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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
RUBEN PIROLA FILHO
A DITADURA DO MAU-HUMOR
UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO
EVANGÉLICO BRASILEIRO NO PERÍODO DO
REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985
Orientadora: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro
São Paulo
2018
2
RUBEN PIROLA FILHO
A DITADURA DO MAU-HUMOR
UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO
EVANGÉLICO BRASILEIRO NO PERÍODO DO
REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985
Dissertação de mestrado do Curso de Ciências da Religião, da Universidade Presbiteriana Mackenzie para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião
Orientadora: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro
São Paulo, 2018
3
P671d Pirola Filho, Ruben A ditadura do mau-humor: uma análise sobre o humor no movimento evangélico brasileiro no período do regime militar, dos anos 1964 a 1985 / Ruben Pirola Filho – 2018. 235 f.: il.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.
Orientador: Profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro Bibliografia: f. 164-168
1. Movimento evangélico 2. Humor 3. Ditadura Militar 4. Brasil 5. Cristianismo reformado I. Ribeiro, Lidice Meyer Pinto, orientador
LC BX4834.B6
Bibliotecário Responsável: Eliezer Lírio dos Santos – CRB/8 6779
5
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos os que insistem em
viver e a tornar essa vida tão dolorida em uma
experiência bem-humorada – para si e para os
outros. Afinal esta vida é única e não vale a pena
vivê-la com amargor, pois o Supremo Criador,
Deus, é humor!
6
AGRADECIMENTOS
A Deus e Pai do meu Senhor Jesus, a quem amo e sirvo, e que me curou do
mau-humor e que me ajuda a me manter assim e com olhos de graça diante de quem
quer que seja!
Aos meus amados pais (mãe e à memória do meu velho, inspiração e exemplo
de bom-humor). Aos familiares e em especial à minha esposa Joyce que comigo
sofreu as agruras da vida de pesquisador no Brasil, pela ajuda constante e
compreensão pelas muitas ausências. Às minhas filhas Rebeca e Raquel, genros
amados e netos Davi e Felipe, que me fazem olhar para o futuro com esperança e
...graça.
Aos meus companheiros de trabalho cristão – muitos dos quais estão presentes
nesta pesquisa e que muito deram de si para viabilizarem uma igreja cristã coerente
com o seu chamado e missão neste país (gente que muito fez – e faz – pela causa
do evangelho e os quais tenho por amigos, companheiros e sou admirador: Jaime
Kemp, Jasiel Botelho, Nelson Bomílcar, Maurão, Reverendo Evandro Silva e outros
citados nesta pesquisa), e da minha comunidade A Casa da Rocha, que me apoia e
me isentou de muitos dos meus afazeres para este trabalho.
Aos professores, desta jornada no Curso de Mestrado em Ciências da Religião
da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a minha mais profunda gratidão, em
especial à minha orientadora profa. Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro, pela amizade e
dedicação; e aos colegas de jornada acadêmica nesses dois últimos anos e em
especial, ao apoio e incentivo da minha amiga profa Sueli Silva, do Colégio
Mackenzie.
7
Ruben Pirola Filho
A DITADURA DO MAU HUMOR - UMA ANÁLISE SOBRE O HUMOR NO MOVIMENTO EVANGÉLICO
BRASILEIRO NO PERÍODO DO REGIME MILITAR, DOS ANOS 1964 A 1985
RESUMO
Este estudo analisa o desenvolvimento de uma nova postura e uma consequentemente nova linguagem de propaganda religiosa surgida no movimento evangélico brasileiro durante o período do regime militar, mais bem-humorada e mais contextualizada culturalmente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pautada por referenciais no movimento, que tiveram importância capital no momento, trazendo uma contribuição nas artes – música, animação de bonecos, nas artes gráficas, na comunicação impressa e na formação de uma nova geração de fiéis – imprimindo novos padrões de comportamento, e de linguagens no âmbito da vivência religiosa. Como procedimentos metodológicos foram adotados principalmente o registro das observações com fotos, letras de músicas, e em entrevistas. A fundamentação teórica do estudo se deu sobretudo a partir dos referenciais da sociologia e da antropologia das religiões, das artes e da comunicação. As análises e interpretações dos dados revelam que o humor e a religião não devem ser separados ou vistos como irreconciliáveis. Também é possível, a partir das análises realizadas, perceber uma permanente tensão entre o humor e a religião institucionalizada, especialmente entre os que ainda desejam manter-se no poder dentro do campo religioso, mesmo à custa dos seus ideais e profissão de fé. O humor que torna leve um discurso, também ameaça os que não conseguem ver leveza ou naturalidade na relação com o Imanente, a Divindade. As análises revelam ainda que o humor pode ser um aliado poderoso na comunicação dos valores da espiritualidade e da religião cristã e que os que se aproveitaram dele, conseguiram arrebanhar mais fiéis, tocando a cultura brasileira com muito mais eficácia, antes até de terem tido acesso na mídia de massa.
Palavras-chave: cristianismo, humor, movimento evangélico, ditadura militar brasileira, cristianismo reformado.
8
Ruben Pirola Filho
THE DICTATORSHIP OF THE LACK OF HUMOR - AN ANALYSIS OF HUMOR IN THE BRAZILIAN EVANGELICAL MOVEMENT DURING
THE MILITARY REGIME, YEAR 1964 1985
ABSTRACT
This study analyzes the development of a new posture and consequently a new language of religious propaganda emerged in the Brazilian evangelical movement during the period of the military regime, more humorous and better contextualized culturally. It is a qualitative research, based on references in the movement, which had a crucial importance at that time, bringing a contribution in the arts –music, puppet animation, graphic arts, print communication and also in the development of a new generation of believers – establishing new patterns of behavior and languages within the scope of religious experience. The methodological procedures adopted were mainly recording the observations with photos, musical recordings, audio records and interviews. The theoretical basis of the study was primarily based on the references of sociology and the anthropology of religions, arts and communication. Analyzes and interpretations of the data reveals that humor and religion should not be separated or viewed as irreconcilable. It is also possible, from the analyzes carried out, to perceive a permanent tension between humor and institutionalized religion, especially among those who still wish to remain in power within the religious field, even at the expense of their ideals and profession of faith. The humor that makes a speech light, also threatens those who cannot see lightness or naturalness in relation to the Immanent, the Godhead. The analysis also reveals that humor can be a powerful ally in communicating the values of spirituality and the Christian religion. Those who took advantage of it, managed to gather more followers, touching the Brazilian culture much more effectively, even before they even had access to mass media.
Keywords: Christianity, humor, evangelical movement, Brazilian military dictatorship, Reformed Christianity.
9
Sumário
Lista de ilustrações e cartuns.........................................................................10
Introdução......................................................................................................12
1. O humor como característica do ser humano e seu percurso na
história.................................................................................................15
1.1. O humor na religião cristã.............................................................20
1.2. O humor do Messias, o homem Jesus.........................................29
1.3. O humor contra o poder, na Reforma Protestante do século
XVI......................................................................................................34
2. Os evangélicos na ditadura militar – humor e resistência..................40
2.1. Os evangélicos e o humor engajado...........................................56
2.2. O cenário para um novo tempo na espiritualidade evangélica......75
3. O humor na propaganda e espiritualidade evangélica - inovação na
vivência do sagrado.............................................................................87
3.1. A contracultura cristã evangélica emerge lá fora.........................87
3.2. O imperativo missionário protestante brasileiro e os desafios da
sua cultura...........................................................................................89
3.3. Os ministérios paraeclesiásticos juvenis – o novo sopro de ar do
humor na espiritualidade evangélica...................................................94
10
3.4. Acampamentos – Os sagrados territórios de refúgio e formação da
juventude...........................................................................................115
3.5. Uma nova linguagem no ritual do serviço religioso – odres novos
para vinho novo.................................................................................124
3.6. A pregação e crítica à incoerência no humor evangélico e na
linguagem da publicidade nas metáforas visuais...............................131
4. Considerações finais....................................................................................158
Referências Bibliográficas......................................................................................165
Apêndice................................................................................................................170
11
Lista de figuras
Figura 1 - Como “De onde vêm os monges” na ótica de Lutero e Cranach.............36
Figura 2 - O contraste na fé: a paixão de Cristo e a opulência do papa...................37
Figura 3 - Cartaz de Glauco Vilas-Boas, para o VI Salão de Humor de Piracicaba em
1979.........................................................................................................................66
Figura 4 - O clima de suspeição da época................................................................69
Figura 5 - O trabalho infantil, na visão de Claudius (arquivo CECIP) ........................69
Figura 6 - Claudius e a Polícia Militar........................................................................70
Figura 7 - A aspiração do cidadão e a repressão......................................................70
Figura 8 - A glória e o luto, em visões distintas de uma mesma realidade?.............73
Figura 9 - A luz no fim do túnel na década de 1980, sob a ótica de Canini.................73
Figura 10 - A briga do cristão Canini contra o pensamento do ateu Freud..............74
Figura 11 – O humor de Canini no engajamento ecológico......................................74
Figura 12 - Visões de jornais da época....................................................................136
Figura 13 - As capas da Revista Elo, impressas em papel de luxo e em cores......137
Figura 14 - As ilustrações que usavam a linguagem da publicidade e do humor.....137
Figura 15 - Ilustração da revista que fugia à estética religiosa da época.................138
Figura 16 - As histórias em quadrinhos da publicação...........................................139
Figura 17- As histórias com referências bíblicas.....................................................141
Figura 18 - Nas aplicações do texto, situações da vida em comunidade...............142
Figura 19 - A defesa da fé num encarte da Revista Elo...........................................142
12
Figura 20 - Cartaz em formato A2 de um programa de evangelismo de 1978........143
Figura 21 - Camiseta com a linguagem da publicidade ao serviço da fé.................144
Figura 22 - Exemplo de folhetos de persuasão e de propaganda religiosa..............144
Figura 23 - Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba....................................155
Figura 24 - A adoção de mais leveza – no design e no tratamento coloquial, nas
capas de boletins....................................................................................................156
13
Introdução
O humor está ligado ao nosso cotidiano, à vida em sociedade e poucos não
enxergam a sua onipresença mesmo que nos interlúdios cômicos de uma vida levada
à sério.
Esta pesquisa pretende analisar como o humor foi usado como linguagem – na
cultura e na tradição cristã, a sua vivência e o seu uso na propagação da fé nos
primórdios da história da igreja, quando a Igreja chega mesmo a classificar o humor
como uma afronta à vida penitente do fiel, apesar das afirmativas e registros bíblicos
que parecem contraporem-se à ideia, o seu uso na Reforma Protestante de 1517 e
especialmente analisamos o humor no período da ditadura militar no Brasil, uma
época não só de cerceamento das liberdades civis, e quando na sociedade, em
resistência ao clima que perdurara mais de uma década, o humor emerge com força,
refinado em produtos culturais (publicações, teatro, músicas, etc...) e na imprensa.
Fazemos uma análise da postura das igrejas protestantes históricas diante do
arbítrio, como estas, negando sua tradição e pensamento teológico, contribuem
ainda mais para o mau humor que se instaurou após a deflagração do golpe militar.
Apesar disso, este trabalho questiona como o humor se apresenta na relação com o
sagrado e analisa como ele contribuiu, estabelecendo algumas bases para o
fantástico crescimento do movimento cristão protestante e evangélico brasileiro1
1 O termo movimento cristão protestante e evangélico brasileiro, utilizado nessa dissertação, tem uma definição sociológica que se refere ao campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante europeia do século XVI, ou pertencentes ao ramo do protestantismo histórico (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista). Embora utilizemos aqui também o termo igreja evangélica, tanto para o protestantismo histórico como também para o ramo pentecostal: Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção e Universal do Reino de Deus, (MARIANO, 1999, p. 10). Nesta análise, destacamos dentro deste último grupo, a denominação das Assembleia de Deus como a maior e mais antiga denominação.
14
quando a sua pregação sai dos púlpitos e se transforma em produtos culturais
(publicações, teatro, músicas, etc...).
Analisamos ainda a validade, a compatibilidade do humor e a sua contribuição
para uma espiritualidade sadia – no compreender o sagrado; e o seu papel na
comunicação da religião, registrando alguns dos primeiros intervenientes, quando do
regime ditatorial no país, cooperaram para o grande crescimento da igreja
protestante ou evangélica brasileira.
No primeiro capítulo, conceituamos o humor, estabelecendo as diferenças de
gênero do cômico e a sua epistemologia e presença na história, analisando como foi
visto e vivido, especialmente considerando-o como característica do ser humano.
No segundo capítulo, analisamos como o humor foi presente na sociedade
durante o regime militar, usando-a como arma de resistência, analisamos ainda
como os evangélicos usaram-no de modo engajado e político-ideológico e ainda
apontamos as crises geradas por uma postura até incoerente no meio evangélico e
protestante com as suas próprias bases de fé, e que antecederam um novo tempo
na sua espiritualidade e proselitismo.
No terceiro capítulo, analisamos o humor na espiritualidade evangélica, e a
inovação na vivência e propaganda do sagrado, pesquisando os movimentos que
surgiram nos anos anteriores ao período do nosso estudo na Europa (rebeliões
estudantis na França, em 1968) e nos Estados Unidos (Jesus Movement)2 e que
influenciaram uma contracultura cristã evangélica também no nosso país, a partir da
instauração de organizações que aqui começaram a atuar, especialmente entre os
jovens, trazendo um novo ar para a espiritualidade. Dentre as suas iniciativas, esteve
2 Trataremos do movimento, no capítulo 3, 3.1. A Contracultura cristã evangélica emerge lá fora
15
a utilização estratégica de acampamentos e retiros que influenciaram gerações a
partir daquele momento, com liberdade, e o bom humor na espiritualidade e mais
ainda poderoso, numa contextualização nunca antes vista, dos valores evangélicos,
interpretados e veiculados através da produção de música, teatro, literatura e até de
humor gráfico.
Finalizando o estudo, usando como metodologia, a pesquisa qualitativa,
trazemos entrevistas exclusivas com alguns dos intervenientes que protagonizaram
uma nova era, que souberam aliar valores universais do cristianismo a uma realidade
brasileira, juntando o humor e o sagrado, e que estiveram na gênese de uma arte
cristã evangélica, reformada autóctone, tais como o pastor da Igreja Presbiteriana,
Reverendo Evandro Silva (1935), ex-palhaço, ex-humorista e escritor, que já nos
idos de 1950 já fazia humor nos palcos do país; Jasiel Botelho (1947), pastor
presbiteriano, fundador do movimento Jovens da Verdade, FLAM – Faculdade
Teológica Latino Americana, cartunista, artista plástico e humorista; Mauro Oliveira,
o Maurão (1952), artista de origem presbiteriana, escritor e compositor de humor,
com cerca de 8 DVDs e CDs gravados e animador de bonecos, o pastor e missionário
americano de origem batista; Jaime Kemp (no Brasil desde 1967), fundador da
Missão Vencedores Por Cristo, pioneiro na organização de grupos musicais que
recebiam treinamento e que por sua vez, reproduziam o modelo nas suas igrejas, e
talvez, o maior incentivador de uma nova geração de compositores e músicos
cristãos nacionais; Nelson Bomilcar (1955), pastor de origem batista, teólogo e
escritor, da primeira geração de compositores com ritmo e poesia nacionais, com
participação em mais de 300 produções musicais, e também a apresentação do
trabalho pioneiro deste pesquisador, nas Histórias em Quadrinhos e no humor gráfico
de propaganda evangélica.
16
1 - O humor como característica do ser humano e seu percurso na história
O humor sempre foi visto como uma ameaça ao sagrado, uma profanação no
que toca o questionamento das verdades absolutas, especialmente na religião
institucionalizada. Mas essa é uma marca do ser humano, nos diferenciando dos
outros animais. O humor revela uma necessidade humana de sentir bem, prazer e
de se inserir socialmente. Não importa o quão introspectivo ou tímido seja alguém,
ele sempre buscará ser parte do seu meio e de estabelecer uma relação de troca
com os demais. É patente a relevância que a experiência cultural imprime no humor.
Ele não só faz rir, mas também incomoda, no sentido em que afronta e o faz
com poder tal que também aproxima até pessoas de posições e ideias conflitantes.
Colson (2002) afirma ainda que o humor pode ser construído pelo falante ao
criar efeitos de contraste entre o significado de um comentário e o contexto a que se
refere. As funções do humor são discutidas nos estudos de Freud (1905) que sugere
que seu objetivo seja: a) fazer do ouvinte/leitor um aliado contra a pessoa de quem
se deseja expressar julgamento hostil - o prazer provocado pelo riso faz com que ela
nutra simpatia, pela pessoa que o provocou; b) exteriorizar sentimentos que, do
contrário, estariam reprimidos por coibições internas; e, c) obter prazer de forma
socialmente aceita, através da exposição de outras pessoas ao ridículo. Holmes
(2000) chega a atribuir ao humor um caráter político, em que a sua ocorrência pode
estar associada ao desejo de contestar o poder de pessoas de status superior.
17
Em 2017, Jô Soares, ator, humorista e escritor brasileiro, afirmou que “o humor
é um modo de enxergar a vida, de interpretá-la”3, o que quase sempre produz
conflitos.
Na sua obra sobre o Riso, Berger (2017), percebe que esse modo de interpretar
a vida, e gerar conflitos, talvez advenha das incoerências ou incongruências
humanas. Algo tão natural como ato de enxergar, vendo, claro, para além do que se
vê. Ele define o humor desta forma
O humor – isto é, a capacidade de se perceber algo como engraçado – é
universal; não há cultura humana sem ele. [O humor] pode ser seguramente
percebido como um elemento necessário da humanidade. Ao mesmo tempo,
o que parece engraçado às pessoas, e o que elas fazem para provocar uma
resposta humorística, difere enormemente de época a época e de sociedade
a sociedade. Colocado de outra forma, o humor é uma constante
antropológica e é historicamente relativo. Ainda assim, para além ou por trás
de toda relatividade, existe um algo que o humor supostamente percebe. Este
algo é, precisamente, o fenômeno do cômico (que, se você preferir, é o
correlato objetivo do humor, a capacidade subjetiva). De suas expressões
mais simples às mais sofisticadas, o cômico é experienciado como
incongruência. (BERGER, 2017, p.347)
Sobre a funcionalidade do riso e para diferenciá-lo como um fenômeno
atribuído ao homem, o autor, citando ainda Henri Bergson, na sua obra O Riso (Le
Rire) publicado em 1900, afirma que
o riso é um fenômeno estritamente humano. Outros animais podem
demonstrar sintomas parecidos com o riso, mas apenas os seres humanos
verdadeiramente riem. E acrescenta que o riso é um fenômeno coletivo e,
portanto, tem funções sociais (BERGER, 2017, p. 73)
Ao escrever sobre o riso, Kant chegou a dar um status epistemológico à
experiência cômica, no contexto de uma teoria estética, a respeito da natureza do
3 Jornal Hoje, da Rede Globo de Televisão, às 13h53 do dia 28/11/2017
18
belo. Ele afirma que essa natureza não é apenas um processo fisiológico, mas
também uma percepção distinta da realidade. Berger reformula o conceito afirmando
que a experiência cômica, assim como a estética (talvez como uma variante desta),
fornece uma percepção da realidade diferente daquela oferecida pela razão
(BERGER, 2017, p. 62).
Do ponto de vista teórico, Berger define a sua posição, embora sem se
preocupar em oferecer uma exposição sistemática das alternativas apresentadas no
texto do seu “O Riso Redentor”. Dentre os principais grupos teóricos ou paradigmas
relativos ao estudo do humor e do riso apresentados - Berger defende a da
Superioridade, em que ao degradar outros, eleva-se o nosso próprio status, e o riso
dirigido ao infortúnio dos outros refletiria a nossa suposta superioridade, ideia que
pode ser encontrada em autores como Platão, Aristóteles, Thomas Hobbes e outros.
Apresenta-nos ainda a teoria do Alívio - defendida especialmente por Freud (1960
[1905]), que analisa o humor e o riso em termos de uma função catártica, isto é, em
termos da liberação de energia psíquica que ocorre quando rimos de algo que, de
outra forma, estaria reprimido. E por fim, a da Incongruência, às vezes chamada de
teoria da ambivalência, tem em Kant seu principal expoente e, em linhas gerais,
defende que o riso deriva de uma incongruência entre quadros de referência
distintos. Ele trouxe um status epistemológico à experiência cômica ao sugerir que
ela envolve (ou gera) uma percepção distintiva da realidade. O que provoca o riso é
a percepção de algo contraditório, isto é, uma incongruência.
Francis Hutcheson (Thoughts on Laughter – Reflexões sobre o Riso), citado
por Berger (2017, p.64) também faz a mesma proposta e sugere que o riso, é a
resposta à percepção da incongruência.
19
Ao considerar que o riso é causado pelo contraste entre a perfeição e a
imperfeição, Moses Mendelsohn (Philosophical Writings - Escritos Filosóficos, 1761),
também enfatiza a subjetividade na percepção desse contraste, concluindo que o
que faz uma pessoa rir, entristece outra.
Helmut Plessner, também citado por Berger, responde à indagação se existe
alguma incongruência subjacente que possa ser observada, acima e para além das
relativizações, num viés antropológico: O ser humano é incongruente em si mesmo
(BERGER, 2017, p.346)
Ele afirma na sua obra, que é possível que o senso de humor perceba,
reiteradamente, a incongruência inerente ao ser humano e que toda ela é,
inconfundivelmente humana, pois o homem é o único animal capaz de alguma forma,
de situar-se fora de si. Ele é o único animal capaz com capacidade de ação e não
somente comportamento. Quando o ato de equilíbrio contínuo entre ser um corpo e
ter um corpo colapsa, o corpo assume o controle e tanto o riso quanto o choro
manifestam essa queda, num processo que não é apenas físico, mas também
psicológico e todos estamos familiarizados com as consequências cômicas dessa
incongruência no nosso dia a dia, como por exemplo, quando, num culto, na igreja,
em meio à abstrações e pensamentos dos mais sublimes precisamos ir ao banheiro,
em meio ao mais solene dos momentos e isso, não pode ser experimentado por um
chimpanzé.
Mas há ainda há uma perspectiva ontológica no cômico, e Pascal a formulou
“situando o homem entre o nada e o infinito” (BERGER, 2017, p. 347), quando
olhamos para os micróbios através de um microscópio e nos sentimos imensos;
20
então olhamos através de um telescópio os astros e algumas das bilhões de estrelas
e nos vemos como insignificantes perto disso tudo e essa incongruência é percebida.
Parece-nos, que o humor invade áreas proibidas e, apesar de não parecer
sério, é a percepção mais séria dessa vida, mesmo quando caminha “longe demais”,
quando toca uma realidade que se deseja “maquiar”.
O humor parece questionar as verdades absolutas, os dogmas e as autoridades
que as encarnam. Isto, é claro, tem a resistência dos que interpretam os textos
sagrados e falam em Nome de Deus. Não é por acaso que os ditadores não admitem
o humor dos escritores e humoristas gráficos. “O poder da charge4 cria e destrói
ícones com seu simbolismo exacerbado. A função do humor é questionar o poder a
todo o momento, por isso é revolucionário” 5.
Henri Bérgson em "O riso - ensaio sobre a significação do cômico" (1980),
afirma que o riso tem um caráter social e o homem está no centro dessa
manifestação, sendo o fio condutor do humor e o seu riso o dos outros e sobre os
outros - é uma forma de libertação.
O riso, entretanto, é coisa séria. Para Platão o riso afasta o homem da
verdadeira sabedoria. “O riso e o risível seriam prazeres falsos, experimentados pela
multidão medíocre de homens privados da razão”, observa Alberti (1999, pg. 45).
Bakthin afirma
Na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário, associa-se à
violência, às interdições, às restrições. Há sempre nessa seriedade
um elemento de medo e de intimidação. Ele dominava claramente na
4 Charge é a modalidade do desenho gráfico carregado de leitura crítica, ideológica, e onde, diferente do cartum, se permite que identifique personalidades e fatos pontuais e não simplesmente representam situações do cotidiano. 5 José Alberto Lovetro, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, in Folha de São Paulo, 26.02.06.
21
Idade Média. Pelo contrário, o riso supõe que o medo foi dominado.
O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o
poder, a violência, as autoridades empregam a linguagem do riso.
(BAKTHIN, 1987, p. 78)
Mas se na cultura clássica havia a condenação, havia também quem
encontrava saúde no riso. Para Aristóteles, "O homem é o único ser vivente que ri"6.
E essa premissa gozava de imensa popularidade e a ela atribuía-se um sentimento
ampliado: o riso era considerado como o privilégio espiritual supremo do homem,
inacessível às outras criaturas. Para Hipócrates, teorizando sobre o riso, fazia
observações sobre a importância da alegria e do entusiasmo do médico e dos
pacientes no tratamento das doenças (BAKTHIN, 1987, p. 58)
1.1. O humor na religião cristã
E a religião? Como ela encara o riso, a galhofa, o escárnio? Especialmente na
cristã, sempre foi visto com reservas e não poucos autores são unânimes em negar
a sua existência nesse meio, onde as noções de pecado, de transgressão, em face
ao juízo divino não parecem aceitar bem a afronta que o humor representa. A virtude
tal como a define a religião cristã não permite o riso como o faz algumas religiões
como o budismo em que suas estátuas de Buda se apresentam risonhas.
Nietzsche afirmou que acharia o cristianismo mais crível se, ao menos os
cristãos parecessem mais redimidos. Basta que vejamos as celebrações da ceia, ou
da eucaristia, como os penitentes apresentam-se como tais, embora o memorial –
ao menos na ótica protestante – seria a da alegre redenção pelo sacrifício do
6 ARISTOTELES, Sobre a alma (De partibus animalium), livro III, cp. X
22
Cordeiro de Deus, o Cristo. Pois o pensador e filósofo alemão certamente tinha isso
em mente, quando usava chamar a sua filosofia anticristã de “ciência alegre”.
Berger chegou a afirmar que “não parece haver nenhuma história geral do
humor na história cristã” (BERGER, 2017, p. 330).
A constatação que “o cristianismo é pouco propício ao riso” e que ele não seria
natural nessa religião, séria por excelência, Georges Minois - o autor de História do
Riso e do Escárnio – afirma categórico que as suas origens, os seus dogmas e a sua
história o provam (MINOIS, 2003, p. 111).
Desde o Antigo Testamento, os hebreus já registravam anedotas do cotidiano
e em outras religiões isso nunca esteve longe da aparente indissociável sisudez da
“pregação oficial”. Desde os primórdios parece-nos que o homem responde alguns
dos seus desafios existenciais pelo humor, do sarcasmo, da anedota. Em especial
no Talmude, uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das
discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo,
sendo um texto central para o judaísmo rabínico, há humor de sobra. Na escritura
que define e dá forma ao judaísmo, alicerçando todas as leis e rituais judaicos, há
piadas e jogos de palavras, a menção de rabinos usando humor para manter a
atenção de seus alunos e até cenas do cotidiano judaico. Enquanto o Pentateuco,
ou os cinco livros de Moisés (Chumash) apenas alude aos Mandamentos, o Talmud
os explica, discute e esclarece e sabidamente, há as bases para o conhecido humor
da cultura judaica.
É inegável o fato que nas escrituras do “carrancudo e irado Deus da Velha
Aliança”, há registros, que afirmam que o Todo Poderoso afinal, também ri de toda
vã pretensão – ou incongruência - da criatura finita e débil, como as dos Salmos 2
23
verso 4: “Do seu trono nos céus o Senhor põe-se a rir e caçoa deles”, ou do 37, verso
13: “o Senhor, porém, ri dos ímpios, pois sabe que o dia deles está chegando”, ou
ainda do 59, verso 8, em que o escritor sagrado atribui ao Eterno, a expectativa da
sua reação de escárnio, diante dos povos inimigos: “Mas tu, Senhor, vais rir deles;
caçoarás de todas aquelas nações”.
Mesmo quando o patriarca da fé Abrahão e sua esposa Sara riram quando,
bastante idosos, receberam o anúncio de que seriam abençoados com um filho,
numa patente reação de falta de crédito à palavra do Altíssimo, não consta que
houve da parte dos céus, nenhuma reprimenda ou condenação, em Gn 17,15; 18: 1-
15).
No livro do profeta Isaías que como todo profeta, replicava seriamente a palavra
do seu Deus, há o registro mais que irônico, atribuída ao Deus dos hebreus
“Não se assombrem, nem tenham medo. Por acaso não ouviram o
que já lhes anunciei? Porque vocês são minhas testemunhas. Por
acaso há outro Deus além de mim? Não há outra Rocha além de mim.
Não que eu saiba.” (Isaías 44:8)
Há aqui, a expressão, numa bem construída e humorada afirmação da
exclusividade do divino em que, termina numa ironia impensável para alguém que
se apresenta como único, opondo-se a si próprio, como se não o fosse. Se essa
fosse uma declaração de um fiel, certamente enfrentaria ele a fúria dos sacerdotes,
ou do povo, ao confessar a dúvida sobre a existência de outro além do Senhor de
Israel. Esse humor de contraposição de ideias, de contraste, sempre é de uma ironia
admirável, ainda mais, atribuindo-a ao Criador e Todo Poderoso.
Mas e as escrituras cristãs, neo-testamentárias, como veem o humor? Por
séculos, questionou-se se Jesus teria ou não alguma vez rido, uma vez que não se
24
encontra em todo o texto do Novo Testamento, um só registro sobre isso. Sobre ter
chorado, há memória e foi incluída, em João 11, capítulo 35, mas não de um riso do
Messias sequer. Contra ele, há registros de terem dele rido quando afirmou, em
Lucas 8:34 e 35, “Ela não está morta, mas dorme", sobre uma menina que jazia já
sem vida, pouco antes de tê-la ressuscitado. Ou quando nos seus últimos momentos
e diante do seu sofrimento na crucificação, em Lucas 23:35, quando “as autoridades
o ridicularizavam. ‘Salvou os outros’, diziam; ‘salve-se a si mesmo, se é o Cristo de
Deus, o Escolhido’".
Numa passagem emblemática, no evangelho de S. João capítulo 2, Jesus
aparece naquele que foi o seu primeiro milagre relatado, num casamento, em Caná
da Galiléia e não há qualquer nota afirmando que ele lá esteve para “oficializar” as
bodas, como parecer registrar que o seu único e plausível propósito foi o de divertir-
se com os demais convidados, para além dos noivos e, quando acabou o vinho –
símbolo bíblico da alegria – tratou ele de renovar o estoque, mesmo tendo de
transformar água – dedicada às abluções cerimoniais – em mais vinho.
Outra parte da vida de Jesus, mostra-nos o seu mais fino humor, também no
evangelho de S. João, capítulo 8, que de um modo inusitado aponta a incoerência
dos presentes, quando, próximos de apedrejarem uma mulher apanhada em
adultério, tal como exigia a lei de Moisés, escreve algo na areia. Ato contínuo,
pergunta qual dos presentes estaria sem pecado, então que fosse o primeiro a atirar
pedra contra a pecador e volta ele a escrever com o dedo na areia. O que teria Jesus
escrito na areia? Seria uma lista de pecados que, por certo sabia daqueles zelosos
da vida alheia? Fato é, que não sobrou um, além dele e da mulher, que, para além
de livrar-se do martírio, ainda recebeu dele nada além de um conselho: “vai-te, e não
peques mais!”, no verso 11. Se não houve registro de risos naquele episódio,
25
também não seria demais imaginar que quem quer que o tivesse assistido, como o
apóstolo João, o narrador, por exemplo, tivesse caído na gargalhada.
Parece-nos, entretanto, no Novo Testamento, que o riso e o escárnio, sempre
estiveram do lado dos dignos de condenação, os inimigos da fé, como em 2 Pedro
3:3: “Antes de tudo saibam que, nos últimos dias, surgirão escarnecedores
zombando e seguindo suas próprias paixões”. O texto parece nos afirmar que uma
das marcas dos condenáveis dos “últimos dias”, seria a do humor, sendo ela,
portanto, digna de rejeição. Se essa é a marca dos escarnecedores, então a tristeza,
a seriedade penitente, seria a característica dos fiéis?
O escárnio e o riso, afinal, fazem-nos crer que nas escrituras estão sempre
associados aos que se opõem à virtude e à santidade exigida aos cristãos fiéis. Mas
ao lermos com atenção, mesmo não havendo registros sobre Jesus ter rido, as suas
parábolas e metáforas estão cheias de humor refinado e de ironia. Ou até a sua
postura, quando parecia gostar de responder perguntas com outras perguntas.
Se no início, a igreja era uma comunidade de iguais, que vivia, segundo o relato
do livro dos Atos dos Apóstolos, no capítulo 2, verso 46: “Todos os dias, (...). partiam
o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade
de coração”, gerava no povo à sua volta “simpatia”, em que nos parece claro que
essa “alegria” com que viviam, denotava bom-humor e era marca daquela nova fé
que brotava, e com o passar dos tempos, pareceu desaparecer.
Pelo ano 300 da nossa era, os pais da Igreja, como São João Crisóstomo,
Tertuliano e Cipriano, levantaram-se contra os espetáculos antigos como o mimo, a
mímica e a gozação, ou burla, e Crisóstomo, afirmava categórico que o riso e a burla
não provinham de Deus, mas eram emanações do diabo, por isso, Bakthin, citando
26
Reich, afirma “o cristão devia conservar uma seriedade constante, o arrependimento
e a dor em expiação dos seus pecados” (BAKTHIN, 1987, p. 116).
Na idade média, os festejos carnavalescos ocupavam um lugar muito
importante na sociedade. Se no espaço dos templos, sagrados e sérios, não era
possível a alegria “frívola” do riso, da porta para fora, eram comuns, além dos
carnavais, a celebração da “festa dos tolos”, da “festa do asno”, e um “riso pascal”
(risus paschalis), celebração popular muito livre e consagrada pela tradição. Mas
havia ainda as festas religiosas onde se tinha um aspecto cômico popular, como na
Festa do Templo, acompanhadas por feiras, cortejos onde se exibia anões, monstros
e animais diversos.
A palavra carnaval é vem, ao que tudo indica, do latim, carnis levale, cujo
significado seria algo como “retirar a carne”. O significado está relacionado com o
jejum durante a quaresma e também com o controle dos prazeres mundanos. Isso
demonstra uma tentativa da Igreja Católica de enquadrar uma festa pagã bastante
enraizada na cultura popular e possivelmente derivadas de outras nascidas na
Antiguidade, tanto na Mesopotâmia quanto na Grécia e em Roma, o que havia de
comum nas festas e que está ligado ao carnaval, era o caráter de subversão de
papéis sociais e até, por conta das festas de origem greco-romana, como os
bacanais, festas dedicadas ao deus do vinho, Baco (ou Dionísio, para os gregos),
eram marcadas pela embriaguez e pela entrega aos prazeres da carne.
A Igreja buscou então ressignificar essas comemorações. A partir do século
VIII, com a criação da quaresma, tais festas passaram a ser realizadas nos dias
anteriores ao período religioso. A Igreja pretendia, dessa forma, manter uma época
27
para as pessoas cometerem seus excessos, antes do período da severidade da
penitência religiosa.
Mas nenhuma dessas festas ficavam sem uma organização cômica, com os
seus bufões, e os bobos, que marcavam uma tremenda diferença em relação às
normas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado Feudal.
Sobre essas festas, Bakthin pontua que elas
ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas
totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e
ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um
segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade
Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles
viviam em ocasiões determinadas.
lsso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem
levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a
consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista.
Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também
quadro evolutivo histórico da cultura europeia nos séculos seguintes.
A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no
estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos
primitivos encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua
organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que
convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia ("riso
ritual"); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos ou injuriosos;
paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos (BAKTHIN, 1987,
p.5).
Fica claro que nessas festividades, o caráter cômico libertava os seus
participantes de todo dogmatismo religioso, eclesiástico, do misticismo, e eram
desprovidos de qualquer caráter mágico ou encantatório. No carnaval,
especialmente, não havia separação entre atores e o público. Todos igualmente o
viviam, mais do que apenas o assistiam, dentro da única lei possível que durava o
28
seu período, o da liberdade. O carnaval era assim uma segunda vida do povo,
baseada no princípio do riso, sem separações de ordem hierárquicas, que
celebravam a desigualdade. Na festa popular, todos eram igualmente gente que
antes dela estavam separados. O riso ali não era produzido diante de um fato,
isolado, mas era patrimônio de todos. Seria essa uma amostra de uma sociedade
fraterna cristã tal como preconizada nos evangelhos?
Escrevendo sobre esse período, Umberto Eco, no seu romance “O nome da
Rosa”, traz-nos um enredo cheio de mistérios, de tramas e assassinatos, em que
uma obra de Aristóteles sobre o riso é guardada a sete chaves num mosteiro.
Destruindo-o, poderiam então extinguir o riso.
Ao explicar o porquê do medo do riso, o protetor da obra responde que
“O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez de nossa carne (...) este
livro poderia ensinar que se libertar do medo do diabo é sabedoria.
(...) O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei
é imposta pelo medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus”. (ECO,
1989, p. 487, 488).
Rabelais (1494-1553) foi, ao lado de Cervantes (1547-1616) e Shakespeare
(1564-1616), os grandes da literatura que marcaram uma mudança capital na história
do riso. A atitude em relação ao riso, estabelece as fronteiras entre o século XVII e
seguintes da época do Renascimento. Entre os séculos XVII e XVIII, a definição da
atitude era a seguinte:
o riso não pode ser uma forma universal de concepção do mundo; ele pode
referir-se apenas a certos fenômenos parciais e parcialmente típicos da vida
social, a fenômenos de caráter negativo; o que é essencial e importante não
pode ser cômico; a história e os homens que a encarnam (reis, chefes de
exército, heróis) não podem ser cômicos; o domínio do cômico é restrito e
específico (vícios dos indivíduos e da sociedade); não se pode exprimir na
29
linguagem do riso a verdade primordial sobre o mundo e o homem, apenas o
tom sério é adequado; e por isso que na literatura se atribui ao riso um lugar
entre os gêneros menores, que descrevem a vida de indivíduos isolados ou
dos estratos mais baixos da sociedade; o riso é ou um divertimento ligeiro, ou
uma espécie de castigo útil que a sociedade usa para os seres inferiores e
corrompidos (BAKTHIN, 1987, pg 57).
No Renascimento, já justificavam o riso enquanto forma universal da
concepção do mundo fundamentando-se em Hipócrates, um teórico do riso em seu
gênero, que possuía um papel muito importante nessa época, pelas suas
observações sobre a importância da alegria e do entusiasmo do médico e dos
pacientes no tratamento das doenças. Outra fonte da filosofia do riso nessa época
era a célebre fórmula de Aristóteles: "O homem é o único ser vivente que ri" –
(Aristóteles, Sobre a alma - De partibus animalium, livro III, cap. X). A terceira fonte
da filosofia do riso no Renascimento é Luciano, sobretudo a personagem Menipo,
que se ri no reino de além-túmulo, que tanto influenciou Rabelais, frisa Bakthin.
Da gargalhada dos carnavais medievais à ironia dos romances renascentistas
e mesmo vitorianos, a história do humor pode bem revelar os dilemas de cada época.
Na América do Norte, a grande depressão dos anos 1930 e a baixa autoestima
da população produziram a era de ouro das Histórias em Quadrinhos com o
surgimento dos super-heróis da literatura infanto-juvenil, e no Brasil, em pleno auge
dos “anos de chumbo” da recente ditadura dos anos 1970, mais de 70% da temática
de Histórias em Quadrinhos traziam o terror. Já no final deste período, o drama
existencial tomou lugar dos assuntos políticos, de resistência e outros não pessoais.
Neste período justamente, o movimento evangélico de todos os matizes, estabelece
marcos e fundamentos para um crescimento sem igual das suas hostes ao utilizar o
humor, a crítica, a ironia para desbancar nas décadas seguintes a religião, ou a sua
30
vertente, predominante. O humor desde sempre surge como uma rebelião ao drama
humano. Uma afronta ao sofrimento. Mas não foi sempre bem quisto, especialmente
pelos que detinham o poder, o capital simbólico, a liderança religiosa.
Durante séculos, imaginamos, o riso esteve na religião, ainda que reprimida.
Na ordem religiosa, o humor era algo condenável na mesma medida em que se
impunha a obediência e submissão. Mas rir e expor ao ridículo o poder é um
fenômeno bastante conhecido. Trata-se desse riso subversivo de que falam tantas
paródias da afronta popular do colonialismo, das potencias imperialistas, do poder
do clero e da igreja e a que se refere também Bakhtin ao analisar o riso popular.
1.2. O humor do Messias, o homem Jesus
Não cremos haver maior piada que o fato de o Messias, em hebraico: משיח,
transl. Māšîªħ, Mashíach, Mashíyach, ou "Ungido", o esperado pelos judeus por
milênios, que restauraria a glória de Israel e o levaria a um patamar jamais visto pela
humanidade, veio na contramão das expectativas: Jesus, o Cristo, seria assim, o
Anti-Ele-mesmo.
O Novo Testamento cristão fala sobre a genealogia de José como da linhagem
de onde viria o “Esperado das Nações”, entretanto, Jesus, acaba por vir de uma
virgem, engravidada pelo próprio Espírito Divino e José, que era em última análise o
descendente legal de Davi e Salomão, e não a jovem esposa e genitora do Cristo,
não era o seu pai (Mat. 1:18-23). Na narrativa, acabou ele por ser adotado, num
gesto que para o D’us dos hebreus, certamente tem ainda maior valor do que o
nascimento natural, posto que ele próprio já relativizara a relação filial natural,
quando afirmou “Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que
31
cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre? Mas ainda que essa se
esquecesse dele, contudo eu não me esquecerei de ti”, em Isaías 49:15. Dentro
desta lógica, surge o primeiro grande empecilho para que os judeus nele pusessem
sua fé, uma grande e escandalosa anedota, dessas que surpreende quem espera
que uma narrativa termine conforme a lógica da sucessão de ideias e fatos.
O “Grande e Esperado de Israel”, não surge sob as luzes do poder, os holofotes
dos palcos e em honra, pompa e circunstância, como um rei, mas chega a este
mundo, pobre, perseguido e exilado e ainda por cima, oriundo de uma região
periférica à história bíblica, marginal à vida religiosa dos hebreus. E parece estar-se
nas tintas com a lógica e previsões humanas, numa suprema e tremenda gozação,
ou escárnio, para com as expectativas da criatura. Na lógica da narrativa do Novo
Testamento, o Supremo cumpre com as suas promessas, mas fá-lo, como uma
piada, de modo a zombar da previsibilidade e linearidade do pensamento comum.
Ao ser esperado pelos hebreus com todo o seu poder, o Messias escandaliza-lhes a
perspectiva e a toda a estrutura de poder da religião e as que cercam a sua liderança,
invertendo definições a afirmar categoricamente que sob a ótica do Homem Deus, o
maior é o que mais serve e não aquele que é mais servido (Lucas 22:26). Num
caminho descendente e não o contrário, seu ideal de “crescimento” e de promoção,
aponta para a criança como um ideal, aliás, um requisito supremo para quem deseja
aspirar a entrada aos céus: “Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e
disse: ‘Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como
crianças, jamais entrarão no Reino dos céus’”, segundo o evangelho de Mateus
capítulo 18, versos 2 e 3. Ao invés de esconderem-se atrás dos galões e medalhas
da espiritualidade “madura”, têm todos de se converter numa criança, o que poderia
32
ser traduzido por “de coração simples, pronto a revelar sua real condição, sem
máscaras ou fantasias sociais, humilde, sincero e porque não, bem-humorado”?
Ao invés de reclamar para si um séquito de serviçais, serve mais do que todos
e exemplifica ele próprio, o seu ideal – na sua lógica e suprema anedota – “mata-se
o santo para fazer viver o pecador”, e não o que sempre fez – e faz - a religião.
Nessa suprema sucessão de piadas, e ao lermos com rigor o Novo Testamento,
vê-se que Jesus é achado em mais registros em tavernas e mesas do que nos
templos, mais nas sombras condenadas do que nas luzes da religião. E mais: parece
nunca estar à vontade no meio dos líderes religiosos, quanto cercado de gente ruim:
bêbados, comilões e pecadores, até mesmo chegando a ser “rotulado” como um
desses (“Eis aí um homem comilão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores”,
em Mateus 11:19). Além disso, nunca usava de palavras duras contra o errado, o
“desviado”, fosse ele um penitente pecador, um publicano arrependido ou uma
prostituta condenada, fosse ainda o quebrantado de alma; antes, o fazia contra os
maiorais da religião, atacava sem piedade, o religioso, os líderes do Sinédrio, o
“atravessador” do sagrado, o médium, o sacerdote detentor da virtude ou da patente
do Imanente. Seu humor sarcástico era destilado para com os doutores da lei,
expondo-lhes as posturas incoerentes de quem pregava, exigia, mas não vivia, como
os “cães do verdureiro”, que nem comiam o produto à venda, nem deixavam que
dele se aproximassem para comer, ou como, nas palavras do Messias, esperado por
Israel, afirma: "Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o
Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar
aqueles que gostariam de fazê-lo”, em Mateus 23:13. Apesar disso, como um pai
amoroso que prefere rir-se da rebeldia ou teimosia dos filhos a destruí-los, era assim
que parece ter reagido aos “exigentes para com a vida alheia” em toda a sua vida.
33
Numa ocasião, chegou a chamar os auto-indulgentes religiosos de “filhos de
uma geração adúltera e perversa”, em Mateus capítulo 12, verso 39, num possível
eufemismo para religiosos “filhos de uma puta perversos”? Entretanto, ninguém em
tempo algum, ou houve quem, em religião alguma, apresentara como ele, o Divino,
o Imanente, o Numinoso supremo, como ...pai – o “Pai Nosso”. Num tempo em que
possivelmente, os judeus até lavavam a boca para referir-se a Deus - mesmo sem
nomeá-lo – Jesus tratou-o como Abba-Pai, em Marcos 14:36. Ao fazê-lo, dirigindo-
se a Deus como “meu Pai”, não só impressionou seus discípulos, como chocou ainda
pelo fato de utilizar a palavra aramaica Abbá, visto esse termo fazer parte do balbucio
infantil. Ora, tal feito, era para o judaísmo algo tão impensável como desrespeitoso.
Invocar o Supremo com um nome tão familiar era abominável. Na realidade, Jesus
abriu o caminho para a intimidade com Deus. Foi algo único e inaudito “Jesus ter
tomado essa iniciativa e falar a Deus como uma criança fala com o seu pai, com
simplicidade, intimidade e sem temor, o que foi seguido pelos seus discípulos e
estimulado por Paulo nas suas cartas (Gálatas 4:6 e Romanos 8:15). E que pai é juiz
e não amigo dos filhos? Qual pai não se permite e aos seus filhos o humor? Se ele
se apresentou como a Imagem do Deus-Pai, como então, esse Pai, teria reagido à
falta de fé de Pedro, como Jesus fez ao chamá-lo para fora do barco e com ele
andasse sobre as águas como descrito no episódio pelos evangelistas? Certamente
como o Cristo-homem, quando desafiou o aprendiz à fé, e socorreu-o quando este
sucumbiu, e não o repreendeu, porém não deve ter deixado disfarçar um sorriso
maroto, com toda a comicidade daquela experiência. Do contrário, como teria agido
um ser que a tudo lhe era descortinado, como os instantes e o tempo futuro e a
verdadeira – e pobre – condição humana?
34
Seguindo o raciocínio, nessa condição de onisciente, como não teria se
expressado diante da insistente apelação das irmãs de Lázaro quando este estava
profundamente enfermo e certamente morreria, contrariando a sua agenda, já cheia,
sabendo que iria ressuscitá-lo no espaço de algumas horas, ou dias, como no caso?
Com certeza rir-se-ia do nosso assombro diante da inevitabilidade e
irremediabilidade da morte. Mas a piada disso, como quem ri de uma anedota, cuja
definição pressupõe uma narrativa cujo final quebra a sua lógica e nos cria uma crise
resolvida pelo riso, ele ...chorou. E aquele choro permaneceu, lá no tal verso, o único
que ficou como história e certificação de que o “Filho de Deus” jamais sorriu, mas
deixou-nos as suas lágrimas por sina implacavelmente determinante do viver cristão
pelos séculos seguintes. Mas fica claro, patente, inconteste, supormos o contrário -
ele, certamente possuía um espírito bem-humorado.
Como não imaginar as gargalhadas, ou no mínimo o esforço por segurar o riso
quando Jesus, num humor fino, desses melhores dos nossos dias, responde a uma
questão levantada pelos principais dos sacerdotes, e os escribas e os anciãos,
querendo o provar: “"Com que autoridade estás fazendo estas coisas? Quem te deu
autoridade para fazê-las?” em Marcos 11:28 a 33
Respondeu Jesus: "Eu lhes farei uma pergunta. Respondam-me, e eu lhes
direi com que autoridade estou fazendo estas coisas. O batismo de João era
do céu ou dos homens? Digam-me! "Eles discutiam entre si, dizendo: "Se
dissermos: ‘do céu’, ele perguntará: ‘Então por que vocês não creram nele?’
Mas se dissermos: ‘dos homens’... " Eles temiam o povo, pois todos
realmente consideravam João um profeta. Eles responderam a Jesus: "Não
sabemos". Disse então Jesus: "Tampouco lhes direi com que autoridade
estou fazendo estas coisas".
35
É certo que o mais fino humor fica patente neste episódio, como previsível nos
é a reação que tiveram, não só os discípulos, o povo à volta que assistia o embate
(e cuja presença está contida na narrativa sobre o medo dos religiosos à resposta
que dariam), como a de Jesus, que não deve ter conseguido evitar uma boa risada.
O humor aproxima, mas também ameaça, na revelação da nossa humanidade
e, portanto, a nossa fraqueza, e nossas incongruências. No interior das religiões, no
campo, nas disputas pelo capital simbólico, o humor surge como uma ameaça ao
poder, às intermediações de uma classe - o clero ou sacerdócio - o que na visão
luterana ou reformada já não cabe mais7. Assim, para manter-se o status, o nomos,
não pode permitir-se o humor, antes, a regra, a frieza da distância como
normatização das relações. Ao menos era o que se supunha nos limites da religião.
1.3. O humor contra o poder, na Reforma Protestante do século XVI
Ao citar o dominicano Dominique Cerbelaud, para quem “Indubitávelmente, o
cristianismo faz a apologia da humildade, mas essa virtude não suscita hilariedade”
(CERBELAUD. 1996, p. 56), Minois afirma que segundo o autor, essa visão, contrária
ao humor que ameaça a fé permanece rechaçada pelas esferas do poder. Ele afirma
Depois de dois mil anos, o cristianismo esteve mais vezes em posição
dominante que em posição dominada; aliado íntimo dos poderes, sempre
disputou com eles posição suprema. E isso não favorece nem o humor nem
a ironia, qualidades julgadas subversivas. O tom pomposo e peremptório das
encíclicas e dos decretos conciliares o confirma: não se brinca com essas
coisas. (MINOIS. 2003, p. 124)
7 Um dos pilares capitais do pensamento reformado, é a teologia do “sacerdócio universal”, isto é, todos podem chegar-se à Deus Pai, somente pela intermediação do sacrifício de Jesus, o Cristo, dispensando-se a intermediação da Igreja, dos Santos, ou dos ...sacerdotes profissionais, ou do clero.
36
Aliás foi durante o século XVI que o poder da Igreja, e do clero foi afrontado ao
máximo – por dentro da própria igreja - por ocasião da Reforma Protestante.
Curiosamente, o reformador e monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546),
usou com esmero dois artifícios fantásticos dignos de séculos mais à frente – a
imprensa e o humor.
Usando a linguagem do riso, Lutero ousou ultrapassar os limites do espaço
sagrado da arte circunscrita aos templos da Igreja e da academia, alcançando as
ruas, feiras livres, e tabernas, copiado – sem direitos e livremente por pessoas
comuns que as ofereciam ou vendiam, propagando as propostas.
Ele usou a charge, a sátira e músicas populares (e indo às ruas valendo-se
também das cópias feitas pelas prensas – recém-inventadas - como arma) tornando
viral a sua pregação contra os “desvios” do papado de Roma.
O melhor é que o humor serve como veículo propagador mais do que a má-
notícia. Pois o riso faz até dos retratados, dos escarnecidos, os seus maiores
divulgadores. Os reformadores ao que tudo indica, tiveram dentro de Roma, os seus
maiores aliados na disseminação das suas ideias, nas bulas, nos atos, nas
reprimendas públicas que chamavam a atenção do público.
Lutero e o seu bom amigo e companheiro de anos de “pregação” contra Roma,
Lucas Cranach, chamado “o velho” (1472-1553), pintor e desenhista germânico
renascentista, autor também de gravuras e xilografias, produziram cartuns altamente
ácidos dignos de merecerem reações maiores que às da redação do Charles Abdo
de Paris recentemente. Este feito, foi capaz de espalhar por toda a Alemanha as
37
propostas do movimento, em apenas quatorze dias. E em quatro semanas, toda a
cristandade da época8.
Fonte: www.economist.com/node/21541719
8 The Economist magazine - Social media in the 16th Century - printed edition.17 de dezembro de 2011
Figura 1 - Como “De onde veem os monges” (“Where monks came from”) na ótica de Lutero e Cranach – o demônio defeca-os simplesmente.
38
Figura 2 - O contraste na fé: a paixão de Cristo e a opulência do papa. Xilogravura “Sauritts des Papsts”, de Lucas Cranach the Elder
Fonte: Biblioteca Estadual da Baviera
Martinho Lutero e a Reforma, consagraram na sua teologia, uma volta às
escrituras como “única regra de fé e prática” dos cristãos, a eliminação da
intermediação do clero (e da Igreja, dos Santos ou da Virgem Maria), bastando para
isso a fé na obra vicária de Jesus e considerando todos os fiéis como sacerdotes e
santos, iguais em natureza, abolindo as hierarquias e uma estrutura vertical de
poder. Como extensão, defenderam ainda a ideia de que o cristão seria, um “operário
de Deus”, e consideravam todo trabalho - religioso ou não, e profissão - como
vocação visando a glória de Deus. O dualismo sagrado x profano não teria assim
lugar, ou não como Roma a definia.
39
O humor das festas, do burlesco vulgar às portas dos templos, tinha
definitivamente dado lugar ao humor, do lado de dentro, engajado e seria usado
como arma da religião nos séculos seguintes.
Como afirma Minois a respeito do riso, sobretudo a partir do século XVII em
diante
O riso não é mais um sopro vital, um modo de vida; tornou-se
uma faculdade de espírito, uma ferramenta intelectual, um
instrumento a serviço de uma causa, moral, social, política, religiosa
ou antirreligiosa. Ele se decompôs em risos mais ou menos
espirituais, em risos funcionais, correspondendo a necessidades
precisas. (MINOIS. 2003; p.409).
Na Alemanha nazista, Dietrich Bonhoeffer, teólogo protestante morto pelo
regime por conspirar contra Hitler, escreveu na prisão sobre como a fé suporta a fé
na adversidade, em meio ao terror e ao medo9 - e da nossa frágil condição humana.
O riso funciona como “uma afirmação última da liberdade do espírito humano, mas
também da aceitação final da fraqueza do homem e a solução definitiva para o
problema da vida, pela negação de qualquer solução final em poder da humanidade”,
como conclui Reinhold Niebuhr, teólogo americano10.
Como veremos mais a frente, a colonização e as iniciativas missionárias no
Novo Mundo, encarregaram-se de trazer para ele, a fé sisuda, avessa ao riso e ao
humor, mesclando a mensagem religiosa com o ranço das suas culturas de origem
– da Europa ou, mais tarde da América, não conseguindo desassociar uma da outra.
9 THIEDE, Werner. Das verheissende Lachen, Humor in theologischer Perspektive. 1986, p. 127 10NIEBUHR, Reinhold. Discerning the Signs of the Times. New York: Scribner, 1946, p. IIIss
40
Na ditadura brasileira, dos anos 1964-1985, o humor teimaria em sobreviver ao
clima patrocinado pela repressão na sociedade. E, veremos a seguir, como as igrejas
de matriz reformada, acabando por sacrificar alguns dos seus mais caros ideais, por
conta de uma postura do “cuidado” ou se queremos chamar, de uma postura de
dominação, ou da manutenção do status quo, por medo da ameaça comunista e,
contrária à religião, não conseguiu ficar imune ao humor, como aliás, também não o
pode evitar, o regime militar.
41
2 - Os evangélicos na ditadura militar – humor e resistência
Os anos de grandes instabilidades sociais e que produziram rebeliões na
Europa (rebeliões estudantis na França, em 1968, a Primavera de Praga) também
não estavam assim tão distantes da efervescência política no Brasil do início dos
anos 1960, especialmente, na madrugada do dia 10 de abril de 1964, quando o humor
parece desaparecer como fumaça.
O governo de João Goulart havia sido encerrado à força por líderes civis e
militares conservadores, num golpe de estado que iria determinar as relações de
poder e o clima na sociedade brasileira pelos vinte e um anos seguintes.
Apoiados por uma boa parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários
rurais, setores conservadores da classe média e em especial, da Igreja Católica,
cujos fiéis eram a maioria da população, pediram e estimularam a intervenção militar,
objetivando pôr um ponto final à ameaça de esquerdização do governo. Essa
ameaça era algo que assustava o ocidente, muito graças à polarização política fruto
da guerra fria. Além disso, os que apoiavam o movimento, sonhavam também com
uma reorganização do cenário econômico. Naqueles dias também é importante
ressaltar, que o golpe também foi recebido com alívio pelo governo norte-americano,
satisfeito de ver que o Brasil não seguia o mesmo caminho de Cuba.
Mas rapidamente a euforia conservadora brasileira dá lugar ao clima de
apreensão com o fechamento do congresso e a prisão de centenas de políticos de
esquerda ou dos que não aceitaram passivamente o golpe. Seguiu-se a isso, um
período de repressão, de abusos aos direitos humanos, de censura e controle dos
meios de comunicação.
42
No campo religioso, a Igreja Católica continuava hegemônica, porém o
desencanto com a fé era previsível, pelas muitas divisões no seu campo - das quais
as denominações protestantes também experimentariam - conflitos e, na sequência
expurgos, eram germinados. “Conflitos” é o que Bordieu conceitua como “uma forma
particular da luta pelo monopólio”, isto é, a oposição entre a ortodoxia e a heresia,
conflito que se estabelece no subcampo dos sábios, ou os teólogos e a elite
intelectual da denominação religiosa (BORDIEU, 2005, p. 63).
Muitos grupos defendiam reformas sociais que também demandavam
mudanças nas estruturas eclesiásticas e não poucas denominações viram posições
de vanguarda como as que levaram pessoas a romperem com a Igreja, mais
reacionária a mudanças.
Desde 1950, é sabido haver processos de polarização tanto na sociedade civil
como dentro da Igreja Católica, que se dividiu, entre as alas moderada e
conservadora, com ações de caráter assistencialista; e de outro lado, a “Igreja
dos pobres” que, segundo o pensamento de Gustavo Gutiérrez, assumia uma
posição nítida em relação à luta de classes: em que não era possível negá-la e não
tomar partido em favor das classes exploradas. Segundo ele, tentar situar-se neste
“lugar” significa uma ruptura radical com o modo de viver, de pensar, de comunicar
a fé na Igreja de hoje. (GUTIÉRREZ, 1985, p. 271).
Expurgos aconteciam e novas igrejas surgiam; enquanto pessoas deixavam a
sua para aventurarem-se numa nova fé (o crescimento pentecostal e neopentecostal
já se fazia sentir), outras trocavam-nas por coisa alguma.
O conceito de campo desenvolvido por Bourdieu (2015), enfatiza a existência
de tensões, de lutas por poder dentro de cada campo. Isso se manifesta, por
43
exemplo, quando novas pessoas, novas ideias, buscam legitimar sua posição em
relação a um grupo ou a uma normativa dominante, que, por sua vez, tenta defender
a sua posição excluindo a concorrência e não legitimando o novo.
Bourdieu afirma ainda que o dominante num campo religioso é o conjunto de
pessoas que detém o capital simbólico específico desse campo, composto por
regras, crenças, técnicas, conhecimentos, história, hierarquia. Ao fazer uso desse
capital simbólico, o dominante busca manter-se no poder, fundamentando sua
autoridade com base nesse capital simbólico e tendendo à defesa da ortodoxia e à
busca pela exclusão dos recém-chegados que, então, adotam estratégias de
subversão como as da heresia, para construir a sua legitimidade própria. Naquela
altura, ter ideias progressivas era o mesmo que ser herege, numa posição que tudo
fazia para ultrapassar as fronteiras da ideologia política para fincar-se na teologia,
especificamente, conservadora.
No Brasil do interior, a fé do catolicismo rústico, mais e mais era moldada não
mais pela tradição dos pais, ou pelo reforço da solidariedade do grupo da vizinhança
que fortalecia laços e formavam comunidades, onde ritos e associações eram um
reforço de solidariedade intra-grupal e intra-familiar (QUEIROZ, 1968, p. 128), era
mais e mais confrontada pela cultura de massas chegada pelo rádio ou TV, e
também como de novas crenças como o pentecostalismo, mais ousados no uso
dessas tecnologias.
Segundo Silas Luiz de Souza, com o crescimento expressivo dos pentecostais,
a disputa pelo espaço ganhou novos atores. Denominações do protestantismo
44
histórico11 perderam muitos membros para os pentecostais e algumas, como o
presbiterianismo perderam o poder da manipulação do sagrado, minimizado
simbolicamente pela proximidade com o poder, pois para o autor, tarefa mais
importante que cultivar experiências emocionais, era ajudar o governo a transformar
o país (SOUZA, 2014, p. 280).
Via de regra, os pentecostais eram conservadores na teologia e mantinham-se
alienados politicamente, os católicos estavam divididos entre os que se mantinham
à parte da luta política, e os que viam a aspiração por uma “Igreja dos pobres”
durante o Vaticano II, convocado pelo Papa João XVIII, e na Conferência de Medellín
(1968), confirmada em Puebla (1979), muitos padres passaram a apoiar, desde o
final da década de 1970, os movimentos organizados contra os militares, dentre eles
as guerrilhas urbanas e rurais. As Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s)
arregimentavam fiéis que não se sentiam contemplados no tradicionalismo católico
que ecoava desde os concílios. Por outro lado, as CEB´s revelavam a possibilidade
de estabelecer diálogos com as camadas populares, sendo dessa forma, a presença
do povo na Igreja Católica. A teologia que dava suporte ao ativismo religioso nessas
comunidades seria a da Libertação, sustentados pelos textos e pensamentos
libertários de líderes como os Freis Leonardo Boff, Frei Beto, de Carlos Mesters, de
Dom Hélder Câmara e de Oscar Beozzo que, associados à pedagogia de Paulo
Freire, conquistavam espaços para a reflexão e a opção de uma religiosidade voltada
para os “pobres”, “oprimidos” ou simplesmente “excluídos”. O evangelho seria
11 O termo protestantismo, utilizado nessa dissertação, tem uma definição sociológica que se refere ao campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante europeia do século XVI, ou pertencentes ao ramo do protestantismo histórico (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista). Embora utilizemos aqui também o termo igreja evangélica, tanto para o protestantismo histórico como também para o ramo pentecostal: Congregação Cristã do Brasil, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção e Universal do Reino de Deus, (MARIANO, 1999, p. 10).
45
interpretado à luz das necessidades das populações empobrecidas, incluindo-se os
desempregados, os moradores de rua, os trabalhadores rurais sem-terra, os
migrantes, as crianças de rua, dentre outros.
No protestantismo histórico, professores e pastores ligados às faculdades de
teologia, e entre a juventude das escolas e universidades, um evangelho social, ou
libertário seria assimilado à luz das ideias de Niebhur, Richard Shaull e Rubem Alves.
Esse último provocava o conservadorismo protestante com seu livro, publicado em
1977, “Protestantismo e repressão”, mais tarde relançado como “Religião e
repressão”, inspiraria a muitos novos pastores e lideranças leigas.
Para não “expor” o fiel das igrejas protestantes, evangélicas aos “perigos” da
polarização política e às radicalizações, era confortável – e recomendável - que ele
se mantivesse tão “neutro” quanto possível.
Peter Berger e Pierre Bourdieu, concordam sobre o caráter da religião na
legitimação da ordem social. Diferente de Bourdieu, no qual a religião oculta o caráter
de dominação social de uma classe sobre a outra, para Berger a religião remeteria
a um “cosmos” sobrenaturalizado, num processo de ocultamento, de “alienação”; ou
seja, o não reconhecimento do caráter humano da criação da sociedade. Berger nos
afirma que, nesse sentido, a religião seria legitimadora. O mundo social é chamado
por ele de nomos e seria um reflexo microscópico do “cosmos”. Em termos religiosos
o nomos seria a ordem sagrada que se reafirma frente ao caos. No seu trabalho “O
Dossel Sagrado - Elementos para uma teoria sociológica da religião”, afirma que
estar contra a ordem social seria o desastre total
Assim como a legitimação religiosa interpreta a ordem da sociedade
em termos de uma ordem açambarcante e sagrada do universo,
46
assim ela relaciona a desordem que é a antítese de todos os nomos
socialmente construídos ao abismo-hiante do caos que é o mais
velho antagonista do sagrado. Ir contra a ordem da sociedade é
sempre arriscar-se a mergulhar na anomia. Ir contra a ordem da
sociedade como é legitimada religiosamente é, todavia, aliar-se às
forças primevas da escuridão. (BERGER, 2015, pg. 52)
Não se sabe com exatidão, sobre o engajamento real dos evangélicos, tanto
nos movimentos que sustentaram o regime no período, quanto de resistência a ele,
mas era nítida a polarização dentro dos seus quadros, e de uma franca maioria
percebida, que insistia em apregoar uma “neutralidade”, escudada no discurso de ter
que cuidar das “coisas do alto”12. Assim, ser um fiel protestante, evangélico, ou não-
católico, era ser de direita e sustentador do regime. Era mister lutar contra o
comunismo que condenava a fé, fechava igrejas, e encarcerava cristãos, e esta
ameaça real pairava sobre a nação. Nas igrejas protestantes, o que mais se ouvia
era uma exegese malfeita de Romanos, capítulo 13, verso 1: “Todos devem sujeitar-
se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus;
as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”. Nessa interpretação, até o
voto na oposição era considerado “pecado” (pelo Ato Institucional Número Dois, de
27 de outubro de 1965, e do Ato Complementar nº 4, de 20 de novembro de 1965,
que, baixados pelo regime militar, terminaram com o pluripartidarismo existente,
naquela época, no Brasil, extinguindo-se os 13 partidos políticos legalizados no País
e determinara a implantação do bipartidarismo. A partir dali, somente duas correntes
políticas, a situacionista formada pela ARENA – Aliança Renovadora Nacional - e a
corrente oposicionista formada pelo Movimento Democrático Brasileiro - MDB -
12 Hoje, a Comissão Nacional da Verdade, tem dados mais concretos sobre essa participação das igrejas. www.cnv.gov.br
47
disputavam votos. A ARENA era chamada de "A situação" e o MDB de "A oposição").
Cristão fiel, não votava na oposição, e expoentes das denominações históricas,
militavam em favor do regime aberta ou veladamente.
Sobre esse alinhamento ideológico evangélico, e a colaboração ao golpe,
mesmo com flagrante desrespeito aos direitos humanos, Magali Cunha afirmou
À medida que o golpe de 1964 se configurou como uma ditadura civil-
militar com toda a carga de violações do regime democrático e dos
direitos humanos imposta à população, as igrejas evangélicas,
particularmente suas lideranças nacionais, representantes do
governo eclesiástico, aprofundaram as posições de apoio. O apoio se
concretizava em colaboração, por, pelo menos três formas:
propaganda nas reuniões religiosas e nas mídias oficiais; repressão
interna, com perseguições e expurgos; contribuição com o aparato
repressivo do regime, com denúncias e delações. (CUNHA, 2015,
p.198)
Paralelamente, as sociedades religiosas, influenciadas por essa polarização,
viram-se obrigadas a optar ora por uma comunidade conservadora, cada vez mais
legalista, como forma de manter o seu capital simbólico, que já não respondia às
demandas seculares, ora por outra mais engajada nas questões seculares, porém
sem poder atender, a contento, as demandas espirituais do seu público.
Silas de Souza, cita que para o segmento reformado, o conceito de
responsabilidade social da igreja cristã “era facilmente diagnosticado como
esquerdista ou comunista, o que de pronto deveria ser acusado como má teologia e
recusado como heresia” (SOUZA, 2014, p. 281).
Havia uma crise em curso e as igrejas viram uma barreira erguer-se entre elas
e os seus fiéis, entre elas e a sociedade. Afeitos às mudanças de fora e as demandas
48
de um período de repressão política, outras posturas foram exigidas às
comunidades, mas não sem disputas.
Segundo ainda Bourdieu (2015, p.244) o “campo do poder é o espaço das
relações de força entre agentes e instituições que têm em comum possuir o capital
necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou
cultural, especialmente)”. O capital simbólico correspondente ao conjunto de rituais
(como as boas maneiras ou o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. E
segundo Bourdieu, os sacerdotes dispõem de autoridade de função, que dispensa
conquista, continuamente confirmada em virtude do fato de sua autoridade ser
legitimada pela função, pela posição ocupada no campo religioso. Já a autoridade
do profeta deve ser sempre conquistada, no conjunto de determinado estado de
relação de forças. Nas palavras do autor:
“O profeta opõe-se ao corpo sacerdotal da mesma forma que o
descontínuo ao contínuo, o extraordinário ao ordinário, o extra-
cotidiano ao cotidiano, ao banal, particularmente no que concerne ao
modo de exercício da ação religiosa, isto é, à estrutura temporal da
ação de imposição e de inculcação e os meios a que ela recorre”
(BOURDIEU 2015, p. 89)
Com uma crescente consciência das debilidades do regime, especificamente
na supressão de direitos civis, da repressão, uma cultura de contestação, de
protesto, de desconfiança, de crítica, em todas as esferas da sociedade fazia
aumentar a tensão e ameaçar não só o regime, as tradições, a “normalidade”,
também no campo religioso que como aponta Bordieu, tinha sua parcela de
responsabilidade:
49
“A igreja contribui para a manutenção da ordem política, ou melhor,
para o reforço simbólico das divisões desta ordem, pela consecução
de sua função específica, qual seja a de contribuir para manutenção
da ordem simbólica” (BORDIEU, 2015, p. 70)
As igrejas evangélicas – na sua maioria – mostravam-se conservadoras,
tentando conter o ânimo dos fiéis, e na manutenção dessa ordem.
Rubem Alves chegou a afimar que um pretenso liberalismo que deveria ser
uma das principais características do protestantismo brasileiro, na transição do
século XIX para o século XX, mas que de nenhum modo se fez presente na maioria
das igrejas evangélicas brasileiras durante a ditadura. Em 1979 no seu artigo13, pôs
em xeque a noção de que o protestantismo tivesse uma estrutura democrática,
contra uma posição do catolicismo quanto ao tema. O livre exame da Bíblia, bandeira
histórica desde a Reforma do século XVI deveria conter uma suposta democracia
protestante, permitindo interpretações diversas, a diversidade de opiniões, e o
surgimento de outras denominações religiosas protestantes, por motivos de
discordância sobre algumas doutrinas, interpretações teológicas ou rituais. Para
Alves, é justamente aí que a intolerância no protestantismo se revela. A Igreja
Católica, com sua estrutura aparentemente rígida, permite o lugar para a divergência,
permitindo a coexistência de vários segmentos religiosos garantindo assim a unidade
católica. Daí, concluiu que, no protestantismo, “os cismas não são a expressão do
liberalismo individual, mas o resultado do autoritarismo institucional” (ALVES, 1979).
A intolerância e a intransigência, eram assim, as marcas do protestantismo no país.
13 ALVES, Rubem. A ideologia do protestantismo. Rio de Janeiro. Cadernos do ISER, n. º 8, abril de 1979
50
Assim como a sua falta de humor, de leveza, numa postura e pregação cada
vez mais fria e distante dos fiéis.
Dentro das igrejas históricas, mais progressistas que o ramo pentecostal
histórico - publicações denominacionais foram testemunhas – desse período e
demonstraram apoio ao golpe militar: eram O Brasil Presbiteriano (Igreja
Presbiteriana do Brasil), O Estandarte (Igreja Presbiteriana Independente), O Jornal
Batista (Igreja Batista), o Expositor Cristão (Igreja Metodista), O Mensageiro da Paz
(Igreja Assembleia de Deus no Pará e Convenção Nacional das Assembleias de
Deus). De acordo com esses órgãos, jornais oficiais das suas respectivas
denominações, “o apoio ao regime que se instituía em 1964 foi imediato e
entusiasmado” (CUNHA, 2015, p. 192).
Em 1968, a Igreja Metodista brasileira, passara por uma crise sem precedentes
que culminara no fechamento da Faculdade de Teologia, do bairro de Rudge
Ramos, em São Bernardo do Campo-SP, resultou na expulsão de cerca de
70 jovens estudantes da instituição, por divergências políticas, teológicas e
ideológicas presentes na denominação.
Apesar disso, as edições do jornal oficial da denominação, o Expositor Cristão,
publicados no período, silenciaram-se diante dos fatos em questão.
Por outro lado, a Revista Cruz de Malta, nascida em 1927, especialmente a
partir de 1982, durante o enfraquecimento da ditadura militar passou a se ocupar
com temas que circulavam nas cartilhas dos movimentos sociais que tomavam conta
do país e que ocupavam os meios acadêmicos de influência marxista. Seus estudos
bíblicos eram ilustrados com fotografias e, de maneira pioneira, com humor através de
51
charges314 que traziam assembleias de trabalhadores, a situação dos moradores da
periferia das cidades em situações desumanas e trabalhadores rurais em situação
de perigo.
A redemocratização do país, as greves operárias, as manifestações massivas
dos professores, as campanhas salariais dos trabalhadores do campo e as
reivindicações das associações de bairro ocupavam os seus estudos, antes dirigidos
à representação das sociedades metodistas de jovens.
Enquanto isso, o grosso do protestantismo insistia em referendar o regime,
identificando-se como um grupo conservador. Qualquer iniciativa de cunho
assistencial, de ação social, era logo vista entre eles como uma posição político-
ideológica, alinhada à esquerda. Cristão não tinha de se envolver em ação social, ou
de caridade, coisas próprias de alguém com preocupações “terrenas”, e sim das
demandas e assuntos mais “espirituais”. Pregar o evangelho era uma proposta
subjetiva e ligada aos céus, não ao chão. “Nós não somos deste mundo” era o jargão
popularizado entre os “crentes evangélicos”, cristãos de matriz protestante
tradicional ou mesmo das novas correntes.
Essa divisão, fruto de uma visão histórica, separava a vida “sagrada” daquela
ordinária, do dia a dia, ou “secular”, os dois modos de ser no mundo. Durkheim,
afirma que a própria essência da religião está na distinção da realidade em duas
14 Charge e cartum (do inglês cartoon) – são termos sinônimos, e se referem a desenhos jornalísticos de caráter crítico e humorístico, geralmente satirizando personagens, fatos e situações da atualidade. Mas também há diferenças – sutis, mas importantes – entre elas. Em primeiro lugar, chama-se charge, termo importado da língua francesa “carga”, um sinônimo de crítica violenta, num uso figurado do sentido militar de “carga” ou “ataque” e é o desenho onde se pode reconhecer uma pessoa ou situação, portanto é uma crítica carregada de pessoalidade. Mas chamamos também cartum de história em quadrinhos, quando ultrapassa um desenho só mas desenvolve uma narrativa sequencial – que também pode ser encontrado menor, ao que chamamos “tirinha”, geralmente em publicações periódicas, em três ou quatro quadros.
52
esferas, a do “sagrado” e a do “profano”. Para ele, a primeira delas se compõe de
um conjunto de crenças e ritos que formam certa unidade o que se chama
genericamente de “religião” que envolve tanto uma dimensão cognitiva/cultural
(crenças) quanto uma dimensão material/institucional (ritos). Para ele, o que
caracteriza o sagrado é o fato de estar apartado das coisas cotidianas. Mircea Eliade,
na sua obra “O Sagrado e Profano”, separa as percepções entre uma e outra esfera
e afirma que para o homem das sociedades arcaicas, “a vida como um todo é
suscetível de ser santificada. São múltiplos os meios por que se obtém a
santificação, mas o resultado é quase sempre o mesmo: a vida é vivida num plano
duplo; desenrola-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma
vida transumana, a do Cosmos ou dos deuses”. Para o religioso, acrescenta o autor,
as suas experiências são sempre religiosas, pois o seu mundo é sagrado (ELIADE,
1992, p. 81). Em contrapartida,
quanto ao cristianismo das sociedades industriais, principalmente o
dos intelectuais, há muito que perdeu os valores cósmicos que
possuía ainda na Idade Média. Isto não implica necessariamente que
o cristianismo urbano seja “degradado” ou “inferior”, mas apenas que
a sensibilidade religiosa das populações urbanas encontra- se
gravemente empobrecida. A liturgia cósmica, o mistério da
participação da natureza no drama cristológico tornaram-se
inacessíveis aos cristãos que vivem numa cidade moderna. Sua
experiência religiosa já não é “aberta” para o cosmos; é uma
experiência estritamente privada. A salvação é um problema que diz
respeito ao homem e seu Deus; no melhor dos casos, o homem
reconhece-se responsável não somente diante de Deus, mas
também diante da História. Mas nestas relações, homem, Deus, a
história, o cosmos, não têm nenhum lugar. O que permite supor que,
mesmo para um cristão autêntico, o mundo já não é sentido como
obra de Deus. (ELIADE, 1992, p. 86).
53
O cristão brasileiro já não era rural, o religioso do campo, de uma fé tradicional,
seja pela sua exposição ao “mundo”, pela cultura de massas, ou pelo êxodo para os
grandes centros e ele não sabia mais como “juntar” o sagrado ao seu dia a dia e às
demandas da sua vida, cada vez mais complexa e em turbulência num mundo em
mudanças e de instabilidade política. Geertz (1978), afirma que o profano e o
sagrado dialogam cotidianamente e, mais que isso, mostram-se como opositores e
complementares a ponto de produzirem uma teia de significados, Berger (1985),
afirma uma relação entre o profano e o sagrado e não uma dicotomização entre
ambos. Para ele, o profano é afetado pelo sagrado na medida em que este último,
sendo legitimado e reverenciado como verdade suprema, evita o caos que se
evidenciaria no caráter profano das rotinas da vida cotidiana. Essa percepção, de
afastamento das coisas cotidianas, desperta crises, reações, sentimentos e
emoções e elas pareciam não ser percebidas pelos sacerdotes, ou pelas igrejas.
Usarski (2006, p.40) ao citar Nathan Söderblom, afirma, que “numa cosmovisão
dualista, o sagrado representa a esfera complementar ao profano, ambos, por sua
vez, constituem o ser em sua totalidade. Do ponto de vista do profano, o sagrado é
o ‘totalmente outro’ e representa um fenômeno sui generis, ontologicamente
independente e autônomo”. Na ótica cristã e mais especificamente na fé reformada,
evangélica – brasileira - o profano é mantido como execrável, em constante
oposição ao sagrado e, portanto, digno de todo o esforço pela distância,
particularmente naqueles tempos de sedução de ideologias ameaçadoras.
Se no pensamento católico, baseados nessa ideia de uma estrutura dualística,
dividindo o conceito de natureza e graça, que afirma que o homem está em um
estado de natureza pura que precisa de uma adição de graça, ou, além de suas
54
faculdades naturais, Deus teria dotado os seres humanos de um dom ou faculdade
sobrenatural que os capacita a ter um relacionamento com Deus”. Esse pensamento
trouxe a visão que as coisas humanas são independentes das divinas, apesar de
andarem juntas. O dualismo de São Tomás de Aquino, produziu o pensamento de
viver como homem natural e homem espiritual, coexistindo em um só ser. Um
homem vive com o sagrado e com o profano ao mesmo tempo. Partindo dessa
premissa de Aquino, o pensamento vigente na cristandade é que se ia a missa para
um ato sagrado, enquanto trabalhar era o lado profano. Mas essas realidades eram
ligadas a um só homem. Os únicos que poderiam “viver exclusivamente do sagrado”,
eram os monges, o clero, pois não se envolviam com “assuntos mundanos”. Na ótica
protestante, embora os reformadores tivessem quebrado essa visão dualística da
vida, o conceito de sacerdócio versus leigos (o sagrado versus profano) deu lugar à
doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes. Nessa visão, toda a criação é
boa, e as várias formas de manifestações culturais eram divinas. Para os
reformadores, especialmente João Calvino, o trabalho episcopal não é mais digno
do que o trabalho manual ou cultural, pois tudo deve ser feito para a glória de Deus.
Apesar disso, essa herança dualista, que separava o sagrado do profano, de origem
grega e católica (de Aquino), imperava até no meio protestante, evangélico. As suas
obrigações, portanto, enquanto fiel, restringia-se à frequência aos cultos, à vida
devocional nas casas e ao proceder exemplar, mas nada que significasse envolver-
se nas questões “menores”, “mundanas” (leia-se, na política!), pois este “não
pertencia a este mundo”.
Segundo publicou artigo no Estandarte, órgão oficial da Igreja Presbiteriana
Independente, no artigo “Seria o ecumenismo a solução para a igreja?” (O
Estandarte, Ano 81, n. º 3, São Paulo, 15 de fevereiro de 1973, p. 4) o Rev. Antônio
55
Miguel dos Santos, corroborando para tal pensamento, tão corrente entre os
evangélicos daquela época
A igreja, fosse ela Católica ou evangélica, deveria preocupar-se
apenas com a “salvação dos pecadores”, pois “Jesus não mandou
seus discípulos fazerem obra de assistência social. Elas aparecem
como decorrência da pregação do evangelho e não como meio de
pregar o evangelho”.
Era essa, precisamente, a pregação quase que oficial no ramo evangélico, cuja
missão maior passava longe da realidade e dos desafios da sociedade, que não de
ordem existencial, da esfera da espiritualidade. A maior batalha então, era para ser
travada na mente, não nas ruas, ou numa urna de voto.
Weber parece afirmar na sua ótica sobre a Reforma de 1517 em “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo”, que o protestantismo havia deixado a
experiência pela palavra, como que desencantando o mundo ao discutir o incontido
processo de racionalização. Se para a fé cristã o verbo virou carne, para o
protestante “normal”, mata-se então a carne. Esta racionalização está repleta de
consequências negativas, não apenas para a relevância social da religião, como
também para o desenvolvimento da própria sociedade moderna. Nas homilias
dominicais, exegeses demasiadamente apologéticas, teologicamente cuidadas –
mais para se evitar repressões dentro do campo religioso – distanciavam-se da vida
dos fiéis. Via-se mais “sermões de prova”, que aplicações que diziam respeito à vida
ordinária das pessoas.
Para ilustrar bem essa postura de distanciamento da realidade de vida dos fiéis,
comum nas igrejas evangélicas ou de matriz protestante, especialmente na Igreja
56
Presbiteriana do Brasil e seu órgão máximo de comunicação, o jornal Brasil
Presbiteriano, “a preocupação seria apenas ‘refletir o pensamento oficial da Igreja’,
o que significava também combater formalmente o comunismo, de acordo com a
decisão da Comissão Executiva do Supremo Concílio”. (SOUZA, 2014, p. 189).
O espírito da época, do regime, era representado pela frase: “O preço da
liberdade é a eterna vigilância”, com o incentivo da vigilância de todos contra todos.
Em repartições públicas ou lugares de aglomeração, essa recomendação era visível
em cartazes – que muitas vezes traziam estampados rostos de “inimigos da nação,
ou “terroristas” que é como o governo chamava, dos assaltantes de bancos aos seus
opositores de consciência e ideológicos mais conhecidos. Esta frase, atribuída por
alguns a Thomas Jefferson, outros a Napoleão Bonaparte, foi por bons anos,
creditada à eminência parda do regime, e considerado por muitos como o homem
por detrás dos militares, general Golbery do Couto e Silva15 que apesar do status de
ministro de estado e homem do poder, preferia os subterrâneos aos holofotes, e dá-
nos a ideia do clima de suspeição, da qual nem as igrejas – e especialmente os
púlpitos – estavam isentos. Daí, pode-se imaginar os quão cuidadosos, o quão
exatos, os sacerdotes estavam sob medida vigiados e, por extensão e na mesma
proporção, os sermões produzidos, protocolares e “frios”.
Conforme ainda Souza, o discurso de reprovação do comunismo e de questões
sociais, presentes não apenas na imprensa “chapa branca” dos presbiterianos (e não
só!), como “nos sermões e nas lições para a Escola Dominical desde há muito tempo,
15 Golbery do Couto e Silva, foi um general e geopolítico brasileiro, e um dos criadores do Serviço Nacional de Informações (SNI). Durante o governo de Ernesto Geisel, a partir de março de 1974, foi o responsável pela chamada política que marcou o início do processo de abertura política.
57
pois o comunismo identificado com o ateísmo jamais poderia fazer parte do
pensamento cristão” (SOUZA, 2014, p.189).
O humor e a crítica então, como marcas do gênero humano e que tanto
marcaram a vida e o pensamento da Reforma Protestante do século XVI,
desaparecera da vida dos seus fiéis (?) herdeiros protestantes do Brasil do século
XX, dos seus líderes e dos púlpitos. Como bem observaria anos mais tarde, na errata
à edição do “Quando tudo começou: história do I Salão Brasileiro de Humor e
Quadrinhos” (2016), Alexandre Silveira Souza Vivacqua, professor de Filosofia da
Universidade Federal de Minas Gerais,
O pensar luta contra a futilidade, contra a perversidade e contra a
arrogância. O pensamento crítico luta contra o pensamento vulgar
que é a subserviência.
Naquele Brasil, protestante significava tudo, menos ser protestante.
2.1. Os evangélicos e o humor engajado
Naquele período de exceção, não faltavam profetas surgindo no protestantismo
brasileiro. Uns foram “excomungados”, forçados a deixar as congregações de
origem, outros, refinaram o seu discurso, opondo-se ao corpo sacerdotal, mas em
nuances não tão perceptíveis a este, mas bem recebidos pelos fiéis. O mesmo
Bordieu explica que
Assim como o sacerdote alia-se à ordem ordinária, o profeta é o
homem das situações de crise quando a ordem estabelecida ameaça
romper-se ou quando o futuro inteiro parece incerto. O discurso
profético tem maiores chances de surgir nos períodos de crise aberta
58
envolvendo sociedades inteiras; ou então, apenas algumas classes,
vale dizer, nos períodos em que as transformações econômicas ou
morfológicas determinam, nessa ou naquela parte da sociedade, a
dissolução, o enfraquecimento ou a obsolescência das tradições ou
dos sistemas simbólicos que forneciam os princípios da visão do
mundo e da orientação da vida! (BORDIEU, 2015, p73).
Ele explicava aqui como além de surgir nesses momentos de ruptura da ordem
ou da normalidade, os profetas tinham a vantagem sobre os que teimavam em seguir
o curso das tradições e explicar o mundo conforme a sua visão particular ou, no caso,
sua tradição, geralmente uma sub-cultura que pouco dizia respeito à vida cotidiana,
cheia de uma preconceituosa com relação à tudo que vinha de fora, do “mundo”, que
é como era chamada qualquer manifestação, expressão, ou produção cultural não
religiosa, incluindo-se aí a política, a economia, etc...
Citando Marceu Mauss, acrescenta o autor
“Fomes e guerras suscitam profetas, heresias: contatos violentos
influem sobre a própria repartição da população e sua natureza,
mestiçagens de sociedades inteiras (é o caso da colonização) fazem
surgir forçosamente novas ideias e novas tradições” (BORDIEU, p.
74)
Nessa linha, os grupos não só os que nasciam dentro das igrejas cresciam,
como as novas igrejas e missões – como se chamavam as organizações
paraeclesiásticas – obtinham público para o seu discurso.
Embora algumas denominações do movimento evangélico/protestante
mantinham-se conservadoras, mais e mais grupos, menores, faziam crescer sua
desconfiança – e militância – contra o militarismo e o regime de exceção.
59
O Brasil, naquele caldeirão de contestação e crítica, já não se conformava com
velhas fórmulas, simplistas ou superficiais. Uma certa “burrice” oficial, do arbítrio, dos
discursos-prontos e repetidos à exaustão clamavam por uma reação e uma nova
articulação da sociedade, civil ou religiosa, que no seu meio, especialmente os mais
jovens pediam por mudanças em novos arranjos que via-se nascer. Foi a época de
maior poder dos leigos, aos conjuntos de música não tradicionais que fugiam dos
padrões de corais e dos hinos de matriz norte-americanos (ou alienígenas), grupos
de evangelismo que, nas ruas onde atuavam, não tinham a tutela da “velha-guarda”
dos sacerdotes, num mecanismo observado por Bordieu, “constância e rotina podem
ser obra de indivíduos, inovação e revolução podem constituir a obra de grupos, de
subgrupos, de seitas, de indivíduos agindo por e para os grupos.” (BORDIEU, 2015,
p. 74).
Nas artes, o humor da sociedade, como crítica, refinou-se ao máximo para
escapar da censura que a tudo selecionava, num esforço sacerdotal para descobrir-
se e impedir que os hereges, ou profetas, questionassem sua “versão oficial da vida”,
o que bem faziam esses, na marginalidade e bem como afirmou Berger, “a
marginalidade inspira uma perspectiva cômica” (BERGER, 2017., pg. 24). Millôr
Fernandes, jornalista, cartunista e escritor, chegou a zombar do esforço de controle
do pensamento e da expressão numa afirmação amplamente conhecida: “Um ditador
pode bem retocar uma versão oficial, mas não consegue evitar uma caricatura”. Há
aí, algum tipo de compreensão acerca do mundo social que escapa ao poder.
Peter Berger, na sua obra O Riso Redentor (2017), conceituou a sensibilidade
cômica contemporânea, como sardônica ou sarcástica, baseada no escárnio e nos
jogos de palavra, e a relaciona a outras características da modernidade, como ao
60
intelectualismo e a tentativa do controle emocional. O humor dos carnavais
medievais desaparece à medida que a modernidade o domestica, institucionalizando
na figura do bobo da corte e da comédia formal. Para Berger, parece que o mesmo
processo que seculariza o mundo moderno explica também o desencantamento do
humor e sua adaptação a um período histórico que se julga superior a todos os outros
em função de sua suposta racionalidade. Para Berger, o mundo moderno
desencantado gerou as suas próprias incoerências e o humor pode ser uma delas,
estando a sensibilidade cômica contemporânea como expressão do
desencantamento, e também uma reação a ele. E foi assim que a sociedade refinou
o seu humor frente ao terror, em várias frentes.
Se o regime ditatorial conseguiu arregimentar uma enorme massa de
opositores contra si, nas esferas religiosas, aconteceu o mesmo, especialmente na
Igreja Católica e muito mais timidamente, e sem a chancela oficial da denominação,
nas igrejas evangélicas.
Foi o caso de membros da conservadora Assembleia de Deus, como o do
professor de escola dominical e evangelista auxiliar de pastor que junto com a sua
postura de típico líder pentecostal, servia na sua congregação, mas militava com
fervor contra o regime e as práticas latifundiárias, como Manoel da
Conceição16 (mais tarde, fundador do Partido dos Trabalhadores) provando
que no Nordeste, a luta no campo alcançou e mobilizou setores evangélicos
progressistas17. Conceição, acabou preso, espancado brutalmente e definitivamente
16 ARAÚJO, Helciane de Fátima Abreu. Memória, mediação e campesinato: as representações de uma liderança sobre as lutas camponesas da Pré-Amazônia maranhense. Manaus: Edições UEA, 2010. 17 CONCEIÇÃO, Manoel da. Essa terra é nossa: depoimento sobre a vida e as lutas de camponeses no Estado do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1980.
61
incapacitado fisicamente pelos órgãos de segurança18. O pluralismo no meio
evangélico não era apenas doutrinário.
As maiores denominações evangélicas nos anos 1960, as Igrejas Presbiteriana
do Brasil (IPB), Presbiteriana Independente (IPI), Assembleias de Deus (AD), Batista
(IB) e Metodista (IM), viam nos seus quadros, vozes que divergiam e alinhavam-se
numa resistência ao regime, sendo que a Presbiteriana do Brasil, a Batista e as
Assembleias de Deus, foram muito mais próximas, institucionalmente, aos militares
do que as igrejas Presbiteriana Independente e Metodista.
Nas publicações das Igrejas Metodista e Presbiteriana Independente via-se
claramente uma polarização entre as correntes dentro das denominações e a
linguagem do humor estava presente, de um lado e de outro. No Estandarte, órgão
oficial da IPI, Aldroaldo José de Almeida, registrou na sua tese de doutorado, que
“Os artigos e matérias, publicados no jornal oficial da IPI, entre 1963 e 1964, foram
bastante refratários e intolerantes ao comunismo, com textos que se caracterizaram
ora pela ironia ora pelo tom apocalíptico.” (ALMEIDA, 2016, p. 43).
A mais importante publicação da IPB, O Brasil Presbiteriano, logo após o golpe,
em maio de 1964, recém dirigido pelo Rev. Boanerges Ribeiro que governaria com
mão de ferro a igreja, declarou, reagindo à deposição do governo civil:
“Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão se regozijando
com os resultados da gloriosa revolução de março-abril: o expurgo de
comunistas, e seus simpatizantes, da administração do nosso
querido Brasil. [...] Pastores, Seminaristas, Presbíteros, crentes, não
podem abraçar a ideologia vermelha e permanecer na igreja. Se
quiserem ser comunistas, que o sejam, mas renunciem a jurisdição
18 cnv.gov.br/images/pdf/depoimentos/vitimas_civis/Manoel_Conceicao_16.11.2013.pdf
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da Igreja e não contaminem o rebanho. Uma ou outra coisa. Ou Cristo
ou Belial. [...]. É preciso o expurgo!” (SOUZA, 2011) 19
Os presbiterianos tiveram nomes célebres na luta contra o arbítrio. Dentre eles,
a família de missionários norte-americanos Wright, que chegou a perder um de seus
membros, Paulo Stuart Wright, desaparecido e certamente assassinado pelos
órgãos de repressão do regime militar em 1973, sob o governo do General
Garrastazu Médici. Seu irmão Jaime Wright, estudou Teologia e pós-graduação na
Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (EUA), em 1950, tendo voltado ao
Brasil e radicado inicialmente em Ponte Nova, na Bahia, para dirigir o Instituto de
Educação Presbiteriano Ponte Nova e em 1968, chegou à direção da Missão
Presbiteriana do Brasil Central, responsável pela expansão da igreja pelos estados
centrais do país, sediada em São Paulo.
Nos anos seguintes, foi uma voz incômoda tendo denunciado o regime por
violações aos direitos humanos à órgãos internacionais, tendo fundado, junto com
Jan Rocha e Luiz Eduardo Greenhalgh, o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos
nos Países do Cone Sul e participado em iniciativas ecumênicas de resistência,
trabalhando pela causa na Arquidiocese de São Paulo e na coordenação do projeto
“Brasil Nunca Mais” que resultou na publicação de um livro - um inventário sobre a
tortura no Brasil durante os 21 anos de ditadura. Faleceu em Vitória-ES, em 1999.
Mas nem só artigos apoiando o golpe estavam nas publicações protestantes.
No seu número 11, do ano 90, o Estandarte trouxe um artigo cheio de fino humor de
resistência. Na edição, citando um texto Leonardo Boff, padre católico, Ercília Ferraz
19 Brasil Presbiteriano, maio de 1964, p. 7 apud SOUZA, Silas de. Presbiterianismo no Brasil. In: SILVA, Elizete; SANTOS, Lyndon de Araújo; ALMEIDA, Vasni de (orgs.). Op. Cit., p. 206.
63
de Arruda Pollice, diaconisa e professora de adolescentes na Escola Dominical
da IPI de Bauru, São Paulo, faz uma referência à truculência com que o regime lidava
contra os seus opositores: “Jesus não morreu naturalmente, foi condenado sem
provas, torturado e violentamente eliminado”.
Entre os Batistas, grupo também do lado do regime, há de se ressaltar um
pioneiro do rádio na denominação e de voz opositora à ditadura, David Malta pastor
da Igreja Batista Barão da Taquara, na região de Jacarepaguá, no início da década
de 1950. Nesse mesmo período, ajudou a fundar o movimento “Diretriz Evangélica”,
incentivava os evangélicos a uma participação ativa, baseada no engajamento
político e social. Seu programa radiofônico na Rádio Copacabana, sediada no antigo
estado da Guanabara, além de escrever para o jornal Diretriz Evangélica e na coluna
n’O Jornal Batista, onde ele e Hélcio da Silva Lessa eram os responsáveis. Ele
identificava-se com setores da esquerda e com o evangelho social, muito embora
fosse contra o comunismo, era identificado com a corrente liberal (NASCIMENTO,
1963, p.5).
No Expositor Cristão, órgão da Igreja Metodista, igreja com relações mais
próxima com a Igreja Católica dentre todas as denominações protestantes, detalhe
que vale ressaltar, pois a defesa de uma prática evangélica ecumênica entre os
metodistas coincidiu, na maioria das vezes, com ações mais engajadas do ponto de
vista político e social protagonizadas por estas duas igrejas. Vale também dizer que
este veículo de comunicação foi importante na promoção do debate em torno da
situação nacional sob a ótica evangélica, tanto dentro quanto fora dos arraiais
metodistas. Nas suas páginas, publicaram artigos nomes como Rubem Alves,
Richard Shaull, Jether Ramalho e Waldo César, significativos para a compreensão
64
da formação de um grupo evangélico que teve como características o ecumenismo,
o engajamento político e o diálogo com os movimentos de esquerda.
Se a denominação Metodista teve homens como bispo emérito Isaías
Fernandes Sucasas e o reverendo José Sucasas Júnior, que cooperaram com
órgãos de repressão na delação inclusive de membros da igreja20, teve também
alguns nomes importantes no humor nacional, especial e significativamente, contra
a exceção, Claudius Ceccon, cartunista de renome.
Entretanto se o grosso das publicações denominacionais eram espelho de um
posicionamento conversador não só política, mas esteticamente alinhado, coube a
uma publicação nascida no interior de Minas Gerais, Barbacena, um conteúdo
editorial de arrojo e uma linguagem bem-humorada, o Jornal Ultimato (hoje ainda em
circulação, com o nome de Revista Ultimato). Ela foi fruto da iniciativa do
presbiteriano Elben M. L. César, seu Diretor-fundador. Seu primeiro número veio a
público em janeiro de 1968 e, apesar da convicção evangélica de seu fundador e de
seus colaboradores, o Ultimato não estava vinculado a nenhuma denominação
protestante. Para Elben César, tratava-se de se criar um periódico “sem cor
denominacional” e que preenchesse a lacuna que outros jornais evangélicos não
cumpriam: propagar a fé evangélica fora dos arraiais evangélicos. E a sua linguagem
era excelentemente adequada e dela chegaram a fazer parte, alguns cartuns e
ilustrações, bem à frente das demais publicações, sérias demais para talvez, não
“comprometer a instituição que representava”.
20ALMEIDA, Adroaldo José Silva. "Pelo Senhor, marchamos": os evangélicos e a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2016
65
Segundo afirmam os editores, a Ultimato não era aberta geralmente aos
cartuns, pois entendia que sua força, por ser temporal, de consumo rápido, criado a
partir de um fato da vida, não conseguiria sobreviver à periodicidade – bimensal – da
publicação, isso quando tudo corria bem. Mesmo com a resistência do seu diretor,
Reverendo Lenz César, alguns cartuns foram publicados de Renato Canini, outro
evangélico expoente do cartum nacional que publicara em veículos de expressão,
fora dos círculos religiosos.
Apesar de prescindir dessa expressão artística, a revista trouxe por anos, um
fino humor, contando dentre os seus articulistas mais proverbiais nesse assunto e
mais à esquerda da visão política da maioria evangélica, o Rev. Robinson Cavalcanti
(1944-2014), bispo anglicano, professor, teólogo e pastor de muitas gerações de
cristãos espalhados pelo país. O bispo Cavalcanti influenciou gerações com a sua
inteligência arguta e senso de humor. O pastor e comediante presbiteriano Jasiel
Botelho, fundador da organização Jovens da Verdade, de quem falaremos à frente,
admitiu que voltou a fazer humor após ter ouvido o anglicano numa conferência e
depois de anos numa luta contra o que achava ser um desvio na sua vocação
ministerial cristã, onde não caberiam em absoluto, o humor, a ironia e a crítica da
sua arte21.
Vale ressaltar a importância da Revista Paz e Terra, surgida, em 1966, cujo
nome foi inspirado na famosa Encíclica Pacem in Terris. A Revista era destinada ao
púbico intelectual e cristão de esquerda, e discutia questões tabus, naquele contexto
sociocultural. Temas como, marxismo, guerras, sexualidade, e o papel da religião e
21 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
66
das igrejas. Ela fora um lançamento de Ênio Silveira, de orientação comunista e
proprietário da Editora Civilização Brasileira. Paz e Terra foi um espaço importante
para as esquerdas durante o Regime Militar, que lutavam pelas liberdades individuais
e pelo retorno ao Estado democrático e de direito. Como principais nomes dos seus
articulistas, estavam Waldo César, Moacyr Felix, Rubem Alves e Alceu de Amoroso
Lima, na altura, talvez o maior articulador da esquerda protestante. Ele era um
comunista não filiado ao PCB e foi um importante intelectual católico (DIAS, 2014, p.
99).
Também é merecedora de citação, o trabalho na denominação Metodista, do
artista gráfico Laan Mendes de Barros que por muitos anos foi editor de arte das
publicações da denominação tornando-o bastante conhecido por criações de
ilustrações alternativas sobre a cultura brasileira, e até hoje conhecido pela sua
postura progressista político-social.
Um dos mais expressivos feitos que liga o humor a uma das mais
conservadoras igrejas no período desta pesquisa, foi o nascimento do primeiro salão
de humor do mundo, criado na então Universidade Mackenzie em 1973, instituição
centenária mantida pela Igreja Presbiteriana do Brasil, IPB, em plenos anos
chamados de chumbo da ditadura com uma repressão mais severa por parte dos
militares22.
Naquele ano, estudantes da instituição lotaram o Teatro Ruy Barbosa, no
campus de Higienópolis, em São Paulo-SP, para o que foi batizado de 1º Salão
Brasileiro de Humor e Quadrinhos (e o mais antigo do mundo). No ano seguinte ele
22 AGUIAR NETO, Benedito GUIMARÃES; DOS SANTOS, Gabriel Ferrato; GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres; QUEIROZ, Adolpho; DOS SANTOS, Fernando Coelho; COSTA, Gualberto e CAMOLESE, Rosângela Maria Rizzolo. 1973, Quando Tudo Começou. São Paulo: Gráfica CS, 2016
67
acontece na cidade paulista de Piracicaba e hoje continua como um dos mais
importantes do mundo e conhecido pelo seu compromisso com democracia, a arte,
a pluralidade e a diversidade, tendo virado um marco em prol das lutas políticas do
país e pelos grandes nomes do humor nacional e mundial que por ali passaram.
Figura 3 - Cartaz criado por Glauco Vilas-Boas, para o VI Salão de Humor de Piracicaba em 1979, talvez traduzindo o cuidado com o que haveria de vir, no lado de fora, ao término – iminente do período de exceção.
Fonte: Arquivo digital do autor
Outra das maiores vozes discordantes do regime político, foi o Rev. Roberto
Vicente Themudo Lessa (1941 – 2005), pastor tido como um dos pilares da Igreja
68
Presbiteriana Independente, e o seu Som do Evangelho, coluna que publicou por 8
anos no jornal Folha da Tarde, publicavam sua posição de resistência ao golpe.
Um dos grandes nomes do cartum nacional, Claudius Cecon, é um metodista
nascido em 1938 e arquiteto, de origem gaúcha, de Garibaldi-RS. O cartunista,
simplesmente conhecido por Claudius participou da 4a Consulta, a mais polêmica e
mais importante de todas, que ficou conhecida como a Conferência do Nordeste23,
tomando assento como integrante da promotora do evento, a CEB – Confederação
Evangélica do Brasil, em 1962, promovida pelo Setor de Responsabilidade Social da
Igreja (SRSI). Esta conferência histórica reuniu alguns dos principais intelectuais
brasileiros da época, como Celso Furtado, Paul Singer, Rubem Alves e Gilberto
Freyre, para, juntamente com vários pastores e teólogos protestantes, discutir o
processo revolucionário pelo qual o Brasil passava, bem como a participação cristã.
Nos anos seguintes, até partir como exilado para a Europa pelo regime, esse
cartunista foi um dos mais expressivos nomes do humor feito por cristãos
evangélicos no país e é parte da geração que revolucionou o humor gráfico brasileiro,
junto com Millôr, Jaguar e Fortuna!
Claudius editou sua arte nos mais importantes jornais e revistas alternativos
brasileiros (especialmente no Pasquim24, Caros Amigos e Pif-Paf). Também, serviu
23 Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/310/a-conferencia-do-nordeste-e-o-movimento-igreja-e-sociedade Acesso em: 04 set. 2017 24 O Pasquim foi um semanário alternativo brasileiro, editado de 1969 a 1991. Nascido no cenário da contracultura da década de 1960 teve seu apogeu na oposição ao regime militar. Chegou a mais de 200 mil exemplares em meados dos anos 1970, feito considerável para uma publicação tida como marginal, tendo se tornado um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro. Nascido com uma temática comportamental O Pasquim se tornou mais politizado à medida que aumentava a repressão da ditadura, principalmente após a promulgação do ato institucional no 5 que suprimiu o estado de direito. O Pasquim, que foi um dos principais porta-vozes da resistência, viu passar pela sua redação, além dos seus fundadores, como o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro, Sérgio Cabral, nomes como Ziraldo, Millôr, Manoel "Ciribelli" Braga, Miguel Paiva, Prósperi, Claudius,
69
a uma série de organizações e institutos que o acompanharam desde seu exílio
iniciado em Genebra, na Suíça: Idac (Instituto de Açăo Cultural), Ibase (Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e Cecip (Centro de Criaçăo de
Imagem Popular). No Idac, ele trabalhou com o pedagogo Paulo Freire; no
Ibase, atuou com Betinho, o irmăo do Henfil, e no Cecip, foi parceiro de Eduardo
Coutinho. Claudius atuou, também, numa TV alternativa (a Maxambomba).
Autor de vários livros, a maioria deles voltados para temas ligados à educaçăo
e à saúde, ele teve sua obra como cartunista reunida em “Claudius”, livro prefaciado
por Jânio de Freitas e enriquecido com artigos de Millôr Fernandes, Cássio Loredano
e Ferreira Gullar.
No cartum a seguir, o primeiro à esquerda, uma crítica com alusão ao DOPS25,
órgão temido por prender e, nas suas dependências, torturar e até matar presos
políticos. Os valores do evangelho, na defesa dos direitos civis, da infância e contra
o trabalho infantil. A profissão de fé em defesa da vida, através do humor gráfico.
Fortuna, Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa, Carlos Leonam e Sérgio Augusto, e também dos colaboradores eventuais Ruy Castro e Fausto Wolff. 25 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 30 de dezembro de 1924, durante o Estado Novo e mais tarde, relançado no Governo Militar. O órgão, que tinha a função de assegurar e disciplinar a ordem militar no país, foi instituído em 17 de abril de 1928 pela lei nº 2304 que tratava de reorganizar a Polícia do Estado.
70
Figura 4 - O clima de suspeição da época
Fonte: acervo digital do autor
Figura 5 - O trabalho infantil, na visão de Claudius.
Fonte: arquivo CECIP
71
Figura 6 - Claudius e a Polícia Militar.
Fonte: Arquivo CECIP
Figura 7 - A aspiração do cidadão e a repressão.
Fonte: Arquivo CECIP
72
Mas a época de ouro do humor nacional, especialmente no cartum, teve outro
grande nome dentre os cartunistas de origem evangélica: Renato Canini (1936-
2013), ilustrador e cartunista a quem coube “abrasileirar” Zé Carioca, personagem
da Disney, tal como vemos até hoje, nos anos 1970. Gaúcho de Paraí, Rio Grande
do Sul, foi contratado ainda na década de 1950, como desenhista da Secretaria
de Educação e Cultura do Estado, onde produzia para a revista infantil e educativa
intitulada Cacique, enquanto produzia charges e tiras para o jornal Correio do Povo,
para a TV Piratini e para diversas publicações alternativas. Como cristão evangélico,
começou sua carreira, a convite do pastor metodista William Schisler Filho para
ilustrar a revista “Bem-Te-Vi”, da Igreja Metodista, por isso, acabou por vir residir-se
em São Paulo, em 1967. Dois anos depois foi trabalhar na Editora Abril, onde
desenhou e escreveu para a revista “Recreio”. Lá criou o cawboy Kactus Kid e
participou do Projeto Tiras com o indiozinho Tibica. Na editora, colaborou ainda nas
revistas “Pancada, Patota e Mad” e ilustrou mais de cinquenta livros infantis.
Canini dava pistas a respeito da sua fé, nos personagens e histórias que criava:
“O Tibica foi publicado em vários jornais do país. Ele era tinha uma consciência
ecológica: amava a Deus e a natureza”; e certa vez declarou: “O doutor fraude, eu
fiz porque sou evangélico, como contraponto do verdadeiro Doutor Fraude (Freud),
que é ateu”. Quando entrevistado, não escondia: “Eu sou crente mesmo, sabe?”;
“Quero conhecer o que puder sobre Deus cada vez mais”. Gostava dos hinos
tradicionais, e em carta que enviou à Ultimato26 em 2001, disse: “Como alguém que
se criou cantando belos hinos tradicionais, como ‘Quão bondoso amigo é Cristo’,
26 Revista com sede na cidade mineira de Viçosa, na Zona da Mata, foi fundada em 1968 como um tabloide de oito páginas em papel jornal, e é de cultura cristã reformada. Como editora, começou a publicação de livros em 1993, tendo hoje mais de 150 títulos em catálogo.
73
‘Santo, Santo, Santo’ e tantos outros, é com tristeza que tenho acompanhado a
mediocridade dos nossos hinos modernos, com raras exceções”27.
Canini casou-se, com quase 60 anos de idade, com Maria de Lourdes,
professora universitária e que também desenhava. Os dezessete anos de
casamento, segundo ela, foram de muito companheirismo.
A simplicidade e a humildade eram características marcantes da vida e do
trabalho do cartunista: “Todos os desenhistas veneram ele pela grande simplicidade
que ele conseguiu no traço. Em meia dúzia de traços ele resolvia tudo” - comentou
o cartunista Santiago. Luís Fernando Veríssimo declarou: “Sou fã do Canini, do seu
traço fino, diferente e despojado”. O editor do último livro dele, “Pago pra Ver”
(IEL/Corag, 2012), ressaltou a sua humildade: “Ele é genuíno o tempo todo. Embora
seja considerado um dos melhores do mundo no humor, o Canini jamais se gabaria
disso. Porque, na verdade, não se gaba de nada”. Ele era avesso a novidades
tecnológicas e a viagens. Os desenhos dele para Ultimato chegavam pelos Correios,
alguns feitos em papel de rascunho e “tratados” por meio de cortes e cola no papel.
Não gostava nem de viagens curtas. Confessou que nem sequer conheceu o Rio,
palco das histórias de Zé Carioca.
27 Disponível em: <http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/346/morre-o-cartunista-renato-canini> Acesso em: 05 out. 2017.
74
Figura 8 - A glória e o luto, em visões distintas de uma mesma realidade?
Fonte: Arquivo digital do autor
Figura 9 - A luz no fim do túnel - possivelmente uma referência ao projeto – secreto– de desenvolvimento de um artefato atômico pelas Forças Armadas na década de 1980, sob a ótica de Canini.
Fonte: Arquivo digital do autor
75
Figura 10 - A briga do cristão Canini contra o pensamento do ateu Freud, no seu personagem “Dr. Fraude”
Fonte: Arquivo digital do autor
Na arte de Canini, a sua fé era professada na defesa da natureza e das
liberdades civis e na sua crítica ao pai da psicanálise, Sigmund Freud, ateu confesso.
Figura 11 – Exemplos do seu humor – ou mandato cristão - no engajamento ecológico
Fonte: Arquivo digital do autor
76
Outra referência ligada ao humor neste período, digno de registro, foi a de
Cláudio Marra, outro pastor presbiteriano que dedicou muitos anos da sua vida a
dirigir todo o departamento da Editora Abril, na época, a maior publicadora de
Histórias em Quadrinhos de toda a América Latina, embora não propriamente com
conteúdo político de resistência, sendo responsável pela edição de dezenas de
revistas, com milhões de exemplares mensais, tais como toda a linha de Walt Disney,
de Maurício de Souza, bem como as dos super-heróis das gigantes Marvel e DC
Comics. Marra começou sua carreira na Editora Abril, em 1969, como letrista das
publicações Disney e não demorou muito para chegar topo, ao cargo de Chefe de
Redação. Em 1969 começou seus estudos na Faculdade Teológica Batista, de onde
sairia para plantar igrejas na África do Sul. De volta ao país, ainda em 1976, retomou
a carreira nos quadrinhos, tendo permanecido até 1989 –testemunhando muitas das
transformações sofridas pelo setor. Hoje, o pastor Cláudio Marra serve como escritor
e editor da Editora Cultura Cristã oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil 28.
2.2. O cenário para um novo tempo na espiritualidade evangélica
Magali Cunha, no seu “A explosão gospel” revela que o alinhamento das
lideranças evangélicas com os ideais da ditadura, havia provocado uma
desarticulação sem precedentes dos movimentos de juventude protestantes que
acabou por estabelecer uma apatia entre a juventude e que acabou por ser
preenchido nos anos 1970 por organizações paraelesiásticas, que já tinham surgido
28 Disponível em: <http://www.deusnogibi.com.br/entrevistas/claudio-marra/> Acesso em: 13 out. 2017.
77
por volta dos anos 1950 e pelos grupos musicais que surgiram como alternativa para
a atuação da juventude.
Nesse momento, grupos até mesmo dentro das igrejas já tinham adquirido a
capacidade de usar o mesmo artifício de linguagem, do humor, no caso,
moldando sua pregação numa forma mais próxima do público, menos pesada,
menos erudita teologicamente que os sacerdotes que ainda não se davam conta das
mudanças à sua volta, mas totalmente adaptadas e entendidas pelos fiéis, ou pelo
público “não-alcançado”, ou não religioso.
Bordieu enfatiza que
“Em resumo o profeta não é tanto o homem “extraordinário” de que
falava Weber, mas o homem das situações extraordinárias, a respeito
das quais os guardiães da ordem pública não têm nada a dizer, pois
a única linguagem de que dispõem para pensa-las é a do exorcismo.
É pela capacidade de realizar, através de sua pessoa e de seu
discurso como palavras exemplares, o encontro de um significante
que lhe era preexistente, mas somente em estado potencial e
implícito, que o profeta reúne as condições para mobilizar os grupos
e as classes que reconhecem sua linguagem porque nelas se
reconhecem.” (BORDIEU, 2015, p. 75)
Como nas artes da época, de muita efervescência criadora, as igrejas, pelo
surgimento de profetas, de que falava Bordieu, adquiriram novas e surpreendentes
formas de pregação, tirando-a dos púlpitos ou moldando a sua linguagem a partir
deles. Paralelamente à revolução política, as transformações do Brasil da época,
surge uma revolução simbólica. O mesmo autor conclui citando Karl Marx que
“...uma revolução simbólica supõe sempre uma revolução política,
mas a revolução política não basta por si mesma para produzir a
revolução simbólica que é necessária para dar-lhe uma linguagem
78
adequada, condição de uma plena realização: “A tradição de todas
as gerações mortas pesa excessivamente sobre o cérebro dos vivos.”
(BORDIEU, 2015, p. 77)
Ao repensar a linguagem, que antes a segregava na periferia da sociedade,
grupos oriundos das igrejas evangélicas ocupou escolas, teatros, universidades,
cinemas e usando ainda vigorosos recursos e meios tais como bonecos, a música,
o teatro, a dança, as Histórias em Quadrinhos, e etc... Qualquer lugar ou situação,
virou campo santo, lugar de culto, fazendo valer a frase de John Wesley, pregador
inglês: “O mundo é a minha paróquia”.
Como registrou a pesquisadora Magali Cunha na sua obra, grupos de música
marcaram a passagem de uma música litúrgica tradicional a outra mais adequada à
contemporaneidade, com poética e música entendidas como expressões
demoníacas por algumas igrejas e pelo despojamento dos artistas em relação ao
uso de vestimentas e da informalidade da linguagem (CUNHA, 2007, p.81). Essa luta
pelo domínio do modo de exercício da ação religiosa era o que Bordieu nominava.
As igrejas hostilizavam os que classificavam de “rebeldes”, os “hereges”, os
“mundanos”, enfim tanto quanto se beneficiavam deles, pelos frutos, na forma de
novos conversos que vinham como fruto de uma pregação que fugia ao “normal” e
que reconheciam sua linguagem porque nelas se reconheciam, menos erudita e mais
prática, menos formal e mais simples e coloquial.
Algumas não conseguiram capitanear esse benefício e, sem espaço no campo
onde atuavam, abriram novas agremiações ou associações, missões, igrejas...onde
podiam viver esse novo modo de fé, mas é fato que já no final ali, nesses anos de
79
“arranque” do movimento evangélico, o embrião de uma dessecularização que viria
a surgir, mais presentemente se fazia ver, como aponta Lísias Nogueira Negrão:
As análises de Weber foram válidas para um período encerrado da
história do Ocidente: o apogeu da racionalidade num mundo
desencantado, em que o sagrado se exilou. Mais recentemente
vivemos o período do chamado `retorno do sagrado' ou `revanche de
Deus', em que este mundo, de alguma forma, se reencanta. Mesmo
se considerarmos a realidade do Terceiro Mundo em geral e do Brasil
em particular, em que o sagrado persistiu, é inegável que a religião
aí se revitalizou, paralelamente ao reencantamento primeiro-
mundista. (NEGRÃO, 1994, p. 134).
A partir desse momento da vida nacional, especialmente aquele do ambiente
eclesiástico com novas visões de ser igreja, que se dividem e subdividem em vários
grupos de interesses, classes, arte e outros itens surgiram. Se na sociedade civil as
transformações ocorreram, ainda mais no espaço dinâmico da religião. Esses eram
o tipo de conflitos que Bordieu chama de “uma forma particular da luta pelo
monopólio”, a oposição entre a ortodoxia e a heresia que se estabelece entre os
sábios, ou teólogos, no caso e a elite intelectual da denominação (BORDIEU 2005,
p. 63). No seu Protestantismo e modernidade no Brasil, Valdinei Ferreira citando
Bordieu, ressalta que para ele: “as vanguardas representam dessacralizações
sacralizantes que nunca escandalizam senão os crentes” (FERREIRA, 2010, p. 228).
Grupos que queriam mudanças nas igrejas ocupavam espaços de vanguarda, nem
sempre fáceis de perceber pelos membros das igrejas pouco afeitos às questões e
discussões teológicas. E nem sempre espaços políticos ideológicos, como vimos a
partir desse período. Cunha nomina no seu “A explosão gospel” (2007), grupos – em
várias áreas da cultura - que deram voz aos membros que ansiavam por uma
mudança - e não apenas os grupos pentecostais e neopentecostais que surgiam e
80
que surgiriam mais adiante, simplesmente por terem percebido os anseios de uma
imensa massa sedenta pela sacralização da sua vida cotidiana em meio à
polarização ideológica que pouco, ou nada dizia respeito à sua sede por um Deus
“amigo, e próximo” e não tão alienado das mazelas sociais do país.
No ocidente, mudanças de perspectivas aconteceram em um ritmo intenso e
vertiginoso a partir da segunda metade do século XX, com as formas de vida
contemporânea, a se assemelham ao líquido, metáfora usada por Bauman no seu
conceito de “modernidade líquida” para caracterizar esse novo tempo, pela
vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a mesma identidade por muito tempo,
o que reforça um estado temporário e frágil das relações. Segundo ele, na
modernidade sólida, período anterior a esse atual, os conceitos, ideias e estruturas
sociais eram mais rígidos e inflexíveis. O mundo tinha mais certezas. A passagem
de uma modernidade a outra acarretou mudanças em todos os aspectos da vida. Ele
entende que a nossa sociedade teve uma maior emancipação em relação às
gerações anteriores. A sensação de liberdade individual foi atingida e todos podem
se considerar mais livres para agir conforme seus desejos. Mas essa liberdade não
garante necessariamente um estado de satisfação. Ela também exige uma
responsabilidade por esses atos e joga aos indivíduos a responsabilidade pelos seus
problemas. O que os libertava, também os deixava mais inseguros. Isso é provado
no vácuo deixado quando a ditadura, ou o regime de exceção que uniu o Brasil todo
num projeto político que se resumia a nada mais que a esperança de que, ao
acabarem com o projeto militar de poder, o país, o mundo, a vida seria outra. Ao
acabar o alvo-comum contra o qual todos lutavam, o mundo seria diferente. Nada
mais enganador, mostrou-se a realidade quando o inimigo comum deixou de sê-lo,
mesmo ainda antes que o primeiro governante civil fosse empossado na presidência,
81
pois como afirmavam os cartunistas e chargistas do período: “a piada perdeu sua
graça pois até o governo já critica o governo”.
Na canção “Cálice”, uma escrita e originalmente interpretada pelos
compositores brasileiros Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, em que este último
havia composto o refrão "Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue",
numa óbvia alusão à agonia de Jesus Cristo no Calvário, tendo a ambiguidade (cálice
/ cale-se) sido imediatamente percebida por seu parceiro. Esse elaborado jogo de
palavras tinha a intenção de despistar a censura da ditadura militar brasileira para a
música, mas não tendo conseguido, puderam lançá-la apenas em 1978, e nela, o
esvaziamento do poder da repressão e do arbítrio já era registrada em versos:
“De muito gorda a porca já não anda,
De muito usada a faca já não corta”
No final do período ditatorial, a julgar pela temática existencial que começava a
dominar as TVs nas suas novelas populares, as músicas, as peças de teatro e o
cinema e nos Quadrinhos, a grande massa da população descobrira afinal, que tinha
um corpo, uma alma e que era afinal, de carne e osso e havia uma outra parte nessa
história que precisava ser cuidada e que não era apenas a da nação.
Essa era a época da série televisiva Malu Mulher (escrita e dirigida por Daniel
Filho estreada em 24 de maio de 1979 pelo canal quase hegemônico na audiência
de lares do país, a Rede Globo), que retratava a condição da mulher brasileira no
final dos anos 1970 através do cotidiano de Malu, uma personagem que encarnava
temas considerados tabu, como o da mulher independente, (uma socióloga paulista
de classe média), divorciada e mãe de uma menina de 12 anos, num enredo mais
do que atual para a época, embora tivesse negada a existência a não ser pela
82
maneira superficial e preconceituosa com que era tratada nos púlpitos da igreja
protestante, tradicional ou pentecostal.
Nos Quadrinhos, excelente meio de se “medir” o espírito de um povo, ou de ler-
se a cultura de massa (Álvaro de Moya, ex-professor de História em Quadrinhos da
USP, aponta na sua obra “Shazan, que mais de 70% das HQ do período da ditadura
em 1970, tinham como o terror como temática); mas os enredos começavam a mudar
– da política para os dramas existênciais.
O artista Angeli (Arnaldo Angeli Filho, São Paulo, 1956), por exemplo,
cartunista do jornal Folha de São Paulo na época, lança uma série de personagens
que encarnavam a nova realidade e ambiente do cidadão-comum: Rê Bordosa
(1984), uma mulher emancipada, alcoólatra, ninfomaníaca, desbocada e desprovida
de bom senso, cujas histórias giram em torno de suas manias e desejos e cuja
personalidade podia ser resumida na sua profissão de fé: “do cristianismo gosto
apenas de duas coisas: do vinho e do pecado”; Meia-oito (1980), um quarentão
saudosista da época da luta contra a ditadura (numa referência ao ano de 1968 e
das convulsões sociais no planeta) que o teria deixado órfão e sem bandeiras
algumas pelo que lutar e que encarnava os temores e as incertezas de uma
democracia que dava os primeiros passos para voltar a andar. Seu fiel seguidor na
causa revolucionária é Nanico, um parceiro homossexual enrustido, um dos
primeiros personagens a tratar do tema, condenadíssimo e negado pela sociedade
e pela religião, mais ainda.
Glauco Villas Boas (1957-2010), que assinava simplesmente Glauco, outro
cartunista também surgido no jornal Folha de São Paulo, lança em 1981, o Geraldão,
um consumidor inveterado e um hipocondríaco de uns 30 anos, solteiro que mora
83
com a mãe - com quem tem uma relação neurótica- e continuou virgem até o fim da
sua publicação, na morte prematura do seu autor. Geraldão bebe, fuma muito, vive
atacando a geladeira e toma todos os remédios que vê pela frente.
Os filmes do cinema nacional com uma temática existencial, muito além da
crítica social, tema presente em toda essa produção, surgem com sucesso de público
e crítica, como “A Hora da Estrela” (1985, com roteiro de Alfredo Oroz, Suzana
Amaral e Clarice Lispector), um romance sobre uma migrante nordestina
semianalfabeta e o seu romance com um também imigrante e cuja protagonista foi
ganhadora do Urso de Prata, de Berlin; “Eles Não Usam Black-tie” (1980, com roteiro
de Gianfrancesco Guarnieri e Leon Hirszman), sobre um jovem operário Tião e sua
namorada Maria que se casam ao saber que a moça está grávida, um movimento
grevista e um pai, um velho militante sindical que passou três anos na cadeia durante
o regime militar e que, apesar da política, tem o drama familiar/existencial como
centro. Foi premiadíssimo em vários festivais internacionais, e tantos outros a
retratarem o período e o clima da época.
Na música, “Menino do Rio” e “Lua e Estrela” (Caetano Veloso, 1980 e 1981);
“Pro dia Nascer Feliz” (Roberto Frejat, 1982); “Meu Bem Querer” (Djavan, 1980) e
tantos outros sucessos, trocavam a “luta” política, pela paixão, o amor, os conflitos e
o estar bem consigo mesmo e a revelar uma tendência.
Nas igrejas, músicas aproximam-se da cultura nacional, nos ritmos e
aproveitam-se do momento de desencanto e, abandono do engajamento. Aqui, o
humor, não para fazer rir, mas como crítica, na ironia, no questionamento das
“verdades”, e na leveza do discurso. Ou como bem Rubem Alves afirma no prefácio
do seu “O Enigma da Religião”:
84
“Não basta o saber; é preciso o sabor. É preciso que as palavras
sejam belas, para seduzir ...Criei coragem também para dizer o riso.
Ele sempre esteve em mim. Mas a seriedade do mundo da ciência
não permite brincadeiras. Por isso que lhe falta o poder para exorcizar
demônios. Tudo sério, tudo triste. Não, não me enganei ...Quem fica
triste pode sempre ficar alegre. Mas no mundo da ciência também
isso é proibido. Há de se cultivar a objetividade, uma fala vazia de
lágrimas e de risos, aquele que escreve sempre ausente. Mudei-me
para outro lugar. Acontece que eu também sou parte da realidade,
com minhas alegrias e tristezas, e o meu riso são as cócegas com
que percorro cavalos arreados e exames de doutoramento. Falta de
seriedade? Se o riso faz correr o medo, porque não? Com frequência
o humor entorta a arma. Os dominadores ficam tranquilos quando
veem o medo e a tristeza: sinais de que moram na alma dos
dominados...
Beleza e riso são o que penso sobre a religião (...)
Quanto ao riso, lembro-me da afirmação Reinhold Nebuhr, de que o
riso é o início da oração. Só Deus tem o direito de se levar a sério.
Quem compreende isso tem a liberdade não só de rir dos outros que
se levam a sério, como também rir de si mesmo. E quem é capaz de
rir de si mesmo começou a andar no caminho da bondade e da
mansidão. Os sérios estão condenados a ser inquisidores.
Medito sobre a religião como um caminho para o riso e para a beleza
...Mas são estas coisas que deixei escondidas, nas entrelinhas
quando escrevi este livro. Se o leitor tiver paciência e souber escutar,
é bem possível que ele ouça risos e veja invocações de beleza no
lugar onde elas se escondem...” (ALVES, 2007, p.7).
Dar sabor ao saber, tudo sério, triste, era o que se pretendia no âmbito da
religião, especialmente e, no caso da época em estudo, aquela ideológica e
teologicamente correta segundo o tipo ideal criado por Alves, à moda weberiana,
rotulado de "protestantismo da reta doutrina" – tradicional ou não – mais pelos leigos
nesta, tradicional, ou pelas denominações mais novas ou pelo movimento
neopentecostal, já mais notado na década de 1980. Afinal os sacerdotes, ou
85
dominadores, ou mantenedores da constância ou da rotina ficam tranquilos quando
veem o medo e a tristeza, e a sociedade já não era a mesma.
Sendo o humor, uma linguagem mais afeita à crítica, mais revolucionária, é
normal que tenha sempre sido vista como perigosa para a manutenção da ordem. E
a manutenção da ordem social, na ótica de Max Weber, é papel da religião, a primeira
das suas funções. Bourdieu reforça a ideia e afirma que
“Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre
uma função de conservação da ordem social contribuindo, nos
termos de sua própria linguagem, para a ‘legitimação’ do poder dos
‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos dominados’” (BORDIEU,
2015, pg.32)
Mas ao final dos anos de chumbo da ditadura, a linguagem da pregação e da
propaganda religiosa começa a alterar-se e a sair dos púlpitos e já não estava presa
aos limites do que definiam por sagrado. Sagrado era alcançar pessoas e atendê-
las no seu sofrer, no modo, no estilo e na linguagem que melhor essas entendessem
e sobretudo, com o riso, a ironia, capaz de “lerem” a vida e os desafios que lhes
trazia. Às pessoas, bastava desejarem o Eterno, que era incentivado, não a
mudarem de roupa, de agremiação ou de linguagem porque ao contrário do que
enfatizava a pregação “ortodoxa”, o apelo era agora “Deus o chama como está”. Era
a leveza da religião na pregação que fugia aos padrões.
Em 1960, Robert Escarpit, citado por Minois, afirma
A religião ainda parece indene. Esperemos, por aqueles que se
apagam a ela, que isso não dure muito, pois, senão ela morrerá. Em
nosso mundo, tenso até o ponto de ruptura, não há mais nada que
possa sobreviver a muita seriedade. O humor é o único remédio que
que distende os nervos do mundo sem adormecê-lo, que lhe dá
86
liberdade de espírito sem torna-lo louco e põe nas mãos dos homens,
sem quebrá-las, o peso de seu próprio destino (MINOIS. 2003; p.572)
A sociedade, concluiria uma parcela inovadora de fiéis evangélicos, desejava
Deus, mas rejeitava a sua “embalagem” dos seus representantes – fossem eles
igrejas ou religiosos – com a sua carranca e peso. Afinal, nas décadas seguintes,
como afirma Minois
Descobre-se que Deus é um grande humorista, que ele sabe rir e
aprecia os que riam ao seu redor. Basta do Deus terrível e vingador:
o Deus new-look não somente sabe brincar como chega até a
gargalhar. É o testemunho de Pierre Perret: “Se o bom Deus existe,
espero que ele gargalhe, que se dobre em dois, ouvindo minhas
canções. Se Deus não tem humor, onde vamos parar, eu vos
pergunto?”. Deus tem humor, isso é confirmado por Ami Bouganin em
O riso de Deus. E, tal Pai, tal Filho: Jesus não é desprovido do
espírito, como o demonstra Didier Decoin em Jesus, o Deus que ria
(MINOIS, 2003, p. 572)
Estava dada a largada pela conquista de espaço e na direção da fome da alma
do povo e da defesa da fé, e não só pela utilização de espaços antes impossíveis da
mídia. Se o rádio já era usado pelas igrejas adventistas, pentecostais e
especialmente as independentes desde 1940, a utilização desse meio só se
popularizou mais tarde, quando já em 1980, estimativas calculavam que 10% das
emissoras de todo o país eram religiosas (GOMES, 2011). A imprensa – jornais e
revistas evangélicas de grande circulação, surgem algumas com venda em bancas
seculares, e a TV mais fortemente, no final dos anos 1970 - e a indústria do “gospel”,
ou “do fenômeno como constituinte de um novo modo de vida evangélico” (CUNHA,
2007, p.11) viria na sequência. O que mudou primeiro, foi a linguagem. E a postura,
87
mais leve, mais solta, que manifestava uma divindade mais próxima, menos
carrancuda e distante da criatura ...enfim, mais brasileira, mais culturalmente
contextualizada naquele período de existência do regime de exceção e de arbítrio,
que pôs o movimento evangélico contra a parede, forçando as mudanças. E os frutos
destes novos ventos, logo soprariam sobre o país. E sobre o avanço da fé
evangélica. Minois pergunta “Se ele é, de fato, Deus do amor, deve ser também Deus
do humor. Deus é humorista ou, não é?”.29. O autor já havia avaliado que o
monoteísmo estrito exclui o riso do mundo divino. E questiona “do que poderia rir um
Ser todo-poderoso, perfeito, que se basta a si mesmo, sabe tudo, vê tudo e pode
tudo?”30
Como veremos a seguir, o Todo poderoso, afinal, se revelou no Brasil, na sua
vertente mais bem-humorada, rindo disso tudo.
29 MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p.573 30 Idem. p.111
88
3 - O humor na propaganda e espiritualidade evangélica - inovação
na vivência do sagrado
3.1. A contracultura cristã evangélica emerge lá fora
O final dos anos 1950, e chegando ao seu apogeu com o movimento hippie na
década de 1970, uma onda de contestação e de questionamento dos valores e
padrões ocidentais, e de comportamentos da cultura dominante mexe com a
sociedade. Mesmo possuindo um caráter pacífico, o movimento de contestação
atingiu não somente a Europa, como chegou aos Estados Unidos, e ficou conhecido,
numa leitura sociológica, como contracultura. Ele possuía um teor social, artístico,
filosófico e cultural na educação, na política, na economia. Esse movimento, acaba
por ficar associado a uma cultura marginal, underground e alternativa.
Jovens intelectuais inspiravam a valorização de ideais como a simplicidade, o
amor, a natureza, como forma de tornar a liberdade, a sua mais forte característica.
Alertavam que o engajamento contra o consumismo os levaria à uma libertação do
espírito, de luta pela paz e ainda, a valorização das minorias e levantando-se contra
os valores capitalistas impostos e do conservadorismo, eles propunham uma vida
livre nos relacionamentos, amoroso ou de natureza sexual.
Essa inovação de valores chegou a valer-se de um questionamento da
espiritualidade tutelada, institucionalizada, “hipócrita” judaico-cristã e popularizou-se
religiões e a filosofia orientais, dentre elas, o hinduísmo, o budismo, a meditação
transcendental e outras.
O slogan “paz e amor” (peace and love) ou ainda, “faça amor, não faça guerra”
(make love not war), trazia na proposta, uma vida de valorização e prática
comunitária e pacifista, e também de igualdade e o fim das injustiças.
89
Deixaram eles a segurança confortável dos seus lares para viverem em
sociedades mais “abertas” (naturistas e de valorização da natureza), e chegaram a
ressuscitar o estilo de vida nômade.
Contra os “modismos” impostos pela indústria cultura, os hippies usavam
roupas despojadas, sandálias, roupas multicoloridas e rasgadas, e os cabelos
compridos para ambos os sexos.
Mesmo tendo origem nos Estados Unidos, a contracultura se disseminou
rapidamente por países da Europa e a América Latina.
Mas foi um movimento cristão, nascido como uma reação ao movimento Hippie:
o Jesus Movement. Usando o Rock, faz surgir a Música Cristã Contemporânea
(CCM), que contava com bandas como The Second Chapter of Acts, A Band Called
David, All Saved, Freak Band, Petra, Love Song, Servant, Stryper, Resurrection
Band, , The Joyful Noise,... e a promover músicos como Barry McGuire, o guitarrista
Phil Keaggy, Dion Di Mucci, Randy Stonehill, Randy Matthews, Paul Stookey (ex-
integrante da banda de folk Peter, Paul and Mary), Andraé Crouch (and The
Disciples), Keith Green, and Larry Norman, dentre outros.
Muitos se converteram à fé cristã, mas outros, sem abrirem mão do modo
alternativo de vida, chegaram a dar vida à movimentos que juntavam a cultura hippie
à espiritualidade, como foi o caso dos Meninos de Deus e outros.
A influência do Jesus Movement foi patente quando da chegada de alguns
missionários vindos dos EUA e da Alemanha, que inspiraram uma nova concepção
de música cristã. E a não ser no aspecto musical, mais contemporâneo, nada mais
provocou, e ainda assim, apenas no âmbito das igrejas evangélicas. Mas foram nos
anos 1970, que grupos musicais e bandas apresentaram mudanças musicais, tais
90
como ritmos daquela atualidade e mais afeitos à cultura e ritmos brasileiros, e
comportamentais dentro do Protestantismo brasileiro, que ganhariam expressão
depois do fim da ditadura militar, em meados de 1980 com a instituição de um
mercado de consumo de música que foi denominada de “gospel” por aqui (o termo
"gospel" aqui no país, é o que é ainda hoje chamada de "Música Cristã
Contemporânea" nos EUA).
3.2. O imperativo missionário protestante brasileiro e os desafios da sua
cultura
Uma das grandes características da fé protestante, reformada ou como a
chamamos por aqui, evangélica, sempre foi o proselitismo e, para isso, influenciar
ou interagir com a cultura sempre foi um desafio. Do movimento dos primeiros
protestantes, seja ele de matriz imigratória ou de missão, a alcançar a grande massa,
os evangélicos investiram na educação, seja pela criação de escolas, colégios, seja
pelo contato pessoal, onde não se dependesse só da ação do clero, nas igrejas como
no esforço pessoal de cada membro de igreja.
Se Weber (2001) já havia notado a grande marca da fé de origem reformada –
que trocou a emoção pela razão – seja pela exigência da leitura dos textos bíblicos,
seja pela proposta de se compreender, mais do que obedecer, chegando a propor
que para o protestantismo, “todos os meios mágicos na procura da salvação (seriam
para essa corrente) como superstição e sacrilégio”31, no Brasil o imperativo da
pregação enfrentou desafios novos, até que finalmente obtivessem eles o sucesso
que os marcaria nas décadas seguintes aos anos 1960.
31 (WEBER, 2001, p. 93-94)
91
Curiosamente, o humor já fazia parte da cultura tupiniquim e para isso, as
escolas teológicas, seminários e onde se formassem líderes, pareciam
hermeticamente fechados a isso. É certo que não procuravam saber o papel do riso
na comunicação, especialmente por aqui. Ensinava-se a pregar nos púlpitos, o dom
da oratória era buscado, a erudição, não só bíblica, mas acadêmica, mas não o
“rebaixar-se”, falar a linguagem do povo simples, que sempre fez a maioria do povo
e, no que toca ao nosso estudo, fazer piada com o que não se pode mexer, o
Sagrado, o Deus da Bíblia era algo descartado.
Segundo notou Minois, “a invasão da linguagem por termos coloquiais,
populares e chulos não deixa de inquietar a elite social e intelectual. Falar com os
patifes é tornar-se igualmente patife, é favorecer a infiltração da ralé na melhor
sociedade” e acrescenta “quando a burguesia começa a falar a língua do povo, a
subversão social espreita” (MINOIS, 2003, p. 409 e p. 410). É totalmente aceito, que
há um papel social no riso, mas é certo que naquela época, a igreja evangélica não
se apercebia disso.
Já Jean de Léry, tido como um dos primeiros missionários calvinistas enviados
às terras tupiniquins, não só já havia constatado o humor dos nativos, quando da sua
vinda ao Brasil do século XVI, em 1556, para se juntar com o propósito evangelizador
na “França Antártica”, como ainda registrou o fato no seu História de uma viagem
feita ao Brasil. Ele afirma que para sua surpresa, chegando de uma Europa séria e
fanática, foi constatar que para os índios naturais da terra, o rir era coisa normal e
feito à toda hora. É um “povo que foge à melancolia”, e acrescenta: “eles detestam
os taciturnos, mesquinhos e melancólicos”. O missionário europeu ainda indaga no
seu relato se este estado natural deles seria de uma hilaridade permanente? “Eles
só fazem rir”. Se uma piroga virasse, o que fatalmente faria desesperar um europeu,
92
eles “começavam a rir tão alto que nós os vemos e ouvimos soprar e troar sobre a
água como uma tropa de soldados”32. Minois cita o relato e descreve mais uma
experiência de Léry
Uma vez, Jean de Léry julga que se preparavam para comê-lo, mas
era um engano, que suscita grandes gargalhadas. Outra vez, os
índios apressam-se em matar e comer uma mulher; Jean de Léry,
caridoso, propõe-se a batizá-la, mas ela lhe ri na cara. “ela rindo de
novo, foi golpeada e morreu desta maneira”. Foi uma alegre refeição.
Será que o autor tinha consciência da incongruência do seu gesto?
Jean de Léry fica perplexo. (MINOIS, 2003, p. 294)
Em terras não só desta vertente cabocla, mestiça, do humor do índio, com a
malícia do africano importado, de Macunaímas, de Jecas Tatu, é certo que a sisudez
protestante não tinha como alcançar as ruas com a pregação racional e fria dos
europeus de Genebra ou das Europas. Era preciso mais. Era preciso sair-se dos
limites dos templos e falar a língua do povo, tocar a sua cultura, uma cultura em
ebulição, em franca resistência.
O humor, desde sempre parece ser mesmo marca da cultura nacional fazendo
essa ligação – pelo oposto, como que de trincheira – à condição do invadido ou
colonizado, ou até mesmo, melhor aplicado, do explorado pela potência imperialista,
pelos “de fora”, e naqueles tempos em que o descompasso do que a ditadura vivia
e o que o cidadão ansiava era patente. Na necessidade de se resistir é que o humor
talvez se tenha refinado naquele momento e o movimento evangélico, no afã de
cumprir com a sua vocação proselitista, desejava alcançar a sociedade e não seria
com uma linguagem importada, distante que conseguiria atingir o seu objetivo. Junto
com o desconforto de uma geração inteira de fiéis diante de uma sociedade que a
32 J.DE LÉRY, Histoire d’un voyage em terre de Brésil. Le Livre de Poche: ed. F. Lestringant, 1994, p.300
93
via como alienígena na linguagem e alienada no posicionamento, precisaria ousar.
Talvez, sem a crise, teria se acomodado, mas os tempos exigiam-lhe outra postura.
E para isso, nem talento é preciso.
Henfil33, o grande nome do humor e do cartum nacional, defende que todo
mundo tem talento, mas ele é sempre fruto da necessidade, o que define como
humor político. Ele afirma
Você não sabe desenhar nada. Mas um dia você vê um incêndio e lá
em cima tem uma pessoa desesperada e esta pessoa é analfabeta.
Você tem que avisá-la que os bombeiros já estão chegando para
salvá-la, para que ela não pule. Não adianta escrever no chão, porque
ela não sabe ler. Tem que desenhar o que puder. O outro não
entende. Aí você vai mudando o “desenho” com a ajuda do outro lá
em cima. Muda, cria, até ele entender. Aí está o seu desenho.
(HENFIL / SOUZA, 1985, p.89)
O consagrado autor, ressalta ainda o poder da linguagem do humor, contra o
poder - e até contra a censura (mesmo que aplicado ao desenho, à arte gráfica) -
que para ele moldou o modo de ser do brasileiro
O humor gráfico tem uma coisa interessante, ele marca muito! Você
quando lê um artigo e gosta, você pode lê-lo mais três a quatro vezes.
Quando gosta de uma música você pode escutá-la mil vezes. Você
pode ver mil vezes o mesmo gol. Já o desenho de humor, a coisa
gráfica, você só vê uma vez. (Mata) na primeira. (HENFIL / SOUZA,
1985, p.76 e 77)
33 Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil (1944 — 1988), foi um cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro, Henfil criou em 1970 a revista Fradim, que tinha como marca registrada o desenho humorístico, crítico e satírico, com personagens tipicamente brasileiros. Trabalhou também com cinema, teatro, televisão e literatura, mas ficou marcado mesmo por sua atuação nos movimentos sociais e políticos brasileiros.
94
Parece lógico que aí está a epistemologia do humor e não apenas gráfico. A
necessidade de se alcançar o outro, o receptor de uma mensagem, faz o humor
entrar em cena. Ele aliás, separa as coisas, reduzindo a sua própria capacidade de
desenhar. Ele afirma
O problema é que eu nunca me preocupei seriamente com o
desenho. Até hoje uso o mesmo papel do primeiro desenho, ou seja,
qualquer um. O que me mobiliza é o que eu tenho de contar. O
desenho vem atrás da ideia, ele é o espelho da ideia. Se eu não tenho
uma ideia eu não formo imagens, eu não consigo desenhar nada.
Acho que é o mesmo caso do Veríssimo, que não sabe desenhar
nada, mas que tem muito o que dizer. Aí criou um desenho pessoal
feito uma assinatura. E aí você vira uma escola, um caminho.
Toda vez que se discute isto, eu me lembro de uma fábula. Aquela
do cachorro novo que ficava girando e correndo atrás do rabo,
tentando mordê-lo. Chega um cachorro velho e pergunta porque ele
fazia aquilo. O cachorrinho explicou que haviam contado pra ele que
o rabo era a felicidade e por isso ele queria pegar o rabo. O cachorro
velho disse então para ele que ele parasse de girar e que saísse
andando, sempre em frente. O cachorrinho saiu andando e viu,
deslumbrado, que a felicidade vinha atrás dele. Pô, bote uma ideia na
cabeça que o desenho vem atrás. (HENFIL / SOUZA, 1985, p.88)
O que Henfil dizia era talvez, que a expressão artística, ou qualquer que fosse
ela, segue o que se pretende dizer, a ideia, a proposta, a ...pregação. E se na
América do Norte a pregação renovara a linguagem, no Brasil, especialmente e mais
ainda, não seria diferente. E o humor poderia ser, como cremos nesta pesquisa, ser
utilizada contra a heresia, a impiedade, e até contra as próprias incongruências da
religião, como uma arma de dois gumes e destruir a ideia que há um divórcio entre
o riso e a fé.
95
3.3. Os ministérios paraeclesiásticos juvenis – o novo sopro de ar do humor na espiritualidade evangélica
Essa onda de renovação estética das artes, não apenas na música, não ficou
aí, nos movimentos cristãos evangélicos ou de matriz reformada da América. No
Brasil, ela acabou por influenciar e a interagir nas propostas de origem pentecostal
que já estavam aqui desde os anos 1950 a 1960, quando da sua primeira leva que
se aproveitou da concentração populacional das cidades, ligada ao êxodo rural. Na
América, esse movimento de contracultura já havia incendiado as igrejas e
movimentos de alcance da juventude, incorporando estrategicamente, um linguagem
mais simples, o humor e a descontração na vivência da fé. Magali Cunha, cita o caso
da música, quando os pentecostais romperam com a tradição de uma hinologia
protestante e
introduziram ritmos e estilos mais populares nas canções, incluíram
instrumentos de percussão e sopro no acompanhamento e
compuseram pequenas canções com melodia e letra simples para
serem cantadas nos cultos - algo muito próximo do que seria mais
tarde popularizado entre os evangélicos como "carinhos". A não-
aceitação das igrejas do PHM ao pentecostalismo refletia-se na
resistência em acompanhar o novo modo de cantar nos cultos e na
manutenção do privilégio à hinódia tradicional. Mas foi a renovação
musical empreendida pela prática das organizações
paraeclesiásticas nos anos 50 e 60, com a introdução dos "carinhos",
que veio a alterar esse quadro e abrir caminho para a popularização
da música religiosa que atingiria todo o campo protestante a partir de
então. (CUNHA, 2004, pg. 126)
Esse novo modo de vivência e espiritualidade menos formal, que nos
movimentos pentecostais não fica restrito à periferia das cidades, que é como ficou
patente por anos, com a pecha de uma “fé de gente simples”, mas foi “retocada”,
96
aprimorada em qualidade estética, no bojo de organizações paraeclesiásticas34, que
aqui se estabeleceram, a partir dos anos de 1950 e 1960, que buscavam alcançar
os nossos jovens e adolescentes.
Talvez, pela ausência do peso denominacional, suas estruturas de poder, a
responsabilidade da manutenção do capital simbólico, foi notória a contribuição para
uma nova cultura dentro das igrejas. Líderes que se formaram nos acampamentos,
ou nos seus institutos bíblicos, eram reconhecidos como mais versáteis e adaptáveis
às mudanças e, não poucos, foram conhecidos pelo seu bom-humor e sua
criatividade.
As mais importantes dessas organizações, vieram dos Estados Unidos:
Organização Palavra da Vida, a Mocidade Para Cristo, A Cruzada Estudantil e
Profissional para Cristo e o Serviço de Evangelização para a América Latina (SEPAL)
e a Aliança Bíblica Universitária – ABU e sua vertente secundarista, a ABS. Outros,
nasceram como fruto já desses grupos, e como resultado da inspiração que
trouxeram às igrejas evangélicas, tal como os Jovens da Verdade, nascidos como
uma missão evangélica, brasileira e autóctone, dentro do colégio José Manuel da
Conceição, uma instituição da histórica denominação presbiteriana.
Basicamente, utilizaram-se de estratégias que incluíam a realização de retiros
espirituais (os acampamentos, instituto bem popular na América do Norte),
congressos juvenis, reuniões de estudo e campanhas de alcance – ou evangelismo
- em espaços públicos, algo ainda hoje, não comum nas igrejas, que preferem
34 Palavra que vem de eclesia, (igreja) e o prefixo [par(a)-], do grego “pará”: junto de; ao lado de - e está relacionada a atividades que coexistem com o ministério eclesiástico. Sua característica é conectar pessoas com a fé, evangelizar, ou fazer prosélitos, mas não têm por objetivo rivalizar-se às igrejas e denominações, apesar de organizarem-se com independência em relação a elas. Buscam levar o Evangelho para cultura sem levar a igreja-instituição, a estrutura, apesar de incentivarem o novo fiel a buscarem-na e a ela se integrarem. Apesar a independência, vêm-se como cooperadores, como braços complementares à obra das igrejas e não concorrentes.
97
convidar pessoas às suas reuniões e cultos e lá, apresentar-lhes o evangelho. Tais
grupos, utilizavam na sua abordagem, apresentar a sua pregação, em lugares
inusitados tais como praças, ginásios, escolas, teatros, e até em igrejas – mas de
uma forma não usual – sempre com atuação musical, teatro, pantomimas, bonecos,
... Alguns deles chegaram a fundar institutos bíblicos ou seminários teológicos que
buscavam formar líderes com uma visão bem mais arrojada, ou descolada das
estratégias tradicionais de evangelismo ou para servirem nas suas igrejas locais de
origem.
Sobre esses movimentos, Nelson Bomilcar, músico e teólogo e ex-presidente
da Aliança Bíblica Secundarista, ele mesmo influenciado por anos de atuação num
grupo de treinamento de líderes, que usava a música, os Vencedores por Cristo de
que falaremos mais tarde, afirmou que estes “movimentos trouxeram uma lufada de
ar num período difícil da vida nacional, do qual as igrejas não estavam isentas”35
A Organização Palavra da Vida, fundada em 1957, em Atibaia-SP, por
missionários que vieram ao Brasil trabalhar entre os índios em 1952, com a criação
de um acampamento para impactar a vida de jovens com o evangelho. Em 1963,
inauguraram a Estância Palavra da Vida para também receber famílias. Em 1965,
seus fundadores, Haroldo Reimer e Ary Bollback, inauguram o Instituto Bíblico
Palavra da Vida que influenciou definitivamente gerações de jovens. Apesar de
oferecerem espaços de convivência e estratégias de evangelização inovadoras entre
as igrejas, eram muito tradicionais, inclusive nas artes e rigorosos para com o
vestuário e a aparência dos jovens.
35 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
98
Sobre esse tradicionalismo que era a marca do crente tradicional, Magali Cunha
afirma que
Os líderes dessas organizações eram apresentados e vistos como cristãos-modelo, não
apenas na conduta moral, mas na aparência - o vestir, o corte do cabelo, a postura do corpo,
eram baseados no padrão estadunidense -, e disseminavam uma beleza visual que deveria
servir de modelo para os jovens que aspiravam a atingir aquele estágio de consagração e
fidelidade a Deus (CUNHA, 2004, pg 124).
Tendo origem nesta organização, surgiu mais tarde, de maneira inovadora, já
nos meados dos anos 1970 o grupo Elo e a sua editora, que fugia e muito desses
padrões estéticos, incluindo no seu repertório, ritmos mais contemporâneos e com a
sua revista, chegaram a lançar as primeiras histórias em quadrinhos de propaganda
religiosa-evangélica do país, dos quais falaremos mais tarde.
Também no final da década de 50, cristãos de diversos países, ligados a
movimentos da Comunidade Internacional dos Estudantes Evangélicos (IFES, na
sigla em inglês), estimularam o surgimento de movimentos estudantis evangélicos
na América Latina. Robert Young e Ruth Siemens foram os pioneiros no Brasil em
1957, despertando os estudantes brasileiros a levarem a mensagem de Cristo ao
meio universitário. Surgiu então a ABU – Aliança Bíblica Universitária e na
sequência, a ABS – Aliança Bíblica Secundarista, movimento onde Nelson Bomilcar
iria atuar como seu presidente por anos.
Um outro desses movimentos, a Mocidade para Cristo, era a versão brasileira
do Youth For Christ, surgida nos Estados Unidos, como uma iniciativa espontâneas
de igrejas que promoviam concentrações evangelísticas, até que formalizaram o seu
nascimento, tendo à frente, Dr. Torrey Johnson e tendo como primeiro obreiro, que
99
é como chamam nas igrejas evangélicas, um pregador novato, o jovem Billy Graham.
Em 1947, surgem por aqui seus primeiros missionários, mas foi somente em 1954,
é que chegam para a fundação do movimento no país, o casal Paul e Jane Overholt,
consolidando a sua atuação nos esportes, nas conferências, na produção de
literatura e no trabalho com grupos musicais. Em 1955, reuniram cerca de 35.000
pessoas numa grande conferência, no estádio do Pacaembu, o maior público da
época em todo o mundo para este fim36. Além do seu trabalho nos esportes,
treinamentos, teatros, shows, congressos e encontros em várias cidades do país, a
organização organiza desde a década de 1980, os acampamentos chamados Som
do Céu, sendo a inspiradora de grupos com forte influência de MPB.
Outra digna de menção foi a Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo (hoje,
chamada de CRU Brasil), fundada nos Estados Unidos por Bill Bright (1921-2003)
em 1951, com as suas Campus Cruzade na UCLA – Universidade da Califórnia, com
a visão de se alcançar estudantes, chega ao Brasil somente em 1970, com Manuel
Simões Filho, a convite do Dr. Bright. A organização apostou em filmes e literatura,
espalhando por todo o país, um folheto chamado “As quatro leis espirituais”, com
uma forma sintética da mensagem do evangelho, em conteúdo e apresentação, em
formato pouco maior que um cartão de visitas fechado e em poucas páginas, tanto
que foi por anos acusado por muitos, de “reduzir e simplificar demasiadamente o
evangelho”.
A organização, além de fazer ela própria a distribuição em ruas, escolas, e onde
quer que houvesse concentração de pessoas, saia pelo país, e em parceria com
igrejas, a treinar os membros dessas, na evangelização “boca-a-boca”, utilizando o
36 Disponível em <http://www.mpc.org.br/sobre-a-mpc-brasil> Acesso em 25 out. 2017
100
pequeno folheto. Ainda hoje de mais de um milhão, deles são distribuídos por igrejas
e organizações37.
Criada no início da década de 1950, a SEPAL – Serviço de Evangelização para
a America Latina, nasceu como um órgão local da OC International (One Challenge
International, nos Estados Unidos, e aqui, em 1963, com o “sonho de ver uma igreja
saudável, ao alcance de todo brasileiro, que possa levar o evangelho de Jesus Cristo
ao mundo todo e empenhados em causar impacto em líderes e igrejas, encorajando-
os e desafiando-os a desenvolver ministérios saudáveis”38. O nome originariamente
da “OC” era Overseas Cruzade, teve de ser abandonado, recentemente, na década
de 2000, por razões óbvias, diante da dificuldade histórica que o nome “Cruzada”
ainda traz, no contato e na relação com os islâmicos.
Foi nesta organização, muito respeitada pelas igrejas evangélicas de todos os
tipos, que Jaime Kemp, em 1968 criou, à semelhança de outras iniciativas na
América que usavam jovens para o trabalho de pregação – sua energia, sua
criatividade e capacidade de engajamento – para um grupo que, utilizando a música,
e uma dinâmica de discipulado aplicado por Kemp e sua esposa, de início – repetisse
o modelo, treinasse líderes das novas gerações de igrejas, não importando a sua
denominação. Através dessas “equipes”, que é como se chamavam, se
comprometiam a uma dedicação parcial de tempo, viajavam pelo país, visitando
igrejas, dando testemunhos da sua fé.
No início, as equipes se limitaram a traduzir músicas vindas da América, bem-
comportadas e de ritmos tradicionais, e, num espaço de uns dois anos, deram lugar
37 Disponível em <http://cru.org.br/nossa-historia> Acesso em 25 out. 2017 38 Disponível em <http://sepal.org.br/historia> Acesso em 25 out. 2017
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à uma contextualização não apenas de conteúdo, mas de forma, com ritmos bem
brasileiros, como a bossa-nova, o baião, o que de início pareceu algo absurdo às
congregações onde parecia que “música que agrada a Deus era a americana”. Como
bem o afirmou Magali Cunha, “Os missionários traziam outra linguagem e, junto com
a doutrina protestante, pregavam também os seus valores culturais” (CUNHA, 2004,
pg. 39).
Música brasileira tinha um componente africano e, como se cristalizou por muito
tempo, a cultura afro-brasileira e seus ritmos eram interpretados como demasiados
contaminados pela sua associação às crenças e religiões africanas (leia-se
“diabólicas”!). Por esse viés, ritmos de matriz africanos, ou que cheirasse aos
profanos nordestinos, como o baião, o frevo, o xaxado, eram vistos como coisa de
gente profana, não santa. Ou numa outra interpretação, a cultura protestante não
podia ter humor algum. Era racional demais. Emoções e ritmos, era algo da esfera
da religiosidade popular, latina e católica.
Sobre essa “aculturação”, Jaime Kemp lembra
Sabe, tinha gente que criticava quando começamos com sambinhas.
Sabe, sambinha era aquela coisa do carnaval, de mulheres
seminuas, dançando na rua e era para as boates e danceterias, e nós
dizíamos não, não. E sabe onde aprendi isso? Eu estava em Caruaru-
PE num domingo, fazendo um seminário lá, e no sábado de manhã,
estando livre, fui pra praça e lá tinham dois repentistas – evangélicos
– fantástico! Olha, tinham um auditório de mais de mil pessoas ao
redor deles na praça. Quando eu cheguei lá, eles estavam cantando
sobre o Filho Pródigo. Um contava uma parte da história e o outro
entrava e continuava, bem no ritmo, eles estavam cantando, rimados
e tudo, quando eu percebi o quanto o povo estava colado a eles,
àqueles dois homens! Aí eu disse: “Senhor, é isso que temos de
102
fazer!”. Pegar a música e o sentimento da cultura e usar isso para
pregar o evangelho e isso era 1970.39
Apesar da falta de sintonia com o povo, as igrejas pareciam imunes à
“contaminação” com a cultura popular e endureciam em pregações contra o que “não
era digno de Deus”. Não faltaram nesse período, guerras pretensamente teológicas
sobre que instrumento musical – além dos ritmos – era ou não digno de Deus, ou
invenção de satanás e, portanto, inimigo da adoração cristã.
O instrumento musical protestante era o órgão, com repúdio aos
instrumentos populares de percussão e cordas. A hinologia –
mormentemente a grande fonte de inspiração espiritual, emocional e
de veiculação de conteúdos teológicos – estruturou-se por meio de
versões de hinos tradicionais europeus e norte-americanos ou
mesmo de canções populares daquelas nações. Isto refletia o sentido
de negação das culturas autóctones assumido pelo Protestantismo
Histórico de Missão: o popular anglo-saxão era admitido; o latino não
(ALVES, 1979, p. 103-105).
Em declarações repetidas, Kemp afirmou que desde cedo, defendia entre os
seus pares da organização, a necessidade de se contextualizar e não apenas
“importar” uma cultura cristã estrangeira e só usaram traduzir ou fazer versões de
canções americanas, para partirem de algum ponto e que os deixasse livres dos
hinos centenários tradicionais que se cantavam nos cultos das igrejas, solenes
demais para a juventude que pretendia alcançar. Ele afirmou
Nós quebramos tudo, éramos pioneiros na questão dos comportamentos.
Você se lembra que antigamente a bateria não entrava na igreja? Era um
instrumento do diabo. Agora não é mais. O interessante é que mudou. Se
converteu (risos). E também instrumentos com o baixo, o piano elétrico – só
tinha aquele órgão que você bombava para poder sair o som, então realmente
39 Entrevista concedida por KEMP, Jaime. Entrevista 1 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (23,8 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
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houve algumas mudanças e, parcialmente, as mudanças diziam respeito a
questão do humor, que antigamente, e até hoje, nalguns contextos, nunca se
solta uma piada ou alguma expressão para dar-se uma risada, alguns
pastores que sabiamente sabem usar o humor, são os mais comunicativos.40
É fato que os Vencedores, ou simplesmente VPC, influenciaram definitiva e
positivamente a cultura e a expressão artística cristã evangélica no país, abrindo
espaço para o surgimento alguns anos depois, de uma cultura gospel, de mercado,
ou de mediação da tecnologia e dos meios de comunicação. Dentro da sua visão,
estava o objetivo de treinar equipes que voltariam às suas igrejas, estruturariam o
seu próprio grupo musical e repassariam as canções e músicas para os que já
existissem, multiplicando a influência. Até e, principalmente, incentivar a composição
de novos cânticos.
Um dos hinos mais tradicionais da hinologia evangélica, criticado à exaustão
pelos novos movimentos como (mau) exemplo de adequação cultural e de
comunicação e presente em praticamente todos os hinários das igrejas sendo
cantado pela juventude (mesmo na época em estudo), trazia a seguinte letra
Nos céus e no mar e na terra,
Nos bosques, nos prados em flor,
No fragoso alcantil, na amplitude celeste,
Um hino ressoa ao Senhor! 41
Era comum afirmar-se que muitos dos clássicos hinos eram cantados sem que
ninguém soubesse do que se tratava, como neste caso, “fragoso alcantil”, eram
símbolos de uma linguagem completamente avessa à eficácia da comunicação em
compartilhar um conteúdo. Especialmente quando se usava à exaustão, um
40 Idem 41 “Um hino ressoa ao Senhor” – letra Mattathias Gomes dos Santos (1931) e música, de Charles Hutchinson Gabriel
104
vocábulo já não utilizado e compreendido, especialmente pelas novas gerações e
pela grande massa de iletrados da população tupiniquim.
Foi nesse rastro de “nacionalizar” o protestantismo importado e de adequar a
cultura ao povo, que os VPC, pouco a pouco vieram a se firmar, deixando o conceito
de que não havia um protestantismo brasileiro, mas no Brasil, como aliás, Mendonça
defendia
Talvez a pergunta mais adequada seja esta: podemos falar em
protestantismo brasileiro? Ou seria melhor falar em “protestantismo
no Brasil” precisamente quando a referência recai sobre as igrejas
acima mencionadas? Embora seja certo que as religiões universais,
como são as protestantes, sempre assimilam ou mantêm traços das
culturas locais, como me é permitido falar em catolicismo brasileiro,
por exemplo, o protestantismo que chegou ao Brasil jamais se
identificou com a cultura brasileira. Continua sendo um
protestantismo norte-americano com suas matrizes denominacionais
e dependência teológica. Por isso, prefiro falar em “protestantismo no
Brasil” e não em protestantismo brasileiro (MENDONÇA, 2005, p. 51)
Como se pode falar numa igreja brasileira, sem que se toque a cultura, traga
elementos culturais na sua expressão e vivência? Pois nos anos da ditadura, isso
era um peso a mais, para além do erro histórico da “aculturação” protestante de fora.
Falar-se em igreja brasileira, era algo perigoso, pela pressão por ignorar-se o que
havia em torno, na efervescência da política, por parte das lideranças.
Vale reafirmar, que no esteio do “vale-tudo” para manter-se o mau-humor
protestante e o distanciamento que se permitia da cultura popular, negava-se a
prática conhecida de Lutero quando, na sua Reforma, já no século XVI, valeu-se da
utilização de canções populares na nova hinologia, dos cantos litúrgicos que
organizava, adaptando, e utilizando novas letras, religiosas, mantendo a melodia
original, conforme registra Burke (1999, p. 246-249). Ele já havia incluído a
105
congregação nos cantos da liturgia, característica essa fortemente impressa no culto
protestante e, aliada à cultura do povo, trazia-o para mais do que uma atuação
meramente passiva nos serviços religiosos. E sem emoção, sem humor, que aliás,
é marca do povo brasileiro. Entretanto, aqui ainda, nas igrejas, isso feria a
“santidade” de Deus, afinal, o altíssimo, exige santidade e ...ordem. Essa era e devia
ser, a marca das celebrações. Culto e espiritualidade não combinavam com o riso.
Como nos primeiros séculos da cristandade, espiritualidade combina com penitência,
seriedade. Kemp discorda veementemente e afirma
O evangelho é o evangelho, a roupagem pode ser uma porção de
coisas. Por exemplo, lá em Portugal você tem aquela música triste, o
fado, pois eu fui a um restaurante onde tinha o fado e saí chateado.
Para mim foi terrível, mas para o povo português, aquilo mexe muito,
então gente, nós temos que respeitar e no Brasil, o evangelho porque
saia deste tipo de ambiente, eles achavam tudo pecado, como usar
instrumentos de ritmo como o chocalho, ou o pandeiro, eles diziam:
“isso tira toda a espiritualidade do culto”, e eu falava - “que é isso? O
que é espiritualidade, então? Porque, se tira, alguma coisa está
errada com a nossa espiritualidade! É uma espiritualidade líquida?!”42
Jasiel Botelho, fundador dos Jovens da Verdade faz coro com Kemp e não vê
como desassociar a espiritualidade do humor. Ele afirma ser impossível sim juntar
religiosidade – farisaísmo – ou uma qualidade de fé baseada em parâmetros
exteriores, que são capazes de “adestrar”, mas não transformar o interior, a forma
de pensar, com o evangelho. Ele divide os dois conceitos
Sim, porque hoje eu divido, o Tim Keller43 foi quem ajudou a gente a
ver isso: separar religiosidade do evangelho. O evangelho é livre, por
42 Entrevista concedida por KEMP, Jaime. Entrevista 1 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (23,8 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 43 Timothy Keller (1950), um dos mais famosos oradores e escritores presbiterianos da atualidade. Natural da Pensilvânia, com formação acadêmica na Bucknell University, no Gordon-Conwell Theological Seminary e no Westminster Theological Seminary, foi por anos pastor da Redeemer Presbyterian Church, em Manhattan, igreja que fundou em 1989 e esteve no Brasil
106
exemplo, você pode fazer uma charge de Deus, Deus não fica
ofendido, Deus está acostumado a sofrer, na religiosidade, o deus
religioso é o mesmo deus do muçulmano. Quando você diz “não leve
o nome de Deus em vão”, não é questão do humor, é questão de
você não brincar com Deus, não levá-lo à sério, não é o brincar com
ele, porque Deus é pai e se há uma coisa que o pai mais gosta de
fazer com os seus filhos, e vice-versa, é brincar. Por isso eu digo que
hoje eu tenho a liberdade de brincar com Deus porque ele é meu
Pai.44
Os VPC, começaram então timidamente a fazer apresentações mais leves,
bem-humoradas, sempre tirando risadas das igrejas por onde passavam e
principalmente, a incluir nas suas apresentações, contrabaixos, pandeiros e baterias
e hoje, raras são as igrejas que não os têm no palco, à frente da congregação e as
utilizam nos períodos de louvor – marca indelével nas igrejas evangélicas, ou de
cariz reformada.
Os Vencedores, despertaram ou lançaram no meio evangélico, nomes de
músicos e compositores de raiz, alma e cheiro brasileiro. Kemp relata
Viemos aqui em 1967 e começamos os Vencedores em 1968 e nos
primeiros dois anos ainda estávamos aprendendo tudo. E eu percebi
que Deus havia dado ao brasileiro muita música e capacidade de
compor música e letra. E isso foi com João Alexandre, e Guilherme
Kerr, Nelson Bomilcar, esses caras, ...E eu disse: “Senhor eu estou
precisando fazer a cultura” e nós pegamos hinos tradicionais,
pusemos ritmo diferente, e novas músicas, como Sérgio Pimenta45,
um menino fantástico e então temos visto como Deus comunica ainda
hoje através disso.46
44 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 45 Sérgio Paulo Muniz Pimenta (1954 - 1987), foi um cantor, compositor, multi-instrumentista e arranjador de música popular brasileira cristã. Foi um importante compositor evangélico nas décadas de 70 e 80 46 Idem
107
Naqueles anos, a missão que veio de um americano lançara novos talentos que
deram um toque brasileiro à hinologia contemporânea cristã, além de incluir na sua
poesia, um toque de humor, de expressões culturais populares, quebrando a cultura
da época.
Um desses talentos, foi Nelson Bomilcar, cantor, compositor, produtor musical,
multi-instrumentista, arranjador e escritor brasileiro, conhecido como um dos mais
conceituados da música cristã brasileira atual com mais de 300 participações em
produções musicais e outras centenas de composições espalhadas entre músicos e
bandas cristãs. Ele conta como começou nos Vencedores
Fui treinado em Vencedores por Cristo, em 1974, tinha um músico lá,
que me convidou, da Igreja Batista, recomendado por meu cunhado,
que hoje é pastor, e lá eu tive contato com essa geração do
Guilherme Kerr47, as grandes referências, e ele trouxe essa veia das
ciências humanas, da poesia, e brincavam que eles diziam que eu
era o cara que chegava pra fazer as pessoas rirem, inclusive das suas
próprias ambiguidades.48
Mas a “coptação” ou o proselitismo não era algo tão simples quando se
imaginava a integração dos novos convertidos à fé, alcançados com uma mensagem
leve, mais próxima culturalmente ao seu universo. Se era “vendido um peixe”
atraente e com o “aroma” da brasilidade – leia-se “com humor e leveza”, quando
vinham para as igrejas, o prosélito encontrava outro “produto”, como nos afirma
Bomilcar, à exemplo do que aconteceu consigo, numa igreja de imigrantes da
47 Guilherme Kerr Neto (1953), é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, arranjador brasileiro, e reconhecido como um dos músicos mais conceituados da música brasileira cristã. Hoje vive nos Estados Unidos, como pastor de igreja 48 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
108
Letônia, na zona leste da cidade de São Paulo, com poucas opções de integração
para um jovem que vinha das ruas
a igreja que me acolheu, de herança Leta, se parecia com uma
espaçonave, não tinha nada a ver com a realidade, eu não sei como
ia me integrar num negócio desse, e os caras pensavam, “você dá
bem para cantar no coro”, e me “jogaram” para cantar no coro da
igreja, pois era o único link que conseguiam fazer, porque você não
tinha espaço.49
Nas igrejas, sobrava formalismo e faltava leveza. Não só no discurso como na
vivência, na comunhão. Bomilcar lembra o quanto do clima extra-muros das igrejas,
estava também dentro dos salões de culto
Ah! Experimente você contar uma piada! “O Senhor está presente no
Seu Santo Templo”. Ordem é fundamental e reverência, ora, o humor
não faz parte desse caminho da reverência, então ele tinha que ser
reprimido aonde ele se manifestasse. Outra válvula de escape era o
rádio, o que se conseguia fazer nos programas de rádio não se
conseguia fazer no dia a dia da igreja, o Maurão50 cresceu nisso,
nesse pano de fundo, fazendo coisas de rádio, e outras vertentes. A
época por exemplo, era a da rádio novela, do humor feito ali, e aquela,
ainda fruto dos anos 60, início de 70, os festivais da TV Record e TV
Tupi, lá surgiram os programas do Zé Vasconcelos, do Manoel de
Nóbrega, Chico Anysio, Jô Soares, no meio da loucura da ditadura
aquele era o local onde se conseguia rir, mas eu não podia rir de nada
que fosse associado àquele período de ditadura.51
Quem quer que se atrevesse a ousar com o uso do humor nas pregações ou
na condução dos serviços religiosos era malvisto. Tanto na igreja tradicional que
49 Idem 50 Mauro de Oliveira (1954), jornalista, compositor, humorista e manipulador de bonecos 51 Idem
109
insistia num formalismo silencioso, reverente, como nas, bem menos rigorosa com
esses aspectos, pentecostais, ser cristão era ser sério. Sobre isso, Bomilcar afirma
Reverendo não deve rir, e eu acho que a gente tem que reconhecer
esses precursores que chutaram a porta, um deles sem sombra de
dúvida também, início dos anos 70 é Jasiel Botelho52, que na minha
opinião deveria que ter permanecido mais nessa vertente, mas teve
que transitar em outras vertentes pra conseguir ganhar o direito de
fazer, de chegar nos encontros e congressos de pastores pra poder
fazer a sua pintura anual... Mas assim, o que nós publicamos hoje?
O que temos de publicação hoje nessa questão? Dificílimo! Agora
como você vai fazer piada pra você rir da fé? Dos que tem fé? Do
ambiente da fé? Ainda hoje o humor parece que não bate bem com
o sagrado. No culto não é bem-vindo, mas se for na hora do bolo lá
em baixo (nos anexos aos templos) aí pode, você percebe? É um
negócio doido isso. É aquela dicotomia ainda, o momento espiritual,
momento sacro, agora é o momento secular e momento espiritual! E
eu me pergunto, os reformadores tinham humor? Não usavam o
humor nas suas mensagens que impactaram tanto? Não usavam pra
que enxergassem as loucuras que estavam fazendo? Com certeza
sim! Nem a ótica histórica eles conseguem colocar por esse prisma,
aí um cara que é extremamente lúdico que caminha no universo da
fantasia, da metáfora como C. S. Lewis. Ele tem que fazer um
caminho por fora.53
Este “caminho por fora”, ou era a carreira numa organização paraeclesiastica,
ou desenvolvida em acampamentos e retiros – do qual trataremos adiante – ou era,
numa solução ainda mais drástica, a mudança de igreja, ou pela adesão à alguma
já existente ou fundando alguma nova agremiação. Sobre essa crise do pastor, do
pregador ou “artista” evangélico, Jasiel afirma
no começo, quando eu cheguei ao (acampamento) Palavra da Vida,
eles brincavam muito, tinham muito esporte, tinha muito esquete, e a
questão do esquete foi uma descoberta para mim. Mas era um humor
52 Jasiel Botelho (1948). É pastor evangélico, missionário da SEPAL, e fundador e atual presidente da Missão “Jovens da Verdade. 53 idem
110
não evangélico, era o humor pelo humor. Era stand-up, e eu fazia
isso, mas eu não sabia. Eu cuidei da noite de esquete, a noite do
humor, e era só esquete naquele tempo. Depois é que introduzi
música e outras coisas mais e era um show. Eu fiz até a música de
abertura dessa noite de esquete do PV. E eu me realizei, todo aquele
dom de humor, saiu. Mas aí eu percebi que quando era pra pregar,
dar testemunho, eles não contavam comigo, porque eu era
brincalhão. E aí contavam com outros. E isso também no JMC54, onde
eu estudava. Tinha a caravana de pregadores, e tinha a gente. A
gente brincava muito e não podia entrar na caravana de pregadores,
quero dizer, eram muito sérios. Mas o pior não foi isso, o pior foi
quando a gente começou o Jovens da Verdade, e os Jovens da
Verdade foi sempre descontraído, eu e o Josafá55, a gente brincava
muito, mas aí houve um período em que entrou um líder,
presbiteriano, presbítero muito sério chamado Amílcar Ovídio
Borba56, aí ele foi o nosso guru espiritual e aí foi cortando a gente em
termos de humor, cortando e eu fui ficando sério e tal, e quando eu
terminei o seminário, eu fui convidado para pastorear a primeira igreja
, aí eu tive de mudar totalmente. Agora imagina: eu tinha de vestir
toga genebrina pra pregar, além de terno e gravata, toda aquela
tradição da igreja, o respeito aos idosos e tal e eu conclui que fiquei
com uma dupla personalidade. Eu brincava, né, mas tinha hora que
eu ficava sério. (...) Mas eu fui ficando esquizofrênico, eu leio assim.57
É certo que, como afirma Berger, esses eram os profetas da vez, que
carregavam consigo o carisma, em contraposição aos sacerdotes, na disputa pelo
capital simbólico. E arrastavam pela influência e pelo encantamento que exerciam
especialmente os mais jovens, multidões. E em contrapartida, as igrejas
54 Seminário Presbiteriano José Manuel da Conceição, em Jandira-SP 55Josafá Vasconcelos, paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, junto com Jasiel Botelho. É pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados 56 Reverendo presbiteriano Amílcar Borba, foi presbítero (1972-1981), e ordenado pastor pelo Presbitério Unido de São Paulo em 15/03/1981, tornando-se co-pastor da IP Unida-São Paulo-SP. Em março de 1986 tornou-se pastor titular desta igreja até dezembro/1990. A partir daí dedicou-se integralmente ao ministério de campanhas evangelística em todo o país. Faleceu no dia 22 de março de 2012. 57 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
111
permaneciam herméticas, fechada ao humor, temido tanto pelos que detinham o
poder, fora, na sociedade civil, domada pelo regime militar, quanto nas comunidades
religiosas, pelas mãos de líderes que, segundo Jasiel Botelho, cediam às suas
fraquezas próprias da sua humanidade
O poder teme, porque o poder não quer ser criticado de jeito nenhum.
Agora imagine o poder político! E o poder eclesiástico? As lideranças,
os pastores, nós os pastores não aceitamos ser criticados,
principalmente os líderes. O maior problema da liderança é o
narcisismo, é a vaidade, é a soberba. Quanto mais um líder é forte,
quanto mais ele é famoso o líder, mais ele é intocável, ele é o
“ungido”, ele não pode ser criticado de jeito nenhum. Se nós, pobres
mortais não podemos, imaginem esses caras que são semideuses,
entendeu?58
Nesse caminho por fora, esses “marginais” que optaram por um caminho não
ortodoxo de pregação e de propaganda da fé tiveram que bancar do próprio bolso,
os seus projetos – ou “missão” que, cria-se, fora inspirada por Deus. Bomilcar afirma
“todos acabaram investindo naquilo que acreditam, todos os projetos iniciais foram
na grande maioria das vezes bancados pelos próprios que acreditavam no projeto”.
E a explosão que o Brasil assistiria nos anos seguintes a esse começo de arranque
do movimento evangélico, não começou de forma alguma da maneira institucional.
Bomilcar concorda
passou longe disso, a igreja cresceu pela marginalidade, e com
humor na marginal. A sinagoga sempre foi muito imprópria pro humor,
eu imagino que se os vendilhões do templo tivessem trazido alguma
coisa pro humor da época, aí acho que eles teriam sido expulsos duas
vezes. Seriam recolhidos os gibis.59
58 Idem 59 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
112
Talvez a história do movimento evangélico nacional não teria produzido tantas
novas agremiações, tantas novas igrejas, se tivesse ele se permitido à uma
elasticidade maior na sua morfologia. Mas não bastava o rigor com a doutrina, o
conjunto de credos, as convicções mais santas e fundamentais do que se cria. Era
preciso se parecer com o evangélico tradicional.
Já nos idos de 1974, membros de igrejas cristãs evangélicas e reformadas de
mais de 150 nações encontraram-se em Lausanne, Suíça, no Congresso
Internacional de Evangelização Mundial, para reafirmarem a sua fé e a resolução de
tornarem público um pacto, sobre o que criam e sobre o recomendavam pontos
considerados essenciais sobre a natureza da evangelização, sobre a
responsabilidade social cristã, do esforço conjugado e da cooperação das igrejas na
tarefa, a sua urgência e incluía um esforço por uma metodologia nova e criativa.
Nela, a cultura – não bíblica - deveria ser confrontada pelas escrituras, mas não se
cair no erro de a condená-la inteiramente, ou de pressupor-se a superioridade de
uma contra a outra, mas buscar pontos de contato entre elas e mais
Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-
se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem
servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e
enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus. (Pacto de Lausanne,
1974 #10)
Mas se o pacto foi assinado pela maioria esmagadora das igrejas históricas
presentes no nosso país, a observância do que assinaram não foi assim tão simples,
na conduta e prática que se viu. O cenário continuaria por muito, parecido àquele
que Jean de Lery encontrou, de um lado a cultura tupiniquim – simples, leve, bem-
humorada, e do outro, o pregador, de toga genebrina tentando alcançá-la.
113
Maurão, o pioneiro e até hoje humorista, tem seu ponto de vista e afirma que
os líderes das igrejas históricas e tradicionais não entenderam os que inovavam,
criavam novas formas de se divulgar o evangelho e, deste modo, foram responsáveis
pelos “desvios” de conteúdo, pelo rigor com a forma, com raras exceções como aliás,
ele encontrou
Eles não souberam entender, tipo: vamos abraçar, e não ir contra!
Vamos conversar com eles, o que é que eles querem, qual é a
proposta? Por isso é que se perdeu, veja, a Renascer em Cristo! É
resultado disso daí. Os caras queriam pregar coisa nova, pregar o
evangelho, usando bateria, rock, ...e não podiam. Veja a
Congregação Cristã do Brasil, a história dela é engraçadíssima: seu
fundador, Louis Francescon, era membro da Igreja Presbiteriana do
Brás, e a igreja não deixava. Ele era diácono lá. “Ah! Não vão deixar?
Eu vou fundar uma igreja maior que essa!”. E fundou. Alí no Brás
mesmo. Se você tinha dificuldades, onde é que você encontrou apoio
para o seu trabalho, naquela época? Eu encontrei em todas. Eu era
membro de uma igreja pentecostal e lá eu não tinha espaço. Onde já
se viu? Era um pode-não-pode... Agora, eu tinha espaço onde? Em
culto de jovens, presbiterianos, ... tinha um pastor Afro Marcondes
(Afro Marcondes dos Santos Junior), está hoje em Rondonópolis,
Mato Grosso, ele era da presbiteriana, eu da Brasil para Cristo e nós
fazíamos um trabalho muito bonito juntos, chamado Cultão, em
Guaianazes (São Paulo-SP), todo primeiro sábado do mês e
reuníamos a turma dele, a minha e da região ali. E ali a gente tinha
espaço, cantávamos as nossas músicas, e era aquilo na igreja, o
pastor deixava fazer, aliás, muito poucos deixavam.60
O pastor presbiteriano de longa história ligada ao riso, o reverendo
presbiteriano Evandro Silva também sentiu na pele a “pecha de gente não séria”,
especialmente por ter vindo do circo, dos programas de rádio e dos shows de stand-
60 Entrevista concedida por OLIVEIRA, Mauro. Entrevista 4 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (30 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
114
up61, ao lado de gente que se consagrou e fez história no humor do país como Moacir
Franco e o seu irmão artista de anos, do programa de humor da TV, “A Praça É
Nossa”.
Silva conclui sobre o que seria um erro histórico, de abordagem, em que entre
a visão – particular, institucional da igreja evangélica - sobre “o que é seriedade” e a
vida das pessoas, prefere-se o mau-humor. Ele afirma
Você não pode ir pra lá e tacar aquela coisa maçante! Por isso é que
eu saí da igreja, daquele negócio, daquele evangelho sem graça... A
igreja de hoje é esta: quer mais o discurso bem embalado do que o
conteúdo dele. Termos teológicos, etc, ...mais do que a alma do
crente, a vida do fiel. A nossa pregação tem de ser mudada, tem de
ser mais objetiva, menos escolástica, ela tem de ser a prática do
evangelho na vida diária. Nós protestantes acabamos com a emoção,
ficou aquele trem que não se entende. O que o Aleluia de Handel,
tem a dizer para nós, além da melodia, de ser uma peça clássica da
música sacra?62
O entrevistado ainda enfatiza que Jesus usava o humor para alcançar as
pessoas, como por exemplo, nas parábolas que ele usava contar, como um recurso
que os aproximava e não o contrário
Veja, Jesus tinha humor nas suas parábolas. Aquilo tudo era causo.
E chamava a atenção do povo. Eles estavam tentando apanhar Jesus
em algo, e ele vem com essa: “Um cara tinha cem ovelhas...”, aquilo
não tinha nada a ver com o que eles estavam falando, os caras
61 Stand Up comedy é um espetáculo de humor, apresentado por uma única pessoa, onde não existe nenhum tipo de personagem. Geralmente as apresentações de stand up comedy buscam trazer um texto original, com temas do cotidiano das pessoas. Nas apresentações de stand up, o artista não usa nenhuma ferramenta, como cenários, caracterização, acessórios, não conta piadas prontas, é apenas baseado nas observações do dia-a-dia. 62 Entrevista concedida por SILVA, Evandro. Entrevista 5 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (1h42 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
115
devem ter pensado: “Uai, ninguém estava aqui falando de
ovelhas...”63
E arremata com veemência a diferença entre o modo tradicional das pregações
e como crê que Jesus contaria hoje a Parábola do Filho Pródigo64 aos seus
contemporâneos, pondo ênfase no personagem do filho mais velho, que se
ressentira com a volta do irmão à casa da família, num clima mais contextualizado,
mais contemporâneo
mas a gente conta (as parábolas) assim, com a voz empostada, com
palavra que não comunica, que não pega nada em ninguém, a gente
tem de contar assim: “este safado, ficou dentro de casa, ruim que
nunca lembrou do irmão dele!!!”. Você tem de mexer com o couro do
sujeito (na cultura dele) e ele dizer: “Meu Deus, eu sou esse cara! Eu
tô aqui nessa igreja há trinta anos e nunca fiz nada”, mas se você
pregar daquele jeito, nos clássicos, ... Meu Deus, o Evandro é doido,
você viu o que ele falou? Por isso eu admiro você ter levantado esta
questão. Tanta gente surgiu naquele tempo, falando e ensinando os
jovens a falar a linguagem das ruas, o Jaime Kemp, o Josafá
Vasconcelos, os acampamentos, meu Deus! O brasileiro é
humorado, é safado, gosta dum mal-feito, ...o brasileiro é malvado,
gosta de uma piada. Quando saem dos meus cultos, não saem com
aquela cara de santão, saem com outra cara. A Bíblia diz: “o vosso
pecado vos achará”. E com toda piada, você vê no auditório, em
quem o pecado está batendo.65
Pois para alcançar esse brasileiro humorado – ou “safado” na descrição do
entrevistado Silva, era preciso se aproximar deste brasileiro, de uma maneira
diferente daquela restrita aos templos e à liturgia “apertada” dos serviços religiosos.
63 Idem 64 Lucas 15:11-32 65 Entrevista concedida por SILVA, Evandro. Entrevista 5 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (1h42 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
116
E os acampamentos, que traremos a seguir mostraram-se como uma usina de
experiências e aproximações que acabaram por oxigenar não só o discurso como a
própria prática da vida cristã nas gerações que viriam. E produziram uma fé mais
terra-a-terra, menos hermética e mais próxima à realidade do cidadão comum. O
cristão evangélico, ou “crente”, já não era assim tão “quadrado”, nem fariseu – aquele
religioso que fugia não só do estilo profano dos demais – só tinha valores dos quais
já não estavam limitados ao exercício de uma fé restrita ao espaço dos templos.
Sobre essa visão maniqueísta, de fugir-se do profano, de isolamento e negação
da cultura e do papel dos ministérios paraeclesiásticos na aproximação mundo-
igreja, sagrado-profano, crente-não crente, algo surgiu no país e ajudou em muito o
surgimento de uma outra cultura, nos acampamentos de mocidade.
3.4. Acampamentos – Os sagrados territórios de refúgio e formação da juventude
No final do século passado fora criado o embrião de uma importante ferramenta
para o alcance e formação dos cristãos evangélicos, especialmente a juventude – os
acampamentos.
Na história da ABRAC – Associação de Acampamentos e Retiros Cristãos
(membro nacional da Christian Camping Association, que serve a 2.050
organizações em todo o mundo, contando com mais de 3.000 membros individuais
em 42 países, sendo uma das 20 associações-membros) encontramos o registro que
foi em 1885, nos Estados Unidos, que a ACM - Associação Cristã de Moços - de
Nova Iorque - levou os seus membros para uma viagem de oito dias para o Orange
Lake em Nova Jersey. Como de início, os participantes masculinos receberam um
corte de cabelo militar, já no ano seguinte graças a esse detalhe, o evento foi
117
chamado de Acampamento Baldhead (cabeça raspada), passando a ser o primeiro
acampamento da ACM-EUA.
Em 1900, surge o primeiro acampamento para meninas, e em 1910, surge em
Los Angeles, o primeiro acampamento patrocinado por uma cidade ou município.
Os primeiros passos do movimento de acampamentos se estendem a um
período de mais ou menos 40 anos. Em 1885, existiam na América, apenas 3
acampamentos; em 1895 eram 13 e em 1904 mais de 300. Ézia Mullins descreve
O potencial desse movimento de acampamentos, motivou lideres,
especialmente cristãos, a fazerem uso do acampamento com várias
finalidades, podendo ser superficialmente classificado nos seguintes
estágios: (1) Recreação; (2) Educação; (3) Orientação e
Responsabilidade Social. A Primeira Guerra Mundial exerceu
influência em levar o acampamento do estágio de recreação para o
de educação, onde o aprendizado recebia um destaque especial.
Durante a época da depressão financeira dos Estados Unidos, ao
mesmo tempo em que o comunismo pairava sobre o mundo. Iniciou-
se aí no acampamento o estágio chamado orientação e
responsabilidade social. Este foi marcado por um ensino
generalizado e uma profunda conscientização das responsabilidades
sociais para manter a democracia viva. (MULLINS, 2011, p. 19)
Essa socialização tentava incentivar uma vida em comunidade, um plano para
o participante e apoiado pelo governo – e mais tarde, pelas igrejas. O membro da
equipe, monitor ou conselheiro deveria enfatizar os princípios da democracia no
acampamento e tentar suprir todas as necessidades do indivíduo e do grupo.
Nas últimas décadas, as organizações evangélicas paraeclesiasticas iniciaram
seu trabalho nesses moldes, e a história desenvolveu-se semelhantemente a do
movimento dos acampamentos não religiosos. Eles foram primeiramente
organizados por indivíduos, depois por organizações interdenominacionais e por fim,
118
as igrejas tradicionais que adotaram-nos como uma estratégia de alcance da
juventude – e até de famílias, casais, etc,...
Após a Segunda Guerra Mundial, o conceito de acampamento começou a ser
exportado pelos Estados Unidos para outros continentes. Por esta razão temos hoje
no Brasil o movimento de acampamentos, que tem diferenças fundamentais quando
comparado aos retiros de carnaval que eram realizados antes da chegada de tal
influência. Os missionários os trouxeram na bagagem ou foram importados depois
como estratégia para se alcançar, ou evangelizar a juventude e treinar leigos.
A realização de retiros nas igrejas no Brasil é anterior a 1940 (MULLINS, 2011,
p.20), embora os registros da Associação Evangélica de Acampamentos, descreve
mais a sua realização do que a forma como foram realizados, entretanto, parece-nos
que as formas usadas pelas denominações eram semelhantes em conteúdo e
objetivos.
Pelo que percebemos pelo menos até a década de 70, manter os jovens e
adolescentes longe das festividades carnavalescas e, do ambiente de efervescência
política da época, foi o maior fator da sua realização. No início, o termo “retiro”
antecedia as palavras “espiritual” ou “de carnaval”.
A história dos acampamentos no Brasil teve sua gênese na década de 60 e a
organização Palavra da Vida (localizada em Atibaia-SP) e a Mocidade para Cristo
(em Belo Horizonte-MG) como afirma Mullins (2011, p.23), foram os grandes
disseminadores da proposta, logo seguidas pelas denominações evangélicas ou
protestantes, com maior ênfase dada pelos Batistas, seguidos ainda pelos Jovens
da Verdade na região de São Paulo.
119
Fato é, que os acampamentos, desde cedo, se tornaram o território neutro,
como as cidades de refúgio, à semelhança das relatadas nas escrituras, na história
do povo hebreu, onde uma pessoa acusada do que hoje chamaríamos de homicídio
culposo, sem dolo, poderia estar abrigado contra retaliações e vinganças66.
Onde se organizavam retiros, ou promoviam-se acampamentos, em
instalações destinadas a esse fim, de alvenaria, com boas adaptações para a
hospedagem ou até improvisadas em barracas e galpões, em chácaras, fazendas
ou em espaços especificamente construídas para o fim, os jovens tinham uma
programação que consistia de cultos, que por serem realizados em espaços
multiusos, o formalismo, a rigidez litúrgica, dava espaço à leveza e à espontaneidade
onde os jovens (e não só) tinham uma nova visão da “santidade” do Altíssimo. A
isso, se juntavam brincadeiras, gincanas e até danças folclóricas (algumas de origem
americana por força da cultura dos missionários), esportes, num mesmo espaço (a
capela, o salão de culto), o que enchiam de alegria os participantes, como
provocavam até algum desconforto do clero. Era a afirmação bíblica, neo-
testamentária – e reafirmada na teologia reformada - que em que o templo é hoje o
cristão e não mais um prédio. E o respeito e devoção a Deus era algo para ser vivido
todo dia, em todo o lugar e não mais num espaço físico determinado.
No programa, com direito à hospedagem, refeições, esportes, lazer, em
estruturas quase sempre modestas, o participante tinha uma visão tão leve quanto
impactante da vida cristã e os pontos de fé de origem reformados eram fortalecidos,
tais como a integralidade da vida cristã contra o dualismo convenientemente pregado
nos salões de culto tradicionais, a criatividade estimulada na vivência da
66 Conforme o texto de Deuteronômio capítulo 19, versos de 1 a 10
120
espiritualidade e a divindade era apresentada como algo próximo da vida dos fiéis
em testemunhos emocionantes de vida, contados na primeira pessoa. Jasiel fala
sobre essa diferença de visão
Eu vivi numa igreja presbiteriana tradicional, no centro de São Paulo,
quando eu tinha 14, 15, 16 anos e daí dessa igreja eu fui pra um
acampamento, o Palavra da Vida, de americanos, então foi uma
diferença muito grande. Na igreja, você entrava para assistir, você
não podia mexer em nada, se sujasse, tinha quem limpasse, e você
ia assistir o culto. No acampamento não, você podia fazer tudo, tinha
uma equipe de jovens, que fazia todo o acampamento, com “n”
trabalhos, isso já foi uma diferença tremenda, agora, fora a liturgia.
Imagina chegar e o pastor estar de bermuda, com a bíblia na mão
para pregar, agora, o meu pastor, além de terno e gravata, ainda tinha
a toga genebrina, a toga de Calvino, o nosso louvor era dos hinos
europeus, americanos, coral - e eu brinco que não era coral era
“coroal”, porque só coroas cantavam – agora lá não, eram canções,
com ritmo, com palmas, muito mais próximos, outra coisa que foi um
choque pra mim foram os testemunhos, e na nossa liturgia não tinha
esse negócio de testemunhar o que Jesus, o que Deus fez na sua
vida, a liturgia lá era de adoração, de ouvir a palavra, o sermão era
elaborado, lido, e no acampamento não era nem sermão, eram
pregações, recheadas de testemunhos e de humor, para alcançar os
adolescentes e os jovens. Então quando eu voltei foi um choque na
igreja, porque eu quis trazer aquilo para a igreja. Imagine cantar com
os idosos: senta, levanta, senta, levanta, aleluia, aleluia, glória ao
Senhor67/68
67 Canção religiosa popular – ou corinho - na época, de autoria desconhecida, de letra simples e acompanhada por coreografia, pelo levantar e assentar do público 68 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
121
Alvin Hatton, missionário americano e um dos pioneiros em acampamentos no
país, da organização Embaixadores do Rei no Brasil, fundada na década de 1950,
afirma que
“Para muitos, acampamento é simplesmente um lugar [...] Para
outros, acampamento significa programa missionário. [...] ainda há os
que olham o acampamento com os olhos do coração. Para estes,
acampamento é o que acontece aos acampantes.” (HATTON.1980,
p.9)
Era um intensivo de discipulado para muitos, de aplicação de valores e
propostas que parecia muito subjetiva e distante dos participantes que passavam
não raramente, até uma semana isolados da cidade e local de origem.
O civismo e o amor à pátria também eram um componente a mais incentivados
em diversos acampamentos, onde se orava pela nação, e não raramente, em alguns,
hasteava-se a bandeira do Brasil pelas manhãs e o serviço à sociedade, como valor
era passado e estimulado em testemunhos de atuação laica e, logicamente, não
escapavam do clima de ufanismo, e do nacionalismo dos militares e de alguma
prédica sobre o “perigo do comunismo à liberdade de religião”, que ameaçava os
cristãos ocidentais. Sobre esses valores, Antônio Gouvêa Mendonça, na obra
“Religiosidade no Brasil”, organizada por João Baptista Borges Pereira, afirma
O protestante é um indivíduo que professa uma religião individual, de
consciência, que se inspira na interpretação direta e pessoal da
Bíblia, pauta suas ações na ética racional do trabalho e na moral
burguesa vitoriana. Sua racionalidade procura manter à distância a
interferência do extraordinário no cotidiano, assim como sua
individualidade o situa nos limites mínimos do poder sacerdotal ou
eclesiástico. É uma religião quase secularizada e se aproxima
122
quando institucionalizada, de uma religião civil. As igrejas são
comunidades de fé e aprendizado religioso mútuo. (PEREIRA. 2004,
p. 75)
Nos anos de 1960 a 1980, muitos líderes reconhecidos no meio evangélico
testemunharam da sua formação recebida nos acampamentos e, não raramente, até
da sua conversão neles. Foi ali, nesses espaços, em que a cultura popular era o
desafio a ser lido e transformado pelos valores que aprendiam e não mais algo do
qual fugir-se. O céu ficava mais perto do chão, da vida do jovem fiel e,
consequentemente, os desafios da sociedade acabavam “lidos” sob uma
cosmovisão cristã. Apesar disso, nesses acampamentos, permanecia o espírito
conservador, anticomunista e antiecumênico como frisa Antônio Gouvêa Mendonça,
em “Religiosidade no Brasil”
organizações chamadas “missões de fé”, porque não faziam parte de
igrejas oficiais, estenderam braços conservadores para a América
Latina e ajudaram a arrefecer os possíveis ímpetos renovadores da
juventude protestante. Uma delas foi a Campus Cruzade for Christ,
fundada pelo norte-americano Bill Bright (1921-2003), cujo braço no
Brasil se chamou Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo.
Objetivava, como o próprio nome diz, atrair estudantes universitários.
Semelhante seria a ABU (Aliança Bíblica Universitária). Outras muito
conhecidas, como Palavra da Vida, Vencedores por Cristo e Jovens
da Verdade, tinham o mesmo objetivo de atrair a juventude,
paradoxalmente, a das próprias igrejas. (PEREIRA. 2004, p. 93)
Apesar do perfil político conservador, de uma conduta moral rígida pregada
nesses acampamentos, havia muito mais incentivo à atuação do cristão na
sociedade, com uma aproximação maior aos ideais da Reforma Protestante, do
sacerdócio universal, por exemplo, do que as igrejas, nas quais a posição oficial era
123
a de manter seus membros longe das questões que desafiavam o país. Era comum
a pregação nos acampamentos, que havia demasiados pastores nos púlpitos e
pouquíssimos na medicina, no comércio, na engenharia, nas escolas, ...na
sociedade. Sagrado não era a atividade, sagrado era o cristão e onde estivesse e o
que fizesse, seria uma consequência disso. Não havia apoio à máxima: “cristão não
se envolve com este mundo”, em geral o que se ouvia era que “as atividades do
cristão na sociedade têm tanto valor quanto o trabalho dos religiosos”, tanto pregado
pelos reformadores do século XVI.
Os acampamentos revelaram artistas de todos os tipos – e líderes – das igrejas
naqueles anos. Nas atividades desenvolvidas, estava o teatro, o palco, tanto para
dramatizações bíblicas ou de propaganda da fé, quanto para a liberdade dos
esquetes de humor69.
Os participantes eram divididos em grupos, que disputavam tarefas e
especialmente pelas noites onde eram a atração especial após os cultos ou
mensagens bíblicas, expressões artísticas tinham o incentivo para o que, na vivência
da igreja, pouco valor merecia.
Citado por Minois, Keith Cameron escreve que o humor
foi sempre uma fonte de consolo e uma defesa contra o desconhecido
e o inexplicável. A própria existência do homem pode ser considerada
uma brincadeira; sua significação está mal definida e é difícil explicá-
la fora da religião. (MINOIS. 2003, pg. 569)
69 Esquete é uma peça de curta duração, geralmente de caráter cômico, produzida para teatro, cinema, rádio ou televisão. O termo em Inglês com o mesmo significado é “sketch”. Têm cerca de 10 minutos de duração e são onde atores ou comediantes possuem forte capacidade de improvisação. Os temas para os esquetes são variados, mas geralmente incluem paródias sobre política, cultura, sociedade e, não raramente, nesses acampamentos, também a religião.
124
Nesse ambiente de liberdade, de espontânea exposição, o participante podia
ver tratada pela religião, as suas questões mais profundas, até de forma bem-
humorada e sem o rigor, a distância e impessoalidade das igrejas. Estava-se,
sobretudo, entre amigos, companheiros de “retiro” e isolamento, numa imersão total,
longe do cotidiano.
Era tamanha a camaradagem que era comum o choro nas despedidas a
caminho de volta para casa. E o calendário desses eventos, aguardados o ano todo.
É bom frisar, que apesar do rigor das igrejas evangélicas, não era raro
encontrar-se alguma semelhança entre esse ambiente e aqueles conseguidos no
anexo às salas de culto, tais como pavilhões, salões sociais, onde junto com salas
de aula, havia um palco para celebrações e também encenações. Ali era o lugar
próprio para os cultos de mocidade, o único espaço “neutro” onde se podia cantar
corinhos70 em reuniões animadas, mais informais, embaladas por palmas –
manifestação mais que proibida num espaço como os dos cultos e até, nalguns
lugares, coreografias. Entretanto, nada que se assemelhasse na atmosfera a um
acampamento no que diz respeito à liberdade e leveza. Nos acampamentos, era
impossível encontrar-se com um presbítero ou um oficial mais rigoroso e com o
patrulhamento comportamental das igrejas. Jasiel é severo na crítica ao legalismo
tradicionalista, sobre o clero ou ao oficialato que não tenha passado por
acampamentos. E afirma
70 Corinhos eram músicas alternativas aos hinários tradicionais e centenários que se usavam nas igrejas, de melodia simples e forte tom emocional, originadas nas reuniões avivalistas nos EUA a partir do século XIX, e trazidas ao Brasil nos anos 1950 por pentecostais e instituições paraeclesiásticas. Eram o tema musical dos acampamentos e retiros.
125
Eu acho que os pastores novos, os diáconos, porque a maioria dos
pastores agora, com raras exceções, e presbíteros, foram jovens de
acampamentos. Se não foi no nosso foi do Palavra da Vida, se não
foi do Palavra da Vida, foi na Mocidade Para Cristo..., e os que não
foram, são legalistas hoje. 71
3.5. Uma nova linguagem no ritual do serviço religioso – odres novos para vinho novo
A palavra liturgia (do grego λειτουργία, "serviço público" ou "serviço do culto")
compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com as tradições de
uma religião em particular (QUINSON, 1999, p.182).
A liturgia é considerada por várias denominações cristãs, como um ofício ou
serviço indispensável e obrigatório para a realização do seu culto. Nas diversas
confissões cristãs, a liturgia tornou-se, em suma, no seu culto oficial e público.
A busca de um equilíbrio na forma de culto e os seus aspectos litúrgicos tem
se diferido ao longo do tempo e das convicções de cunho teológico, em que os
extremos têm sido percebidos no amplo espectro religioso, especialmente no de
cariz reformado ou evangélico, com o formalismo e o rigor racional de um lado e o
emocionalismo e “barulhento” pentecostal, de outro.
Mas e a cultura, o modo particular de ser-se brasileiro, onde fica nisso?
Nos anos recentes, pouco a pouco, amplas discussões quanto ao formalismo,
mais do que as já estabelecidas e aprofundadas questões de cunho teológico, em
71 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
126
que os postulados católicos romanos e os reformados, ditam o andamento do
serviço, parecem ter sido promovidas.
O que “toca” o homem? E será que o do campo será o mesmo que o da cidade?
E o que diremos dos jovens, de uma geração que se formava em plena revolução de
costumes dos anos 1960?
Parece claro que não discutimos o mérito do aspecto ideo-teológico da liturgia
de origem reformada em contraposição àquela considerada no pensamento Católico
Romano, mas sim a forma, a sua dinâmica e não os seus porquês.
O reformador João Calvino citado por Thompson, condena com veemência a
liturgia romana
De todos os ídolos, ele não conhecia nenhum tão grotesco como
aquele no qual o sacerdote evocava Cristo em suas mãos pela
‘enunciação mágica’ e oferecia-o novamente no altar do sacrifício,
enquanto o povo olhava com ‘admiração estúpida’. (THOMPSON.
1961, p.185)
O reformador baseava a sua proposta de liturgia pelas escrituras, apelando
para o costume da igreja primitiva e na sua reforma do culto e adoração protestantes,
nas suas Institutas, editadas em 1536:
Deixando, pois, de lado todo este sem fim de cerimônias e de
pompas, a Santa Ceia bem que podia ser administrada santamente,
se com frequência, ou pelo menos uma vez por semana, se
propusesse à Igreja como segue: no início se faria orações públicas;
a seguir viria o sermão; então, postos na mesa pão e vinho, o ministro
repetiria as palavras da instituição da Ceia; depois, reiteraria as
promessas que nos foram nela anexadas; ao mesmo tempo, vedaria
à comunhão todos aqueles que são dela barrados pelo interdito do
Senhor; após isto, se oraria para que o Senhor, pela benignidade com
127
que nos prodigalizou este alimento sagrado, também nos receba em
fé e gratidão de alma, nos instruindo e preparando; e, uma vez que
por nós mesmos não somos dignos, por sua misericórdia aprouve nos
dignificar para tal repasto. Aqui, porém, ou se cantariam salmos ou
se leria parte da Escritura, e, na ordem que convém, os fiéis
participariam do sacrossanto banquete, os ministros partindo o pão e
oferecendo-o ao povo. Terminada a Ceia, se faria uma exortação à
fé sincera e à sincera confissão dessa fé, ao amor cristão e ao
comportamento digno de cristãos. Por fim, se daria ação de graças e
se entoariam louvores a Deus; findos os quais, a congregação seria
despedida em paz. (THOMPSON. 1961, p. 185, 186)
Resumindo-se, para o reformado, a liturgia do culto reformado, protestante ou
evangélico, “Não se fazia nenhuma reunião da Igreja, sem a Palavra, as orações, a
participação da Ceia e as esmolas”. E acrescentamos – tudo com respeito e a honra
devida ao Supremo Senhor Deus e ...Pai.
Mas como seria a liturgia que regularia uma reunião familiar, na presença do
pai? Seria a mesma numa família italiana? E numa tribo indígena? O que é um clima
de respeito entre filhos de 4 anos de idade? E entre adultos? Entre um público de
favela e no de um ambiente acadêmico?
É difícil tratar desse assunto – honra e respeito – nos dias de hoje, ou no dos
anos 1960, 1970, ...comparado ao do século XVI.
Pois dentro desta revolução, em curso naqueles anos, discretamente, mas
incendiária, não deixaram de existir as igrejas e comunidades que transformaram a
liturgia dos seus cultos e serviços, em algo mais livre e mais, portanto, criativo,
participativo e mais ...bem-humorado. Afinal, não havia como se alcançar as novas
gerações com um evangelho mais “humano” ou próximo da cultura do povo, sem
128
que estas tivessem acolhida em algum lugar que os suportasse. Era a exemplificação
da assertiva bíblica que afirma “não se acondiciona vinho novo em odres velhos”72.
Se era comum a constatação de que mais e mais jovens que pregavam em
ruas, praças em apresentações de grupos musicais como as dos Vencedores por
Cristo, ao ganharem novos adeptos, era comum verificar que não conseguiam estes
se adaptar nas igrejas para onde eram dirigidos. Era como se houvessem vendido
um peixe que não era encontrado depois nas igrejas. A pregação do “venha como
está!”73, hino popular e encontrado na maioria dos hinários tradicionais do
movimento evangélico, na realidade mostrava-se enganoso.
Bomilcar afirma
seis meses depois da minha conversão em julho de 1972, acho que
comecei levando a rua pra igreja, tanto que pelo meu meu jeito de
vestir, era convidado a assistir o culto na galeria. (...) eu era o cara
que eles empurravam pra frente para tomar as pancadas, eles
queriam fazer mudanças e então, eu era aquele que chegava com
cabelo comprido, chinelão, bolsa à tiracolo e o diácono me convidava
pra assistir o culto na galeria da igreja, pois destoava dos crentes da
época.74
Em meio ao tradicionalismo formal, mais do que apenas teológico, doutrinário,
surgiram no país, igrejas que transformaram o ambiente dos seus serviços religiosos.
72 Mateus 9, versos 16 e 17 73 Hino da Harpa Cristã nº 446, do hinário da A Harpa Cristã é o hinário oficial das Assembleias de Deus no Brasil, lançada originariamente, em 1922 74 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson. Entrevista 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
129
Se no meio tradicional, das igrejas históricas isso era algo impensável (a Igreja
Presbiteriana do Brasil, somente há alguns anos, admitiu na sua constituição, a
admissibilidade de igrejas de liturgia contemporânea), grupos pentecostais
independentes – até de matriz norte-americanas como, por exemplo, a Cruzada
Nacional de Evangelização, que teve o seu início em 1951, pelo missionário da
Foursquare Gospel Church, pastor Harold Willians, natural de Los Angeles – EUA,
auxiliado por um pastor latino americano, que promovia celebrações menos formais,
mais emocionais e com grande participação do público e que no seu nascimento
utilizava-se de tendas de lona. 75
Mas nem só de instalações improvisadas esses novos cultos aconteciam.
Exemplo maior dessas liturgias não engessadas, e que marcou época – e escola –
foi a “Igreja do Tio Cássio” ou Igreja Cristo Salva, que apesar de ter ficado restrita a
poucas congregações até hoje, marcou época e é emblemática pelo motor das suas
mudanças – o abraçar dos novos convertidos, especialmente os jovens.
Nascida pela paixão de um ex-empresário da cidade de São Paulo, Cássio
Colombo, convertido dramaticamente à fé evangélica em 1968, através do
testemunho de um ex-pastor presbiteriano influenciado pelo pentecostalismo,
reverendo Silas Dias e fundador da Igreja Evangélica do Espírito Santo, nesta
cidade, em 197476.
75 COUTO, Marcos. As Igrejas oriundas da Cruzada Nacional de Evangelização. Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/pentecostalismo/pentacostalismo.php. Acesso em 07 de maio. de 2018. 76 Entrevista concedida pelo Tio Cassio a Revista Vinde em novembro de 1998. nota 34.
130
Fruto da sua paixão pessoal e no que afirmava ser chamado divino, Tio Cássio
abriu as portas de uma nova congregação, numa casa no bairro paulistano de
Planalto Paulista, onde está até hoje, mesmo após a sua morte em 1998.
Mesmo sem formação teológica, o ex-empresário que nutria uma paixão
indiscutível por acolher gente rejeitada fez escola e até hoje é referenciado pela
contribuição ao crescimento do movimento evangélico brasileiro. Das portas – e
acomodações – da sua própria residência à casa onde mais tarde seria a sua igreja,
passaram centenas de pessoas, jovens, drogados ou não. Numa entrevista, “tio”
Cássio confessa o tamanho do desafio pessoal que acreditava ser um chamado
divino, “não consigo nem cuidar dos meus filhos, vou cuidar dos filhos dos outros?”77
Fato é que essa casa, transformada em templo, se enchia às segundas pelas
noites, de jovens - de família ou das ruas - alcançados pelos movimentos de
evangelização, dentre os quais o seu “Equipe Realidade em Cristo”, fundado em
1970 e, principalmente, muitos que apesar de pertencerem a igrejas tradicionais,
vinham ter contato com um evangelho que apresentava um Deus que os aceitava de
fato, como eram – com cabelos compridos, de calças desbotadas ou coloridas, ... –
e onde não eram recriminados por isso. O “Tio Cássio”, muitos ainda hoje
reconhecem, era o pai de quem os pais – e até as igrejas - haviam menosprezado e
abandonado.
Silveira Neto, hoje pastor do movimento Cristo Salva, relata
A mudança para uma casa melhor e que pudesse acomodar a nova
realidade da família, abre espaços para mais jovens. O que acontece
naturalmente. A ideia nunca foi o de uma igreja, mas sim o
encaminhamento posterior para outras igrejas. O conflito era gritante
77 Idem.
131
as diferenças imensas entre estes que vinham chegando e as igrejas
tradicionais e suas lideranças. Não existia a possibilidade de diálogo.
O pastor Silas Dias, mentor e companheiro, começava a ver que não
havia a possibilidade de manter a reunião caseira como um convite
para a vinda para a igreja. O choque era inevitável, no despreparo
para receber estes “novos convertidos” e seus hábitos, suas músicas,
seus instrumentos e sua fé. (SILVEIRA NETO, 2012, p.50)
A liturgia era simples tanto quanto absolutamente inusitada: todos se
assentavam ao chão (não havia cadeiras ou bancos) e para além das músicas que
se cantava nas ruas – ou nos acampamentos – eram embaladas por instrumentos
“indignos” nas suas igrejas de origem. Na hora da oferta, eram todos desafiados a
levantá-las ao ar e, após a oração de “consagração”, eram atiradas à frente onde
oficiais – igualmente jovens – as ajuntavam com vassouras para serem coletadas,
num clima de respeito e reverência, próprias da juventude.
Silveira Neto na sua pesquisa sobre a teologia defendida na Igreja Cristo Salva,
afirma
Tentar definir uma postura doutrinária e teológica do Tio
Cassio, é uma tarefa quase impossível. Mesmo porque
qualquer rotulação tende ao erro, e ao julgamento, sem um
conhecimento das causas em sua totalidade, tende a ser
“infantil” e imaturo. O “caldo”, a somatória de informações e
posturas doutrinárias e teológicas que chegavam até o Tio
eram muitas e embasadas, por muitas contradições
experimentadas, por seus autores ante as doutrinas e
teologias tradicionais. (SILVEIRA NETO, 2012, p.61, 62)
A Igreja Cristo Salva, foi acompanhada de perto e apoiada por inúmeros líderes
que se reuniam mensalmente para reuniões de oração e de partir o pão – de
pastores, tais como os presbiterianos Rev. Caio Fábio Araújo Filho e Rev. Antônio
132
Elias, Pr. Enéas Tognini, Pr. Carlos Alberto Bezerra, Pr. Carlos Alberto Antunes, ex-
professor de sociologia na ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing de
SP, jovens pastores como Adhemar de Campos, que mais tarde viria ser um
compositor e músico conhecido de toda a igreja protestante brasileira, Rubinho
Pirola, este pesquisador-cartunista e, em encontros periódicos, até teólogos
respeitados, sobretudo pela comunidade tradicional, como o Reverendo Dr. Russell
Shedd 78.
É importante frisar que vários grupos musicais, músicos e equipes de alcance
de juventude que marcariam gerações nos anos seguintes com atuações em
escolas, praças, universidades, colégios, igrejas pelo país foram formados ali, tais
como o Oficina G3, Manga, Brother Simon e tantos outros.
Este padrão – novo – de trabalhar uma liturgia adequada para o povo –
especialmente os mais jovens - e não forçar o povo para uma liturgia, acabou por
influenciar e deu origem a igrejas e ministérios por toda a parte.
3.6. A pregação e crítica à incoerência no humor evangélico e na linguagem da publicidade, nas metáforas visuais
Incoerência era o que não faltava à fé evangélica. Se no credo – de origem
reformada – a fé na obra vicária de Cristo é que salva e não as obras de uma criatura
moralmente caída, então não se promovia obras sociais, assistenciais ou de socorro
aos mais pobres (ou de envolvimento com as “coisas desse mundo”, como vimos
78 Russell Philip Shedd (1929 -2016) foi um teólogo e escritor evangélico e missionário da Missão Batista Conservadora no Sul do Brasil, fundador das Edições Vida Nova e professor de faculdades e escolas teológicas. Era membro da Igreja Bíblica Evangélica da Comunhão (IBEC) e escreveu dezenas de obras reconhecidas e foi membro de comissões de traduções da Bíblia.
133
anteriormente) – pelo menos não institucionalmente. Se a adoração às imagens era
algo abominável e era parte do ideário de fé evangélico, não se podia admirar ou
sequer produzir desenhos, pinturas, retratando algum personagem bíblico. E assim
a identidade cristã não católico-romana ia se formando – mais pela negação ao que
não se era, do que reafirmando os seus próprios valores.
O sacerdócio agora, sob a ótica reformada, antes universal, estava subordinada
à palavra do pastor, indiscutível e não sujeita ao julgamento do fiel; se a salvação é
fruto da obra vicária do Cristo, e não há obra humana que se a compre, então na
época não se devia envolver com ações de cunho emergencial ou social e só se
podia ocupar da salvação das almas, não dos corpos, ...e por aí afora. Na negação
do que era ser-se católico apostólico romano, passava-se por cima da teologia
reformada, para o que Alderi de Matos, hoje historiador oficial da Igreja Presbiteriana
do Brasil, reconhece que até aos dias de hoje, existe um substrato histórico
riquíssimo de transformação social oriundo da fé reformada, contudo parece que
essa herança foi esquecida. Ele afirma “um desafio para esse segmento é articular
uma clara reflexão e práxis social, algo que tem enorme importância histórica na
tradição reformada, mas pouca expressão prática na experiência atual (dos
brasileiros)”. (MATOS, 2008. p.264)
A igreja evangélica era mantida longe da realidade e isso produziu por anos,
uma deficitária participação deste segmento em ONGs e associações de cunho
assistencial, tornando-a alvo de críticas de dentro e de fora dele. Afinal, era parte de
um país onde boa parcela da população vivia abaixo da linha da pobreza, e que vive
toda sorte de idiossincrasias. Que necessita de salvação, e também de pão. Um país
que ainda tem a marca da corrupção e da injustiça, e onde são tão poucas as vozes
134
de cristãos que levantam sua voz contra todo esse "status quo". Mas como denunciar
a postura? Como ir-se contra aquela realidade?
Bem antes da presença evangélica ter sido notada em empreendimentos
comerciais ou iniciativas que produzissem lucro, marca do mercado gospel que iria
florescer nas décadas seguintes, alguns projetos embrionários trouxeram a fé numa
roupagem de humor e criatividade para a mídia possível, a que se tinha acesso – ou
recurso que a bancasse. Mas nem sempre isso era aceito. O formato bem-
comportado, ou sério, prevalecia não sem uma censura do que saia dos artistas.
Bomilcar registra o fato
escolas acampamentos e rádio, essas eram as alternativas de
criatividade, pois a mídia impressa era cara! Que eu me recorde, o
primeiro cartunista de humor evangélico, na minha lembrança foi
você, Rubinho79. Na minha época não estou me lembrando de
nenhum outro. Em 79 quando estávamos mais ou menos próximos,
você trabalhando com a revista Elo80 e eu no estúdio gravando, lá na
Lacerda Franco (e São Paulo). Nesse mesmo período o pessoal da
APEC81, convidou-me para fazer alguns cassetes para que eles
pudessem evangelizar as crianças, fiz um o primeiro por uma questão
de “conversação”, para depois de fato, fazer outros projetos pro
universo das crianças, uma outra linguagem – eles tinham que
evangelizar os evangelizados antes! E quando apresentei o projeto,
que eles disseram que não seria recusado, não permitiram, tentei
fazer alguma coisa de fato com a linguagem das crianças, uma coisa
79 Começamos na ilustração e arte editorial e no cartum de propaganda evangélica em 1979 com a publicação de histórias em quadrinhos que vinham encartadas na Revista Elo, com o personagem “Juvenal o crente quase normal”, com críticas ao padrão de espiritualidade da época e com algum ensino 80 Revista de conteúdo cristão evangélico, bimestral que durou por seis números, de 1979-1980, com tiragem de 30 mil exemplares, em policromia e num ineditismo para a época, era interdenominacional, mantida por assinaturas e o investimento dos donos de uma grande empresa de consultoria e publicações para a área contábil em São Paulo-SP 81 Aliança Pró-evangelização de Crianças - APEC é um ministério dedicado à alcançar crianças. Fundada pelo Rev. Jesse Irwin Overholtzer, em 1937, em Chicago, Illinois, Estados Unidos. No Brasil, foi fundada em 1941
135
mais lúdica, e não permitiram. Toda essa linguagem era vista pelo
canto de olhos lamentavelmente, sempre, sempre.82
Prevalecia na época, um rigor contra a fé da maioria, do “inimigo” a ser
conquistado, o católico adorador de imagens e para isso, não se podia “alimentar” a
crença popular nas imagens de escultura ou de pinturas, um erro imperdoável para
um cristão herdeiro da fé reformada.
Jasiel, que também é ilustrador e cartunista, concorda e afirma que
Quando eu comecei a desenhar eu fiz uma revista pra criança, eu
tinha a preocupação se eu podia fazer imagens de Jesus, eu tive esse
conflito, como é que desenho Jesus, como é que desenho os santos,
os apóstolos e tudo? Isso aqui no Brasil, porque se você vai aos
Estados Unidos, não tem isso. Eu fui à Coreia e nossa! Parecia uma
loja católica, porque tinha de tudo e na Inglaterra a mesma coisa.83
Inovação, ousadia eram palavras condenadas. Tudo a que se acrescentasse a
palavra “novidade”. À semelhança que existia no país do “lado de fora” ou do
“mundo”, tudo o que não estava circunscrito ao espaço do “sagrado”, tentava-se frear
qualquer iniciativa de se pensar além do permitido.
As artes estavam censuradas do lado de fora, mas dentro das igrejas, o máximo
que se permitia era a música, mas esta, importada e confinada à roupagem
tradicional.
82 Entrevista concedida por BOMILCAR, Nelson 2 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (38,21 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação 83 Entrevista concedida por BOTELHO, Jasiel. Entrevista 3 [out. 2017]. Entrevistador: Ruben Pirola Filho. São Paulo, 2017. 1 arquivo .mp3 (36,25 min.). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice desta dissertação
136
Nesta atmosfera, surge em São Paulo, no bairro do Cambuci, em 1978, um
empreendimento inédito, uma editora que lança uma revista, talvez uma das
primeiras, juntamente com a Revista Ultimato, destinada ao público cristão
evangélico, sem estar ligado a uma igreja ou corrente, sem cor denominacional, a
Editora Musical e Literária Elo. Fruto do investimento dos sócios – de origem batistas
ou da Igreja dos Irmãos84 - de uma editora voltada ao mercado jurídico tributário, que
editava na época o Mapa Fiscal, aventurou-se pelo mercado evangélico, com livros
cristãos, em cerca de meia dúzia de títulos, gravações de discos de qualidade
também inéditos para a época através da Banda Elo, que era liderada pelo filho do
empreendedor e a sua revista Elo, com tiragem de 30 mil exemplares, impressa a
cores e em papel couchet. Era a primeira grande investida rumo ao mercado que
alavancaria milhões e que, mesmo nos anos de crise, posteriores aos anos 1980,
continuaria crescendo, par e passo com o aumento exponencial de igrejas e novas
agremiações.
84 Também chamados de Darbistas embora muitos de seus membros rejeitem qualquer nomenclatura. No Brasil são mais conhecidos como Casa de Oração ou Igreja dos Irmãos, Irmãos Unidos ou Irmãos Livres. Os primeiros irmãos eram membros da ala evangélica da Igreja da Inglaterra e oriundos de igrejas protestantes livres que começaram a se reunir na Irlanda e Grã-Bretanha. Um dos seus primeiros líderes foi John Nelson Darby, que pretendia restaurar um cristianismo simples e expunha a Bíblia com um paradigma teológico dispensacionalista.
137
Figura 12 -Visões de jornais da época: (da esquerda para direita) Jornal Mensageiro da Paz, órgão oficial das Assembleia de Deus, de 1944 e ao lado, sua edição de 1979; O Jornal Batista, órgão máximo da denominação, de 1978 e por último, a Revista Ultimato, outra pioneira, 1979. As publicações geralmente eram impressas em uma cor, a não ser em ocasiões especiais, quando ganhavam algum luxo extra. Mas geralmente eram de uma estética limpa, no melhor estilo baseado em forma – função – e sem maiores arrojos com a arte.
Fonte: arquivo do autor
138
Figura 13 - As capas da Revista Elo, impressas em papel de luxo e em cores.
Fonte: arquivo do autor
Figura 14 - As ilustrações que, pioneiramente, abusavam da metáfora visual, linguagem vinda da publicidade e que se utilizava do humor.
Fonte: arquivo do autor
139
Figura 15 - Ilustração da revista, associando as ideias - a bomba de combustível e a metralhadora – linguagem visual própria da publicidade, criada pelo autor desta pesquisa, fugia à estética religiosa da época.
Fonte: Arquivo do autor
Os livros e a Revista Elo, eram distribuídos via assinatura e trariam inovações
na estética “oficial” evangélica, sempre iconoclasta, e publicaria em grande tiragem
para a época as primeiras histórias em quadrinhos como encarte da publicação e a
utilização de metáforas visuais nas ilustrações – próprias da linguagem publicitária -
ferramentas poderosas, que envolvem o cérebro como nas metáforas textuais,
estimulando os sentidos de forma intensa a forçar associações.
Sobre a utilização do riso para a defesa da fé, Minois pergunta, “Por que não
utilizá-lo (o humor) contra o mal, contra as heresias, contra a impiedade? Ele pode
140
servir para estigmatizar os vícios e os pecados, para fulminar o adversário mal
pensante”. (MINOIS, 2003, p. 297)
O humor surgiria agora publicado, objetivando não apenas a propaganda da fé
e dos valores evangélicos, mas explorando a crítica e a ironia contra a incoerência
dos fiéis, do modelo-padrão dos que eram arregimentados pelas igrejas: o sujeito
que não bebia, não fumava, tinha hábitos espartanos de vida, num padrão ascético
por fora, mas por dentro não havia assimilado bem a ética e a virtude do “novo-
nascido”, o convertido de fato. Foi a vez do personagem “Juvenal – o crente quase
normal”, criado por este pesquisador e Paulo Gonçalves Borges Júnior, ambos de
formação e tradição presbiteriana e o último, pastor formado pelo Seminário
Presbiteriano do Sul.
Figura 16 - As histórias em quadrinhos vinham encartadas ao meio da publicação, em papel diferente, kraft, para se destacar do conteúdo - sério e mais "respeitoso à linha editorial" e, claro, ao público.
Fonte: Arquivo do autor
141
Ainda que o nome original não tenha sido aprovado pelos editores – “Juvenal -
o crente cara-de-pau”, seu humor foi assimilado logo de início e a sua aceitação
garantida não só pelos jovens como pelos mais maduros e tradicionais, alcançados
pela publicação.
O personagem, Juvenal, servia como ícone do cristão tradicional, sem
profundidade na fé e vacilante quanto às doutrinas evangélicas. Num humor que
visava a propaganda, também tinha uma vertente apologética, mostrando a
incongruência em que vivia o cristão – de reta doutrina, como era chamado por
Rubem Alves, o cristão evangélico, reformado, tradicional – e em especial a
juventude. Cheio de citações bíblicas, as histórias do personagem mostravam essas
incoerências todas na prática da fé dos cristãos da época, era a comparação e a
constatação entre o que se vivia e o que se afirmava crer. Citado por Minois, afirma
Robert Favre, “Há na Bíblia uma fonte permanente de cômico, que provém da
conflagração do sagrado e do profano”. (MINOIS. 2003, pg 117).
O próprio Minois conclui sobre a validade do riso na defesa da fé, “o riso não é
nem divino nem diabólico; é uma arma, e todas as armas são boas contra os
adversários da verdadeira fé”. (MINOIS, 2003, p. 297)
Usando o humor, os autores de Juvenal faziam apologia do pensamento
evangélico contra as incongruências e os desvios de conduta dos seus pares, que
podiam se identificar com o personagem.
142
Fonte: Arquivo do autor
Figura 17- As histórias vinham com referências bíblicas para um melhor aproveitamento do leitor, na melhor prática reformada de confiança no livre-exame dos textos bíblicos.
143
Figura 19 - Nas aplicações dos textos bíblicos, situações corriqueiras da vida em comunidade.
Fonte: Arquivo do autor
Fonte: Arquivo do autor
Figura 18- A defesa da fé num encarte da Revista Elo, contra as heresias da negação do criacionismo
144
Apesar do sucesso e do seu ineditismo, a editora não durou mais do que por
ano e meio, encerrada após a trágica morte do seu líder (e esposa, um filho e a sua
babá), num acidente de carro, Jayro Gonçalves, o Jayrinho, que deixou canções que
até hoje são cantadas nas igrejas evangélicas.
No período, até no interior do país, a estética simplória usada nas publicações
– de revistas das denominações e até nos panfletos e cartazes, foi substituída,
naquela época dos anos 1970 e 1980, pela linguagem da publicidade e propaganda,
marcando um novo e arrojado estilo de se comunicar.
Fonte: Arquivo do autor
Figura 20 - Cartaz em formato A2 de um programa de evangelismo em praça pública, de 1978.
145
Figura 21- Camiseta com coração e esparadrapo, a linguagem da publicidade ao serviço da fé.
Fonte: Arquivo do autor
Figura 22 - Exemplo de folhetos de persuasão e de propaganda religiosa, que até hoje é usado com a mesma estética, pelas igrejas evangélicas. E ao lado, um de 1984 já num estilo despojado, coloquial e bem-humorado que começava a surgir (copyright Sociedade Bíblica Ebenézer e por último, de autor desconhecido).
Fonte: Arquivo do autor
146
Se os anos eram de chumbo e a música se mostrava como uma excelente
trincheira para os opositores do regime, no meio evangélico ou de matriz reformada
também viram surgir críticos às suas incoerências.
Talvez o mais emblemático deles, tenha sido Janires, ou Janires Magalhães
Manso (1953-1988), cantor, compositor, produtor musical, arranjador e multi-
instrumentista capixaba, surgido no fim dos anos 1970. Um dos principais
renovadores da música cristã de matriz evangélica, teve experiências com drogas,
acabou preso, até tornar-se um cristão e passado por uma casa de recuperação, que
desde sempre se mostrou para além do seu valor social na reabilitação de jovens
editos, uma estratégia de alcance formidável da juventude pelo proselitismo
religioso.
Foi o fundador e um dos vocalistas do grupo Rebanhão, talvez a primeira banda
de rock cristão do Brasil a alcançar notoriedade nacional (e que também passou pela
Igreja do Tio Cássio). Foi autor de músicas em ritmos nacionais tais como o Baião,
para além do rock. Mas o artista era tão admirado quanto atacado sem dó pelos que
não gostavam de juntar o sagrado ao popular, à revolução que representava ainda,
não apenas usar-se acordes não “santos”, conforme a cultura ainda importada de
matrizes europeias e norte americanas, mas também por falar a língua das ruas. Ele
era o “crente” condenado pelo pecado inominável pelos tradicionalistas por chamar
a parousia 85, de “show”, que todo olho verá e diante do que, todo joelho haverá, um
dia, de se dobrar.
85 Palavra grega usada com o sentindo de presença ou vinda. Seu uso indicava a presença ou chegada de um rei ou governante. No Novo Testamento ela é usada designar a segunda vinda de Cristo à Terra, primeiramente para os fiéis e depois para todo o mundo.
147
E nisto, Janires foi um mestre. Na sua música “Etc e tal”, Janires expõe sua
crítica à uma fé conservadora, alienada (omissa à sua vocação profética) e legalista
dos crentes (não faça isto, não faça aquilo... não vá ao cinema...), ao rigor do
legalismo judaizante (na aversão à carne de porco), como à tentação que já
assediava os fiéis à uma corrente que cresceria exponencialmente nas décadas
seguintes, a do neo-pentecostalismo e sua devoção ao consumismo e ao narcisismo.
Etc e tal
Embaixo, embaixo, embaixo,
Embaixo, da ponte
As pessoas, as pessoas, as pessoas
Roubando e matando sem saber de uma cruz
Sem saber de Jesus, Sem saber de Jesus
Jesus, Jesus
Em cima, em cima, em cima,
Em cima da ponte
Nós os crentes tranquilamente
Se achando no direito de ficar descontente com Deus
Não comprou carro novo não
Não comprou carro novo não
Não, não, não
Em cima da ponte
Escrito em mural
Não vá ao cinema!
Não leia jornal!
Não tome café!
Etc e tal
148
Não! Não! Não!
Não coma costelinha de porco!
Deixa que eu como,
Não coma não, deixa que eu como!
(Gravação em Fita Cassete, sem registro de gravadora e ano. Fonte: arquivo do autor)
Ou ainda na sua música de cunho evangelístico, ou proselitista, “Baião”, de
1981, não bastasse o ritmo mais do que condenável, em que o seu testemunho de
andança e procura espiritual, se misturam à crítica econômica e social, numa
linguagem de fazer corar qualquer cristão da época pelo seu humor e sarcasmo.
Baião
Minha vida aqui era muito louca (louca)
Só faltei correr atrás de avião (de avião)
Mas Jesus entrou no meu deserto (no meu deserto)
Inundou o meu coração
Eu era magro que dava dó (que dava dó)
Meu paletó listrado era de uma listra só (de uma listra só)
Mas Jesus entrou no meu deserto (no meu deserto)
Inundou o meu coração
Sem Jesus Cristo é impossível
Se viver neste mundão
Até parece que as pessoas estão morando no sertão
É faca com faca, é bala com bala
Metralhadoras e canhões
Até parece que as "facurdade" só tá formando lampiões
E lampião e lamparina,
149
Vela acesa e candeeiro
Nunca vai salvar ninguém
Inda se vai gastar dinheiro
E o dinheiro anda mais curto
Do que perna de cobra
Filosofia de malandro:
"No bolso ele bota e nunca sobra"
E o que tá "fartando" de amor
Tá sobrando iniquidades
Todo mundo se odiando
Pelas ruas, pelas ruas das cidades
Se essas ruas, se essas ruas fossem minhas
Eu pregava cartaz
Eu comprava um "spray"
Escrevinhava nelas todas
"Jesus is the only way!"
Jesus é o único caminho
Pra quem quer morar no céu
Quem quiser atalhar vai pro beleléu!
Jesus é o único caminho
Pra quem quer morar no céu
Quem quiser atalhar vai pro beleléu!
Jesus é o único caminho
Pra quem quer morar no céu
Quem quiser atalhar vai pro beleléu!
(fita K7 Janires & Rebanhão - 1979 - ao vivo - São Paulo)
150
Em outra composição, “Liberdade”, Janires confronta a cultura dos jovens, dos
refrões populares e já do consumismo, reafirmando a sua fé
Liberdade
Liberdade não é uma calça desbotada ou rasgada... Liberdade não é dedo para o ar...
Liberdade é ter Jesus no coração e saber que Ele vai voltar!
Lei da evolução: Macaco! King-Kong, já era...
Deus nos amou, Deus nos criou;
Louvado seja o nosso Senhor...
Hosanas ao nosso Senhor!
Estão vendendo amor.
Estão vendendo amor em refrigerante...
Mas esse papo só cola em comercial de televisão!
Só tem amor quem tem Jesus Cristo no coração, no coração!86
Após sair do Rebanhão, mudou-se para Belo Horizonte, cidade onde passou a
apresentar um programa numa rádio, além de fazer um trabalho de evangelização
com jovens na Mocidade para Cristo e com uma nova banda.
Mesmo com sua curta carreira, o cantor é considerado um dos maiores
compositores da música cristã contemporânea e suas obras fizeram escola,
moldando o tipo de musicalidade dos anos seguintes.
Maurão, um dos pioneiros na utilização de bonecos e do humor, também foi um
compositor genial na forma de testemunhar a fé. Uma das suas canções fazia o
relato da sua peregrinação por várias correntes religiosas até ao evangelho de
86 “Liberdade não é uma calça desbotada...”, música e letra de autoria de Janires, composta e cantada pelos finais dos anos 1960 e início dos anos 1970, com grande sucesso, embora jamais tenha composto a discografia do autor.
151
maneira nada convencional, além do ritmo, o samba, inovador pra época, e hoje
politicamente incorreta, criticando uma religiosidade meramente superficial, fosse ela
no Catolicismo, o Espiritismo ou nas religiões orientais, “Pagode das Religiões”. Ela
diz
Pagode das Religiões
Encontrei Jesus, conheci a paz
E você, meu rapaz, se quiser pode ter essa luz
É prestar atenção pro que ele falou
E se abrir de coração pra o que ele deixou.
Eu fui lá na Seicho-No-Iê no meio da japonesada
Aprendi umas reza esquisita, umas palavras engraçadas
Mas enjoei da papagaiada e fui saindo de fininho
Botei o pé na estrada e encontrei o meu caminho.
Fui lá no Centro Espríta mas meu coração não subiu
E acendi até vela pra Cida, padroeira do nosso brasil
Eu achava tudo bonito, só faltava sinceridade
Dei um chute na mentira e agarrei-me com a verdade.
Fui no templo dos Hare-Krishnas, palitinho cheiroso cheirei
Me arrumaram uma roupa esquisita e até carequinha fiquei
Tudo aquilo não valeu nada, minha alma ainda estava perdida
Dispensei a dona morte e abracei-me forte à vida.
Religião pode ser uma boa, mas nem sempre faz um bom papel
Por mais bonitinha que seja não leva ninguém para o céu
No final desse meu pagode, se você gostou eu não sei
Mas eu tinha que falar de Jesus que eu encontrei.
(Gravadora: Bom Pastor Gospel, originária de 1980, mas gravada em 1988)
152
Mas a leveza e o escárnio já eram vistos nas canções que se, não eram
cantadas nas igrejas, nos cultos, eram presença constante nos acampamentos e
programas da juventude. Era o caso de “Corinho do Domingo”, de autor
desconhecido.
Corinho do Domingo
Domingo eu pego a minha nega87
E boto minha roupa mais legal
A escola já está toda reunida
Pra mais uma reunião dominical
Iracema vai mexendo com as cadeiras
Arrumando o lugar pra o pessoal
É a reunião dominiqueira
Da mocidade independente
Que só depende de Jesus, laiá-lá-iá
É a reunião dominiqueira
Da mocidade independente
Que só depende de Jesus, laiá-lá-iá
(Fonte: arquivo do autor, em fita cassete, de autor ou intérprete desconhecido)
Vindo da publicidade, o músico Vavá Rodrigues, despontava naqueles anos
dos meados de 1970, em São Paulo e desde lá tem sido um dos grandes da música
cristã e de um humor que desde cedo é sua marca. De origem Presbiteriana
Independente, colaborou com com a ABU – Aliança Bíblica Universitária e JOCUM
– Jovens com uma Missão. Redator publicitário, músico autodidata, compositor e
produtor de jingles. Autor de músicas emblemáticas como “A Alegria Está No
87 A Bíblia, geralmente, na época era encontrada invariavelmente com capa na cor preta!
153
Coração”, “O Dia Da Vitória” e “Mãos Limpas”, algumas de suas canções foram
gravadas por Vencedores Por Cristo, Expresso Luz, Família Maranata, Carlos Sider,
MILAD, entre outros intérpretes. Na sequência do seu trabalho inovador e com cheiro
bem brasileiro, tem gravado hinos tradicionais tocados em viola caipira e sanfona e
outros voltado para o público infantil, transformando parábolas do Novo Testamento
em canções com uma linguagem fora do convencional. Mas foi no “O samba enredo
de Moisés, o gago”, tão improvável quanto condenável, que revelou a sua verve em
juntar o sacro e o profaníssimo ritmo, nada mais brasileiro, ressaltamos:
O samba enredo de Moisés, o gago
Moisés, antes de ir pro Egito, ouviu o Criador!
Foi no alto do Monte Horebe
A sarça ardia, mas não se consumia.
Então, Deus deu ordem para Moisés: vá falar, meu filho, com o Faraó!
Diga: liberte o meu povo! Essa é a ordem que eu dou!
Co-co-como é que eu posso fa-falar assi-ssim?
Se-se eu sou ga-ga-gago
Se-Senhor tem dó de mim!
Vai meu filho!
Vai meu filho, eu contigo sempre serei
As palavras na tua boca, eu colocarei.
Eu te mando Arão para ser o teu porta-voz
Não te pasmes, nem te espantes
Pois eu contigo sempre serei.
Faraó se amarrudou, não deixou o povo ir
154
Deus, o castigo mandou e foi bem assim e olha aí;
Uma praga, duas pragas, cinco pragas, até dez
Ninguém pôde segurar a proeza do Moisés
A Salvação!
A salvação é concedida através da entrega.
Entregando a Jesus a vida
O resto, Ele vai cuidar... lalaiá, lalaiá!
Lalalaiá, lalaiá, lalaiá, lalaiá
(Original nunca gravado)
Outro compositor, não tanto conhecido, engenheiro, pastor de origem
presbiteriana e também parceiro de Vavá, Marcos Barros, lançou no interior mineiro,
o seu “Tango do João Crentão” de 1980, mostrando as idiossincrasias do adepto
protestante, do fiel evangélico da altura. Nela, Barros retrata uma ocorrência muito
presente nas comunidades, daquela em que o sujeito se dizia convertido, adepto à
religião, mais por uma postura ascética, do que pelas suas convicções de fundo
teológico - aquela em que não se consumia bebidas alcóolicas, não se fumava, não
se dançava ou jogava-se jogos de azar, mas quem nem por isso demonstrava
conhecimento bíblico ou convicções mais, digamos, essenciais à fé evangélica. Na
composição, ele mostra como práticas abomináveis eram reduzidas a quase nada,
em comparação à falta – gravíssima – de se opor ao “padrão comportamental” mal-
humorado e rígido das igrejas.
A sua música retrata bem a crítica:
155
Tango do João Crentão
João Crentão, era um sujeito muito bom.
Precisam ver sua vida particular
Na quinta feira e também todo domingo,
está sempre na igreja no primeiro lugar.
Confia em Deus, de todo o seu coração
Mas consulta sempre o horóscopo,
Para ver se o dia vai ser bom.
Sou dizimista, e no juízo final
Deus vai ter que levar em conta,
Afinal não fui tão mal.
(Música nunca gravada, mas cantada em encontros e acampamentos)
Barros foi dos fundadores de um grupo musical e de evangelização surgido na
Igreja Presbiteriana Central da cidade de Uberlândia-MG, chamado Conjunto Sal da
Terra, que acabou por fundar uma nova denominação – a Igreja Sal da Terra - após
uma crise entre o grupo, e a IPB, nos anos de 1985. O grupo insistia numa liturgia
mais livre, e práticas não convencionais, como as do uso da arte e do humor, para o
alcance dos jovens daquela cidade universitária. Vale ressaltar, que mesmo não
tenham sido acusados de negar qualquer um dos pontos mais caros aos
presbiterianos, como os da Constituição da igreja ou da sua Confissão de Fé,
acabaram eles por perder a confiança – e as consequentes condições para
continuarem membros daquela denominação.
156
Como era praxe na congregação da qual fazia parte o grupo Sal da Terra, ainda
presbiteriana, o humor era o tom, até mesmo numa das peças mais tradicionais das
igrejas tradicionais - o seu boletim semanal. Nele, pode-se ainda hoje esperar avisos,
convites, a agenda da congregação e, como não podia deixar de ser, uma
mensagem, geralmente publicada pelos pastores, um estudo bíblico ou uma
exortação pastoral. Em 1978, o humor era usado sem reservas, mesmo numa igreja
tradicional, a ironizar uma fábrica de cigarros da cidade e de renome internacional,
num mero pedido de oração de ação de graças pela libertação do vício do fumo, na
imagem a seguir.
Figura 23 - Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba.
Fonte: arquivo do autor
No “Bilhetim”, o boletim da congregação – assim mesmo, sugerindo o “sotaque
mineiro” - trazia uma mensagem pastoral nada convencional, com humor e cartuns.
E assim, o formalismo dava lugar ao coloquial, ao tratamento não tão formal e mais
157
próximo, não apenas do cidadão comum, do membro da igreja, como aos “de fora”.
Pouco a pouco, as igrejas foram usando de mais leveza nessa ferramenta de
comunicação das congregações e, mais uma vez, a publicação do interior mineiro
retratava esse arrojo.
Figura 24- A adoção de mais leveza – no design e no tratamento coloquial, nas capas de boletins – os dois primeiros, da Igreja Presbiterianas Independente, do Bairro da Bela Vista, em São Paulo-SP, de 1969 e de Osasco-SP, de 1984 e o exemplo do humor, no Boletim da Igreja Presbiteriana Jardim Karaíba, em Minas Gerais, de 1984.
Fonte: arquivo do autor
158
Naqueles anos, parecia que o crime maior era insurgir-se contra um rigor que
passava longe da teologia, mas ficava restrita à forma como a desenvolviam. Não
bastava crer (ou endossar-se uma profissão de fé, uma doutrina ou credo) tinha de
parecer-se ou agir como um seu adepto (segundo uma rigidez estética própria) e
isto, não raríssimas vezes significava na defesa desse posicionamento, como vimos,
passar por cima dessas próprias convicções teológicas de cunho reformado,
evangélico.
159
4 - Considerações Finais
Observamos que uma nova postura tomou conta da pregação das igrejas
evangélicas do Brasil, especialmente a partir dos anos da ditadura. E nela, o humor
foi determinante não só como linguagem - na estética, nas artes - mas como postura.
Mesmo produzido pelos críticos da fé que, por esta via, castigam os excessos
de fundamentalismos de alguns e da hipocrisia de outros, o humor é complementado
por seu uso bastante fecundo pelos membros de agremiações e igrejas, mais
comprometidos com a causa. Essa postura foi acelerada em seu poder seja pelas
novas possibilidades de comunicação midiatizadas, seja pelo surgimento de novos
intervenientes ou atores que romperam com o mau-humor dos seus predecessores.
E essa revolução da aproximação da religião com o público, aconteceu onde o
humor, a ironia, e até o escárnio e a caricatura produziram uma fé mais dinâmica,
leve e, portanto, mais próxima do cidadão. Além disso, ela impediu em muitas
comunidades, aquele tipo de fé esquizofrênica, que ora tinha uma personalidade –
dentro dos templos e reservada à prática de um dia – o domingo - ou momentos
apenas na circunscrição dos limites dos serviços – nos cultos ou serviços religiosos
– e outra, na vida em sociedade, ou nos salões paroquiais, sociais, retiros ou
acampamentos – onde haveria outra divindade, aquela mais bem-humorada, e suas
próprias demandas.
A negação da junção religião-humor, estabelecida pela ditadura religiosa,
apenas fez surgir uma ortodoxia morfológica capaz de sacrificar, de uma só vez a
ortodoxia teológica e a coerência. As bases sobre as quais o movimento evangélico
dizia haver, fundadas pela Reforma do século XVI, foram deixadas de lado: o
sacerdócio que separava iguais; a vocação para qualificar somente o trabalho
160
sacerdotal, clerical nas mãos não de todos, mas apenas de alguns; o templo como
espaço sagrado, embora feito por mãos humanas, reduzindo o Todo Poderoso Deus
aos seus limites e não mais dentro do fiel, feito templo de carne-e-ossos; o culto
restrito a apenas um dia e não estendido na prática cotidiana da vida e a liturgia
como sinal de respeito, mas não de alegria, arte e criatividade. Se os judeus do
Antigo testamento padeceram do mesmo mal e a cristandade Católico-romana,
também os evangélicos, nesse período da ditadura militar.
O discurso, a pregação ou a propaganda cristã reformada ou evangélica
padeceu, e muito, sob essa ótica mal-humorada, encerrando na época o movimento
às zonas periféricas das cidades – onde ainda continuam muitas igrejas e
comunidades por não terem ganho a capacidade de inovar, até os dias de hoje –
numa prédica mais de apontar de dedos, de estabelecimento de muros, que de
construir pontes de aproximação com a sociedade, buscando a sua conversão, e
deixando de lado o que o riso tem de melhor nas suas funções sociais, na sua textura
emocional, como aliás bem apontou Berger, ao citar Henri Bergson
para alguém rir de algo que lhe pareça engraçado, é preciso coibir
qualquer outra emoção forte que se possa ter na situação, seja a
piedade, ou o amor, ou o ódio. Em outras palavras, o cômico
acontece em um setor estranhamente antisséptico da percepção,
purgado de emoções e, deste modo, muito semelhante à mentalidade
da contemplação teórica: “O cômico exige algo como uma anestesia
momentânea do coração. O seu apelo é à inteligência pura e
simples”. (BERGER, 2017, p.73)
Apresentaram um Jesus carrancudo e pronto a castigar o faltoso, embora ele
próprio, o tenha feito como alguém igual, humilde e, segundo cremos, com palavras
161
humoradamente inclusivas e não o contrário, como por exemplo, nas proposições
inusitadas, como a de contar histórias ou até de pedir ajuda, um copo d’água, como
no caso do encontro com a mulher samaritana, esquecendo-se que ele, afinal, nunca
usara de rigor contra o penitente pecador, o quebrantado de alma. Ele foi aquele que
revelou Deus como Pai, ou Aba-Pai, e não apenas como o Supremo Legislador e
Senhor, diante de quem todos se calam. Mas afinal, que pai não se permite e aos
seus filhos o humor, o riso? Para manter-se o status, o nomos, não se permitiram ao
humor, antes à impessoalidade – e à desumanidade da regra e da distância como
normatização das relações.
Mas o humor na religião, cria-se, ameaçava os religiosos pela sua proximidade,
ou sua condição no domínio do privado e também, no seu inevitável confronto com
o “mundo”, com o povo, com o leigo, alvo da pregação, numa cosmovisão cristã
míope pela qual enxergavam e queriam que o rebanho visse, tudo à volta. Ora, isso
invariavelmente apenas suscita um choque crítico de experiências e de
desconformidade de ideais de vida.
O humor combina sim, com a religião, pois serve também como uma arma
contra a vaidade e o orgulho e contra uma sisudez que caracteriza a religião, não
devendo, reafirmamos, ser entendido como mero sinal de leviandade ou de
desrespeito ao que é santo, ao sagrado. Ele não serve apenas ao entretenimento,
ou à diversão do público, no atacado. O humor pode constituir até mesmo uma
estratégia eficaz para a tomada de consciência dos limites, podendo permitir até,
como vimos, o caminho da conversão. O humor nos reafirma a humanidade e
denuncia a nossa tentação de sermos considerados melhores do que os outros,
isentos ou acima de críticas, detentores da patente do divino, atravessadores da fé,
162
negando a nossa mesma condição de seres humanos, falhos e carenciados de graça
– em todo o sentido da palavra.
Se os líderes religiosos, sejam eles padres, pastores, bispos, presbíteros ou
como queiramos chamar podem ser comparados à professores – aqueles que têm o
“santo” ofício de cuidar do crescimento, do desenvolvimento da alma de alunos,
discípulos ou gente a serem conduzidas à sua emancipação, como ovelha, indivíduo
e cidadão, como podem eles desempenhar tal função? Seguindo e exigindo dos seus
alunos, uma rígida lista de mandamentos, com direitos às óbvias restrições e
proibições? Assim sendo, descobrir-se-ão em meio a tudo, menos espontaneidade
e alegria. Creio que houve um tempo no Brasil em que os “mestres” da religião
perceberam a necessidade de deixarem de lado a ortodoxia do método em favor de
experiências que então lhes pareciam mais sensatas, mais alegres, mais ...bem-
humoradas. E as aulas passaram a ter uma dinâmica muitas vezes mais
interessante. Foi preciso uma mudança de conduta. Como aliás, descreve-a bem
Rubem Alves, ele próprio, um ex-pastor protestante, presbiteriano,
"Ah!", retrucarão os professores, "a felicidade não é a disciplina que
ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino história, ensino
matemática...". Mas será que vocês não percebem que essas coisas
que se chamam "disciplinas", e que vocês devem ensinar, nada mais
são que taças multiformes coloridas, que devem estar cheias de
alegria? Pois o que vocês ensinam não é um deleite para a alma? Se
não fosse, vocês não deveriam ensinar. E se é, então é preciso que
aqueles que recebem, os seus alunos, sintam prazer igual ao que
vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês terão fracassado na sua
missão, como a cozinheira que queria oferecer prazer, mas a comida
saiu salgada e queimada... O mestre nasce da exuberância da
felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua
profissão, os professores deveriam ter coragem para dar a absurda
resposta: "Sou um pastor da alegria...". Mas, é claro, somente os seus
163
alunos poderão atestar da verdade da sua declaração... (ALVES,
2012, p. 87)
Neste período estudado, o humor foi o molde do espírito de resistência ao
período da afronta ao direito, às liberdades; e da tutela do pensar – e de criticar-se
uma perfeição tecida – e protegida – pela censura e repressão. Na esfera religiosa,
ele mostrou-se totalmente compatível com a pregação ou propaganda religiosa e
mais: fundamental para a espiritualidade, coisa que mais tarde, os movimentos mais
novos, tais como os pentecostais, neo-pentecostais e livres, souberam usar com
maestria e colheram muitos frutos, tendo crescido bem mais que os seus
antecessores no Brasil, sobretudo a partir de meados dos anos 1970, gente que
possivelmente se descobriu como “pastor da alegria”.
Sem isso, a sociedade a verá com reservas, não será afetada e permanecerá
fechada, mantendo sob suspeição toda atividade (onde falta o humor), segundo
concluiu Bergson
“Toda a rigidez de caráter, do espírito e mesmo do corpo será então
suspeita para a sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade
adormecida e também de uma atividade que se isola, que tende a
afastar-se do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, de
uma excentricidade enfim. E, no entanto, a sociedade não pode
intervir nisso por meio de uma repressão material, pois ela não está
sendo materialmente afetada. Ela está em presença de algo que a
preocupa, mas somente como sintoma — apenas uma ameaça, no
máximo um gesto. Será, portanto, com um simples gesto que ela
responderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie
de gesto social. Pelo medo que inspira, o riso reprime excentricidades
[…] flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na
superfície do corpo social.” (BERGSON, 1980, p. 14-15).
164
Por isso, o humor sendo parte da vida humana, também é parte da experiência
religiosa e, como vimos em especial, na religião cristã. O humor não é um apêndice,
mas sim parte necessária da espiritualidade.
Concordante com a ideia, James Martin aponta-nos três razões para a
necessidade do humor no seio da comunidade religiosa e na vida espiritual ao citar
o religioso jesuíta Pierre Teilhard de Chardin:
1. O humor conduz à humildade em espírito (evita o “ego inchado”, a
ganância, a presunção); 2. O humor recorda as limitações e revela as
fraquezas, promovendo a modéstia; 3. A alegria é o sinal mais
infalível da presença de Deus. (MARTIN, 2011, p. 29)
Por isso tudo, questionamos: não deveria a religião cristã, evangélica,
reformada, se render à suprema condição, posta por Jesus, o Cristo da história, para
se entrar no reino dos céus: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se
convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus”, em
Mateus capítulo 18, verso 3? Que criança, afinal, não é despida de orgulho, vaidade,
ou de guardas para com o outro, sendo simples e por isso mesmo, bem-humorada,
capaz de rir de si própria e da vida? Esta, certamente é a inversão da natural
aspiração humana, que não só podemos ver na proposta do Cristo dos Evangelhos,
como bem nos traduz Leonardo Boff 88: “Todo menino quer ser homem. Todo homem
quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino”.
88 Pseudônimo de Genézio Darci Boff (1938), teólogo católico, escritor e professor universitário brasileiro, expoente da Teologia da Libertação no Brasil e conhecido internacionalmente por sua defesa dos direitos humanos
165
Cremos que o Todo Poderoso ainda pretende ser visto como ...mais leve, mais
graciosamente próximo da sua criatura, fraca, limitada e desgraçadamente pequena.
Ou como até nos chama à atenção um antigo provérbio budista, “o humor tem
de ser vivido e não um apêndice, uma estratégia apenas. Ele nasce a partir da
vivência, leve, natural, como parte de nós. “O ego é o inimigo da sensibilidade e da
criatividade”.
E acrescentaríamos: sem essas qualidades, ou virtudes, não há humor!
166
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171
APÊNDICE
Entrevista 1 - Jaime Kemp
Kemp é pastor norte americano e doutor em “Ministério da Família”. Em 1967,
vieram, e ele e a esposa para o Brasil como missionários. Iniciaram uma
organização de orientação à juventude brasileira, a missão “VENCEDORES
POR CRISTO”. A cada período de férias eram formados diferentes grupos de
jovens, de diversas igrejas evangélicas, que cantavam e testemunhavam de
sua fé. Eles recebiam, ao mesmo tempo, treinamento musical e estudos
bíblicos. Regressando a suas igrejas estavam, então, estavam preparados
para servir de forma mais eficaz. Em 1998, Jaime Kemp fundou, oficialmente,
a Associação Lar Cristão. Jaime Kemp escreve artigos em jornais e revistas e
é autor com mais de 50 títulos.
Jaime, você vê humor na fé cristã? Muito. Além do meu grande amigo Ari
Veloso 89que usou muito o humor no seu ministério, principalmente pelo fato de ele
ser palmeirense e de “enfiar a faca” nos corintianos, eu uso muito, não apenas no
esporte, mas em situações familiares, nos seminários com casais, com jovens,
também uso muito no namoro, então é uma ferramenta tremenda e nós precisamos
ser mais gente autêntica no púlpito. Às vezes eu penso que a gente acha que o
89 Ary Velloso era bacharel em Teologia, pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e mestre em Teologia, pelo Dallas Seminary (Estados Unidos), foi fundador da Igreja Batista do Morumbi, também atuou como professor na Faculdade Teológica Sul Americana e durante anos foi missionário da SEPAL.
172
pastor sobe lá com toga, perfeito, que não tem problemas, não tem pecados ou se
os tem, é bem escondidinho...
Fica fácil de se estimular uma idolatria ao púlpito, não? Terrível. Um dos
lugares onde tenho visto mais isso, é na maior igreja do Brasil, que são as
Assembleias de Deus, por que às vezes estes homens – agora está mudando – mas
os homens que são os caciques e eles criaram então algo que até no palco, só entra
lá com terno, e gravata e nem pensar em pregar com uma camisa aberta, heim?
Então existe esta idolatria criada.
Então, você acha que o humor traz uma humanidade? Tira o orgulho, eu
diria, que quando você consegue dar risada de si mesmo, melhor ainda. Às vezes
o americano, fala um português terrível, mesmo se esforçando, estudando... e
quando ele erra, como eu que já tenho quase 50 anos, o povo dá uma risada, como
uma piada e isso deixa o povo mais relaxado, eles podem dar risada do Jaime, das
coisas e do jeito dele, essa comunicação acontece.
No ministério que você fundou – e fez escola na vida de tantos jovens – os
Vencedores por Cristo, onde é que o humor entrou? As duas primeiras equipes
tiveram o Jaime à frente dirigindo. Eu estudei música na universidade e eu estava lá
ensinando, mas logo eu percebi que o brasileiro tem uma comunicação melhor,
sendo mais solto, não funcionava aquela coisa da bateria pra lá, os instrumentos
separados, coisa formal, como um coral, isso não funcionava. Não que julgo isso
errado, nem sou contra, mas enfim, não era o jeito brasileiro, nem era importante
para o nosso ministério. Então o que é que eu vejo? Tinha geralmente um que
apresentava as entrevistas, brincando bastante e quando víamos que o pastor era
173
brincalhão, então até rolava uma piada sobre ele. Então, isso produzia um efeito de
comunicação tremenda. Nós precisávamos cortar aquela formalidade, porque a
formalidade não atrai o mundo, as pessoas, infelizmente. Para um concerto musical,
formal, especial, ok! Mas para os cultos, domingo após domingo, na igreja, tivemos
de deixar o pessoal mais folgado, mais relaxado.
Essa era a situação da igreja que vocês encontraram no começo de
vocês? Ruben, nós quebramos tudo, éramos pioneiros na questão dos
comportamentos. Você se lembra que antigamente a bateria não entrava na igreja?
Era um instrumento do diabo. Agora não é mais. O interessante é que mudou. Se
converteu (risos). E também instrumentos com o baixo, o piano elétrico – só tinha
aquele órgão que você bombava para poder sair o som, então realmente houve
algumas mudanças e, parcialmente, as mudanças diziam respeito a questão do
humor, que antigamente, e até hoje, nalguns contextos, nunca se solta uma piada
ou alguma expressão para dar-se uma risada, alguns pastores que sabiamente
sabem usar o humor, são os mais comunicativos.
Você quando começou o trabalho com os jovens por aqui, já tinha essa
visão de “aculturar” a mensagem do evangelho? Sabe, tinha gente que criticava
quando começamos com sambinhas. Sabe, sambinha era aquela coisa do carnaval,
de mulheres seminuas, dançando na rua e era para as boates e danceterias, e nós
dizíamos não, não. E sabe onde aprendi isso? Eu estava em Caruaru-PE num
domingo, fazendo um seminário lá, e no sábado de manhã, estando livre, fui pra
praça e lá tinham dois repentistas – evangélicos – fantástico! Olha, tinham um
auditório de mais de mil pessoas ao redor deles na praça. Quando eu cheguei lá,
eles estavam cantando sobre o Filho Pródigo. Um contava uma parte da história e
174
o outro entrava e continuava, bem no ritmo, eles estavam cantando, rimados e tudo,
quando eu percebi o quanto o povo estava colado a eles, àqueles dois homens! Aí
eu disse: “Senhor, é isso que temos de fazer!”. Pegar a música e o sentimento da
cultura e usar isso para pregar o evangelho e isso era 1970. Porque veja bem,
viemos aqui em 1967 e começamos os Vencedores em 1968 e nos primeiros dois
anos ainda estávamos aprendendo tudo. E eu percebi que Deus havia dado ao
brasileiro muita música e capacidade de compor música e letra. E isso foi com João
Alexandre, e Guilherme Kerr, Nelson Bomilcar90, esses caras,... E eu disse: “Senhor
eu estou precisando fazer a cultura” e nós pegamos hinos tradicionais, pusemos
ritmo diferente, e novas músicas, como Sérgio Pimenta, um menino fantástico e
então temos visto como Deus comunica ainda hoje através disso.
Falando em repentistas em praças, você vê algum humor nas parábolas
que Jesus contava? Ora, ...(risos). Dizem que Jesus nunca deu uma risada. Que é
isso, gente?! Que é isso?! Ontem mesmo, eu estava em Brasília e contei a história
da mulher adúltera, aí quando os líderes religiosos disseram: “A lei diz que esta
mulher precisa ser apedrejada, o que é que o senhor diz?!”. Então Jesus não falou
nada. Ele começou a escrever na areia e eu penso que ele escreveu os pecados
deles, depois levanta, olha na cara deles e diz: “Aquele que não tem pecado, que
atire a primeira pedra!”. Isso tem humor. Eu acho que ele deu muita risada. Quando
estava com os discípulos, eles faziam festa, tomaram vinho, cantaram e falavam os
problemas do ministério daquele dia e, eu acho que isso é coisa tremenda, o humor.
90 Músicos e compositores conhecidos da igreja evangélica no Brasil
175
Você acha que ali, na época em que a igreja evangélica falou a linguagem
do povo ela começou a crescer? Sim, absolutamente. Porque veja bem, quando
chegamos ao Brasil em 1967, nós começamos a trabalhar na Igreja Presbiteriana
de Santo Amaro, e nós somos batistas, heim? Fomos lá e o reverendo Jacó Silva
era o pastor, homem de Deus, mas ele era muito formal. Quando fomos lá num
acampamento, ele apareceu de terno preto e gravata. Parece que ele dormia com
terno, não tinha pijama. E sabe que eu aprendi a amar aquele homem? Ele era uma
indicação, um símbolo da formalidade da igreja brasileira. Sabe, não é que você ia
falar piadas durante a pregação só, era pecado dar uma risada na congregação.
Nem em todas as igrejas, pois hoje em dia mudou muito.
Já que você citou, os VPC usaram acampamentos? Muito. Especialmente
no treinamento, e íamos lá ministrar, especialmente nos Jovens da Verdade, Youth
For Christ, e a Palavra da Vida, e montões de ministérios. E você sabe que o Jasiel91
tem uma capacidade de dar risada e de criar um ambiente tremendo, Deus tem
usado este homem. Ele escreveu aqueles ditados para encontros de pastores...
Você foi um dos homens que liberaram, descobriu, ou emancipou, alguns
dos nomes mais revolucionários das artes cristãs no Brasil. Você vê esse
modelo se repetir depois dos Vencedores? Oh! Sim. Muito. Qualquer um dos
ministérios, seja no acampamento, seja nos treinamentos, em concertos musicais,
discipulados, tem isso que deixamos. Você não pode pedir que o povo fique
sentado 10 horas no banco duro da igreja, sem soltar, sem que seja alguma coisa
dinâmica, que comunique o conceito de Deus a não ser de uma maneira
91 Jasiel Botelho, pastor e humorista presbiteriano, fundador do movimento Jovens da Verdade
176
brincalhona, não gosto de usar a palavra brincalhão com a Palavra de Deus, mas
sendo assim de maneira a comunicá-la. Onde as pessoas possam assumir a sua
ignorância a respeito de algum assunto, de se sentirem livres, se poderem dar risada
de si mesmas. Às vezes o pastor erra, mas ele disfarça, como quem diz: “Não tinha
erro ali” ...Ora, ele precisa assumir o erro e dizer logo: “Eu sou um pecador miserável
mesmo!”. Inclusive quando os pastores me perguntam: “Jaime, como posso lhe
apresentar?”, eu digo logo duas frases: “Jaime, um pecador miserável.”, “Mas salvo
pela graça de Deus”. Não preciso de títulos, não preciso de nada. E logo de cara,
eu conto o testemunho da minha família, tudo quebrada, dos problemas que eu já
passei, sendo autêntico e ao mesmo tempo, até deixar o povo dar risada, cair no
chão de tanta risada. Está ótimo então, por que está comunicando a verdade de
uma maneira fácil, e não de uma maneira chata. O humor não compromete a
verdade, de jeito nenhum. A verdade é verdade, não importa a embalagem (risos).
E é bom que surgiram esses movimentos paraeclesiásticos, porque eles deram
algum ar fresco pra igreja que era muito formal, com muito medo de tudo. Olha, vou
lhe dar uma ilustração. Fomos ao interior, ainda com os Vencedores, e chegamos
lá à tarde para fazermos culto à noite, Igreja Presbiteriana, ok? E as meninas tinham
um conjunto, de calças compridas, mas bem bonito assim, bem decente, quando o
pastor chegou pra mim nervoso, uma hora antes de começarmos, já tínhamos
montado os instrumentos todos, e me perguntou: “Jaime, vocês não têm outro
uniforme?” Eu disse: “Sim, mas estão em São Paulo”, (nós estávamos no interior!).
Então ele me disse: “É que nós fizemos uma regra, que mulher não pode subir no
palco sem saias”. E sabe o que fizemos? Deixamos as meninas e formamos rápido
um quarteto de homens e a igreja ficou louca! E disseram: “Por que fizemos essa
177
regra que só está atrapalhando?”. E só estava atrapalhando mesmo (risos). Fato é
que as igrejas fazem regras que não têm nada a ver. Só serve para atrapalhar. Não
têm nada de doutrina, de bíblico. Geralmente usos e costumes não têm base bíblica.
São invenções eclesiásticas dos homens (risos). Apesar de tudo, Deus está fazendo
algo novo. E Ele nos usa apesar de tudo.
Quando vocês começaram então, usaram músicas traduzidas? Sim, eram
hinos tradicionais e canções dos Estados Unidos, por que era o contexto, mas logo
eu percebi, espere, não que ela não comunicasse, qualquer música comunica,
porém ritmos, por exemplo, hoje, depois de tanto tempo, Vencedores tem uns 15:
reggae, bossa-nova, country, rock, esse tipo sertanejo, ihhh!!! Recentemente fomos
pra Portugal e fizemos um show lá – tem pastor que não gosta da palavra show –
mas os brasileiros lá ficaram louquinhos com o nosso samba – samba é brasileiro
mesmo – e aquela comunicação foi tremenda. Às vezes tem-se a ideia que tem de
ser música traduzida, não, pode usar, mas também não precisa usar, inclusive
temos tanta música boa, bonita... às vezes cantamos ainda “Nas estrelas vemos Sua
mão”, essa talvez seja exceção à regra, que era do Ralph Carmichael 92...
E então não havia nada de ideológico quando você trouxe essas coisas
da América? De jeito nenhum! Sabe, a nossa preocupação sempre foi e é
comunicar o evangelho. O evangelho é o evangelho, a roupagem pode ser uma
porção de coisas. Por exemplo, lá em Portugal você tem aquela música triste, o
fado, pois eu fui a um restaurante onde tinha o fado e saí chateado. Pra mim foi
terrível, mas para o povo português, aquilo mexe muito, então gente, nós temos que
92 Compositor e arranjador americano de música pop secular e música cristã contemporânea, sendo considerado um dos pioneiros do último gênero, além do pai do rock cristão.
178
respeitar e no Brasil, o evangelho porque saia deste tipo de ambiente, eles achavam
tudo pecado, como usar instrumentos de ritmo como o chocalho, ou o pandeiro,
eles diziam: “isso tira toda a espiritualidade do culto”, e eu falava - “que é isso? O
que é espiritualidade, então? Porque, se tira, alguma coisa está errada com a nossa
espiritualidade! É uma espiritualidade líquida?!” (risos). Olha, esse seu assunto
sobre humor é importante. É bom fazer um livro e põe na mão dos pastores,
especialmente, bem, não quero bater, pois Deus está fazendo muita coisa, mas
sabe, antigamente eu não entrava nas Assembleias de Deus, por causa de um
estudo sobre sexo. Ih!!! É proibido. Ih!!! E eu falava de futebol, e esse era outro
problema! Mas veja, essa semana passada estive em Brasília numa grande igreja
das Assembleias de Deus, que tem um montão de congregações. Soltei montes de
piadas sobre isso e aquilo e eles choraram no final do seminário, então você vê que
consegue alcançar o coração sendo autêntico. E o pastor tem de aprender não falar
só das suas vitórias, das lutas e sim, até das derrotas.
Uma outra pergunta: Naquele momento de efervescência política no Brasil
(anos 1960/70...), vocês falavam de política sobre os jovens nas suas equipes?
Ok, nós fomos treinados antes de vir pro Brasil, ou qualquer país, nós da Overseas
Cruzade93, número 1, você não critica a questão política. Hoje em dia eu estou
quebrando a regra porque Deus nos tem dado autoridade e de vez em quando eu
solto algo sobre a corrupção política do Brasil, agora, mas respeitar a cultura. Me
lembro do meu mentor. Ele me dizia: “Jaime, o diferente não é errado”. Pode ter
93 Hoje, SEPAL, organização de treinamento de pastores e líderes de tradição no país
179
algumas coisas erradas mas você não pode ficar comparando culturas,
especialmente com os Estados Unidos, ou com outro país...
Mas não tinha uma pregação do tipo: Crente não se envolve com política?
Houve sim, alguns contemporâneos, mas eu sempre achei que temos de ser sal e
luz em qualquer lugar. Veja só o Alex Dias Ribeiro94, esses dias soltou um livro
fantástico e ele trás testemunhos fantásticos de homens que se converteram, como
o Emerson Fittipaldi 95... ele estava como sal e luz entre eles.
Então esse incentivo tinha entre os jovens? Tinha, e não era algo de os
manter totalmente isolados... E sabe o que aconteceu com a nossa bancada
evangélica? É uma tristeza! Por causa daquilo de muitos pastores dizerem “Não,
vocês não podem entrar lá e mexer com isso!”, Não, sal e luz devem estar onde a
escuridão está! Se não tem sal na sopa, vamos por sal na sopa. Até hoje, há muito
pastores nos púlpitos mas não na sociedade. Me lembro do Alex Dias Ribeiro,
quando saiu da Fórmula 1 e foi pra Atletas de Cristo e ia pra uma igreja batista onde
o pastor era seu parente, não me lembro o nome, mas ele não podia pregar lá pois
ele não usava terno. O pastor já morreu, mas foi mudando com o tempo. Temos
ainda essa ideia que as coisas do mundo não podem entrar na igreja, agora o
pecado pode entrar à vontade,...
94 Ex-campeão Brasileiro de Fórmula Ford, vice-campeão inglês e europeu de F3, número 1 no ranking dos pilotos brasileiros em 1973. Na Formula 1, ele disputou dez corridas entre 1976 e 1977, e diretor, por anos, dos Atletas de Cristo, organização cristã que reunia atletas de todas as modalidades no país e ex-integrante das equipes de Vencedores por Cristo 95 Um dos pilotos mais vitoriosos da história brasileira, e foi o primeiro brasileiro a se tornar campeão mundial de Fórmula 1 e em categorias de ponta no automobilismo internacional, abrindo portas para vários compatriotas. Fittipaldi foi bicampeão da Fórmula 1 em 1972 e 1974, campeão da Fórmula Indy em 1989[2] e bicampeão das 500 milhas de Indianápolis em 1989 e 1993.
180
** Entrevista dada por KEMP, Jaime. Entrevistador: Ruben Pirola Filho, realizada nas
instalações da Associação Lar Cristão, em São Paulo, no dia 30 de Outubro, às 11h14
Entrevista 2 - Nelson Bomilcar
Bomilcar é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista,
arranjador e escritor brasileiro, conhecido por ser um dos músicos mais
conceituados da música cristã brasileira. Foi integrante dos Vencedores por Cristo,
como músico e compositor. Participou em gravações do Grupo Elo, Grupo Semente,
Jovens da Verdade, Jorge Camargo, Adhemar de Campos, Asaph Borba e outros.
Nelson também mantém carreira solo, e algumas parcerias com o cantor João
Alexandre.
Como foi que você começou o seu trabalho? Iníciei meu trabalho missionário em
1973, seis meses depois da minha conversão em julho de 1972, acho que comecei levando
a rua pra igreja, tanto que pelo meu meu jeito de vestir, era convidado a assistir o culto na
galeria.
O que exatamente você trazia da rua? Ora, a herança da música, MPB e o rock,
duas heranças culturais brasileiras, na expressão dos cânticos, da música, e a igreja não
estava acostumada com isso. Eu transitava entre esses dois caminhos. Eu sentia que eu
era o cara que os jovens usavam, numa igreja tradicional Batista leta96, eu era o cara que
eles empurravam pra frente para tomar as pancadas, eles queriam fazer mudanças e então,
96 Com membros oriundos da Letônia
181
eu era aquele que chegava com cabelo comprido, chinelão, bolsa à tiracolo e o diácono
me convidava pra assistir o culto na galeria da igreja, pois destoava dos crentes da época.
Essa era uma ferramenta sua de propaganda, ou era sua vida mesmo? Não era a
minha dinâmica normal. A minha vida foi sempre ligada à música, a minha mãe, foi
contemporânea de Inezita Barroso, a primeira música que toquei na igreja foi “A marvada
da pinga”, e os caras rachando o bico. A minha mãe era cantora do rádio, da rádio São
Paulo, naquele tempo os programas eram feitos lá, com auditório, era crooner da orquestra,
lá, ela cantava nos musicais, e converteu-se ouvindo programa de rádio, então ela trouxe
toda essa herança dos programas de rádio, deu nomes pra duas filhas com letras de Dorival
Caymmi sabia tudo sobre ele, cantava as modas de viola, das duplas caipiras de Limeira,
de onde também fui criado, então era assim, cantar música caipira era rir o tempo todo
(risos).
Naquela época parece que era menos melancólico. É isso. Música caipira, mesmo,
da gema, mas por favor, não era sertanejo universitário, nada a ver, você ia pra coreto, ver
os caras lá, duelando e rindo um do outro e o outro fazendo piada do outro, era bem-
humorada a música.
Você fez parte dos Vencedores? Fui treinado em Vencedores por Cristo, em 1974,
tinha um músico lá, que me convidou, da Igreja Batista, recomendado por meu cunhado,
que hoje é pastor, e lá eu tive contato com essa geração do Guilherme Kerr97, as grandes
referências, e ele trouxe essa veia da ciências humanas, da poesia, e brincavam que eles
diziam que eu era o cara que chegava pra fazer as pessoas rirem, inclusive das suas
próprias ambiguidades.
97 Nascido em Araraquara-SP, em 1953, é cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, arranjador brasileiro, e reconhecido como um dos músicos mais conceituados da música brasileira cristã
182
Uma coisa: os Vencedores, apesar de terem sido formados por americanos, ou
por iniciativa ...não, a iniciativa foi do Jaime, ele foi quem fundou. Ele era missionário da
SEPAL98, pegou todos os missionários naquelas primeiras equipes e, depois, lá na 11ª
equipe começou a fazer essa transição para a questão da brasilidade.
Mas na teologia, sempre foram ortodoxos? Sim, sempre foram ortodoxos, apesar
da herança da SEPAL, você via missionários de várias vertentes, eu me lembro do John
Quan, Osmar Ludovico99, com a cabeça fora do ambiente da igreja assim como os outros
que tinham uma teologia um pouquinho mais ortodoxa.
E qual é a importância da sua geração para a igreja daquela época e que igreja
vocês encontraram? Por um lado, eu encontrei uma igreja totalmente reprimida, além de
refletir o momento de ditadura que nós vivíamos, onde não se podia pensar, ou se pensasse
teria que pensar igual como o seu líder eclesiástico, que normalmente defendia que a igreja
deveria estar separada do estado, mas eles estavam defendendo o status quo e o governo
daquele momento. Então era uma comunidade extremamente medrosa, pois perdia seus
líderes que eram entregues para tortura, ao DOI-CODI100, era triste, líderes entregando
lideres brasileiros ...mas houve um outro movimento que distencionava tudo isso, que eram
os acampamentos. O Espírito Santo de Deus estava soprando nos acampamentos, eram o
Palavra da Vida, Jovens para Cristo, Mocidade para Cristo, Vencedores por Cristo, Aliança
Bíblica Universitária, Jovens da Verdade, Jovens em Cristo, Cruzada Estudantil e
Profissional para Cristo. Esses movimentos estavam repletos de jovens, porque não tinham
outro lugar pra pensar, não tinha lugar pra você ter prazer, não tinha lugar pra você pra se
98 Serviço de Evangelização para a América Latina, braço da OCI, então Overseas Cruzade International, hoje One Challenge International, uma missão cristã de desenvolvimento e apoio à líderes e pastores. 99 Ex-missionários da SEPAL 100 Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante o regime inaugurado com o golpe militar de 1964. Destinado a combater inimigos internos que, supostamente, ameaçariam a segurança nacional, como a de outros órgãos de repressão brasileiros no período
183
alegrar, era só repressão, repressão, repressão e nesses espaços que aconteceu nos
Estados Unidos no Movimento de Jesus101, que também foram as grandes vertentes de
arte, os pintores começam a surgir, gente fazendo o humor, gente cantando coisas da terra,
não só coisas americanas, e os acampamentos, os movimentos de jovens estudantis se
tornaram refrigério dessa repressão toda, a ponto de que as noites mais celebradas nesses
encontros, entre os estudos bíblicos, devoção, treinamento, eram as noites dos esquetes,
onde as pessoas podiam rir, e ver as revelações de humor, e as pessoas perguntavam:
“você vai ser humorista?”, e até podia ser, isso era um prato cheio, mas ninguém
considerava o humor na igreja como parte da fé cristã.
Você pregava nas ruas também? Também, fazia a lida direto. Trabalhei com Aliança
Bíblica Universitária e a Secundarista nove anos, tinha até uma herança pentecostal,
mentoreado pela tia Arlete, pelo Valdir Nascimento, no nascimento do Desafio Jovem102 no
Brasil, então nós fazíamos o tempo todo, ao ar livre, e você tinha de fazer de tudo, não só
tocar.
Você via alguma crise quando esse pessoal que era alcançado nas ruas vinha
para as igrejas? Não conseguia. Por que literalmente como você definiu, a igreja que me
acolheu de herança Leta, se parecia com uma espaçonave, não tinha nada a ver com a
realidade, eu não sei como ia me integrar num negócio desse, e os caras pensavam, “você
dá bem para cantar no coro”, e me “jogaram” pra cantar no coro da igreja, pois era o único
link que conseguiam fazer, porque você não tinha espaço.
Mas a essência era a mesma, mas a forma,... A essência era a mesma, mas parece
que tinha um vento a favor aí: a igreja ainda não estava ainda formatada na questão do
101 Jesus Movement foi um movimento cristão estabelecido em oposição ao Movimento Hippie, da filosofia de paz e amor a partir de drogas e sexo praticados de modo livre. 102 É uma organização social cuja finalidade é a prevenção, recuperação e reinserção social de dependentes de álcool e outras drogas. O Desafio Jovem, ou Teen Challenge nasceu nos Estados Unidos da América no ano de 1958, através dos Revs. David Wilkerson e seu irmão Don Wilkerson
184
worship, da adoração intra-templo, ainda éramos fruto de um avivamento, período
evangelicalista que aconteceu nos EUA, Reino Unido, Alemanha, onde todo mundo queria
pregar o evangelho, então era “só Jesus Cristo salva”, chamando pecadores ao
arrependimento, as músicas que eram feitas por músicos lá de fora, os movimentos de
Jesus eram músicas chamando pessoas pra considerar o evangelho, então a chavinha era
evangelização, depois que essa chavinha mudou, com esse negócio do worship, da
adoração, tanto que os hippies que se converteram que faziam parte do movimento de
Jesus (Jesus Movement), geraram o primeiro movimento junto com a Vineyard103 em 79, e
a Maranata Music antes, no início dos anos 70, esses caras Chuck Girard’s e Jay Truax
faziam parte de um grupo chamado Love Song, da Calvary Chapel, que fundou a Christian
Contemporary Music. Esses caras abriram o leque pra criatividade, eles começaram a fazer
música de adoração e fundaram a Maranata Music que se tornou pelo menos 15 anos antes
de serem transformados numa igreja, era o espaço de criatividade, você via gente que fazia
coreografia, dança, dramaturgia de teatro, era impensável, mas acontecia nas chácaras,
nos sítios você via , com o pastor Chuck Smith, que acolheu essa turma, e acontecia nos
pavilhões e fundos de igreja, mas não no espaço do templo.
O formalismo da igreja da época então era muito grande? Ah! Experimente você
contar uma piada! “O Senhor está presente no Seu Santo Templo”. Ordem é fundamental
e reverência, ora, o humor não faz parte desse caminho da reverência, então ele tinha que
ser reprimido aonde ele se manifestasse. Outra válvula de escape era o rádio, o que se
conseguia fazer nos programas de rádio não se conseguia fazer no dia a dia da igreja, o
Maurão cresceu nisso, nesse pano de fundo, fazendo coisas de rádio, e outras vertentes. A
época por exemplo, era a da rádio novela, do humor feito ali, e aquela, ainda fruto dos anos
60 início de 70, os festivais da TV Record e TV Tupi, lá surgiram os programas do Zé
103 Associação de igrejas locais independentes, criado em 1974, por Kenn Gullikson, nos EUA que se espalhou pelo mundo.
185
Vasconcelos, do Manoel de Nóbrega, Chico Anysio, Jô Soares, no meio da loucura da
ditadura aquele era o local onde se conseguia rir, mas eu não podia rir de nada que fosse
associado àquele período de ditadura.
A igreja evangélica ainda não tinha entrado na mídia, mas rádio era mais fácil,
antes desse boom de mercado que facultou a igreja esses espaços antes fechados,
você cita o trabalho era de rua? Com certeza, escolas acampamentos e rádio, essas eram
as alternativas de criatividade, pois a mídia impressa era cara! Que eu me recorde, o
primeiro cartunista de humor evangélico, na minha lembrança foi você, Rubinho. Na minha
época não estou me lembrando de nenhum outro. Em 79 quando estávamos mais ou
menos próximos, você trabalhando com a revista Elo e eu no estúdio gravando, lá na
Lacerda Franco (e São Paulo). Nesse mesmo período o pessoal da APEC , convidou-me
para fazer alguns cassetes pra que eles pudessem evangelizar as crianças, fiz um o primeiro
pra uma questão de “conversação”, pra depois de fato fazer outros projetos pro universo
das crianças, uma outra linguagem – eles tinham que evangelizar os evangelizados antes!
E quando apresentei o projeto, que eles disseram que não seria recusado, não permitiram,
tentei fazer alguma coisa de fato com a linguagem das crianças, uma coisa mais lúdica, e
não permitiram. Toda essa linguagem era vista pelo canto de olhos lamentavelmente,
sempre, sempre.
Essa época foi o estopim da explosão da igreja, você também faz essa leitura?
Foi. Os anos 70 são de fato um divisor de águas, o pessoal, nos anos 80 já começou com
algumas barreiras quebradas, principalmente em relação ao mundo das artes, eu acho que
os anos 70 foram fundamentais para se chutar as portas - é possível fazer arte aqui, é
possível usar a dramaturgia, é possível usar a poesia, é possível pintura, é possível a música
contextualizada com as nossas heranças culturais, é possível fazer o humor, é possível fazer
cinema, que ainda hoje é uma área embrionária. Nesses cinquenta anos progrediu-se, já
tem gente fazendo bons documentários, conheci boa gente cristã nessa área,
186
premiadíssima no mercado, mas tentando fazer algo na igreja e não consegue. Têm de
fazer fora!
Alguém fora da “caixinha”, que consegue fazer as coisas com humor, solta, leve,
irreverente não é gente bem-vista, na sua opinião? Claro. Ainda hoje continua sendo
vista com desconfiança pela igreja. fosse em reverência, se fosse reverente, se fosse
reverendo talvez você conseguisse alguma coisa mais eclesiástico, entendeu? (risos)....
Reverendo não deve rir, e eu acho que a gente tem que reconhecer esses precursores que
chutaram a porta, um deles sem sombra de dúvida também, início dos anos 70 é Jaziel
Botelho104, que na minha opinião deveria que ter permanecido mais nessa vertente, mas
teve que transitar em outras vertentes pra conseguir ganhar o direito de fazer, de chegar
nos encontros e congressos de pastores pra poder fazer a sua pintura anual... (risos). Mas
assim, o que nós publicamos hoje? O que temos de publicação hoje nessa questão?
Dificílimo! Agora como você vai fazer piada pra você rir da fé? Dos que tem fé? Do ambiente
da fé? Ainda hoje o humor parece que não bate bem com o sagrado. No culto não é bem-
vindo, mas se for na hora do bolo lá em baixo (nos anexos aos templos) aí pode, você
percebe? É um negócio doido isso. É aquela dicotomia ainda, o momento espiritual,
momento sacro, agora é o momento secular e momento espiritual! E eu me pergunto, os
reformadores tinham humor? Não usavam o humor nas suas mensagens que impactaram
tanto? Não usavam pra que enxergassem as loucuras que estavam fazendo? Com certeza
sim! Nem a ótica histórica eles conseguem colocar por esse prisma, aí um cara que é
extremamente lúdico que caminha no universo da fantasia, da metáfora como C. S. Lewis105
ele tem que fazer um caminho por fora.
104 É pastor presbiteriano, cartunista e é conhecido por pintar quadros durante as pregações me congressos de pastores. Foi também um dos fundadores dos Jovens da Verdade 105 (1898—1963), foi um professor universitário, escritor, romancista, poeta, crítico literário, ensaísta e apologista cristão britânico. Durante sua carreira acadêmica, foi professor e membro do Magdalen College, tanto da Universidade de Oxford como da Universidade de Cambridge. Ficou conhecido por seus trabalhos envolvendo a apologia cristã
187
Nesse caminho por fora, esses “marginais” que optaram por um caminho não
ortodoxo de pregação e de propaganda da fé tiveram que bancar do próprio bolso,
não? Todos acabaram investindo naquilo que acreditam, todos os projetos iniciais foram
na grande maioria das vezes bancados pelos próprios que acreditavam no projeto.
De certa forma essa explosão não foi institucional? Não, passou longe disso, a
igreja cresceu pela marginalidade, e com humor na marginal. A sinagoga sempre foi muito
imprópria pro humor, eu imagino que se os vendilhões do templo tivessem trazido algum
coisa pro humor da época , aí acho que eles teriam sido expulsos duas vezes. Seriam
recolhidos os gibis.
Parece então que o templo aceita o vendilhão, mas não aceita o piadista? É isso
aí! Mais ainda, como se o humor não coubesse na espiritualidade! Esse é um negócio
louco.
Deus é humorado, para você? Ôpa, sempre. Ele deve chorar muito com a raça
humana, mas Ele deve rir muito das loucuras que a gente faz, e não precisava fazer! Ele vê
isso aqui e diz: “vocês não entenderam nada!”
A palavra Graça cabe em muita coisa, Deus deve rir-se em vez de jogar um raio.
O irmão da misericórdia seria o humor?.... Tô imaginando um humorista do tempo lá do
Rei Salomão, tentando descrever ele em relação a família, ou falando sobre o amor, qual
das 700 (esposas) que eu preciso escrever? (risos).... Volto a dizer, não é só a questão do
humor, falo a questão da arte, isso deveria ser estudado no início da fé cristã, princípios
básicos, pessoas acham que isso é um apêndice, e isso é princípio básico.
Deus criou todas as coisas e viu que era bom, que maravilha agora vou descansar,
desfrutem, e se Deus quisesse criar mais alguma coisa que nós não temos conhecimento,
Ele não poderia fazer isso hoje? Olha aqui, criei uma abelhinha diferente, e resolvi também
188
criar no nono dia! Aí não pode, Ele pensa o universo através da criatividade, Ele é o Criador!
Ele pensa o universo através da criatividade. Me lembro uma vez numa igreja que não vou
citar agora, o pastor estava falando, e conduzindo o culto e as pessoas tampando a boca
e dando risada, e ele olhava pra esposa, tentava ajeitar o paletó, vendo que tinha alguma
coisa errada, e daqui a pouco a esposa apontou pra que ele olhasse pra trás, no batistério
estava o filho dele fazendo caretas pro público, e a turma rindo muito, e a turma não se
esquece desse culto, desse momento de humor, que foi naquele culto, da mensagem
ninguém se lembra, mas daquele momento engraçado ninguém esqueceu mais! Foi a
melhor coisa do culto! Sinceramente, não acho que isso tudo vá mudar, ainda mais nesse
momento que estamos vivendo de tanta intolerância, se você quiser cutucar as pessoas
com uma piada, os caras vêm pra cima de você, batendo em você porque você insinuou,
estão perdendo o humor, o que tinha, está se perdendo. Se você ouvir um momento de
humor vindo da mídia, por exemplo José Simão, toda semana tem uma ou duas piadinhas
do universo religioso, nós somos o grupo de risco, estamos na ordem do dia.
A Reforma lidou com isso tudo – peitou o poder e questionou o fato de serem
irretocáveis, irreparáveis, intocáveis... – você acha que perdemos essa veia? A leitura
que faço é a seguinte: a grosso modo, são poucos os reformadores de hoje com o conteúdo
que foi proposto na Reforma, as pessoas foram seletivas com o que quiseram preservar da
reforma dentro das suas confissões, estruturas denominacionais. Então o que interessava
pra frisar entre os batistas, entre os presbiterianos, os metodistas ainda com alívio do vento
de avivamento de John Wesley106, ainda que um pouquinho diferente numa tônica mais de
serviço na periferia, assim cada um hoje das denominações confessionais, elas pegaram
alguma coisa que interessava, imagine que eu posso falar, só pra nós aqui, né? Que a Igreja
Adventista tem uma veia na reforma? Meu, se pegar ali, tem muita coisa que você assinaria
106 (1703 —1791) foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha.
189
em baixo, você vê que tem lá a questão da lei, a questão do sabático, ainda você se
estranha, mas tem outras coisas que os caras concordam, aí você fala, aqui os caras são
hereges, mas espera um pouquinho tem outros aqui que não consideram várias outras
coisas da reforma e esses nós tratamos como se ...
Na época da ditadura especificamente, quais os pontos da nossa fé reformada
que foram deixados de lado pela igreja reformada, dentro das igrejas históricas? A
primeira que eles defenderam, a questão da separação de igreja e estado, a igreja
protestante se tornou mantenedora do estado, e diz que a sua atividade e exercício
eclesiástico, não tinha nada a ver, era uma coisa absolutamente separada. E não é, tanto
que a igreja protestante usufruiu do estado e do poder pra manter a sua relevância num
país como o nosso!
E o caráter vocacional do trabalho do cristão? Você acha que também mataram
isso no período? Quer fazer piada todo domingo, você vai numa igreja confessional ou da
Assembleia de Deus, e chega lá na frente, olha para as cadeiras e começa a dar risada,
kuakuakuakua..., olha aqui sacerdócio real de todos os santos, kuakuakua...Tem que ter lá
separado os sacerdotes, e os leigos lá sentados! Porque que você não fica sentado aqui,
se você quiser ir lá pra frente te chamam, você tem que estar aqui com o povo, não eu tenho
que por lá pra distinguir! Distinguir o quê?? Você fica dando tiro no pé! Negando o
sacerdócio real, você está fortalecendo a estrutura eclesiástica, e dizendo para os caras,
vocês continuam leigos sim! E estão a nosso comando! E aí só podemos rir. Os caras estã
cuspindo num ponto de fé, todos somos iguais. Mas tem que ter essa distinção, e é só
assim que nós conseguimos manter a ordem, fazem essa defesa! Opa, opa, já ouvi isso,
onde? Em 64 comecei a ouvir isso aqui! Quem tem que manter a ordem, cara pálida?!
Fora a noção de templo, como espaço sagrado, não? É por isso que esses caras
se você propuser qualquer coisa que extrapola o templo, a igreja nas ruas, eles não sabem
190
onde colocar a mão! Porque eles só sabem andar e transitar dentro da estrutura
eclesiástica, você fala igreja aberta, igreja pra servir, ser sal e luz, a turma desconversa,
inventa uma agenda pra segurar a turma cada vez mais dentro. Você Rubinho, que conhece
bem esse país, você já viu na agenda lá de qualquer igreja, semana missionária, semana
não sei o que lá, e assim mês das artes? A igreja como promotora de artes, como espaço
pra qual tipo de manifestação eclesiástica, isso é sagrado na nossa agenda anual, onde
você vê isso? Um pastor recomendando uma exposição de arte, você não vê! Significa o
seguinte, tem muito artista, tem muito humorista, tem muito dançarino, o cara consegue
escrever um documento, desculpa aí hem, dizendo que não pode expressão corporal? Mas
pode continuar na loja maçônica, isso não afeta a fé cristã, tá certo, as dancinhas ainda não
estão boas, a roupinha é inadequada, mas você só aprende a dançar e a ter expressão
corporal de qualidade, dançando, fazendo! Pra você aprender a pintar, e usar as técnicas,
você vai ter que pintar! Ainda chego em cidades e tenho certeza, dessas duas perguntas
não vou escapar: - “você ainda ouve música secular?” Segunda: “você apoia artista que
toca na noite?” Todo fim de semana peço que não me façam essas duas perguntas, mas
eu tenho que responder! Na minha conversão, João Batista foi Tim Maia, e a parteira foi Rita
Lee! Eu chego e digo: “eu tenho de dar o meu testemunho: foram as duas músicas deles
que Deus começou a tocar no meu coração, e chamar a atenção a necessidade que eu
tinha!” Eu não quero escandalizar, mas era esse o meu testemunho, e eu não posso mentir!
(risos).
** entrevista realizada no restaurante Galeto’s, no Shopping Pátio Higienópolis, av.
Higienópolis, 618, São Paulo, no dia 24 de outubro de 2017, às 14h38
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Entrevista 3 - Rev. Jasiel Botelho
É pastor evangélico, nascido em Recife em 1948. Missionário da SEPAL.
Fundador e presidente da Missão “Jovens da Verdade.” Jasiel e sua esposa
Ivone trabalham com o ministério de casais. É autor de vários livros para
juventude, livros de humor. Professor de teologia na FLAM. Casado e pai de
três filhos.
Reverendo, quando você começou o seu ministério pastoral? Eu, como
pastor, demorei, foi nos anos 1980, mas como ministério mesmo, foi quando me
converti no Palavra da Vida, em Atibaia, em 65, em 67, eu já estava na equipe,
trabalhando no acampamento, no QG, na equipe do Palavra da Vida.
Então o J.V. seria uma espécie, um filho do Palavra da Vida? Sim, um filho
do Palavra da Vida. Eu fiquei cinco anos com eles, aprendi sobre acampamentos e
em 68, eu era estudante no seminário JMC107, presbiteriano e nós começamos um
conjunto chamado Jovens da Verdade, conjunto musical e influenciado por um
conjunto americano que chegou, com balde, aí nós copiamos e criamos o contra-
balde brasileiro108. Muita gente pensa que nós é que o inventamos, mas não foi não.
Mas o J.V. é um ministério autóctone, não? É, um ministério brasileiro. Veio
desse grupo de jovens estudantes do JMC e também somos filhos da Igreja
Presbiteriana do Brasil, todos éramos da Igreja Presbiteriana no começo, e depois,
lá em Jandira, onde era o JMC – José Manoel da Conceição, nós começamos, em
107 Instituto "José Manuel da Conceição" (JMC), também chamado de Seminário Menor, funcionou em Jandira, SP, de 1928 a 1970, e era mantido pela Igreja Presbiteriana do Brasil. 108 Um balde no chão, com uma corda que era mantida esticada por um cabo de madeira que, à medida que “tocado”, e esticado em maior ou menor pressão, emitia sons graves imitando assim, os contra-baixos
192
68 e em 69 fizemos o primeiro acampamento de temporada, de brasileiros, mas eu
fui buscar o preletor lá no Palavra da Vida, o Reverendo Tompson (americano), e
nós fomos muito influenciados pelo Palavra da Vida, mas era uma outra realidade,
com o Ary Bollback, não com o Haroldo Reimer, a diferença entre eles era muito
grande, o primeiro era muito bem humorado, humorístico. Eu aprendi a aprontar
com o Ari Bollback. O Haroldo era bem diferente.
Você consegue juntar o humor ao sagrado de boa? Hoje sim. Mas no
começo, quando eu cheguei ao Palavra da Vida, eles brincavam muito, tinham muito
esporte, tinha muito esquete, e a questão da esquete foi uma descoberta para mim.
Mas era um humor não evangélico, era o humor pelo humor. Era stand-up, e eu
fazia isso, mas eu não sabia. Eu cuidei da noite de esquete, a noite do humor, e era
só esquete naquele tempo. Depois é que introduzi música e outras coisas mais e
era um show. Eu fiz até a música de abertura dessa noite de esquete do PV. E eu
me realizei, todo aquele dom de humor, saiu. Mas aí eu percebi que quando era pra
pregar, dar testemunho, eles não contavam comigo, porque eu era brincalhão. E aí
contavam com outros. E isso também no JMC, onde eu estudava. Tinha a caravana
de pregadores, e tinha a gente. A gente brincava muito e não podia entrar na
caravana de pregadores, quero dizer, eram muito sérios. Mas o pior não foi isso, o
pior foi quando a gente começou o Jovens da Verdade, e os Jovens da Verdade foi
sempre descontraído, eu e o Josafá109, a gente brincava muito, mas aí houve um
109 Josafá Vasconcelos, paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, é pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados
193
período em que entrou um líder, presbiteriano, presbítero110 muito sério chamado
Amílcar Ovídio Borba111, aí ele foi o nosso guru espiritual e aí foi cortando a gente
em termos de humor, cortando e eu fui ficando sério e tal, e quando eu terminei o
seminário, eu fui convidado para pastorear a primeira igreja112, aí eu tive de mudar
totalmente. Agora imagina: eu tinha de vestir toga genebrina pra pregar, além de
terno e gravata, toda aquela tradição da igreja, o respeito aos idosos e tal e eu
conclui que fiquei com uma dupla personalidade. Eu brincava, né, mas tinha hora
que eu ficava sério. A Ivone113, acha que eram melhor as minhas pregações quando
eu era mais sério, entendeu? Mas eu fui ficando esquizofrênico, eu leio assim.
Mas você não vê uma esquizofrenia também na igreja nessa relação até
hoje? Sim, com certeza, uma loucura. Mas aí, eu fui a um congresso em Lima, no
Peru, e sabe quem me ajudou? O Robinson Cavalcanti114. Ele foi preletor nesse
congresso, o Clade II115 e eu estava lá e pensei, esse cara num congresso tão
110 Presbítero (do grego "ancião" ou "sacerdote" usado no cristianismo) no Novo Testamento refere-se a um líder nas congregações cristãs locais, com referência ao "presbyteros" grego significando ancião/senhor e "episkopos" significando administrador. Entre os presbiterianos, indivíduo eleito pela congregação para dirigi-la e ser seu chefe espiritual. 111 Reverendo presbiteriano Amílcar Borba, foi diácono (1966-1972), presbítero (1972-1981), e ordenado pastor pelo Presbitério Unido de São Paulo em 15/03/1981, tornando-se co-pastor da IP Unida-São Paulo-SP. Em março de 1986 tornou-se pastor titular desta igreja até Dezembro/1990. A partir daí dedicou-se integralmente ao ministério de campanhas evangelística em todo o país. Faleceu no dia 22 de Março de 2012. 112 Primeira Igreja Presbiteriana Independente (IPI) de SP, a Catedral da Igreja na Nestor Pestana, em São Paulo-SP, onde foi pastor de jovens por 3 anos (de 1985 a 1987). Jasiel é formado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Independente, de 1980 a 1984. 113 Ivone Botelho, esposa de Jasiel é mestra em Teologia, além de ser formada em Letras. É diretora acadêmica da Faculdade Latino Americana de Teologia Integral (Flam), professora de Missiologia e mentora de Jovens. 114 Edward Robinson de Barros Cavalcanti foi bispo da Diocese Anglicana de Recife (1944- 2012). Teólogo, acadêmico, participou da fundação (1970) da Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL), onde integrou, por sete anos, a sua Comissão Executiva. Integrou, também, a Comissão de Convocação do Congresso de Lausanne (1974), e a Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE), por quatro anos, bem como a Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial (LCWE), na Unidade “Ética e Sociedade”. Deixou livros e artigos em centenas de publicações. 115 Congresso Latino Americano de Evangelização, organizado pela Fraternidade Teológica Latino Americana, em 1979
194
importante, internacional, vem pregar e o tempo todo ele brinca, ele é irônico, então
é possível isso.
E você não vê na Bíblia o humor? Hoje eu vejo, hoje eu vejo, no Velho
Testamento, entendeu? O próprio Jesus, com as parábolas, e com as respostas, as
pegadinhas que ele faz, mas muito no Velho Testamento. No Velho Testamento é
claro. Um dos clássicos do humor no Velho Testamento é quando Elias fala assim:
“grita mais alto, pode ser que ele pode ter saído, ou tá no banheiro!”. Isso aí é humor
(risos) de primeira, né? Fora as outras coisas né? Então, o Robinson me ajudou
muito e aí depois, nós passamos seis meses na Inglaterra, aprendendo inglês e nas
lições, todas elas tinham uma charge, e você tinha de interpretar a charge e o humor
britânico é diferente, cada cultura tem sua característica. E aí eu vim embora e o
Caio116 convidou o John Stott117 pra vir pra cá pregar e eu estava lá pintando e tal, e
ouvindo o John Stott e ele contava as histórias deles, de humor, mas o pessoal não
ria e aí eu falei, caramba, eu acho que o pessoal não está entendendo, aí eu fiz pela
primeira vez charges, desenhos, ilustrando o que o John Stott tinha falado e eu colei
lá na parede e criou até um tumulto porque as pessoas ficavam vendo e não
deixavam entrar e o responsável disse: “ponha noutro lugar senão vai dar
problema!”. E eu pus e aí eu vi que o pessoal gostou e eu fiz a semana toda a charge
e eu pensei, caramba, é uma coisa bacana isso. E aí continuei: Na Geração 90 em
Brasília, fizemos e fomos juntando outros humoristas, aí eu descobri que eu tinha
116 Caio Fábio D'Araújo Filho, mais conhecido como Caio Fábio (1955) é um escritor, psicanalista e ex-pastor presbiteriano brasileiro. Foi o fundador e presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), é líder e mentor do Movimento Caminho da Graça (sediado em Brasília), grupo que possui subestações espalhadas pelo Brasil e pelo mundo 117 John Robert Walmsley Stott, CBE (1921 – 2011) foi um pastor e teólogo anglicano britânico, conhecido como um dos grandes nomes mundiais evangélicos. Foi um dos principais autores do pacto de Lausane, em 1974. Em 2005, a revista Time classificou Stott entre as 100 pessoas mais influentes do mundo tendo publicado mais de 40 livros e centenas de artigos, além de outras contribuições à literatura cristã.
195
esse dom de desenhar o humor, não só a piada, mas o humor. Aí, no Congresso
Brasileiro de Missões, em Caxambú-MG, eu publiquei algumas charges, eu fiz
algumas charges de missões. Uma boa charge foi da “Janela 10X40”118 aí eu fiz uma
janela, com umas missionárias na janela e embaixo, escrito o que é Janela 10X40?
– “é uma janela onde tem 10 missionárias de 40 anos não alcançadas” (risos) e as
missionárias queriam me matar, né? Aí eu quis me redimir e fiz outra charge – o que
é janela 10X40? Onde 10 missionárias fazem o trabalho de 40 homens! (risos). E aí,
a surpresa, que o diretor da Mundo Cristão, que é uma editora assim séria, né?
Olhou e disse: -“Jasiel, vamos publicar essas charges!”. Ali é que eu vi o valor do
humor, né? Eu pensei, “puxa vida, uma editora tão séria evangélica, querendo
publicar charge de humor!”, mas depois eu descobri por que ele era americano, e
os americanos valorizam o humor. As publicações em geral têm uma charge, a
Christianity Today119 tem as charges, muito importante as charges, então eu pensei
que ela é como a fotografia – uma imagem vale por mil palavras. E aí eu fui
aprendendo o humor, você não pode brincar com coisas sexuais, você não pode...
isto é, há limites no humor. E tem o bom humor e tem o mau humor, tem a crítica e
aprendi que você não deve ofender as pessoas, com humor, você pode criticar as
ideias e criticar os exageros, as caricaturas que as pessoas não percebem por que
eu tive mais liberdade no humor, quando eu estudei os temperamentos e eu
descobri que toda pessoa tem partes positivas e partes negativas, que não são
118 Este nome se deu pela localização dos 62 países que formam um retângulo aos graus 10 e 40 acima da linha do Equador. A região engloba o norte da África, o Oriente Médio e a maioria dos países da Ásia, países dominados pelo islamismo, hinduísmo e budismo, a região menos evangelizada do mundo. 119 Christianity Today é um periódico cristão evangélico com sede em Carol Stream, Illinois. É a bandeira de publicação de sua empresa-mãe Christianity Today International, e afirma que tem entre 145.000 e de 304.500 leitores.[1] O fundador, Billy Graham, afirmou que ele queria "plantar o pavilhão evangélico no meio de estrada, tendo a posição teológica conservadora, mas uma abordagem nítidamente liberal dos problemas sociais". No Brasil, saiu sua primeira publicação fora dos EUA, onde este pesquisador foi o chargista oficial desde o tempo em que durou aqui,
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pecados, mas características que são do temperamento de cada uma, que quando
você esconde as suas fraquezas, você fica vulnerável, quando você as expõe, você
amadurece, você cresce, e você fica protegido num certo sentido, então eu aprendi
a rir de mim mesmo, das minhas fraquezas, das minhas limitações...
Há saúde no humor? É tremendamente saudável o humor e eu aprendi assim,
quando você ridiculariza o outro, isso é mau-humor, quando você ridiculariza você
mesmo, isso é bom-humor.
O poder teme o humor? O poder teme, porque o poder não quer ser criticado
de jeito nenhum. Agora imagine o poder político! E o poder eclesiástico? As
lideranças, os pastores, nós os pastores não aceitamos ser criticados,
principalmente os líderes. O maior problema da liderança é o narcisismo, é a
vaidade, é a soberba. Quanto mais um líder é forte, quanto mais ele é famoso o líder,
mais ele é intocável, ele é o “ungido”, ele não pode ser criticado de jeito nenhum.
Se nós, pobres mortais não podemos, imaginem esses caras que são semideuses,
entendeu?
Você é um pastor de teologia reformada, você não concorda que até os
seus princípios, a base, de fé ficam ameaçados diante do humor, por exemplo,
você citou o caso de o clero ficar ofendido, ficar vulnerável, num dado
momento, isso não trai o princípio do sacerdócio universal? Isso não é uma
ameaça ao pensamento reformado? Sim, porque hoje eu divido, o Tim Keller120 foi
quem ajudou a gente a ver isso: separar religiosidade do evangelho. O evangelho é
120 Timothy J. Keller (1950) é um pastor americano, teólogo e apologista cristão de teologia reformada. Ele é mais conhecido como o pastor fundador da Redeemer Presbyterian Church, de Nova York , e autor de diversos best-sellers do The New York Times.
197
livre, por exemplo, você pode fazer uma charge de Deus, Deus não fica ofendido,
Deus está acostumado a sofrer, na religiosidade, o deus religioso é o mesmo deus
do muçulmano. Quando você diz “não leve o nome de Deus em vão”, não é questão
do humor, é questão de você não brincar com Deus, não levá-lo à sério, não é o
brincar com ele, porque Deus é pai e se há uma coisa que o pai mais gosta de fazer
com os seus filhos, e vice-versa, é brincar. Por isso eu digo que hoje eu tenho a
liberdade de brincar com Deus porque ele é meu Pai.
Uma coisa a que você se referiu na sua formação foi acampamento. Isso
foi importante na sua vida? Qual é a relação que você faz entre o espaço dos
acampamentos e o templo? Eu vivi numa igreja presbiteriana tradicional, no centro
de São Paulo, quando eu tinha 14, 15, 16 anos e daí dessa igreja eu fui pra um
acampamento, o Palavra da Vida, de americanos, então foi uma diferença muito
grande. Na igreja, você entrava para assistir, você não podia mexer em nada, se
sujasse, tinha quem limpasse, e você ia assistir o culto. No acampamento não, você
podia fazer tudo, tinha uma equipe de jovens, que fazia todo o acampamento, com
“n” trabalhos, isso já foi uma diferença tremenda, agora, fora a liturgia. Imagina
chegar e o pastor estar de bermuda, com a bíblia na mão para pregar, agora, o meu
pastor, além de terno e gravata, ainda tinha a toga genebrina, a toga de Calvino, o
nosso louvor era dos hinos europeus, americanos, coral - e eu brinco que não era
coral era coroal, porque só coroas cantavam – agora lá não, eram canções, com
ritmo, com palmas, muito mais próximos, outra coisa que foi um choque pra mim
foram os testemunhos, e na nossa liturgia não tinha esse negócio de testemunhar
o que Jesus, o que Deus fez na sua vida, a liturgia lá era de adoração, de ouvir a
palavra, o sermão era elaborado, lido, e no acampamento não era nem sermão,
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eram pregações, recheadas de testemunhos e de humor, para alcançar os
adolescentes e os jovens. Então quando eu voltei foi um choque na igreja, porque
eu quis trazer aquilo para a igreja. Imagine cantar com os idosos: senta, levanta,
senta, levanta, aleluia, aleluia, glória ao Senhor121...
Era como se existissem então duas divindades – uma do templo e outra
de um salão social, aquele que ficava no fundo da igreja? Exatamente, tinha
aquele culto solene ...mas cá entre nós, o culto protestante ainda tinha, ...na igreja
católica era muito pior, pelo menos nós tínhamos o social, no salão social, nas
brincadeiras de roda e tudo o mais. E quando eram as campanhas evangelísticas,
aí alguma coisa mudava, isso para não ser completamente contra a igreja
tradicional, porque de qualquer maneira a gente herdou isso, não fosse isso, talvez
eu nem tinha conhecido o evangelho.
E o Jasiel, quando está num tempo é outro Jasiel? Sim, eu respeito, porque
isso também é maturidade, você respeita os ambientes, mas ainda respeitando, eu
ainda com cuidado eu uso ainda o humor e os idosos gostam, os adultos gostam,
e os tradicionais gostam também, é interessante, porque faz parte do ser humano,
o humor, foi Deus quem fez e criou, os animais não têm isso, são só os humanos,
agora, o pecado estragou isso, né? Por isso tem o mau-humor, tem o humor
sarcástico, tem o humor bullying, e eu gostava disso também, era o lado negativo,
se eu pegava uma fraqueza sua, me dava prazer – e ainda me dá, eu tenho de me
policiar – de te expor. Interessante que eu tenho muitos amigos da liderança
evangélica do Brasil, eu conheço, somos amigos e tal, mas alguns deles têm medo
121 Canção popular na época, de autoria desconhecida, de letra simples e acompanhada com o levantar e assentar do público.
199
de mim, medo que eu os ridicularize, compreende? Eu tinha um amigo da Sepal,
que era diretor que morria de medo, eu dizia à ele: você é meu amigo, eu não vou
fazer isso com você, eu não vou te expor ao ridículo, porque a gente era amigo e eu
sabia das fraquezas dele, então, esse é o mau-humor, e hoje eu tenho cuidado. A
Ivone122 diz que se todos não se divertirem então não é humor. E agora eu uso o
humor no meu ministério em termos de família, de casais, eu trabalho com casais,
eu posso tocar em assuntos delicadíssimos, como a sexualidade, com toda a
liberdade e a gente se diverte, e é muito legal.
Você foi responsável, digo, você e o ministério que você representa, o JV, pela
formação de muitos, de uma nova geração, o reconhecimento é inegável. Você crê,
que influenciou nessa leveza de ver a vida e o evangelho? É eu digo que a gente
contribuiu porque a igreja – nós éramos basicamente da Igreja Presbiteriana – a
igreja mais fechada, talvez a Luterana fosse mais, mais a Metodista, mas mais a
Presbiteriana, uma igreja mais tradicional, né. Eu lembro de pregar numa igreja
Presbiteriana de camiseta, e depois o conselho se reunir, brigar e até dividir a igreja,
então a gente trouxe uma nova liturgia, com os testemunhos, a gente influenciou na
música, com os ritmos, na arte,... Quando eu comecei a desenhar eu fiz uma revista
pra criança, eu tinha a preocupação se eu podia fazer imagens de Jesus, eu tive
esse conflito, como é que desenho Jesus, como é que desenho os santos, os
apóstolos e tudo? Isso aqui no Brasil, porque se você vai aos Estados Unidos, não
tem isso. Eu fui à Coreia e nossa! Parecia uma loja católica, porque tinha de tudo e
na Inglaterra a mesma coisa, é uma coisa mais da América Latina, que veio dos
122 Ivone Botelho, esposa do entrevistado
200
Estados Unidos, dos Puritanos123, o evangelho contra a cultura, a música, o samba.
Se quando os protestantes tivessem chegado ao Brasil e aceitado o samba, a igreja
teria sido muito mais aberta, teria alcançado mais. Então, essa questão do humor,
eu acho que é muito mais sadio. Os Jovens da Verdade por exemplo, nesses anos
todos, cinquenta anos a gente vai fazer, a gente não tem escândalo nenhum
praticamente, porque qualquer um que tenha um comportamento meio estranho,
ao invés de você chegar ao cara e chamar a atenção, você começa a gozar dele na
frente de todo mundo, então a pessoa recua. Então o humor me dá a liberdade de
eu chegar perto de você, te criticar, dizer: “olha, não vai por aí não que é perigoso!”
Sem te ofender, sem te ridicularizar.
É estabelecer pontes ao invés de construir muros? Exatamente. Não é
aquele discipulado de você chegar e mostrar o erro da pessoa. Você pode fazer
isso, e você pode mostrar o erro da pessoa com brincadeira e a pessoa: “ôpa, não
é por ai!”. E nós fazemos isso largamente aqui. A cultura judaica é muito alegre.
Jesus começa o ministério num casamento, ...aquela imagem que Jesus não ri...
Hoje eu tenho essa consciência, nós éramos muito legalistas, inda mais com esse
nome “Jovens da Verdade”, sabe, a tentação de ser dono da verdade... Eu passei
uma fase de muito briguento, sabe? Eu era o “cão de guarda do JV” e aí, quando o
Tim Keller veio falar sobre toda essa religiosidade, aquilo fez a diferença, entre
religiosidade e evangelho, pra mim foi o divisor de águas da lei e da graça. Eu,
embora presbiteriano, estudando a graça e tudo, mas eu vivia dentro da lei, um
123O puritanismo designa uma concepção da fé cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da Reforma. Segundo alguns teóricos, trata-se tanto de uma teoria política como de uma doutrina religiosa. O adjetivo "puritano" pode designar tanto o membro deste grupo de calvinistas rigorosos como aquele que é rígido nos costumes, especialmente quanto ao comportamento sexual (pessoa austera, rígida e moralista)
201
evangelho meritório, assim, eu nunca tive uma vida devassa, então, eu fui o filho
que ficou em casa124 - eu sou merecedor – então eu trabalhava, não tinha
consciência disso, então tudo o que eu fazia e dava certo, era a bênção de Deus
porque eu fiz certinho, quando acontecia alguma coisa errada, eu ficava com a
consciência pesada do “o que eu fiz de errado, porque Deus não me abençoou?”.
No fim eu entendi que era meritória a coisa, não era a graça e tremendamente
julgando os meus amigos, os colegas, por qualquer coisa, às vezes por uma
fraqueza financeira, às vezes por uma fraqueza moral, todos os meus colegas que
se separavam eu julgava fora do evangelho, né? E aquela coisa toda... E qualquer
coisa que julgava diferente, principalmente os liberais, entendeu? Eu hoje acho que
isso é palha e o construir com pedras preciosas é a amizade, é o respeito, é o amor,
é a consideração, ...
Então você vê o humor como um sinônimo de misericórdia? Eu acho que
é bem por aí, é um instrumento de graça.
É a coisa do humor ser arma e também instrumento de aproximação? Eu
falo: a graça do homem é a graça de Deus. A gente aceita a graça de Deus, mas
não aceita a graça do homem e quando se junta as duas, fica muito melhor. E a
gente tem dentro do JV tendências de todo o tipo: de liberais, de conservadores e
agora dos Puritanos que são bem fechados e eu decidi que vou respeitá-los e vou
tê-los como irmãos queridos, mesmo não concordando do jeito deles pensarem e
isso aí, é o humor que me ajuda.
124 Referência ao irmão do filho pródigo, da parábola de Jesus
202
Muito se analisou sobre o crescimento numérico da membrezia da igreja
(evangélica) de 1960 para cá, nos aspectos sociológicos, antropológicos,
econômicos, você acha que de alguma forma o humor ajudou nesse processo
de crescimento de uma igreja não tão legalista, não sei se você consegue se
lembrar? Eu acho que os pastores novos, os diáconos, porque a maioria dos
pastores agora, com raras exceções, e presbíteros, foram jovens de acampamentos.
Se não foi no nosso foi do Palavra da Vida, se não foi do Palavra da Vida, foi na
Mocidade Para Cristo, e os que não foram, são legalistas hoje. Eu conheço alguns
presbíteros para quem é mais importante ser presbiteriano do que ser cristão. Por
exemplo, eu fiz uma charge, quando a Igreja Presbiteriana escolheu por o Espírito
Santo na sarça ardente125, e aí um colega começou a trocar e-mails comigo me
criticando e eu disse: “e porquê?” e ele: “porque é um símbolo sagrado” e eu disse:
“e desde quando o símbolo da igreja é sagrado?” (risos) E ele disse: “Ah! Se fosse
na ditadura, isso era como brincar com a bandeira nacional”. E fomos trocando,
trocando mensagens, quando ele apelou e falou: “é, porque você não é pastor
presbiteriano, você tem dor de cotovelo e não é pastor presbiteriano”. E eu “quem
falou pra você que não sou presbiteriano? Eu sou reverendo, com todos os direitos!”
(risos). Então tem isso, o sagrado...
Parece que a forma é tão sagrada quanto a doutrina? Exatamente. O jeito
de pensar, não se brinca, não tem humor... só que hoje você já não tem uma igreja
assim. Você tem uma cúpula mínima ali, entendeu? Tanto que os puritanos não
conseguiram entrar no Supremo Concilio da Igreja Presbiteriana126. Isso na
125 A imagem de marca da Igreja Presbiteriana do Brasil tinha uma pomba voando sobre uma sarça – um arbusto - ardente em referência à Êxodo 3:2 126 Órgão máximo regulador da IPB
203
Presbiteriana, na igreja pentecostal, aí tudo já é mais aberto, esse neo-
pentecostalismo também. Agora, é claro que é muita crítica agora, é um movimento
contra isso: usar o púlpito como um stand-up, tem o Cláudio Duarte127 que ficou
conhecido e alguns dessa liderança criticam muito, até estou vendo as 95 teses
contemporâneas, se a gente monta e inclusive ao humor, que não se devia brincar
com a Palavra de Deus, ficar contando piada, assim como a crítica ao louvor
também, há uma crítica ao louvor, que isso não é louvar..., há a crítica sobre
dança..., que ficar dançando, isso não é culto,... Então, há um movimento
reacionário também, mas também por outro lado, tá havendo muito exagero e oque
a gente quer é um equilíbrio, nem exagero de um lado, nem de outro, né?
E os desafios que você podia pontuar pra mim sobre essa igreja de hoje?
Eu acho que o maior desafio para mim, hoje, é a religiosidade. A religiosidade que
não é evangélica. Você é religioso, mas não é cristão, é uma imitação, é uma coisa,
é como se satanás criasse uma religião “cristã”, entendeu? Evangélica cristã. E
nessa religiosidade não tem perdão, não tem misericórdia, se você não concorda
comigo você está fora, se você fez uma coisa errada não tem conversa, não tem
perdão, nem restauração, é aquela velha história: Deus odeia o pecado e odeia
também o pecador e os dois vão pro inferno, odeia o ímpio. É, ...é difícil você
entender isso: Deus odeia o pecado, mas ama o pecador. Como é que pode isso?
E tem outras coisas, a tecnologia... antes você mandava o povo desligar os celulares
nos cultos, hoje você manda ligar (para acessar as bíblias)... e tem a questão da
127 Pastor, conferencista e pregador, membro da Igreja Batista Monte Horebe em Campo Grande e pastor local na filial da Barra da Tijuca- RJ, casado com Jane Mary, pai de Caio e Filipe. Se tornou conhecido por suas mensagens direcionadas à casais e com humor
204
evangelização, antes você evangelizava nas ruas, de porta em porta, hoje a
evangelização é pela internet...
Você fez um filho humorista, não? É mais o outro também é, mas um humor
diferente, mais o humor inglês, o outro ele é sério, mas ele tem humor, um humor
interessante e usa também como ferramenta.
* Entrevista feita no Acampamento Jovens da Verdade, em 31 de outubro de 2017, às 14h36
Entrevista 4 - Mauro de Oliveira (Maurão)
Maurão é jornalista, compositor, humorista e manipulador de bonecos
É assim: Eu nasci num lar evangélico, em Santo Anastácio, Igreja Presbiteriana
de Santo Anastácio. Antes disso, eu fui batista (eu fui um “Amado Batista”128,
também). É ..., mas aí teve um desentendimento lá e nós corremos para a
Presbiteriana de Santo Anastácio, onde eu fui batizado aos 8 anos de idade, eu
nasci em 52, nos anos 60, daí mudamos para Presidente Prudente, depois São
Paulo, mas o chão meu foi Presbiteriano do Brasil, IPB
Você chegou a ser ordenado? Não, eu sou jornalista, eu não sou pastor, nem
presbítero, graças a Deus, não. E quando é que você descobriu a sua veia
artística? Cara, eu não sei o que te dizer, quando eu descobri isso, sempre gostei
de humor, das coisas engraçadas. Eu só assistia comédias, essas coisas, ...lia livros
128 Amado Batista é um conhecido cantor popular, do gênero brega
205
engraçados. Eu sempre gostei disso e quando fiz jornalismo, e fiz jornalismo
porquê? Por que a Bíblia é um livro difícil de você ler, e o jornalismo me abriu muito
a cabeça: você lê e transmite de uma forma que todo mundo possa entender. Eu fiz
jornalismo por isso, pra isso também.
Você tinha essa preocupação de pensar na função do jornalismo, para o
seu ministério cristão? O meu ministério, exatamente, por que eu sempre gostei
muito de pregar – a base do meu trabalho também é a pregação da Palavra de
Deus. Sempre usando o humor, pregar com humor. Eu conto piada, eu tenho um
tipo de música engraçada, que eu pesquisei para fazer, e tudo o mais. Mas o meu
chão é presbiteriano do Brasil. Mas aí, o que aconteceu? Eu me casei com uma
moça do Brasil para Cristo. Aí ficou aquela dúvida: Ashbell Green Simonton, ou
Manoel de Melo?129. (risos!) Aí eu fui pro “Manoel de Melo” e fiquei 10 anos
trabalhando lá, numa igreja muito boa e eu descobri uma coisa boa lá, na
pentecostal assim, dessa igreja pelo menos, é riquíssima em termos musicais. Eu
conheci a Harpa Cristã130, conheci o Cantor Pentecostal131 e tem um outro...
Você tem um trabalho de música também, não? É, eu componho e canto,
né? Também.
E os bonecos, você os descobriu quando? Os bonecos, eu acrescentei em
1982, 83, por aí.
129 Ashbel Green Simonton e Manoel de Melo, foram respectivamente, os fundadores das igrejas Presbiteriana do Brasil e Brasil para Cristo 130 Harpa Cristã é o hinário oficial das igrejas Assembleias de Deus, desde 1922, com 640 hinos, ela foi especialmente organizada com o objetivo de enlevar o cântico congregacional e proporcionar o louvor a Deus em diversas liturgias da igreja: culto público, santa ceia, batismo, casamento, apresentação de criança, etc 131 Hinário editado em 1921, sob orientação de Almeida Sobrinho e tinha 44 hinos e 10 corinhos. O Cantor Pentecostal foi distribuído pela Assembleias de Deus de Belém/PA
206
E você se espelhou em algum ministério cristão que os utilizasse? Não.
Vila Sésamo132 (risos). Eu vi aqueles bonecos na TV, ...Ah! Um dia eu vi uma
apresentação de uns coreanos numa faculdade, chamada ABECAR133, lá em Mogi
das Cruzes, uma faculdade onde eu prestava serviços em acampamentos, aí
emprestei os bonecos e fui para o local onde a minha mulher dava aulas, para ver
se eu levava jeito para trabalhar com aquilo. Ah, rapaz! A criançada amou!
E você usava isso exclusivamente para crianças? Não, eu faço bonecos
para adultos. Até hoje, não é para criança. Eu até brinco: “Gente, eu não sou
pediatra, eu sou um clínico geral!” (risos). E por quê? Por que as piadas são para
adultos, o contexto é de adultos... mas a criançada ama, cara!
Isso então é universal? Mas me diz: você acha que os bonecos são universais
ou o humor é universal? Eu acho que é o humor. O humor, certamente. Você assistiu
o Nome da Rosa, não? É aquilo ali.
E você enxerga o humor na religião, nas escrituras por exemplo? Direto,
Rubinho. Eu digo sempre – e sou mal interpretado às vezes – que Deus é bem-
humorado. Muita gente torce o nariz achando que estou dizendo que Deus é um
palhaço, mas não, eu digo Deus tem humor. Você pode ver a criação, a girafa, o
elefante, a criação é aquela coisa doida – aquela diversidade, tem o pescoçudo, o
132 Vila Sésamo foi uma série de televisão brasileira, baseada no programa infantil norte-americano Sesame Street (criado pela Children’s Television Workshop de Nova York, baseado em opiniões e conceitos emitidos por técnicos de educação e agência de publicidade). O programa foi exibido pela TV Cultura de 1972 a 1977. 133 Nascida em 1958, como Missão Bíblia Bereana e em 1972, passou a ser chamada de Faculdade de Teologia A.B.E.C.A.R.. É baseada em Mogi das Cruzes-SP e também funciona por “Distance Learning” e mantém um acampamento para jovens desde 1963.
207
orelhudo, ...Pois é, eu uso o humor para falar do amor de Deus, e Deus tem
abençoado. No começo, foi difícil, dar a cara pra bater foi difícil, ...
Você acha que naquela época não havia respeito ao humorista nas igrejas?
Claro, ninguém analisava a essência do trabalho, só a forma. O conteúdo, ninguém
analisava. Para você ver, eu já fui pregar em igreja onde o pastor não deixou. Ele
disse: Não, aqui você não prega. E por usar o humor. Não. Isso é palhaçada. E eu
me lembro que tinha eu, e o Janires134 que fazíamos músicas diferentes – ele rock e
eu sambinha, mas com letras engraçadinhas e tal, mas sempre numa linguagem
meio ácida, tá? E muita crítica. Muita. E teve igreja onde a gente ia e o pessoal
levantava e ia embora. Lá nos anos 80. O pessoal levantava e caía fora. Meu Deus
do céu, eram aquelas igrejas carrancudas, não bastasse a sociedade toda sem
bom-humor algum. Foi um sofrimento. Agora você vê hoje como é que está? O que
a gente fazia é pinto. Hoje eu analiso assim: hoje não tem é conteúdo. O Jorge
Rheder135 já dizia: tem muita música mas não tem é qualidade. Hoje pra gravar um
CD é a coisa mais fácil desse mundo! E nós viemos da época da aculturação, ou
nacionalização do evangelho, os Vencedores, os Jovens da Verdade, ...Mas eu
tomo como ponto de partida, os Jovens da Verdade, nem tanto os Vencedores. Só
134 Janires Magalhães Manso (1953-1988) foi um cantor, compositor, produtor musical, arranjador e multi-instrumentista que iniciou sua carreira no fim da década de 1970, sendo mais conhecido como o principal responsável pela modernização da música cristã ocorrida na década de 1980. De família pobre teve forte contato com a música, e mais tarde envolveu-se com o uso de drogas. Após ser preso e permanecer durante um tempo numa casa de recuperação se tornou cristão. A partir disso, voltou-se à suas atividades musicais, tendo fundado o Rebanhão, a primeira banda de rock cristão do Brasil a alcançar notoriedade nacional. Ficou conhecido pelas letras que foram alvo de críticas de líderes religiosos por usar sonoridades até então proibidas nas igrejas, como guitarras distorcidas e letras contextualizadas com a realidade social e econômica da época. E muito humor. 135 Compositor evangélico Jorge Rehder (1955-2009). marcou a história da música protestante brasileira, com mais de 130 canções compostas, muitas delas gravadas pelos Vencedores por Cristo e Grupo Logos. Além de suas canções, Jorge Rehder teve parcerias de composições com Guilherme Kerr, Nelson Bomilcar, João Alexandre, Carlos Sider e Jorge Camargo, gente formada ou revelada pela missão criada por Jaime Kemp (Vencedores por Cristo).
208
para citar, tinha um cara, lá no J.V., já morreu, o Abdias, que fez aquela (cantando):
“Não vou ficar sozinho, agora sou feliz, com Cristo, no meu coração”, tinha o
Jaziel136, que compunha maravilhosamente bem, e que é cartunista, um homem que
admiro muito, pregando, desenhando, fazendo tudo, né? Aquele tempo lá começou
com eles, agora, reforço: é a minha leitura. Aí os Vencedores vieram assim
coladinhos. Pra mim. Era mais um estilo pop. Agora, os Jovens da Verdade, até que
se prove o contrário, abriram tudo, e foram até excluídos de uma igreja, a Igreja
Presbiteriana da Penha. E bendita hora que isso aconteceu, pois foi lá que a coisa
explodiu. Com alguns líderes que bancaram a perseguição ao grupo como o Rev.
Edésio de Oliveira Chequer137.
Já que falou em J.V., qual foi – se foi – a importância dos acampamentos
na sua vida? Meu Deus!!! Eu tenho um acampamento. Quero dizer, eu e a minha
mulher. É mais dela do que meu. Nós temos mais por causa da visão dela sobre
acampamento, isso a levou construir um acampamento. E o que quero dizer sobre
visão, é aquilo que eles têm que a igreja não tem: alegria, tem a pregação do
evangelho de uma forma descontraída, tem comunhão – verdadeira – participação,
você deve saber melhor que eu, que a maioria dos crentes, nos anos 1970, 1980,
se converteu em acampamentos. Eu sou fruto de acampamento. E pelo que sei,
você também passou por acampamentos. Eu fui um dos pioneiros com os bonecos,
na música de humor e você com cartuns, aquele livro Café com Deus é seu, né? Eu
dei muito aquele livro de presente, eu comprava e dava pra quem não era crente. O
humor abre portas. Boneco é uma coisa de doido! Abre portas pra você que você
136 Jaziel Botelho, um dos fundados dos Jovens da Verdade, pastor presbiteriano, entrevistado nesta pesquisa 137 Edésio de Oliveira Chequer, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, que presidiu seu Supremo Concílio (comando da denominação) entre os anos 1986-1990.
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não imagina! É como desenho. Não se desenha pra criança. Você desenha, pronto.
Você já viu aquele desenho dos Simpsons? Aquilo não é desenho pra criança
(risos), mas elas amam aquilo. Pois é, mas voltando à perseguição, bendita hora
em que eles expulsam, né?
Você acha que essa estrutura tradicional das denominações não soube
falar a linguagem do povo? Vamos colocar nesse sentido: não souberam entender,
tipo: vamos abraçar, e não ir contra! Vamos conversar com eles, o que é que eles
querem, qual é a proposta? Por isso é que se perdeu, veja, a Renascer em Cristo138
é resultado disso daí. Os caras queriam pregar coisa nova, pregar o evangelho,
usando bateria, rock, ...e não podiam. Veja a Congregação Cristã do Brasil139, a
história dela é engraçadíssima: seu fundador, Louis Francescon, era membro da
Igreja Presbiteriana do Brás, e a igreja não deixava. Ele era diácono lá. “Ah! Não vão
deixar? Eu vou fundar uma igreja maior que essa!”. E fundou. Alí no Brás mesmo.
Se você tinha dificuldades, onde é que você encontrou apoio para o seu
trabalho, naquela época? Eu encontrei em todas. Eu era membro de uma igreja
pentecostal e lá eu não tinha espaço. Onde já se viu? Era um pode-não-pode...
Agora, eu tinha espaço onde? Em culto de jovens, presbiterianos, ... Tinha um
pastor Afro Marcondes (Afro Marcondes dos Santos Junior), está hoje em
Rondonópolis, Mato Grosso, ele era da presbiteriana, eu da Brasil para Cristo e nós
fazíamos um trabalho muito bonito juntos, chamado Cultão, em Guaianazes (São
138 Igreja evangélica neopentecostal fundada em São Paulo, em 1986, por Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, de uma cisão numa igreja pentecostal tradicional, tornando-se numa das maiores dessa linha, com mais de dois milhões de seguidores, em 3.500 templos, segundo a Revista Época - Edição 452 139 Igreja resultante da síntese doutrinária de base protestante histórica presbiteriano-valdense e o denominado Avivamento Pentecostal de Chicago (1907). Seu estabelecimento em terras brasileiras ocorre em 1910. Segundo o Censo do IBGE de 2010, a Congregação Cristã figura como 3ª maior denominação evangélica no Brasil, com 2,2 milhões de membros.
210
Paulo-SP), todo primeiro sábado do mês e reuníamos a turma dele, a minha e da
região ali. E ali a gente tinha espaço, cantávamos as nossas músicas, e era aquilo
na igreja, o pastor deixava fazer, aliás, muito poucos deixavam.
Parece que no acampamento acontecia isso: no mesmo espaço onde se
faziam gincanas, faziam os cultos, e teatros, sketches, não? Mas eu pergunto,
havia liberdade em acampamentos? E quando o pastor ia junto? Aí você estava
ferrado. A não ser os que eram realizados por organizações para-eclesiásticas, tipo
JV, ...menos o Palavra da Vida ...nossa, aquele pastor deles, como é que chama?
Haroldo Reimer! Uma vez ele veio comer na minha mão. Foi assim, eles gravaram
uma música minha, sem minha autorização. Foi aquela: “Se o teu coração parar de
bater agora...”. Ele gravou e eu fiquei sabendo. Aluguei um VHS, fui assistir em casa,
ai chamei minha mulher e disse: “Bila, olha, a minha música!”. Eu fiquei todo feliz e
mandei uma cartinha à ele dizendo: “Fiquei muito feliz em ver a minha música no
VHS, e tal, tal...”. E ele, pensando que eu ia pedir dinheiro por conta o direito autoral
e esse cara não parava de ligar pra minha casa (risos), e ligava, e ligava e eu nunca
estava, aí a Bila falou: “pastor, se o senhor está com medo do Maurão lhe pedir
dinheiro, fique tranquilo, ele não vai cobrar não, pelo contrário, ele está orgulhoso”.
Ah! Aí ele ficou meu amigo. Queria ter um filho comigo (risos). Aí um dia estávamos
em São Paulo, fomos comer uma pizza, estava ele, aquele quarteto que sempre
andava com ele o PV4, a dona Débora (Nota: imitando sotaque de americano), o
Ary Bollback, como eu gostava daquele homem! Rapaz, a nossa geração é
privilegiada!
Muitos livros creditam o crescimento da igreja evangélica à fatores de
mercado, mas não falam de um certo avivamento de fé que houve, não? Na
211
verdade, ninguém sabe o que é avivamento, e ele nada mais é do que o povo sair
às ruas, pregar o evangelho com alegria, no avivamento tem decisões, tem novidade
de vida, isso é avivamento, não aquela coisa forçada, de modismos, de conversa
fiada.
E outra coisa: você acha que os acampamentos foi uma iniciativa de
doutrinação política, de comodismo aos tempos da ditadura, de alienação dos
jovens? Eu penso que não. Sabe porquê? Naquele tempo a gente não falava muito
de política. A gente queria muito evangelizar. Queria ganhar almas pra Jesus. Então
a gente falava muito pouco de política. Tinha, lógico, aqueles slogans: “Crente não
se envolve com política”, aquele outro: “Crente vota em irmão”. Pra mim, pra mim,
heim? A gente queria mais ganhar almas. Esse negócio de política não era pra
gente, tanto é que não me lembro de ninguém, naquela época que se envolveu em
política. A não ser o Ariovaldo140 que veio do JV.
E você acha que fez escola, Maurão? Ah... eu acho que a gente contribuiu
um pouco, no tipo de música, pra liberdade de expressão. Eu nunca cantei música
americana, eu gosto de música brasileira, MPB, bossa-nova, de forró, de baião... Eu
tenho muita influência de baião, Luís Gonzaga, Renato Teixeira, de quem sou um
apaixonado...
Você chegou a gravar? Ih! Tem um monte de coisa, eu gravei 4 long plays e
uma pá de CDs (XXXX)... eu pensei: eu preciso fazer umas músicas que o pessoal
tá tocando nas rádios, mas com as nossas letras, aí fiz pagode, samba de breque,
140 Ariovaldo Ramos, pastor e militante social, conhecido pela atuação de esquerda.
212
pois sou fã do Moreira da Silva, eu acho que fui colega do Lutero, e já faz 500 anos
(risos)...
O que é música de Deus e o que é música “do mundo” pra você? Não tem.
Música é música. Ela não é nem de Deus e nem do capeta. Na minha leitura, por
favor! Tem a música evangélica, infelizmente, e a não evangélica. Meu Deus do céu.
Eu não escuto música evangélica (risos). Eu confesso pra você, pode parecer meio
arrogante, mas não dá! Você conhece o Atilano Muradas141, né? Você vai ouvir esse
cara numa FM, Gilson Rezende 142, que é um gênio, um crânio, Vavá Rodrigues 143.
Eu gravo só eu, eu e o meu filho, no contra-baixo. Eu não tenho banda, não tenho
nada, sou sozinho.
E você está em alguma igreja? Sim, minha igreja está em São Paulo, fica na
Lapa: Igreja Bíblica Evangélica da Comunhão, ah! E eu ainda sou membro da minha
igreja lá em Santo Anastácio (SP), a Igreja Presbiteriana. Lá eu vou só de vez em
quando. Teologicamente, sou presbiteriano, mas não calvinista. Sou arminiano144!
Crente perde a salvação. você quer saber? Eu tô brincando. Eu não sei nem o que
é que eu sou (risos). Se eu sou calvinista ou não. Aliás, muita coisa que se diz sobre
Calvino, nem ele sabia ou disse. Então isso aí gera muita dúvida. Mas tem muita
coisa no calvinismo que eu fico meio balançado.
141 Músico e compositor mineiro de samba evangélico, que até organizou escolas de samba para pregar o evangelho 142Pastor da Igreja Batista, pós-graduado em Teologia Urbana, músico profissional, compositor com 19 CDs gravados, e professor da FLAM-Faculdade Teológica Latino Americana, dos Jovens da Verdade 143 Compositor e publicitário paulista, criador de jingles famosos e de uma imensa musicografia evangélica nada convencional, algumas músicas são do conhecimento da maioria dos cristãos evangélicos do país 144 O arminianismo é uma escola de pensamento soteriológica (doutrina da salvação), baseada sobre ideias do holandes Jacobus Arminius (1560 - 1609)
213
E você publicou livros? Escrevi. E até vou mandar pra você de presente. Só
escrevi um, aliás, eu fiz dois em um. De frente é um e de trás pra frente, outro:
“Memorias de um pregador do evangelho” e da parte de trás, A moça feia e outras
histórias”. São causos, temperos de sermão, né? Quando você está pregando você
não conta uma história? Pois é aquilo lá. Eu fiz esse livro só e foi por minha conta.
Fiz bastante CD – pra criança e adultos. Tenho já 14 títulos. E pra além deles, tenho
um teatro, chamado “A igreja doente”.
E a igreja tá doente para você? Ô, parece que a igreja não tem cura! É Jesus
a cura, mas parece que não tem jeito... Ah! Rubinho, eu achava que você era parente
do Ruben Ciola145...
A minha orientadora, achava que eu e ele éramos a mesma pessoa... Pôxa,
ele morreu de uma forma trágica... Ele era muito estranho, uma vez foi dormi na
minha casa, lá em Poá-SP, acordou de manhã, não escovou os dentes, nem nada...
depois encontrei com ele num congresso para professores de crianças, nossa, era
piradóvisky, aliás, quem volta de Israel como ele, volta meio doido, quer e batizar no
Rio Jordão (risos)... Crente é engraçado, né? Crente é muito místico, você não
acha? Muito místico e pouco prático. Ele vê Deus em tudo... Calma gente, não é
assim, espiritualiza tudo
Você acha que a igreja ainda não valoriza o humor ou vê a coisa diferente
hoje? Ah! Eu acho que diferente, pelo menos, vejo que as portas hoje estão abertas
pro meu trabalho. Vou à igrejas tradicionais, todas, todas,... Eu vou à Presbiteriana,
Batista, Metodista, Assembleia de Deus, graças a Deus o pessoal respeita. Sabe por
145 Ruben Ciola escritor e animador de bonecos, falecido nos anos 1980, já citado nesta pesquisa
214
quê? Porque não vou pra falar de doutrina, usos e costumes, vou pra pregar o
evangelho. Eu sou um evangelista, eu prego o evangelho, eu faço apelos, a pessoa
se decide e tchau e bença, o que eu tinha de fazer, eu fiz e acabou. Eu fui chamado
pra isso. Sou casado, tenho uma mulher, um filho, dois netos, uma nora. Atrás de
um vitorioso sempre tem uma mulher. E atrás de um fracassado tem duas (risos).
Acho que é isso. Saiba que é uma honra! Sempre que dizia que ia
pesquisar sobre isso, o povo dizia: você tem de entrevistar o Maurão! Você é
um dos pioneiros, que abriu o campo aí e na sua humildade e tudo, ... E eu não
acho, viu, cara? Eu sinto, cara, de não ter preparado um sucessor, se bem de
boneco eu dou curso, né? Direto, direto.
Só mais uma coisa: você se aprendeu a fazer bonecos onde? Com a Vila
Sésamo. Mas como aprendeu a fazer? Não, eu compro. Os bonecos eu compro.
Agora eu encontrei um rapaz em Campinas que confecciona. Perto de casa, eu
moro em Paulínia. Ele confecciona pra mim. Ah! E eu não sou ventríloquo. Eu sou
bonequeiro. Eu fico atrás do pano. Eu bolei um jeito assim: eu estico um pano, um
cara segura aqui, o outro lá e fico atrás e tem uma pessoa para falar com o boneco,
o escada, né, que eu pego na igreja. Antes era a minha mulher, mas agora,
coitadinha, ela quase não está podendo sair mais, né? Então eu pego gente da
igreja mesmo.
O seu acampamento fica onde? Ah! O nosso acampamento fica perto de
Sorocaba (SP), numa cidadezinha chamada Salto de Pirapora (SP).
As pessoas não ficam mais uma temporada, de uma semana, ficam? Ô
ficam. Criança, principalmente janeiro e julho, a gente faz aquelas temporadas, tipo
215
JV, faz para criança e jovem, só que nós fazemos juntos. E o acampamento não
está ligado à uma igreja, é nosso, é particular, mantido pelo nosso suor mesmo. Ele
se mantém. Estamos enfrentando uma crise brava, ninguém está acampando. O
cara quer comer, se vestir e só depois pensa nisso, mas é geral isso! E vamos
tocando.
Como é que um pastor, um líder reage quando você toca na ferida com o
seu humor? Como é que ele reage quando a crítica o atinge? Tem piada que eu
faço com boneco que me faz sofrer muito. Tem uma que faço, pegando o nome da
mulher do pastor, e pergunto pra vovó (boneco): “você a conhece, vovó?” e ela:
“claro, nós frequentamos a mesma igreja” e eu: “mas qual igreja?” e ela responde:
“a igreja primitiva!” (risos). Tem mulher que não gosta que fale que ela é velha
(risos.). E ela continua: “ela paquerava o apóstolo Paulo!” (risos). Tem outra: eu
digo: “vira pro irmão que está do seu lado e diga que ele é um safado!”, ...“vira pro
irmão da ponta e mande ele pagar a suas contas!”, “vira pro irmão da frente e mande
ele escovar os dentes!”, “vire pro irmão de trás e diga: xô satanás!” (risos). “Agora
vire-se para você e veja a sua vida”... é uma coisa assim ... Não é só bobagem, é
pro sujeito parar de olhar pra vida dos outros, pra não julgar. Não me lembro da
letra agora. Piadas com bonecos são piadas leves, a gente faz, brinca com quem
está assistindo, pega o nome dos idosos, afinal o humor tem uma função educativa.
Muita. Muito, muito... Eu fui no Mackenzie agora, fiquei lá por dois dias, contando a
história da Páscoa, usando boneco e usando música. Eu fiz uma música
especificamente para aquele dia e contei histórias. Eu gosto muito de contar
histórias, cara! Bem, Jesus contava, né?
216
Pois, você vê humor nas parábolas? Claro, total! Eu não sei, bem, humor
não é só fazer rir, pelo contrário, fazer a pessoa feliz, é humor, é humor. A pessoa
assiste o trabalho – modéstia de lado, tá? – a pessoa sai de um trabalho nosso e sai
alegre: “Puxa, eu tô indo embora alegre!”, ao contrário de muitos cultos, em que
você vê a pessoa assim... Você gostou do culto? “ô, Deus falou comigo!” e ele tá
com a cara assim... o pastor desceu a lenha... o pastor mais bate do que apascenta,
né? Se bem que tem ovelha que precisa apanhar. E tem pastor também, precisando
apanhar (risos). Ih, rapaz, a Bom Pastor146 na minha vida, tinha o Elias de Carvalho,
conhece, né? Muita gente fala mal dele, mas aquele moço, tudo o que ele fez
comigo, ele cumpriu direitinho, inclusive eu tive um restaurante em São Paulo,
chamava-se “O Pão Nosso – comida caseira”, e o MILAD147 ia almoçar lá, a
crentaiada ia almoçar lá, e eu usava as salas do Elias em troca de trabalho. Eu fazia
produção de disco pra ele, apesar de eu nunca ter tido formação musical,
acadêmica. A única coisa que tenho de acadêmico, é que fiz jornalismo. Só, mais
nada. Mas, olha, é bom reforçar o seguinte: quando força, quando o cara quer ser
engraçado, ele se torna sem graça. Olha, quer ver? Nesses dias, foram a um
programa de TV, dois humoristas evangélicos... Meu, eu não consegui dar uma
risada. Eles fazem uma piadinha aqui, contam outra ali, não sei o quê, é uma
forçassão de barra, uma coisa sem graaaaça...
146 Gravadora e importadora evangélica brasileira. Foi fundada por Elias de Carvalho, filho cantor evangélico Luiz de Carvalho. É uma das mais antigas gravadoras evangélicas ainda existentes no país com sede em São Paulo. 147 Grupo de música evangélica formado por Nelson Pinto Jr. (sempre chamado de Nelsão), entre as equipes treinadas pelos Vencedores por Cristo, a 41ª de 1984, com Susie Duarte Costa, o casal Wesley e Marlene, Sergio Ribeiro e Lílian, Marinho, Rubenita, Roberto Barros, Amilton Berescki e José Roberto Prado
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Tem limite o humor? A gente é que tem de se impor os limites para não se
tornar ridículo. É bom a gente dar uma policiada pra não ficar uma coisa meio, ...né?
Tem o seguinte, o humor... bem, quem faz humor não pode ter medo. De jeito
nenhum. Tem que se preocupar de fazer a graça, mas tem que ter algo de profeta,
de tocar o dedo na ferida. O cara atingido pela piada não vai gostar, pode até
arrancar dele uma risadinha de judeu, meio sem graça. Judeu ri com a barriga,
sabia? É muito engraçado (risos). Tô morrendo de rir, né? Mas com a cara meio
fechada. Mas como ia dizendo, o cara quando força acaba sem graça, fica uma
coisa meio xôxa, né? Ah! Isso aí que você tá fazendo vai virar livro?
** Entrevista realizada no Hotel Mercure, R. Alegre, 440 - Santa Paula, São Caetano
do Sul - SP, São Caetano do Sul, no dia 29 de outubro de 2017, às 15h03
Entrevista 5 - Rev. Evandro Silva
É mineiro, pastor presbiteriano, formado pelo Seminário Menor, José Manoel da
Conceição, em Jandira-SP, e o Maior, no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas-SP.
Foi diretor pedagógico do Instituto Gammon-MG, foi secretário Geral da Mocidade
Presbiteriana, foi presidente da Junta de Missões Estrangeiras da IPB e seu secretário-
executivo. Foi o plantador da Igreja Presbiteriana do Paraguai e é hoje diretor da Missão
Apressem, que fundou. Vive atualmente em São Caetano do Sul. Foi humorista de rádio, fez
stand-ups e atuou como palhaço por anos. É autor do livro “Coragem para ser diferente”, e é
membro da Academia Paulista Evangélica de Letras.
Reverendo, então a sua mãe era humorista? Sim, a nossa veia é da mamãe.
Ela era doméstica, de casa, ela não fazia nada sem fazer você rir. Você tinha que rir.
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E se ela quisesse te xingar de tudo que era nome, também não tinha problema, não.
E ela não falava quatro palavras sem falar cinco bobagens. Ela foi criada na roça,
em Carmo do Paranaíba-MG, perto de Patrocínio-MG, para lá de Patos de Minas-
MG, e o pai ficou louco, tiveram de o amarrar em corrente, naquele tempo
amarravam na corrente, no tronco, e eles falavam pra minha avó: “Larga, põe ele lá
em Barbacena!”, mas lá eles matavam os caras, davam uma desovada feia, num
cômodo, punham vinte, trinta doidos, não tinham onde por tanto doido, uai! Minha
avó, falava: “Não. Eu prometi pra Jesus, eu vou cuidar do Tonho até ele morrer! E
ele prometeu que ia cuidar de mim até eu morrer! Como ele é que ficou doente, eu
é que tenho de cuidar dele”. E ele morreu nos seus braços. E louco, louco varrido.
Um cara apontou pra ele uma arma, quando trabalhava na roça, a égua se assustou
e o derrubou que, caindo, bateu a cabeça numa pedra e ficou doido, doido varrido.
E a minha mãe foi crente. Crente. E foi criada solta. Ela e mais três amigas iam pra
igreja e cantavam no coral e no final da vida dela, tadinha, teve nove filhos, tudo em
casa, papai era pedreiro, ia pras roças pra reformar as roças e a mamãe, amiga de
todo mundo, era boa vizinha, ajudava todo mundo, minha mãe era assim. A raiva
nossa era que a mamãe fazia cinco roscas e nós falávamos: “hoje nós vamos comer
muita rosca!”. E ela tirava e dizia: “leva essa pra dona Etelvina! Leva essa pra dona
Nair e fala que depois levo mais pra ela!”, ela distribuía todas e nós víamos as roscas
indo embora e sobrava uma pra oito filhos! Essa era a raiva nossa da nossa mãe.
Mas aí, quando a vizinha mandava meio porco, ela perguntava, “mas quem
mandou?”, e nós: “foi a dona Nair.”. Ela falava: “Leva pra trás! “Que é isso, mãe?!”
e ela retrucava: “que é isso, seus vagabundos? Vocês levam uma rosquinha
reclamando, e ela manda meio porco pra vocês?! E nós gritávamos que não
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queríamos devolver, até outras mandavam um saco de mexerica e ela devolvia. E
ainda dizia: “vocês reclamam de eu enviar uma rosca, pode levar de volta que não
quero nada deles.” E assim ela viveu a vida dela: cantava, chorava, contava piada,
ria, brincava com todo mundo... isso foi em 1936. Então, hoje tenho 81 anos bem
vividos, graças a Deus. Eu cresci, fui trabalhar em rádio, fui trabalhar cantando,
graças a Deus tinha uma voz boa, ...eu disputava com Moacir Franco, lá em
Uberlândia-MG e ganhava dois sacos de macarrão quem ganhava o primeiro lugar,
trabalhando em três emissoras de rádio e tinha programa de palco, pois naquele
tempo não tinha televisão, era auditório todo sábado.
Mas e a igreja? Ela não via isso com bons olhos, não? Não. Você não sabe
das histórias, a metade. Eu cresci, na igreja do não. Não podia fazer nada que era
pecado. Eu falava: “meu Deus, esse mundo é tão grande, tão bonito!”, eu chorava
no teatro, ouvia o povo cantando, eu queria cantar, mas não podia, eu era crente.
Eu queria ir ao cinema e a minha mãe: “Nem vem meu filho! Você é crente, como é
que vai ao matiné?!”. Era domingo o matiné. “Mãe eu quero jogar futebol” Não, não,
não.... Vocês são sadios, para irem à igreja, na Escola Dominical. Ela dava uma
ofertinha pra cada um levar e tinha uma miserável duma sorveteria entre a igreja e
a nossa casa. Eu era o mais velho, levava uma renca de menino e a mamãe não ia,
depois te conto por que. Aí o que é que acontecia: eu parava na sorveteria e as
ofertinhas de Jesus iam tudo pro picolé. Eu tomei muito picolé por conta de Jesus.
E eram aqueles de papel de seda, eu chegava com a boca toda vermelha, todo
roxo, amarelo... Aí, bem depois eu fui percebendo que a minha mãe não ia à igreja,
nem o meu pai ia à igreja e pensei: se fosse bom eles iam. Aí eu comecei a
frequentar escondido ela o teatro, comecei os programas de rádio, escondido. Aí
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um dia eu me matriculei e cantei e ganhei do Moacir Franco e levei um pacote de
macarrão deste tamanho! O Gilberto, que era colega nosso, nós éramos quatro
humoristas – o Gilberto morreu de delirium tremens numa fazenda do Moacir – era
o Gilberto Garcia148, pai da Rosana Garcia, da Isabela Garcia, atrizes da Rede
Globo... ele cantava, imitava francês, o cara era bom... ele morreu numa fazenda em
Goiânia, do Moacir, que já casou seis vezes, tá pra casar de novo e vai casar muito
mais ainda, que a paixão dele é a primeira esposa, a Vitória, que era colega nossa
de rádio e com ela ele teve só dois filhos. E aí, nós formamos uma equipe de rádio,
de humoristas, o programa se chamava “Tudo Pode Acontecer”. O Cleyton 149 meu
irmão é quem fazia o programa. Ele é quem escrevia, com dois dedos na máquina.
Nisso não sei as sabe, o Aloísio, que era um humorista da rádio, foi chamado pelo
Victor Costa150, que fundou a rádio Globo, que veio depois, a ser a Rede Globo, era
148Antonio Gilberto Garcia Costa (Uberlândia, 1936 — Goiânia, 1996) foi um roteirista e ator de rádio, cinema e televisão brasileiro. 149 Clayton Geraldo da Silva (1938-2013) ator e humorista. Sob o comando de Manuel de Nóbrega, no programa: Praça da Alegria, da antiga TV Paulista, fez vários tipos e continuou no programa, mesmo depois da morte de Nóbrega, e a mudança do programa para o comando de Carlos Alberto de Nóbrega (filho de Manuel), com o nome de A Praça é Nossa. Um dos personagens de Clayton Silva mais conhecido e apreciado era o do caipira, ao lado do comediante Paulo Pioli. O quadro do programa era o "Êta Fuminho Bão". Os dois eram compadres e iam picando o fumo de corda e comentando fatos de suas vidas e também da vida de Carlos Alberto de Nóbrega. Também fez sucesso o personagem que tem o bordão: "tô de olho no sinhô". Foi ainda ator de cinema, tendo atuado, entre outros, nos filmes: O Bem Dotado - O Homem de Itu, As Aventuras de Mário Fofoca, Pecado Horizontal, e Tara das Cocotas na Ilha do Pecado. Ele residia em uma fazenda entre as cidades de Campinas e Indaiatuba, durante os últimos doze anos de vida. Faleceu em 15 de janeiro de 2013, de câncer, na cidade de Campinas, aos 74 anos 150 Iniciou sua carreira profissional nas artes como "ponto" de teatro (pessoa responsável por acompanhar o script, dentro de um espaço escondido, e ler para os atores falas esquecida). Em 1938, começou a trabalhar como rádio-ator para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, na ocasião a emissora de maior prestígio do Brasil e a única que era ouvida em todo o país. Depois, subiu de posto, tornando-se diretor de radioteatro e, por fim, diretor-geral. Deixou a Nacional na década de 1950 e foi para São Paulo, onde se tornou empresário do ramo comunicações. Adquirindo ou montando emissoras de rádio e TV pelo país, fundou a Organização Victor Costa, grupo que viria a competir em um mercado dominado pelas Emissoras Associadas, de Assis Chateaubriand, e Emissoras Unidas, de Paulo Machado de Carvalho. Em São Paulo, Costa fundou a Rádio Nacional de São Paulo (atual Globo AM) e comprou a Rádio Excelsior (atual CBN SP AM). Em 1955, comprou a TV Paulista - Canal 5 (atual Globo SP), e em 1959 obteve a concessão do canal 9, que viria a se tornar a TV Excelsior. Mas com a saúde fragilizada, o empresário adoeceu e faleceu no Hospital Beneficência Portuguesa paulistano, vítima de câncer, em 22 de dezembro deste ano.
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na Rua das Palmeiras, em São Paulo-SP. Então ele chamou o Aloísio Silva Araújo,
que estava aposentado e falou: “vai pro interior caçar uns humoristas para nós!”. Aí
ele era crente – tinha se convertido – ficou num hotel ao lado da igreja. Era domingo
e ele estava na Escola Dominical e eu lá. Quando foi à rádio, no nosso programa de
sábado, e viu os quatro, falou: “ué, mas ele não é crente? Eu conheço esse rapaz!”
– o meu irmão não ia mais à igreja – aí ele convidou a gente para virmos à São Paulo
com ele, mas nessa época, Deus me chamou para o pastorado. Aí não vim para
São Paulo. Larguei o teatro, o rádio, ...eu tinha uma mercearia muito grande e isso
foi há sessenta anos atrás (1957). Aí eles vieram para o humorismo e eu fiquei na
minha mercearia, depois que larguei do teatro, tudo, tudo, e fiquei só na igreja. Eles
entraram na hoje Globo, e SBT, Record... e viraram artista. Foi quando o Moacir
gravou “Me dá um dinheiro aí”, que foi o maior sucesso da vida dele e depois veio
pro Rio onde fez o filme de mesmo nome da música, na Herbert Richards, e eu fui
pra lá para ser o sacristão dele, no set de filmagem, onde servia cerveja, tudo,
servindo ao Moacir, e ele dava uma de bom, porque ficou rico. Aí depois eu voltei
pra casa e quando foi 1962, eu fui pro JMC, que era o seminário menor, em Jandira
e fiz os três anos de estudos. O reverendo Ataides 151, me ligava naquela época e
dizia: “Evandro, o reverendo Osias152 está muito deprimido hoje, você não pode lhe
telefonar e contar uns casos pra ele?”, aí eu ligava pro Osias pra contar piada pra
ele, você acredita nisso?
Então para o senhor, o humor tem uma capacidade curadora? Tem sim!
Uma vez eu fui para Orlando, na Flórida-USA, na casa do Nélio Silva153 e ele me
151 Rev. Ataídes Antonio da Costa, pastor emérito da Igreja Presbiteriana de Indaiatúba-SP 152 Rev. Osias Mendes Ribeiro, Pastor Emérito da Igreja Presbiteriana de Pinheiros, São Paulo-SP 153 Brasileiro e ex-missionário da SEPAL
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disse que faria uma surpresa – um churrasco para o Caio Fábio 154. Naquele tempo,
todo mundo tinha barba por causa do Caio Fábio, eram os “caianos”. Ele fazia
congressos para mais de 1.800 pastores presbiterianos e todo mundo queria pregar
igual o Caio, e tal... O Caio tá aí e vamos fazer um churrasquinho para ele. Ele estava
no ano sabático. Eu disse (sussurrando) “é o Caio?”. “É, o Caio Fábio”, confirmou
ele. Cara! Eu fiquei doido: “vou ficar com o Caio Fábio!”. Eu cheguei lá no churrasco
e comecei a contar casos pro Caio. O Caio chorava de rir. E eu contando um atrás
do outro: de bêbado, de americano, de roceiro, de filho de pastor, de presbítero, e
nós fomos contando e fomos até às duas da manhã contando casos e o Caio
rachava o bico. Aí fomos pra casa. Rapaz... me deu um remorso! Rapaz, eu pensei,
eu com o Caio Fábio na minha frente, para eu beber teologia (risos), que cara bom
e eu contando casos pra ele a noite inteira! Eu sou doido! Aí eu liguei pra ele: “
Caio, eu sou o Evandro, e nós passamos a tarde toda e eu quero te pedir
perdão. “Perdão de quê?!” disse ele. “Eu devia ter aproveitado, pra te ouvir mais,
pra falar com você...”, e ele: “você não sabe a bênção que você foi na minha vida!
Eu estou aqui nos Estados Unidos para desopilar o fígado, pra rir, eu tô no stress,
estou cansado, tô desgraçado!”. E eu não sabia disso.
Mas votando à época, à janela temporal da nossa pesquisa, de 64 a 1985,
época da ditadura, na sociedade e nas igrejas evangélicas, mais ainda, época
do Rev. Boanerges Ribeiro 155. Por falar nele, deixa eu contar algo sobre ele. Uma
vez ele pregou no interior de Minas, por três dias, e ele só pregava dois, mas ele
154 Pastor, psicanalista e escritor, e renome nacional, ex-presbiteriano 155 (1919-2003) foi um pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, e presidente do seu Supremo Concílio, de 1966 a 1970, 1970-1974 e 1974 a 1978. Nesse período houve expurgos dos seus quadros, muitos outros saíram da Igreja Presbiteriana do Brasil, os quais deram origem a outras igrejas como a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e Igreja Presbiteriana Renovada, de linha pentecostal.
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pregou três. Aí saiu um velhinho da igreja à porta, com chapeuzinho na cabeça e
falou assim: “Então o senhor é o sr. Boanerges?” Ele tinha raiva que o chamassem
de Boanerges!. “Reverendo Boanerges Ribeiro, meu irmão!” Era assim que ele te
respondia. Ah!... o veiinho não entendeu nada. E ele falou assim: “Seu Boanerges,
vô conta uma coisa pro senhor! Peguei um sermãozinho seu, dei uma miorada nele
e sapequei ele na congregação e véio, foi uma bênção!”. O Boanerges queria
morrer! Pensa falar isso pro homem, heim?! E o homem na maior simplicidade:
“Peguei um sermãozinho seu, dei uma miorada nele e sapequei ele na congregação
e foi uma bênção!”.
Mas está ai, essa adaptação que ele deve ter feito para a língua do povo,
é está o meu foco! Não faltam obras, pesquisas, que creditam o “arranque”,
esse boom da igreja evangélica no Brasil, a razões comerciais, mas não teria
sido uma mudança da pregação, aquela coisa tradicional. Dos três pontos,
conclusão e oração. E o povo: segunda à sábado, capeta, puro! No domingo, a
máscara de presbiterianos consagrados.
Mas a Reforma nunca pregou isso, não? Eu sei disso.
Mas nessa época, poucos saíram da forma, não? Sim. Era aquela secura
antes disso. Na missão Caiuá156, no meio dos índios, era só aquele órgão solene e
as índias cantando em quatro vozes. Eu fui lá pregar no meio deles nessa época, o
que até foi um fato engraçado: no meio do culto, as índias tiraram a maminha e
156Fundada em 1928, a Missão Evangélica Caiuá é uma entidade das Igrejas Presbiteriana do Brasil – (IPB), Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) e Presbiteriana Indígena do Brasil (IIPB). Realiza trabalhos assistenciais nas tribos indígenas do país com o objetivo de apoiar o índio holisticamente e habilitá-lo para a vida autóctone, procurando preservar a identidade e os costumes da aldeia, entre os Kaiuás, Guaranis, Xavantes e Kadwéus, localizados em diversos Estados do Brasil e do Paraguai, e com sede na cidade de Dourados (MS) .
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esfregavam na cara dos bebês, no meio do culto, lá na frente. Gente a coisa mais
linda do mundo! Imaginem a cara dos tradicionais!
Naquela época, quando pregava o senhor já arrancava risada da igreja?
O senhor vê humor no evangelho? Vejo, claro. O humor de Deus é lindo, é bom.
Deus olha aqui para nós e dá risada de nós. Eu vejo assim: eu vejo o meu Deus
dando cada risada das mancadas que nós damos! Aquela coisa séria, isso não
existe, meu irmão! A minha filha dizia, “Pai, deixa bater palma no culto”, era lá em
Santo André e eu dizia, não! Aí um dia eu disse, tá bom! Vocês vão cantar dois
corinhos – naquele tempo se chamava corinho 157. “Com palma?”, ela disse. “Não,
sem palmas!”. “O sr. liberou, né, pai?”. “Liberei”. “Geral?”, “não, só nos dois
corinhos!”. Quando eles começaram a cantar, dois presbíteros levantam-se e saíram
da igreja. E eu bati atrás deles, e o povo assustado. Eu perguntei-lhes: “onde é que
vocês vão?”. “Nós não aguentamos essa pouca-vergonha, essa baderna dentro da
igreja, e Deus?!”. Eu disse: “pera lá! Me digam aqui: vocês são presbíteros para
abençoar ou pra amaldiçoar?”. “Pra abençoar!”, disseram eles. “Então vamos lá
abençoar os moços que eles estão precisando de nós! Vamos lá!”. Puxei os dois
presbíteros pra dentro do culto. Isso eu já sentia lá naquele tempo, a vontade de ser
um pastor diferente. Daí escrevi o meu livro, Coragem para Ser Diferente. Deus não
quer crente esquisito. A igreja está entupida de crente esquisito. E com cara de
santo. Você não pode deixar de fora do seu trabalho um nome: Ivan Espíndola de
Ávila 158. O Ivan fez doze livros. E ele escreveu dois deles sobre casos. E ele tinha
157 Cântico mais popular, congregacional, em ritmos contemporâneos e de linguagem mais coloquial 158 (1933-2006), foi advogado, professor, jornalista e ministro evangélico, vereador em 1972, foi deputado estadual por três legislaturas (1975/1979; 1979/1983 e 1987/1991) pelo PFL. Foi eleito à Constituinte com 21.830 votos, a sua maioria obtidos na capital. Foi presidente da Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil/SP (1972/1989) e secretário executivo regional da Sociedade Bíblica do Brasil desde 1959. Foi também membro da Academia Evangélica de Letras do Brasil. Participou, nos trabalhos constituintes, como membro
225
feito o prefácio do meu Coragem pra Ser Diferente, meu primeiro livro. E me pediu
pra escrever o prefácio do livro dele. Eu disse: “Ivan, eu não sei escrever”. Mas eu
comecei assim: nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai. Você pega
o prefácio do livro do Ivan e eu começo escrevendo assim. Quem ouve o Ivan, quem
escuta o Ivan, que convive com o Ivan, acha que ele é um palhaço, mas não sabe o
homem de Deus que ele é, o profeta de Deus, o servo de Deus que ele é.
O sr. nunca deixou de ser palhaço? Nunca. Sempre vou ser palhaço. Eu sou
palhaço de Deus.
O sr. teve um momento de conversão, ou como filho de crente... Não. Eu
tive. Eu fui o pior crente que tinha, por que, eu gostava muito de muié (risos), mas
faz 52 anos que gosto da minha, só da minha. Eu arrumei uma noiva, espírita. E por
causa dela eu larguei a igreja, o coral, a escola dominical, eu larguei tudo. Só não
larguei o humorismo, continuei humorista na rádio. O meu nome não era Evandro,
era Luiz Silva, era o meu apelido. Então o que é que acontece, eu fui pro centro
espírita. Fiquei três anos fora da igreja. Apanhei uma raiva de crente, eu não podia
ver crente na minha frente. Eu sabia da safadagem. Quando você sai da igreja,
Rubinho, você quer saber tudo que é sujeira da igreja, para você justificar a sua
saída, cara, você tem de mostrar pro povo o porque de você ter saído, por que lá
não presta. Descobri presbítero com mulher, presbítero com filho de 14 anos em
São Paulo e a família em Uberlândia, fui descobrir gente que não pagava conta, tudo
o que você pensar sobre sujeira na igreja de Uberlândia eu descobri. O povo vinha
falar comigo e eu dizia, “ó, ...!!!” eu dava os nomes.
efetivo das comissões do Poder Legislativo e do Poder Executivo, tendo ocupado o vice-presidente nesta última.
226
Então o povo tinha medo do palhaço? (risos). Tinha sim, senhor. Três anos
fora e contando piada e fazendo programa de rádio e programa com o Moacir e a
turma., E o que aconteceu? Um dia estava descendo do cinema, era domingo e eu
estava de terno de linho branco, que usavam, o coral estava cantando hinos e
quando faltam cantores, eles têm sempre um hino pequeninho, que com poucas
vozes se resolve, e a letra dizia assim: “Há hoje alguém esperando para Jesus
encontrar. Venha sem demorar, Cristo vai hoje passar! Ele de mão estendida, cheio
de graça sem par, ó que ventura inaudita (ele chora...). Cristo vai hoje passar!”.
Rubinho, eu tinha metido o pau em todo mundo da igreja. Nem a zeladora sobrou!
De repente eu estava dentro do templo, o José Costa159 estava pregando e quando
ele começou a pregar eu disse: “Meu Deus, é pra mim!”. Eu não sabia que ia pra
igreja. O Zé Costa fazia três anos que não me via lá. Meu Deus do céu, que
vergonha! Eu estava dentro da igreja ouvindo o sermão. Aí, na metade do sermão
eu não aguentei. Fazia uns três anos que eu não orava o Pai Nosso. Eu tinha uma
vontade de orar o Pai Nosso (ele chora novamente...), e não conseguia, Rubinho.
Sabe, eu começava e não sabia onde parei, meu Deus... aí voltava e começava tudo
de novo. Eu dizia pra mim: “ainda hoje eu oro o Pai Nosso”, e eu dormia sem orar
o Pai Nosso. No fundo160, era onde se fazia o teatro na igreja, aí, eu sozinho, tinha
acabado o culto, eu lá sozinho, ...“hoje eu vou orar o Pai Nosso.” Eu comecei a
brigar com Deus pra orar o Pai Nosso e não deu. Eu estava sentado, não deu, aí eu
ajoelhei, agora vai, não deu, e eu naquela agonia. Aí no fim eu lembrei de uma coisa,
velho, eu falei pra Deus: “Senhor, eu sou barro, eu sou pó!”. Rubinho, eu pus a boca
159 Foi pastor presbiteriano e presidente da Junta de Missões Nacionais da IPB. Já é falecido. 160 Salão Social da Igreja Presbiteriana Central de Uberlândia, anexo, nos fundos do tempo, dedicado à aulas de ensino bíblico, festas e reuniões sociais, concertos, encenações, etc,...
227
no taco, literalmente no taco. E comecei a clamar ao sangue de Jesus: “Deixa eu
falar com o Senhor!”. Eu era um médium vidente num centro espírita, dando passe,
porque a menina de quem eu era noiva era “turbinada”, trenzinho lindo demais, um
“muierão”, eu lá naquela agonia pra casar com ela e no fim ela me deu uma chifrada.
Primeira noiva que eu tive, e eu tive três, mas era só carne. E o meu pai já falava:
“Não mexe na caixinha de segredo!”. Era assim que ele falava. “Se mexer, casa”.
Então ninguém punha a mão na “caixinha de segredo”. A gente ia com as
namoradas até à caixinha de segredo e caía fora. E aí nesse dia eu orei o Pai Nosso.
Eram quatro da manhã, sozinho, eu e Deus. Aí eu fui pra casa, mamãe tava
preocupada, porque eu não chegava, mas eu deitei e dormi direto. Eu me levantei
e ela me perguntou o que aconteceu? Mãe é mãe, né? Meu olho estava fechado de
chorar, eu não percebi mas eu chorei o resto da noite – de gozo, de contentamento
por saber que Deus me aceitou! Aí veio o drama: Vou pra igreja de volta, e eu disse:
“O primeiro ‘fia da puta’ (sussurrando!) que vier falar qualquer cosia de igreja, eu
vou sair com ele na testa!” (risos). Olha o que Deus, isso tem de estar aí no seu livro:
o humor de Deus é isso aqui, eu fui pra igreja um e voltei outro. Cheguei lá e se
fosse um cachorro eles tinham dado um chute e eu, nem isso, ninguém falou nada.
E o que eu queria no fundo? “Cara, você voltou, graças a Deus! Agora a nossa igreja
vai pra frente!”. Eu era engraçado, todo mundo gostava de mim, eu pagava os
congressos pros moços do meu bolso, eu tinha dinheiro pra isso. Ninguém falou
nada, eu saí de lá numa raiva! (risos) Aí à noite o Zé Costa pregou e falou: “você
está voltando? É pra valer?” E eu lhe disse que eu nunca voltei pra não valer. Eu
estava voltando a primeira vez. Ele falou: “tá bom, tô precisando de você”. Daí a um
ano eu fui eleito o presidente da federação de jovens. Nunca mais pisei no centro
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espírita. Eu fui noivo de uma moça de Araguari, mas se da primeira era só carne,
com essa era só igreja. Ela parecia que ia a tudo – coral, a SAF, liga juvenil, culto,
... era uma geladeira... e terminei com ela.
Mas não seria essa a divisão que o povo faz com o humor? O humor, o
sentimento... e o que é de Deus? Mas é claro! Deus mistura tudo. E aí foi quando
Deus me chamou pro seminário. E aí começou a minha briga com Deus. Como é
que eu ia ser um pastor da Igreja Presbiteriana, estudar três anos em Jandira, mais
cinco no seminário em Campinas, oito anos e vestir terno preto, gravata preta, paletó
preto, sapato preto, cueca preta (risos), meia preta, guarda-chuva preto. E igreja
séria era a igreja presbiteriana. O Noé vinha pregar na igreja e nós tremíamos de
medo dele. O Jaime Hudson, me procurou e disse: “vá lá em casa que eu preciso
falar com você!”, eu pensei: “Meu Deus, o que é que eu fiz? Eles vão me mandar
embora!”. Eu fiz um jornalzinho pra igreja, daqueles de álcool (mimeógrafo), era
tinta pra todo o lado, era uma desgraça, você não lia! Aí eu pensei, “puxa, isso não
pode ser coisa pra Deus”, aí fui à uma gráfica e fizemos um jornal lá, mas eu tive de
pegar umas propagandas para pagar o jornal pra nós – a igreja não ia dar verba pra
isso. E a primeira propaganda que eu peguei foi do Bar do Furão, que ficava de
frente pra minha mercearia, na avenida Floriano Peixoto e a propaganda deles, tinha
uma mulher pelada, uma cerveja do lado e escrito: Bar do Furão. Aí um presbítero
dedo-duro chamou o pastor e a coisa fedeu. Só não nos mandaram embora porque
Deus não deixou. Era pra tirar todo mundo da comunhão. Mas nessa época Deus
me chamou para o pastorado. Aí eu fui para o JMC, aí eu larguei o teatro, larguei o
rádio, larguei tudo e os três me chamando para que eu fosse à SP para a televisão.
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No ministério o senhor chegou a usar essas ferramentas? Uso tudo, até
hoje. Conto os casos, e porque você acha que os conselhos não querem que eu
pregue? Conto caso de pecado, de presbítero safado, de coisa ruim de crente que
nem sabe o que é a sua igreja, nem o que ela faz ou em que crê, mas sempre com
humor. E é isso. Fiz o seminário, antes, os 3 anos de Jandira (JMC), e lá, tínhamos
uma caravana que fazia evangelismo pelas igrejas do Brasil e eu era o contador de
casos e de piadas e eu era também o palhaço da equipe e um pastor, meu colega
de quarto, que mais tarde virou também delegado da Polícia Federal, era a minha
véia, com quem fazia parceria na equipe de estudantes. Uns cantavam no quarteto,
outros eram os pregadores e eu e esse colega só contávamos piadas. O apelido
dele sempre foi “Gordurinha” (ele era magrelo) e o nosso papel na caravana era
fazer o povo rir. Nós fazíamos esquetes e o povo mijava na calça de rir. Uma vez
fizemos um número, chamado “A cigana me enganou” e a história era a seguinte: a
cigana vendeu uma flor para o Gordurinha e disse: “cuidado com essa flor, a
primeira pessoa que a cheirar, vai se apaixonar por você!”. Ele queria a flor para
encantar uma moça por quem ele estava apaixonado. Eu então, tropecei nele, que
deixou a flor cair, e eu a cheirei, e fui pra cima dele. E ele correndo de mim e eu
atrás, tudo no palco da igreja. Mas nessa época da ditadura, me lembro que as
nossas peças eram todas lidas na Polícia Federal. Me lembro que apresentamos
uma peça engraçadíssima em Uberaba chamada “Almas do outro mundo”, e tinha
quatro atos. Cortaram três delas. O pior foi que sofremos um acidente na estrada,
chegamos lá cheios de curativos, enfaixados, e nos apresentaram dizendo que nós
éramos verdadeiramente almas do outro mundo (risos). Tudo isso pra mim é humor.
E olha, as pessoas que mais se riem de piada safada são os crentes. Quando eu fui
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para o seminário em Campinas, a turma já sabia que eu era humorista e eu contava
piadas até tarde da noite.
Então o senhor acha possível pregar o evangelho usando o humor? Claro.
E deve usar. Você não pode ir pra lá e tacar aquela coisa maçante! Por isso é que
eu saí da igreja, daquele negócio, daquele evangelho sem graça...
Falando da igreja, como instituição, o sr. acha que já foi desmerecido,
desvalorizado por ela como pastor por conta do seu humor? Ah, muitas vezes.
Mas muitas! A igreja de hoje é esta: quer mais o discurso bem embalado do que o
conteúdo dele. Termos teológicos, etc,... mais do que a alma do crente, a vida do
fiel. Me lembro da dona Zinha, uma que morava perto da minha casa, bebia feito
doida, caia na rua,... aconteceu dela aparecer anos depois quando eu fui pastor em
Goiânia na minha igreja. Convertida, cheia de convicção. Foi uma festa. Quando foi
pra ser aceita como membro por confissão de fé, ao ser examinada, me lembro que
um presbítero, com a vida toda enrolada encheu-a de perguntas, complicadas,
teológicas, e ela sem entender nada, diante de perguntas que são da tradição, mas
que nada têm a ver com a profissão de fé, e ela, vendo que iria ser reprovada,
inteligente como era, virou-se pra mim e disse: “Vando (ela me chamava assim, não
de Reverendo Evandro), fale pra esses homens o que eu era e quem agora eu sou!”,
como a passagem do cego de nascença: “eu não sei nada sobre esse Jesus, só sei
que eu era cego e agora eu vejo”. Então eu tomei a palavra e disse quem era a dona
Zinha e como a vida dela havia sido transformada. E aí eu só via homens enxugando
os olhos. A nossa pregação tem de ser mudada, tem de ser mais objetiva, menos
escolástica, ela tem de ser a prática do evangelho na vida diária. Nós protestantes
acabamos com a emoção, ficou aquele trem que não se entende. O que o Aleluia
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de Handel, tem a dizer para nós, além da melodia, de ser uma peça clássica da
música sacra? Como alguns cânticos de hoje, nos distraem, mas não inspiram coisa
nenhuma. Um dia desses fui à uma igreja, o coral subiu, o ministro de louvor pegou
o microfone – hoje eles se chamam isso: “Ministros de louvor” – e disse, com a voz
empostada: “vamos cantar aquele hino glorioso Eu quero ser um vaso novo!”, pôs
todo mundo de pé, começaram a cantar puxando lá do fundo da alma, com cara
das mais espirituais, ao que eu interrompi de falei: “uai, há dez anos atrás vim à essa
mesma igreja e ouvi você cantarem isso “Eu quero ser, Senhor amado, um vaso
novo”, e vocês nesses dez anos não viraram ainda esse vaso? Pelo amor de Deus!
A igreja lotada, caiu na gargalhada. Deve ser por isso que não me chamam muito
(risos). Mas desse ponto em diante eu tinha a atenção do povo, eu podia falar o que
quisesse. O humor tem isso. Veja, Jesus tinha humor nas suas parábolas. Aquilo
tudo era causo. E chamava a atenção do povo. Eles estavam tentando apanhar
Jesus em algo, e ele vem com essa: “Um cara tinha cem ovelhas...”, aquilo não tinha
nada a ver com o que eles estavam falando, os caras devem ter pensado: “Uai,
ninguém estava aqui falando de ovelhas...”, uma outra falava “Uma outra tinha uma
dracma...” e você pode ver a ligação... “Um cara tinha dois filhos...” e o engraçado
é que todo mundo diz do filho pródigo, o pilantra eu saiu de casa, mas eu prefiro
falar do safado que ficou dentro de casa, o religioso – veja, não tem na Bíblia, mas
devia ter na história (o entrevistado começa a chorar): “Pai, onde será que o meu
irmão está? Será que ele está bem? Será que morreu? Será que está passando
frio?” Você não acha nada na Bíblia sobre esse safado. Mas quando Deus tocou o
coração do desviado, ele volta pra casa, o pai abraçou o menino, beijou o menino,
pôs-lhe uma roupa nova, um anel no dedo, brinco, pulseira no menino, matou um
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bezerro cevado. O irmão chegou, ao invés de falar: “meu irmão, você voltou!”, não,
correu e disse: “pai, este teu filho - por isso acho que tem humor na Bíblia - “saiu de
casa, gastou tudo, ele chega e o senhor faz isso?! Eu estou aqui a vida inteira e o
senhor nunca fez nada por mim?! O senhor nunca me matou um cabrito e agora
mata um bezerro?! E pra este teu filho?! O pai olhou pra ele e não disse “este meu
filho”, ele diz: “este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi achado!”.
Por isso a gente também tem de louvar e agradecer, e matar o bezerro, e dar roupa
nova pra ele. Isto é lindo na teologia, mas a gente conta assim, com a voz
empostada, com palavra que não comunica, que não pega nada em ninguém, a
gente tem de contar “este safado, ficou dentro de casa, ruim que nunca lembrou do
irmão dele!!!”. Você tem de mexer com o couro do sujeito (na cultura dele) e ele
dizer: “Meu Deus, eu sou esse cara! Eu tô aqui nessa igreja há trinta anos e nunca
fiz nada”, mas se você pregar daquele jeito, nos clássicos, ... Meu Deus, o Evandro
é doido, você viu o que ele falou? Por isso eu admiro você ter levantado esta
questão. Tanta gente surgiu naquele tempo, falando e ensinando os jovens a falar
a linguagem das ruas, o Jaime Kemp, o Josafá Vasconcelos161, os acampamentos,
meu Deus! O brasileiro é humorado, é safado, gosta dum mal-feito, ...o brasileiro é
malvado, gosta de uma piada. Quando saem dos meus cultos, não saem com
aquela cara de santão, saem com outra cara. A Bíblia diz: “o vosso pecado vos
achará”162. E com toda piada, você vê no auditório, em quem o pecado está
batendo. Mas é claro que às vezes a gente erra. Certa vez um missionário americano
161 É paulista (nascido em 1948) e um dos fundadores dos Jovens da Verdade, é pastor da Igreja Presbiteriana da Herança Reformada em Salvador; foi Presidente do Presbitério da Bahia; conferencista reformado no Brasil e exterior; foi membro da Comissão de Evangelização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Conferencista, autor e tradutor de diversos artigos publicados 162 Números 32:23: “E se não fizerdes assim, eis que pecastes contra o Senhor; e sabei que o vosso pecado vos há de achar”.
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estava pregando e uma velhinha, assentada bem à frente começou a chorar, em
Carmo do Paranaíba-MG, foi isso, e ela chorava e chorava, e o sujeito pensou: “Ô
meu Deus, eu acertei no problema da irmã!”, e ele olhava pra ela, objetivamente
pregava pra ela. Terminou o culto, ele estava à saída e falou à senhora: “ô minha
irmã, eu percebeu que você tinha uma problema muito séria, eu vai orar muito por
você!” (sic) e ela: “Não precisa não.” E ele replicou: como não? A senhora tem uma
problema muito séria, eu vi isso”, e ela: “Não, tenho não. É que eu olhava pro senhor
e o senhor balançava assim, e quanto mais eu olhava pro senhor, mas eu me
lembrava do meu bode que um caminhão matou na estrada”. (risos). Isso é lindo
demais. Lindo demais!
E o velhinho pregando sobre as éguas de Salomão163, conhece? Isso é sermão
de roça. Não tem teologia nisso não, tem não. Não tem Calvino164, esse povo aí,
esse povo da modernidade, Max Lucado165, não tem Sproul166, tem nada disso lá
não. E ele foi pregar e disse: “Irmãos, vamo aproveitá que o missionário num veio,
eu vou abri a Bíblia e fala umas bobaginha pra nóis” (sic). Ele era um caipira, mas
era o líder da congregação. Ele disse: “Irmãos, eu queria falá de um assunto muito
conhecido nosso, queria falá sobre égua. Tá aqui na Bíblia – as égua do rei Salomão.
Quem são as égua do rei Salomão? Somo nóis os crente. (eita). Irmão, quem é que
163 Rei de Israel (mencionado, sobretudo, no Livro dos Reis), filho de David com Bate-Seba, que teria se tornado o terceiro rei de Israel, governando durante cerca de quarenta anos (segundo algumas cronologias bíblicas, de 966 a 926 A. C). 164 (Noyon, 10 de julho de 1509 — Genebra, 27 de maio de 1564) foi um teólogo cristão francês. Calvino teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante e pensamento presbiteriano, que continua até hoje. 165 Escritor e pastor evangélico norte-americano (1955) que já publicou mais de setenta livros. Max já vendeu mais de 70 milhões de exemplares em mais de vinte e oito idiomas em todo o mundo e já viveu no Brasil, onde afirma ter começado a gostar de escrever. 166 Robert Charles Sproul, (13 de fevereiro de 1939, em Pittsburgh, 14 de dezembro de 2017 Pensilvânia) foi um teólogo calvinista estado-unidense e pastor. Ele foi o fundador e presidente da Ligonier Ministries (uma organização sem fins lucrativos reformada, sediada em Orlando) e era ouvido diariamente no programa de rádio Renewing Your Mind difundido nos Estados Unidos e em mais 60 países.
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num sabe o que é uma égua? Égua num é cavalo, égua num é um boi, não é um
jumento. Num é nada disso. Égua é égua. Então, óia aqui! Na igreja tem os crente
égua. É os crente comum. Vem na igreja, num vem, dá uma oferta, dá um diziminho,
são os crente normal, crente égua. Agora, convenhamos, tem uns crente bão. Dá
pra contar nos dedos, mas tem. Ele vem nos culto de quarta-feira, vem na Escola
Dominical, vem nos culto de ceia, é dizimista, dá uns dízimo bão, gordo, esses, dá
pra contar na mão. Esses são os crente ‘pai dégua’. Então temo os crente égua,
somo nóis, tem arguns pai dégua, mas a maioria, meus irmão, é tudo uns fio dumas
égua!”. (risos). Mas essa é ou não é uma boa exegese? Pra eles lá, eles entenderam
tudo.
** Entrevista realizada nas dependências da Igreja Presbiteriana de São Caetano do
Sul – Bairro Fundação, rua Heloísa Pamplona, 177 - Centro, São Caetano do Sul - SP, no dia
30 de outubro de 2017, às 15h35
Por sua vez, Pierre Bourdieu, servindo-se do cabedal teórico proposto por Weber,
entende que a religião contribui para uma alquimia ideológica, pela qual se opera a
transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais.333 É Bourdieu quem diz
que “Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre uma função
de conservação da ordem social contribuindo, nos termos de sua própria linguagem,
para a ‘legitimação’ do poder dos ‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos
dominados’”.334 Neste sentido, o trabalho religioso operado por pastores – ou qualquer
especialista na gestão dos 330 São várias e conhecidas as contribuições de Weber para a
sociologia das religiões. No entanto, para a reflexão específica sobre as funções da religião,
sirvo-me de seu texto “Sociologia da Dominação” In WEBER, Max. Op. Cit., 1999, vol. 2.
331 Ao tratar da “Ética religiosa no mundo” no capítulo dedicado à Sociologia da Religião,
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Weber destaca que o “anarquismo religioso, segundo a experiência histórica, existiu
até agora como fenômeno de curta duração, porque a intensidade da fé que o
condiciona é um carisma pessoal”. A reflexão proposta por Weber nos ajuda a compreender
fenômenos religiosos contestatórios de uma ordem específica como, por exemplo,
Canudos. Entretanto, tais movimentos religiosos são, quase que invariavelmente,
eliminados ou, quando sobrevivem, operam ajustes como, por exemplo, a negação da
revolução pela fé e da resistência ativa. Lutero, neste caso, é um bom exemplo. Ver mais
em WEBER, Max. Op. Cit., p. 385-404. 332 Ibid., p. 397. 333 Sobre este assunto ver
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
Em particular o capítulo “Gênese e estrutura do campo religioso”