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Uma Breve História dos Direitos da Criança e do
Adolescente no Brasil
Até 1900 – Final do Império e início da República 1900 a 1930 – A República
1930 a 1945 – Estado Novo
1945 a 1964 - Redemocratização
1964 a 1979 – Regime Militar
Década de 80 – Abertura Política e nova Redemocratização
Década de 90 – Consolidando a Democracia
Até 1900 – Final do Império e início da Republica
Santa Casa de Misericórdia
Não se tem registro, até o início do século XX, do desenvolvimento de políticas
sociais desenhadas pelo Estado brasileiro. As populações economicamente
carentes eram entregues aos cuidados da Igreja Católica através de algumas
instituições, entre elas as Santas Casas de Misericórdia. No Brasil, a primeira
Santa Casa foi fundada no ano de 1543, na Capitania de São Vicente (Vila de
Santos). Estas instituições atuavam tanto com os doentes quanto com os órfãos
e desprovidos. O sistema da Roda das Santas Casas, vindo da Europa no século
XVIII, tinha o objetivo de amparar as crianças abandonadas e de recolher
donativos.
A Roda constituía-se de um cilindro oco de madeira que girava em torno do
próprio eixo com uma abertura em uma das faces, alocada em um tipo de
janela onde eram colocados os bebês. A estrutura física da Roda privilegiava o
anonimato das mães, que não podiam, pelos padrões da época, assumir
publicamente a condição de mães solteiras. Mais tarde em 1927 o Código de
Menores proibiu o sistema das Rodas, de modo a que os bebês fossem
entregues diretamente a pessoas destas entidades, mesmo que o anonimato
dos pais fosse garantido. O registro da criança era uma outra obrigatoriedade
deste novo procedimento.
Ensino e trabalho
O ensino obrigatório foi regulamentado em 1854. No entanto, a lei não se
aplicava universalmente, já que ao escravo não havia esta garantia. O acesso
era negado também àqueles que padecessem de moléstias contagiosas e aos
que não tivessem sido vacinados. Estas restrições atingiam as crianças vindas
de famílias que não tinham pleno acesso ao sistema de saúde, o que faz pensar
sobre a influência da acessibilidade e qualidade de uma política social sobre a
outra ou como vemos aqui, de como a não cobertura da saúde restringiu o
acesso das crianças à escola, propiciando uma dupla exclusão aos direitos
sociais.
Com relação à regulamentação do trabalho, houve um decreto em 1891 -
Decreto nº 1.313 – que estipulava em 12 anos a idade mínima para se
trabalhar. Segundo alguns autores, no entanto, tal determinação não se fazia
valer na prática, pois as indústrias nascentes e a agricultura contavam com a
mão de obra infantil.
1900 a 1930 – A República
Lutas sociais
O início do século XX foi marcado, no Brasil pelo surgimento das lutas sociais do
proletariado nascente. Liderado por trabalhadores urbanos, o Comitê de Defesa
Proletária foi criado durante a greve geral de 1917. O Comitê reivindicava,
entre outras coisas, a proibição do trabalho de menores de 14 anos e a abolição
do trabalho noturno de mulheres e de menores de 18 anos.
Em 1923, foi criado o Juizado de Menores, tendo Mello Mattos como o
primeiro Juiz de Menores da América Latina. No ano de 1927, foi promulgado o
primeiro documento legal para a população menor de 18 anos: o Código de
Menores, que ficou popularmente conhecido como Código Mello Mattos.
O Código de Menores era endereçado não a todas as crianças, mas apenas
àquelas tidas como estando em "situação irregular" . O código definia, já em
seu Artigo 1º, a quem a lei se aplicava:
" O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos
de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente ás medidas
de assistência e proteção contidas neste Código." (grafia original) Código de
Menores - Decreto N. 17.943 A – de 12 de outubro de 1927
O Código de Menores visava estabelecer diretrizes claras para o trato da
infância e juventude excluídas, regulamentando questões como trabalho
infantil, tutela e pátrio poder, delinqüência e liberdade vigiada. O Código de
Menores revestia a figura do juiz de grande poder, sendo que o destino de
muitas crianças e adolescentes ficava a mercê do julgamento e da
ética do juiz.
1930 a 1945 – Estado Novo
Programas assistencialistas
A revolução de 30 representou a derrubada das oligarquias rurais do poder
político. O desenvolvimento de um projeto político para o país era, na visão de
estudiosos, ausente neste momento, por não haver um grupo social legítimo
que o pudesse idealizar e realizar. Isto acabou por permitir o surgimento de um
Estado autoritário com características corporativas, que fazia das políticas
sociais o instrumento de incorporação das populações trabalhadoras urbanas ao
projeto nacional do período.
O Estado Novo, como ficou conhecido este período, vigorou entre 1937 e 1945,
sendo marcado no campo social pela instalação do aparato executor das
políticas sociais no país. Dentre elas destaca-se a legislação trabalhista, a
obrigatoriedade do ensino e a cobertura previdenciária associada à inserção
profissional, alvo de críticas por seu caráter não universal, configurando uma
espécie de cidadania regulada – restrito aos que tinham carteira assinada.
O sufrágio universal foi reconhecido nesta época como um direito político de
indivíduos, excluídos até então, como as mulheres.
Em 1942, período considerado especialmente autoritário do Estado Novo, foi
criado o Serviço de Assistência ao Menor - SAM. Tratava-se de um órgão do
Ministério da Justiça e que funcionava como um equivalente do sistema
Penitenciário para a população menor de idade. Sua orientação era correcional-
repressiva. O sistema previa atendimento diferente para o adolescente autor de
ato infracional e para o menor carente e abandonado, de acordo com a tabela
abaixo:
Atendimento no Serviço de Assistência ao Menor
Situação
irregular
Adolescente autor de ato
infracionalMenor carente e abandonado
Tipo de
Atendiment
o
Internatos: reformatórios e
casas de correção
Patronatos agrícolas e escolas de
aprendizagem de ofícios urbanos
Além do SAM, algumas entidades federais de atenção à criança e ao
adolescente ligadas à figura da primeira dama foram criadas. Alguns destes
programas visavam o campo do trabalho, sendo todos eles atravessados pela
prática assistencialista:
LBA - Legião Brasileira de Assistência - agência nacional de assistência
social criada por Dona Darcy Vargas. Intitulada originalmente de
Legião de Caridade Darcy Vargas, a instituição era voltada
primeiramente ao atendimento de crianças órfãs da guerra. Mais tarde
expandiu seu atendimento.
Casa do Pequeno Jornaleiro: programa de apoio a jovens de baixa
renda baseado no trabalho informal e no apoio assistencial e sócio-
educativo.
Casa do Pequeno Lavrador: programa de assistência e aprendizagem
rural para crianças e adolescentes filhos de camponeses.
Casa do Pequeno trabalhador: Programa de capacitação e
encaminhamento ao trabalho de crianças e adolescentes urbanos de
baixa renda.
Casa das Meninas: programa de apoio assistencial e sócio-educativo a
adolescentes do sexo feminino com problemas de conduta.
1945 a 1964 - Redemocratização
Abertura política e organização social
O Governo Vargas é deposto em 1945 e uma nova constituição é promulgada
em 1946, a quarta Constituição do país. De caráter liberal, esta constituição
simbolizou a volta das instituições democráticas. Restabeleceu a independência
entre os 3 Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), trouxe de volta o
pluripartidarismo, a eleição direta para presidente (com mandato de 5 anos), a
liberdade sindical e o direito de greve. Acabou também com a censura e a pena
de morte.
Em 1950, foi instalado o primeiro escritório do UNICEF no Brasil, em João
Pessoa, na Paraíba. O primeiro projeto realizado no Brasil destinou-se às
iniciativas de proteção à saúde da criança e da gestante em alguns estados do
nordeste do país.
Do ponto de vista da organização popular, o período entre 45 e 64 foi marcado
pela co-existência de duas tendências: o aprofundamento das conquistas
sociais em relação à população de baixa renda e o controle da mobilização e
organização, que começa a surgir paulatinamente nas comunidades.
O SAM passa a ser considerado, perante a opinião pública, repressivo,
desumanizante e conhecido como "universidade do crime". O início da década
de 60 foi marcado, portanto, por uma sociedade civil mais bem organizada, e
um cenário internacional polarizado pela guerra fria, em que parecia ser
necessário estar de um ou outro lado.
1964 a 1979 – Regime Militar
FUNABEM e Código de 79
O Golpe Militar de 64 posicionou o Brasil, frente ao panorama internacional da
guerra fria, em linha com os países capitalistas. Uma ditadura militar foi
instituída, interrompendo por mais de 20 anos o avanço da democracia no país.
Em 1967, houve a elaboração de uma nova Constituição, que estabeleceu
diferentes diretrizes para a vida civil. A presença autoritária do estado tornou-se
uma realidade. Restrição à liberdade de opinião e expressão; recuos no campo
dos direitos sociais e instituição dos Atos Institucionais que permitiam punições,
exclusões e marginalizações políticas eram algumas das medidas desta nova
ordem trazidas pelo golpe. Como forma de conferir normalidade a está prática
de exceção foi promulgada em 1967, nova constituição Brasileira.
O período dos governos militares foi pautado, para a área da infância, por dois
documentos significativos e indicadores da visão vigente:
A Lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513
de 1/12/64)
O Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79)
A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor tinha como objetivo formular e
implantar a Política Nacional do Bem Estar do Menor, herdando do SAM prédio e
pessoal e, com isso, toda a sua cultura organizacional. A FUNABEM propunha-se
a ser a grande instituição de assistência à infância, cuja linha de ação tinha na
internação, tanto dos abandonados e carentes como dos infratores, seu
principal foco.
O Código de Menores de 1979 constituiu-se em uma revisão do Código de
Menores de 27, não rompendo, no entanto, com sua linha principal de
arbitrariedade, assistencialismo e repressão junto à população infanto-juvenil.
Esta lei introduziu o conceito de "menor em situação irregular", que reunia o
conjunto de meninos e meninas que estavam dentro do que alguns autores
denominam infância em "perigo" e infância "perigosa". Esta população era
colocada como objeto potencial da administração da Justiça de Menores. É
interessante que o termo "autoridade judiciária" aparece no Código de Menores
de 1979 e na Lei da Fundação do Bem Estar do Menor, respectivamente, 75 e
81 vezes, conferindo a esta figura poderes ilimitados quanto ao tratamento e
destino desta população.
Estudos
A partir de meados da década de 70, começou a surgir, por parte de alguns
pesquisadores acadêmicos, interesse em se estudar a população em situação
de risco, especificamente a situação da criança de rua e o chamado delinqüente
juvenil. A importância destes trabalhos nos dias de hoje é grande pelo
ineditismo e pioneirismo do tema. Trazer a problemática da infância e
adolescência para dentro dos muros da universidade, em plena ditadura militar,
apresentou-se como uma forma de colocar em discussão políticas públicas e
direitos humanos.
Destacam-se os seguintes trabalhos, que ser tornaram referência bibliográfica:
“A criança, o adolescente, a cidade”: pesquisa realizada pelo CEBRAP-
São Paulo em 1974
“Menino de rua: expectativas e valores de menores marginalizados
em São Paulo”: pesquisa realizada por Rosa Maria Fischer em 1979
“Condições de reintegração psico-social do delinqüente juvenil; estudo
de caso na Grande São Paulo”: tese de mestrado de Virginia P.
Hollaender pela PUC/SP em 1979
“O Dilema do Decente Malandro” tese de mestrado defendida por
Maria Lucia Violante em 1981, publicado posteriormente pela editora
Cortez.
Década de 80 – Abertura Política e nova Redemocratização
Bases para o Estatuto
A década de 80 permitiu que a abertura democrática se tornasse uma
realidade. Isto se materializou com a promulgação, em 1988, da Constituição
Federal, considerada a Constituição Cidadã.
Para os movimentos sociais pela infância brasileira, a década de 80 representou
também importantes e decisivas conquistas. A organização dos grupos em
torno do tema da infância era basicamente de dois tipos: os menoristas e os
estatutistas. Os primeiros defendiam a manutenção do Código de Menores, que
se propunha a regulamentar a situação das crianças e adolescentes que
estivessem em situação irregular (Doutrina da Situação Irregular). Já os
estatutistas defendiam uma grande mudança no código, instituindo novos e
amplos direitos às crianças e aos adolescentes, que passariam a ser sujeito de
direitos e a contar com uma Política de Proteção Integral. O grupo dos
estatutistas era articulado, tendo representação e capacidade de atuação
importantes.
Antonio Carlos Gomes da Costa relata algumas das estratégias utilizadas por
este grupo para a incorporação da nova visão à nova Constituição: "Para
conseguir colocar os direitos da criança e do adolescente na Carta
Constitucional, tornava-se necessário começar a trabalhar, antes mesmo das
eleições parlamentares constituintes, no sentido de levar os candidatos a
assumirem compromissos públicos com a causa dos direitos da infância e
adolescência".
Formada em 1987, a Assembléia Nacional Constituinte, presidida pelo deputado
Ulysses Guimarães, membro do PMDB, era composta por 559 congressistas e
durou 18 meses. Em 5 de outubro de 1988, foi então promulgada a Constituição
Brasileira que, marcada por avanços na área social, introduz um novo modelo
de gestão das políticas sociais - que conta com a participação ativa das
comunidades através dos conselhos deliberativos e consultivos.
Na Assembléia Constituinte organizou-se um grupo de trabalho comprometido
com o tema da criança e do adolescente, cujo resultado concretizou-se no
artigo 227, que introduz conteúdo e enfoque próprios da Doutrina de Proteção
Integral da Organização das Nações Unidas, trazendo os avanços da normativa
internacional para a população infanto-juvenil brasileira. Este artigo garantia às
crianças e adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivência,
desenvolvimento pessoal, social, integridade física, psicológica e moral, além
de protegê-los de forma especial, ou seja, através de dispositivos legais
diferenciados, contra negligência, maus tratos, violência, exploração, crueldade
e opressão.
Estavam lançadas, portanto, as bases do Estatuto da Criança e do Adolescente.
É interessante notar que a Comissão de Redação do ECA teve representação de
três grupos expressivos: o dos movimentos da sociedade civil, o dos juristas
(principalmente ligados ao Ministério Público) e o de técnicos de órgãos
governamentais (notadamente funcionários da própria Funabem).
Muitas das entidades vindas dos movimentos da sociedade civil surgiram em
meados da década de 80 e tiveram uma participação fundamental na
construção deste arcabouço legal que temos hoje. Como exemplos, destaca-se
o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que surgiu em
1985 em São Bernardo do Campo, um importante centro sindical do país, e a
Pastoral da Criança, criada em 1983, em nome da CNBB – Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, envolvendo forte militância proveniente dos movimentos
sociais da igreja católica.
Década de 90 – Consolidando a Democracia
ECA e realidade
A promulgação do ECA (Lei 8.069/90) ocorreu em 13 de Julho de 1990,
consolidando uma grande conquista da sociedade brasileira: a produção de um
documento de direitos humanos que contempla o que há de mais avançado na
normativa internacional em respeito aos direitos da população infanto-juvenil.
Este novo documento altera significativamente as possibilidades de uma
intervenção arbitrária do Estado na vida de crianças e jovens. Como exemplo
disto pode-se citar a restrição que o ECA impõe à medida de internação,
aplicando-a como último recurso, restrito aos casos de cometimento de ato
infracional.
Desde a promulgação do ECA, um grande esforço para a sua implementação
vem sido feito nos âmbitos governamental e não–governamental. A crescente
participação do terceiro setor nas políticas sociais, fato que ocorre com
evidência a partir de 1990, é particularmente forte na área da infância e da
juventude. A constituição dos conselhos dos direitos, uma das diretrizes da
política de atendimento apregoada na lei, determina que a formulação de
políticas para a infância e a juventude deve vir de um grupo formado
paritariamente por membros representantes de organizações da sociedade civil
e membros representantes das instituições governamentais.
No entanto, a implementação integral do ECA ainda representa um desafio para
todos aqueles envolvidos e comprometidos com a garantia dos direitos da
população infanto-juvenil. Antonio Carlos Gomes da Costa, em um texto
intitulado “O Desfio da Implementação do Estatuto da Criança e do
Adolescente”, denomina de salto triplo os três pulos necessários à efetiva
implementação da lei. São eles:
1. Mudanças no panorama legal: os municípios e estados precisam se
adaptar à nova realidade legal. Muitos deles ainda não contam, em
suas leis municipais, com os conselhos e fundos para a infância.
2. Ordenamento e reordenamento institucional: colocar em prática as
novas institucionalidades trazidas pelo ECA: conselhos dos direitos,
conselhos tutelares, fundos, instituições que executam as medidas
sócio-educativas e articulação das redes locais de proteção integral.
3. Melhoria nas formas de atenção direita: É preciso aqui “mudar a
maneira de ver, entender e agir” dos profissionais que trabalham
diretamente com as crianças e adolescentes”. Estes profissionais são
historicamente marcados pelas práticas assistencialistas, corretivas e
muitas vezes repressoras, presentes por longo tempo na historia das
práticas sociais do Brasil.
Com isto, há ainda um longo caminho a ser percorrido antes que se atinja um
estado de garantia plena de direitos com instituições sólidas e mecanismos
operantes. No entanto, pode-se dizer com tranqüilidade que avanços
importantes vêm ocorrendo nos últimos anos, e que isto tem um valor ainda
mais significativo se contextualizado a partir da própria história brasileira, uma
história atravessada mais pelo autoritarismo que pelo fortalecimento de
instituições democráticas. Neste sentido, a luta pelos direitos humanos no Brasil
é ainda uma luta em curso, merecedora da perseverança e obstinação de todos
os que acreditam que um mundo melhor para todos é possível.