente

vivemos o período do chamado `retorno do sagrado' ou `revanche de

Deus', em que este mundo, de alguma forma, se reencanta. Mesmo

se considerarmos a realidade do Terceiro Mundo em geral e do Brasil

em particular, em que o sagrado persistiu, é inegável que a religião

aí se revitalizou, paralelamente ao reencantamento primeiro-

mundista. (NEGRÃO, 1994, p. 134).

A partir desse momento da vida nacional, especialmente aquele do ambiente

eclesiástico com novas visões de ser igreja, que se dividem e subdividem em vários

grupos de interesses, classes, arte e outros itens surgiram. Se na sociedade civil as

transformações ocorreram, ainda mais no espaço dinâmico da religião. Esses eram

o tipo de conflitos que Bordieu chama de “uma forma particular da luta pelo

monopólio”, a oposição entre a ortodoxia e a heresia que se estabelece entre os

sábios, ou teólogos, no caso e a elite intelectual da denominação (BORDIEU 2005,

p. 63). No seu Protestantismo e modernidade no Brasil, Valdinei Ferreira citando

Bordieu, ressalta que para ele: “as vanguardas representam dessacralizações

sacralizantes que nunca escandalizam senão os crentes” (FERREIRA, 2010, p. 228).

Grupos que queriam mudanças nas igrejas ocupavam espaços de vanguarda, nem

sempre fáceis de perceber pelos membros das igrejas pouco afeitos às questões e

discussões teológicas. E nem sempre espaços políticos ideológicos, como vimos a

partir desse período. Cunha nomina no seu “A explosão gospel” (2007), grupos – em

várias áreas da cultura - que deram voz aos membros que ansiavam por uma

mudança - e não apenas os grupos pentecostais e neopentecostais que surgiam e

80

que surgiriam mais adiante, simplesmente por terem percebido os anseios de uma

imensa massa sedenta pela sacralização da sua vida cotidiana em meio à

polarização ideológica que pouco, ou nada dizia respeito à sua sede por um Deus

“amigo, e próximo” e não tão alienado das mazelas sociais do país.

No ocidente, mudanças de perspectivas aconteceram em um ritmo intenso e

vertiginoso a partir da segunda metade do século XX, com as formas de vida

contemporânea, a se assemelham ao líquido, metáfora usada por Bauman no seu

conceito de “modernidade líquida” para caracterizar esse novo tempo, pela

vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a mesma identidade por muito tempo,

o que reforça um estado temporário e frágil das relações. Segundo ele, na

modernidade sólida, período anterior a esse atual, os conceitos, ideias e estruturas

sociais eram mais rígidos e inflexíveis. O mundo tinha mais certezas. A passagem

de uma modernidade a outra acarretou mudanças em todos os aspectos da vida. Ele

entende que a nossa sociedade teve uma maior emancipação em relação às

gerações anteriores. A sensação de liberdade individual foi atingida e todos podem

se considerar mais livres para agir conforme seus desejos. Mas essa liberdade não

garante necessariamente um estado de satisfação. Ela também exige uma

responsabilidade por esses atos e joga aos indivíduos a responsabilidade pelos seus

problemas. O que os libertava, também os deixava mais inseguros. Isso é provado

no vácuo deixado quando a ditadura, ou o regime de exceção que uniu o Brasil todo

num projeto político que se resumia a nada mais que a esperança de que, ao

acabarem com o projeto militar de poder, o país, o mundo, a vida seria outra. Ao

acabar o alvo-comum contra o qual todos lutavam, o mundo seria diferente. Nada

mais enganador, mostrou-se a realidade quando o inimigo comum deixou de sê-lo,

mesmo ainda antes que o primeiro governante civil fosse empossado na presidência,

81

pois como afirmavam os cartunistas e chargistas do período: “a piada perdeu sua

graça pois até o governo já critica o governo”.

Na canção “Cálice”, uma escrita e originalmente interpretada pelos

compositores brasileiros Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, em que este último

havia composto o refrão "Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue",

numa óbvia alusão à agonia de Jesus Cristo no Calvário, tendo a ambiguidade (cálice

/ cale-se) sido imediatamente percebida por seu parceiro. Esse elaborado jogo de

palavras tinha a intenção de despistar a censura da ditadura militar brasileira para a

música, mas não tendo conseguido, puderam lançá-la apenas em 1978, e nela, o

esvaziamento do poder da repressão e do arbítrio já era registrada em versos:

“De muito gorda a porca já não anda,

De muito usada a faca já não corta”

No final do período ditatorial, a julgar pela temática existencial que começava a

dominar as TVs nas suas novelas populares, as músicas, as peças de teatro e o

cinema e nos Quadrinhos, a grande massa da população descobrira afinal, que tinha

um corpo, uma alma e que era afinal, de carne e osso e havia uma outra parte nessa

história que precisava ser cuidada e que não era apenas a da nação.

Essa era a época da série televisiva Malu Mulher (escrita e dirigida por Daniel

Filho estreada em 24 de maio de 1979 pelo canal quase hegemônico na audiência

de lares do país, a Rede Globo), que retratava a condição da mulher brasileira no

final dos anos 1970 através do cotidiano de Malu, uma personagem que encarnava

temas considerados tabu, como o da mulher independente, (uma socióloga paulista

de classe média), divorciada e mãe de uma menina de 12 anos, num enredo mais

do que atual para a época, embora tivesse negada a existência a não ser pela

82

maneira superficial e preconceituosa com que era tratada nos púlpitos da igreja

protestante, tradicional ou pentecostal.

Nos Quadrinhos, excelente meio de se “medir” o espírito de um povo, ou de ler-

se a cultura de massa (Álvaro de Moya, ex-professor de História em Quadrinhos da

USP, aponta na sua obra “Shazan, que mais de 70% das HQ do período da ditadura

em 1970, tinham como o terror como temática); mas os enredos começavam a mudar

– da política para os dramas existênciais.

O artista Angeli (Arnaldo Angeli Filho, São Paulo, 1956), por exemplo,

cartunista do jornal Folha de São Paulo na época, lança uma série de personagens

que encarnavam a nova realidade e ambiente do cidadão-comum: Rê Bordosa

(1984), uma mulher emancipada, alcoólatra, ninfomaníaca, desbocada e desprovida

de bom senso, cujas histórias giram em torno de suas manias e desejos e cuja

personalidade podia ser resumida na sua profissão de fé: “do cristianismo gosto

apenas de duas coisas: do vinho e do pecado”; Meia-oito (1980), um quarentão

saudosista da época da luta contra a ditadura (numa referência ao ano de 1968 e

das convulsões sociais no planeta) que o teria deixado órfão e sem bandeiras

algumas pelo que lutar e que encarnava os temores e as incertezas de uma

democracia que dava os primeiros passos para voltar a andar. Seu fiel seguidor na

causa revolucionária é Nanico, um parceiro homossexual enrustido, um dos

primeiros personagens a tratar do tema, condenadíssimo e negado pela sociedade

e pela religião, mais ainda.

Glauco Villas Boas (1957-2010), que assinava simplesmente Glauco, outro

cartunista também surgido no jornal Folha de São Paulo, lança em 1981, o Geraldão,

um consumidor inveterado e um hipocondríaco de uns 30 anos, solteiro que mora

83

com a mãe - com quem tem uma relação neurótica- e continuou virgem até o fim da

sua publicação, na morte prematura do seu autor. Geraldão bebe, fuma muito, vive

atacando a geladeira e toma todos os remédios que vê pela frente.

Os filmes do cinema nacional com uma temática existencial, muito além da

crítica social, tema presente em toda essa produção, surgem com sucesso de público

e crítica, como “A Hora da Estrela” (1985, com roteiro de Alfredo Oroz, Suzana

Amaral e Clarice Lispector), um romance sobre uma migrante nordestina

semianalfabeta e o seu romance com um também imigrante e cuja protagonista foi

ganhadora do Urso de Prata, de Berlin; “Eles Não Usam Black-tie” (1980, com roteiro

de Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman), sobre um jovem operário Tião e sua

namorada Maria que se casam ao saber que a moça está grávida, um movimento

grevista e um pai, um velho militante sindical que passou três anos na cadeia durante

o regime militar e que, apesar da política, tem o drama familiar/existencial como

centro. Foi premiadíssimo em vários festivais internacionais, e tantos outros a

retratarem o período e o clima da época.

Na música, “Menino do Rio” e “Lua e Estrela” (Caetano Veloso, 1980 e 1981);

“Pro dia Nascer Feliz” (Roberto Frejat, 1982); “Meu Bem Querer” (Djavan, 1980) e

tantos outros sucessos, trocavam a “luta” política, pela paixão, o amor, os conflitos e

o estar bem consigo mesmo e a revelar uma tendência.

Nas igrejas, músicas aproximam-se da cultura nacional, nos ritmos e

aproveitam-se do momento de desencanto e, abandono do engajamento. Aqui, o

humor, não para fazer rir, mas como crítica, na ironia, no questionamento das

“verdades”, e na leveza do discurso. Ou como bem Rubem Alves afirma no prefácio

do seu “O Enigma da Religião”:

84

“Não basta o saber; é preciso o sabor. É preciso que as palavras

sejam belas, para seduzir ...Criei coragem também para dizer o riso.

Ele sempre esteve em mim. Mas a seriedade do mundo da ciência

não permite brincadeiras. Por isso que lhe falta o poder para exorcizar

demônios. Tudo sério, tudo triste. Não, não me enganei ...Quem fica

triste pode sempre ficar alegre. Mas no mundo da ciência também

isso é proibido. Há de se cultivar a objetividade, uma fala vazia de

lágrimas e de risos, aquele que escreve sempre ausente. Mudei-me

para outro lugar. Acontece que eu também sou parte da realidade,

com minhas alegrias e tristezas, e o meu riso são as cócegas com

que percorro cavalos arreados e exames de doutoramento. Falta de

seriedade? Se o riso faz correr o medo, porque não? Com frequência

o humor entorta a arma. Os dominadores ficam tranquilos quando

veem o medo e a tristeza: sinais de que moram na alma dos

dominados...

Beleza e riso são o que penso sobre a religião (...)

Quanto ao riso, lembro-me da afirmação Reinhold Nebuhr, de que o

riso é o início da oração. Só Deus tem o direito de se levar a sério.

Quem compreende isso tem a liberdade não só de rir dos outros que

se levam a sério, como também rir de si mesmo. E quem é capaz de

rir de si mesmo começou a andar no caminho da bondade e da

mansidão. Os sérios estão condenados a ser inquisidores.

Medito sobre a religião como um caminho para o riso e para a beleza

...Mas são estas coisas que deixei escondidas, nas entrelinhas

quando escrevi este livro. Se o leitor tiver paciência e souber escutar,

é bem possível que ele ouça risos e veja invocações de beleza no

lugar onde elas se escondem...” (ALVES, 2007, p.7).

Dar sabor ao saber, tudo sério, triste, era o que se pretendia no âmbito da

religião, especialmente e, no caso da época em estudo, aquela ideológica e

teologicamente correta segundo o tipo ideal criado por Alves, à moda weberiana,

rotulado de "protestantismo da reta doutrina" – tradicional ou não – mais pelos leigos

nesta, tradicional, ou pelas denominações mais novas ou pelo movimento

neopentecostal, já mais notado na década de 1980. Afinal os sacerdotes, ou

85

dominadores, ou mantenedores da constância ou da rotina ficam tranquilos quando

veem o medo e a tristeza, e a sociedade já não era a mesma.

Sendo o humor, uma linguagem mais afeita à crítica, mais revolucionária, é

normal que tenha sempre sido vista como perigosa para a manutenção da ordem. E

a manutenção da ordem social, na ótica de Max Weber, é papel da religião, a primeira

das suas funções. Bourdieu reforça a ideia e afirma que

“Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre

uma função de conservação da ordem social contribuindo, nos

termos de sua própria linguagem, para a ‘legitimação’ do poder dos

‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos dominados’” (BORDIEU,

2015, pg.32)

Mas ao final dos anos de chumbo da ditadura, a linguagem da pregação e da

propaganda religiosa começa a alterar-se e a sair dos púlpitos e já não estava presa

aos limites do que definiam por sagrado. Sagrado era alcançar pessoas e atendê-

las no seu sofrer, no modo, no estilo e na linguagem que melhor essas entendessem

e sobretudo, com o riso, a ironia, capaz de “lerem” a vida e os desafios que lhes

trazia. Às pessoas, bastava desejarem o Eterno, que era incentivado, não a

mudarem de roupa, de agremiação ou de linguagem porque ao contrário do que

enfatizava a pregação “ortodoxa”, o apelo era agora “Deus o chama como está”. Era

a leveza da religião na pregação que fugia aos padrões.

Em 1960, Robert Escarpit, citado por Minois, afirma

A religião ainda parece indene. Esperemos, por aqueles que se

apagam a ela, que isso não dure muito, pois, senão ela morrerá. Em

nosso mundo, tenso até o ponto de ruptura, não há mais nada que

possa sobreviver a muita seriedade. O humor é o único remédio que

que distende os nervos do mundo sem adormecê-lo, que lhe dá

86

liberdade de espírito sem torna-lo louco e põe nas mãos dos homens,

sem quebrá-las, o peso de seu próprio destino (MINOIS. 2003; p.572)

A sociedade, concluiria uma parcela inovadora de fiéis evangélicos, desejava

Deus, mas rejeitava a sua “embalagem” dos seus representantes – fossem eles

igrejas ou religiosos – com a sua carranca e peso. Afinal, nas décadas seguintes,

como afirma Minois

Descobre-se que Deus é um grande humorista, que ele sabe rir e

aprecia os que riam ao seu redor. Basta do Deus terrível e vingador:

o Deus new-look não somente sabe brincar como chega até a

gargalhar. É o testemunho de Pierre Perret: “Se o bom Deus existe,

espero que ele gargalhe, que se dobre em dois, ouvindo minhas

canções. Se Deus não tem humor, onde vamos parar, eu vos

pergunto?”. Deus tem humor, isso é confirmado por Ami Bouganin em

O riso de Deus. E, tal Pai, tal Filho: Jesus não é desprovido do

espírito, como o demonstra Didier Decoin em Jesus, o Deus que ria

(MINOIS, 2003, p. 572)

Estava dada a largada pela conquista de espaço e na direção da fome da alma

do povo e da defesa da fé, e não só pela utilização de espaços antes impossíveis da

mídia. Se o rádio já era usado pelas igrejas adventistas, pentecostais e

especialmente as independentes desde 1940, a utilização desse meio só se

popularizou mais tarde, quando já em 1980, estimativas calculavam que 10% das

emissoras de todo o país eram religiosas (GOMES, 2011). A imprensa – jornais e

revistas evangélicas de grande circulação, surgem algumas com venda em bancas

seculares, e a TV mais fortemente, no final dos anos 1970 - e a indústria do “gospel”,

ou “do fenômeno como constituinte de um novo modo de vida evangélico” (CUNHA,

2007, p.11) viria na sequência. O que mudou primeiro, foi a linguagem. E a postura,

87

mais leve, mais solta, que manifestava uma divindade mais próxima, menos

carrancuda e distante da criatura ...enfim, mais brasileira, mais culturalmente

contextualizada naquele período de existência do regime de exceção e de arbítrio,

que pôs o movimento evangélico contra a parede, forçando as mudanças. E os frutos

destes novos ventos, logo soprariam sobre o país. E sobre o avanço da fé

evangélica. Minois pergunta “Se ele é, de fato, Deus do amor, deve ser também Deus

do humor. Deus é humorista ou, não é?”.29. O autor já havia avaliado que o

monoteísmo estrito exclui o riso do mundo divino. E questiona “do que poderia rir um

Ser todo-poderoso, perfeito, que se basta a si mesmo, sabe tudo, vê tudo e pode

tudo?”30

Como veremos a seguir, o Todo poderoso, afinal, se revelou no Brasil, na sua

vertente mais bem-humorada, rindo disso tudo.

29 MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p.573 30 Idem. p.111

88

3 - O humor na propaganda e espiritualidade evangélica - inovação

na vivência do sagrado

3.1. A contracultura cristã evangélica emerge lá fora

O final dos anos 1950, e chegando ao seu apogeu com o movimento hippie na

década de 1970, uma onda de contestação e de questionamento dos valores e

padrões ocidentais, e de comportamentos da cultura dominante mexe com a

sociedade. Mesmo possuindo um caráter pacífico, o movimento de contestação

atingiu não somente a Europa, como chegou aos Estados Unidos, e ficou conhecido,

numa leitura sociológica, como contracultura. Ele possuía um teor social, artístico,

filosófico e cultural na educação, na política, na economia. Esse movimento, acaba

por ficar associado a uma cultura marginal, underground e alternativa.

Jovens intelectuais inspiravam a valorização de ideais como a simplicidade, o

amor, a natureza, como forma de tornar a liberdade, a sua mais forte característica.

Alertavam que o engajamento contra o consumismo os levaria à uma libertação do

espírito, de luta pela paz e ainda, a valorização das minorias e levantando-se contra

os valores capitalistas impostos e do conservadorismo, eles propunham uma vida

livre nos relacionamentos, amoroso ou de natureza sexual.

Essa inovação de valores chegou a valer-se de um questionamento da

espiritualidade tutelada, institucionalizada, “hipócrita” judaico-cristã e popularizou-se

religiões e a filosofia orientais, dentre elas, o hinduísmo, o budismo, a meditação

transcendental e outras.

O slogan “paz e amor” (peace and love) ou ainda, “faça amor, não faça guerra”

(make love not war), trazia na proposta, uma vida de valorização e prática

comunitária e pacifista, e também de igualdade e o fim das injustiças.

89

Deixaram eles a segurança confortável dos seus lares para viverem em

sociedades mais “abertas” (naturistas e de valorização da natureza), e chegaram a

ressuscitar o estilo de vida nômade.

Contra os “modismos” impostos pela indústria cultura, os hippies usavam

roupas despojadas, sandálias, roupas multicoloridas e rasgadas, e os cabelos

compridos para ambos os sexos.

Mesmo tendo origem nos Estados Unidos, a contracultura se disseminou

rapidamente por países da Europa e a América Latina.

Mas foi um movimento cristão, nascido como uma reação ao movimento Hippie:

o Jesus Movement. Usando o Rock, faz surgir a Música Cristã Contemporânea

(CCM), que contava com bandas como The Second Chapter of Acts, A Band Called

David, All Saved, Freak Band, Petra, Love Song, Servant, Stryper, Resurrection

Band, , The Joyful Noise,... e a promover músicos como Barry McGuire, o guitarrista

Phil Keaggy, Dion Di Mucci, Randy Stonehill, Randy Matthews, Paul Stookey (ex-

integrante da banda de folk Peter, Paul and Mary), Andraé Crouch (and The

Disciples), Keith Green, and Larry Norman, dentre outros.

Muitos se converteram à fé cristã, mas outros, sem abrirem mão do modo

alternativo de vida, chegaram a dar vida à movimentos que juntavam a cultura hippie

à espiritualidade, como foi o caso dos Meninos de Deus e outros.

A influência do Jesus Movement foi patente quando da chegada de alguns

missionários vindos dos EUA e da Alemanha, que inspiraram uma nova concepção

de música cristã. E a não ser no aspecto musical, mais contemporâneo, nada mais

provocou, e ainda assim, apenas no âmbito das igrejas evangélicas. Mas foram nos

anos 1970, que grupos musicais e bandas apresentaram mudanças musicais, tais

90

como ritmos daquela atualidade e mais afeitos à cultura e ritmos brasileiros, e

comportamentais dentro do Protestantismo brasileiro, que ganhariam expressão

depois do fim da ditadura militar, em meados de 1980 com a instituição de um

mercado de consumo de música que foi denominada de “gospel” por aqui (o termo

"gospel" aqui no país, é o que é ainda hoje chamada de "Música Cristã

Contemporânea" nos EUA).

3.2. O imperativo missionário protestante brasileiro e os desafios da sua

cultura

Uma das grandes características da fé protestante, reformada ou como a

chamamos por aqui, evangélica, sempre foi o proselitismo e, para isso, influenciar

ou interagir com a cultura sempre foi um desafio. Do movimento dos primeiros

protestantes, seja ele de matriz imigratória ou de missão, a alcançar a grande massa,

os evangélicos investiram na educação, seja pela criação de escolas, colégios, seja

pelo contato pessoal, onde não se dependesse só da ação do clero, nas igrejas como

no esforço pessoal de cada membro de igreja.

Se Weber (2001) já havia notado a grande marca da fé de origem reformada –

que trocou a emoção pela razão – seja pela exigência da leitura dos textos bíblicos,

seja pela proposta de se compreender, mais do que obedecer, chegando a propor

que para o protestantismo, “todos os meios mágicos na procura da salvação (seriam

para essa corrente) como superstição e sacrilégio”31, no Brasil o imperativo da

pregação enfrentou desafios novos, até que finalmente obtivessem eles o sucesso

que os marcaria nas décadas seguintes aos anos 1960.

31 (WEBER, 2001, p. 93-94)

91

Curiosamente, o humor já fazia parte da cultura tupiniquim e para isso, as

escolas teológicas, seminários e onde se formassem líderes, pareciam

hermeticamente fechados a isso. É certo que não procuravam saber o papel do riso

na comunicação, especialmente por aqui. Ensinava-se a pregar nos púlpitos, o dom

da oratória era buscado, a erudição, não só bíblica, mas acadêmica, mas não o

“rebaixar-se”, falar a linguagem do povo simples, que sempre fez a maioria do povo

e, no que toca ao nosso estudo, fazer piada com o que não se pode mexer, o

Sagrado, o Deus da Bíblia era algo descartado.

Segundo notou Minois, “a invasão da linguagem por termos coloquiais,

populares e chulos não deixa de inquietar a elite social e intelectual. Falar com os

patifes é tornar-se igualmente patife, é favorecer a infiltração da ralé na melhor

sociedade” e acrescenta “quando a burguesia começa a falar a língua do povo, a

subversão social espreita” (MINOIS, 2003, p. 409 e p. 410). É totalmente aceito, que

há um papel social no riso, mas é certo que naquela época, a igreja evangélica não

se apercebia disso.

Já Jean de Léry, tido como um dos primeiros missionários calvinistas enviados

às terras tupiniquins, não só já havia constatado o humor dos nativos, quando da sua

vinda ao Brasil do século XVI, em 1556, para se juntar com o propósito evangelizador

na “França Antártica”, como ainda registrou o fato no seu História de uma viagem

feita ao Brasil. Ele afirma que para sua surpresa, chegando de uma Europa séria e

fanática, foi constatar que para os índios naturais da terra, o rir era coisa normal e

feito à toda hora. É um “povo que foge à melancolia”, e acrescenta: “eles detestam

os taciturnos, mesquinhos e melancólicos”. O missionário europeu ainda indaga no

seu relato se este estado natural deles seria de uma hilaridade permanente? “Eles

só fazem rir”. Se uma piroga virasse, o que fatalmente faria desesperar um europeu,

92

eles “começavam a rir tão alto que nós os vemos e ouvimos soprar e troar sobre a

água como uma tropa de soldados”32. Minois cita o relato e descreve mais uma

experiência de Léry

Uma vez, Jean de Léry julga que se preparavam para comê-lo, mas

era um engano, que suscita grandes gargalhadas. Outra vez, os

índios apressam-se em matar e comer uma mulher; Jean de Léry,

caridoso, propõe-se a batizá-la, mas ela lhe ri na cara. “ela rindo de

novo, foi golpeada e morreu desta maneira”. Foi uma alegre refeição.

Será que o autor tinha consciência da incongruência do seu gesto?

Jean de Léry fica perplexo. (MINOIS, 2003, p. 294)

Em terras não só desta vertente cabocla, mestiça, do humor do índio, com a

malícia do africano importado, de Macunaímas, de Jecas Tatu, é certo que a sisudez

protestante não tinha como alcançar as ruas com a pregação racional e fria dos

europeus de Genebra ou das Europas. Era preciso mais. Era preciso sair-se dos

limites dos templos e falar a língua do povo, tocar a sua cultura, uma cultura em

ebulição, em franca resistência.

O humor, desde sempre parece ser mesmo marca da cultura nacional fazendo

essa ligação – pelo oposto, como que de trincheira – à condição do invadido ou

colonizado, ou até mesmo, melhor aplicado, do explorado pela potência imperialista,

pelos “de fora”, e naqueles tempos em que o descompasso do que a ditadura vivia

e o que o cidadão ansiava era patente. Na necessidade de se resistir é que o humor

talvez se tenha refinado naquele momento e o movimento evangélico, no afã de

cumprir com a sua vocação proselitista, desejava alcançar a sociedade e não seria

com uma linguagem importada, distante que conseguiria atingir o seu objetivo. Junto

com o desconforto de uma geração inteira de fiéis diante de uma sociedade que a

32 J.DE LÉRY, Histoire d’un voyage em terre de Brésil. Le Livre de Poche: ed. F. Lestringant, 1994, p.300

93

via como alienígena na linguagem e alienada no posicionamento, precisaria ousar.

Talvez, sem a crise, teria se acomodado, mas os tempos exigiam-lhe outra postura.

E para isso, nem talento é preciso.

Henfil33, o grande nome do humor e do cartum nacional, defende que todo

mundo tem talento, mas ele é sempre fruto da necessidade, o que define como

humor político. Ele afirma

Você não sabe desenhar nada. Mas um dia você vê um incêndio e lá

em cima tem uma pessoa desesperada e esta pessoa é analfabeta.

Você tem que avisá-la que os bombeiros já estão chegando para

salvá-la, para que ela não pule. Não adianta escrever no chão, porque

ela não sabe ler. Tem que desenhar o que puder. O outro não

entende. Aí você vai mudando o “desenho” com a ajuda do outro lá

em cima. Muda, cria, até ele entender. Aí está o seu desenho.

(HENFIL / SOUZA, 1985, p.89)

O consagrado autor, ressalta ainda o poder da linguagem do humor, contra o

poder - e até contra a censura (mesmo que aplicado ao desenho, à arte gráfica) -

que para ele moldou o modo de ser do brasileiro

O humor gráfico tem uma coisa interessante, ele marca muito! Você

quando lê um artigo e gosta, você pode lê-lo mais três a quatro vezes.

Quando gosta de uma música você pode escutá-la mil vezes. Você

pode ver mil vezes o mesmo gol. Já o desenho de humor, a coisa

gráfica, você só vê uma vez. (Mata) na primeira. (HENFIL / SOUZA,

1985, p.76 e 77)

33 Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil (1944 — 1988), foi um cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro, Henfil criou em 1970 a revista Fradim, que tinha como marca registrada o desenho humorístico, crítico e satírico, com personagens tipicamente brasileiros. Trabalhou também com cinema, teatro, televisão e literatura, mas ficou marcado mesmo por sua atuação nos movimentos sociais e políticos brasileiros.

94

Parece lógico que aí está a epistemologia do humor e não apenas gráfico. A

necessidade de se alcançar o outro, o receptor de uma mensagem, faz o humor

entrar em cena. Ele aliás, separa as coisas, reduzindo a sua própria capacidade de

desenhar. Ele afirma

O problema é que eu nunca me preocupei seriamente com o

desenho. Até hoje uso o mesmo papel do primeiro desenho, ou seja,

qualquer um. O que me mobiliza é o que eu tenho de contar. O

desenho vem atrás da ideia, ele é o espelho da ideia. Se eu não tenho

uma ideia eu não formo imagens, eu não consigo desenhar nada.

Acho que é o mesmo caso do Veríssimo, que não sabe desenhar

nada, mas que tem muito o que dizer. Aí criou um desenho pessoal

feito uma assinatura. E aí você vira uma escola, um caminho.

Toda vez que se discute isto, eu me lembro de uma fábula. Aquela

do cachorro novo que ficava girando e correndo atrás do rabo,

tentando mordê-lo. Chega um cachorro velho e pergunta porque ele

fazia aquilo. O cachorrinho explicou que haviam contado pra ele que

o rabo era a felicidade e por isso ele queria pegar o rabo. O cachorro

velho disse então para ele que ele parasse de girar e que saísse

andando, sempre em frente. O cachorrinho saiu andando e viu,

deslumbrado, que a felicidade vinha atrás dele. Pô, bote uma ideia na

cabeça que o desenho vem atrás. (HENFIL / SOUZA, 1985, p.88)

O que Henfil dizia era talvez, que a expressão artística, ou qualquer que fosse

ela, segue o que se pretende dizer, a ideia, a proposta, a ...pregação. E se na

América do Norte a pregação renovara a linguagem, no Brasil, especialmente e mais

ainda, não seria diferente. E o humor poderia ser, como cremos nesta pesquisa, ser

utilizada contra a heresia, a impiedade, e até contra as próprias incongruências da

religião, como uma arma de dois gumes e destruir a ideia que há um divórcio entre

o riso e a fé.

95

3.3. Os ministérios paraeclesiásticos juvenis – o novo sopro de ar do humor na espiritualidade evangélica

Essa onda de renovação estética das artes, não apenas na música, não ficou

aí, nos movimentos cristãos evangélicos ou de matriz reformada da América. No

Brasil, ela acabou por influenciar e a interagir nas propostas de origem pentecostal

que já estavam aqui desde os anos 1950 a 1960, quando da sua primeira leva que

se aproveitou da concentração populacional das cidades, ligada ao êxodo rural. Na

América, esse movimento de contracultura já havia incendiado as igrejas e

movimentos de alcance da juventude, incorporando estrategicamente, um linguagem

mais simples, o humor e a descontração na vivência da fé. Magali Cunha, cita o caso

da música, quando os pentecostais romperam com a tradição de uma hinologia

protestante e

introduziram ritmos e estilos mais populares nas canções, incluíram

instrumentos de percussão e sopro no acompanhamento e

compuseram pequenas canções com melodia e letra simples para

serem cantadas nos cultos - algo muito próximo do que seria mais

tarde popularizado entre os evangélicos como "carinhos". A não-

aceitação das igrejas do PHM ao pentecostalismo refletia-se na

resistência em acompanhar o novo modo de cantar nos cultos e na

manutenção do privilégio à hinódia tradicional. Mas foi a renovação

musical empreendida pela prática das organizações

paraeclesiásticas nos anos 50 e 60, com a introdução dos "carinhos",

que veio a alterar esse quadro e abrir caminho para a popularização

da música religiosa que atingiria todo o campo protestante a partir de

então. (CUNHA, 2004, pg. 126)

Esse novo modo de vivência e espiritualidade menos formal, que nos

movimentos pentecostais não fica restrito à periferia das cidades, que é como ficou

patente por anos, com a pecha de uma “fé de gente simples”, mas foi “retocada”,

96

aprimorada em qualidade estética, no bojo de organizações paraeclesiásticas34, que

aqui se estabeleceram, a partir dos anos de 1950 e 1960, que buscavam alcançar

os nossos jovens e adolescentes.

Talvez, pela ausência do peso denominacional, suas estruturas de poder, a

responsabilidade da manutenção do capital simbólico, foi notória a contribuição para

uma nova cultura dentro das igrejas. Líderes que se formaram nos acampamentos,

ou nos seus institutos bíblicos, eram reconhecidos como mais versáteis e adaptáveis

às mudanças e, não poucos, foram conhecidos pelo seu bom-humor e sua

criatividade.

As mais importantes dessas organizações, vieram dos Estados Unidos:

Organização Palavra da Vida, a Mocidade Para Cristo, A Cruzada Estudantil e

Profissional para Cristo e o Serviço de Evangelização para a América Latina (SEPAL)

e a Aliança Bíblica Universitária – ABU e sua vertente secundarista, a ABS. Outros,

nasceram como fruto já desses grupos, e como resultado da inspiração que

trouxeram às igrejas evangélicas, tal como os Jovens da Verdade, nascidos como

uma missão evangélica, brasileira e autóctone, dentro do colégio José Manuel da

Conceição, uma instituição da histórica denominação presbiteriana.

Basicamente, utilizaram-se de estratégias que incluíam a realização de retiros

espirituais (os acampamentos, instituto bem popular na América do Norte),

congressos juvenis, reuniões de estudo e campanhas de alcance – ou evangelismo

- em espaços públicos, algo ainda hoje, não comum nas igrejas, que preferem

34 Palavra que vem de eclesia, (igreja) e o prefixo [par(a)-], do grego “pará”: junto de; ao lado de - e está relacionada a atividades que coexistem com o ministério eclesiástico. Sua característica é conectar pessoas com a fé, evangelizar, ou fazer prosélitos, mas não têm por objetivo rivalizar-se às igrejas e denominações, apesar de organizarem-se com independência em relação a elas. Buscam levar o Evangelho para cultura sem levar a igreja-instituição, a estrutura, apesar de incentivarem o novo fiel a buscarem-na e a ela se integrarem. Apesar a independência, vêm-se como cooperadores, como braços complementares à obra das igrejas e não concorrentes.

97

convidar pessoas às suas reuniões e cultos e lá, apresentar-lhes o evangelho. Tais

grupos, utilizavam na sua abordagem, apresentar a sua pregação, em lugares

inusitados tais como praças, ginásios, escolas, teatros, e até em igrejas – mas de

uma forma não usual – sempre com atuação musical, teatro, pantomimas, bonecos,

... Alguns deles chegaram a fundar institutos bíblicos ou seminários teológicos que

buscavam formar líderes com uma visão bem mais arrojada, ou descolada das

estratégias tradicionais de evangelismo ou para servirem nas suas igrejas locais de

origem.

Sobre esses movimentos, Nelson Bomilcar, músico e teólogo e ex-presidente

da Aliança Bíblica Secundarista, ele mesmo influenciado por anos de atuação num

grupo de treinamento de líderes, que usava a música, os Vencedores por Cristo de

que falaremos mais tarde, afirmou que estes “movimentos trouxeram uma lufada de

ar num período difícil da vida nacional, do qual as igrejas não estavam isentas”35

A Organização Palavra da Vida, fundada em 1957, em Atibaia-SP, por

missionários que vieram ao Brasil trabalhar entre os índios em 1952, com a criação

de um acampamento para impactar a vida de jovens com o evangelho. Em 1963,

inauguraram a Estância Palavra da Vida para também receber famílias. Em 1965,

seus fundadores, Haroldo Reimer e Ary Bollback, inauguram o Instituto Bíblico

Palavra da Vida que influenciou definitivamente gerações de jovens. Apesar de

oferecerem espaços de convivência e estratégias de evangelização inovadoras entre

as igrejas, eram muito tradicionais, inclusive nas artes e rigorosos para com o

vestuário e a aparência dos jovens.

35 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

98

Sobre esse tradicionalismo que era a marca do crente tradicional, Magali Cunha

afirma que

Os líderes dessas organizações eram apresentados e vistos como cristãos-modelo, não

apenas na conduta moral, mas na aparência - o vestir, o corte do cabelo, a postura do corpo,

eram baseados no padrão estadunidense -, e disseminavam uma beleza visual que deveria

servir de modelo para os jovens que aspiravam a atingir aquele estágio de consagração e

fidelidade a Deus (CUNHA, 2004, pg 124).

Tendo origem nesta organização, surgiu mais tarde, de maneira inovadora, já

nos meados dos anos 1970 o grupo Elo e a sua editora, que fugia e muito desses

padrões estéticos, incluindo no seu repertório, ritmos mais contemporâneos e com a

sua revista, chegaram a lançar as primeiras histórias em quadrinhos de propaganda

religiosa-evangélica do país, dos quais falaremos mais tarde.

Também no final da década de 50, cristãos de diversos países, ligados a

movimentos da Comunidade Internacional dos Estudantes Evangélicos (IFES, na

sigla em inglês), estimularam o surgimento de movimentos estudantis evangélicos

na América Latina. Robert Young e Ruth Siemens foram os pioneiros no Brasil em

1957, despertando os estudantes brasileiros a levarem a mensagem de Cristo ao

meio universitário. Surgiu então a ABU – Aliança Bíblica Universitária e na

sequência, a ABS – Aliança Bíblica Secundarista, movimento onde Nelson Bomilcar

iria atuar como seu presidente por anos.

Um outro desses movimentos, a Mocidade para Cristo, era a versão brasileira

do Youth For Christ, surgida nos Estados Unidos, como uma iniciativa espontâneas

de igrejas que promoviam concentrações evangelísticas, até que formalizaram o seu

nascimento, tendo à frente, Dr. Torrey Johnson e tendo como primeiro obreiro, que

99

é como chamam nas igrejas evangélicas, um pregador novato, o jovem Billy Graham.

Em 1947, surgem por aqui seus primeiros missionários, mas foi somente em 1954,

é que chegam para a fundação do movimento no país, o casal Paul e Jane Overholt,

consolidando a sua atuação nos esportes, nas conferências, na produção de

literatura e no trabalho com grupos musicais. Em 1955, reuniram cerca de 35.000

pessoas numa grande conferência, no estádio do Pacaembu, o maior público da

época em todo o mundo para este fim36. Além do seu trabalho nos esportes,

treinamentos, teatros, shows, congressos e encontros em várias cidades do país, a

organização organiza desde a década de 1980, os acampamentos chamados Som

do Céu, sendo a inspiradora de grupos com forte influência de MPB.

Outra digna de menção foi a Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (hoje,

chamada de CRU Brasil), fundada nos Estados Unidos por Bill Bright (1921-2003)

em 1951, com as suas Campus Cruzade na UCLA – Universidade da Califórnia, com

a visão de se alcançar estudantes, chega ao Brasil somente em 1970, com Manuel

Simões Filho, a convite do Dr. Bright. A organização apostou em filmes e literatura,

espalhando por todo o país, um folheto chamado “As quatro leis espirituais”, com

uma forma sintética da mensagem do evangelho, em conteúdo e apresentação, em

formato pouco maior que um cartão de visitas fechado e em poucas páginas, tanto

que foi por anos acusado por muitos, de “reduzir e simplificar demasiadamente o

evangelho”.

A organização, além de fazer ela própria a distribuição em ruas, escolas, e onde

quer que houvesse concentração de pessoas, saia pelo país, e em parceria com

igrejas, a treinar os membros dessas, na evangelização “boca-a-boca”, utilizando o

36 Disponível em <http://www.mpc.org.br/sobre-a-mpc-brasil> Acesso em 25 out. 2017

100

pequeno folheto. Ainda hoje de mais de um milhão, deles são distribuídos por igrejas

e organizações37.

Criada no início da década de 1950, a SEPAL – Serviço de Evangelização para

a America Latina, nasceu como um órgão local da OC International (One Challenge

International, nos Estados Unidos, e aqui, em 1963, com o “sonho de ver uma igreja

saudável, ao alcance de todo brasileiro, que possa levar o evangelho de Jesus Cristo

ao mundo todo e empenhados em causar impacto em líderes e igrejas, encorajando-

os e desafiando-os a desenvolver ministérios saudáveis”38. O nome originariamente

da “OC” era Overseas Cruzade, teve de ser abandonado, recentemente, na década

de 2000, por razões óbvias, diante da dificuldade histórica que o nome “Cruzada”

ainda traz, no contato e na relação com os islâmicos.

Foi nesta organização, muito respeitada pelas igrejas evangélicas de todos os

tipos, que Jaime Kemp, em 1968 criou, à semelhança de outras iniciativas na

América que usavam jovens para o trabalho de pregação – sua energia, sua

criatividade e capacidade de engajamento – para um grupo que, utilizando a música,

e uma dinâmica de discipulado aplicado por Kemp e sua esposa, de início – repetisse

o modelo, treinasse líderes das novas gerações de igrejas, não importando a sua

denominação. Através dessas “equipes”, que é como se chamavam, se

comprometiam a uma dedicação parcial de tempo, viajavam pelo país, visitando

igrejas, dando testemunhos da sua fé.

No início, as equipes se limitaram a traduzir músicas vindas da América, bem-

comportadas e de ritmos tradicionais, e, num espaço de uns dois anos, deram lugar

37 Disponível em <http://cru.org.br/nossa-historia> Acesso em 25 out. 2017 38 Disponível em <http://sepal.org.br/historia> Acesso em 25 out. 2017

101

à uma contextualização não apenas de conteúdo, mas de forma, com ritmos bem

brasileiros, como a bossa-nova, o baião, o que de início pareceu algo absurdo às

congregações onde parecia que “música que agrada a Deus era a americana”. Como

bem o afirmou Magali Cunha, “Os missionários traziam outra linguagem e, junto com

a doutrina protestante, pregavam também os seus valores culturais” (CUNHA, 2004,

pg. 39).

Música brasileira tinha um componente africano e, como se cristalizou por muito

tempo, a cultura afro-brasileira e seus ritmos eram interpretados como demasiados

contaminados pela sua associação às crenças e religiões africanas (leia-se

“diabólicas”!). Por esse viés, ritmos de matriz africanos, ou que cheirasse aos

profanos nordestinos, como o baião, o frevo, o xaxado, eram vistos como coisa de

gente profana, não santa. Ou numa outra interpretação, a cultura protestante não

podia ter humor algum. Era racional demais. Emoções e ritmos, era algo da esfera

da religiosidade popular, latina e católica.

Sobre essa “aculturação”, Jaime Kemp lembra

Sabe, tinha gente que criticava quando começamos com sambinhas.

Sabe, sambinha era aquela coisa do carnaval, de mulheres

seminuas, dançando na rua e era para as boates e danceterias, e nós

dizíamos não, não. E sabe onde aprendi isso? Eu estava em Caruaru-

PE num domingo, fazendo um seminário lá, e no sábado de manhã,

estando livre, fui pra praça e lá tinham dois repentistas – evangélicos

– fantástico! Olha, tinham um auditório de mais de mil pessoas ao

redor deles na praça. Quando eu cheguei lá, eles estavam cantando

sobre o Filho Pródigo. Um contava uma parte da história e o outro

entrava e continuava, bem no ritmo, eles estavam cantando, rimados

e tudo, quando eu percebi o quanto o povo estava colado a eles,

àqueles dois homens! Aí eu disse: “Senhor, é isso que temos de

102

fazer!”. Pegar a música e o sentimento da cultura e usar isso para

pregar o evangelho e isso era 1970.39

Apesar da falta de sintonia com o povo, as igrejas pareciam imunes à

“contaminação” com a cultura popular e endureciam em pregações contra o que “não

era digno de Deus”. Não faltaram nesse período, guerras pretensamente teológicas

sobre que instrumento musical – além dos ritmos – era ou não digno de Deus, ou

invenção de satanás e, portanto, inimigo da adoração cristã.

O instrumento musical protestante era o órgão, com repúdio aos

instrumentos populares de percussão e cordas. A hinologia –

mormentemente a grande fonte de inspiração espiritual, emocional e

de veiculação de conteúdos teológicos – estruturou-se por meio de

versões de hinos tradicionais europeus e norte-americanos ou

mesmo de canções populares daquelas nações. Isto refletia o sentido

de negação das culturas autóctones assumido pelo Protestantismo

Histórico de Missão: o popular anglo-saxão era admitido; o latino não

(ALVES, 1979, p. 103-105).

Em declarações repetidas, Kemp afirmou que desde cedo, defendia entre os

seus pares da organização, a necessidade de se contextualizar e não apenas

“importar” uma cultura cristã estrangeira e só usaram traduzir ou fazer versões de

canções americanas, para partirem de algum ponto e que os deixasse livres dos

hinos centenários tradicionais que se cantavam nos cultos das igrejas, solenes

demais para a juventude que pretendia alcançar. Ele afirmou

Nós quebramos tudo, éramos pioneiros na questão dos comportamentos.

Você se lembra que antigamente a bateria não entrava na igreja? Era um

instrumento do diabo. Agora não é mais. O interessante é que mudou. Se

converteu (risos). E também instrumentos com o baixo, o piano elétrico – só

tinha aquele órgão que você bombava para poder sair o som, então realmente

39 Entrevista concedida por KEMP, Jaime. Entrevista 1 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (23,8 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

103

houve algumas mudanças e, parcialmente, as mudanças diziam respeito a

questão do humor, que antigamente, e até hoje, nalguns contextos, nunca se

solta uma piada ou alguma expressão para dar-se uma risada, alguns

pastores que sabiamente sabem usar o humor, são os mais comunicativos.40

É fato que os Vencedores, ou simplesmente VPC, influenciaram definitiva e

positivamente a cultura e a expressão artística cristã evangélica no país, abrindo

espaço para o surgimento alguns anos depois, de uma cultura gospel, de mercado,

ou de mediação da tecnologia e dos meios de comunicação. Dentro da sua visão,

estava o objetivo de treinar equipes que voltariam às suas igrejas, estruturariam o

seu próprio grupo musical e repassariam as canções e músicas para os que já

existissem, multiplicando a influência. Até e, principalmente, incentivar a composição

de novos cânticos.

Um dos hinos mais tradicionais da hinologia evangélica, criticado à exaustão

pelos novos movimentos como (mau) exemplo de adequação cultural e de

comunicação e presente em praticamente todos os hinários das igrejas sendo

cantado pela juventude (mesmo na época em estudo), trazia a seguinte letra

Nos céus e no mar e na terra,

Nos bosques, nos prados em flor,

No fragoso alcantil, na amplitude celeste,

Um hino ressoa ao Senhor! 41

Era comum afirmar-se que muitos dos clássicos hinos eram cantados sem que

ninguém soubesse do que se tratava, como neste caso, “fragoso alcantil”, eram

símbolos de uma linguagem completamente avessa à eficácia da comunicação em

compartilhar um conteúdo. Especialmente quando se usava à exaustão, um

40 Idem 41 “Um hino ressoa ao Senhor” – letra Mattathias Gomes dos Santos (1931) e música, de Charles Hutchinson Gabriel

104

vocábulo já não utilizado e compreendido, especialmente pelas novas gerações e

pela grande massa de iletrados da população tupiniquim.

Foi nesse rastro de “nacionalizar” o protestantismo importado e de adequar a

cultura ao povo, que os VPC, pouco a pouco vieram a se firmar, deixando o conceito

de que não havia um protestantismo brasileiro, mas no Brasil, como aliás, Mendonça

defendia

Talvez a pergunta mais adequada seja esta: podemos falar em

protestantismo brasileiro? Ou seria melhor falar em “protestantismo

no Brasil” precisamente quando a referência recai sobre as igrejas

acima mencionadas? Embora seja certo que as religiões universais,

como são as protestantes, sempre assimilam ou mantêm traços das

culturas locais, como me é permitido falar em catolicismo brasileiro,

por exemplo, o protestantismo que chegou ao Brasil jamais se

identificou com a cultura brasileira. Continua sendo um

protestantismo norte-americano com suas matrizes denominacionais

e dependência teológica. Por isso, prefiro falar em “protestantismo no

Brasil” e não em protestantismo brasileiro (MENDONÇA, 2005, p. 51)

Como se pode falar numa igreja brasileira, sem que se toque a cultura, traga

elementos culturais na sua expressão e vivência? Pois nos anos da ditadura, isso

era um peso a mais, para além do erro histórico da “aculturação” protestante de fora.

Falar-se em igreja brasileira, era algo perigoso, pela pressão por ignorar-se o que

havia em torno, na efervescência da política, por parte das lideranças.

Vale reafirmar, que no esteio do “vale-tudo” para manter-se o mau-humor

protestante e o distanciamento que se permitia da cultura popular, negava-se a

prática conhecida de Lutero quando, na sua Reforma, já no século XVI, valeu-se da

utilização de canções populares na nova hinologia, dos cantos litúrgicos que

organizava, adaptando, e utilizando novas letras, religiosas, mantendo a melodia

original, conforme registra Burke (1999, p. 246-249). Ele já havia incluído a

105

congregação nos cantos da liturgia, característica essa fortemente impressa no culto

protestante e, aliada à cultura do povo, trazia-o para mais do que uma atuação

meramente passiva nos serviços religiosos. E sem emoção, sem humor, que aliás,

é marca do povo brasileiro. Entretanto, aqui ainda, nas igrejas, isso feria a

“santidade” de Deus, afinal, o altíssimo, exige santidade e ...ordem. Essa era e devia

ser, a marca das celebrações. Culto e espiritualidade não combinavam com o riso.

Como nos primeiros séculos da cristandade, espiritualidade combina com penitência,

seriedade. Kemp discorda veementemente e afirma

O evangelho é o evangelho, a roupagem pode ser uma porção de

coisas. Por exemplo, lá em Portugal você tem aquela música triste, o

fado, pois eu fui a um restaurante onde tinha o fado e saí chateado.

Para mim foi terrível, mas para o povo português, aquilo mexe muito,

então gente, nós temos que respeitar e no Brasil, o evangelho porque

saia deste tipo de ambiente, eles achavam tudo pecado, como usar

instrumentos de ritmo como o chocalho, ou o pandeiro, eles diziam:

“isso tira toda a espiritualidade do culto”, e eu falava - “que é isso? O

que é espiritualidade, então? Porque, se tira, alguma coisa está

errada com a nossa espiritualidade! É uma espiritualidade líquida?!”42

Jasiel Botelho, fundador dos Jovens da Verdade faz coro com Kemp e não vê

como desassociar a espiritualidade do humor. Ele afirma ser impossível sim juntar

religiosidade – farisaísmo – ou uma qualidade de fé baseada em parâmetros

exteriores, que são capazes de “adestrar”, mas não transformar o interior, a forma

de pensar, com o evangelho. Ele divide os dois conceitos

Sim, porque hoje eu divido, o Tim Keller43 foi quem ajudou a gente a

ver isso: separar religiosidade do evangelho. O evangelho é livre, por

42 Entrevista concedida por KEMP, Jaime. Entrevista 1 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (23,8 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 43 Timothy Keller (1950), um dos mais famosos oradores e escritores presbiterianos da atualidade. Natural da Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary, foi por anos pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan, igreja que fundou em 1989 e esteve no Brasil

106

exemplo, você pode fazer uma charge de Deus, Deus não fica

ofendido, Deus está acostumado a sofrer, na religiosidade, o deus

religioso é o mesmo deus do muçulmano. Quando você diz “não leve

o nome de Deus em vão”, não é questão do humor, é questão de

você não brincar com Deus, não levá-lo à sério, não é o brincar com

ele, porque Deus é pai e se há uma coisa que o pai mais gosta de

fazer com os seus filhos, e vice-versa, é brincar. Por isso eu digo que

hoje eu tenho a liberdade de brincar com Deus porque ele é meu

Pai.44

Os VPC, começaram então timidamente a fazer apresentações mais leves,

bem-humoradas, sempre tirando risadas das igrejas por onde passavam e

principalmente, a incluir nas suas apresentações, contrabaixos, pandeiros e baterias

e hoje, raras são as igrejas que não os têm no palco, à frente da congregação e as

utilizam nos períodos de louvor – marca indelével nas igrejas evangélicas, ou de

cariz reformada.

Os Vencedores, despertaram ou lançaram no meio evangélico, nomes de

músicos e compositores de raiz, alma e cheiro brasileiro. Kemp relata

Viemos aqui em 1967 e começamos os Vencedores em 1968 e nos

primeiros dois anos ainda estávamos aprendendo tudo. E eu percebi

que Deus havia dado ao brasileiro muita música e capacidade de

compor música e letra. E isso foi com João Alexandre, e Guilherme

Kerr, Nelson Bomilcar, esses caras, ...E eu disse: “Senhor eu estou

precisando fazer a cultura” e nós pegamos hinos tradicionais,

pusemos ritmo diferente, e novas músicas, como Sérgio Pimenta45,

um menino fantástico e então temos visto como Deus comunica ainda

hoje através disso.46

44 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 45 Sérgio Paulo Muniz Pimenta (1954 - 1987), foi um cantor, compositor, multi-instrumentista e arranjador de música popular brasileira cristã. Foi um importante compositor evangélico nas décadas de 70 e 80 46 Idem

107

Naqueles anos, a missão que veio de um americano lançara novos talentos que

deram um toque brasileiro à hinologia contemporânea cristã, além de incluir na sua

poesia, um toque de humor, de expressões culturais populares, quebrando a cultura

da época.

Um desses talentos, foi Nelson Bomilcar, cantor, compositor, produtor musical,

multi-instrumentista, arranjador e escritor brasileiro, conhecido como um dos mais

conceituados da música cristã brasileira atual com mais de 300 participações em

produções musicais e outras centenas de composições espalhadas entre músicos e

bandas cristãs. Ele conta como começou nos Vencedores

Fui treinado em Vencedores por Cristo, em 1974, tinha um músico lá,

que me convidou, da Igreja Batista, recomendado por meu cunhado,

que hoje é pastor, e lá eu tive contato com essa geração do

Guilherme Kerr47, as grandes referências, e ele trouxe essa veia das

ciências humanas, da poesia, e brincavam que eles diziam que eu

era o cara que chegava pra fazer as pessoas rirem, inclusive das suas

próprias ambiguidades.48

Mas a “coptação” ou o proselitismo não era algo tão simples quando se

imaginava a integração dos novos convertidos à fé, alcançados com uma mensagem

leve, mais próxima culturalmente ao seu universo. Se era “vendido um peixe”

atraente e com o “aroma” da brasilidade – leia-se “com humor e leveza”, quando

vinham para as igrejas, o prosélito encontrava outro “produto”, como nos afirma

Bomilcar, à exemplo do que aconteceu consigo, numa igreja de imigrantes da

47 Guilherme Kerr Neto (1953), é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, arranjador brasileiro, e reconhecido como um dos músicos mais conceituados da música brasileira cristã. Hoje vive nos Estados Unidos, como pastor de igreja 48 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

108

Letônia, na zona leste da cidade de São Paulo, com poucas opções de integração

para um jovem que vinha das ruas

a igreja que me acolheu, de herança Leta, se parecia com uma

espaçonave, não tinha nada a ver com a realidade, eu não sei como

ia me integrar num negócio desse, e os caras pensavam, “você dá

bem para cantar no coro”, e me “jogaram” para cantar no coro da

igreja, pois era o único link que conseguiam fazer, porque você não

tinha espaço.49

Nas igrejas, sobrava formalismo e faltava leveza. Não só no discurso como na

vivência, na comunhão. Bomilcar lembra o quanto do clima extra-muros das igrejas,

estava também dentro dos salões de culto

Ah! Experimente você contar uma piada! “O Senhor está presente no

Seu Santo Templo”. Ordem é fundamental e reverência, ora, o humor

não faz parte desse caminho da reverência, então ele tinha que ser

reprimido aonde ele se manifestasse. Outra válvula de escape era o

rádio, o que se conseguia fazer nos programas de rádio não se

conseguia fazer no dia a dia da igreja, o Maurão50 cresceu nisso,

nesse pano de fundo, fazendo coisas de rádio, e outras vertentes. A

época por exemplo, era a da rádio novela, do humor feito ali, e aquela,

ainda fruto dos anos 60, início de 70, os festivais da TV Record e TV

Tupi, lá surgiram os programas do Zé Vasconcelos, do Manoel de

Nóbrega, Chico Anysio, Jô Soares, no meio da loucura da ditadura

aquele era o local onde se conseguia rir, mas eu não podia rir de nada

que fosse associado àquele período de ditadura.51

Quem quer que se atrevesse a ousar com o uso do humor nas pregações ou

na condução dos serviços religiosos era malvisto. Tanto na igreja tradicional que

49 Idem 50 Mauro de Oliveira (1954), jornalista, compositor, humorista e manipulador de bonecos 51 Idem

109

insistia num formalismo silencioso, reverente, como nas, bem menos rigorosa com

esses aspectos, pentecostais, ser cristão era ser sério. Sobre isso, Bomilcar afirma

Reverendo não deve rir, e eu acho que a gente tem que reconhecer

esses precursores que chutaram a porta, um deles sem sombra de

dúvida também, início dos anos 70 é Jasiel Botelho52, que na minha

opinião deveria que ter permanecido mais nessa vertente, mas teve

que transitar em outras vertentes pra conseguir ganhar o direito de

fazer, de chegar nos encontros e congressos de pastores pra poder

fazer a sua pintura anual... Mas assim, o que nós publicamos hoje?

O que temos de publicação hoje nessa questão? Dificílimo! Agora

como você vai fazer piada pra você rir da fé? Dos que tem fé? Do

ambiente da fé? Ainda hoje o humor parece que não bate bem com

o sagrado. No culto não é bem-vindo, mas se for na hora do bolo lá

em baixo (nos anexos aos templos) aí pode, você percebe? É um

negócio doido isso. É aquela dicotomia ainda, o momento espiritual,

momento sacro, agora é o momento secular e momento espiritual! E

eu me pergunto, os reformadores tinham humor? Não usavam o

humor nas suas mensagens que impactaram tanto? Não usavam pra

que enxergassem as loucuras que estavam fazendo? Com certeza

sim! Nem a ótica histórica eles conseguem colocar por esse prisma,

aí um cara que é extremamente lúdico que caminha no universo da

fantasia, da metáfora como C. S. Lewis. Ele tem que fazer um

caminho por fora.53

Este “caminho por fora”, ou era a carreira numa organização paraeclesiastica,

ou desenvolvida em acampamentos e retiros – do qual trataremos adiante – ou era,

numa solução ainda mais drástica, a mudança de igreja, ou pela adesão à alguma

já existente ou fundando alguma nova agremiação. Sobre essa crise do pastor, do

pregador ou “artista” evangélico, Jasiel afirma

no começo, quando eu cheguei ao (acampamento) Palavra da Vida,

eles brincavam muito, tinham muito esporte, tinha muito esquete, e a

questão do esquete foi uma descoberta para mim. Mas era um humor

52 Jasiel Botelho (1948). É pastor evangélico, missionário da SEPAL, e fundador e atual presidente da Missão “Jovens da Verdade. 53 idem

110

não evangélico, era o humor pelo humor. Era stand-up, e eu fazia

isso, mas eu não sabia. Eu cuidei da noite de esquete, a noite do

humor, e era só esquete naquele tempo. Depois é que introduzi

música e outras coisas mais e era um show. Eu fiz até a música de

abertura dessa noite de esquete do PV. E eu me realizei, todo aquele

dom de humor, saiu. Mas aí eu percebi que quando era pra pregar,

dar testemunho, eles não contavam comigo, porque eu era

brincalhão. E aí contavam com outros. E isso também no JMC54, onde

eu estudava. Tinha a caravana de pregadores, e tinha a gente. A

gente brincava muito e não podia entrar na caravana de pregadores,

quero dizer, eram muito sérios. Mas o pior não foi isso, o pior foi

quando a gente começou o Jovens da Verdade, e os Jovens da

Verdade foi sempre descontraído, eu e o Josafá55, a gente brincava

muito, mas aí houve um período em que entrou um líder,

presbiteriano, presbítero muito sério chamado Amílcar Ovídio

Borba56, aí ele foi o nosso guru espiritual e aí foi cortando a gente em

termos de humor, cortando e eu fui ficando sério e tal, e quando eu

terminei o seminário, eu fui convidado para pastorear a primeira igreja

, aí eu tive de mudar totalmente. Agora imagina: eu tinha de vestir

toga genebrina pra pregar, além de terno e gravata, toda aquela

tradição da igreja, o respeito aos idosos e tal e eu conclui que fiquei

com uma dupla personalidade. Eu brincava, né, mas tinha hora que

eu ficava sério. (...) Mas eu fui ficando esquizofrênico, eu leio assim.57

É certo que, como afirma Berger, esses eram os profetas da vez, que

carregavam consigo o carisma, em contraposição aos sacerdotes, na disputa pelo

capital simbólico. E arrastavam pela influência e pelo encantamento que exerciam

especialmente os mais jovens, multidões. E em contrapartida, as igrejas

54 Seminário Presbiteriano José Manuel da Conceição, em Jandira-SP 55Josafá Vasconcelos, paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, junto com Jasiel Botelho. É pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados 56 Reverendo presbiteriano Amílcar Borba, foi presbítero (1972-1981), e ordenado pastor pelo Presbitério Unido de São Paulo em 15/03/1981, tornando-se co-pastor da IP Unida-São Paulo-SP. Em março de 1986 tornou-se pastor titular desta igreja até dezembro/1990. A partir daí dedicou-se integralmente ao ministério de campanhas evangelística em todo o país. Faleceu no dia 22 de março de 2012. 57 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

111

permaneciam herméticas, fechada ao humor, temido tanto pelos que detinham o

poder, fora, na sociedade civil, domada pelo regime militar, quanto nas comunidades

religiosas, pelas mãos de líderes que, segundo Jasiel Botelho, cediam às suas

fraquezas próprias da sua humanidade

O poder teme, porque o poder não quer ser criticado de jeito nenhum.

Agora imagine o poder político! E o poder eclesiástico? As lideranças,

os pastores, nós os pastores não aceitamos ser criticados,

principalmente os líderes. O maior problema da liderança é o

narcisismo, é a vaidade, é a soberba. Quanto mais um líder é forte,

quanto mais ele é famoso o líder, mais ele é intocável, ele é o

“ungido”, ele não pode ser criticado de jeito nenhum. Se nós, pobres

mortais não podemos, imaginem esses caras que são semideuses,

entendeu?58

Nesse caminho por fora, esses “marginais” que optaram por um caminho não

ortodoxo de pregação e de propaganda da fé tiveram que bancar do próprio bolso,

os seus projetos – ou “missão” que, cria-se, fora inspirada por Deus. Bomilcar afirma

“todos acabaram investindo naquilo que acreditam, todos os projetos iniciais foram

na grande maioria das vezes bancados pelos próprios que acreditavam no projeto”.

E a explosão que o Brasil assistiria nos anos seguintes a esse começo de arranque

do movimento evangélico, não começou de forma alguma da maneira institucional.

Bomilcar concorda

passou longe disso, a igreja cresceu pela marginalidade, e com

humor na marginal. A sinagoga sempre foi muito imprópria pro humor,

eu imagino que se os vendilhões do templo tivessem trazido alguma

coisa pro humor da época, aí acho que eles teriam sido expulsos duas

vezes. Seriam recolhidos os gibis.59

58 Idem 59 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

112

Talvez a história do movimento evangélico nacional não teria produzido tantas

novas agremiações, tantas novas igrejas, se tivesse ele se permitido à uma

elasticidade maior na sua morfologia. Mas não bastava o rigor com a doutrina, o

conjunto de credos, as convicções mais santas e fundamentais do que se cria. Era

preciso se parecer com o evangélico tradicional.

Já nos idos de 1974, membros de igrejas cristãs evangélicas e reformadas de

mais de 150 nações encontraram-se em Lausanne, Suíça, no Congresso

Internacional de Evangelização Mundial, para reafirmarem a sua fé e a resolução de

tornarem público um pacto, sobre o que criam e sobre o recomendavam pontos

considerados essenciais sobre a natureza da evangelização, sobre a

responsabilidade social cristã, do esforço conjugado e da cooperação das igrejas na

tarefa, a sua urgência e incluía um esforço por uma metodologia nova e criativa.

Nela, a cultura – não bíblica - deveria ser confrontada pelas escrituras, mas não se

cair no erro de a condená-la inteiramente, ou de pressupor-se a superioridade de

uma contra a outra, mas buscar pontos de contato entre elas e mais

Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-

se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem

servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e

enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus. (Pacto de Lausanne,

1974 #10)

Mas se o pacto foi assinado pela maioria esmagadora das igrejas históricas

presentes no nosso país, a observância do que assinaram não foi assim tão simples,

na conduta e prática que se viu. O cenário continuaria por muito, parecido àquele

que Jean de Lery encontrou, de um lado a cultura tupiniquim – simples, leve, bem-

humorada, e do outro, o pregador, de toga genebrina tentando alcançá-la.

113

Maurão, o pioneiro e até hoje humorista, tem seu ponto de vista e afirma que

os líderes das igrejas históricas e tradicionais não entenderam os que inovavam,

criavam novas formas de se divulgar o evangelho e, deste modo, foram responsáveis

pelos “desvios” de conteúdo, pelo rigor com a forma, com raras exceções como aliás,

ele encontrou

Eles não souberam entender, tipo: vamos abraçar, e não ir contra!

Vamos conversar com eles, o que é que eles querem, qual é a

proposta? Por isso é que se perdeu, veja, a Renascer em Cristo! É

resultado disso daí. Os caras queriam pregar coisa nova, pregar o

evangelho, usando bateria, rock, ...e não podiam. Veja a

Congregação Cristã do Brasil, a história dela é engraçadíssima: seu

fundador, Louis Francescon, era membro da Igreja Presbiteriana do

Brás, e a igreja não deixava. Ele era diácono lá. “Ah! Não vão deixar?

Eu vou fundar uma igreja maior que essa!”. E fundou. Alí no Brás

mesmo. Se você tinha dificuldades, onde é que você encontrou apoio

para o seu trabalho, naquela época? Eu encontrei em todas. Eu era

membro de uma igreja pentecostal e lá eu não tinha espaço. Onde já

se viu? Era um pode-não-pode... Agora, eu tinha espaço onde? Em

culto de jovens, presbiterianos, ... tinha um pastor Afro Marcondes

(Afro Marcondes dos Santos Junior), está hoje em Rondonópolis,

Mato Grosso, ele era da presbiteriana, eu da Brasil para Cristo e nós

fazíamos um trabalho muito bonito juntos, chamado Cultão, em

Guaianazes (São Paulo-SP), todo primeiro sábado do mês e

reuníamos a turma dele, a minha e da região ali. E ali a gente tinha

espaço, cantávamos as nossas músicas, e era aquilo na igreja, o

pastor deixava fazer, aliás, muito poucos deixavam.60

O pastor presbiteriano de longa história ligada ao riso, o reverendo

presbiteriano Evandro Silva também sentiu na pele a “pecha de gente não séria”,

especialmente por ter vindo do circo, dos programas de rádio e dos shows de stand-

60 Entrevista concedida por OLIVEIRA, Mauro. Entrevista 4 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (30 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

114

up61, ao lado de gente que se consagrou e fez história no humor do país como Moacir

Franco e o seu irmão artista de anos, do programa de humor da TV, “A Praça É

Nossa”.

Silva conclui sobre o que seria um erro histórico, de abordagem, em que entre

a visão – particular, institucional da igreja evangélica - sobre “o que é seriedade” e a

vida das pessoas, prefere-se o mau-humor. Ele afirma

Você não pode ir pra lá e tacar aquela coisa maçante! Por isso é que

eu saí da igreja, daquele negócio, daquele evangelho sem graça... A

igreja de hoje é esta: quer mais o discurso bem embalado do que o

conteúdo dele. Termos teológicos, etc, ...mais do que a alma do

crente, a vida do fiel. A nossa pregação tem de ser mudada, tem de

ser mais objetiva, menos escolástica, ela tem de ser a prática do

evangelho na vida diária. Nós protestantes acabamos com a emoção,

ficou aquele trem que não se entende. O que o Aleluia de Handel,

tem a dizer para nós, além da melodia, de ser uma peça clássica da

música sacra?62

O entrevistado ainda enfatiza que Jesus usava o humor para alcançar as

pessoas, como por exemplo, nas parábolas que ele usava contar, como um recurso

que os aproximava e não o contrário

Veja, Jesus tinha humor nas suas parábolas. Aquilo tudo era causo.

E chamava a atenção do povo. Eles estavam tentando apanhar Jesus

em algo, e ele vem com essa: “Um cara tinha cem ovelhas...”, aquilo

não tinha nada a ver com o que eles estavam falando, os caras

61 Stand Up comedy é um espetáculo de humor, apresentado por uma única pessoa, onde não existe nenhum tipo de personagem. Geralmente as apresentações de stand up comedy buscam trazer um texto original, com temas do cotidiano das pessoas. Nas apresentações de stand up, o artista não usa nenhuma ferramenta, como cenários, caracterização, acessórios, não conta piadas prontas, é apenas baseado nas observações do dia-a-dia. 62 Entrevista concedida por SILVA, Evandro. Entrevista 5 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (1h42 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

115

devem ter pensado: “Uai, ninguém estava aqui falando de

ovelhas...”63

E arremata com veemência a diferença entre o modo tradicional das pregações

e como crê que Jesus contaria hoje a Parábola do Filho Pródigo64 aos seus

contemporâneos, pondo ênfase no personagem do filho mais velho, que se

ressentira com a volta do irmão à casa da família, num clima mais contextualizado,

mais contemporâneo

mas a gente conta (as parábolas) assim, com a voz empostada, com

palavra que não comunica, que não pega nada em ninguém, a gente

tem de contar assim: “este safado, ficou dentro de casa, ruim que

nunca lembrou do irmão dele!!!”. Você tem de mexer com o couro do

sujeito (na cultura dele) e ele dizer: “Meu Deus, eu sou esse cara! Eu

tô aqui nessa igreja há trinta anos e nunca fiz nada”, mas se você

pregar daquele jeito, nos clássicos, ... Meu Deus, o Evandro é doido,

você viu o que ele falou? Por isso eu admiro você ter levantado esta

questão. Tanta gente surgiu naquele tempo, falando e ensinando os

jovens a falar a linguagem das ruas, o Jaime Kemp, o Josafá

Vasconcelos, os acampamentos, meu Deus! O brasileiro é

humorado, é safado, gosta dum mal-feito, ...o brasileiro é malvado,

gosta de uma piada. Quando saem dos meus cultos, não saem com

aquela cara de santão, saem com outra cara. A Bíblia diz: “o vosso

pecado vos achará”. E com toda piada, você vê no auditório, em

quem o pecado está batendo.65

Pois para alcançar esse brasileiro humorado – ou “safado” na descrição do

entrevistado Silva, era preciso se aproximar deste brasileiro, de uma maneira

diferente daquela restrita aos templos e à liturgia “apertada” dos serviços religiosos.

63 Idem 64 Lucas 15:11-32 65 Entrevista concedida por SILVA, Evandro. Entrevista 5 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (1h42 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

116

E os acampamentos, que traremos a seguir mostraram-se como uma usina de

experiências e aproximações que acabaram por oxigenar não só o discurso como a

própria prática da vida cristã nas gerações que viriam. E produziram uma fé mais

terra-a-terra, menos hermética e mais próxima à realidade do cidadão comum. O

cristão evangélico, ou “crente”, já não era assim tão “quadrado”, nem fariseu – aquele

religioso que fugia não só do estilo profano dos demais – só tinha valores dos quais

já não estavam limitados ao exercício de uma fé restrita ao espaço dos templos.

Sobre essa visão maniqueísta, de fugir-se do profano, de isolamento e negação

da cultura e do papel dos ministérios paraeclesiásticos na aproximação mundo-

igreja, sagrado-profano, crente-não crente, algo surgiu no país e ajudou em muito o

surgimento de uma outra cultura, nos acampamentos de mocidade.

3.4. Acampamentos – Os sagrados territórios de refúgio e formação da juventude

No final do século passado fora criado o embrião de uma importante ferramenta

para o alcance e formação dos cristãos evangélicos, especialmente a juventude – os

acampamentos.

Na história da ABRAC – Associação de Acampamentos e Retiros Cristãos

(membro nacional da Christian Camping Association, que serve a 2.050

organizações em todo o mundo, contando com mais de 3.000 membros individuais

em 42 países, sendo uma das 20 associações-membros) encontramos o registro que

foi em 1885, nos Estados Unidos, que a ACM - Associação Cristã de Moços - de

Nova Iorque - levou os seus membros para uma viagem de oito dias para o Orange

Lake em Nova Jersey. Como de início, os participantes masculinos receberam um

corte de cabelo militar, já no ano seguinte graças a esse detalhe, o evento foi

117

chamado de Acampamento Baldhead (cabeça raspada), passando a ser o primeiro

acampamento da ACM-EUA.

Em 1900, surge o primeiro acampamento para meninas, e em 1910, surge em

Los Angeles, o primeiro acampamento patrocinado por uma cidade ou município.

Os primeiros passos do movimento de acampamentos se estendem a um

período de mais ou menos 40 anos. Em 1885, existiam na América, apenas 3

acampamentos; em 1895 eram 13 e em 1904 mais de 300. Ézia Mullins descreve

O potencial desse movimento de acampamentos, motivou lideres,

especialmente cristãos, a fazerem uso do acampamento com várias

finalidades, podendo ser superficialmente classificado nos seguintes

estágios: (1) Recreação; (2) Educação; (3) Orientação e

Responsabilidade Social. A Primeira Guerra Mundial exerceu

influência em levar o acampamento do estágio de recreação para o

de educação, onde o aprendizado recebia um destaque especial.

Durante a época da depressão financeira dos Estados Unidos, ao

mesmo tempo em que o comunismo pairava sobre o mundo. Iniciou-

se aí no acampamento o estágio chamado orientação e

responsabilidade social. Este foi marcado por um ensino

generalizado e uma profunda conscientização das responsabilidades

sociais para manter a democracia viva. (MULLINS, 2011, p. 19)

Essa socialização tentava incentivar uma vida em comunidade, um plano para

o participante e apoiado pelo governo – e mais tarde, pelas igrejas. O membro da

equipe, monitor ou conselheiro deveria enfatizar os princípios da democracia no

acampamento e tentar suprir todas as necessidades do indivíduo e do grupo.

Nas últimas décadas, as organizações evangélicas paraeclesiasticas iniciaram

seu trabalho nesses moldes, e a história desenvolveu-se semelhantemente a do

movimento dos acampamentos não religiosos. Eles foram primeiramente

organizados por indivíduos, depois por organizações interdenominacionais e por fim,

118

as igrejas tradicionais que adotaram-nos como uma estratégia de alcance da

juventude – e até de famílias, casais, etc,...

Após a Segunda Guerra Mundial, o conceito de acampamento começou a ser

exportado pelos Estados Unidos para outros continentes. Por esta razão temos hoje

no Brasil o movimento de acampamentos, que tem diferenças fundamentais quando

comparado aos retiros de carnaval que eram realizados antes da chegada de tal

influência. Os missionários os trouxeram na bagagem ou foram importados depois

como estratégia para se alcançar, ou evangelizar a juventude e treinar leigos.

A realização de retiros nas igrejas no Brasil é anterior a 1940 (MULLINS, 2011,

p.20), embora os registros da Associação Evangélica de Acampamentos, descreve

mais a sua realização do que a forma como foram realizados, entretanto, parece-nos

que as formas usadas pelas denominações eram semelhantes em conteúdo e

objetivos.

Pelo que percebemos pelo menos até a década de 70, manter os jovens e

adolescentes longe das festividades carnavalescas e, do ambiente de efervescência

política da época, foi o maior fator da sua realização. No início, o termo “retiro”

antecedia as palavras “espiritual” ou “de carnaval”.

A história dos acampamentos no Brasil teve sua gênese na década de 60 e a

organização Palavra da Vida (localizada em Atibaia-SP) e a Mocidade para Cristo

(em Belo Horizonte-MG) como afirma Mullins (2011, p.23), foram os grandes

disseminadores da proposta, logo seguidas pelas denominações evangélicas ou

protestantes, com maior ênfase dada pelos Batistas, seguidos ainda pelos Jovens

da Verdade na região de São Paulo.

119

Fato é, que os acampamentos, desde cedo, se tornaram o território neutro,

como as cidades de refúgio, à semelhança das relatadas nas escrituras, na história

do povo hebreu, onde uma pessoa acusada do que hoje chamaríamos de homicídio

culposo, sem dolo, poderia estar abrigado contra retaliações e vinganças66.

Onde se organizavam retiros, ou promoviam-se acampamentos, em

instalações destinadas a esse fim, de alvenaria, com boas adaptações para a

hospedagem ou até improvisadas em barracas e galpões, em chácaras, fazendas

ou em espaços especificamente construídas para o fim, os jovens tinham uma

programação que consistia de cultos, que por serem realizados em espaços

multiusos, o formalismo, a rigidez litúrgica, dava espaço à leveza e à espontaneidade

onde os jovens (e não só) tinham uma nova visão da “santidade” do Altíssimo. A

isso, se juntavam brincadeiras, gincanas e até danças folclóricas (algumas de origem

americana por força da cultura dos missionários), esportes, num mesmo espaço (a

capela, o salão de culto), o que enchiam de alegria os participantes, como

provocavam até algum desconforto do clero. Era a afirmação bíblica, neo-

testamentária – e reafirmada na teologia reformada - que em que o templo é hoje o

cristão e não mais um prédio. E o respeito e devoção a Deus era algo para ser vivido

todo dia, em todo o lugar e não mais num espaço físico determinado.

No programa, com direito à hospedagem, refeições, esportes, lazer, em

estruturas quase sempre modestas, o participante tinha uma visão tão leve quanto

impactante da vida cristã e os pontos de fé de origem reformados eram fortalecidos,

tais como a integralidade da vida cristã contra o dualismo convenientemente pregado

nos salões de culto tradicionais, a criatividade estimulada na vivência da

66 Conforme o texto de Deuteronômio capítulo 19, versos de 1 a 10

120

espiritualidade e a divindade era apresentada como algo próximo da vida dos fiéis

em testemunhos emocionantes de vida, contados na primeira pessoa. Jasiel fala

sobre essa diferença de visão

Eu vivi numa igreja presbiteriana tradicional, no centro de São Paulo,

quando eu tinha 14, 15, 16 anos e daí dessa igreja eu fui pra um

acampamento, o Palavra da Vida, de americanos, então foi uma

diferença muito grande. Na igreja, você entrava para assistir, você

não podia mexer em nada, se sujasse, tinha quem limpasse, e você

ia assistir o culto. No acampamento não, você podia fazer tudo, tinha

uma equipe de jovens, que fazia todo o acampamento, com “n”

trabalhos, isso já foi uma diferença tremenda, agora, fora a liturgia.

Imagina chegar e o pastor estar de bermuda, com a bíblia na mão

para pregar, agora, o meu pastor, além de terno e gravata, ainda tinha

a toga genebrina, a toga de Calvino, o nosso louvor era dos hinos

europeus, americanos, coral - e eu brinco que não era coral era

“coroal”, porque só coroas cantavam – agora lá não, eram canções,

com ritmo, com palmas, muito mais próximos, outra coisa que foi um

choque pra mim foram os testemunhos, e na nossa liturgia não tinha

esse negócio de testemunhar o que Jesus, o que Deus fez na sua

vida, a liturgia lá era de adoração, de ouvir a palavra, o sermão era

elaborado, lido, e no acampamento não era nem sermão, eram

pregações, recheadas de testemunhos e de humor, para alcançar os

adolescentes e os jovens. Então quando eu voltei foi um choque na

igreja, porque eu quis trazer aquilo para a igreja. Imagine cantar com

os idosos: senta, levanta, senta, levanta, aleluia, aleluia, glória ao

Senhor67/68

67 Canção religiosa popular – ou corinho - na época, de autoria desconhecida, de letra simples e acompanhada por coreografia, pelo levantar e assentar do público 68 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

121

Alvin Hatton, missionário americano e um dos pioneiros em acampamentos no

país, da organização Embaixadores do Rei no Brasil, fundada na década de 1950,

afirma que

“Para muitos, acampamento é simplesmente um lugar [...] Para

outros, acampamento significa programa missionário. [...] ainda há os

que olham o acampamento com os olhos do coração. Para estes,

acampamento é o que acontece aos acampantes.” (HATTON.1980,

p.9)

Era um intensivo de discipulado para muitos, de aplicação de valores e

propostas que parecia muito subjetiva e distante dos participantes que passavam

não raramente, até uma semana isolados da cidade e local de origem.

O civismo e o amor à pátria também eram um componente a mais incentivados

em diversos acampamentos, onde se orava pela nação, e não raramente, em alguns,

hasteava-se a bandeira do Brasil pelas manhãs e o serviço à sociedade, como valor

era passado e estimulado em testemunhos de atuação laica e, logicamente, não

escapavam do clima de ufanismo, e do nacionalismo dos militares e de alguma

prédica sobre o “perigo do comunismo à liberdade de religião”, que ameaçava os

cristãos ocidentais. Sobre esses valores, Antônio Gouvêa Mendonça, na obra

“Religiosidade no Brasil”, organizada por João Baptista Borges Pereira, afirma

O protestante é um indivíduo que professa uma religião individual, de

consciência, que se inspira na interpretação direta e pessoal da

Bíblia, pauta suas ações na ética racional do trabalho e na moral

burguesa vitoriana. Sua racionalidade procura manter à distância a

interferência do extraordinário no cotidiano, assim como sua

individualidade o situa nos limites mínimos do poder sacerdotal ou

eclesiástico. É uma religião quase secularizada e se aproxima

122

quando institucionalizada, de uma religião civil. As igrejas são

comunidades de fé e aprendizado religioso mútuo. (PEREIRA. 2004,

p. 75)

Nos anos de 1960 a 1980, muitos líderes reconhecidos no meio evangélico

testemunharam da sua formação recebida nos acampamentos e, não raramente, até

da sua conversão neles. Foi ali, nesses espaços, em que a cultura popular era o

desafio a ser lido e transformado pelos valores que aprendiam e não mais algo do

qual fugir-se. O céu ficava mais perto do chão, da vida do jovem fiel e,

consequentemente, os desafios da sociedade acabavam “lidos” sob uma

cosmovisão cristã. Apesar disso, nesses acampamentos, permanecia o espírito

conservador, anticomunista e antiecumênico como frisa Antônio Gouvêa Mendonça,

em “Religiosidade no Brasil”

organizações chamadas “missões de fé”, porque não faziam parte de

igrejas oficiais, estenderam braços conservadores para a América

Latina e ajudaram a arrefecer os possíveis ímpetos renovadores da

juventude protestante. Uma delas foi a Campus Cruzade for Christ,

fundada pelo norte-americano Bill Bright (1921-2003), cujo braço no

Brasil se chamou Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo.

Objetivava, como o próprio nome diz, atrair estudantes universitários.

Semelhante seria a ABU (Aliança Bíblica Universitária). Outras muito

conhecidas, como Palavra da Vida, Vencedores por Cristo e Jovens

da Verdade, tinham o mesmo objetivo de atrair a juventude,

paradoxalmente, a das próprias igrejas. (PEREIRA. 2004, p. 93)

Apesar do perfil político conservador, de uma conduta moral rígida pregada

nesses acampamentos, havia muito mais incentivo à atuação do cristão na

sociedade, com uma aproximação maior aos ideais da Reforma Protestante, do

sacerdócio universal, por exemplo, do que as igrejas, nas quais a posição oficial era

123

a de manter seus membros longe das questões que desafiavam o país. Era comum

a pregação nos acampamentos, que havia demasiados pastores nos púlpitos e

pouquíssimos na medicina, no comércio, na engenharia, nas escolas, ...na

sociedade. Sagrado não era a atividade, sagrado era o cristão e onde estivesse e o

que fizesse, seria uma consequência disso. Não havia apoio à máxima: “cristão não

se envolve com este mundo”, em geral o que se ouvia era que “as atividades do

cristão na sociedade têm tanto valor quanto o trabalho dos religiosos”, tanto pregado

pelos reformadores do século XVI.

Os acampamentos revelaram artistas de todos os tipos – e líderes – das igrejas

naqueles anos. Nas atividades desenvolvidas, estava o teatro, o palco, tanto para

dramatizações bíblicas ou de propaganda da fé, quanto para a liberdade dos

esquetes de humor69.

Os participantes eram divididos em grupos, que disputavam tarefas e

especialmente pelas noites onde eram a atração especial após os cultos ou

mensagens bíblicas, expressões artísticas tinham o incentivo para o que, na vivência

da igreja, pouco valor merecia.

Citado por Minois, Keith Cameron escreve que o humor

foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa contra o desconhecido

e o inexplicável. A própria existência do homem pode ser considerada

uma brincadeira; sua significação está mal definida e é difícil explicá-

la fora da religião. (MINOIS. 2003, pg. 569)

69 Esquete é uma peça de curta duração, geralmente de caráter cômico, produzida para teatro, cinema, rádio ou televisão. O termo em Inglês com o mesmo significado é “sketch”. Têm cerca de 10 minutos de duração e são onde atores ou comediantes possuem forte capacidade de improvisação. Os temas para os esquetes são variados, mas geralmente incluem paródias sobre política, cultura, sociedade e, não raramente, nesses acampamentos, também a religião.

124

Nesse ambiente de liberdade, de espontânea exposição, o participante podia

ver tratada pela religião, as suas questões mais profundas, até de forma bem-

humorada e sem o rigor, a distância e impessoalidade das igrejas. Estava-se,

sobretudo, entre amigos, companheiros de “retiro” e isolamento, numa imersão total,

longe do cotidiano.

Era tamanha a camaradagem que era comum o choro nas despedidas a

caminho de volta para casa. E o calendário desses eventos, aguardados o ano todo.

É bom frisar, que apesar do rigor das igrejas evangélicas, não era raro

encontrar-se alguma semelhança entre esse ambiente e aqueles conseguidos no

anexo às salas de culto, tais como pavilhões, salões sociais, onde junto com salas

de aula, havia um palco para celebrações e também encenações. Ali era o lugar

próprio para os cultos de mocidade, o único espaço “neutro” onde se podia cantar

corinhos70 em reuniões animadas, mais informais, embaladas por palmas –

manifestação mais que proibida num espaço como os dos cultos e até, nalguns

lugares, coreografias. Entretanto, nada que se assemelhasse na atmosfera a um

acampamento no que diz respeito à liberdade e leveza. Nos acampamentos, era

impossível encontrar-se com um presbítero ou um oficial mais rigoroso e com o

patrulhamento comportamental das igrejas. Jasiel é severo na crítica ao legalismo

tradicionalista, sobre o clero ou ao oficialato que não tenha passado por

acampamentos. E afirma

70 Corinhos eram músicas alternativas aos hinários tradicionais e centenários que se usavam nas igrejas, de melodia simples e forte tom emocional, originadas nas reuniões avivalistas nos EUA a partir do século XIX, e trazidas ao Brasil nos anos 1950 por pentecostais e instituições paraeclesiásticas. Eram o tema musical dos acampamentos e retiros.

125

Eu acho que os pastores novos, os diáconos, porque a maioria dos

pastores agora, com raras exceções, e presbíteros, foram jovens de

acampamentos. Se não foi no nosso foi do Palavra da Vida, se não

foi do Palavra da Vida, foi na Mocidade Para Cristo..., e os que não

foram, são legalistas hoje. 71

3.5. Uma nova linguagem no ritual do serviço religioso – odres novos para vinho novo

A palavra liturgia (do grego λειτουργία, "serviço público" ou "serviço do culto")

compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com as tradições de

uma religião em particular (QUINSON, 1999, p.182).

A liturgia é considerada por várias denominações cristãs, como um ofício ou

serviço indispensável e obrigatório para a realização do seu culto. Nas diversas

confissões cristãs, a liturgia tornou-se, em suma, no seu culto oficial e público.

A busca de um equilíbrio na forma de culto e os seus aspectos litúrgicos tem

se diferido ao longo do tempo e das convicções de cunho teológico, em que os

extremos têm sido percebidos no amplo espectro religioso, especialmente no de

cariz reformado ou evangélico, com o formalismo e o rigor racional de um lado e o

emocionalismo e “barulhento” pentecostal, de outro.

Mas e a cultura, o modo particular de ser-se brasileiro, onde fica nisso?

Nos anos recentes, pouco a pouco, amplas discussões quanto ao formalismo,

mais do que as já estabelecidas e aprofundadas questões de cunho teológico, em

71 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

126

que os postulados católicos romanos e os reformados, ditam o andamento do

serviço, parecem ter sido promovidas.

O que “toca” o homem? E será que o do campo será o mesmo que o da cidade?

E o que diremos dos jovens, de uma geração que se formava em plena revolução de

costumes dos anos 1960?

Parece claro que não discutimos o mérito do aspecto ideo-teológico da liturgia

de origem reformada em contraposição àquela considerada no pensamento Católico

Romano, mas sim a forma, a sua dinâmica e não os seus porquês.

O reformador João Calvino citado por Thompson, condena com veemência a

liturgia romana

De todos os ídolos, ele não conhecia nenhum tão grotesco como

aquele no qual o sacerdote evocava Cristo em suas mãos pela

‘enunciação mágica’ e oferecia-o novamente no altar do sacrifício,

enquanto o povo olhava com ‘admiração estúpida’. (THOMPSON.

1961, p.185)

O reformador baseava a sua proposta de liturgia pelas escrituras, apelando

para o costume da igreja primitiva e na sua reforma do culto e adoração protestantes,

nas suas Institutas, editadas em 1536:

Deixando, pois, de lado todo este sem fim de cerimônias e de

pompas, a Santa Ceia bem que podia ser administrada santamente,

se com frequência, ou pelo menos uma vez por semana, se

propusesse à Igreja como segue: no início se faria orações públicas;

a seguir viria o sermão; então, postos na mesa pão e vinho, o ministro

repetiria as palavras da instituição da Ceia; depois, reiteraria as

promessas que nos foram nela anexadas; ao mesmo tempo, vedaria

à comunhão todos aqueles que são dela barrados pelo interdito do

Senhor; após isto, se oraria para que o Senhor, pela benignidade com

127

que nos prodigalizou este alimento sagrado, também nos receba em

fé e gratidão de alma, nos instruindo e preparando; e, uma vez que

por nós mesmos não somos dignos, por sua misericórdia aprouve nos

dignificar para tal repasto. Aqui, porém, ou se cantariam salmos ou

se leria parte da Escritura, e, na ordem que convém, os fiéis

participariam do sacrossanto banquete, os ministros partindo o pão e

oferecendo-o ao povo. Terminada a Ceia, se faria uma exortação à

fé sincera e à sincera confissão dessa fé, ao amor cristão e ao

comportamento digno de cristãos. Por fim, se daria ação de graças e

se entoariam louvores a Deus; findos os quais, a congregação seria

despedida em paz. (THOMPSON. 1961, p. 185, 186)

Resumindo-se, para o reformado, a liturgia do culto reformado, protestante ou

evangélico, “Não se fazia nenhuma reunião da Igreja, sem a Palavra, as orações, a

participação da Ceia e as esmolas”. E acrescentamos – tudo com respeito e a honra

devida ao Supremo Senhor Deus e ...Pai.

Mas como seria a liturgia que regularia uma reunião familiar, na presença do

pai? Seria a mesma numa família italiana? E numa tribo indígena? O que é um clima

de respeito entre filhos de 4 anos de idade? E entre adultos? Entre um público de

favela e no de um ambiente acadêmico?

É difícil tratar desse assunto – honra e respeito – nos dias de hoje, ou no dos

anos 1960, 1970, ...comparado ao do século XVI.

Pois dentro desta revolução, em curso naqueles anos, discretamente, mas

incendiária, não deixaram de existir as igrejas e comunidades que transformaram a

liturgia dos seus cultos e serviços, em algo mais livre e mais, portanto, criativo,

participativo e mais ...bem-humorado. Afinal, não havia como se alcançar as novas

gerações com um evangelho mais “humano” ou próximo da cultura do povo, sem

128

que estas tivessem acolhida em algum lugar que os suportasse. Era a exemplificação

da assertiva bíblica que afirma “não se acondiciona vinho novo em odres velhos”72.

Se era comum a constatação de que mais e mais jovens que pregavam em

ruas, praças em apresentações de grupos musicais como as dos Vencedores por

Cristo, ao ganharem novos adeptos, era comum verificar que não conseguiam estes

se adaptar nas igrejas para onde eram dirigidos. Era como se houvessem vendido

um peixe que não era encontrado depois nas igrejas. A pregação do “venha como

está!”73, hino popular e encontrado na maioria dos hinários tradicionais do

movimento evangélico, na realidade mostrava-se enganoso.

Bomilcar afirma

seis meses depois da minha conversão em julho de 1972, acho que

comecei levando a rua pra igreja, tanto que pelo meu meu jeito de

vestir, era convidado a assistir o culto na galeria. (...) eu era o cara

que eles empurravam pra frente para tomar as pancadas, eles

queriam fazer mudanças e então, eu era aquele que chegava com

cabelo comprido, chinelão, bolsa à tiracolo e o diácono me convidava

pra assistir o culto na galeria da igreja, pois destoava dos crentes da

época.74

Em meio ao tradicionalismo formal, mais do que apenas teológico, doutrinário,

surgiram no país, igrejas que transformaram o ambiente dos seus serviços religiosos.

72 Mateus 9, versos 16 e 17 73 Hino da Harpa Cristã nº 446, do hinário da A Harpa Cristã é o hinário oficial das Assembleias de Deus no Brasil, lançada originariamente, em 1922 74 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

129

Se no meio tradicional, das igrejas históricas isso era algo impensável (a Igreja

Presbiteriana do Brasil, somente há alguns anos, admitiu na sua constituição, a

admissibilidade de igrejas de liturgia contemporânea), grupos pentecostais

independentes – até de matriz norte-americanas como, por exemplo, a Cruzada

Nacional de Evangelização, que teve o seu início em 1951, pelo missionário da

Foursquare Gospel Church, pastor Harold Willians, natural de Los Angeles – EUA,

auxiliado por um pastor latino americano, que promovia celebrações menos formais,

mais emocionais e com grande participação do público e que no seu nascimento

utilizava-se de tendas de lona. 75

Mas nem só de instalações improvisadas esses novos cultos aconteciam.

Exemplo maior dessas liturgias não engessadas, e que marcou época – e escola –

foi a “Igreja do Tio Cássio” ou Igreja Cristo Salva, que apesar de ter ficado restrita a

poucas congregações até hoje, marcou época e é emblemática pelo motor das suas

mudanças – o abraçar dos novos convertidos, especialmente os jovens.

Nascida pela paixão de um ex-empresário da cidade de São Paulo, Cássio

Colombo, convertido dramaticamente à fé evangélica em 1968, através do

testemunho de um ex-pastor presbiteriano influenciado pelo pentecostalismo,

reverendo Silas Dias e fundador da Igreja Evangélica do Espírito Santo, nesta

cidade, em 197476.

75 COUTO, Marcos. As Igrejas oriundas da Cruzada Nacional de Evangelização. Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/pentecostalismo/pentacostalismo.php. Acesso em 07 de maio. de 2018. 76 Entrevista concedida pelo Tio Cassio a Revista Vinde em novembro de 1998. nota 34.

130

Fruto da sua paixão pessoal e no que afirmava ser chamado divino, Tio Cássio

abriu as portas de uma nova congregação, numa casa no bairro paulistano de

Planalto Paulista, onde está até hoje, mesmo após a sua morte em 1998.

Mesmo sem formação teológica, o ex-empresário que nutria uma paixão

indiscutível por acolher gente rejeitada fez escola e até hoje é referenciado pela

contribuição ao crescimento do movimento evangélico brasileiro. Das portas – e

acomodações – da sua própria residência à casa onde mais tarde seria a sua igreja,

passaram centenas de pessoas, jovens, drogados ou não. Numa entrevista, “tio”

Cássio confessa o tamanho do desafio pessoal que acreditava ser um chamado

divino, “não consigo nem cuidar dos meus filhos, vou cuidar dos filhos dos outros?”77

Fato é que essa casa, transformada em templo, se enchia às segundas pelas

noites, de jovens - de família ou das ruas - alcançados pelos movimentos de

evangelização, dentre os quais o seu “Equipe Realidade em Cristo”, fundado em

1970 e, principalmente, muitos que apesar de pertencerem a igrejas tradicionais,

vinham ter contato com um evangelho que apresentava um Deus que os aceitava de

fato, como eram – com cabelos compridos, de calças desbotadas ou coloridas, ... –

e onde não eram recriminados por isso. O “Tio Cássio”, muitos ainda hoje

reconhecem, era o pai de quem os pais – e até as igrejas - haviam menosprezado e

abandonado.

Silveira Neto, hoje pastor do movimento Cristo Salva, relata

A mudança para uma casa melhor e que pudesse acomodar a nova

realidade da família, abre espaços para mais jovens. O que acontece

naturalmente. A ideia nunca foi o de uma igreja, mas sim o

encaminhamento posterior para outras igrejas. O conflito era gritante

77 Idem.

131

as diferenças imensas entre estes que vinham chegando e as igrejas

tradicionais e suas lideranças. Não existia a possibilidade de diálogo.

O pastor Silas Dias, mentor e companheiro, começava a ver que não

havia a possibilidade de manter a reunião caseira como um convite

para a vinda para a igreja. O choque era inevitável, no despreparo

para receber estes “novos convertidos” e seus hábitos, suas músicas,

seus instrumentos e sua fé. (SILVEIRA NETO, 2012, p.50)

A liturgia era simples tanto quanto absolutamente inusitada: todos se

assentavam ao chão (não havia cadeiras ou bancos) e para além das músicas que

se cantava nas ruas – ou nos acampamentos – eram embaladas por instrumentos

“indignos” nas suas igrejas de origem. Na hora da oferta, eram todos desafiados a

levantá-las ao ar e, após a oração de “consagração”, eram atiradas à frente onde

oficiais – igualmente jovens – as ajuntavam com vassouras para serem coletadas,

num clima de respeito e reverência, próprias da juventude.

Silveira Neto na sua pesquisa sobre a teologia defendida na Igreja Cristo Salva,

afirma

Tentar definir uma postura doutrinária e teológica do Tio

Cassio, é uma tarefa quase impossível. Mesmo porque

qualquer rotulação tende ao erro, e ao julgamento, sem um

conhecimento das causas em sua totalidade, tende a ser

“infantil” e imaturo. O “caldo”, a somatória de informações e

posturas doutrinárias e teológicas que chegavam até o Tio

eram muitas e embasadas, por muitas contradições

experimentadas, por seus autores ante as doutrinas e

teologias tradicionais. (SILVEIRA NETO, 2012, p.61, 62)

A Igreja Cristo Salva, foi acompanhada de perto e apoiada por inúmeros líderes

que se reuniam mensalmente para reuniões de oração e de partir o pão – de

pastores, tais como os presbiterianos Rev. Caio Fábio Araújo Filho e Rev. Antônio

132

Elias, Pr. Enéas Tognini, Pr. Carlos Alberto Bezerra, Pr. Carlos Alberto Antunes, ex-

professor de sociologia na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing de

SP, jovens pastores como Adhemar de Campos, que mais tarde viria ser um

compositor e músico conhecido de toda a igreja protestante brasileira, Rubinho

Pirola, este pesquisador-cartunista e, em encontros periódicos, até teólogos

respeitados, sobretudo pela comunidade tradicional, como o Reverendo Dr. Russell

Shedd 78.

É importante frisar que vários grupos musicais, músicos e equipes de alcance

de juventude que marcariam gerações nos anos seguintes com atuações em

escolas, praças, universidades, colégios, igrejas pelo país foram formados ali, tais

como o Oficina G3, Manga, Brother Simon e tantos outros.

Este padrão – novo – de trabalhar uma liturgia adequada para o povo –

especialmente os mais jovens - e não forçar o povo para uma liturgia, acabou por

influenciar e deu origem a igrejas e ministérios por toda a parte.

3.6. A pregação e crítica à incoerência no humor evangélico e na linguagem da publicidade, nas metáforas visuais

Incoerência era o que não faltava à fé evangélica. Se no credo – de origem

reformada – a fé na obra vicária de Cristo é que salva e não as obras de uma criatura

moralmente caída, então não se promovia obras sociais, assistenciais ou de socorro

aos mais pobres (ou de envolvimento com as “coisas desse mundo”, como vimos

78 Russell Philip Shedd (1929 -2016) foi um teólogo e escritor evangélico e missionário da Missão Batista Conservadora no Sul do Brasil, fundador das Edições Vida Nova e professor de faculdades e escolas teológicas. Era membro da Igreja Bíblica Evangélica da Comunhão (IBEC) e escreveu dezenas de obras reconhecidas e foi membro de comissões de traduções da Bíblia.

133

anteriormente) – pelo menos não institucionalmente. Se a adoração às imagens era

algo abominável e era parte do ideário de fé evangélico, não se podia admirar ou

sequer produzir desenhos, pinturas, retratando algum personagem bíblico. E assim

a identidade cristã não católico-romana ia se formando – mais pela negação ao que

não se era, do que reafirmando os seus próprios valores.

O sacerdócio agora, sob a ótica reformada, antes universal, estava subordinada

à palavra do pastor, indiscutível e não sujeita ao julgamento do fiel; se a salvação é

fruto da obra vicária do Cristo, e não há obra humana que se a compre, então na

época não se devia envolver com ações de cunho emergencial ou social e só se

podia ocupar da salvação das almas, não dos corpos, ...e por aí afora. Na negação

do que era ser-se católico apostólico romano, passava-se por cima da teologia

reformada, para o que Alderi de Matos, hoje historiador oficial da Igreja Presbiteriana

do Brasil, reconhece que até aos dias de hoje, existe um substrato histórico

riquíssimo de transformação social oriundo da fé reformada, contudo parece que

essa herança foi esquecida. Ele afirma “um desafio para esse segmento é articular

uma clara reflexão e práxis social, algo que tem enorme importância histórica na

tradição reformada, mas pouca expressão prática na experiência atual (dos

brasileiros)”. (MATOS, 2008. p.264)

A igreja evangélica era mantida longe da realidade e isso produziu por anos,

uma deficitária participação deste segmento em ONGs e associações de cunho

assistencial, tornando-a alvo de críticas de dentro e de fora dele. Afinal, era parte de

um país onde boa parcela da população vivia abaixo da linha da pobreza, e que vive

toda sorte de idiossincrasias. Que necessita de salvação, e também de pão. Um país

que ainda tem a marca da corrupção e da injustiça, e onde são tão poucas as vozes

134

de cristãos que levantam sua voz contra todo esse "status quo". Mas como denunciar

a postura? Como ir-se contra aquela realidade?

Bem antes da presença evangélica ter sido notada em empreendimentos

comerciais ou iniciativas que produzissem lucro, marca do mercado gospel que iria

florescer nas décadas seguintes, alguns projetos embrionários trouxeram a fé numa

roupagem de humor e criatividade para a mídia possível, a que se tinha acesso – ou

recurso que a bancasse. Mas nem sempre isso era aceito. O formato bem-

comportado, ou sério, prevalecia não sem uma censura do que saia dos artistas.

Bomilcar registra o fato

escolas acampamentos e rádio, essas eram as alternativas de

criatividade, pois a mídia impressa era cara! Que eu me recorde, o

primeiro cartunista de humor evangélico, na minha lembrança foi

você, Rubinho79. Na minha época não estou me lembrando de

nenhum outro. Em 79 quando estávamos mais ou menos próximos,

você trabalhando com a revista Elo80 e eu no estúdio gravando, lá na

Lacerda Franco (e São Paulo). Nesse mesmo período o pessoal da

APEC81, convidou-me para fazer alguns cassetes para que eles

pudessem evangelizar as crianças, fiz um o primeiro por uma questão

de “conversação”, para depois de fato, fazer outros projetos pro

universo das crianças, uma outra linguagem – eles tinham que

evangelizar os evangelizados antes! E quando apresentei o projeto,

que eles disseram que não seria recusado, não permitiram, tentei

fazer alguma coisa de fato com a linguagem das crianças, uma coisa

79 Começamos na ilustração e arte editorial e no cartum de propaganda evangélica em 1979 com a publicação de histórias em quadrinhos que vinham encartadas na Revista Elo, com o personagem “Juvenal o crente quase normal”, com críticas ao padrão de espiritualidade da época e com algum ensino 80 Revista de conteúdo cristão evangélico, bimestral que durou por seis números, de 1979-1980, com tiragem de 30 mil exemplares, em policromia e num ineditismo para a época, era interdenominacional, mantida por assinaturas e o investimento dos donos de uma grande empresa de consultoria e publicações para a área contábil em São Paulo-SP 81 Aliança Pró-evangelização de Crianças - APEC é um ministério dedicado à alcançar crianças. Fundada pelo Rev. Jesse Irwin Overholtzer, em 1937, em Chicago, Illinois, Estados Unidos. No Brasil, foi fundada em 1941

135

mais lúdica, e não permitiram. Toda essa linguagem era vista pelo

canto de olhos lamentavelmente, sempre, sempre.82

Prevalecia na época, um rigor contra a fé da maioria, do “inimigo” a ser

conquistado, o católico adorador de imagens e para isso, não se podia “alimentar” a

crença popular nas imagens de escultura ou de pinturas, um erro imperdoável para

um cristão herdeiro da fé reformada.

Jasiel, que também é ilustrador e cartunista, concorda e afirma que

Quando eu comecei a desenhar eu fiz uma revista pra criança, eu

tinha a preocupação se eu podia fazer imagens de Jesus, eu tive esse

conflito, como é que desenho Jesus, como é que desenho os santos,

os apóstolos e tudo? Isso aqui no Brasil, porque se você vai aos

Estados Unidos, não tem isso. Eu fui à Coreia e nossa! Parecia uma

loja católica, porque tinha de tudo e na Inglaterra a mesma coisa.83

Inovação, ousadia eram palavras condenadas. Tudo a que se acrescentasse a

palavra “novidade”. À semelhança que existia no país do “lado de fora” ou do

“mundo”, tudo o que não estava circunscrito ao espaço do “sagrado”, tentava-se frear

qualquer iniciativa de se pensar além do permitido.

As artes estavam censuradas do lado de fora, mas dentro das igrejas, o máximo

que se permitia era a música, mas esta, importada e confinada à roupagem

tradicional.

82 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 83 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação

136

Nesta atmosfera, surge em São Paulo, no bairro do Cambuci, em 1978, um

empreendimento inédito, uma editora que lança uma revista, talvez uma das

primeiras, juntamente com a Revista Ultimato, destinada ao público cristão

evangélico, sem estar ligado a uma igreja ou corrente, sem cor denominacional, a

Editora Musical e Literária Elo. Fruto do investimento dos sócios – de origem batistas

ou da Igreja dos Irmãos84 - de uma editora voltada ao mercado jurídico tributário, que

editava na época o Mapa Fiscal, aventurou-se pelo mercado evangélico, com livros

cristãos, em cerca de meia dúzia de títulos, gravações de discos de qualidade

também inéditos para a época através da Banda Elo, que era liderada pelo filho do

empreendedor e a sua revista Elo, com tiragem de 30 mil exemplares, impressa a

cores e em papel couchet. Era a primeira grande investida rumo ao mercado que

alavancaria milhões e que, mesmo nos anos de crise, posteriores aos anos 1980,

continuaria crescendo, par e passo com o aumento exponencial de igrejas e novas

agremiações.

84 Também chamados de Darbistas embora muitos de seus membros rejeitem qualquer nomenclatura. No Brasil são mais conhecidos como Casa de Oração ou Igreja dos Irmãos, Irmãos Unidos ou Irmãos Livres. Os primeiros irmãos eram membros da ala evangélica da Igreja da Inglaterra e oriundos de igrejas protestantes livres que começaram a se reunir na Irlanda e Grã-Bretanha. Um dos seus primeiros líderes foi John Nelson Darby, que pretendia restaurar um cristianismo simples e expunha a Bíblia com um paradigma teológico dispensacionalista.

137

Figura 12 -Visões de jornais da época: (da esquerda para direita) Jornal Mensageiro da Paz, órgão oficial das Assembleia de Deus, de 1944 e ao lado, sua edição de 1979; O Jornal Batista, órgão máximo da denominação, de 1978 e por último, a Revista Ultimato, outra pioneira, 1979. As publicações geralmente eram impressas em uma cor, a não ser em ocasiões especiais, quando ganhavam algum luxo extra. Mas geralmente eram de uma estética limpa, no melhor estilo baseado em forma – função – e sem maiores arrojos com a arte.

Fonte: arquivo do autor

138

Figura 13 - As capas da Revista Elo, impressas em papel de luxo e em cores.

Fonte: arquivo do autor

Figura 14 - As ilustrações que, pioneiramente, abusavam da metáfora visual, linguagem vinda da publicidade e que se utilizava do humor.

Fonte: arquivo do autor

139

Figura 15 - Ilustração da revista, associando as ideias - a bomba de combustível e a metralhadora – linguagem visual própria da publicidade, criada pelo autor desta pesquisa, fugia à estética religiosa da época.

Fonte: Arquivo do autor

Os livros e a Revista Elo, eram distribuídos via assinatura e trariam inovações

na estética “oficial” evangélica, sempre iconoclasta, e publicaria em grande tiragem

para a época as primeiras histórias em quadrinhos como encarte da publicação e a

utilização de metáforas visuais nas ilustrações – próprias da linguagem publicitária -

ferramentas poderosas, que envolvem o cérebro como nas metáforas textuais,

estimulando os sentidos de forma intensa a forçar associações.

Sobre a utilização do riso para a defesa da fé, Minois pergunta, “Por que não

utilizá-lo (o humor) contra o mal, contra as heresias, contra a impiedade? Ele pode

140

servir para estigmatizar os vícios e os pecados, para fulminar o adversário mal

pensante”. (MINOIS, 2003, p. 297)

O humor surgiria agora publicado, objetivando não apenas a propaganda da fé

e dos valores evangélicos, mas explorando a crítica e a ironia contra a incoerência

dos fiéis, do modelo-padrão dos que eram arregimentados pelas igrejas: o sujeito

que não bebia, não fumava, tinha hábitos espartanos de vida, num padrão ascético

por fora, mas por dentro não havia assimilado bem a ética e a virtude do “novo-

nascido”, o convertido de fato. Foi a vez do personagem “Juvenal – o crente quase

normal”, criado por este pesquisador e Paulo Gonçalves Borges Júnior, ambos de

formação e tradição presbiteriana e o último, pastor formado pelo Seminário

Presbiteriano do Sul.

Figura 16 - As histórias em quadrinhos vinham encartadas ao meio da publicação, em papel diferente, kraft, para se destacar do conteúdo - sério e mais "respeitoso à linha editorial" e, claro, ao público.

Fonte: Arquivo do autor

141

Ainda que o nome original não tenha sido aprovado pelos editores – “Juvenal -

o crente cara-de-pau”, seu humor foi assimilado logo de início e a sua aceitação

garantida não só pelos jovens como pelos mais maduros e tradicionais, alcançados

pela publicação.

O personagem, Juvenal, servia como ícone do cristão tradicional, sem

profundidade na fé e vacilante quanto às doutrinas evangélicas. Num humor que

visava a propaganda, também tinha uma vertente apologética, mostrando a

incongruência em que vivia o cristão – de reta doutrina, como era chamado por

Rubem Alves, o cristão evangélico, reformado, tradicional – e em especial a

juventude. Cheio de citações bíblicas, as histórias do personagem mostravam essas

incoerências todas na prática da fé dos cristãos da época, era a comparação e a

constatação entre o que se vivia e o que se afirmava crer. Citado por Minois, afirma

Robert Favre, “Há na Bíblia uma fonte permanente de cômico, que provém da

conflagração do sagrado e do profano”. (MINOIS. 2003, pg 117).

O próprio Minois conclui sobre a validade do riso na defesa da fé, “o riso não é

nem divino nem diabólico; é uma arma, e todas as armas são boas contra os

adversários da verdadeira fé”. (MINOIS, 2003, p. 297)

Usando o humor, os autores de Juvenal faziam apologia do pensamento

evangélico contra as incongruências e os desvios de conduta dos seus pares, que

podiam se identificar com o personagem.

142

Fonte: Arquivo do autor

Figura 17- As histórias vinham com referências bíblicas para um melhor aproveitamento do leitor, na melhor prática reformada de confiança no livre-exame dos textos bíblicos.

143

Figura 19 - Nas aplicações dos textos bíblicos, situações corriqueiras da vida em comunidade.

Fonte: Arquivo do autor

Fonte: Arquivo do autor

Figura 18- A defesa da fé num encarte da Revista Elo, contra as heresias da negação do criacionismo

144

Apesar do sucesso e do seu ineditismo, a editora não durou mais do que por

ano e meio, encerrada após a trágica morte do seu líder (e esposa, um filho e a sua

babá), num acidente de carro, Jayro Gonçalves, o Jayrinho, que deixou canções que

até hoje são cantadas nas igrejas evangélicas.

No período, até no interior do país, a estética simplória usada nas publicações

– de revistas das denominações e até nos panfletos e cartazes, foi substituída,

naquela época dos anos 1970 e 1980, pela linguagem da publicidade e propaganda,

marcando um novo e arrojado estilo de se comunicar.

Fonte: Arquivo do autor

Figura 20 - Cartaz em formato A2 de um programa de evangelismo em praça pública, de 1978.

145

Figura 21- Camiseta com coração e esparadrapo, a linguagem da publicidade ao serviço da fé.

Fonte: Arquivo do autor

Figura 22 - Exemplo de folhetos de persuasão e de propaganda religiosa, que até hoje é usado com a mesma estética, pelas igrejas evangélicas. E ao lado, um de 1984 já num estilo despojado, coloquial e bem-humorado que começava a surgir (copyright Sociedade Bíblica Ebenézer e por último, de autor desconhecido).

Fonte: Arquivo do autor

146

Se os anos eram de chumbo e a música se mostrava como uma excelente

trincheira para os opositores do regime, no meio evangélico ou de matriz reformada

também viram surgir críticos às suas incoerências.

Talvez o mais emblemático deles, tenha sido Janires, ou Janires Magalhães

Manso (1953-1988), cantor, compositor, produtor musical, arranjador e multi-

instrumentista capixaba, surgido no fim dos anos 1970. Um dos principais

renovadores da música cristã de matriz evangélica, teve experiências com drogas,

acabou preso, até tornar-se um cristão e passado por uma casa de recuperação, que

desde sempre se mostrou para além do seu valor social na reabilitação de jovens

editos, uma estratégia de alcance formidável da juventude pelo proselitismo

religioso.

Foi o fundador e um dos vocalistas do grupo Rebanhão, talvez a primeira banda

de rock cristão do Brasil a alcançar notoriedade nacional (e que também passou pela

Igreja do Tio Cássio). Foi autor de músicas em ritmos nacionais tais como o Baião,

para além do rock. Mas o artista era tão admirado quanto atacado sem dó pelos que

não gostavam de juntar o sagrado ao popular, à revolução que representava ainda,

não apenas usar-se acordes não “santos”, conforme a cultura ainda importada de

matrizes europeias e norte americanas, mas também por falar a língua das ruas. Ele

era o “crente” condenado pelo pecado inominável pelos tradicionalistas por chamar

a parousia 85, de “show”, que todo olho verá e diante do que, todo joelho haverá, um

dia, de se dobrar.

85 Palavra grega usada com o sentindo de presença ou vinda. Seu uso indicava a presença ou chegada de um rei ou governante. No Novo Testamento ela é usada designar a segunda vinda de Cristo à Terra, primeiramente para os fiéis e depois para todo o mundo.

147

E nisto, Janires foi um mestre. Na sua música “Etc e tal”, Janires expõe sua

crítica à uma fé conservadora, alienada (omissa à sua vocação profética) e legalista

dos crentes (não faça isto, não faça aquilo... não vá ao cinema...), ao rigor do

legalismo judaizante (na aversão à carne de porco), como à tentação que já

assediava os fiéis à uma corrente que cresceria exponencialmente nas décadas

seguintes, a do neo-pentecostalismo e sua devoção ao consumismo e ao narcisismo.

Etc e tal

Embaixo, embaixo, embaixo,

Embaixo, da ponte

As pessoas, as pessoas, as pessoas

Roubando e matando sem saber de uma cruz

Sem saber de Jesus, Sem saber de Jesus

Jesus, Jesus

Em cima, em cima, em cima,

Em cima da ponte

Nós os crentes tranquilamente

Se achando no direito de ficar descontente com Deus

Não comprou carro novo não

Não comprou carro novo não

Não, não, não

Em cima da ponte

Escrito em mural

Não vá ao cinema!

Não leia jornal!

Não tome café!

Etc e tal

148

Não! Não! Não!

Não coma costelinha de porco!

Deixa que eu como,

Não coma não, deixa que eu como!

(Gravação em Fita Cassete, sem registro de gravadora e ano. Fonte: arquivo do autor)

Ou ainda na sua música de cunho evangelístico, ou proselitista, “Baião”, de

1981, não bastasse o ritmo mais do que condenável, em que o seu testemunho de

andança e procura espiritual, se misturam à crítica econômica e social, numa

linguagem de fazer corar qualquer cristão da época pelo seu humor e sarcasmo.

Baião

Minha vida aqui era muito louca (louca)

Só faltei correr atrás de avião (de avião)

Mas Jesus entrou no meu deserto (no meu deserto)

Inundou o meu coração

Eu era magro que dava dó (que dava dó)

Meu paletó listrado era de uma listra só (de uma listra só)

Mas Jesus entrou no meu deserto (no meu deserto)

Inundou o meu coração

Sem Jesus Cristo é impossível

Se viver neste mundão

Até parece que as pessoas estão morando no sertão

É faca com faca, é bala com bala

Metralhadoras e canhões

Até parece que as "facurdade" só tá formando lampiões

E lampião e lamparina,

149

Vela acesa e candeeiro

Nunca vai salvar ninguém

Inda se vai gastar dinheiro

E o dinheiro anda mais curto

Do que perna de cobra

Filosofia de malandro:

"No bolso ele bota e nunca sobra"

E o que tá "fartando" de amor

Tá sobrando iniquidades

Todo mundo se odiando

Pelas ruas, pelas ruas das cidades

Se essas ruas, se essas ruas fossem minhas

Eu pregava cartaz

Eu comprava um "spray"

Escrevinhava nelas todas

"Jesus is the only way!"

Jesus é o único caminho

Pra quem quer morar no céu

Quem quiser atalhar vai pro beleléu!

Jesus é o único caminho

Pra quem quer morar no céu

Quem quiser atalhar vai pro beleléu!

Jesus é o único caminho

Pra quem quer morar no céu

Quem quiser atalhar vai pro beleléu!

(fita K7 Janires & Rebanhão - 1979 - ao vivo - São Paulo)

150

Em outra composição, “Liberdade”, Janires confronta a cultura dos jovens, dos

refrões populares e já do consumismo, reafirmando a sua fé

Liberdade

Liberdade não é uma calça desbotada ou rasgada... Liberdade não é dedo para o ar...

Liberdade é ter Jesus no coração e saber que Ele vai voltar!

Lei da evolução: Macaco! King-Kong, já era...

Deus nos amou, Deus nos criou;

Louvado seja o nosso Senhor...

Hosanas ao nosso Senhor!

Estão vendendo amor.

Estão vendendo amor em refrigerante...

Mas esse papo só cola em comercial de televisão!

Só tem amor quem tem Jesus Cristo no coração, no coração!86

Após sair do Rebanhão, mudou-se para Belo Horizonte, cidade onde passou a

apresentar um programa numa rádio, além de fazer um trabalho de evangelização

com jovens na Mocidade para Cristo e com uma nova banda.

Mesmo com sua curta carreira, o cantor é considerado um dos maiores

compositores da música cristã contemporânea e suas obras fizeram escola,

moldando o tipo de musicalidade dos anos seguintes.

Maurão, um dos pioneiros na utilização de bonecos e do humor, também foi um

compositor genial na forma de testemunhar a fé. Uma das suas canções fazia o

relato da sua peregrinação por várias correntes religiosas até ao evangelho de

86 “Liberdade não é uma calça desbotada...”, música e letra de autoria de Janires, composta e cantada pelos finais dos anos 1960 e início dos anos 1970, com grande sucesso, embora jamais tenha composto a discografia do autor.

151

maneira nada convencional, além do ritmo, o samba, inovador pra época, e hoje

politicamente incorreta, criticando uma religiosidade meramente superficial, fosse ela

no Catolicismo, o Espiritismo ou nas religiões orientais, “Pagode das Religiões”. Ela

diz

Pagode das Religiões

Encontrei Jesus, conheci a paz

E você, meu rapaz, se quiser pode ter essa luz

É prestar atenção pro que ele falou

E se abrir de coração pra o que ele deixou.

Eu fui lá na Seicho-No-Iê no meio da japonesada

Aprendi umas reza esquisita, umas palavras engraçadas

Mas enjoei da papagaiada e fui saindo de fininho

Botei o pé na estrada e encontrei o meu caminho.

Fui lá no Centro Espríta mas meu coração não subiu

E acendi até vela pra Cida, padroeira do nosso brasil

Eu achava tudo bonito, só faltava sinceridade

Dei um chute na mentira e agarrei-me com a verdade.

Fui no templo dos Hare-Krishnas, palitinho cheiroso cheirei

Me arrumaram uma roupa esquisita e até carequinha fiquei

Tudo aquilo não valeu nada, minha alma ainda estava perdida

Dispensei a dona morte e abracei-me forte à vida.

Religião pode ser uma boa, mas nem sempre faz um bom papel

Por mais bonitinha que seja não leva ninguém para o céu

No final desse meu pagode, se você gostou eu não sei

Mas eu tinha que falar de Jesus que eu encontrei.

(Gravadora: Bom Pastor Gospel, originária de 1980, mas gravada em 1988)

152

Mas a leveza e o escárnio já eram vistos nas canções que se, não eram

cantadas nas igrejas, nos cultos, eram presença constante nos acampamentos e

programas da juventude. Era o caso de “Corinho do Domingo”, de autor

desconhecido.

Corinho do Domingo

Domingo eu pego a minha nega87

E boto minha roupa mais legal

A escola já está toda reunida

Pra mais uma reunião dominical

Iracema vai mexendo com as cadeiras

Arrumando o lugar pra o pessoal

É a reunião dominiqueira

Da mocidade independente

Que só depende de Jesus, laiá-lá-iá

É a reunião dominiqueira

Da mocidade independente

Que só depende de Jesus, laiá-lá-iá

(Fonte: arquivo do autor, em fita cassete, de autor ou intérprete desconhecido)

Vindo da publicidade, o músico Vavá Rodrigues, despontava naqueles anos

dos meados de 1970, em São Paulo e desde lá tem sido um dos grandes da música

cristã e de um humor que desde cedo é sua marca. De origem Presbiteriana

Independente, colaborou com com a ABU – Aliança Bíblica Universitária e JOCUM

– Jovens com uma Missão. Redator publicitário, músico autodidata, compositor e

produtor de jingles. Autor de músicas emblemáticas como “A Alegria Está No

87 A Bíblia, geralmente, na época era encontrada invariavelmente com capa na cor preta!

153

Coração”, “O Dia Da Vitória” e “Mãos Limpas”, algumas de suas canções foram

gravadas por Vencedores Por Cristo, Expresso Luz, Família Maranata, Carlos Sider,

MILAD, entre outros intérpretes. Na sequência do seu trabalho inovador e com cheiro

bem brasileiro, tem gravado hinos tradicionais tocados em viola caipira e sanfona e

outros voltado para o público infantil, transformando parábolas do Novo Testamento

em canções com uma linguagem fora do convencional. Mas foi no “O samba enredo

de Moisés, o gago”, tão improvável quanto condenável, que revelou a sua verve em

juntar o sacro e o profaníssimo ritmo, nada mais brasileiro, ressaltamos:

O samba enredo de Moisés, o gago

Moisés, antes de ir pro Egito, ouviu o Criador!

Foi no alto do Monte Horebe

A sarça ardia, mas não se consumia.

Então, Deus deu ordem para Moisés: vá falar, meu filho, com o Faraó!

Diga: liberte o meu povo! Essa é a ordem que eu dou!

Co-co-como é que eu posso fa-falar assi-ssim?

Se-se eu sou ga-ga-gago

Se-Senhor tem dó de mim!

Vai meu filho!

Vai meu filho, eu contigo sempre serei

As palavras na tua boca, eu colocarei.

Eu te mando Arão para ser o teu porta-voz

Não te pasmes, nem te espantes

Pois eu contigo sempre serei.

Faraó se amarrudou, não deixou o povo ir

154

Deus, o castigo mandou e foi bem assim e olha aí;

Uma praga, duas pragas, cinco pragas, até dez

Ninguém pôde segurar a proeza do Moisés

A Salvação!

A salvação é concedida através da entrega.

Entregando a Jesus a vida

O resto, Ele vai cuidar... lalaiá, lalaiá!

Lalalaiá, lalaiá, lalaiá, lalaiá

(Original nunca gravado)

Outro compositor, não tanto conhecido, engenheiro, pastor de origem

presbiteriana e também parceiro de Vavá, Marcos Barros, lançou no interior mineiro,

o seu “Tango do João Crentão” de 1980, mostrando as idiossincrasias do adepto

protestante, do fiel evangélico da altura. Nela, Barros retrata uma ocorrência muito

presente nas comunidades, daquela em que o sujeito se dizia convertido, adepto à

religião, mais por uma postura ascética, do que pelas suas convicções de fundo

teológico - aquela em que não se consumia bebidas alcóolicas, não se fumava, não

se dançava ou jogava-se jogos de azar, mas quem nem por isso demonstrava

conhecimento bíblico ou convicções mais, digamos, essenciais à fé evangélica. Na

composição, ele mostra como práticas abomináveis eram reduzidas a quase nada,

em comparação à falta – gravíssima – de se opor ao “padrão comportamental” mal-

humorado e rígido das igrejas.

A sua música retrata bem a crítica:

155

Tango do João Crentão

João Crentão, era um sujeito muito bom.

Precisam ver sua vida particular

Na quinta feira e também todo domingo,

está sempre na igreja no primeiro lugar.

Confia em Deus, de todo o seu coração

Mas consulta sempre o horóscopo,

Para ver se o dia vai ser bom.

Sou dizimista, e no juízo final

Deus vai ter que levar em conta,

Afinal não fui tão mal.

(Música nunca gravada, mas cantada em encontros e acampamentos)

Barros foi dos fundadores de um grupo musical e de evangelização surgido na

Igreja Presbiteriana Central da cidade de Uberlândia-MG, chamado Conjunto Sal da

Terra, que acabou por fundar uma nova denominação – a Igreja Sal da Terra - após

uma crise entre o grupo, e a IPB, nos anos de 1985. O grupo insistia numa liturgia

mais livre, e práticas não convencionais, como as do uso da arte e do humor, para o

alcance dos jovens daquela cidade universitária. Vale ressaltar, que mesmo não

tenham sido acusados de negar qualquer um dos pontos mais caros aos

presbiterianos, como os da Constituição da igreja ou da sua Confissão de Fé,

acabaram eles por perder a confiança – e as consequentes condições para

continuarem membros daquela denominação.

156

Como era praxe na congregação da qual fazia parte o grupo Sal da Terra, ainda

presbiteriana, o humor era o tom, até mesmo numa das peças mais tradicionais das

igrejas tradicionais - o seu boletim semanal. Nele, pode-se ainda hoje esperar avisos,

convites, a agenda da congregação e, como não podia deixar de ser, uma

mensagem, geralmente publicada pelos pastores, um estudo bíblico ou uma

exortação pastoral. Em 1978, o humor era usado sem reservas, mesmo numa igreja

tradicional, a ironizar uma fábrica de cigarros da cidade e de renome internacional,

num mero pedido de oração de ação de graças pela libertação do vício do fumo, na

imagem a seguir.

Figura 23 - Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba.

Fonte: arquivo do autor

No “Bilhetim”, o boletim da congregação – assim mesmo, sugerindo o “sotaque

mineiro” - trazia uma mensagem pastoral nada convencional, com humor e cartuns.

E assim, o formalismo dava lugar ao coloquial, ao tratamento não tão formal e mais

157

próximo, não apenas do cidadão comum, do membro da igreja, como aos “de fora”.

Pouco a pouco, as igrejas foram usando de mais leveza nessa ferramenta de

comunicação das congregações e, mais uma vez, a publicação do interior mineiro

retratava esse arrojo.

Figura 24- A adoção de mais leveza – no design e no tratamento coloquial, nas capas de boletins – os dois primeiros, da Igreja Presbiterianas Independente, do Bairro da Bela Vista, em São Paulo-SP, de 1969 e de Osasco-SP, de 1984 e o exemplo do humor, no Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba, em Minas Gerais, de 1984.

Fonte: arquivo do autor

158

Naqueles anos, parecia que o crime maior era insurgir-se contra um rigor que

passava longe da teologia, mas ficava restrita à forma como a desenvolviam. Não

bastava crer (ou endossar-se uma profissão de fé, uma doutrina ou credo) tinha de

parecer-se ou agir como um seu adepto (segundo uma rigidez estética própria) e

isto, não raríssimas vezes significava na defesa desse posicionamento, como vimos,

passar por cima dessas próprias convicções teológicas de cunho reformado,

evangélico.

159

4 - Considerações Finais

Observamos que uma nova postura tomou conta da pregação das igrejas

evangélicas do Brasil, especialmente a partir dos anos da ditadura. E nela, o humor

foi determinante não só como linguagem - na estética, nas artes - mas como postura.

Mesmo produzido pelos críticos da fé que, por esta via, castigam os excessos

de fundamentalismos de alguns e da hipocrisia de outros, o humor é complementado

por seu uso bastante fecundo pelos membros de agremiações e igrejas, mais

comprometidos com a causa. Essa postura foi acelerada em seu poder seja pelas

novas possibilidades de comunicação midiatizadas, seja pelo surgimento de novos

intervenientes ou atores que romperam com o mau-humor dos seus predecessores.

E essa revolução da aproximação da religião com o público, aconteceu onde o

humor, a ironia, e até o escárnio e a caricatura produziram uma fé mais dinâmica,

leve e, portanto, mais próxima do cidadão. Além disso, ela impediu em muitas

comunidades, aquele tipo de fé esquizofrênica, que ora tinha uma personalidade –

dentro dos templos e reservada à prática de um dia – o domingo - ou momentos

apenas na circunscrição dos limites dos serviços – nos cultos ou serviços religiosos

– e outra, na vida em sociedade, ou nos salões paroquiais, sociais, retiros ou

acampamentos – onde haveria outra divindade, aquela mais bem-humorada, e suas

próprias demandas.

A negação da junção religião-humor, estabelecida pela ditadura religiosa,

apenas fez surgir uma ortodoxia morfológica capaz de sacrificar, de uma só vez a

ortodoxia teológica e a coerência. As bases sobre as quais o movimento evangélico

dizia haver, fundadas pela Reforma do século XVI, foram deixadas de lado: o

sacerdócio que separava iguais; a vocação para qualificar somente o trabalho

160

sacerdotal, clerical nas mãos não de todos, mas apenas de alguns; o templo como

espaço sagrado, embora feito por mãos humanas, reduzindo o Todo Poderoso Deus

aos seus limites e não mais dentro do fiel, feito templo de carne-e-ossos; o culto

restrito a apenas um dia e não estendido na prática cotidiana da vida e a liturgia

como sinal de respeito, mas não de alegria, arte e criatividade. Se os judeus do

Antigo testamento padeceram do mesmo mal e a cristandade Católico-romana,

também os evangélicos, nesse período da ditadura militar.

O discurso, a pregação ou a propaganda cristã reformada ou evangélica

padeceu, e muito, sob essa ótica mal-humorada, encerrando na época o movimento

às zonas periféricas das cidades – onde ainda continuam muitas igrejas e

comunidades por não terem ganho a capacidade de inovar, até os dias de hoje –

numa prédica mais de apontar de dedos, de estabelecimento de muros, que de

construir pontes de aproximação com a sociedade, buscando a sua conversão, e

deixando de lado o que o riso tem de melhor nas suas funções sociais, na sua textura

emocional, como aliás bem apontou Berger, ao citar Henri Bergson

para alguém rir de algo que lhe pareça engraçado, é preciso coibir

qualquer outra emoção forte que se possa ter na situação, seja a

piedade, ou o amor, ou o ódio. Em outras palavras, o cômico

acontece em um setor estranhamente antisséptico da percepção,

purgado de emoções e, deste modo, muito semelhante à mentalidade

da contemplação teórica: “O cômico exige algo como uma anestesia

momentânea do coração. O seu apelo é à inteligência pura e

simples”. (BERGER, 2017, p.73)

Apresentaram um Jesus carrancudo e pronto a castigar o faltoso, embora ele

próprio, o tenha feito como alguém igual, humilde e, segundo cremos, com palavras

161

humoradamente inclusivas e não o contrário, como por exemplo, nas proposições

inusitadas, como a de contar histórias ou até de pedir ajuda, um copo d’água, como

no caso do encontro com a mulher samaritana, esquecendo-se que ele, afinal, nunca

usara de rigor contra o penitente pecador, o quebrantado de alma. Ele foi aquele que

revelou Deus como Pai, ou Aba-Pai, e não apenas como o Supremo Legislador e

Senhor, diante de quem todos se calam. Mas afinal, que pai não se permite e aos

seus filhos o humor, o riso? Para manter-se o status, o nomos, não se permitiram ao

humor, antes à impessoalidade – e à desumanidade da regra e da distância como

normatização das relações.

Mas o humor na religião, cria-se, ameaçava os religiosos pela sua proximidade,

ou sua condição no domínio do privado e também, no seu inevitável confronto com

o “mundo”, com o povo, com o leigo, alvo da pregação, numa cosmovisão cristã

míope pela qual enxergavam e queriam que o rebanho visse, tudo à volta. Ora, isso

invariavelmente apenas suscita um choque crítico de experiências e de

desconformidade de ideais de vida.

O humor combina sim, com a religião, pois serve também como uma arma

contra a vaidade e o orgulho e contra uma sisudez que caracteriza a religião, não

devendo, reafirmamos, ser entendido como mero sinal de leviandade ou de

desrespeito ao que é santo, ao sagrado. Ele não serve apenas ao entretenimento,

ou à diversão do público, no atacado. O humor pode constituir até mesmo uma

estratégia eficaz para a tomada de consciência dos limites, podendo permitir até,

como vimos, o caminho da conversão. O humor nos reafirma a humanidade e

denuncia a nossa tentação de sermos considerados melhores do que os outros,

isentos ou acima de críticas, detentores da patente do divino, atravessadores da fé,

162

negando a nossa mesma condição de seres humanos, falhos e carenciados de graça

– em todo o sentido da palavra.

Se os líderes religiosos, sejam eles padres, pastores, bispos, presbíteros ou

como queiramos chamar podem ser comparados à professores – aqueles que têm o

“santo” ofício de cuidar do crescimento, do desenvolvimento da alma de alunos,

discípulos ou gente a serem conduzidas à sua emancipação, como ovelha, indivíduo

e cidadão, como podem eles desempenhar tal função? Seguindo e exigindo dos seus

alunos, uma rígida lista de mandamentos, com direitos às óbvias restrições e

proibições? Assim sendo, descobrir-se-ão em meio a tudo, menos espontaneidade

e alegria. Creio que houve um tempo no Brasil em que os “mestres” da religião

perceberam a necessidade de deixarem de lado a ortodoxia do método em favor de

experiências que então lhes pareciam mais sensatas, mais alegres, mais ...bem-

humoradas. E as aulas passaram a ter uma dinâmica muitas vezes mais

interessante. Foi preciso uma mudança de conduta. Como aliás, descreve-a bem

Rubem Alves, ele próprio, um ex-pastor protestante, presbiteriano,

"Ah!", retrucarão os professores, "a felicidade não é a disciplina que

ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino história, ensino

matemática...". Mas será que vocês não percebem que essas coisas

que se chamam "disciplinas", e que vocês devem ensinar, nada mais

são que taças multiformes coloridas, que devem estar cheias de

alegria? Pois o que vocês ensinam não é um deleite para a alma? Se

não fosse, vocês não deveriam ensinar. E se é, então é preciso que

aqueles que recebem, os seus alunos, sintam prazer igual ao que

vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês terão fracassado na sua

missão, como a cozinheira que queria oferecer prazer, mas a comida

saiu salgada e queimada... O mestre nasce da exuberância da

felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua

profissão, os professores deveriam ter coragem para dar a absurda

resposta: "Sou um pastor da alegria...". Mas, é claro, somente os seus

163

alunos poderão atestar da verdade da sua declaração... (ALVES,

2012, p. 87)

Neste período estudado, o humor foi o molde do espírito de resistência ao

período da afronta ao direito, às liberdades; e da tutela do pensar – e de criticar-se

uma perfeição tecida – e protegida – pela censura e repressão. Na esfera religiosa,

ele mostrou-se totalmente compatível com a pregação ou propaganda religiosa e

mais: fundamental para a espiritualidade, coisa que mais tarde, os movimentos mais

novos, tais como os pentecostais, neo-pentecostais e livres, souberam usar com

maestria e colheram muitos frutos, tendo crescido bem mais que os seus

antecessores no Brasil, sobretudo a partir de meados dos anos 1970, gente que

possivelmente se descobriu como “pastor da alegria”.

Sem isso, a sociedade a verá com reservas, não será afetada e permanecerá

fechada, mantendo sob suspeição toda atividade (onde falta o humor), segundo

concluiu Bergson

“Toda a rigidez de caráter, do espírito e mesmo do corpo será então

suspeita para a sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade

adormecida e também de uma atividade que se isola, que tende a

afastar-se do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, de

uma excentricidade enfim. E, no entanto, a sociedade não pode

intervir nisso por meio de uma repressão material, pois ela não está

sendo materialmente afetada. Ela está em presença de algo que a

preocupa, mas somente como sintoma — apenas uma ameaça, no

máximo um gesto. Será, portanto, com um simples gesto que ela

responderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie

de gesto social. Pelo medo que inspira, o riso reprime excentricidades

[…] flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na

superfície do corpo social.” (BERGSON, 1980, p. 14-15).

164

Por isso, o humor sendo parte da vida humana, também é parte da experiência

religiosa e, como vimos em especial, na religião cristã. O humor não é um apêndice,

mas sim parte necessária da espiritualidade.

Concordante com a ideia, James Martin aponta-nos três razões para a

necessidade do humor no seio da comunidade religiosa e na vida espiritual ao citar

o religioso jesuíta Pierre Teilhard de Chardin:

1. O humor conduz à humildade em espírito (evita o “ego inchado”, a

ganância, a presunção); 2. O humor recorda as limitações e revela as

fraquezas, promovendo a modéstia; 3. A alegria é o sinal mais

infalível da presença de Deus. (MARTIN, 2011, p. 29)

Por isso tudo, questionamos: não deveria a religião cristã, evangélica,

reformada, se render à suprema condição, posta por Jesus, o Cristo da história, para

se entrar no reino dos céus: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se

convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus”, em

Mateus capítulo 18, verso 3? Que criança, afinal, não é despida de orgulho, vaidade,

ou de guardas para com o outro, sendo simples e por isso mesmo, bem-humorada,

capaz de rir de si própria e da vida? Esta, certamente é a inversão da natural

aspiração humana, que não só podemos ver na proposta do Cristo dos Evangelhos,

como bem nos traduz Leonardo Boff 88: “Todo menino quer ser homem. Todo homem

quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino”.

88 Pseudônimo de Genézio Darci Boff (1938), teólogo católico, escritor e professor universitário brasileiro, expoente da Teologia da Libertação no Brasil e conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos humanos

165

Cremos que o Todo Poderoso ainda pretende ser visto como ...mais leve, mais

graciosamente próximo da sua criatura, fraca, limitada e desgraçadamente pequena.

Ou como até nos chama à atenção um antigo provérbio budista, “o humor tem

de ser vivido e não um apêndice, uma estratégia apenas. Ele nasce a partir da

vivência, leve, natural, como parte de nós. “O ego é o inimigo da sensibilidade e da

criatividade”.

E acrescentaríamos: sem essas qualidades, ou virtudes, não há humor!

166

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171

APÊNDICE

Entrevista 1 - Jaime Kemp

Kemp é pastor norte americano e doutor em “Ministério da Família”. Em 1967,

vieram, e ele e a esposa para o Brasil como missionários. Iniciaram uma

organização de orientação à juventude brasileira, a missão “VENCEDORES

POR CRISTO”. A cada período de férias eram formados diferentes grupos de

jovens, de diversas igrejas evangélicas, que cantavam e testemunhavam de

sua fé. Eles recebiam, ao mesmo tempo, treinamento musical e estudos

bíblicos. Regressando a suas igrejas estavam, então, estavam preparados

para servir de forma mais eficaz. Em 1998, Jaime Kemp fundou, oficialmente,

a Associação Lar Cristão. Jaime Kemp escreve artigos em jornais e revistas e

é autor com mais de 50 títulos.

Jaime, você vê humor na fé cristã? Muito. Além do meu grande amigo Ari

Veloso 89que usou muito o humor no seu ministério, principalmente pelo fato de ele

ser palmeirense e de “enfiar a faca” nos corintianos, eu uso muito, não apenas no

esporte, mas em situações familiares, nos seminários com casais, com jovens,

também uso muito no namoro, então é uma ferramenta tremenda e nós precisamos

ser mais gente autêntica no púlpito. Às vezes eu penso que a gente acha que o

89 Ary Velloso era bacharel em Teologia, pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e mestre em Teologia, pelo Dallas Seminary (Estados Unidos), foi fundador da Igreja Batista do Morumbi, também atuou como professor na Faculdade Teológica Sul Americana e durante anos foi missionário da SEPAL.

172

pastor sobe lá com toga, perfeito, que não tem problemas, não tem pecados ou se

os tem, é bem escondidinho...

Fica fácil de se estimular uma idolatria ao púlpito, não? Terrível. Um dos

lugares onde tenho visto mais isso, é na maior igreja do Brasil, que são as

Assembleias de Deus, por que às vezes estes homens – agora está mudando – mas

os homens que são os caciques e eles criaram então algo que até no palco, só entra

lá com terno, e gravata e nem pensar em pregar com uma camisa aberta, heim?

Então existe esta idolatria criada.

Então, você acha que o humor traz uma humanidade? Tira o orgulho, eu

diria, que quando você consegue dar risada de si mesmo, melhor ainda. Às vezes

o americano, fala um português terrível, mesmo se esforçando, estudando... e

quando ele erra, como eu que já tenho quase 50 anos, o povo dá uma risada, como

uma piada e isso deixa o povo mais relaxado, eles podem dar risada do Jaime, das

coisas e do jeito dele, essa comunicação acontece.

No ministério que você fundou – e fez escola na vida de tantos jovens – os

Vencedores por Cristo, onde é que o humor entrou? As duas primeiras equipes

tiveram o Jaime à frente dirigindo. Eu estudei música na universidade e eu estava lá

ensinando, mas logo eu percebi que o brasileiro tem uma comunicação melhor,

sendo mais solto, não funcionava aquela coisa da bateria pra lá, os instrumentos

separados, coisa formal, como um coral, isso não funcionava. Não que julgo isso

errado, nem sou contra, mas enfim, não era o jeito brasileiro, nem era importante

para o nosso ministério. Então o que é que eu vejo? Tinha geralmente um que

apresentava as entrevistas, brincando bastante e quando víamos que o pastor era

173

brincalhão, então até rolava uma piada sobre ele. Então, isso produzia um efeito de

comunicação tremenda. Nós precisávamos cortar aquela formalidade, porque a

formalidade não atrai o mundo, as pessoas, infelizmente. Para um concerto musical,

formal, especial, ok! Mas para os cultos, domingo após domingo, na igreja, tivemos

de deixar o pessoal mais folgado, mais relaxado.

Essa era a situação da igreja que vocês encontraram no começo de

vocês? Ruben, nós quebramos tudo, éramos pioneiros na questão dos

comportamentos. Você se lembra que antigamente a bateria não entrava na igreja?

Era um instrumento do diabo. Agora não é mais. O interessante é que mudou. Se

converteu (risos). E também instrumentos com o baixo, o piano elétrico – só tinha

aquele órgão que você bombava para poder sair o som, então realmente houve

algumas mudanças e, parcialmente, as mudanças diziam respeito a questão do

humor, que antigamente, e até hoje, nalguns contextos, nunca se solta uma piada

ou alguma expressão para dar-se uma risada, alguns pastores que sabiamente

sabem usar o humor, são os mais comunicativos.

Você quando começou o trabalho com os jovens por aqui, já tinha essa

visão de “aculturar” a mensagem do evangelho? Sabe, tinha gente que criticava

quando começamos com sambinhas. Sabe, sambinha era aquela coisa do carnaval,

de mulheres seminuas, dançando na rua e era para as boates e danceterias, e nós

dizíamos não, não. E sabe onde aprendi isso? Eu estava em Caruaru-PE num

domingo, fazendo um seminário lá, e no sábado de manhã, estando livre, fui pra

praça e lá tinham dois repentistas – evangélicos – fantástico! Olha, tinham um

auditório de mais de mil pessoas ao redor deles na praça. Quando eu cheguei lá,

eles estavam cantando sobre o Filho Pródigo. Um contava uma parte da história e

174

o outro entrava e continuava, bem no ritmo, eles estavam cantando, rimados e tudo,

quando eu percebi o quanto o povo estava colado a eles, àqueles dois homens! Aí

eu disse: “Senhor, é isso que temos de fazer!”. Pegar a música e o sentimento da

cultura e usar isso para pregar o evangelho e isso era 1970. Porque veja bem,

viemos aqui em 1967 e começamos os Vencedores em 1968 e nos primeiros dois

anos ainda estávamos aprendendo tudo. E eu percebi que Deus havia dado ao

brasileiro muita música e capacidade de compor música e letra. E isso foi com João

Alexandre, e Guilherme Kerr, Nelson Bomilcar90, esses caras,... E eu disse: “Senhor

eu estou precisando fazer a cultura” e nós pegamos hinos tradicionais, pusemos

ritmo diferente, e novas músicas, como Sérgio Pimenta, um menino fantástico e

então temos visto como Deus comunica ainda hoje através disso.

Falando em repentistas em praças, você vê algum humor nas parábolas

que Jesus contava? Ora, ...(risos). Dizem que Jesus nunca deu uma risada. Que é

isso, gente?! Que é isso?! Ontem mesmo, eu estava em Brasília e contei a história

da mulher adúltera, aí quando os líderes religiosos disseram: “A lei diz que esta

mulher precisa ser apedrejada, o que é que o senhor diz?!”. Então Jesus não falou

nada. Ele começou a escrever na areia e eu penso que ele escreveu os pecados

deles, depois levanta, olha na cara deles e diz: “Aquele que não tem pecado, que

atire a primeira pedra!”. Isso tem humor. Eu acho que ele deu muita risada. Quando

estava com os discípulos, eles faziam festa, tomaram vinho, cantaram e falavam os

problemas do ministério daquele dia e, eu acho que isso é coisa tremenda, o humor.

90 Músicos e compositores conhecidos da igreja evangélica no Brasil

175

Você acha que ali, na época em que a igreja evangélica falou a linguagem

do povo ela começou a crescer? Sim, absolutamente. Porque veja bem, quando

chegamos ao Brasil em 1967, nós começamos a trabalhar na Igreja Presbiteriana

de Santo Amaro, e nós somos batistas, heim? Fomos lá e o reverendo Jacó Silva

era o pastor, homem de Deus, mas ele era muito formal. Quando fomos lá num

acampamento, ele apareceu de terno preto e gravata. Parece que ele dormia com

terno, não tinha pijama. E sabe que eu aprendi a amar aquele homem? Ele era uma

indicação, um símbolo da formalidade da igreja brasileira. Sabe, não é que você ia

falar piadas durante a pregação só, era pecado dar uma risada na congregação.

Nem em todas as igrejas, pois hoje em dia mudou muito.

Já que você citou, os VPC usaram acampamentos? Muito. Especialmente

no treinamento, e íamos lá ministrar, especialmente nos Jovens da Verdade, Youth

For Christ, e a Palavra da Vida, e montões de ministérios. E você sabe que o Jasiel91

tem uma capacidade de dar risada e de criar um ambiente tremendo, Deus tem

usado este homem. Ele escreveu aqueles ditados para encontros de pastores...

Você foi um dos homens que liberaram, descobriu, ou emancipou, alguns

dos nomes mais revolucionários das artes cristãs no Brasil. Você vê esse

modelo se repetir depois dos Vencedores? Oh! Sim. Muito. Qualquer um dos

ministérios, seja no acampamento, seja nos treinamentos, em concertos musicais,

discipulados, tem isso que deixamos. Você não pode pedir que o povo fique

sentado 10 horas no banco duro da igreja, sem soltar, sem que seja alguma coisa

dinâmica, que comunique o conceito de Deus a não ser de uma maneira

91 Jasiel Botelho, pastor e humorista presbiteriano, fundador do movimento Jovens da Verdade

176

brincalhona, não gosto de usar a palavra brincalhão com a Palavra de Deus, mas

sendo assim de maneira a comunicá-la. Onde as pessoas possam assumir a sua

ignorância a respeito de algum assunto, de se sentirem livres, se poderem dar risada

de si mesmas. Às vezes o pastor erra, mas ele disfarça, como quem diz: “Não tinha

erro ali” ...Ora, ele precisa assumir o erro e dizer logo: “Eu sou um pecador miserável

mesmo!”. Inclusive quando os pastores me perguntam: “Jaime, como posso lhe

apresentar?”, eu digo logo duas frases: “Jaime, um pecador miserável.”, “Mas salvo

pela graça de Deus”. Não preciso de títulos, não preciso de nada. E logo de cara,

eu conto o testemunho da minha família, tudo quebrada, dos problemas que eu já

passei, sendo autêntico e ao mesmo tempo, até deixar o povo dar risada, cair no

chão de tanta risada. Está ótimo então, por que está comunicando a verdade de

uma maneira fácil, e não de uma maneira chata. O humor não compromete a

verdade, de jeito nenhum. A verdade é verdade, não importa a embalagem (risos).

E é bom que surgiram esses movimentos paraeclesiásticos, porque eles deram

algum ar fresco pra igreja que era muito formal, com muito medo de tudo. Olha, vou

lhe dar uma ilustração. Fomos ao interior, ainda com os Vencedores, e chegamos

lá à tarde para fazermos culto à noite, Igreja Presbiteriana, ok? E as meninas tinham

um conjunto, de calças compridas, mas bem bonito assim, bem decente, quando o

pastor chegou pra mim nervoso, uma hora antes de começarmos, já tínhamos

montado os instrumentos todos, e me perguntou: “Jaime, vocês não têm outro

uniforme?” Eu disse: “Sim, mas estão em São Paulo”, (nós estávamos no interior!).

Então ele me disse: “É que nós fizemos uma regra, que mulher não pode subir no

palco sem saias”. E sabe o que fizemos? Deixamos as meninas e formamos rápido

um quarteto de homens e a igreja ficou louca! E disseram: “Por que fizemos essa

177

regra que só está atrapalhando?”. E só estava atrapalhando mesmo (risos). Fato é

que as igrejas fazem regras que não têm nada a ver. Só serve para atrapalhar. Não

têm nada de doutrina, de bíblico. Geralmente usos e costumes não têm base bíblica.

São invenções eclesiásticas dos homens (risos). Apesar de tudo, Deus está fazendo

algo novo. E Ele nos usa apesar de tudo.

Quando vocês começaram então, usaram músicas traduzidas? Sim, eram

hinos tradicionais e canções dos Estados Unidos, por que era o contexto, mas logo

eu percebi, espere, não que ela não comunicasse, qualquer música comunica,

porém ritmos, por exemplo, hoje, depois de tanto tempo, Vencedores tem uns 15:

reggae, bossa-nova, country, rock, esse tipo sertanejo, ihhh!!! Recentemente fomos

pra Portugal e fizemos um show lá – tem pastor que não gosta da palavra show –

mas os brasileiros lá ficaram louquinhos com o nosso samba – samba é brasileiro

mesmo – e aquela comunicação foi tremenda. Às vezes tem-se a ideia que tem de

ser música traduzida, não, pode usar, mas também não precisa usar, inclusive

temos tanta música boa, bonita... às vezes cantamos ainda “Nas estrelas vemos Sua

mão”, essa talvez seja exceção à regra, que era do Ralph Carmichael 92...

E então não havia nada de ideológico quando você trouxe essas coisas

da América? De jeito nenhum! Sabe, a nossa preocupação sempre foi e é

comunicar o evangelho. O evangelho é o evangelho, a roupagem pode ser uma

porção de coisas. Por exemplo, lá em Portugal você tem aquela música triste, o

fado, pois eu fui a um restaurante onde tinha o fado e saí chateado. Pra mim foi

terrível, mas para o povo português, aquilo mexe muito, então gente, nós temos que

92 Compositor e arranjador americano de música pop secular e música cristã contemporânea, sendo considerado um dos pioneiros do último gênero, além do pai do rock cristão.

178

respeitar e no Brasil, o evangelho porque saia deste tipo de ambiente, eles achavam

tudo pecado, como usar instrumentos de ritmo como o chocalho, ou o pandeiro,

eles diziam: “isso tira toda a espiritualidade do culto”, e eu falava - “que é isso? O

que é espiritualidade, então? Porque, se tira, alguma coisa está errada com a nossa

espiritualidade! É uma espiritualidade líquida?!” (risos). Olha, esse seu assunto

sobre humor é importante. É bom fazer um livro e põe na mão dos pastores,

especialmente, bem, não quero bater, pois Deus está fazendo muita coisa, mas

sabe, antigamente eu não entrava nas Assembleias de Deus, por causa de um

estudo sobre sexo. Ih!!! É proibido. Ih!!! E eu falava de futebol, e esse era outro

problema! Mas veja, essa semana passada estive em Brasília numa grande igreja

das Assembleias de Deus, que tem um montão de congregações. Soltei montes de

piadas sobre isso e aquilo e eles choraram no final do seminário, então você vê que

consegue alcançar o coração sendo autêntico. E o pastor tem de aprender não falar

só das suas vitórias, das lutas e sim, até das derrotas.

Uma outra pergunta: Naquele momento de efervescência política no Brasil

(anos 1960/70...), vocês falavam de política sobre os jovens nas suas equipes?

Ok, nós fomos treinados antes de vir pro Brasil, ou qualquer país, nós da Overseas

Cruzade93, número 1, você não critica a questão política. Hoje em dia eu estou

quebrando a regra porque Deus nos tem dado autoridade e de vez em quando eu

solto algo sobre a corrupção política do Brasil, agora, mas respeitar a cultura. Me

lembro do meu mentor. Ele me dizia: “Jaime, o diferente não é errado”. Pode ter

93 Hoje, SEPAL, organização de treinamento de pastores e líderes de tradição no país

179

algumas coisas erradas mas você não pode ficar comparando culturas,

especialmente com os Estados Unidos, ou com outro país...

Mas não tinha uma pregação do tipo: Crente não se envolve com política?

Houve sim, alguns contemporâneos, mas eu sempre achei que temos de ser sal e

luz em qualquer lugar. Veja só o Alex Dias Ribeiro94, esses dias soltou um livro

fantástico e ele trás testemunhos fantásticos de homens que se converteram, como

o Emerson Fittipaldi 95... ele estava como sal e luz entre eles.

Então esse incentivo tinha entre os jovens? Tinha, e não era algo de os

manter totalmente isolados... E sabe o que aconteceu com a nossa bancada

evangélica? É uma tristeza! Por causa daquilo de muitos pastores dizerem “Não,

vocês não podem entrar lá e mexer com isso!”, Não, sal e luz devem estar onde a

escuridão está! Se não tem sal na sopa, vamos por sal na sopa. Até hoje, há muito

pastores nos púlpitos mas não na sociedade. Me lembro do Alex Dias Ribeiro,

quando saiu da Fórmula 1 e foi pra Atletas de Cristo e ia pra uma igreja batista onde

o pastor era seu parente, não me lembro o nome, mas ele não podia pregar lá pois

ele não usava terno. O pastor já morreu, mas foi mudando com o tempo. Temos

ainda essa ideia que as coisas do mundo não podem entrar na igreja, agora o

pecado pode entrar à vontade,...

94 Ex-campeão Brasileiro de Fórmula Ford, vice-campeão inglês e europeu de F3, número 1 no ranking dos pilotos brasileiros em 1973. Na Formula 1, ele disputou dez corridas entre 1976 e 1977, e diretor, por anos, dos Atletas de Cristo, organização cristã que reunia atletas de todas as modalidades no país e ex-integrante das equipes de Vencedores por Cristo 95 Um dos pilotos mais vitoriosos da história brasileira, e foi o primeiro brasileiro a se tornar campeão mundial de Fórmula 1 e em categorias de ponta no automobilismo internacional, abrindo portas para vários compatriotas. Fittipaldi foi bicampeão da Fórmula 1 em 1972 e 1974, campeão da Fórmula Indy em 1989[2] e bicampeão das 500 milhas de Indianápolis em 1989 e 1993.

180

** Entrevista dada por KEMP, Jaime. Entrevistador: Ruben Pirola Filho, realizada nas

instalações da Associação Lar Cristão, em São Paulo, no dia 30 de Outubro, às 11h14

Entrevista 2 - Nelson Bomilcar

Bomilcar é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista,

arranjador e escritor brasileiro, conhecido por ser um dos músicos mais

conceituados da música cristã brasileira. Foi integrante dos Vencedores por Cristo,

como músico e compositor. Participou em gravações do Grupo Elo, Grupo Semente,

Jovens da Verdade, Jorge Camargo, Adhemar de Campos, Asaph Borba e outros.

Nelson também mantém carreira solo, e algumas parcerias com o cantor João

Alexandre.

Como foi que você começou o seu trabalho? Iníciei meu trabalho missionário em

1973, seis meses depois da minha conversão em julho de 1972, acho que comecei levando

a rua pra igreja, tanto que pelo meu meu jeito de vestir, era convidado a assistir o culto na

galeria.

O que exatamente você trazia da rua? Ora, a herança da música, MPB e o rock,

duas heranças culturais brasileiras, na expressão dos cânticos, da música, e a igreja não

estava acostumada com isso. Eu transitava entre esses dois caminhos. Eu sentia que eu

era o cara que os jovens usavam, numa igreja tradicional Batista leta96, eu era o cara que

eles empurravam pra frente para tomar as pancadas, eles queriam fazer mudanças e então,

96 Com membros oriundos da Letônia

181

eu era aquele que chegava com cabelo comprido, chinelão, bolsa à tiracolo e o diácono

me convidava pra assistir o culto na galeria da igreja, pois destoava dos crentes da época.

Essa era uma ferramenta sua de propaganda, ou era sua vida mesmo? Não era a

minha dinâmica normal. A minha vida foi sempre ligada à música, a minha mãe, foi

contemporânea de Inezita Barroso, a primeira música que toquei na igreja foi “A marvada

da pinga”, e os caras rachando o bico. A minha mãe era cantora do rádio, da rádio São

Paulo, naquele tempo os programas eram feitos lá, com auditório, era crooner da orquestra,

lá, ela cantava nos musicais, e converteu-se ouvindo programa de rádio, então ela trouxe

toda essa herança dos programas de rádio, deu nomes pra duas filhas com letras de Dorival

Caymmi sabia tudo sobre ele, cantava as modas de viola, das duplas caipiras de Limeira,

de onde também fui criado, então era assim, cantar música caipira era rir o tempo todo

(risos).

Naquela época parece que era menos melancólico. É isso. Música caipira, mesmo,

da gema, mas por favor, não era sertanejo universitário, nada a ver, você ia pra coreto, ver

os caras lá, duelando e rindo um do outro e o outro fazendo piada do outro, era bem-

humorada a música.

Você fez parte dos Vencedores? Fui treinado em Vencedores por Cristo, em 1974,

tinha um músico lá, que me convidou, da Igreja Batista, recomendado por meu cunhado,

que hoje é pastor, e lá eu tive contato com essa geração do Guilherme Kerr97, as grandes

referências, e ele trouxe essa veia da ciências humanas, da poesia, e brincavam que eles

diziam que eu era o cara que chegava pra fazer as pessoas rirem, inclusive das suas

próprias ambiguidades.

97 Nascido em Araraquara-SP, em 1953, é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, arranjador brasileiro, e reconhecido como um dos músicos mais conceituados da música brasileira cristã

182

Uma coisa: os Vencedores, apesar de terem sido formados por americanos, ou

por iniciativa ...não, a iniciativa foi do Jaime, ele foi quem fundou. Ele era missionário da

SEPAL98, pegou todos os missionários naquelas primeiras equipes e, depois, lá na 11ª

equipe começou a fazer essa transição para a questão da brasilidade.

Mas na teologia, sempre foram ortodoxos? Sim, sempre foram ortodoxos, apesar

da herança da SEPAL, você via missionários de várias vertentes, eu me lembro do John

Quan, Osmar Ludovico99, com a cabeça fora do ambiente da igreja assim como os outros

que tinham uma teologia um pouquinho mais ortodoxa.

E qual é a importância da sua geração para a igreja daquela época e que igreja

vocês encontraram? Por um lado, eu encontrei uma igreja totalmente reprimida, além de

refletir o momento de ditadura que nós vivíamos, onde não se podia pensar, ou se pensasse

teria que pensar igual como o seu líder eclesiástico, que normalmente defendia que a igreja

deveria estar separada do estado, mas eles estavam defendendo o status quo e o governo

daquele momento. Então era uma comunidade extremamente medrosa, pois perdia seus

líderes que eram entregues para tortura, ao DOI-CODI100, era triste, líderes entregando

lideres brasileiros ...mas houve um outro movimento que distencionava tudo isso, que eram

os acampamentos. O Espírito Santo de Deus estava soprando nos acampamentos, eram o

Palavra da Vida, Jovens para Cristo, Mocidade para Cristo, Vencedores por Cristo, Aliança

Bíblica Universitária, Jovens da Verdade, Jovens em Cristo, Cruzada Estudantil e

Profissional para Cristo. Esses movimentos estavam repletos de jovens, porque não tinham

outro lugar pra pensar, não tinha lugar pra você ter prazer, não tinha lugar pra você pra se

98 Serviço de Evangelização para a América Latina, braço da OCI, então Overseas Cruzade International, hoje One Challenge International, uma missão cristã de desenvolvimento e apoio à líderes e pastores. 99 Ex-missionários da SEPAL 100 Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime inaugurado com o golpe militar de 1964. Destinado a combater inimigos internos que, supostamente, ameaçariam a segurança nacional, como a de outros órgãos de repressão brasileiros no período

183

alegrar, era só repressão, repressão, repressão e nesses espaços que aconteceu nos

Estados Unidos no Movimento de Jesus101, que também foram as grandes vertentes de

arte, os pintores começam a surgir, gente fazendo o humor, gente cantando coisas da terra,

não só coisas americanas, e os acampamentos, os movimentos de jovens estudantis se

tornaram refrigério dessa repressão toda, a ponto de que as noites mais celebradas nesses

encontros, entre os estudos bíblicos, devoção, treinamento, eram as noites dos esquetes,

onde as pessoas podiam rir, e ver as revelações de humor, e as pessoas perguntavam:

“você vai ser humorista?”, e até podia ser, isso era um prato cheio, mas ninguém

considerava o humor na igreja como parte da fé cristã.

Você pregava nas ruas também? Também, fazia a lida direto. Trabalhei com Aliança

Bíblica Universitária e a Secundarista nove anos, tinha até uma herança pentecostal,

mentoreado pela tia Arlete, pelo Valdir Nascimento, no nascimento do Desafio Jovem102 no

Brasil, então nós fazíamos o tempo todo, ao ar livre, e você tinha de fazer de tudo, não só

tocar.

Você via alguma crise quando esse pessoal que era alcançado nas ruas vinha

para as igrejas? Não conseguia. Por que literalmente como você definiu, a igreja que me

acolheu de herança Leta, se parecia com uma espaçonave, não tinha nada a ver com a

realidade, eu não sei como ia me integrar num negócio desse, e os caras pensavam, “você

dá bem para cantar no coro”, e me “jogaram” pra cantar no coro da igreja, pois era o único

link que conseguiam fazer, porque você não tinha espaço.

Mas a essência era a mesma, mas a forma,... A essência era a mesma, mas parece

que tinha um vento a favor aí: a igreja ainda não estava ainda formatada na questão do

101 Jesus Movement foi um movimento cristão estabelecido em oposição ao Movimento Hippie, da filosofia de paz e amor a partir de drogas e sexo praticados de modo livre. 102 É uma organização social cuja finalidade é a prevenção, recuperação e reinserção social de dependentes de álcool e outras drogas. O Desafio Jovem, ou Teen Challenge nasceu nos Estados Unidos da América no ano de 1958, através dos Revs. David Wilkerson e seu irmão Don Wilkerson

184

worship, da adoração intra-templo, ainda éramos fruto de um avivamento, período

evangelicalista que aconteceu nos EUA, Reino Unido, Alemanha, onde todo mundo queria

pregar o evangelho, então era “só Jesus Cristo salva”, chamando pecadores ao

arrependimento, as músicas que eram feitas por músicos lá de fora, os movimentos de

Jesus eram músicas chamando pessoas pra considerar o evangelho, então a chavinha era

evangelização, depois que essa chavinha mudou, com esse negócio do worship, da

adoração, tanto que os hippies que se converteram que faziam parte do movimento de

Jesus (Jesus Movement), geraram o primeiro movimento junto com a Vineyard103 em 79, e

a Maranata Music antes, no início dos anos 70, esses caras Chuck Girard’s e Jay Truax

faziam parte de um grupo chamado Love Song, da Calvary Chapel, que fundou a Christian

Contemporary Music. Esses caras abriram o leque pra criatividade, eles começaram a fazer

música de adoração e fundaram a Maranata Music que se tornou pelo menos 15 anos antes

de serem transformados numa igreja, era o espaço de criatividade, você via gente que fazia

coreografia, dança, dramaturgia de teatro, era impensável, mas acontecia nas chácaras,

nos sítios você via , com o pastor Chuck Smith, que acolheu essa turma, e acontecia nos

pavilhões e fundos de igreja, mas não no espaço do templo.

O formalismo da igreja da época então era muito grande? Ah! Experimente você

contar uma piada! “O Senhor está presente no Seu Santo Templo”. Ordem é fundamental

e reverência, ora, o humor não faz parte desse caminho da reverência, então ele tinha que

ser reprimido aonde ele se manifestasse. Outra válvula de escape era o rádio, o que se

conseguia fazer nos programas de rádio não se conseguia fazer no dia a dia da igreja, o

Maurão cresceu nisso, nesse pano de fundo, fazendo coisas de rádio, e outras vertentes. A

época por exemplo, era a da rádio novela, do humor feito ali, e aquela, ainda fruto dos anos

60 início de 70, os festivais da TV Record e TV Tupi, lá surgiram os programas do Zé

103 Associação de igrejas locais independentes, criado em 1974, por Kenn Gullikson, nos EUA que se espalhou pelo mundo.

185

Vasconcelos, do Manoel de Nóbrega, Chico Anysio, Jô Soares, no meio da loucura da

ditadura aquele era o local onde se conseguia rir, mas eu não podia rir de nada que fosse

associado àquele período de ditadura.

A igreja evangélica ainda não tinha entrado na mídia, mas rádio era mais fácil,

antes desse boom de mercado que facultou a igreja esses espaços antes fechados,

você cita o trabalho era de rua? Com certeza, escolas acampamentos e rádio, essas eram

as alternativas de criatividade, pois a mídia impressa era cara! Que eu me recorde, o

primeiro cartunista de humor evangélico, na minha lembrança foi você, Rubinho. Na minha

época não estou me lembrando de nenhum outro. Em 79 quando estávamos mais ou

menos próximos, você trabalhando com a revista Elo e eu no estúdio gravando, lá na

Lacerda Franco (e São Paulo). Nesse mesmo período o pessoal da APEC , convidou-me

para fazer alguns cassetes pra que eles pudessem evangelizar as crianças, fiz um o primeiro

pra uma questão de “conversação”, pra depois de fato fazer outros projetos pro universo

das crianças, uma outra linguagem – eles tinham que evangelizar os evangelizados antes!

E quando apresentei o projeto, que eles disseram que não seria recusado, não permitiram,

tentei fazer alguma coisa de fato com a linguagem das crianças, uma coisa mais lúdica, e

não permitiram. Toda essa linguagem era vista pelo canto de olhos lamentavelmente,

sempre, sempre.

Essa época foi o estopim da explosão da igreja, você também faz essa leitura?

Foi. Os anos 70 são de fato um divisor de águas, o pessoal, nos anos 80 já começou com

algumas barreiras quebradas, principalmente em relação ao mundo das artes, eu acho que

os anos 70 foram fundamentais para se chutar as portas - é possível fazer arte aqui, é

possível usar a dramaturgia, é possível usar a poesia, é possível pintura, é possível a música

contextualizada com as nossas heranças culturais, é possível fazer o humor, é possível fazer

cinema, que ainda hoje é uma área embrionária. Nesses cinquenta anos progrediu-se, já

tem gente fazendo bons documentários, conheci boa gente cristã nessa área,

186

premiadíssima no mercado, mas tentando fazer algo na igreja e não consegue. Têm de

fazer fora!

Alguém fora da “caixinha”, que consegue fazer as coisas com humor, solta, leve,

irreverente não é gente bem-vista, na sua opinião? Claro. Ainda hoje continua sendo

vista com desconfiança pela igreja. fosse em reverência, se fosse reverente, se fosse

reverendo talvez você conseguisse alguma coisa mais eclesiástico, entendeu? (risos)....

Reverendo não deve rir, e eu acho que a gente tem que reconhecer esses precursores que

chutaram a porta, um deles sem sombra de dúvida também, início dos anos 70 é Jaziel

Botelho104, que na minha opinião deveria que ter permanecido mais nessa vertente, mas

teve que transitar em outras vertentes pra conseguir ganhar o direito de fazer, de chegar

nos encontros e congressos de pastores pra poder fazer a sua pintura anual... (risos). Mas

assim, o que nós publicamos hoje? O que temos de publicação hoje nessa questão?

Dificílimo! Agora como você vai fazer piada pra você rir da fé? Dos que tem fé? Do ambiente

da fé? Ainda hoje o humor parece que não bate bem com o sagrado. No culto não é bem-

vindo, mas se for na hora do bolo lá em baixo (nos anexos aos templos) aí pode, você

percebe? É um negócio doido isso. É aquela dicotomia ainda, o momento espiritual,

momento sacro, agora é o momento secular e momento espiritual! E eu me pergunto, os

reformadores tinham humor? Não usavam o humor nas suas mensagens que impactaram

tanto? Não usavam pra que enxergassem as loucuras que estavam fazendo? Com certeza

sim! Nem a ótica histórica eles conseguem colocar por esse prisma, aí um cara que é

extremamente lúdico que caminha no universo da fantasia, da metáfora como C. S. Lewis105

ele tem que fazer um caminho por fora.

104 É pastor presbiteriano, cartunista e é conhecido por pintar quadros durante as pregações me congressos de pastores. Foi também um dos fundadores dos Jovens da Verdade 105 (1898—1963), foi um professor universitário, escritor, romancista, poeta, crítico literário, ensaísta e apologista cristão britânico. Durante sua carreira acadêmica, foi professor e membro do Magdalen College, tanto da Universidade de Oxford como da Universidade de Cambridge. Ficou conhecido por seus trabalhos envolvendo a apologia cristã

187

Nesse caminho por fora, esses “marginais” que optaram por um caminho não

ortodoxo de pregação e de propaganda da fé tiveram que bancar do próprio bolso,

não? Todos acabaram investindo naquilo que acreditam, todos os projetos iniciais foram

na grande maioria das vezes bancados pelos próprios que acreditavam no projeto.

De certa forma essa explosão não foi institucional? Não, passou longe disso, a

igreja cresceu pela marginalidade, e com humor na marginal. A sinagoga sempre foi muito

imprópria pro humor, eu imagino que se os vendilhões do templo tivessem trazido algum

coisa pro humor da época , aí acho que eles teriam sido expulsos duas vezes. Seriam

recolhidos os gibis.

Parece então que o templo aceita o vendilhão, mas não aceita o piadista? É isso

aí! Mais ainda, como se o humor não coubesse na espiritualidade! Esse é um negócio

louco.

Deus é humorado, para você? Ôpa, sempre. Ele deve chorar muito com a raça

humana, mas Ele deve rir muito das loucuras que a gente faz, e não precisava fazer! Ele vê

isso aqui e diz: “vocês não entenderam nada!”

A palavra Graça cabe em muita coisa, Deus deve rir-se em vez de jogar um raio.

O irmão da misericórdia seria o humor?.... Tô imaginando um humorista do tempo lá do

Rei Salomão, tentando descrever ele em relação a família, ou falando sobre o amor, qual

das 700 (esposas) que eu preciso escrever? (risos).... Volto a dizer, não é só a questão do

humor, falo a questão da arte, isso deveria ser estudado no início da fé cristã, princípios

básicos, pessoas acham que isso é um apêndice, e isso é princípio básico.

Deus criou todas as coisas e viu que era bom, que maravilha agora vou descansar,

desfrutem, e se Deus quisesse criar mais alguma coisa que nós não temos conhecimento,

Ele não poderia fazer isso hoje? Olha aqui, criei uma abelhinha diferente, e resolvi também

188

criar no nono dia! Aí não pode, Ele pensa o universo através da criatividade, Ele é o Criador!

Ele pensa o universo através da criatividade. Me lembro uma vez numa igreja que não vou

citar agora, o pastor estava falando, e conduzindo o culto e as pessoas tampando a boca

e dando risada, e ele olhava pra esposa, tentava ajeitar o paletó, vendo que tinha alguma

coisa errada, e daqui a pouco a esposa apontou pra que ele olhasse pra trás, no batistério

estava o filho dele fazendo caretas pro público, e a turma rindo muito, e a turma não se

esquece desse culto, desse momento de humor, que foi naquele culto, da mensagem

ninguém se lembra, mas daquele momento engraçado ninguém esqueceu mais! Foi a

melhor coisa do culto! Sinceramente, não acho que isso tudo vá mudar, ainda mais nesse

momento que estamos vivendo de tanta intolerância, se você quiser cutucar as pessoas

com uma piada, os caras vêm pra cima de você, batendo em você porque você insinuou,

estão perdendo o humor, o que tinha, está se perdendo. Se você ouvir um momento de

humor vindo da mídia, por exemplo José Simão, toda semana tem uma ou duas piadinhas

do universo religioso, nós somos o grupo de risco, estamos na ordem do dia.

A Reforma lidou com isso tudo – peitou o poder e questionou o fato de serem

irretocáveis, irreparáveis, intocáveis... – você acha que perdemos essa veia? A leitura

que faço é a seguinte: a grosso modo, são poucos os reformadores de hoje com o conteúdo

que foi proposto na Reforma, as pessoas foram seletivas com o que quiseram preservar da

reforma dentro das suas confissões, estruturas denominacionais. Então o que interessava

pra frisar entre os batistas, entre os presbiterianos, os metodistas ainda com alívio do vento

de avivamento de John Wesley106, ainda que um pouquinho diferente numa tônica mais de

serviço na periferia, assim cada um hoje das denominações confessionais, elas pegaram

alguma coisa que interessava, imagine que eu posso falar, só pra nós aqui, né? Que a Igreja

Adventista tem uma veia na reforma? Meu, se pegar ali, tem muita coisa que você assinaria

106 (1703 —1791) foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha.

189

em baixo, você vê que tem lá a questão da lei, a questão do sabático, ainda você se

estranha, mas tem outras coisas que os caras concordam, aí você fala, aqui os caras são

hereges, mas espera um pouquinho tem outros aqui que não consideram várias outras

coisas da reforma e esses nós tratamos como se ...

Na época da ditadura especificamente, quais os pontos da nossa fé reformada

que foram deixados de lado pela igreja reformada, dentro das igrejas históricas? A

primeira que eles defenderam, a questão da separação de igreja e estado, a igreja

protestante se tornou mantenedora do estado, e diz que a sua atividade e exercício

eclesiástico, não tinha nada a ver, era uma coisa absolutamente separada. E não é, tanto

que a igreja protestante usufruiu do estado e do poder pra manter a sua relevância num

país como o nosso!

E o caráter vocacional do trabalho do cristão? Você acha que também mataram

isso no período? Quer fazer piada todo domingo, você vai numa igreja confessional ou da

Assembleia de Deus, e chega lá na frente, olha para as cadeiras e começa a dar risada,

kuakuakuakua..., olha aqui sacerdócio real de todos os santos, kuakuakua...Tem que ter lá

separado os sacerdotes, e os leigos lá sentados! Porque que você não fica sentado aqui,

se você quiser ir lá pra frente te chamam, você tem que estar aqui com o povo, não eu tenho

que por lá pra distinguir! Distinguir o quê?? Você fica dando tiro no pé! Negando o

sacerdócio real, você está fortalecendo a estrutura eclesiástica, e dizendo para os caras,

vocês continuam leigos sim! E estão a nosso comando! E aí só podemos rir. Os caras estã

cuspindo num ponto de fé, todos somos iguais. Mas tem que ter essa distinção, e é só

assim que nós conseguimos manter a ordem, fazem essa defesa! Opa, opa, já ouvi isso,

onde? Em 64 comecei a ouvir isso aqui! Quem tem que manter a ordem, cara pálida?!

Fora a noção de templo, como espaço sagrado, não? É por isso que esses caras

se você propuser qualquer coisa que extrapola o templo, a igreja nas ruas, eles não sabem

190

onde colocar a mão! Porque eles só sabem andar e transitar dentro da estrutura

eclesiástica, você fala igreja aberta, igreja pra servir, ser sal e luz, a turma desconversa,

inventa uma agenda pra segurar a turma cada vez mais dentro. Você Rubinho, que conhece

bem esse país, você já viu na agenda lá de qualquer igreja, semana missionária, semana

não sei o que lá, e assim mês das artes? A igreja como promotora de artes, como espaço

pra qual tipo de manifestação eclesiástica, isso é sagrado na nossa agenda anual, onde

você vê isso? Um pastor recomendando uma exposição de arte, você não vê! Significa o

seguinte, tem muito artista, tem muito humorista, tem muito dançarino, o cara consegue

escrever um documento, desculpa aí hem, dizendo que não pode expressão corporal? Mas

pode continuar na loja maçônica, isso não afeta a fé cristã, tá certo, as dancinhas ainda não

estão boas, a roupinha é inadequada, mas você só aprende a dançar e a ter expressão

corporal de qualidade, dançando, fazendo! Pra você aprender a pintar, e usar as técnicas,

você vai ter que pintar! Ainda chego em cidades e tenho certeza, dessas duas perguntas

não vou escapar: - “você ainda ouve música secular?” Segunda: “você apoia artista que

toca na noite?” Todo fim de semana peço que não me façam essas duas perguntas, mas

eu tenho que responder! Na minha conversão, João Batista foi Tim Maia, e a parteira foi Rita

Lee! Eu chego e digo: “eu tenho de dar o meu testemunho: foram as duas músicas deles

que Deus começou a tocar no meu coração, e chamar a atenção a necessidade que eu

tinha!” Eu não quero escandalizar, mas era esse o meu testemunho, e eu não posso mentir!

(risos).

** entrevista realizada no restaurante Galeto’s, no Shopping Pátio Higienópolis, av.

Higienópolis, 618, São Paulo, no dia 24 de outubro de 2017, às 14h38

191

Entrevista 3 - Rev. Jasiel Botelho

É pastor evangélico, nascido em Recife em 1948. Missionário da SEPAL.

Fundador e presidente da Missão “Jovens da Verdade.” Jasiel e sua esposa

Ivone trabalham com o ministério de casais. É autor de vários livros para

juventude, livros de humor. Professor de teologia na FLAM. Casado e pai de

três filhos.

Reverendo, quando você começou o seu ministério pastoral? Eu, como

pastor, demorei, foi nos anos 1980, mas como ministério mesmo, foi quando me

converti no Palavra da Vida, em Atibaia, em 65, em 67, eu já estava na equipe,

trabalhando no acampamento, no QG, na equipe do Palavra da Vida.

Então o J.V. seria uma espécie, um filho do Palavra da Vida? Sim, um filho

do Palavra da Vida. Eu fiquei cinco anos com eles, aprendi sobre acampamentos e

em 68, eu era estudante no seminário JMC107, presbiteriano e nós começamos um

conjunto chamado Jovens da Verdade, conjunto musical e influenciado por um

conjunto americano que chegou, com balde, aí nós copiamos e criamos o contra-

balde brasileiro108. Muita gente pensa que nós é que o inventamos, mas não foi não.

Mas o J.V. é um ministério autóctone, não? É, um ministério brasileiro. Veio

desse grupo de jovens estudantes do JMC e também somos filhos da Igreja

Presbiteriana do Brasil, todos éramos da Igreja Presbiteriana no começo, e depois,

lá em Jandira, onde era o JMC – José Manoel da Conceição, nós começamos, em

107 Instituto "José Manuel da Conceição" (JMC), também chamado de Seminário Menor, funcionou em Jandira, SP, de 1928 a 1970, e era mantido pela Igreja Presbiteriana do Brasil. 108 Um balde no chão, com uma corda que era mantida esticada por um cabo de madeira que, à medida que “tocado”, e esticado em maior ou menor pressão, emitia sons graves imitando assim, os contra-baixos

192

68 e em 69 fizemos o primeiro acampamento de temporada, de brasileiros, mas eu

fui buscar o preletor lá no Palavra da Vida, o Reverendo Tompson (americano), e

nós fomos muito influenciados pelo Palavra da Vida, mas era uma outra realidade,

com o Ary Bollback, não com o Haroldo Reimer, a diferença entre eles era muito

grande, o primeiro era muito bem humorado, humorístico. Eu aprendi a aprontar

com o Ari Bollback. O Haroldo era bem diferente.

Você consegue juntar o humor ao sagrado de boa? Hoje sim. Mas no

começo, quando eu cheguei ao Palavra da Vida, eles brincavam muito, tinham muito

esporte, tinha muito esquete, e a questão da esquete foi uma descoberta para mim.

Mas era um humor não evangélico, era o humor pelo humor. Era stand-up, e eu

fazia isso, mas eu não sabia. Eu cuidei da noite de esquete, a noite do humor, e era

só esquete naquele tempo. Depois é que introduzi música e outras coisas mais e

era um show. Eu fiz até a música de abertura dessa noite de esquete do PV. E eu

me realizei, todo aquele dom de humor, saiu. Mas aí eu percebi que quando era pra

pregar, dar testemunho, eles não contavam comigo, porque eu era brincalhão. E aí

contavam com outros. E isso também no JMC, onde eu estudava. Tinha a caravana

de pregadores, e tinha a gente. A gente brincava muito e não podia entrar na

caravana de pregadores, quero dizer, eram muito sérios. Mas o pior não foi isso, o

pior foi quando a gente começou o Jovens da Verdade, e os Jovens da Verdade foi

sempre descontraído, eu e o Josafá109, a gente brincava muito, mas aí houve um

109 Josafá Vasconcelos, paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, é pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados

193

período em que entrou um líder, presbiteriano, presbítero110 muito sério chamado

Amílcar Ovídio Borba111, aí ele foi o nosso guru espiritual e aí foi cortando a gente

em termos de humor, cortando e eu fui ficando sério e tal, e quando eu terminei o

seminário, eu fui convidado para pastorear a primeira igreja112, aí eu tive de mudar

totalmente. Agora imagina: eu tinha de vestir toga genebrina pra pregar, além de

terno e gravata, toda aquela tradição da igreja, o respeito aos idosos e tal e eu

conclui que fiquei com uma dupla personalidade. Eu brincava, né, mas tinha hora

que eu ficava sério. A Ivone113, acha que eram melhor as minhas pregações quando

eu era mais sério, entendeu? Mas eu fui ficando esquizofrênico, eu leio assim.

Mas você não vê uma esquizofrenia também na igreja nessa relação até

hoje? Sim, com certeza, uma loucura. Mas aí, eu fui a um congresso em Lima, no

Peru, e sabe quem me ajudou? O Robinson Cavalcanti114. Ele foi preletor nesse

congresso, o Clade II115 e eu estava lá e pensei, esse cara num congresso tão

110 Presbítero (do grego "ancião" ou "sacerdote" usado no cristianismo) no Novo Testamento refere-se a um líder nas congregações cristãs locais, com referência ao "presbyteros" grego significando ancião/senhor e "episkopos" significando administrador. Entre os presbiterianos, indivíduo eleito pela congregação para dirigi-la e ser seu chefe espiritual. 111 Reverendo presbiteriano Amílcar Borba, foi diácono (1966-1972), presbítero (1972-1981), e ordenado pastor pelo Presbitério Unido de São Paulo em 15/03/1981, tornando-se co-pastor da IP Unida-São Paulo-SP. Em março de 1986 tornou-se pastor titular desta igreja até Dezembro/1990. A partir daí dedicou-se integralmente ao ministério de campanhas evangelística em todo o país. Faleceu no dia 22 de Março de 2012. 112 Primeira Igreja Presbiteriana Independente (IPI) de SP, a Catedral da Igreja na Nestor Pestana, em São Paulo-SP, onde foi pastor de jovens por 3 anos (de 1985 a 1987). Jasiel é formado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Independente, de 1980 a 1984. 113 Ivone Botelho, esposa de Jasiel é mestra em Teologia, além de ser formada em Letras. É diretora acadêmica da Faculdade Latino Americana de Teologia Integral (Flam), professora de Missiologia e mentora de Jovens. 114 Edward Robinson de Barros Cavalcanti foi bispo da Diocese Anglicana de Recife (1944- 2012). Teólogo, acadêmico, participou da fundação (1970) da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL), onde integrou, por sete anos, a sua Comissão Executiva. Integrou, também, a Comissão de Convocação do Congresso de Lausanne (1974), e a Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE), por quatro anos, bem como a Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial (LCWE), na Unidade “Ética e Sociedade”. Deixou livros e artigos em centenas de publicações. 115 Congresso Latino Americano de Evangelização, organizado pela Fraternidade Teológica Latino Americana, em 1979

194

importante, internacional, vem pregar e o tempo todo ele brinca, ele é irônico, então

é possível isso.

E você não vê na Bíblia o humor? Hoje eu vejo, hoje eu vejo, no Velho

Testamento, entendeu? O próprio Jesus, com as parábolas, e com as respostas, as

pegadinhas que ele faz, mas muito no Velho Testamento. No Velho Testamento é

claro. Um dos clássicos do humor no Velho Testamento é quando Elias fala assim:

“grita mais alto, pode ser que ele pode ter saído, ou tá no banheiro!”. Isso aí é humor

(risos) de primeira, né? Fora as outras coisas né? Então, o Robinson me ajudou

muito e aí depois, nós passamos seis meses na Inglaterra, aprendendo inglês e nas

lições, todas elas tinham uma charge, e você tinha de interpretar a charge e o humor

britânico é diferente, cada cultura tem sua característica. E aí eu vim embora e o

Caio116 convidou o John Stott117 pra vir pra cá pregar e eu estava lá pintando e tal, e

ouvindo o John Stott e ele contava as histórias deles, de humor, mas o pessoal não

ria e aí eu falei, caramba, eu acho que o pessoal não está entendendo, aí eu fiz pela

primeira vez charges, desenhos, ilustrando o que o John Stott tinha falado e eu colei

lá na parede e criou até um tumulto porque as pessoas ficavam vendo e não

deixavam entrar e o responsável disse: “ponha noutro lugar senão vai dar

problema!”. E eu pus e aí eu vi que o pessoal gostou e eu fiz a semana toda a charge

e eu pensei, caramba, é uma coisa bacana isso. E aí continuei: Na Geração 90 em

Brasília, fizemos e fomos juntando outros humoristas, aí eu descobri que eu tinha

116 Caio Fábio D'Araújo Filho, mais conhecido como Caio Fábio (1955) é um escritor, psicanalista e ex-pastor presbiteriano brasileiro. Foi o fundador e presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), é líder e mentor do Movimento Caminho da Graça (sediado em Brasília), grupo que possui subestações espalhadas pelo Brasil e pelo mundo 117 John Robert Walmsley Stott, CBE (1921 – 2011) foi um pastor e teólogo anglicano britânico, conhecido como um dos grandes nomes mundiais evangélicos. Foi um dos principais autores do pacto de Lausane, em 1974. Em 2005, a revista Time classificou Stott entre as 100 pessoas mais influentes do mundo tendo publicado mais de 40 livros e centenas de artigos, além de outras contribuições à literatura cristã.

195

esse dom de desenhar o humor, não só a piada, mas o humor. Aí, no Congresso

Brasileiro de Missões, em Caxambú-MG, eu publiquei algumas charges, eu fiz

algumas charges de missões. Uma boa charge foi da “Janela 10X40”118 aí eu fiz uma

janela, com umas missionárias na janela e embaixo, escrito o que é Janela 10X40?

– “é uma janela onde tem 10 missionárias de 40 anos não alcançadas” (risos) e as

missionárias queriam me matar, né? Aí eu quis me redimir e fiz outra charge – o que

é janela 10X40? Onde 10 missionárias fazem o trabalho de 40 homens! (risos). E aí,

a surpresa, que o diretor da Mundo Cristão, que é uma editora assim séria, né?

Olhou e disse: -“Jasiel, vamos publicar essas charges!”. Ali é que eu vi o valor do

humor, né? Eu pensei, “puxa vida, uma editora tão séria evangélica, querendo

publicar charge de humor!”, mas depois eu descobri por que ele era americano, e

os americanos valorizam o humor. As publicações em geral têm uma charge, a

Christianity Today119 tem as charges, muito importante as charges, então eu pensei

que ela é como a fotografia – uma imagem vale por mil palavras. E aí eu fui

aprendendo o humor, você não pode brincar com coisas sexuais, você não pode...

isto é, há limites no humor. E tem o bom humor e tem o mau humor, tem a crítica e

aprendi que você não deve ofender as pessoas, com humor, você pode criticar as

ideias e criticar os exageros, as caricaturas que as pessoas não percebem por que

eu tive mais liberdade no humor, quando eu estudei os temperamentos e eu

descobri que toda pessoa tem partes positivas e partes negativas, que não são

118 Este nome se deu pela localização dos 62 países que formam um retângulo aos graus 10 e 40 acima da linha do Equador. A região engloba o norte da África, o Oriente Médio e a maioria dos países da Ásia, países dominados pelo islamismo, hinduísmo e budismo, a região menos evangelizada do mundo. 119 Christianity Today é um periódico cristão evangélico com sede em Carol Stream, Illinois. É a bandeira de publicação de sua empresa-mãe Christianity Today International, e afirma que tem entre 145.000 e de 304.500 leitores.[1] O fundador, Billy Graham, afirmou que ele queria "plantar o pavilhão evangélico no meio de estrada, tendo a posição teológica conservadora, mas uma abordagem nítidamente liberal dos problemas sociais". No Brasil, saiu sua primeira publicação fora dos EUA, onde este pesquisador foi o chargista oficial desde o tempo em que durou aqui,

196

pecados, mas características que são do temperamento de cada uma, que quando

você esconde as suas fraquezas, você fica vulnerável, quando você as expõe, você

amadurece, você cresce, e você fica protegido num certo sentido, então eu aprendi

a rir de mim mesmo, das minhas fraquezas, das minhas limitações...

Há saúde no humor? É tremendamente saudável o humor e eu aprendi assim,

quando você ridiculariza o outro, isso é mau-humor, quando você ridiculariza você

mesmo, isso é bom-humor.

O poder teme o humor? O poder teme, porque o poder não quer ser criticado

de jeito nenhum. Agora imagine o poder político! E o poder eclesiástico? As

lideranças, os pastores, nós os pastores não aceitamos ser criticados,

principalmente os líderes. O maior problema da liderança é o narcisismo, é a

vaidade, é a soberba. Quanto mais um líder é forte, quanto mais ele é famoso o líder,

mais ele é intocável, ele é o “ungido”, ele não pode ser criticado de jeito nenhum.

Se nós, pobres mortais não podemos, imaginem esses caras que são semideuses,

entendeu?

Você é um pastor de teologia reformada, você não concorda que até os

seus princípios, a base, de fé ficam ameaçados diante do humor, por exemplo,

você citou o caso de o clero ficar ofendido, ficar vulnerável, num dado

momento, isso não trai o princípio do sacerdócio universal? Isso não é uma

ameaça ao pensamento reformado? Sim, porque hoje eu divido, o Tim Keller120 foi

quem ajudou a gente a ver isso: separar religiosidade do evangelho. O evangelho é

120 Timothy J. Keller (1950) é um pastor americano, teólogo e apologista cristão de teologia reformada. Ele é mais conhecido como o pastor fundador da Redeemer Presbyterian Church, de Nova York , e autor de diversos best-sellers do The New York Times.

197

livre, por exemplo, você pode fazer uma charge de Deus, Deus não fica ofendido,

Deus está acostumado a sofrer, na religiosidade, o deus religioso é o mesmo deus

do muçulmano. Quando você diz “não leve o nome de Deus em vão”, não é questão

do humor, é questão de você não brincar com Deus, não levá-lo à sério, não é o

brincar com ele, porque Deus é pai e se há uma coisa que o pai mais gosta de fazer

com os seus filhos, e vice-versa, é brincar. Por isso eu digo que hoje eu tenho a

liberdade de brincar com Deus porque ele é meu Pai.

Uma coisa a que você se referiu na sua formação foi acampamento. Isso

foi importante na sua vida? Qual é a relação que você faz entre o espaço dos

acampamentos e o templo? Eu vivi numa igreja presbiteriana tradicional, no centro

de São Paulo, quando eu tinha 14, 15, 16 anos e daí dessa igreja eu fui pra um

acampamento, o Palavra da Vida, de americanos, então foi uma diferença muito

grande. Na igreja, você entrava para assistir, você não podia mexer em nada, se

sujasse, tinha quem limpasse, e você ia assistir o culto. No acampamento não, você

podia fazer tudo, tinha uma equipe de jovens, que fazia todo o acampamento, com

“n” trabalhos, isso já foi uma diferença tremenda, agora, fora a liturgia. Imagina

chegar e o pastor estar de bermuda, com a bíblia na mão para pregar, agora, o meu

pastor, além de terno e gravata, ainda tinha a toga genebrina, a toga de Calvino, o

nosso louvor era dos hinos europeus, americanos, coral - e eu brinco que não era

coral era coroal, porque só coroas cantavam – agora lá não, eram canções, com

ritmo, com palmas, muito mais próximos, outra coisa que foi um choque pra mim

foram os testemunhos, e na nossa liturgia não tinha esse negócio de testemunhar

o que Jesus, o que Deus fez na sua vida, a liturgia lá era de adoração, de ouvir a

palavra, o sermão era elaborado, lido, e no acampamento não era nem sermão,

198

eram pregações, recheadas de testemunhos e de humor, para alcançar os

adolescentes e os jovens. Então quando eu voltei foi um choque na igreja, porque

eu quis trazer aquilo para a igreja. Imagine cantar com os idosos: senta, levanta,

senta, levanta, aleluia, aleluia, glória ao Senhor121...

Era como se existissem então duas divindades – uma do templo e outra

de um salão social, aquele que ficava no fundo da igreja? Exatamente, tinha

aquele culto solene ...mas cá entre nós, o culto protestante ainda tinha, ...na igreja

católica era muito pior, pelo menos nós tínhamos o social, no salão social, nas

brincadeiras de roda e tudo o mais. E quando eram as campanhas evangelísticas,

aí alguma coisa mudava, isso para não ser completamente contra a igreja

tradicional, porque de qualquer maneira a gente herdou isso, não fosse isso, talvez

eu nem tinha conhecido o evangelho.

E o Jasiel, quando está num tempo é outro Jasiel? Sim, eu respeito, porque

isso também é maturidade, você respeita os ambientes, mas ainda respeitando, eu

ainda com cuidado eu uso ainda o humor e os idosos gostam, os adultos gostam,

e os tradicionais gostam também, é interessante, porque faz parte do ser humano,

o humor, foi Deus quem fez e criou, os animais não têm isso, são só os humanos,

agora, o pecado estragou isso, né? Por isso tem o mau-humor, tem o humor

sarcástico, tem o humor bullying, e eu gostava disso também, era o lado negativo,

se eu pegava uma fraqueza sua, me dava prazer – e ainda me dá, eu tenho de me

policiar – de te expor. Interessante que eu tenho muitos amigos da liderança

evangélica do Brasil, eu conheço, somos amigos e tal, mas alguns deles têm medo

121 Canção popular na época, de autoria desconhecida, de letra simples e acompanhada com o levantar e assentar do público.

199

de mim, medo que eu os ridicularize, compreende? Eu tinha um amigo da Sepal,

que era diretor que morria de medo, eu dizia à ele: você é meu amigo, eu não vou

fazer isso com você, eu não vou te expor ao ridículo, porque a gente era amigo e eu

sabia das fraquezas dele, então, esse é o mau-humor, e hoje eu tenho cuidado. A

Ivone122 diz que se todos não se divertirem então não é humor. E agora eu uso o

humor no meu ministério em termos de família, de casais, eu trabalho com casais,

eu posso tocar em assuntos delicadíssimos, como a sexualidade, com toda a

liberdade e a gente se diverte, e é muito legal.

Você foi responsável, digo, você e o ministério que você representa, o JV, pela

formação de muitos, de uma nova geração, o reconhecimento é inegável. Você crê,

que influenciou nessa leveza de ver a vida e o evangelho? É eu digo que a gente

contribuiu porque a igreja – nós éramos basicamente da Igreja Presbiteriana – a

igreja mais fechada, talvez a Luterana fosse mais, mais a Metodista, mas mais a

Presbiteriana, uma igreja mais tradicional, né. Eu lembro de pregar numa igreja

Presbiteriana de camiseta, e depois o conselho se reunir, brigar e até dividir a igreja,

então a gente trouxe uma nova liturgia, com os testemunhos, a gente influenciou na

música, com os ritmos, na arte,... Quando eu comecei a desenhar eu fiz uma revista

pra criança, eu tinha a preocupação se eu podia fazer imagens de Jesus, eu tive

esse conflito, como é que desenho Jesus, como é que desenho os santos, os

apóstolos e tudo? Isso aqui no Brasil, porque se você vai aos Estados Unidos, não

tem isso. Eu fui à Coreia e nossa! Parecia uma loja católica, porque tinha de tudo e

na Inglaterra a mesma coisa, é uma coisa mais da América Latina, que veio dos

122 Ivone Botelho, esposa do entrevistado

200

Estados Unidos, dos Puritanos123, o evangelho contra a cultura, a música, o samba.

Se quando os protestantes tivessem chegado ao Brasil e aceitado o samba, a igreja

teria sido muito mais aberta, teria alcançado mais. Então, essa questão do humor,

eu acho que é muito mais sadio. Os Jovens da Verdade por exemplo, nesses anos

todos, cinquenta anos a gente vai fazer, a gente não tem escândalo nenhum

praticamente, porque qualquer um que tenha um comportamento meio estranho,

ao invés de você chegar ao cara e chamar a atenção, você começa a gozar dele na

frente de todo mundo, então a pessoa recua. Então o humor me dá a liberdade de

eu chegar perto de você, te criticar, dizer: “olha, não vai por aí não que é perigoso!”

Sem te ofender, sem te ridicularizar.

É estabelecer pontes ao invés de construir muros? Exatamente. Não é

aquele discipulado de você chegar e mostrar o erro da pessoa. Você pode fazer

isso, e você pode mostrar o erro da pessoa com brincadeira e a pessoa: “ôpa, não

é por ai!”. E nós fazemos isso largamente aqui. A cultura judaica é muito alegre.

Jesus começa o ministério num casamento, ...aquela imagem que Jesus não ri...

Hoje eu tenho essa consciência, nós éramos muito legalistas, inda mais com esse

nome “Jovens da Verdade”, sabe, a tentação de ser dono da verdade... Eu passei

uma fase de muito briguento, sabe? Eu era o “cão de guarda do JV” e aí, quando o

Tim Keller veio falar sobre toda essa religiosidade, aquilo fez a diferença, entre

religiosidade e evangelho, pra mim foi o divisor de águas da lei e da graça. Eu,

embora presbiteriano, estudando a graça e tudo, mas eu vivia dentro da lei, um

123O puritanismo designa uma concepção da fé cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da Reforma. Segundo alguns teóricos, trata-se tanto de uma teoria política como de uma doutrina religiosa. O adjetivo "puritano" pode designar tanto o membro deste grupo de calvinistas rigorosos como aquele que é rígido nos costumes, especialmente quanto ao comportamento sexual (pessoa austera, rígida e moralista)

201

evangelho meritório, assim, eu nunca tive uma vida devassa, então, eu fui o filho

que ficou em casa124 - eu sou merecedor – então eu trabalhava, não tinha

consciência disso, então tudo o que eu fazia e dava certo, era a bênção de Deus

porque eu fiz certinho, quando acontecia alguma coisa errada, eu ficava com a

consciência pesada do “o que eu fiz de errado, porque Deus não me abençoou?”.

No fim eu entendi que era meritória a coisa, não era a graça e tremendamente

julgando os meus amigos, os colegas, por qualquer coisa, às vezes por uma

fraqueza financeira, às vezes por uma fraqueza moral, todos os meus colegas que

se separavam eu julgava fora do evangelho, né? E aquela coisa toda... E qualquer

coisa que julgava diferente, principalmente os liberais, entendeu? Eu hoje acho que

isso é palha e o construir com pedras preciosas é a amizade, é o respeito, é o amor,

é a consideração, ...

Então você vê o humor como um sinônimo de misericórdia? Eu acho que

é bem por aí, é um instrumento de graça.

É a coisa do humor ser arma e também instrumento de aproximação? Eu

falo: a graça do homem é a graça de Deus. A gente aceita a graça de Deus, mas

não aceita a graça do homem e quando se junta as duas, fica muito melhor. E a

gente tem dentro do JV tendências de todo o tipo: de liberais, de conservadores e

agora dos Puritanos que são bem fechados e eu decidi que vou respeitá-los e vou

tê-los como irmãos queridos, mesmo não concordando do jeito deles pensarem e

isso aí, é o humor que me ajuda.

124 Referência ao irmão do filho pródigo, da parábola de Jesus

202

Muito se analisou sobre o crescimento numérico da membrezia da igreja

(evangélica) de 1960 para cá, nos aspectos sociológicos, antropológicos,

econômicos, você acha que de alguma forma o humor ajudou nesse processo

de crescimento de uma igreja não tão legalista, não sei se você consegue se

lembrar? Eu acho que os pastores novos, os diáconos, porque a maioria dos

pastores agora, com raras exceções, e presbíteros, foram jovens de acampamentos.

Se não foi no nosso foi do Palavra da Vida, se não foi do Palavra da Vida, foi na

Mocidade Para Cristo, e os que não foram, são legalistas hoje. Eu conheço alguns

presbíteros para quem é mais importante ser presbiteriano do que ser cristão. Por

exemplo, eu fiz uma charge, quando a Igreja Presbiteriana escolheu por o Espírito

Santo na sarça ardente125, e aí um colega começou a trocar e-mails comigo me

criticando e eu disse: “e porquê?” e ele: “porque é um símbolo sagrado” e eu disse:

“e desde quando o símbolo da igreja é sagrado?” (risos) E ele disse: “Ah! Se fosse

na ditadura, isso era como brincar com a bandeira nacional”. E fomos trocando,

trocando mensagens, quando ele apelou e falou: “é, porque você não é pastor

presbiteriano, você tem dor de cotovelo e não é pastor presbiteriano”. E eu “quem

falou pra você que não sou presbiteriano? Eu sou reverendo, com todos os direitos!”

(risos). Então tem isso, o sagrado...

Parece que a forma é tão sagrada quanto a doutrina? Exatamente. O jeito

de pensar, não se brinca, não tem humor... só que hoje você já não tem uma igreja

assim. Você tem uma cúpula mínima ali, entendeu? Tanto que os puritanos não

conseguiram entrar no Supremo Concilio da Igreja Presbiteriana126. Isso na

125 A imagem de marca da Igreja Presbiteriana do Brasil tinha uma pomba voando sobre uma sarça – um arbusto - ardente em referência à Êxodo 3:2 126 Órgão máximo regulador da IPB

203

Presbiteriana, na igreja pentecostal, aí tudo já é mais aberto, esse neo-

pentecostalismo também. Agora, é claro que é muita crítica agora, é um movimento

contra isso: usar o púlpito como um stand-up, tem o Cláudio Duarte127 que ficou

conhecido e alguns dessa liderança criticam muito, até estou vendo as 95 teses

contemporâneas, se a gente monta e inclusive ao humor, que não se devia brincar

com a Palavra de Deus, ficar contando piada, assim como a crítica ao louvor

também, há uma crítica ao louvor, que isso não é louvar..., há a crítica sobre

dança..., que ficar dançando, isso não é culto,... Então, há um movimento

reacionário também, mas também por outro lado, tá havendo muito exagero e oque

a gente quer é um equilíbrio, nem exagero de um lado, nem de outro, né?

E os desafios que você podia pontuar pra mim sobre essa igreja de hoje?

Eu acho que o maior desafio para mim, hoje, é a religiosidade. A religiosidade que

não é evangélica. Você é religioso, mas não é cristão, é uma imitação, é uma coisa,

é como se satanás criasse uma religião “cristã”, entendeu? Evangélica cristã. E

nessa religiosidade não tem perdão, não tem misericórdia, se você não concorda

comigo você está fora, se você fez uma coisa errada não tem conversa, não tem

perdão, nem restauração, é aquela velha história: Deus odeia o pecado e odeia

também o pecador e os dois vão pro inferno, odeia o ímpio. É, ...é difícil você

entender isso: Deus odeia o pecado, mas ama o pecador. Como é que pode isso?

E tem outras coisas, a tecnologia... antes você mandava o povo desligar os celulares

nos cultos, hoje você manda ligar (para acessar as bíblias)... e tem a questão da

127 Pastor, conferencista e pregador, membro da Igreja Batista Monte Horebe em Campo Grande e pastor local na filial da Barra da Tijuca- RJ, casado com Jane Mary, pai de Caio e Filipe. Se tornou conhecido por suas mensagens direcionadas à casais e com humor

204

evangelização, antes você evangelizava nas ruas, de porta em porta, hoje a

evangelização é pela internet...

Você fez um filho humorista, não? É mais o outro também é, mas um humor

diferente, mais o humor inglês, o outro ele é sério, mas ele tem humor, um humor

interessante e usa também como ferramenta.

* Entrevista feita no Acampamento Jovens da Verdade, em 31 de outubro de 2017, às 14h36

Entrevista 4 - Mauro de Oliveira (Maurão)

Maurão é jornalista, compositor, humorista e manipulador de bonecos

É assim: Eu nasci num lar evangélico, em Santo Anastácio, Igreja Presbiteriana

de Santo Anastácio. Antes disso, eu fui batista (eu fui um “Amado Batista”128,

também). É ..., mas aí teve um desentendimento lá e nós corremos para a

Presbiteriana de Santo Anastácio, onde eu fui batizado aos 8 anos de idade, eu

nasci em 52, nos anos 60, daí mudamos para Presidente Prudente, depois São

Paulo, mas o chão meu foi Presbiteriano do Brasil, IPB

Você chegou a ser ordenado? Não, eu sou jornalista, eu não sou pastor, nem

presbítero, graças a Deus, não. E quando é que você descobriu a sua veia

artística? Cara, eu não sei o que te dizer, quando eu descobri isso, sempre gostei

de humor, das coisas engraçadas. Eu só assistia comédias, essas coisas, ...lia livros

128 Amado Batista é um conhecido cantor popular, do gênero brega

205

engraçados. Eu sempre gostei disso e quando fiz jornalismo, e fiz jornalismo

porquê? Por que a Bíblia é um livro difícil de você ler, e o jornalismo me abriu muito

a cabeça: você lê e transmite de uma forma que todo mundo possa entender. Eu fiz

jornalismo por isso, pra isso também.

Você tinha essa preocupação de pensar na função do jornalismo, para o

seu ministério cristão? O meu ministério, exatamente, por que eu sempre gostei

muito de pregar – a base do meu trabalho também é a pregação da Palavra de

Deus. Sempre usando o humor, pregar com humor. Eu conto piada, eu tenho um

tipo de música engraçada, que eu pesquisei para fazer, e tudo o mais. Mas o meu

chão é presbiteriano do Brasil. Mas aí, o que aconteceu? Eu me casei com uma

moça do Brasil para Cristo. Aí ficou aquela dúvida: Ashbell Green Simonton, ou

Manoel de Melo?129. (risos!) Aí eu fui pro “Manoel de Melo” e fiquei 10 anos

trabalhando lá, numa igreja muito boa e eu descobri uma coisa boa lá, na

pentecostal assim, dessa igreja pelo menos, é riquíssima em termos musicais. Eu

conheci a Harpa Cristã130, conheci o Cantor Pentecostal131 e tem um outro...

Você tem um trabalho de música também, não? É, eu componho e canto,

né? Também.

E os bonecos, você os descobriu quando? Os bonecos, eu acrescentei em

1982, 83, por aí.

129 Ashbel Green Simonton e Manoel de Melo, foram respectivamente, os fundadores das igrejas Presbiteriana do Brasil e Brasil para Cristo 130 Harpa Cristã é o hinário oficial das igrejas Assembleias de Deus, desde 1922, com 640 hinos, ela foi especialmente organizada com o objetivo de enlevar o cântico congregacional e proporcionar o louvor a Deus em diversas liturgias da igreja: culto público, santa ceia, batismo, casamento, apresentação de criança, etc 131 Hinário editado em 1921, sob orientação de Almeida Sobrinho e tinha 44 hinos e 10 corinhos. O Cantor Pentecostal foi distribuído pela Assembleias de Deus de Belém/PA

206

E você se espelhou em algum ministério cristão que os utilizasse? Não.

Vila Sésamo132 (risos). Eu vi aqueles bonecos na TV, ...Ah! Um dia eu vi uma

apresentação de uns coreanos numa faculdade, chamada ABECAR133, lá em Mogi

das Cruzes, uma faculdade onde eu prestava serviços em acampamentos, aí

emprestei os bonecos e fui para o local onde a minha mulher dava aulas, para ver

se eu levava jeito para trabalhar com aquilo. Ah, rapaz! A criançada amou!

E você usava isso exclusivamente para crianças? Não, eu faço bonecos

para adultos. Até hoje, não é para criança. Eu até brinco: “Gente, eu não sou

pediatra, eu sou um clínico geral!” (risos). E por quê? Por que as piadas são para

adultos, o contexto é de adultos... mas a criançada ama, cara!

Isso então é universal? Mas me diz: você acha que os bonecos são universais

ou o humor é universal? Eu acho que é o humor. O humor, certamente. Você assistiu

o Nome da Rosa, não? É aquilo ali.

E você enxerga o humor na religião, nas escrituras por exemplo? Direto,

Rubinho. Eu digo sempre – e sou mal interpretado às vezes – que Deus é bem-

humorado. Muita gente torce o nariz achando que estou dizendo que Deus é um

palhaço, mas não, eu digo Deus tem humor. Você pode ver a criação, a girafa, o

elefante, a criação é aquela coisa doida – aquela diversidade, tem o pescoçudo, o

132 Vila Sésamo foi uma série de televisão brasileira, baseada no programa infantil norte-americano Sesame Street (criado pela Children’s Television Workshop de Nova York, baseado em opiniões e conceitos emitidos por técnicos de educação e agência de publicidade). O programa foi exibido pela TV Cultura de 1972 a 1977. 133 Nascida em 1958, como Missão Bíblia Bereana e em 1972, passou a ser chamada de Faculdade de Teologia A.B.E.C.A.R.. É baseada em Mogi das Cruzes-SP e também funciona por “Distance Learning” e mantém um acampamento para jovens desde 1963.

207

orelhudo, ...Pois é, eu uso o humor para falar do amor de Deus, e Deus tem

abençoado. No começo, foi difícil, dar a cara pra bater foi difícil, ...

Você acha que naquela época não havia respeito ao humorista nas igrejas?

Claro, ninguém analisava a essência do trabalho, só a forma. O conteúdo, ninguém

analisava. Para você ver, eu já fui pregar em igreja onde o pastor não deixou. Ele

disse: Não, aqui você não prega. E por usar o humor. Não. Isso é palhaçada. E eu

me lembro que tinha eu, e o Janires134 que fazíamos músicas diferentes – ele rock e

eu sambinha, mas com letras engraçadinhas e tal, mas sempre numa linguagem

meio ácida, tá? E muita crítica. Muita. E teve igreja onde a gente ia e o pessoal

levantava e ia embora. Lá nos anos 80. O pessoal levantava e caía fora. Meu Deus

do céu, eram aquelas igrejas carrancudas, não bastasse a sociedade toda sem

bom-humor algum. Foi um sofrimento. Agora você vê hoje como é que está? O que

a gente fazia é pinto. Hoje eu analiso assim: hoje não tem é conteúdo. O Jorge

Rheder135 já dizia: tem muita música mas não tem é qualidade. Hoje pra gravar um

CD é a coisa mais fácil desse mundo! E nós viemos da época da aculturação, ou

nacionalização do evangelho, os Vencedores, os Jovens da Verdade, ...Mas eu

tomo como ponto de partida, os Jovens da Verdade, nem tanto os Vencedores. Só

134 Janires Magalhães Manso (1953-1988) foi um cantor, compositor, produtor musical, arranjador e multi-instrumentista que iniciou sua carreira no fim da década de 1970, sendo mais conhecido como o principal responsável pela modernização da música cristã ocorrida na década de 1980. De família pobre teve forte contato com a música, e mais tarde envolveu-se com o uso de drogas. Após ser preso e permanecer durante um tempo numa casa de recuperação se tornou cristão. A partir disso, voltou-se à suas atividades musicais, tendo fundado o Rebanhão, a primeira banda de rock cristão do Brasil a alcançar notoriedade nacional. Ficou conhecido pelas letras que foram alvo de críticas de líderes religiosos por usar sonoridades até então proibidas nas igrejas, como guitarras distorcidas e letras contextualizadas com a realidade social e econômica da época. E muito humor. 135 Compositor evangélico Jorge Rehder (1955-2009). marcou a história da música protestante brasileira, com mais de 130 canções compostas, muitas delas gravadas pelos Vencedores por Cristo e Grupo Logos. Além de suas canções, Jorge Rehder teve parcerias de composições com Guilherme Kerr, Nelson Bomilcar, João Alexandre, Carlos Sider e Jorge Camargo, gente formada ou revelada pela missão criada por Jaime Kemp (Vencedores por Cristo).

208

para citar, tinha um cara, lá no J.V., já morreu, o Abdias, que fez aquela (cantando):

“Não vou ficar sozinho, agora sou feliz, com Cristo, no meu coração”, tinha o

Jaziel136, que compunha maravilhosamente bem, e que é cartunista, um homem que

admiro muito, pregando, desenhando, fazendo tudo, né? Aquele tempo lá começou

com eles, agora, reforço: é a minha leitura. Aí os Vencedores vieram assim

coladinhos. Pra mim. Era mais um estilo pop. Agora, os Jovens da Verdade, até que

se prove o contrário, abriram tudo, e foram até excluídos de uma igreja, a Igreja

Presbiteriana da Penha. E bendita hora que isso aconteceu, pois foi lá que a coisa

explodiu. Com alguns líderes que bancaram a perseguição ao grupo como o Rev.

Edésio de Oliveira Chequer137.

Já que falou em J.V., qual foi – se foi – a importância dos acampamentos

na sua vida? Meu Deus!!! Eu tenho um acampamento. Quero dizer, eu e a minha

mulher. É mais dela do que meu. Nós temos mais por causa da visão dela sobre

acampamento, isso a levou construir um acampamento. E o que quero dizer sobre

visão, é aquilo que eles têm que a igreja não tem: alegria, tem a pregação do

evangelho de uma forma descontraída, tem comunhão – verdadeira – participação,

você deve saber melhor que eu, que a maioria dos crentes, nos anos 1970, 1980,

se converteu em acampamentos. Eu sou fruto de acampamento. E pelo que sei,

você também passou por acampamentos. Eu fui um dos pioneiros com os bonecos,

na música de humor e você com cartuns, aquele livro Café com Deus é seu, né? Eu

dei muito aquele livro de presente, eu comprava e dava pra quem não era crente. O

humor abre portas. Boneco é uma coisa de doido! Abre portas pra você que você

136 Jaziel Botelho, um dos fundados dos Jovens da Verdade, pastor presbiteriano, entrevistado nesta pesquisa 137 Edésio de Oliveira Chequer, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, que presidiu seu Supremo Concílio (comando da denominação) entre os anos 1986-1990.

209

não imagina! É como desenho. Não se desenha pra criança. Você desenha, pronto.

Você já viu aquele desenho dos Simpsons? Aquilo não é desenho pra criança

(risos), mas elas amam aquilo. Pois é, mas voltando à perseguição, bendita hora

em que eles expulsam, né?

Você acha que essa estrutura tradicional das denominações não soube

falar a linguagem do povo? Vamos colocar nesse sentido: não souberam entender,

tipo: vamos abraçar, e não ir contra! Vamos conversar com eles, o que é que eles

querem, qual é a proposta? Por isso é que se perdeu, veja, a Renascer em Cristo138

é resultado disso daí. Os caras queriam pregar coisa nova, pregar o evangelho,

usando bateria, rock, ...e não podiam. Veja a Congregação Cristã do Brasil139, a

história dela é engraçadíssima: seu fundador, Louis Francescon, era membro da

Igreja Presbiteriana do Brás, e a igreja não deixava. Ele era diácono lá. “Ah! Não vão

deixar? Eu vou fundar uma igreja maior que essa!”. E fundou. Alí no Brás mesmo.

Se você tinha dificuldades, onde é que você encontrou apoio para o seu

trabalho, naquela época? Eu encontrei em todas. Eu era membro de uma igreja

pentecostal e lá eu não tinha espaço. Onde já se viu? Era um pode-não-pode...

Agora, eu tinha espaço onde? Em culto de jovens, presbiterianos, ... Tinha um

pastor Afro Marcondes (Afro Marcondes dos Santos Junior), está hoje em

Rondonópolis, Mato Grosso, ele era da presbiteriana, eu da Brasil para Cristo e nós

fazíamos um trabalho muito bonito juntos, chamado Cultão, em Guaianazes (São

138 Igreja evangélica neopentecostal fundada em São Paulo, em 1986, por Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, de uma cisão numa igreja pentecostal tradicional, tornando-se numa das maiores dessa linha, com mais de dois milhões de seguidores, em 3.500 templos, segundo a Revista Época - Edição 452 139 Igreja resultante da síntese doutrinária de base protestante histórica presbiteriano-valdense e o denominado Avivamento Pentecostal de Chicago (1907). Seu estabelecimento em terras brasileiras ocorre em 1910. Segundo o Censo do IBGE de 2010, a Congregação Cristã figura como 3ª maior denominação evangélica no Brasil, com 2,2 milhões de membros.

210

Paulo-SP), todo primeiro sábado do mês e reuníamos a turma dele, a minha e da

região ali. E ali a gente tinha espaço, cantávamos as nossas músicas, e era aquilo

na igreja, o pastor deixava fazer, aliás, muito poucos deixavam.

Parece que no acampamento acontecia isso: no mesmo espaço onde se

faziam gincanas, faziam os cultos, e teatros, sketches, não? Mas eu pergunto,

havia liberdade em acampamentos? E quando o pastor ia junto? Aí você estava

ferrado. A não ser os que eram realizados por organizações para-eclesiásticas, tipo

JV, ...menos o Palavra da Vida ...nossa, aquele pastor deles, como é que chama?

Haroldo Reimer! Uma vez ele veio comer na minha mão. Foi assim, eles gravaram

uma música minha, sem minha autorização. Foi aquela: “Se o teu coração parar de

bater agora...”. Ele gravou e eu fiquei sabendo. Aluguei um VHS, fui assistir em casa,

ai chamei minha mulher e disse: “Bila, olha, a minha música!”. Eu fiquei todo feliz e

mandei uma cartinha à ele dizendo: “Fiquei muito feliz em ver a minha música no

VHS, e tal, tal...”. E ele, pensando que eu ia pedir dinheiro por conta o direito autoral

e esse cara não parava de ligar pra minha casa (risos), e ligava, e ligava e eu nunca

estava, aí a Bila falou: “pastor, se o senhor está com medo do Maurão lhe pedir

dinheiro, fique tranquilo, ele não vai cobrar não, pelo contrário, ele está orgulhoso”.

Ah! Aí ele ficou meu amigo. Queria ter um filho comigo (risos). Aí um dia estávamos

em São Paulo, fomos comer uma pizza, estava ele, aquele quarteto que sempre

andava com ele o PV4, a dona Débora (Nota: imitando sotaque de americano), o

Ary Bollback, como eu gostava daquele homem! Rapaz, a nossa geração é

privilegiada!

Muitos livros creditam o crescimento da igreja evangélica à fatores de

mercado, mas não falam de um certo avivamento de fé que houve, não? Na

211

verdade, ninguém sabe o que é avivamento, e ele nada mais é do que o povo sair

às ruas, pregar o evangelho com alegria, no avivamento tem decisões, tem novidade

de vida, isso é avivamento, não aquela coisa forçada, de modismos, de conversa

fiada.

E outra coisa: você acha que os acampamentos foi uma iniciativa de

doutrinação política, de comodismo aos tempos da ditadura, de alienação dos

jovens? Eu penso que não. Sabe porquê? Naquele tempo a gente não falava muito

de política. A gente queria muito evangelizar. Queria ganhar almas pra Jesus. Então

a gente falava muito pouco de política. Tinha, lógico, aqueles slogans: “Crente não

se envolve com política”, aquele outro: “Crente vota em irmão”. Pra mim, pra mim,

heim? A gente queria mais ganhar almas. Esse negócio de política não era pra

gente, tanto é que não me lembro de ninguém, naquela época que se envolveu em

política. A não ser o Ariovaldo140 que veio do JV.

E você acha que fez escola, Maurão? Ah... eu acho que a gente contribuiu

um pouco, no tipo de música, pra liberdade de expressão. Eu nunca cantei música

americana, eu gosto de música brasileira, MPB, bossa-nova, de forró, de baião... Eu

tenho muita influência de baião, Luís Gonzaga, Renato Teixeira, de quem sou um

apaixonado...

Você chegou a gravar? Ih! Tem um monte de coisa, eu gravei 4 long plays e

uma pá de CDs (XXXX)... eu pensei: eu preciso fazer umas músicas que o pessoal

tá tocando nas rádios, mas com as nossas letras, aí fiz pagode, samba de breque,

140 Ariovaldo Ramos, pastor e militante social, conhecido pela atuação de esquerda.

212

pois sou fã do Moreira da Silva, eu acho que fui colega do Lutero, e já faz 500 anos

(risos)...

O que é música de Deus e o que é música “do mundo” pra você? Não tem.

Música é música. Ela não é nem de Deus e nem do capeta. Na minha leitura, por

favor! Tem a música evangélica, infelizmente, e a não evangélica. Meu Deus do céu.

Eu não escuto música evangélica (risos). Eu confesso pra você, pode parecer meio

arrogante, mas não dá! Você conhece o Atilano Muradas141, né? Você vai ouvir esse

cara numa FM, Gilson Rezende 142, que é um gênio, um crânio, Vavá Rodrigues 143.

Eu gravo só eu, eu e o meu filho, no contra-baixo. Eu não tenho banda, não tenho

nada, sou sozinho.

E você está em alguma igreja? Sim, minha igreja está em São Paulo, fica na

Lapa: Igreja Bíblica Evangélica da Comunhão, ah! E eu ainda sou membro da minha

igreja lá em Santo Anastácio (SP), a Igreja Presbiteriana. Lá eu vou só de vez em

quando. Teologicamente, sou presbiteriano, mas não calvinista. Sou arminiano144!

Crente perde a salvação. você quer saber? Eu tô brincando. Eu não sei nem o que

é que eu sou (risos). Se eu sou calvinista ou não. Aliás, muita coisa que se diz sobre

Calvino, nem ele sabia ou disse. Então isso aí gera muita dúvida. Mas tem muita

coisa no calvinismo que eu fico meio balançado.

141 Músico e compositor mineiro de samba evangélico, que até organizou escolas de samba para pregar o evangelho 142Pastor da Igreja Batista, pós-graduado em Teologia Urbana, músico profissional, compositor com 19 CDs gravados, e professor da FLAM-Faculdade Teológica Latino Americana, dos Jovens da Verdade 143 Compositor e publicitário paulista, criador de jingles famosos e de uma imensa musicografia evangélica nada convencional, algumas músicas são do conhecimento da maioria dos cristãos evangélicos do país 144 O arminianismo é uma escola de pensamento soteriológica (doutrina da salvação), baseada sobre ideias do holandes Jacobus Arminius (1560 - 1609)

213

E você publicou livros? Escrevi. E até vou mandar pra você de presente. Só

escrevi um, aliás, eu fiz dois em um. De frente é um e de trás pra frente, outro:

“Memorias de um pregador do evangelho” e da parte de trás, A moça feia e outras

histórias”. São causos, temperos de sermão, né? Quando você está pregando você

não conta uma história? Pois é aquilo lá. Eu fiz esse livro só e foi por minha conta.

Fiz bastante CD – pra criança e adultos. Tenho já 14 títulos. E pra além deles, tenho

um teatro, chamado “A igreja doente”.

E a igreja tá doente para você? Ô, parece que a igreja não tem cura! É Jesus

a cura, mas parece que não tem jeito... Ah! Rubinho, eu achava que você era parente

do Ruben Ciola145...

A minha orientadora, achava que eu e ele éramos a mesma pessoa... Pôxa,

ele morreu de uma forma trágica... Ele era muito estranho, uma vez foi dormi na

minha casa, lá em Poá-SP, acordou de manhã, não escovou os dentes, nem nada...

depois encontrei com ele num congresso para professores de crianças, nossa, era

piradóvisky, aliás, quem volta de Israel como ele, volta meio doido, quer e batizar no

Rio Jordão (risos)... Crente é engraçado, né? Crente é muito místico, você não

acha? Muito místico e pouco prático. Ele vê Deus em tudo... Calma gente, não é

assim, espiritualiza tudo

Você acha que a igreja ainda não valoriza o humor ou vê a coisa diferente

hoje? Ah! Eu acho que diferente, pelo menos, vejo que as portas hoje estão abertas

pro meu trabalho. Vou à igrejas tradicionais, todas, todas,... Eu vou à Presbiteriana,

Batista, Metodista, Assembleia de Deus, graças a Deus o pessoal respeita. Sabe por

145 Ruben Ciola escritor e animador de bonecos, falecido nos anos 1980, já citado nesta pesquisa

214

quê? Porque não vou pra falar de doutrina, usos e costumes, vou pra pregar o

evangelho. Eu sou um evangelista, eu prego o evangelho, eu faço apelos, a pessoa

se decide e tchau e bença, o que eu tinha de fazer, eu fiz e acabou. Eu fui chamado

pra isso. Sou casado, tenho uma mulher, um filho, dois netos, uma nora. Atrás de

um vitorioso sempre tem uma mulher. E atrás de um fracassado tem duas (risos).

Acho que é isso. Saiba que é uma honra! Sempre que dizia que ia

pesquisar sobre isso, o povo dizia: você tem de entrevistar o Maurão! Você é

um dos pioneiros, que abriu o campo aí e na sua humildade e tudo, ... E eu não

acho, viu, cara? Eu sinto, cara, de não ter preparado um sucessor, se bem de

boneco eu dou curso, né? Direto, direto.

Só mais uma coisa: você se aprendeu a fazer bonecos onde? Com a Vila

Sésamo. Mas como aprendeu a fazer? Não, eu compro. Os bonecos eu compro.

Agora eu encontrei um rapaz em Campinas que confecciona. Perto de casa, eu

moro em Paulínia. Ele confecciona pra mim. Ah! E eu não sou ventríloquo. Eu sou

bonequeiro. Eu fico atrás do pano. Eu bolei um jeito assim: eu estico um pano, um

cara segura aqui, o outro lá e fico atrás e tem uma pessoa para falar com o boneco,

o escada, né, que eu pego na igreja. Antes era a minha mulher, mas agora,

coitadinha, ela quase não está podendo sair mais, né? Então eu pego gente da

igreja mesmo.

O seu acampamento fica onde? Ah! O nosso acampamento fica perto de

Sorocaba (SP), numa cidadezinha chamada Salto de Pirapora (SP).

As pessoas não ficam mais uma temporada, de uma semana, ficam? Ô

ficam. Criança, principalmente janeiro e julho, a gente faz aquelas temporadas, tipo

215

JV, faz para criança e jovem, só que nós fazemos juntos. E o acampamento não

está ligado à uma igreja, é nosso, é particular, mantido pelo nosso suor mesmo. Ele

se mantém. Estamos enfrentando uma crise brava, ninguém está acampando. O

cara quer comer, se vestir e só depois pensa nisso, mas é geral isso! E vamos

tocando.

Como é que um pastor, um líder reage quando você toca na ferida com o

seu humor? Como é que ele reage quando a crítica o atinge? Tem piada que eu

faço com boneco que me faz sofrer muito. Tem uma que faço, pegando o nome da

mulher do pastor, e pergunto pra vovó (boneco): “você a conhece, vovó?” e ela:

“claro, nós frequentamos a mesma igreja” e eu: “mas qual igreja?” e ela responde:

“a igreja primitiva!” (risos). Tem mulher que não gosta que fale que ela é velha

(risos.). E ela continua: “ela paquerava o apóstolo Paulo!” (risos). Tem outra: eu

digo: “vira pro irmão que está do seu lado e diga que ele é um safado!”, ...“vira pro

irmão da ponta e mande ele pagar a suas contas!”, “vira pro irmão da frente e mande

ele escovar os dentes!”, “vire pro irmão de trás e diga: xô satanás!” (risos). “Agora

vire-se para você e veja a sua vida”... é uma coisa assim ... Não é só bobagem, é

pro sujeito parar de olhar pra vida dos outros, pra não julgar. Não me lembro da

letra agora. Piadas com bonecos são piadas leves, a gente faz, brinca com quem

está assistindo, pega o nome dos idosos, afinal o humor tem uma função educativa.

Muita. Muito, muito... Eu fui no Mackenzie agora, fiquei lá por dois dias, contando a

história da Páscoa, usando boneco e usando música. Eu fiz uma música

especificamente para aquele dia e contei histórias. Eu gosto muito de contar

histórias, cara! Bem, Jesus contava, né?

216

Pois, você vê humor nas parábolas? Claro, total! Eu não sei, bem, humor

não é só fazer rir, pelo contrário, fazer a pessoa feliz, é humor, é humor. A pessoa

assiste o trabalho – modéstia de lado, tá? – a pessoa sai de um trabalho nosso e sai

alegre: “Puxa, eu tô indo embora alegre!”, ao contrário de muitos cultos, em que

você vê a pessoa assim... Você gostou do culto? “ô, Deus falou comigo!” e ele tá

com a cara assim... o pastor desceu a lenha... o pastor mais bate do que apascenta,

né? Se bem que tem ovelha que precisa apanhar. E tem pastor também, precisando

apanhar (risos). Ih, rapaz, a Bom Pastor146 na minha vida, tinha o Elias de Carvalho,

conhece, né? Muita gente fala mal dele, mas aquele moço, tudo o que ele fez

comigo, ele cumpriu direitinho, inclusive eu tive um restaurante em São Paulo,

chamava-se “O Pão Nosso – comida caseira”, e o MILAD147 ia almoçar lá, a

crentaiada ia almoçar lá, e eu usava as salas do Elias em troca de trabalho. Eu fazia

produção de disco pra ele, apesar de eu nunca ter tido formação musical,

acadêmica. A única coisa que tenho de acadêmico, é que fiz jornalismo. Só, mais

nada. Mas, olha, é bom reforçar o seguinte: quando força, quando o cara quer ser

engraçado, ele se torna sem graça. Olha, quer ver? Nesses dias, foram a um

programa de TV, dois humoristas evangélicos... Meu, eu não consegui dar uma

risada. Eles fazem uma piadinha aqui, contam outra ali, não sei o quê, é uma

forçassão de barra, uma coisa sem graaaaça...

146 Gravadora e importadora evangélica brasileira. Foi fundada por Elias de Carvalho, filho cantor evangélico Luiz de Carvalho. É uma das mais antigas gravadoras evangélicas ainda existentes no país com sede em São Paulo. 147 Grupo de música evangélica formado por Nelson Pinto Jr. (sempre chamado de Nelsão), entre as equipes treinadas pelos Vencedores por Cristo, a 41ª de 1984, com Susie Duarte Costa, o casal Wesley e Marlene, Sergio Ribeiro e Lílian, Marinho, Rubenita, Roberto Barros, Amilton Berescki e José Roberto Prado

217

Tem limite o humor? A gente é que tem de se impor os limites para não se

tornar ridículo. É bom a gente dar uma policiada pra não ficar uma coisa meio, ...né?

Tem o seguinte, o humor... bem, quem faz humor não pode ter medo. De jeito

nenhum. Tem que se preocupar de fazer a graça, mas tem que ter algo de profeta,

de tocar o dedo na ferida. O cara atingido pela piada não vai gostar, pode até

arrancar dele uma risadinha de judeu, meio sem graça. Judeu ri com a barriga,

sabia? É muito engraçado (risos). Tô morrendo de rir, né? Mas com a cara meio

fechada. Mas como ia dizendo, o cara quando força acaba sem graça, fica uma

coisa meio xôxa, né? Ah! Isso aí que você tá fazendo vai virar livro?

** Entrevista realizada no Hotel Mercure, R. Alegre, 440 - Santa Paula, São Caetano

do Sul - SP, São Caetano do Sul, no dia 29 de outubro de 2017, às 15h03

Entrevista 5 - Rev. Evandro Silva

É mineiro, pastor presbiteriano, formado pelo Seminário Menor, José Manoel da

Conceição, em Jandira-SP, e o Maior, no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas-SP.

Foi diretor pedagógico do Instituto Gammon-MG, foi secretário Geral da Mocidade

Presbiteriana, foi presidente da Junta de Missões Estrangeiras da IPB e seu secretário-

executivo. Foi o plantador da Igreja Presbiteriana do Paraguai e é hoje diretor da Missão

Apressem, que fundou. Vive atualmente em São Caetano do Sul. Foi humorista de rádio, fez

stand-ups e atuou como palhaço por anos. É autor do livro “Coragem para ser diferente”, e é

membro da Academia Paulista Evangélica de Letras.

Reverendo, então a sua mãe era humorista? Sim, a nossa veia é da mamãe.

Ela era doméstica, de casa, ela não fazia nada sem fazer você rir. Você tinha que rir.

218

E se ela quisesse te xingar de tudo que era nome, também não tinha problema, não.

E ela não falava quatro palavras sem falar cinco bobagens. Ela foi criada na roça,

em Carmo do Paranaíba-MG, perto de Patrocínio-MG, para lá de Patos de Minas-

MG, e o pai ficou louco, tiveram de o amarrar em corrente, naquele tempo

amarravam na corrente, no tronco, e eles falavam pra minha avó: “Larga, põe ele lá

em Barbacena!”, mas lá eles matavam os caras, davam uma desovada feia, num

cômodo, punham vinte, trinta doidos, não tinham onde por tanto doido, uai! Minha

avó, falava: “Não. Eu prometi pra Jesus, eu vou cuidar do Tonho até ele morrer! E

ele prometeu que ia cuidar de mim até eu morrer! Como ele é que ficou doente, eu

é que tenho de cuidar dele”. E ele morreu nos seus braços. E louco, louco varrido.

Um cara apontou pra ele uma arma, quando trabalhava na roça, a égua se assustou

e o derrubou que, caindo, bateu a cabeça numa pedra e ficou doido, doido varrido.

E a minha mãe foi crente. Crente. E foi criada solta. Ela e mais três amigas iam pra

igreja e cantavam no coral e no final da vida dela, tadinha, teve nove filhos, tudo em

casa, papai era pedreiro, ia pras roças pra reformar as roças e a mamãe, amiga de

todo mundo, era boa vizinha, ajudava todo mundo, minha mãe era assim. A raiva

nossa era que a mamãe fazia cinco roscas e nós falávamos: “hoje nós vamos comer

muita rosca!”. E ela tirava e dizia: “leva essa pra dona Etelvina! Leva essa pra dona

Nair e fala que depois levo mais pra ela!”, ela distribuía todas e nós víamos as roscas

indo embora e sobrava uma pra oito filhos! Essa era a raiva nossa da nossa mãe.

Mas aí, quando a vizinha mandava meio porco, ela perguntava, “mas quem

mandou?”, e nós: “foi a dona Nair.”. Ela falava: “Leva pra trás! “Que é isso, mãe?!”

e ela retrucava: “que é isso, seus vagabundos? Vocês levam uma rosquinha

reclamando, e ela manda meio porco pra vocês?! E nós gritávamos que não

219

queríamos devolver, até outras mandavam um saco de mexerica e ela devolvia. E

ainda dizia: “vocês reclamam de eu enviar uma rosca, pode levar de volta que não

quero nada deles.” E assim ela viveu a vida dela: cantava, chorava, contava piada,

ria, brincava com todo mundo... isso foi em 1936. Então, hoje tenho 81 anos bem

vividos, graças a Deus. Eu cresci, fui trabalhar em rádio, fui trabalhar cantando,

graças a Deus tinha uma voz boa, ...eu disputava com Moacir Franco, lá em

Uberlândia-MG e ganhava dois sacos de macarrão quem ganhava o primeiro lugar,

trabalhando em três emissoras de rádio e tinha programa de palco, pois naquele

tempo não tinha televisão, era auditório todo sábado.

Mas e a igreja? Ela não via isso com bons olhos, não? Não. Você não sabe

das histórias, a metade. Eu cresci, na igreja do não. Não podia fazer nada que era

pecado. Eu falava: “meu Deus, esse mundo é tão grande, tão bonito!”, eu chorava

no teatro, ouvia o povo cantando, eu queria cantar, mas não podia, eu era crente.

Eu queria ir ao cinema e a minha mãe: “Nem vem meu filho! Você é crente, como é

que vai ao matiné?!”. Era domingo o matiné. “Mãe eu quero jogar futebol” Não, não,

não.... Vocês são sadios, para irem à igreja, na Escola Dominical. Ela dava uma

ofertinha pra cada um levar e tinha uma miserável duma sorveteria entre a igreja e

a nossa casa. Eu era o mais velho, levava uma renca de menino e a mamãe não ia,

depois te conto por que. Aí o que é que acontecia: eu parava na sorveteria e as

ofertinhas de Jesus iam tudo pro picolé. Eu tomei muito picolé por conta de Jesus.

E eram aqueles de papel de seda, eu chegava com a boca toda vermelha, todo

roxo, amarelo... Aí, bem depois eu fui percebendo que a minha mãe não ia à igreja,

nem o meu pai ia à igreja e pensei: se fosse bom eles iam. Aí eu comecei a

frequentar escondido ela o teatro, comecei os programas de rádio, escondido. Aí

220

um dia eu me matriculei e cantei e ganhei do Moacir Franco e levei um pacote de

macarrão deste tamanho! O Gilberto, que era colega nosso, nós éramos quatro

humoristas – o Gilberto morreu de delirium tremens numa fazenda do Moacir – era

o Gilberto Garcia148, pai da Rosana Garcia, da Isabela Garcia, atrizes da Rede

Globo... ele cantava, imitava francês, o cara era bom... ele morreu numa fazenda em

Goiânia, do Moacir, que já casou seis vezes, tá pra casar de novo e vai casar muito

mais ainda, que a paixão dele é a primeira esposa, a Vitória, que era colega nossa

de rádio e com ela ele teve só dois filhos. E aí, nós formamos uma equipe de rádio,

de humoristas, o programa se chamava “Tudo Pode Acontecer”. O Cleyton 149 meu

irmão é quem fazia o programa. Ele é quem escrevia, com dois dedos na máquina.

Nisso não sei as sabe, o Aloísio, que era um humorista da rádio, foi chamado pelo

Victor Costa150, que fundou a rádio Globo, que veio depois, a ser a Rede Globo, era

148Antonio Gilberto Garcia Costa (Uberlândia, 1936 — Goiânia, 1996) foi um roteirista e ator de rádio, cinema e televisão brasileiro. 149 Clayton Geraldo da Silva (1938-2013) ator e humorista. Sob o comando de Manuel de Nóbrega, no programa: Praça da Alegria, da antiga TV Paulista, fez vários tipos e continuou no programa, mesmo depois da morte de Nóbrega, e a mudança do programa para o comando de Carlos Alberto de Nóbrega (filho de Manuel), com o nome de A Praça é Nossa. Um dos personagens de Clayton Silva mais conhecido e apreciado era o do caipira, ao lado do comediante Paulo Pioli. O quadro do programa era o "Êta Fuminho Bão". Os dois eram compadres e iam picando o fumo de corda e comentando fatos de suas vidas e também da vida de Carlos Alberto de Nóbrega. Também fez sucesso o personagem que tem o bordão: "tô de olho no sinhô". Foi ainda ator de cinema, tendo atuado, entre outros, nos filmes: O Bem Dotado - O Homem de Itu, As Aventuras de Mário Fofoca, Pecado Horizontal, e Tara das Cocotas na Ilha do Pecado. Ele residia em uma fazenda entre as cidades de Campinas e Indaiatuba, durante os últimos doze anos de vida. Faleceu em 15 de janeiro de 2013, de câncer, na cidade de Campinas, aos 74 anos 150 Iniciou sua carreira profissional nas artes como "ponto" de teatro (pessoa responsável por acompanhar o script, dentro de um espaço escondido, e ler para os atores falas esquecida). Em 1938, começou a trabalhar como rádio-ator para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, na ocasião a emissora de maior prestígio do Brasil e a única que era ouvida em todo o país. Depois, subiu de posto, tornando-se diretor de radioteatro e, por fim, diretor-geral. Deixou a Nacional na década de 1950 e foi para São Paulo, onde se tornou empresário do ramo comunicações. Adquirindo ou montando emissoras de rádio e TV pelo país, fundou a Organização Victor Costa, grupo que viria a competir em um mercado dominado pelas Emissoras Associadas, de Assis Chateaubriand, e Emissoras Unidas, de Paulo Machado de Carvalho. Em São Paulo, Costa fundou a Rádio Nacional de São Paulo (atual Globo AM) e comprou a Rádio Excelsior (atual CBN SP AM). Em 1955, comprou a TV Paulista - Canal 5 (atual Globo SP), e em 1959 obteve a concessão do canal 9, que viria a se tornar a TV Excelsior. Mas com a saúde fragilizada, o empresário adoeceu e faleceu no Hospital Beneficência Portuguesa paulistano, vítima de câncer, em 22 de dezembro deste ano.

221

na Rua das Palmeiras, em São Paulo-SP. Então ele chamou o Aloísio Silva Araújo,

que estava aposentado e falou: “vai pro interior caçar uns humoristas para nós!”. Aí

ele era crente – tinha se convertido – ficou num hotel ao lado da igreja. Era domingo

e ele estava na Escola Dominical e eu lá. Quando foi à rádio, no nosso programa de

sábado, e viu os quatro, falou: “ué, mas ele não é crente? Eu conheço esse rapaz!”

– o meu irmão não ia mais à igreja – aí ele convidou a gente para virmos à São Paulo

com ele, mas nessa época, Deus me chamou para o pastorado. Aí não vim para

São Paulo. Larguei o teatro, o rádio, ...eu tinha uma mercearia muito grande e isso

foi há sessenta anos atrás (1957). Aí eles vieram para o humorismo e eu fiquei na

minha mercearia, depois que larguei do teatro, tudo, tudo, e fiquei só na igreja. Eles

entraram na hoje Globo, e SBT, Record... e viraram artista. Foi quando o Moacir

gravou “Me dá um dinheiro aí”, que foi o maior sucesso da vida dele e depois veio

pro Rio onde fez o filme de mesmo nome da música, na Herbert Richards, e eu fui

pra lá para ser o sacristão dele, no set de filmagem, onde servia cerveja, tudo,

servindo ao Moacir, e ele dava uma de bom, porque ficou rico. Aí depois eu voltei

pra casa e quando foi 1962, eu fui pro JMC, que era o seminário menor, em Jandira

e fiz os três anos de estudos. O reverendo Ataides 151, me ligava naquela época e

dizia: “Evandro, o reverendo Osias152 está muito deprimido hoje, você não pode lhe

telefonar e contar uns casos pra ele?”, aí eu ligava pro Osias pra contar piada pra

ele, você acredita nisso?

Então para o senhor, o humor tem uma capacidade curadora? Tem sim!

Uma vez eu fui para Orlando, na Flórida-USA, na casa do Nélio Silva153 e ele me

151 Rev. Ataídes Antonio da Costa, pastor emérito da Igreja Presbiteriana de Indaiatúba-SP 152 Rev. Osias Mendes Ribeiro, Pastor Emérito da Igreja Presbiteriana de Pinheiros, São Paulo-SP 153 Brasileiro e ex-missionário da SEPAL

222

disse que faria uma surpresa – um churrasco para o Caio Fábio 154. Naquele tempo,

todo mundo tinha barba por causa do Caio Fábio, eram os “caianos”. Ele fazia

congressos para mais de 1.800 pastores presbiterianos e todo mundo queria pregar

igual o Caio, e tal... O Caio tá aí e vamos fazer um churrasquinho para ele. Ele estava

no ano sabático. Eu disse (sussurrando) “é o Caio?”. “É, o Caio Fábio”, confirmou

ele. Cara! Eu fiquei doido: “vou ficar com o Caio Fábio!”. Eu cheguei lá no churrasco

e comecei a contar casos pro Caio. O Caio chorava de rir. E eu contando um atrás

do outro: de bêbado, de americano, de roceiro, de filho de pastor, de presbítero, e

nós fomos contando e fomos até às duas da manhã contando casos e o Caio

rachava o bico. Aí fomos pra casa. Rapaz... me deu um remorso! Rapaz, eu pensei,

eu com o Caio Fábio na minha frente, para eu beber teologia (risos), que cara bom

e eu contando casos pra ele a noite inteira! Eu sou doido! Aí eu liguei pra ele: “

Caio, eu sou o Evandro, e nós passamos a tarde toda e eu quero te pedir

perdão. “Perdão de quê?!” disse ele. “Eu devia ter aproveitado, pra te ouvir mais,

pra falar com você...”, e ele: “você não sabe a bênção que você foi na minha vida!

Eu estou aqui nos Estados Unidos para desopilar o fígado, pra rir, eu tô no stress,

estou cansado, tô desgraçado!”. E eu não sabia disso.

Mas votando à época, à janela temporal da nossa pesquisa, de 64 a 1985,

época da ditadura, na sociedade e nas igrejas evangélicas, mais ainda, época

do Rev. Boanerges Ribeiro 155. Por falar nele, deixa eu contar algo sobre ele. Uma

vez ele pregou no interior de Minas, por três dias, e ele só pregava dois, mas ele

154 Pastor, psicanalista e escritor, e renome nacional, ex-presbiteriano 155 (1919-2003) foi um pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, e presidente do seu Supremo Concílio, de 1966 a 1970, 1970-1974 e 1974 a 1978. Nesse período houve expurgos dos seus quadros, muitos outros saíram da Igreja Presbiteriana do Brasil, os quais deram origem a outras igrejas como a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e Igreja Presbiteriana Renovada, de linha pentecostal.

223

pregou três. Aí saiu um velhinho da igreja à porta, com chapeuzinho na cabeça e

falou assim: “Então o senhor é o sr. Boanerges?” Ele tinha raiva que o chamassem

de Boanerges!. “Reverendo Boanerges Ribeiro, meu irmão!” Era assim que ele te

respondia. Ah!... o veiinho não entendeu nada. E ele falou assim: “Seu Boanerges,

vô conta uma coisa pro senhor! Peguei um sermãozinho seu, dei uma miorada nele

e sapequei ele na congregação e véio, foi uma bênção!”. O Boanerges queria

morrer! Pensa falar isso pro homem, heim?! E o homem na maior simplicidade:

“Peguei um sermãozinho seu, dei uma miorada nele e sapequei ele na congregação

e foi uma bênção!”.

Mas está ai, essa adaptação que ele deve ter feito para a língua do povo,

é está o meu foco! Não faltam obras, pesquisas, que creditam o “arranque”,

esse boom da igreja evangélica no Brasil, a razões comerciais, mas não teria

sido uma mudança da pregação, aquela coisa tradicional. Dos três pontos,

conclusão e oração. E o povo: segunda à sábado, capeta, puro! No domingo, a

máscara de presbiterianos consagrados.

Mas a Reforma nunca pregou isso, não? Eu sei disso.

Mas nessa época, poucos saíram da forma, não? Sim. Era aquela secura

antes disso. Na missão Caiuá156, no meio dos índios, era só aquele órgão solene e

as índias cantando em quatro vozes. Eu fui lá pregar no meio deles nessa época, o

que até foi um fato engraçado: no meio do culto, as índias tiraram a maminha e

156Fundada em 1928, a Missão Evangélica Caiuá é uma entidade das Igrejas Presbiteriana do Brasil – (IPB), Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) e Presbiteriana Indígena do Brasil (IIPB). Realiza trabalhos assistenciais nas tribos indígenas do país com o objetivo de apoiar o índio holisticamente e habilitá-lo para a vida autóctone, procurando preservar a identidade e os costumes da aldeia, entre os Kaiuás, Guaranis, Xavantes e Kadwéus, localizados em diversos Estados do Brasil e do Paraguai, e com sede na cidade de Dourados (MS) .

224

esfregavam na cara dos bebês, no meio do culto, lá na frente. Gente a coisa mais

linda do mundo! Imaginem a cara dos tradicionais!

Naquela época, quando pregava o senhor já arrancava risada da igreja?

O senhor vê humor no evangelho? Vejo, claro. O humor de Deus é lindo, é bom.

Deus olha aqui para nós e dá risada de nós. Eu vejo assim: eu vejo o meu Deus

dando cada risada das mancadas que nós damos! Aquela coisa séria, isso não

existe, meu irmão! A minha filha dizia, “Pai, deixa bater palma no culto”, era lá em

Santo André e eu dizia, não! Aí um dia eu disse, tá bom! Vocês vão cantar dois

corinhos – naquele tempo se chamava corinho 157. “Com palma?”, ela disse. “Não,

sem palmas!”. “O sr. liberou, né, pai?”. “Liberei”. “Geral?”, “não, só nos dois

corinhos!”. Quando eles começaram a cantar, dois presbíteros levantam-se e saíram

da igreja. E eu bati atrás deles, e o povo assustado. Eu perguntei-lhes: “onde é que

vocês vão?”. “Nós não aguentamos essa pouca-vergonha, essa baderna dentro da

igreja, e Deus?!”. Eu disse: “pera lá! Me digam aqui: vocês são presbíteros para

abençoar ou pra amaldiçoar?”. “Pra abençoar!”, disseram eles. “Então vamos lá

abençoar os moços que eles estão precisando de nós! Vamos lá!”. Puxei os dois

presbíteros pra dentro do culto. Isso eu já sentia lá naquele tempo, a vontade de ser

um pastor diferente. Daí escrevi o meu livro, Coragem para Ser Diferente. Deus não

quer crente esquisito. A igreja está entupida de crente esquisito. E com cara de

santo. Você não pode deixar de fora do seu trabalho um nome: Ivan Espíndola de

Ávila 158. O Ivan fez doze livros. E ele escreveu dois deles sobre casos. E ele tinha

157 Cântico mais popular, congregacional, em ritmos contemporâneos e de linguagem mais coloquial 158 (1933-2006), foi advogado, professor, jornalista e ministro evangélico, vereador em 1972, foi deputado estadual por três legislaturas (1975/1979; 1979/1983 e 1987/1991) pelo PFL. Foi eleito à Constituinte com 21.830 votos, a sua maioria obtidos na capital. Foi presidente da Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil/SP (1972/1989) e secretário executivo regional da Sociedade Bíblica do Brasil desde 1959. Foi também membro da Academia Evangélica de Letras do Brasil. Participou, nos trabalhos constituintes, como membro

225

feito o prefácio do meu Coragem pra Ser Diferente, meu primeiro livro. E me pediu

pra escrever o prefácio do livro dele. Eu disse: “Ivan, eu não sei escrever”. Mas eu

comecei assim: nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai. Você pega

o prefácio do livro do Ivan e eu começo escrevendo assim. Quem ouve o Ivan, quem

escuta o Ivan, que convive com o Ivan, acha que ele é um palhaço, mas não sabe o

homem de Deus que ele é, o profeta de Deus, o servo de Deus que ele é.

O sr. nunca deixou de ser palhaço? Nunca. Sempre vou ser palhaço. Eu sou

palhaço de Deus.

O sr. teve um momento de conversão, ou como filho de crente... Não. Eu

tive. Eu fui o pior crente que tinha, por que, eu gostava muito de muié (risos), mas

faz 52 anos que gosto da minha, só da minha. Eu arrumei uma noiva, espírita. E por

causa dela eu larguei a igreja, o coral, a escola dominical, eu larguei tudo. Só não

larguei o humorismo, continuei humorista na rádio. O meu nome não era Evandro,

era Luiz Silva, era o meu apelido. Então o que é que acontece, eu fui pro centro

espírita. Fiquei três anos fora da igreja. Apanhei uma raiva de crente, eu não podia

ver crente na minha frente. Eu sabia da safadagem. Quando você sai da igreja,

Rubinho, você quer saber tudo que é sujeira da igreja, para você justificar a sua

saída, cara, você tem de mostrar pro povo o porque de você ter saído, por que lá

não presta. Descobri presbítero com mulher, presbítero com filho de 14 anos em

São Paulo e a família em Uberlândia, fui descobrir gente que não pagava conta, tudo

o que você pensar sobre sujeira na igreja de Uberlândia eu descobri. O povo vinha

falar comigo e eu dizia, “ó, ...!!!” eu dava os nomes.

efetivo das comissões do Poder Legislativo e do Poder Executivo, tendo ocupado o vice-presidente nesta última.

226

Então o povo tinha medo do palhaço? (risos). Tinha sim, senhor. Três anos

fora e contando piada e fazendo programa de rádio e programa com o Moacir e a

turma., E o que aconteceu? Um dia estava descendo do cinema, era domingo e eu

estava de terno de linho branco, que usavam, o coral estava cantando hinos e

quando faltam cantores, eles têm sempre um hino pequeninho, que com poucas

vozes se resolve, e a letra dizia assim: “Há hoje alguém esperando para Jesus

encontrar. Venha sem demorar, Cristo vai hoje passar! Ele de mão estendida, cheio

de graça sem par, ó que ventura inaudita (ele chora...). Cristo vai hoje passar!”.

Rubinho, eu tinha metido o pau em todo mundo da igreja. Nem a zeladora sobrou!

De repente eu estava dentro do templo, o José Costa159 estava pregando e quando

ele começou a pregar eu disse: “Meu Deus, é pra mim!”. Eu não sabia que ia pra

igreja. O Zé Costa fazia três anos que não me via lá. Meu Deus do céu, que

vergonha! Eu estava dentro da igreja ouvindo o sermão. Aí, na metade do sermão

eu não aguentei. Fazia uns três anos que eu não orava o Pai Nosso. Eu tinha uma

vontade de orar o Pai Nosso (ele chora novamente...), e não conseguia, Rubinho.

Sabe, eu começava e não sabia onde parei, meu Deus... aí voltava e começava tudo

de novo. Eu dizia pra mim: “ainda hoje eu oro o Pai Nosso”, e eu dormia sem orar

o Pai Nosso. No fundo160, era onde se fazia o teatro na igreja, aí, eu sozinho, tinha

acabado o culto, eu lá sozinho, ...“hoje eu vou orar o Pai Nosso.” Eu comecei a

brigar com Deus pra orar o Pai Nosso e não deu. Eu estava sentado, não deu, aí eu

ajoelhei, agora vai, não deu, e eu naquela agonia. Aí no fim eu lembrei de uma coisa,

velho, eu falei pra Deus: “Senhor, eu sou barro, eu sou pó!”. Rubinho, eu pus a boca

159 Foi pastor presbiteriano e presidente da Junta de Missões Nacionais da IPB. Já é falecido. 160 Salão Social da Igreja Presbiteriana Central de Uberlândia, anexo, nos fundos do tempo, dedicado à aulas de ensino bíblico, festas e reuniões sociais, concertos, encenações, etc,...

227

no taco, literalmente no taco. E comecei a clamar ao sangue de Jesus: “Deixa eu

falar com o Senhor!”. Eu era um médium vidente num centro espírita, dando passe,

porque a menina de quem eu era noiva era “turbinada”, trenzinho lindo demais, um

“muierão”, eu lá naquela agonia pra casar com ela e no fim ela me deu uma chifrada.

Primeira noiva que eu tive, e eu tive três, mas era só carne. E o meu pai já falava:

“Não mexe na caixinha de segredo!”. Era assim que ele falava. “Se mexer, casa”.

Então ninguém punha a mão na “caixinha de segredo”. A gente ia com as

namoradas até à caixinha de segredo e caía fora. E aí nesse dia eu orei o Pai Nosso.

Eram quatro da manhã, sozinho, eu e Deus. Aí eu fui pra casa, mamãe tava

preocupada, porque eu não chegava, mas eu deitei e dormi direto. Eu me levantei

e ela me perguntou o que aconteceu? Mãe é mãe, né? Meu olho estava fechado de

chorar, eu não percebi mas eu chorei o resto da noite – de gozo, de contentamento

por saber que Deus me aceitou! Aí veio o drama: Vou pra igreja de volta, e eu disse:

“O primeiro ‘fia da puta’ (sussurrando!) que vier falar qualquer cosia de igreja, eu

vou sair com ele na testa!” (risos). Olha o que Deus, isso tem de estar aí no seu livro:

o humor de Deus é isso aqui, eu fui pra igreja um e voltei outro. Cheguei lá e se

fosse um cachorro eles tinham dado um chute e eu, nem isso, ninguém falou nada.

E o que eu queria no fundo? “Cara, você voltou, graças a Deus! Agora a nossa igreja

vai pra frente!”. Eu era engraçado, todo mundo gostava de mim, eu pagava os

congressos pros moços do meu bolso, eu tinha dinheiro pra isso. Ninguém falou

nada, eu saí de lá numa raiva! (risos) Aí à noite o Zé Costa pregou e falou: “você

está voltando? É pra valer?” E eu lhe disse que eu nunca voltei pra não valer. Eu

estava voltando a primeira vez. Ele falou: “tá bom, tô precisando de você”. Daí a um

ano eu fui eleito o presidente da federação de jovens. Nunca mais pisei no centro

228

espírita. Eu fui noivo de uma moça de Araguari, mas se da primeira era só carne,

com essa era só igreja. Ela parecia que ia a tudo – coral, a SAF, liga juvenil, culto,

... era uma geladeira... e terminei com ela.

Mas não seria essa a divisão que o povo faz com o humor? O humor, o

sentimento... e o que é de Deus? Mas é claro! Deus mistura tudo. E aí foi quando

Deus me chamou pro seminário. E aí começou a minha briga com Deus. Como é

que eu ia ser um pastor da Igreja Presbiteriana, estudar três anos em Jandira, mais

cinco no seminário em Campinas, oito anos e vestir terno preto, gravata preta, paletó

preto, sapato preto, cueca preta (risos), meia preta, guarda-chuva preto. E igreja

séria era a igreja presbiteriana. O Noé vinha pregar na igreja e nós tremíamos de

medo dele. O Jaime Hudson, me procurou e disse: “vá lá em casa que eu preciso

falar com você!”, eu pensei: “Meu Deus, o que é que eu fiz? Eles vão me mandar

embora!”. Eu fiz um jornalzinho pra igreja, daqueles de álcool (mimeógrafo), era

tinta pra todo o lado, era uma desgraça, você não lia! Aí eu pensei, “puxa, isso não

pode ser coisa pra Deus”, aí fui à uma gráfica e fizemos um jornal lá, mas eu tive de

pegar umas propagandas para pagar o jornal pra nós – a igreja não ia dar verba pra

isso. E a primeira propaganda que eu peguei foi do Bar do Furão, que ficava de

frente pra minha mercearia, na avenida Floriano Peixoto e a propaganda deles, tinha

uma mulher pelada, uma cerveja do lado e escrito: Bar do Furão. Aí um presbítero

dedo-duro chamou o pastor e a coisa fedeu. Só não nos mandaram embora porque

Deus não deixou. Era pra tirar todo mundo da comunhão. Mas nessa época Deus

me chamou para o pastorado. Aí eu fui para o JMC, aí eu larguei o teatro, larguei o

rádio, larguei tudo e os três me chamando para que eu fosse à SP para a televisão.

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No ministério o senhor chegou a usar essas ferramentas? Uso tudo, até

hoje. Conto os casos, e porque você acha que os conselhos não querem que eu

pregue? Conto caso de pecado, de presbítero safado, de coisa ruim de crente que

nem sabe o que é a sua igreja, nem o que ela faz ou em que crê, mas sempre com

humor. E é isso. Fiz o seminário, antes, os 3 anos de Jandira (JMC), e lá, tínhamos

uma caravana que fazia evangelismo pelas igrejas do Brasil e eu era o contador de

casos e de piadas e eu era também o palhaço da equipe e um pastor, meu colega

de quarto, que mais tarde virou também delegado da Polícia Federal, era a minha

véia, com quem fazia parceria na equipe de estudantes. Uns cantavam no quarteto,

outros eram os pregadores e eu e esse colega só contávamos piadas. O apelido

dele sempre foi “Gordurinha” (ele era magrelo) e o nosso papel na caravana era

fazer o povo rir. Nós fazíamos esquetes e o povo mijava na calça de rir. Uma vez

fizemos um número, chamado “A cigana me enganou” e a história era a seguinte: a

cigana vendeu uma flor para o Gordurinha e disse: “cuidado com essa flor, a

primeira pessoa que a cheirar, vai se apaixonar por você!”. Ele queria a flor para

encantar uma moça por quem ele estava apaixonado. Eu então, tropecei nele, que

deixou a flor cair, e eu a cheirei, e fui pra cima dele. E ele correndo de mim e eu

atrás, tudo no palco da igreja. Mas nessa época da ditadura, me lembro que as

nossas peças eram todas lidas na Polícia Federal. Me lembro que apresentamos

uma peça engraçadíssima em Uberaba chamada “Almas do outro mundo”, e tinha

quatro atos. Cortaram três delas. O pior foi que sofremos um acidente na estrada,

chegamos lá cheios de curativos, enfaixados, e nos apresentaram dizendo que nós

éramos verdadeiramente almas do outro mundo (risos). Tudo isso pra mim é humor.

E olha, as pessoas que mais se riem de piada safada são os crentes. Quando eu fui

230

para o seminário em Campinas, a turma já sabia que eu era humorista e eu contava

piadas até tarde da noite.

Então o senhor acha possível pregar o evangelho usando o humor? Claro.

E deve usar. Você não pode ir pra lá e tacar aquela coisa maçante! Por isso é que

eu saí da igreja, daquele negócio, daquele evangelho sem graça...

Falando da igreja, como instituição, o sr. acha que já foi desmerecido,

desvalorizado por ela como pastor por conta do seu humor? Ah, muitas vezes.

Mas muitas! A igreja de hoje é esta: quer mais o discurso bem embalado do que o

conteúdo dele. Termos teológicos, etc,... mais do que a alma do crente, a vida do

fiel. Me lembro da dona Zinha, uma que morava perto da minha casa, bebia feito

doida, caia na rua,... aconteceu dela aparecer anos depois quando eu fui pastor em

Goiânia na minha igreja. Convertida, cheia de convicção. Foi uma festa. Quando foi

pra ser aceita como membro por confissão de fé, ao ser examinada, me lembro que

um presbítero, com a vida toda enrolada encheu-a de perguntas, complicadas,

teológicas, e ela sem entender nada, diante de perguntas que são da tradição, mas

que nada têm a ver com a profissão de fé, e ela, vendo que iria ser reprovada,

inteligente como era, virou-se pra mim e disse: “Vando (ela me chamava assim, não

de Reverendo Evandro), fale pra esses homens o que eu era e quem agora eu sou!”,

como a passagem do cego de nascença: “eu não sei nada sobre esse Jesus, só sei

que eu era cego e agora eu vejo”. Então eu tomei a palavra e disse quem era a dona

Zinha e como a vida dela havia sido transformada. E aí eu só via homens enxugando

os olhos. A nossa pregação tem de ser mudada, tem de ser mais objetiva, menos

escolástica, ela tem de ser a prática do evangelho na vida diária. Nós protestantes

acabamos com a emoção, ficou aquele trem que não se entende. O que o Aleluia

231

de Handel, tem a dizer para nós, além da melodia, de ser uma peça clássica da

música sacra? Como alguns cânticos de hoje, nos distraem, mas não inspiram coisa

nenhuma. Um dia desses fui à uma igreja, o coral subiu, o ministro de louvor pegou

o microfone – hoje eles se chamam isso: “Ministros de louvor” – e disse, com a voz

empostada: “vamos cantar aquele hino glorioso Eu quero ser um vaso novo!”, pôs

todo mundo de pé, começaram a cantar puxando lá do fundo da alma, com cara

das mais espirituais, ao que eu interrompi de falei: “uai, há dez anos atrás vim à essa

mesma igreja e ouvi você cantarem isso “Eu quero ser, Senhor amado, um vaso

novo”, e vocês nesses dez anos não viraram ainda esse vaso? Pelo amor de Deus!

A igreja lotada, caiu na gargalhada. Deve ser por isso que não me chamam muito

(risos). Mas desse ponto em diante eu tinha a atenção do povo, eu podia falar o que

quisesse. O humor tem isso. Veja, Jesus tinha humor nas suas parábolas. Aquilo

tudo era causo. E chamava a atenção do povo. Eles estavam tentando apanhar

Jesus em algo, e ele vem com essa: “Um cara tinha cem ovelhas...”, aquilo não tinha

nada a ver com o que eles estavam falando, os caras devem ter pensado: “Uai,

ninguém estava aqui falando de ovelhas...”, uma outra falava “Uma outra tinha uma

dracma...” e você pode ver a ligação... “Um cara tinha dois filhos...” e o engraçado

é que todo mundo diz do filho pródigo, o pilantra eu saiu de casa, mas eu prefiro

falar do safado que ficou dentro de casa, o religioso – veja, não tem na Bíblia, mas

devia ter na história (o entrevistado começa a chorar): “Pai, onde será que o meu

irmão está? Será que ele está bem? Será que morreu? Será que está passando

frio?” Você não acha nada na Bíblia sobre esse safado. Mas quando Deus tocou o

coração do desviado, ele volta pra casa, o pai abraçou o menino, beijou o menino,

pôs-lhe uma roupa nova, um anel no dedo, brinco, pulseira no menino, matou um

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bezerro cevado. O irmão chegou, ao invés de falar: “meu irmão, você voltou!”, não,

correu e disse: “pai, este teu filho - por isso acho que tem humor na Bíblia - “saiu de

casa, gastou tudo, ele chega e o senhor faz isso?! Eu estou aqui a vida inteira e o

senhor nunca fez nada por mim?! O senhor nunca me matou um cabrito e agora

mata um bezerro?! E pra este teu filho?! O pai olhou pra ele e não disse “este meu

filho”, ele diz: “este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi achado!”.

Por isso a gente também tem de louvar e agradecer, e matar o bezerro, e dar roupa

nova pra ele. Isto é lindo na teologia, mas a gente conta assim, com a voz

empostada, com palavra que não comunica, que não pega nada em ninguém, a

gente tem de contar “este safado, ficou dentro de casa, ruim que nunca lembrou do

irmão dele!!!”. Você tem de mexer com o couro do sujeito (na cultura dele) e ele

dizer: “Meu Deus, eu sou esse cara! Eu tô aqui nessa igreja há trinta anos e nunca

fiz nada”, mas se você pregar daquele jeito, nos clássicos, ... Meu Deus, o Evandro

é doido, você viu o que ele falou? Por isso eu admiro você ter levantado esta

questão. Tanta gente surgiu naquele tempo, falando e ensinando os jovens a falar

a linguagem das ruas, o Jaime Kemp, o Josafá Vasconcelos161, os acampamentos,

meu Deus! O brasileiro é humorado, é safado, gosta dum mal-feito, ...o brasileiro é

malvado, gosta de uma piada. Quando saem dos meus cultos, não saem com

aquela cara de santão, saem com outra cara. A Bíblia diz: “o vosso pecado vos

achará”162. E com toda piada, você vê no auditório, em quem o pecado está

batendo. Mas é claro que às vezes a gente erra. Certa vez um missionário americano

161 É paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, é pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados 162 Números 32:23: “E se não fizerdes assim, eis que pecastes contra o Senhor; e sabei que o vosso pecado vos há de achar”.

233

estava pregando e uma velhinha, assentada bem à frente começou a chorar, em

Carmo do Paranaíba-MG, foi isso, e ela chorava e chorava, e o sujeito pensou: “Ô

meu Deus, eu acertei no problema da irmã!”, e ele olhava pra ela, objetivamente

pregava pra ela. Terminou o culto, ele estava à saída e falou à senhora: “ô minha

irmã, eu percebeu que você tinha uma problema muito séria, eu vai orar muito por

você!” (sic) e ela: “Não precisa não.” E ele replicou: como não? A senhora tem uma

problema muito séria, eu vi isso”, e ela: “Não, tenho não. É que eu olhava pro senhor

e o senhor balançava assim, e quanto mais eu olhava pro senhor, mas eu me

lembrava do meu bode que um caminhão matou na estrada”. (risos). Isso é lindo

demais. Lindo demais!

E o velhinho pregando sobre as éguas de Salomão163, conhece? Isso é sermão

de roça. Não tem teologia nisso não, tem não. Não tem Calvino164, esse povo aí,

esse povo da modernidade, Max Lucado165, não tem Sproul166, tem nada disso lá

não. E ele foi pregar e disse: “Irmãos, vamo aproveitá que o missionário num veio,

eu vou abri a Bíblia e fala umas bobaginha pra nóis” (sic). Ele era um caipira, mas

era o líder da congregação. Ele disse: “Irmãos, eu queria falá de um assunto muito

conhecido nosso, queria falá sobre égua. Tá aqui na Bíblia – as égua do rei Salomão.

Quem são as égua do rei Salomão? Somo nóis os crente. (eita). Irmão, quem é que

163 Rei de Israel (mencionado, sobretudo, no Livro dos Reis), filho de David com Bate-Seba, que teria se tornado o terceiro rei de Israel, governando durante cerca de quarenta anos (segundo algumas cronologias bíblicas, de 966 a 926 A. C). 164 (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante e pensamento presbiteriano, que continua até hoje. 165 Escritor e pastor evangélico norte-americano (1955) que já publicou mais de setenta livros. Max já vendeu mais de 70 milhões de exemplares em mais de vinte e oito idiomas em todo o mundo e já viveu no Brasil, onde afirma ter começado a gostar de escrever. 166 Robert Charles Sproul, (13 de fevereiro de 1939, em Pittsburgh, 14 de dezembro de 2017 Pensilvânia) foi um teólogo calvinista estado-unidense e pastor. Ele foi o fundador e presidente da Ligonier Ministries (uma organização sem fins lucrativos reformada, sediada em Orlando) e era ouvido diariamente no programa de rádio Renewing Your Mind difundido nos Estados Unidos e em mais 60 países.

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num sabe o que é uma égua? Égua num é cavalo, égua num é um boi, não é um

jumento. Num é nada disso. Égua é égua. Então, óia aqui! Na igreja tem os crente

égua. É os crente comum. Vem na igreja, num vem, dá uma oferta, dá um diziminho,

são os crente normal, crente égua. Agora, convenhamos, tem uns crente bão. Dá

pra contar nos dedos, mas tem. Ele vem nos culto de quarta-feira, vem na Escola

Dominical, vem nos culto de ceia, é dizimista, dá uns dízimo bão, gordo, esses, dá

pra contar na mão. Esses são os crente ‘pai dégua’. Então temo os crente égua,

somo nóis, tem arguns pai dégua, mas a maioria, meus irmão, é tudo uns fio dumas

égua!”. (risos). Mas essa é ou não é uma boa exegese? Pra eles lá, eles entenderam

tudo.

** Entrevista realizada nas dependências da Igreja Presbiteriana de São Caetano do

Sul – Bairro Fundação, rua Heloísa Pamplona, 177 - Centro, São Caetano do Sul - SP, no dia

30 de outubro de 2017, às 15h35

Por sua vez, Pierre Bourdieu, servindo-se do cabedal teórico proposto por Weber,

entende que a religião contribui para uma alquimia ideológica, pela qual se opera a

transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais.333 É Bourdieu quem diz

que “Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre uma função

de conservação da ordem social contribuindo, nos termos de sua própria linguagem,

para a ‘legitimação’ do poder dos ‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos

dominados’”.334 Neste sentido, o trabalho religioso operado por pastores – ou qualquer

especialista na gestão dos 330 São várias e conhecidas as contribuições de Weber para a

sociologia das religiões. No entanto, para a reflexão específica sobre as funções da religião,

sirvo-me de seu texto “Sociologia da Dominação” In WEBER, Max. Op. Cit., 1999, vol. 2.

331 Ao tratar da “Ética religiosa no mundo” no capítulo dedicado à Sociologia da Religião,

235

Weber destaca que o “anarquismo religioso, segundo a experiência histórica, existiu

até agora como fenômeno de curta duração, porque a intensidade da fé que o

condiciona é um carisma pessoal”. A reflexão proposta por Weber nos ajuda a compreender

fenômenos religiosos contestatórios de uma ordem específica como, por exemplo,

Canudos. Entretanto, tais movimentos religiosos são, quase que invariavelmente,

eliminados ou, quando sobrevivem, operam ajustes como, por exemplo, a negação da

revolução pela fé e da resistência ativa. Lutero, neste caso, é um bom exemplo. Ver mais

em WEBER, Max. Op. Cit., p. 385-404. 332 Ibid., p. 397. 333 Sobre este assunto ver

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

Em particular o capítulo “Gênese e estrutura do campo religioso”