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Uma Casa Na Grande Floresta (Série A Casa Na Pradaria 1)

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UMACASANAGRANDEFLORESTA

LAURAINGALLSWILDER

Títulooriginalnorte-americano:LittleHouseintheBigWoods

Anooriginaldelançamento:

1932

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ConversãoparaEPUB:EREMITA

Conformeanovaortografiadalínguaportuguesa

Estearquivopodeserlivrementedistribuído,desdequecitadaafontedaeditoraçãoeletrônica.

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SérieACasaNaPradaria–Vol.1ConheçaasériecompletadelivrosdeaventurasdafamíliadeLauraIngallsOBRASDAAUTORA:UMACASANAGRANDEFLORESTA-Vol.01UMACASANAPRADARIA-Vol.02OJOVEMFAZENDEIRO-Vol.03NASMARGENSDEPLUMCREEK-Vol.04ÀMARGEMDALAGOAPRATEADA-Vol.05OLONGOINVERNO-Vol.06UMAPEQUENACIDADENAPRADARIA-Vol.07ANOSFELIZES-Vol.08OSPRIMEIROSQUATROANOS(publicadopostumamente)-Vol.09OLONGOCAMINHODECASA(publicadopostumamente)-Vol10

Eminglês(originais):(1932)LittleHouseintheBigWoods(1933)FarmerBoy–AboutAlmanzoWildergrowingupinNewYork(1935)LittleHouseonthePrairie(1937)OntheBanksofPlumCreek(1939)BytheShoresofSilverLake(1940)TheLongWinter(1941)LittleTownonthePrairie(1943)TheseHappyGoldenYears(1962)OntheWayHome(publishedposthumously)–DiaryoftheWilders'movefromDeSmet,South

DakotatoMansfield,Missouri,editedandsupplementedbyRoseWilderLane(1971)TheFirstFourYears(posth.)(1974)WestfromHome(posth.)–Wilder'sletterstoAlmanzowhilevisitingLaneinSanFrancisco

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SUMÁRIO

CAPAFolhadeRostoSérieACasaNaPradariaINTRODUÇÃO1.UMACASANAGRANDEFLORESTA2.DIASDEINVERNOENOITESDEINVERNO3.ACARABINACOMPRIDA4.NATAL5.DOMINGOS6.DOISGRANDESURSOS7.NEVEDOCE8.BAILEEMCASADOAVÔ9.IDAÀCIDADE10.VERÃO11.COLHEITA12.AMÁQUINAMARAVILHOSA13.OVEADONAFLORESTA

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Eraumavez,hásessentaanos,umameninapequeninaquemoravanaGrandeFlorestadoWisconsin,numacasinhacinzentafeitadetroncosdeárvores.

Atodaavoltadacasaerguiam-seasgrandeseescurasárvoresdaGrandeFlorestae,paraládelas,haviaoutrasárvores,edepoismaisoutras.Emtodaadistânciaqueumhomempodiapercorrerparanorte,numdia, ou numa semana, ou num mês inteiro, só havia florestas, mais nada. Não havia casas. Não haviaestradas.Nãohaviapessoas.Sóhaviaárvoreseosanimaisqueviviamnomeiodelas.

NaGrandeFlorestaviviamlobos,ursos,etinhamtocasnosmontesepastavamgamosportodaaparte.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

1UMACASANAGRANDEFLORESTA

A leste da casinha de troncos, e também a oeste, havia quilômetros equilômetrosde árvores e sóumaspoucas casinhasde troncos,muito afastadasumasdasoutras,nabeiradaGrandeFloresta.

Atéonde ameninapequenina conseguiaver, sóhavia a casinhaonde elamoravacomopai eamãe, a sua irmãMariaeCarrie, abebe.Diantedacasahaviaumcaminhoparacarroças,queviravaecurvavaatéseperderdevistanasflorestasondeviviamosanimaisselvagens,masameninapequeninanãosabiaaondeocaminhoconduzianemoquepoderiahavernoseufim.

Ameninapequeninachamava-seLauraetratavaopaiporPáeamãeporMã. Naquele tempo e naquele lugar, as crianças não diziam Pai eMãe, nemMamãePapá,comoagora.

À noite, quando estava acordada na cama - que se chamava cama baixa,porquedediaestavametidadebaixodaalta,dospais-,Laurapunha-seàescuta,massóconseguiaouvirosomdasárvoresasussurrarumascomasoutras.Àsvezes, um lobo uivava, muito longe, na escuridão. Depois aproximava-se euivavadenovo.

Eraumsomqueassustava.Laurasabiaqueosloboseramcapazesdecomermeninaspequenas.Maselaestavaemsegurança,nointeriordassólidasparedesde troncos.Aespingardadopaiestavapenduradaporcimadaporta,diantedaqualovelhoJack,obuldoguemalhado,montavaguarda.Opaidizia:

-Dorme,Laura.OJacknãodeixaentraroslobos.- E Laura aninhava-se debaixo da roupa da cama, muito chegadinha a

Maria,eadormecia.Umanoite,opaifoibuscá-laàcamaelevou-aaocoloparaajanela,para

quevisseos lobos.Estavamdoissentadosdefrontedaporta.Pareciamcãesdepeloeriçado.ApontavamofocinhoparaaLuagrandeeluminosaeuivavam.

Jackandavadeumladoparaooutro,diantedaporta,arosnar.Tinhaopelodascostaseriçadoearreganhavaosdentespontiagudoseameaçadoresaoslobos.Estesuivavam,masnãopodiamentrar.

A casa era confortável. Em cima havia um sótão espaçoso, onde eraagradável brincar quando a chuva tamborilava no telhado. Em baixo havia o

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quartopequenoeasalagrande.Oquartopequenotinhaumajanelacomportasde madeira. A sala grande tinha duas janelas com vidros e duas portas, aprincipaleadeserviço.

Atodaavoltadacasahaviaumacercairregular,paranãodeixarentrarosursoseosgamos.

Nopátiodafrentehaviadoisgrandesebonitoscarvalhos.Todasasmanhãs,assimqueacordava,Lauraiaacorrerespreitarpelajanela.Umamanhãviu,emcadaumadasárvores,umveadomorto,suspensodeumramo.

O pai matara-os com a espingarda, no dia anterior, e Laura já estava adormirquandoeleos trouxeraparacasaeospenduraranasárvores,bemalto,paraqueoslobosnãochegassemàcarne.

Nessedia,a famíliacomeucarne frescadeveadoaoalmoço.Era tãoboaqueLauratevepenadenãoapoderemcomertoda.Masamaiorpartetinhadesersalgada,fumadaeguardada,paraacomeremnoInverno.

Sim, porque o Inverno estava à porta. Os dias tinham-se tornado maiscurtos e, à noite, a geada amarinhava pelos vidros das janelas acima. Nãotardariaanevar.Entãoacasadetroncosficariaquaseenterradanosmontesdenevequeseacumulariamaosseusladoseosrioseolagogelariam.Notempomuitofrio,opainãotinhaacertezadeencontrarcaçaparacomerem.

Os ursos estariam escondidos nas suas cavernas, onde dormiriamprofundamentetodooInverno.Osesquilosestariamenroscadosnosseusninhosnasárvoresocas,comacaudafelpudabemaconchegadinhaàvoltadofocinho.Osgamoseoscoelhosmostrar-se-iamassustadiçosevelozes.Masmesmoqueopai conseguisse caçar um veado, seria escanzelado e magro, e não gordo eanafadocomonoOutono.

Opai podia andar à caça todoodia naGrandeFloresta coberta de neve,comumfrioderachar,evoltarànoiteparacasasemnadaparaamãe,MariaeLauracomerem.

Por isso, antes de o Inverno chegar, tinham de guardar na casinha detroncosamaiorquantidadepossíveldecomida.

O pai esfolou os veados cuidadosamente e salgou e esticou as peles, dasquais faria cabedal macio. Depois cortou a carne e foi salpicando de sal osbocados,quecolocavanumatábua.

Depé,nopátio,haviaumaporçãograndedotroncodeumaenormeárvoreoca.Opaipregara-lhepregosnointerior,omaislongequeconseguiraalcançardecadaextremidade.Depoispuseraotroncodepé,cobrira-ocomumtelhadinhoeabriraumaportinhaaumlado,próximodofundo.Colocaragonzosdecouronoretânguloquecortara,depoisprendera-ostambémaotroncoe,pronto,estavafeitaaportinha,aindacomacortiçaagarrada.

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Quandoacarnedoveadoestavasalgadahaviadiversosdias,opaiabriuumburacojuntodapontadecadabocadoeenfiouumcordelnoburaco.Lauraviu-ofazerissoe,depois,penduraracarnenospregosdointeriordotroncooco.

Enfiava amãopelaportinha ependurava a carnenospregos, omais altoquechegava.Depoisencostouumaescadaaotronco,subiu-a,afastouotelhadoparaumladoedebruçou-separaointerior,paracontinuarapenduraracarnenospregos.

Emseguidapôsoutravezotelhadonoseulugar,desceuaescadaedisseaLaura:

- Vai a correr ao cepo da lenha e traz-me alguns daqueles cavacos denogueiraverdequeláestão;masescolhe-osnovos,limposebrancos.

Laurafoinumacorridaaocepoondeopaipartiaalenhaeencheuoaventaldecavacosnovoseperfumados.

Opaiacendeuumafogueirinhalogoàentradadaportinha,combocadinhosde cortiça e musgo, e depois colocou-lhe em cima alguns dos cavacos, commuitocuidado.

Em vez de arderem depressa, os cavacos verdes ficaram amodorrados eencheramotroncoocodefumoespessoesufocante.Opaifechouaportaepelafresta à volta dela saiu um fumozinho, assim comopelo telhado,mas amaiorparteficouládentro,comacarne.

-Nãohánadamelhordoquebomfumodenogueira-afirmouopai.-Vaifazerboacarnedeveado,queseconservaráembomestadosejaondeforecomqualquertempo.

Depoispegounaespingarda,pôsomachadoaoombroedirigiu-separaaclareira,afimdederrubarmaisalgumasárvores.

Lauraeamãetomaramcontadofogoduranteváriosdias.Quandodeixavade sair fumopelas frestas, Laura ia buscarmais cavacos de nogueira e amãepunha-osnafogueirinha,debaixodacarne.Haviasempreumcheirinhoafumonopátioe,quandoaportaseabria,saíaumodorforteacarnefumada.

Por fim, o pai disse que a carne de veado já estivera a fumar temposuficiente.Deixaramentãoapagar-seo fogoeopai tirou todososbocadosdecarnedaárvoreoca.Amãeembrulhoucadabocadoemseupapel,muitobemembrulhadinho, e pendurou-os no sótão, onde se conservariam secos e emsegurança.

Umamanhã,opaisaiu,antesdeclarear,comocarroeoscavalosevoltouànoite carregado de peixe. A grande caixa do carro estava cheia e alguns dospeixes eramdo tamanhodeLaura.Opai tinha idoao lagoPepin epescara-oscomumarede.

A mãe cortou grandes postas de peixe branco, de lasca, sem uma única

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espinha,paraLauraeMaria.Regalaram-se todoscomobompeixe fresco,eoquenãocomeramfoisalgadoembarricas,paraoInverno.

Opaitinhaumporco,queandavaàsoltanaGrandeFloresta,aalimentar-sedebolotas,nozeseraízes.Foibuscá-loemeteu-onumapocilgafeitadetroncos,paraengordar.Seriamortoassimqueestivesse friosuficienteparaconservaracarnegelada.

Umavez,nomeiodanoite,Lauraacordoueouviuoporcoaguinchar.Opai saltou da cama, tirou a espingarda da parede e correu para fora de casa.Lauraouviuaarmadispararuma,duasvezes.

Quando voltou, o pai disse o que tinha acontecido: vira um grande ursonegro de pé junto da pocilga.O ursometia a pata na pocilga, para apanhar oporco, e o porco fugia, aos guinchos.O pai viu isso tudo à luz das estrelas edisparoulogo.Masaluzerafracae,comapressa,elefalharaapontariaeoursofugiraparaafloresta,semumabeliscadura.

Lauraficoucompenadeopainãoteracertadonourso.Gostavatantodecarnedeurso!Opaitambémtevepena,masdisse:

-Pelomenos,salveioporco.Ahortaatrásdacasinhacresceratodooano.Estavatãopertodacasaque

osgamosnãosaltavamacercaparacomerashortaliças,duranteodia,eànoiteJackmantinha-osàdistância.Àsvezes,demanhã,haviapequenaspegadasentreas cenouras e as couves.Mas as de Jack também lá se viam e os gamos quetinhamentradotinhamvoltadologoasair.

Apanharam-seasbatataseascenouras,asbeterrabas,osnaboseascouves,earrumaram-senacave,poistinhamchegadoasnoitesfrias,quegelavamtudo.

Fizeram compridas réstias de cebolas, com a rama entrançada, ependuraram-nasnosótão,aoladodeenfiadasdepimentosvermelhossuspensosde cordas.Os diversos tipos de abóboras foram amontoados, em rimas cor delaranja,amarelaseverdes,aoscantosdosótão.

Asbarricasdepeixesalgadoestavamnadespensa,emcujasprateleirasseencontravamempilhadosqueijosamarelos.

AtéqueumdiaotioHenriqueveioacavalodaGrandeFlorestaparaajudaro pai namatança do porco.A faca de carniceiro damãe já estavamuito bemafiadinhaeotiotrouxeraadatiaPolly.

O pai e o tio Henrique acenderam uma fogueira perto da pocilga eaqueceramumgrandecaldeirode água.Quandoa águaestavaa ferver, forammataroporco.EntãoLaura foi a correr esconder a cabeçanacamae taparosouvidoscomosdedos,paranãoouvirosgrunhidosdoanimal.

-Nãolhedói,Laura-disse-lheopai-,Fazemo-lomuitodepressa.-Mas,mesmoassim,Lauranãooqueriaouvirgrunhir.

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Passadoumminuto,tiroucautelosamenteumdedodoouvidoeescutou.Oporco já deixara de grunhir. Depois disso, a matança era uma coisa muitodivertida.

Eraumdiamuitoatarefado,commuitoqueverequefazer.Opaieo tioHenrique eram muito engraçados e haveria entrecosto para o almoço. Alémdisso,opaiprometeraabexigaeorabodoporcoaLauraeaMaria.

Depoisdemataremoporco,opaieotioHenriquepegaram-lheeforam-nometendo e tirando da água a ferver, até ficar bem escaldado. Em seguida,estenderam-no numa tábua e rasparam-no com as facas, para saírem todas ascerdas.Depoisdisso,suspenderam-nodeumaárvore,tiraram-lheasentranhasedeixaram-nopendurado,aarrefecer.

Quandoestavafrio,tiraram-nodaárvoreecortaram-no.Haviapresuntosepás,lombo,entrecostoebarriga.Haviatambémocoração,ofígadoealíngua,acabeçaparafazergalantinaeoalguidarcheiodebocadinhosdiversos,parafazerenchidos.

Acarnefoicolocadanumatábua,notelheirodastraseiras,ebemsalpicadadesal.Ospresuntoseaspásficaramemsalmoura,poisseriamfumadas,comoacarnedoveado,notroncooco.

- Não há nada melhor do que presunto curado com fumo de nogueira -garantiuopai.

Estava a encher a bexiga do porco. Quando ficou transformada numpequenobalão,atoubemaaberturacomumcordeledeu-aaMariaeaLaura,para brincarem. Podiam atirá-la ao ar e atirá-la de uma para a outra compequenas pancadas dasmãos.Ou fazê-la ressaltar no chão e dar-lhe pontapés.Masorabodoporcodivertia-asaindamaisdoqueobalão.

Opaiesfolou-ocomtodoocuidadoeenfiounoladomaisgrossoumpauafiado.Amãeabriuaportinholadofogãodacozinhaejuntoubrasasnofornodeferro. Em seguida, Laura eMaria, por turnos, seguraram o rabo do porco porcimadasbrasas.

Rechinou, e pingos de gordura caíram nas brasas e fizeram pequenaschamas.Amãe salpicou o petisco de sal.Asmãos e a cara das duas ficarammuitoquenteseLauraqueimouumdedo,masestavatãoentusiasmadaquenãoseimportou.Assarorabodoporcoeratãodivertidoquesetornavadifícilfazerjogolimpo,porturnos.

Porfim,ficoupronto.Tinhaumbonitotomacastanhado,a todaavolta,echeirava que era um regalo! Levaram-no para o pátio, para arrefecer, mascomeçaramaprovarantesdeestarfrioeescaldaramalíngua.

Depois de comerem todos os bocadinhos de carne agarrados aos ossos,deramestesaoJack.Eeraumavezumrabodeporco!Sóparaoanoseguinte

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haveriaoutro.OtioHenriquevoltouparacasadepoisdoalmoçoeopairegressouaoseu

trabalho na Grande Floresta.Mas o trabalho da matançamal começara aindaparaLaura,Mariaeamãe.AmãetinhamuitascoisasquefazereLauraeMariaajudaram-na.

Durantetodoessediaeoseguinte,amãederreteuotoucinhonosgrandescaldeiros de ferro do fogão da cozinha. Laura e Maria foram buscar lenha etomaramcontadofogo,quenãodeviaserdemasiadoforte,paranãoqueimarotoucinho.Osgrandescaldeiros fervilhavam,masnãopodiam fumegar.Devezem quando, a mãe tirava os torresmos castanhos com uma escumadeira,colocava-os num pano, espremia a gordura toda bem espremidinha e depoispunha os torresmos de parte.Usá-los-ia para dar gosto ao pão demilho,maistarde.

Os torresmoserammuitobonsparacomer,muitosaborosos,masLauraeMariasópodiamprovar,poisamãediziaqueerammuitopesadosparameninaspequenas.

Amãeraspouelimpouacabeçadoporcocuidadosamenteedepoiscozeu-aaté a carne se despegar dos ossos. Picou a carne bem picadinha na tigela demadeira,comafacaprópria,edepoistemperou-acomsal,pimentaeespeciarias.Em seguidamisturou tudo com o líquido que ficara da cozedura e pôs numacaçarola,paraarrefecer.Quandoestivessefrio,cortava-seemfatias,eeraissoagalantina.

Amãe picou e tornou a picar, até ficarem reduzidos a um picadomuitofininho,osbocadinhosdecarnegordaemagraaparadosdosbocadosgrandes.Temperou com sal, pimenta e folhas de salva secas, da horta. Em seguidaamassou e tornou a amassar com as mãos, até ficar tudo bem misturado, emoldouamassaembolas.Colocou-asnumalguidar,notelheiro,ondegelariameseconservariamboasparacomerdurantetodooInverno.Eramoschouriços.

Quando o tempo damatança terminou, havia os chouriços e a galantina,grandesboiõesdebanha,umabarricadecarnebrancasalgada,notelheiro,eospresuntoseaspásestavamfumadosependuradosnosótão.

A casinha estava quase a rebentar de boa comida guardada para o longoInverno.Adespensa,otelheiroeacaveestavamcheioseosótãonãolhesficavaatrás.

AgoraLauraeMariatinhamdebrincardentrodecasa,poisláforaestavafrioeasfolhascastanhascaíamtodasdasárvores.Ofogonuncaseapagavanofogão.Ànoite,opaiabafavaasbrasascomcinza,paraasconservaracesasatédemanhã.

O sótão era um lugar muito bom para brincar. As abóboras grandes,

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redondas e coloridas davam bonitas mesas e cadeiras, com os pimentõesvermelhoseascebolas;penduradosporcimaOspresuntoseacarnedeveadopendiamtambém,embrulhadosempapéis,eosramosdeervassecasecheiros,paracozinhar,assimcomodaservasamargaspararemédios,davamaosótãoumcheiromuitoagradável.

Erafrequenteoventoassobiarnoexterior,comumsomfrioe triste.MasLauraeMariabrincavamàs casinhasno sótão, comas abóboras, e sentiam-semuitoquentinhaseaconchegadas.

MariaeramaiscrescidadoqueLauraetinhaumabonecadetrapochamadaNelinha.Lauratinhasóumamaçarocaembrulhadanumlenço,masquetambémdava uma boa boneca.Chamava-se Susana e não tinha a culpa de ser só umamaçaroca.Às vezes,Maria deixavaLaura pegar naNelinha,mas só quando aSusananãovia.

Osmelhoresmomentos de todos eram à noite.Depois do jantar, o pai iabuscar as armadilhas ao telheiro, para as olear junto do fogão. Esfregava-asmuitobem,atébrilharem,elubrificavaasdobradiçasdosdenteseasmolasdasplacascomumapenamergulhadaemgorduradeurso.

Haviaarmadilhaspequenas,armadilhasmédiasearmadilhasgrandesparaursos,comdentesque,segundoopaidizia,partiriamapernadeumhomem,sesefechassemsobreela.

Enquantotratavadasarmadilhas,opaicontavapequenashistóriasaLauraeaMariaedepoistocavaasuarabeca.

Asportaseasjanelasestavammuitobemfechadaseasfrestasdasjanelastapadascompanos,paranãodeixarementraro frio.Masagata,SusanaPreta,entravaesaíaconformelheapetecia,denoiteededia,pelaportadevaivémdagateira,abertanapartedebaixodaportadafrente.SusanaPretasaíaouentravasempremuitodepressa,paraqueaporta lhenãoapanhasseacaudaquandosefechavaatrásdela.

Umanoite,quandoestavaaolearasarmadilhas,opaiviuaSusanaPretaentraredisse:

-Eraumavezumhomemquetinhadoisgatos,umgrandeeoutropequeno.LauraeMariaforamacorrerencostar-seaoseusjoelhos,paraouviroresto.-Tinhadoisgatos-repetiuopai-,umgatograndeeumgatopequeno.Por

isso, fez uma gateira grande, para o gato grande; e depois fez uma gateirapequena,paraogatopequeno.

Opaicalou-se.-Masporquenãopodiaogatopequeno…-começouMaria.-Porqueograndeonãodeixava–interrompeuLaura.-Issoémuitofeio,Laura.Nãodevemosinterromperaspessoasqueestãoa

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falar-disseopai,eacrescentou:-Masestouaverquequalquerdevocêstemmaistinodoqueohomemqueabriuasduasgateirasnasuaporta.

Depois largou as armadilhas, tirou a rabeca da caixa e começou a tocar.Esseeraomelhormomentodetodos.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

2DIASDEINVERNOENOITESDEINVERNO

Chegouaprimeiraneveecomelaofrioderachar.Todasasmanhãsopaipegavanaespingardaenasarmadilhas, saíaepassavaodia inteironaGrandeFloresta,acolocarasarmadilhaspequenas,pararatosalmiscaradosemartas,aolongodos regatos, e as armadilhasmédias,para raposas e lobos,nas florestas.Também colocava as armadilhas grandes, na esperança de apanhar um ursogordo, antes de eles se meterem todos na suas cavernas, para passarem oInverno.

Umamanhãvoltouacasa,foibuscaroscavaloseotrenóesaiudenovo,apressado.Tinhaabatidoumursoatiro.LauraeMariaficaramtãocontentesquedesataramaossaltoseabateraspalmas.Mariagritou:

-Euqueroaperna!Euqueroaperna!Marianãofaziaideiadotamanhodapernadeumurso.Quandovoltou,opai traziaumursoeumporcono trenó. Iaaandarpela

floresta,comumagrandearmadilhadeursonamãoeaespingardaaoombro,enisto,aocontornarumgrandeabetocobertodeneve,viraoursoatrásdaárvore:Oursoacabarademataroporcoeestavaasegurá-lo,paraocomer.Opaicontouqueoursoseencontravadepé,apoiadonaspatastraseiras,eagarravaoporcocomasdianteirascomosefossemmãos.

Opaimataraoursocomumtiroeficarasemsaberdondeoporcovieraouaquempertencia.

-Porisso,trouxe-oparacasa.Ficaramcomcarne frescaemquantidade,paramuito tempo.Osdiaseas

noitesestavamtãofriosqueoporconumcaixoteeacarnedoursopenduradanopequeno telheiro das traseiras gelaram solidamente sem o perigo dedescongelarem.

Quandoamãequeriacarnefrescaparaoalmoço,opaipegavanomachadoe cortava um naco de carne congelada, de urso ou de porco.Mas amãe nãoprecisavadeajudaparairaotelheiroouaosótãobuscaroschouriçosdofeitiodebolas,ouacarnedeporcosalgada,ouospresuntoseacarnedeveadofumados.

A neve continuou a cair até se amontoar, inclinada, contra as paredes dacasa.Demanhã,osvidrosdasjanelasestavamcobertosdegeada,queformava

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bonitasárvores,floreseduendes.Amãe dizia que o JoãozinhoGeada vinha de noite e fazia os desenhos,

enquantotodosdormiam.LaurajulgavaqueoJoãozinhoGeadaeraumhomempequenino,todobrancodeneve,comumcintilantebarretepontiagudobrancoebotasbrancasemaciasatéao joelho, feitasdepeledegamo.Usavasobretudobrancoemitenesbrancasenãotrazianenhumaespingardaàscostas,masassuasmãos seguravam ferramentas afiadas e reluzentes, com as quais esculpia osbonecos.

A mãe emprestava o dedal a Laura e a Maria, para fazerem bonitosdesenhoscombolinhasnageadadosvidros.MaselasnuncaestragavamosqueJoãoGeadafizeradenoite.

Quando aproximavam a boca do vidro e bafejavam, a geada brancaderretia-se e escorria em gotas pela vidraça. Depois podiam ver a neveamontoadado ladode foraeasgrandesárvoresnuasepretas,queprojetavamsombrasesguiaseazuladasnabrancuradaneve.

LauraeMariaajudavamamãena lidadacasa.Todasasmanhãshaviaalouçaparalimpar.MarialimpavamaisdoqueLaura,porqueeramaiscrescida,masLauralimpavasempremuitobemasuacanequinhaeoseupratinho.

Quandoalouçaestavatodalimpaearrumada,arejava-seacamabaixa.Emseguida,umadecadalado,LauraeMariaesticavamascobertas,entalavam-nasbemaospéseaoslados,afofavamasalmofadasecolocavam-nasnoseulugar.Entãoamãeempurravaacamabaixaparadebaixodacamaalta.

Feito isso, amãecomeçavao trabalhoquecompetia a essedia.Cadadiatinhaoseutrabalhoapropriadoeamãecostumavadizer:“Lavaàsegunda-feira,engomaàterça-feira,remendaàquartafeira,fazmanteigaàquinta-feira,limpaàsexta-feira,aosábadofazdepadeiraeaodomingofolgadacanseira”.

OsdiasdasemanadequeLauramaisgostavaeramodefazermanteigaeodefazerpão.

No Inverno, anatanãoera tãoamarelacomonoVerãoeamanteigaquedelasefaziaerabrancaemenosbonita.Comoamãegostavaquetodasascoisasdasuamesafossembonitas,noInvernocoloriaamanteiga.

Depoisdedeitarasnatasnabatedeiraalta,delouça,edeacolocarpertodofogão,paraamornar,lavavaeraspavaumacenouracomprida,cordelaranja.Emseguida,ralava-anofundodeumavelhafrigideiradefolha,queopaiencheradeburaquinhos, comumprego.Amãeandavacomacenouradeum ladoparaooutro,naasperezadosrebordosdosburaquinhos,equandoacabavalevantavaafrigideiraevia-seummontinhomoleesumarentodecenouraralada.

A mãe deitava a cenoura num tachinho de leite que estava ao fogo e,quandooleiteaquecia,despejavaamisturanumsacodepano.Depoisespremia

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o leite amarelo-vivo para a batedeira a fim de colorir as natas todas.Assim amanteigaficariaamarela.

LauraeMariapodiamcomeracenoura,depoisdeespremidooleite.Mariaachavaquedeviacomeroquinhãomaior,porseramaisvelha,eLauradiziaqueamaior parte devia ser para ela, por ser amais nova.Mas amãemandava-asdividiracenouraraladaempartesiguais.Eradeliciosa.

Quandoasnatasestavampreparadas,amãeescaldavaocompridobatedorde madeira, metia-o na batedeira e colocava a tampa. Esta tinha um buracoredondonomeioeamãemovimentavaobatedorparacimaeparabaixo,paracimaeparabaixo,atravésdoburaco.

Batiaassimdurantemuitotempo.Àsvezes,Mariatambémbatia,enquantoamãedescansava,masobatedorerademasiadopesadoparaLaura.

Aoprincípio,viam-sesalpicosdenatas,espessoselisos,àvoltadoburacodatampa;maspassadomuitotempocomeçavamaparecergranulosos.Entãoamãe batia mais devagar E começavam a aparecer no batedor grãozinhos demanteigaamarela.

Quandoamãetiravaatampadabatedeiraláestavaamanteiganumamassadourada,afogadanoleitelho.Entãoamãetirava-acomumaespátulademadeiraparaumatigelademadeiraelavava-amuitasvezescomáguafria,avirá-laearevirá-laeacomprimi-lacomaespátula,atéaágua ficar limpa.Depoisdisso,salgavaamanteiga.

Chegavaentãoomaisbonitodaoperação:Amãemoldavaamanteiga.Nofundo solto domolde demanteiga estava gravado o desenho de ummorangocomduasfolhas.

Comaespátula,amãecolocavaecomprimiaamanteiganomolde,atéoencher.Depoisvirava-oaocontrárionumpratoepuxavaocabodofundosoltodomolde.Opequenopedaçodemanteigadouradaefirmesaía,comomorangoeasfolhasgravadasnocimo.

LauraeMariaobservavam,quasesemrespirar,umadecadaladodamãe,enquanto os bocados demanteiga dourada, cada qual com o seumorango emcima,caíamdomoldeparaoprato.Nofim,amãedavaacadaumaumcopodebomefrescoleitelho.

Aossábados,quandoamãefaziaopão,davaacadaumaumbocadinhodemassa,parafazeremumpãozinho.Àsvezestambémlhedavaumbocadinhodemassadebiscoitos,parafazerembiscoitinhos,eumdiaLauraatéfezumpastel,nasuaforminha.

Àsvezes,quandoacabavao trabalhododiaamãerecortava-lhesbonecasdepapel.Recortavaasbonecasnumpapelbranco,grosso,depoisdesenhavaascaras com um lápis. Em seguida, com bocadinhos de papel colorido, talhava

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vestidosechapéus,fitaserendasparaLauraeMariapoderemvestirasbonecasmuito bem vestidinhas. Mas o melhor de tudo era a noite, quando o pairegressavaacasa.Voltavadassuascaminhadaspelafloresta,compingentinhosdegelopenduradosdaspontasdobigode.Penduravaaespingardanaparede,porcimadaporta,tiravaobarretedepele,ocasacãoeasluvaseperguntava:

-Ondeestáaminhameiacanequinhadesidradocemeiobebida?-Referia-seaLaura,porelasertãopequena.

LauraeMariaiamacorrersentar-se-lhenosjoelhos,eláficavamenquantoele se aquecia junto do fogo.Depois o pai voltava a vestir o casacão, a pôr obarreteeacalçaras luvase tornavaasair,paratratardosanimaise levarparacasalenhasuficienteparaofogo.

Às vezes, quando o pai via todas as armadilhas depressa, por estaremvazias,ouquandoencontravacaçamaiscedodoqueerahabitual,voltavaparacasatambémmaiscedo.EntãotinhatempoparabrincarcomLauraeMaria.

Umadasbrincadeirasdequeelasgostavamchamava-secãoraivoso.Opaipassavaosdedospelovastocabelocastanhoedeixava-otodoespetado.Depoispunha-sedegatase,a rosnarperseguiaLauraeMariaatravésdasala,a tentarapanhá-lasnumcantodondenãopudessemfugir.

Elas eram rápidas a correr e a esquivar-se, mas uma vez ele apanhou-ascontra a caixa da lenha, atrás do fogão. Não tinham outra saída, a não serpassandopelopai.

O pai rosnava tão assustadoramente e tinha cabelo tão desgrenhado e osolhos tão ferozes que a brincadeira parecia mesmo a sério. Maria estava tãoassustada que não conseguiamexer-se.Mas quando o pai se aproximoumais,Lauragritoue,comumgrandepulo,saltouporcimadacaixadalenha,aarrastarMariaatrásdesi,Epronto,deixoudehavercãoraivoso.Quemaliestavaeraopai,depé,aolharparaLauracomosolhosazuismuitobrilhantes.

- Sim, senhor! - exclamou. – Podes ter apenas umameia canequinha desidrameiobebida,mas,comabreca,ésfortecomoumcavalinhofrancês!

-Nãodeviasassustartantoascrianças,Carlos-disseamãe.-Reparacomotêmosolhosarregaladosdemedo.

O pai olhou para elas e depois pegou na rabeca e começou a tocar e acantar.IanqueDudlefoiàcidade,Comascalçasàsrisquinhas,MasjurouquenãoviuacidadeTantas,tantaseramascasinhas.LauraeMariaesqueceram-seporcompletodocãoraivoso.ViuláumasespingardastãograndesComoumtroncodebordooudois,

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Eparaasvirar,comoeramtãograndes,Precisavamdeduasjuntasdebois.TodasasvezesquequeriamdispararIa-seumpolvorinhooumaisqueum,Opum!Eraodeumaespingardavulgar,Masquemuito,muitomais.Puuuum!

OpaimarcavaoritmocomopéeLauraacompanhavaamúsica,batendoasmãos,quandoelecantou:EeucantoIanqueDudle-di-du,EeucantoIanqueDudle,EeucantoIanqueDudle-di-du,EeucantoIanqueDudle!

SozinhanomeiodaGrandeFlorestaagreste,daneveedofrio,acasinhadetroncoseraquente,confortáveleaconchegadinha.Opaieamãe,eMaria,LauraeabebeCarriesentiam-selámuitobememuitofelizes,sobretudoànoite.

À noite, o fogo crepitava na lareira, o frio e a escuridão e os animaisselvagensnãopodiamentrar,eJack,obuldoguemalhado,eSusanaPreta,agata,piscavamosolhosàschamasquebrincavamnalareira.

A mãe estava sentada na sua cadeira de balanço, a costurar à luz docandeeirocolocadoemcimadamesa.Ocandeeirobrilhavaereluzia,Haviasalno fundo do depósito de vidro do querosene, para evitar que explodisse, ebocadinho de flanela vermelha no meio do sal, para o tornar bonito. E eramesmobonito.

Lauragostavadeadmirarocandeeiro,comsuachaminédevidrotãolimpae cintilante, sua chama amarela a brilhar tão certinha e o seu depósito dequeroseneclaro,aqueosbocadinhosdeflanelavermelhaemprestavamcolorido.Gostava de olhar para o fogo da lareira, a crepitar e a modificar-seconstantemente, umas vezes amarelo e vermelho e outras com um tomesverdeadoporcimadostorosdelenhaeazuladosobreasbrasasdouradasecorderubi.

Enessesmomentosopaicontavahistórias.QuandoLauraeMarialhepediamquecontasseumahistória,elesentava-as

nos joelhos e fazia-lhes cócegasna cara comabarba comprida, até elas riremalto.

Tinhaosolhosazuisemaliciosos.Umanoite,opaiolhouparaaSusanaPretaqueseespreguiçavadiantedo

fogo,aestendereencolherasgarras,edisse:-Sabiamqueumapanteraéumgato?Umgrandegatobravo?-Não-respondeuLaura.-Poisé.ImaginemaSusanaPretamaiordoqueoJackemaisferozdoque

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ele,quandorosna.Assimseriamesmoumapantera.InstalouLauraeMariamaisconfortavelmente,nosjoelhos,eacrescentou:-Vou-lhesfalardoavôedapantera.-Doseuavô?-perguntouLaura.-Não,Laura,doteuavô.Domeupai.-Ah!-exclamouamenina,eaninhou-semaiscontraobraçodopai.Conheciaoavô,quemoravamuitolonge,naGrandeFloresta,numagrande

casadetroncos.Opaicomeçou:-Umdia,oavôfoiàcidadeeiniciouaviagemderegressojátarde.Estava

escuro quando meteu a cavalo pela Grande Floresta, tão escuro que malconseguiaveraestrada,equandoouviuumapanteragritarassustou-se,poisnãotinhaespingarda.

-Comogritaumapantera?-perguntouLaura.-Comoumamulher-respondeu-lheopai-,Assim.EgritoudetalmaneiraqueLauraeMariativeramumarrepiodemedo.Amãedeuumsaltonacadeiraeprotestou.-Porfavor,Carlos!MasLauraeMariagostavamdeapanharsustosdaqueles.- O cavalo, com o avô montado nele, corria velozmente, pois também

estava assustado. Mas não conseguia afastar-se da pantera, que os perseguiaatravés da escura floresta. Era uma pantera esfomeada e corria tanto como ocavalo.Umasvezesgritavadeumladodaestrada,outrasdooutro,massempreperto,atrásdeles.

“Oavôiainclinadoparaafrente,nasela,eincitavaocavaloaandarmaisdepressa.Maselecorriaomaisvelozmentequepodiae,mesmoassim,apanteracontinuavaagritaratrásdelesjámuitoperto.

“Nisto,oavôviu-a,asaltardecopadeárvoreparacopadeárvore,quaseporcimadele.

“Eraumaenormepanteranegra,quesaltavapeloarcomoaSusanaPretacostumasaltarparaapanharumrato.Maseramuitas,muitasvezesmaiordoquea Susana Preta. Tão grande que se saltasse para cima do avô poderiamatá-locomassuasenormesgarrascortanteseosseusenormesdentesafiados.

“Montadonocavalo,oavôfugiadelaexatamentecomoumratofogedeumgato.

“Apanterajánãogritavaeoavôtambémjánãoavia.Massabiaqueelacontinuavaa saltaremsuaperseguiçãona florestaescura,atrásdele.Ocavalocorriacomtodasassuasforças”.

“Porfim,ocavalochegouàcasadoavô.Oavôviuapanteraformarosaltoe,semperderuminstante,saltoudocavalo,contraaporta.Entrouemcasade

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roldão e bateu logo com a porta. A pantera foi cair em cima do cavalo,exatamenteondeoavôestivera.

“O cavalo relinchou terrivelmente e fugiu. Embrenhou-se a galope naGrandeFloresta,comapanteraemcima,a rasgar-lheascostascomasgarras.Masoavôtirouaespingardadaparedeecorreuparaajanela,mesmoatempodematarapanteracomumtiro”.

“O avô disse que nunca mais andaria na Grande Floresta sem a suaespingarda.

Enquanto o pai contava esta história, Laura eMaria tinham-se aninhadobemcontraele,atremerdemedo.Sentiam-seaconchegadasEemsegurançanoseucoloeenvolvidaspelosseusbraçosfortes.

Gostavam de estar ali, diante do fogo quente, com a Susana Preta aronronarjuntodalareiraeobomdoJackestendidoaseulado.

Quandoumlobouivava,Jacklevantavaacabeçaeospeloseriçavam-se-lheaolongodaespinha.MasLauraeMariaouviamouivosolitárionanegraefriafloresta, e não tinham medo. Estavam aconchegadas e confortáveis na suacasinhadetroncosdeárvore,comaneveempilhadaàvoltaeoventoachorar,porquenãopodiaentrarechegar-seaofogo.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

3ACARABINACOMPRIDA

Todas as noites, antes de começar a contar histórias, o pai fazia as balasparacaçarnodiaseguinte.

LauraeMariaajudavam-no.Iambuscaragrandecolherdecabocomprido,acaixacheiadebocadinhosdechumboeomoldedasbalas.Depois,enquantoeleseacocoravajuntodalareiraafazerasbalas,elassentavam-seaobservá-lo,umadecadalado.

Primeiro, o pai derretia os bocados de chumbo na grande colher, quecolocava nas brasas. Quando o chumbo estava derretido, deixava-o escorrercuidadosamente da colher para o buraquinho domolde. Esperava umminuto,depoisabriaomolde,ecaíaparaochãoumareluzentebalanova.

Não se lhe podia tocar, por estar muito quente, mas brilhava tãotentadoramente que, às vezes, Laura ou Maria não resistiam e tocavam-lhe.Queimavamosdedos,masnãodiziamnada,porqueopailhesrecomendaraquenuncatocassemnumabalanova.Porisso,sequeimavamosdedos,aculpaeradelas;deviamterdadoouvidosaopai.Limitavam-seameterosdedosnaboca,paraosarrefecer,eaveropaifazermaisbalas.

Quandoacabava,haviaummontinho reluzente,defronteda lareira.Opaideixava-as arrefecer e depois, com a navalha, retirava as pequenasirregularidadesdeixadaspeloburacodomolde.Apanhavaasminúsculasaparasde chumbo e guardava-as cuidadosamente, para as derreter de novo quandovoltasseafazerbalas.

Metiaasbalasacabadasnabolsa,queeraumbonito saquinhoqueamãefizeracomapeledeumgamoqueopaicaçara.Feitasasbalas,opai tiravaaespingardadaparedeelimpava-a.Podiateracumuladoalgumaumidade,todoodianaflorestacobertadeneve,eointeriordocanoestavacomcertezasujodefumodepólvora.

Porisso,opaitiravaavaretadoseulugar,debaixodocano,eprendia-lheàponta um bocadinho de pano limpo. Apoiava a coronha da espingarda numacaçarola e deitava água a ferver, da chaleira, pelo cano abaixo. Em seguida,rapidamente,enfiavaavaretanocanoemovimentava-aparabaixoeparacima,parabaixoeparacima,atéaáguaquente,enegrecidapelapólvora,borbotarpelo

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buraquinhoondesecolocavaofulminante,quandoaarmaestavacarregada.Opaicontinuavaadeitarmaiságuaea lavarocanocomotrapopresoà

vareta até a água sair clara. Isso significava que a espingarda estava limpa.Aágua devia estar sempre a ferver, para que o aço aquecido secasseimediatamente.

Emseguida,opaiprendiaoutrotrapo,limpoeimpregnadodegordura,navaretae,enquantoocanoaindaestavaquente,engordurava-obem,nointerior.Comoutro trapo limpo e impregnadode gordura, esfregava-o depois todoporfora, aténãohavernemumbocadinhoquenãobrilhasse, bemuntado.Depoisdisso,esfregavaepoliaacoronha,atéamadeirabrilhar,também.

Estavatudopreparadopararecarregaraespingarda,eLauraeMariatinhamdeajudá-lo.Depé,altoedireito,opaiapoiavaabasedacoronhadaespingardanochão,comocanoparacima,enquantoLauraeMariasecolocavamumadecadaladodele.

-Agoraobservem-meevejamsecometoalgumerro-diziaopai.Elas observavam-no com todo o cuidado, mas ele nunca cometia erro

nenhum.Lauraestendia-lheochifredevacalisoepolido,cheiodepólvora.Aponta

do chifre era uma tampinha de metal. O pai enchia a tampinha de pólvora edespejava-apelocanoabaixo.Depoissacudiaumbocadinhoaarmaebatianocano,parateracertezadequeapólvoraassentavanofundo.

- Onde está aminha caixa de trapos? – perguntava então o pai, eMariadava-lhe a caixinha de folha cheia de bocadinhos de trapo impregnados emgordura.

Opaicolocavaumdessestrapinhosengorduradosnabocadocano,punha-lheumareluzentebalanovaemcimae,comavareta,empurravaabalaeotrapopelocanoabaixo.Depoiscomprimia-osbemcontraapólvora.

Quandofaziaisso,avaretaressaltavapelocanoacimaeopaiagarrava-aeempurrava-adenovo.Repetiaestaoperaçãomuitasvezes.

Emseguida,recolocavaavaretanoseulugar,contraocanodaespingarda.Tiravaentãoumacaixadefulminantesdaalgibeira, levantavaocãodaarmaeintroduziaumdosfulminantesinhosbrilhantessobreaagulhaocaqueficavasobocão.Baixavaocãodevagarecommuitocuidado,poissedescessedepressa-pum!-aarmadispararia.

Carregadaaespingarda,opaicolocava-anossuportes,porcimadaporta.Quando o pai estava em casa, a espingarda estava sempre deitada nesses

doissuportesdemadeira,porcimadaporta.Opaifizera-osdeumgalhoverde,que afeiçoara com a faca, e enfiara as extremidades direitas, àmartelada, emdois buracos fundos abertos num tronco da parede. As pontas curvavam para

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cimaeprendiambemaespingarda.Aespingardaestavasemprecarregadaearrumadaporcimadaporta,para

queopailhepudessechegarrápidaefacilmenteemqualquerocasiãoquedelaprecisasse.

Quando ia para a Grande Floresta, o pai certificava-se sempre de que abolsadasbalasestavacheiaedequetinhanasalgibeirasacaixinhadostraposengordurados e a caixinha dos fulminantes. O chifre da pólvora - que sechamavaopolvorinho-eumamachadinhabemafiadapendiam-lhedocintoelevavaaespingardacarregadaaoombro.

Recarregava sempre a espingarda assim que a disparava, porque, comodizia, não queria ter de enfrentar qualquer percalço com uma espingardadescarregada.

Semprequedisparavacontraumanimalselvagem,tinhadepararecarregaraarma-medirapólvora,deitá-lanocanoefazê-laassentar,colocarotrapinhoeabalanabocadocanoeempurrá-losparabaixoepôrumfulminantenovosobocão,antesdepoderdispararoutravez.Quandoalvejavaumursoouumapantera,tinha de osmatar como primeiro tiro.Umurso ou uma pantera feridos eramcapazesdematarumhomemantesdeeletertempoderecarregaraespingarda.

Mas Laura eMaria nunca tinhammedo quando o pai ia sozinho para aGrandeFloresta.Sabiamqueeleeracapazdematarursosepanterasaoprimeirotiro.

Depois das balas feitas e da espingarda carregada, era a altura de contarhistórias.

-Conte-nosadavoznafloresta-pedia-lheLaura.Opaiolhava-a,depálpebrasfranzidas,eexclamava:- Oh, não! Não querem que eu fale do tempo em que era um rapazinho

travesso!-Queremos,sim,queremos!-afirmavamLauraeMaria,eopaicomeçava

acontarahistória.

Ahistóriadavoznafloresta-QuandoeueraumrapazinhonãomuitomaiordoqueaMaria, todasas

tardestinhadeirprocurarasvacasàflorestaeconduzi-lasparacasa.Omeupaitinha-me recomendado que nunca me demorasse a brincar no caminho, queandassedepressae levasseasvacasparacasaantesdeescurecer,porquehavialobos,panteraseursosnafloresta.

“Umdia,comeceimaiscedodoquedecostumee,porisso,penseiquenãoprecisavademeapressar.Haviatantascoisasquevernaflorestaquemeesquecida escuridão que não tardaria.Havia esquilos vermelhos nas árvores, esquilos

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listradosàs corridinhasentre as folhase coelhinhosabrincarnasclareiras.Oscoelhinhosgostammuitodebrincarsozinhosantesdeiremparaacama,sabem?

“Comeceiafazerdecontaqueeraumgrandecaçadoraseguirorastrodeanimaisselvagenseíndios.Fizdecontaquelutavacomíndios,eabrincadeirafoitantaoutãopoucaqueaflorestanãotardouaparecer-mecheiadeselvagens.Nisto,ouviospassarinhosadaremasboas-noites,nosseuschilreios,esóentãorepareiqueanoitecianocarreiroejáestavaescuronafloresta.

“Eusabiaquetinhadelevarasvacasdepressaparacasa,poisdecontrárioseria completamente escuro antes de elas se encontrarem em segurança noestábulo.Opioréquenãoconseguiaencontrá-las!

“Bem apurava o ouvido, mas não lhes ouvia os chocalhos. Chamava,chamava,maselasnãovinham.

“Emborativessemedodoescuroedosanimaisselvagens,nãomeatreviaaregressar a casa e apresentar-me aomeu pai sem as vacas. Por isso, desatei acorrer pelo meio das árvores, a procurar e a gritar. E, entretanto, as sombrastornavam-secadavezmaisdensasemaisescuras,aflorestapareciamaioreasárvoreseosarbustospareciamestranhos.

“Não conseguia encontrar as vacas em parte nenhuma. Subi encostas, aprocurareachamar,edescibarrancosfundoseescuros,achamareaprocurar.Nada.Parei e escutei, a ver se ouvia os chocalhos,mas não se ouvia um somalémdomurmúriodasfolhas.

“Nisto,ouviumarespiraçãoaltaepenseiqueestavaumapanteraatrásdemim,noescuro.Mastratava-seapenasdaminhaprópriarespiração.

“As silvas tinham-mearranhadoaspernas equandocorriapelomeiodosarbustososramosbatiam-menacara.Maseucontinuavaacorrer,aprocurareachamar:“Sukey!Sukey!”

“Sukey!Sukey!”,gritavacomtodasasganas.“Sukey!”“Derepente,qualquercoisafaloumesmoporcimadaminhacabeça:“Uh!

Uh!”“Pôs-se-meocabeloempé.“Uh!Uh!”,repetiuavoz.Enemqueiramsabercomoeucorri!“Esqueci-meporcompletodasvacas.Sóqueriasairdaflorestaechegara

casa.“Mas aquela coisa escondida no escuro foi atrás demim, a repetir “Uh!

Uh!”“Corri com todas asminhas forças e nemmesmo quando perdi o fôlego

deixeidecorrer.Tropeceinãoseiemquêecaí,maslevantei-melogoecontinueiacorrer.Nemumloboteriaconseguidoalcançar-me.

“Por fim, desemboquei da floresta escura junto do estábulo. As vacas

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estavamláparadas,àesperaquelhesabrisseacancelaparaentrarem.Recolhi-aseaseguircorriparacasa.

“Omeupai levantouacabeçaeperguntou-me:“Porqueteatrasaste tanto,homenzinho?Estivesteabrincarnocaminho?”

“Olheiparabaixo,paraospés, e só então reparei que tinha ficado semaunha de umdedo grande.Omedo tinha sido tanto que nem sentira a dor, atéaquelemomento.

Opai interrompiasempreahistórianestapassageme ficavaàesperaqueLaurapedisse:

-Continue,Pá,continue,porfavor!-Bem,depoisoteuavôfoiaopátioecortouumavaraverde,forte.Voltou

paradentroedeu-meumasova,detalmodoque,daíemdiante,passeiafazeroquememandava.

“Um rapazde nove anos já tem idade suficiente para não se esquecer doquelherecomendam”,disse-me.“Háumaboarazãoparafazeresoquetedigo,eseofizeresnãoteacontecerámalnenhum”.

-Sim,Pá,sim,sim!-exclamouLaura,asaltarnojoelhodopai.-Edepois,quedisseeledepois?

- Disse: “Seme tivesses obedecido como deverias, não terias andado naGrandeFlorestadepoisdeescurecerenãoteteriasassustadocomopiardeummocho”.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

4NATAL

Aproximava-seoNatal.A casinha de troncos estava quase enterrada em neve, que se acumulava

contraasparedesenasjanelas.Demanhã,quandoopaiabriaaporta,haviaumaparededenevequechegavaàalturadacabeçadeLaura.Opaipegavanapáeretirava-aedepois,domesmomodo,abriaumcarreiroparaoestábulo,ondeoscavaloseasvacasestavamaconchegadinhosequentesnassuasbaias.

Osdiasestavamclarose luminosos.LauraeMariapunham-seempéemcadeiras, junto da janela, e olhavam através da neve cintilante para as árvorestodasbrancas.Aneveespessacobria-lhesos ramosnuse escurose reluzia aosol.

Pingentes de gelo pendiam do beiral da casa para os montes de neveempilhadoscontraasparedes.Eramgrandes,tãogrossosnapartedecimacomoobraçodeLaura,pareciamdevidroechispavam,cheiosdeluzes.

O hálito do pai pairava no ar como fumo, quando ele regressava doestábulo, pelo carreiro. Quando ele respirava, parecia que lhe saíam da bocanuvenzinhas que se transformavam em geada branca na sua barba e no seubigode.

Quando entrava em casa, batia com os pés a sacudir a neve das botas eapertavaLauranumabraçodeurso,contraograndecasacãofrio,oseubigodeficavacheiodegotinhasdegeadaaderreter-se.

Faziaserãotodasasnoites,atrabalharnumatábuagrandeeemduasmaispequenas.Afeiçoava-ascomafacaealisava-ascomlixaecomapalmadamão,de talmaneiraquequandoLaura lhes tocavaas sentiamaciase lisinhascomoseda.

Depois, com a navalha afiada, recortou as arestas da tábua grande empequenospicose torres,comumagrandeestrela recortadanopontomaisalto.Abriuburaquinhosnamadeiraedepoisdeu-lhesaformadejanelas,estrelinhas,crescentes de lua e círculos. A toda a volta deles esculpiu folhas, flores epassarinhos,tudomuitopequenino.

Aumadastábuaspequenasdeuumabonitaformaarredondadaeesculpiu-lheàvoltafolhas,floreseestrelasenomeiocrescentesearabescos.

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Àrodadatábuamaispequenaesculpiuumaminúsculatrepadeiraemflor.Trabalhava muito devagarinho e com todos os cuidados, para fazer tudo

quantoachavaquefossemaisbonito.Porfim,aspeçasficaramprontase,umanoite,armou-as.Viu-seentãoque

a tábua maior era um suporte muito bonito e bem trabalhado para umaprateleirinha aomeio. A estrela grande ficavamesmo ao cimo. A peça curvaamparava, por baixo, a prateleira e também estava muito bonita, e atrepadeirazinhafoicolocadaàvoltadaprateleira.

EraumaconsolaqueopaifizeraparapresentedeNataldamãe.Pendurou-acuidadosamentenaparededetroncos,entreasjanelas,eamãepôsabonequinhadeporcelananaprateleira.

A bonequinha de porcelana tinha uma touca de porcelana na cabeça ecaracóisdeporcelanachegadosaopescoçodeporcelana.Ovestidodeporcelanatinhafitasàfrenteeabonecausavaumaventalinhodeporcelanacor-de-rosaesapatinhosdeporcelanadourada.Eralinda,depéaprateleira,comflores,folhas,passarinhoseluasatodaavoltaeagrandeestrelanocimodetudo.

Amãepassavaodiainteiroatarefada,acozinharcoisasboasparaoNatal.Cozeupão levedadoepãode centeio comespeciarias, biscoitos suecos eumagrandepaneladefeijão,comcarnedeporcoemelaço.Feztortasavinagradasetortas de maçã seca, encheu um grande boião de bolinhos e deixou Laura eMarialamberemacolherdebateramassa.

Umamanhã,ferveumelaçojuntamentecomaçúcar,atéformarumxaropegrosso,eopaitrouxeduascaçarolasdenevelimpaebranquinha.LauraeMariaficaramcadaqualcomasuacaçarolaeopaieamãeensinaram-lhesadeitaroxaropeescuro,emfio,paraaneve.Fizeramcírculos,rabiscoseoutrascoisasdogênero, que endureciam logo e ficavam transformadas em rebuçado. Laura eMariaforamautorizadasacomerumrebuçadocadauma,masosrestantesforamguardadosparaoNatal.

TudoaquilosefaziaporqueatiaElisa,otioPedroeosprimosPedro,AliceeEllaviriampassaroNatalcomeles.

ChegaramnavésperadeNatal.LauraeMariaouviramoruídoalegredosguizosdotrenóaumentardemomentoamomento,edepoiso trenóduplosaiudomeiodasárvoreseaproximou-sedacancela.Vinhamnelea tiaElisa,o tioPedroeosprimos,todosembrulhadosemcobertores,casacosepelesdebúfalo.

Eramtantososcasacos,osabafos,osvéuseosxalesquepareciamenormestrouxasdisformes.

Depois de todos entrarem, a casinha ficou cheia e a deitar por fora. ASusanaPreta fugiu e foi esconder-seno estábulo,mas Jackdesatou aospulos,emcírculos,naneve,ea ladrarcomosenuncamais secalasse.Agora tinham

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primoscomquembrincar!AssimqueatiaElisatirouosabafosaosfilhos,Pedro,AliceeEllaeLaura

eMaria começaram a correr e a gritar. Por fim, a tia Elisa mandou-os calar.EntãoAlicesugeriu:

-Sabemoquevamosfazer?Retratos!Aliceacrescentouque tinhamde ir láparafora,paraosfazer,eamãede

Lauraachouqueestavamuitofrioparaelabrincarforadecasa.MasquandoviuacaradecepcionadadeLauradisseque,afinal,podiairum

bocadinho.Mas antes, vestiu-lhe o casaco, calçou-lhe as luvas, envolveu-a nacapaquentecomcapuzeagasalhou-lheopescoço.

Lauranuncasedivertiratanto.Passouamanhãtodaabrincarforadecasa,na neve, com Alice, Ella, Pedro e Maria. A fazer retratos. A brincadeira eraassim:Cadaumsubiaparaumcotodeárvorecortadae,todosaomesmotempoecomosbraçosbemabertos, atiravam-separa aneve fofa e funda.Caíamdechapa,decara,etentavamlevantar-sesemestragaramarcaqueocorpodeixarana neve, ao cair. Se faziam tudo bem, na neve ficavam cinco buracos, com oformatoquaseperfeitodequatromeninaseumrapazinho,combraçosepernasetudo.Chamavamaissoosseusretratos.

Brincaramtantodurantetodoodiaque,quandoanoitechegou,estavamtãoexcitadosquenão tinhamsono.Mas teriamdedormir,poisdecontráriooPaiNatalnãoapareceria.Porisso,penduraramasmeiasjuntodachaminé,rezaramas suas orações e deitaram-se: Alice, Ella, Maria e Laura todas quatro numagrandecamanochão.

Pedrodormiunacamabaixa.AtiaElisaeotioPedrodormiriamnacamaaltaefez-seoutracamanochãodosótãoparaospaisdeLaura.Comtodasaspeles de búfalo e todos os cobertores tirados do trenó do tio Pedro, haviacobertasparatodaagente.

OpaieamãeeatiaElisaeotioPedrosentaram-seàlareira,aconversar.PrecisamentequandoLauracomeçavaafecharosolhoseaadormecer,ouviuotioPedrodizer:

-Outro dia, a Elisa escapou por pouco, quando eu estava emLakeCity.ConhecemoPríncipe,aquelemeugrandecão?

Lauraficoulogocompletamentedesperta.Gostavamuitodeouvirfalardecães.Ficouquietinhacomoumrato, aolharparaa luzda lareiraabrilharnasparedesdetroncoseaouvirotioPedro.

-Bem-contouotioPedro-,demanhãzinhacedo,Elisapôs-seacaminhodanascente,paraencherumbaldedeágua, eoPríncipe seguiu-a.Quandoelachegouàbeiradobarranco,ondeocaminhodesceparaanascente,oPríncipefincou-lhederepenteosdentesnapartedetrásdasaiaepuxou.

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“Vocêssabemqueeleéumcãoenorme.AElisaralhou-lhe,maselenãolhelargou a saia e ela não conseguiu soltar-se, tão grande e forte o animal é.Continuouarecuareapuxar,atélhearrancarumpedaçodasaia.

-Eraaazulestampada-disseatiaElisaàmãedeLaura.-Quepena!-exclamouamãe.-Arrancou-lheumgrandebocado,mesmodapartedetrás-continuouatia

Elisa.-Fiqueitãozangadaquemeapeteceubater-lhe.Maselerosnou-me.-OPrínciperosnou-te?-perguntouopaideLaura.-Rosnou-respondeuatiaElisa.-Bem,elapôs-sedenovoacaminhodanascente-continuouotioPedroa

contar-,MasoPríncipesaltou-lheparaafrente,nocarreiro,earreganhou-lheosdentes. Não fez caso nenhum dos ralhos nem das ameaças dela. Continuou aarreganhar-lheosdentesearosnar-lheequandoelaprocuroupassar-lheàfrenteelenãodeixouetentoumordê-la.Issoassustou-a.

-Façoideia!-exclamouamãedeLaura.-Pareciatãoferozquepenseiquememorderia-confessouatiaElisa.-E

achoqueteriamesmomordido.-Nuncaouviumacoisaassim!-admirou-seamãedeLaura.-Quefizeste?- Voltei para trás, corri para casa, onde deixara os pequenos, e fechei a

porta-respondeuatiaElisa.-ClaroqueoPríncipecostumamostrar-seferozcomdesconhecidos-disse

o tioPedro-,Masfoisempre tãomansocomaElisaeospequenosqueeuosdeixava tranquilamente comele.AElisanão conseguia compreenderoque sepassava.

“Depoisdeelasemeteremcasa,ocãocomeçouaandaràvoltadacasaearosnar. Todas as vezes que a Elisa começava a abrir a porta, ele saltava erosnava.

-Estariaraivoso?-perguntouamãedeLaura.- Foi o que eu pensei - respondeu a tia Elisa. -Não sabia que fazer.Ali

estava eu, fechada em casa com os pequenos e semme atrever a sair! E nãotínhamos água nenhuma.Nem sequer podia apanhar um bocado de neve paraderreter, pois bastava-me abrir uma nesgazinha da porta para o Príncipe dar aimpressãodemequererfazeremfanicos.

-Quantotempodurouisso?-perguntouopaideLaura.-Todoodia,atéaofimdatarde-respondeu-lhea tiaElisa.-SeoPedro

nãotivesselevadoaespingarda,euteriadadoumtironocão.- Para o fim da tarde - continuou o tio Pedro -, ele serenou e deitou-se

diante da porta. Elisa pensou que estivesse a dormir e decidiu tentar passarsorrateiramenteporeleeirbuscaráguaànascente.

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“Abriu a portamuito devagarinho,mas, claro, ele acordou logo.Quandoviuqueela tinhaobaldedaáguanamão, levantou-seeseguiuà frenteparaanascente,comodecostume.Atodaavoltadanascentehaviapegadasrecentesdeumapantera.

-Aspegadaseramdotamanhodaminhamão!–disseatiaElisa.-Sim, tratava-sedeumgrandebicho-confirmouo tioPedro. -Nuncavi

rastrostãograndescomoaqueles.NãohádúvidadequeteriaapanhadoaElisa,se o Príncipe a tivesse deixado ir à nascente, demanhã. Eu vi as pegadas.Apantera tinhaestadode tocaiaemcimadaquelegrandecarvalhodanascente,àespera que aparecesse algum animal para beber água. Ter-se-ia, com certeza,atiradoaElisa.

“Escurecia, quando ela viu as pegadas, e não perdeu tempo a voltar paracasacomoseubaldedeágua.OPríncipeseguiu-adepertoe,devezemquando,olhavaparatrás,paraobarranco.

-Levei-oparadentrodecasacomigo-disseatiaElisa.-Ficamostodosládentro,atéoPedrovoltar.

-Apanhaste-a?-perguntouopaideLauraaotioPedro.-Não.Saícomaespingardaeprocureinasimediaçõesdecasa,masnãoa

encontrei. Vi, no entanto, mais algumas pegadas suas: seguira para norte,embrenhara-semaisnaGrandeFloresta.

Entretanto, Alice, Ella eMaria também tinham acordado. Laurameteu acabeçadebaixodaroupaeperguntoubaixinhoaAlice:

-Nãotivestemedo?Alicerespondeu-lhe,tambémbaixinho,quesim,quetiveramedo,masque

Ella ainda tiveramais. EElla protestou que não senhora, que não tivera nadamaismedo.

-Bem,pelomenosbarafustastemaisporteressede-cochichouAlice.Continuaramaossegredinhos,atéamãedeLauradizer:-Carlos,asgarotasnuncamaisadormecemsenãotocaresparaelas.Porisso,opaideLaurafoibuscararabeca.Asalaestavasilenciosa,quenteeiluminadapelaluzdofogoqueardiana

lareira.Assombrasdamãe,datiaElisaedotioPedrotremiam,muitograndes,nasparedes,àclaridadetrémula,earabecadopaitocava,alegremente,parasimesma.

TocouCheirodoPinheiro,AVitelaRussa,OSonhodoDiaboeViajantedo Arkansas. Laura adormeceu enquanto o pai e a rabeca cantavam, ambos,docemente:MinhaqueridaDora,foste-teembora,Eeununcamaisvereiomeuamor.

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Demanhã,acordaramquasetodosaomesmotempo.Olharamparaasmeiase viramque tinhamqualquer coisa dentro.OPaiNatal passara por ali!Alice,Ella, Laura e Pedro, todos de camisa de dormir de flanela encarnada,levantaram-seaosgritos,paraveroqueelelhestrouxera.

Cadameia tinhaumparde luvasdeumtomvermelho-vivoeumpirulitocompridodehortelã-pimentaàsriscasencarnadasebrancasmuitobemfeitinhas,decadalado.

Ficaramtãocontentesque,aoprincípio,nemconseguiramfalar.Olharam,de olhos brilhantes, para os encantadores presentes deNatal.MasLaura era amaisfelizdetodos:tambémlhecalharaumabonecadetrapo.

Eraumalindaboneca,comacaradepanobrancoeunsbotõezinhospretosafazerdeolhos.Umlápispretodesenhara-lheassobrancelhasetinhaasfacesea boca vermelhas, com tinta feita de erva-tintureira. O cabelo era feito de lãpreta,queforaentrançadaedepoisdesentrançada,paraficaraoscaracóis.

Porcimadasmeiazinhasde flanelaencarnada tinhaumasbotinazinhasdepanopreto,eoseuvestidodebonitotecidoestampadocor-de-rosaeazul.

Era tão bonita que Laura não foi capaz de dizer nada. Apertou muito abonecaasieesqueceutudoomais.SópercebeuqueestavamtodosaolharparaelaquandoatiaElisadisse:

-Nuncaviunsolhostãograndes!As outras meninas não se sentiam invejosas por Laura ter recebido uma

boneca,alémdasluvasedopirulito,porqueLauraeraamaispequeninadetodas- tirando, claro, a bebéCarrie e a bebezinha da tiaElisa,DollyVarden.Estaseram tão pequeninas que não sabiam brincar com bonecas.Nem sequer aindasabiamquehaviaoPaiNatal!Sósabiammeterosdedinhosnabocaepalrar,porcausadetantaagitação.

Laurasentou-senabeiradacama,a seguraraboneca.Gostavamuitodasluvasencarnadasedopirulito,masdoquemaisgostavaeradaboneca.Chamou-lheCarlota.

Depoisolharamtodosparaas luvasunsdosoutroseexperimentaram-nas,para ver se lhes serviam. O Pedro deu uma grande dentada no pirulito, masAlice,Ella,MariaeLaurapreferiramlamberosseus,paraduraremmais.

-Sim,senhor!Sim,senhor!-exclamouotioPedro.-Nãoháaomenosumameiasócomumachibatinha?Portaram-setodosassimtãobem?

MaselesnãopodiamacreditarqueoPaiNatalfossecapazdelhesdeixarsóumachibatinha.Claroqueissoàsvezesaconteciaaalgunsmeninos,masaelesnão podia acontecer. Era tão difícil portarem-se sempre bem, todos os dias,duranteumanointeiro!

-Nãoarreliesospequenos,Pedro-disseatiaElisa.

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-Laura,nãodeixasasoutrasmeninaspegarna tuaboneca?-perguntouamãe deLaura,mas o que ela queria dizer era que asmeninas não deviam seregoístas.

Por isso, Laura deixou Maria pegar na sua bonita boneca, depois Alicetambémlhepegouumbocadinhoe,porfim,foiavezdeElla.Alisaramobonitovestidoeadmiraramasmeiasdeflanelaencarnada,asbotinaspretaseocabelodelã,encaracolado.MasLaurasóficoudescansadaquandovoltouaterCarlotadenovonosbraços.

O pai e o tio Pedro tiveram cada qual o seu par de quentes luvas de lã,tricotadasaosquadradinhosbrancoseazuis.AmãeeatiaElisaéqueastinhamfeito.

AtiaElisatrouxeraparaamãedeLauraumagrandemaçãvermelha,todacheiadedentesdealhoespetados.Cheiravatãobem!Enãoseestragaria,queosdentesdealhonãodeixariam.

Continuariasãedoce.AmãedeLauradeuàtiaElisaumagulheirodofeitiodeumlivrinho,que

fizera com bocadinhos de seda, a servir de capas, e folhas de macia flanelabranca,paraespetarasagulhas.Aflanelanãodeixariaasagulhasenferrujar.

AdmiraramtodosabonitaconsoladamãedeLaura.AtiaElisadissequeotioPedrotambémlhefizerauma-mascomdesenhosdiferentes,claro.

OPaiNatalnão lhesderanada.OPaiNatalnãodavaprendasàspessoascrescidas,oquenãoqueriadizerqueelasnãotivessemsidoboas.Opaieamãede Laura tinham sido bons. Não dava porque eram pessoas crescidas, e aspessoascrescidasdeviamdarprendasumasàsoutras.

Depois os presentes tiveram de ser abandonados por um bocadinho. OPedrosaiucomopaideLauraeotioPedroparatrataremdosanimais,AliceeElla ajudaram a tia Elisa a fazer as camas e Laura eMaria puseram amesa,enquantoamãepreparavaodesjejum.

Havia panquecas para o desjejum e a mãe de Laura fez um homem demassaparacadacriança.Disse-lhesqueseaproximassemumdecadavez,comoprato,eelespararamjuntodofogãoepuderamveramãedeitarumacolheradademassaedepoisacrescentarosbraços,aspernaseacabeça.Eraengraçadovê-laviraroboneco tododeumavez, rápidaecuidadosamente,nachapaquente.Quandoficavapronto,passava-o,afumegar,paraoprato.

O Pedro comeu logo a cabeça do seu boneco.Mas Alice, Ella, Maria eLauracomeramdevagarinhoeaosbocadinhos,primeiroosbraçoseaspernasedepoisocorpo,deixandoacabeçaparaofim.

Estava tanto frio que não puderam ir brincar para fora de casa, masentretiveram-se a admirar as luvas novas e a lamber os pirulitos.Além disso,

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sentaram-setodosnochãoaverosdesenhosdaBíbliaeosdesenhosdetodasasespéciesdeanimais e avesdogrande livroverdedopaideLaura.Estaestevesemprecomabonecaaocolo,nãoalargounemumbocadinho.

Depoisseguiu-seoalmoçodeNatal.Alice,Ella,Pedro,MariaeLauranãodisseramnemumapalavraàmesa,poissabiamqueascriançasdeviamservistasenãoouvidas.Masnãoprecisaramdepedirqueasservissemdenovo.AmãedeLauraeatiaElisaencarregaram-sedelhesencheropratoedeixaram-noscomertodasascoisasboasquelhesapeteceram.

-SóéNatalumavezporano-disseatiaElisa.Almoçaram cedo, porque a tia Elisa, o tio Pedro e os primos tinham um

longocaminhoapercorrer.- Mesmo que os cavalos vão o mais depressa que possam, será difícil

chegarmosacasaantesdeescurecer-disseotioPedro.Por isso, assim que acabaram de almoçar, o tio Pedro e o pai de Laura

foram atrelar os cavalos ao trenó, enquanto a mãe de Laura e a tia Elisaagasalhavamosprimos.

Enfiaram grossas meias de lã por cima das meias e dos sapatos que játraziam, calçaram as luvas, vestiram os casacos e puseram xales e carapuçosquentes,abafosdelãàvoltadopescoçoevéusgrossosaprotegeracara.

AmãedeLaurameteu-lhesbatatasassadasaescaldarnasalgibeiras,paraconservarem os dedos quentes, e os ferros de engomar da tia Elisa estavam aaquecernofogão,paralhesseremcolocadosaospés,notrenó.Oscobertores,asmantaseaspelesdebúfalotambémforamaquecidos.

Instalaram-setodosnograndetrenó,aconchegadosequentinhos,eopaideLauracobriu-osbemcomaúltimapeledebúfalo.

-Adeus!Adeus!-gritaram,eláforam,comoscavalosatrotaralegrementeeosguizosdotrenóatocar.

Poucodepois,deixoudeseouviraalegreguizalhadaeoNatalacabou-se.Oh,mastinhasidoumNatalmuitofeliz!

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UmaCasaNaGrandeFloresta

5DOMINGOS

O Inverno começou a parecermuito comprido.Laura eMaria sentiam-secansadas de estarem sempre em casa. Principalmente aos domingos, o tempopassavamuitodevagarinho.

Todos os domingos,Maria eLaura vestiam a suamelhor roupa, tanto decima como de baixo, e punham fitas lavadas no cabelo. Ficavam muitolimpinhas,porquetinhamtomadobanhonosábadoànoite.

NoVerão, tomavambanho com água da nascente.Mas no Inverno o paienchiaatinadenevelimpa,quesederretiaetransformavaemáguanofogãodacozinha.Depois,pertodo fogãoecomumcobertorabertoemduascadeirasaservirdecortina,amãedavabanhoaLauraeemseguidaaMaria.

Laura tomavabanhoprimeiroporqueeramaispequenadoqueMaria.AosábadotinhadeirparaacamacedocomaCarlota,porquedepoisdeelatomarbanhoevestir acamisadedormir lavadaopai tinhadedespejara tinaedeaenchernovamentedeneveparaobanhodeMaria.DepoisdeMariasedeitar,amãe tomava banho atrás do cobertor e, em seguida, tomava o pai. E pronto,ficavamtodoslavadosparaodomingo.

Aos domingos, Maria e Laura não podiam correr nem gritar, nem fazerbarulhonassuasbrincadeiras.Marianãopodiacosturarasuamantaderetalhose Laura não podia tricotar as luvinhas que estava a fazer para a bebé Carrie.Podiam olhar, sossegadinhas, para as suas bonecas de papel, mas não lhespodiam acrescentar nada de novo. Não lhes era permitido fazer-lhes vestidosnovos,nemmesmosópresoscomalfinetes.

Tinhamdesesentar,caladas,aouviramãeler-lheshistóriasdaBíbliaouhistórias de leões, tigres e ursos brancos do grande livro verde do pai, que sechamavaAsMaravilhasdoMundoAnimal.Podiamverosdesenhos,pegarnasbonecasdetrapoefalarcomelas.Masnãopodiamfazermaisnada.

DoqueLauramaisgostavaeradeverosdesenhosdagrandeBíblia,forradadepapel.OmelhordetodoseraodesenhodeAdãoapôrosnomesaosanimais.

Adão estava sentado numa pedra, com todos os animais e todas as aves,grandesepequenos,reunidosàsuavolta,ansiosamenteàesperadequeelelhesdissesse que género de animais eram. Adão parecia muito confortável. Não

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precisavadetercuidadoparanãosujararoupa,poisnãousavaroupa.Sótinhaumapeleatadaàcintura.

-OAdãotinharoupasboasparausaraosdomingos?-perguntouLauraàmãe.

-Não-respondeu-lheamãe.-CoitadinhodoAdão,sótinhapelesparasecobrir.

MasLaura não tinha pena doAdão.Quem lhe dera também só ter pelesparasecobrir!

Umdomingo,depoisdojantar,nãoaguentoumais.ComeçouabrincarcomoJackenão tardoua correr e agritar.Opaimandou-a sentar-sena cadeira eestarquietaecalada,masela,quandosesentou,começouachorareabatercomoscalcanharesnacadeira.

-Odeioodomingo!-exclamou.Opaipousouolivroechamou-a,muitosério:-Vemcá,Laura.Elafoiaarrastarospés,poissabiaquemereciaumasova.Masopaiolhou-

a um momento, pesaroso, e depois sentou-a no joelho e puxou-a para si.EstendeuooutrobraçoaMariaedisse:

-Vou-lhescontarumahistóriadequandooavôerapequeno.

Ahistóriadotrenódoavôedoporco- Quando o teu avô era pequeno, Laura, o domingo não começava no

domingodemanhã, como agora: começava aopôr doSol de sábado.Apartirdessemomento,todaagenteparavadetrabalharoudebrincarfossecomoquefosse.

“O jantarerasolenee,no fim,opaidoavô liaumcapítulodaBíbliaemvoz alta, enquanto todos o escutavam, quietos e calados, nas suas cadeiras.Depoisajoelhavam-seeopaidiziaumalongaoração.Quandoeledizia“Amén”,levantavam-se,pegavacadaqualna suavelae iamparaacama.Tinhamde irlogoparaacama,sembrincarem,riremoufalarem,sequer.

“Nodomingodemanhãcomiamumdesjejumfrio,porqueaodomingonãose podia cozinhar nada.Em seguida vestiam asmelhores roupas e iam a pé àigreja. Iam a pé porque atrelar os cavalos era trabalho, e ao domingo não sepodiatrabalhar.

“Tinham de caminhar devagar e muito sérios, a olhar em frente. Nãopodiamgracejarnemrir,nemmesmosorrir.Oavôeosseusdoisirmãosiamàfrenteeopaieamãecaminhavamatrás.

“Na igreja, o avô e os irmãos tinham de ficar sentados muito quietos,durante duas longas horas, a ouvir o sermão. Não se atreviam amexer-se no

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bancoduroouabalançarospéseaidelesseolhavamparaas janelas,paraasparedesouparao tetoda igreja!Tinhamdeestarperfeitamente imóveisesemdesviar,ummomentoquefosse,osolhosdopregador.

“Acabado o sermão, regressavam a casa, devagar. Podiam falar nocaminho,mas só emvozbaixa e sem rir nem sorrir.Emcasa esperava-osumalmoço frio, preparado na véspera. Depois tinham de passar a tarde todasentadosnumbanco,aoladounsdosoutros,aestudarocatecismo,atéoSolsepôr,finalmente,eacabarodomingo.

“A casa do avô ficava mais ou menos a meio da encosta de um monteíngreme. A estrada descia do cimo ao sopé do monte, passando mesmo pelaporta da frente do avô, e no Inverno era o melhor lugar para escorregar quepossamimaginar.

“Uma semana, o avô e os seus dois irmãos, que se chamavam Jaime eJorge,começaramafazerumtrenónovo.Trabalhavamneletodososmomentosdotempoparabrincardequedispunham.Nuncatinhamfeitoumtrenómelhor,tãocompridoquenelecabiamostrês,sentadosunsatrásdosoutros.

Tinhamdecididoacabá-loatempodeescorregarempelaencostaabaixonosábadodetarde,poisnessediadispunhamdeduasoutrêshorasparabrincar.

“Mas nessa semana o pai deles andou a derrubar árvores na FlorestaGrande. Tinha muito que fazer e, por isso, levava os filhos consigo, para oajudarem.FaziamostrabalhosdamanhãàluzdalanternaequandooSolnasciajáestavamatrabalharduramentenafloresta.Trabalhavamatéescurecer,depoistinham de tratar dos animais e a seguir ao jantar iam para a cama para sepoderemlevantarcedonodiaseguinte.

“Só tiveram tempo para trabalhar no trenó no sábado de tarde. Bem seapressaram,bemtrabalharamomaisdepressaquepuderam,massóoacabarammesmoquandooSolsepôs,aoanoitecerdesábado.

“ClaroquedepoisdopôrdoSolnãopuderamdeslizarpelaencostaabaixo,nemsequerumavez.Issoseriadesrespeitarodiadedescanso.Poressemotivo,puseram o trenó no telheiro das traseiras da casa, à espera que o domingoterminasse.

“No dia seguinte, durante as duas compridas horas passadas na igreja,emboramantivessem os pés quietos e os olhos no pregador, só pensavam notrenó.Emcasa, enquanto almoçavam, tambémnão conseguirampensar noutracoisa.Depoisdoalmoço,opaideles sentou-sea ler aBíblia eoavô, JaimeeJorge sentaram-se no banco, quietinhos como ratos, com o catecismo. Mascontinuavamapensarnotrenó.

“OSolbrilhavavivamenteeaneveestava lisinhaecintilante,naestrada.Viam-na através da janela. Estava um dia perfeito para deslizar pela encosta

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abaixo.Os três rapazes olhavampara o catecismo, pensavamno trenó novo eparecia-lhesqueodomingonuncamaisacabava.

“Passadomuitotempo,ouviramressonar.Olharamparaopaieviramquetinhaacabeçainclinadaparatrásedormiaasonosolto.

“EntãoJaimeolhouparaJorge,levantou-seesaiudasalapéantepé,pelaportadastraseiras.Jorgeolhouparaovossoavôesaiutambémpéantepé,atrásdeJaime.Ovossoavôolhou,receoso,paraopai,masláfoitambém,péantepé,atrásdeJorge,edeixouopaiaressonar.

“Forambuscarotrenónovoelevaram-no,semfazerbarulho,paraocimodomonte.A sua intençãoeradeslizarempela encosta abaixo sóumavez.Emseguida,arrumariamotrenóeesgueirar-se-iamparaobancoeparaoestudodocatecismo,antesqueopaiacordasse.

“Jaime sentou-se no lugar da frente do trenó, seguido por Jorge efinalmentepelovossoavô,queeraomaispequenodostrês.Otrenócomeçouadeslizar,primeirodevagareemseguidacomvelocidadecrescente.Corria,voavapelacompridae íngremeencostaabaixo,masos rapazesnãoousavamgritarasuaalegria.Tinhamdepassaremsilênciopelacasa,semacordaropai.

“Oúnicosomqueseouviaeraolevechiadodospatinsnaneveeosilvodadeslocaçãodoar.

“Nisto,quandoo trenódesciavertiginosamentenadireçãodacasa,surgiudaflorestaumgrandeporcopreto,quefoipararmesmonomeiodaestrada.

“O trenó ia tãodepressaquenãoerapossívelpará-lo.Tambémnãohaviatempoparaovirar.Porisso,passoumesmoporbaixodoporco,quegrunhiuefoiaterrarnocolodeJaime.Eodemóniodobichocontinuouagrunhirruidosa,longaeesganiçadamente:Squi-i-i-i-i!Squi-i-i-i-i!

“Passarampela casa comoum raio, comoporco sentadoà frente,depoisJaime,depoisJorgeepor fimovossoavô,eviramopaiàporta,aolharparaeles. Não puderam parar, não puderam esconder-se, não tiveram tempo paradizernada.Continuaramlançadospelaencostaabaixo,comoporcoaocolodeJaimeesemparardegrunhir.

“Quando chegaram ao fim da encosta, parou.O porco saltou de cima deJaimeecorreuparaafloresta,sempreagrunhir.

“Osrapazessubiramlentaesolenementeaestradaeforamarrumarotrenó.Depoisentraramsorrateiramenteemcasaesentaram-seemsilêncionobanco.OpaiestavaaleraBíblia.Disseumapalavraparaeles,masnãolevantouacabeçaeolhou.

“Depoiscontinuoualereelesreataramoestudodocatecismo.“MasquandooSolsepôseodiadedescansoterminou,opailevou-ospara

o telheiro da lenha e chegou-lhes a roupa ao pelo: primeiro a Jaime, depois a

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Jorgeeporfimaovossoavô.“Por isso, Laura, e tu também, Maria, talvez achem difícil serem boas

meninas,masdeviamalegrar-sepornãosertãodifícilagoracomoquandooavôerarapaz.

-Asmeninaspequenastambémtinhamdeserassimtãoboas?-perguntouLaura.

- Para as meninas ainda era mais difícil do que para os rapazes sim, -respondeu-lheamãe-poiselastinhamdesecomportarcomosenhorinhastodososdiasenãosóaosdomingos.Asmeninaspequenasnãopodiamdeslizarpelaencosta,comoosrapazes.Asmeninaspequenastinhamdeficarsentadinhasemcasa,afazeramostrasdebordados.

-Vá,agoradeixemamãemetê-lasnacama–disseopai,etirouarabecadacaixa.

LauraeMariadeitaram-senacamabaixaaouviroshinosdominicais,poisnemmesmoarabecapodiatocarcançõesdosdiasdasemanaaodomingo.

“JesusCristo,recebe-me”,cantouopaicomarabeca.Edepoiscontinuouacantar:SerájustoqueeusubaaoCéuEmfloridosleitosdebem-estar,EnquantooutroslutaramportalprémioEnavegaramporsangrentosmares?

Laura começou a sentir-se flutuar com a música e, de súbito, ouviu umbarulhoforte…Eviuamãeaofogão,aprepararodesjejum.

Erasegunda-feirademanhãesódaliaumasemanainteirinhavoltariaaserdomingo.

Nessamanhã,quandoentrouemcasaparatomarodesjejum,opaiagarrouLauraedissequetinhadelhedarumasova.

Primeiro explicou que era o dia dos anos dela e queLaura não cresceriaconvenientemente,noanoseguinte,senãolevasseumasova.Depoiscomeçouadar-lheaçoitestãodevagarecomtantocuidadoquenãolhedoeramnada.

-Um..Dois..Três…Quatro…Cinco..Seis…-foicontando,enquantolhebatia,levezinho:umaçoiteporcadaanoeoúltimocommaisforça,paracrescer.

Em seguida, o pai deu-lhe um bonequinho demadeira, que fizera de umpau, com a navalha para servir de companhia aCarlota.Amãe deu-lhe cincobolinhos, um por cada ano que vivera com os pais, e Maria deu-lhe umvestidinho novo paraCarlota. Fora elamesma quemo fizera, quandoLaura ajulgaraatrabalharnamantaderetalhos.

Nessa noite, como presente especial de aniversário, o pai tocou para ela:Zut,fogeadoninha!

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Sentou-secomLauraeMariaencostadasaosseusjoelhos,enquantotocava.-Agoraolhem…Olhembemetalvezvejamadoninhafugir,destavez.Depoiscantou:

Umamoedaparaumnovelodelinha,MaisoutraparaumaagulhaEassimsevaiodinheiro…

Laura e Maria inclinaram-se muito, de olhos atentos, pois sabiam quechegaraomomento.

Zut! (disse o dedo do pai na corda),Foge a doninha! (cantou a rabeca,comosefalasse).

MasLauraeMarianãotinhamvistoodedodopaifazeracordacantarzut!-Oh,façaoutravez,faça,porfavor!Pediram-Ihe.Os olhos azuis do pai riram e a rabeca continuou a tocar, enquanto ele

cantava:ÀrodadobancodosapateiroOmacacoperseguiaadoninha.Opregadorbeijouasapateira…Zut!Fogeadoninha!

Destaveztambémnãoviramodedodopai.Eleera tãorápidoquenuncaconseguiamvê-lo.

Porisso,foramarirparaacamaeficaramdeitadasaouviropaiearabecacantarem:Eraumavezumvelhopreto,TioNeddenomeseu,Quehámuito,muito,morreu.Nococurutonãotinha,nãotinha,Nemumpelinhodecarapinha!SeusdedoseramcompridosComojuncosnocanavial,Seusolhosviammal,tãomal,Edentesp’rabroa…jáostivera.Porisso,eracomosebroanãohouvera.Assim,pendurouenxadaepá,Deitounacaixaarcoerabecão.TrabalhoparaoTioNedjánãohá:Foiparaondeospretosbonsvão.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

6DOISGRANDESURSOS

Umdia,opaidissequevinhaaíaPrimavera.Anevecomeçavaaderreter-senaGrandeFloresta,caíaaosbocadosdosramosdasárvoresefaziapequenosburacosnaneveamolecidadochão.Aomeio-dia,todososgrandespingentesdegelo do beiral da casinha tremeluziam e cintilavam ao sol e das suas pontaspendiamtrémulasgotasdeágua.

Opaidisseque tinhade iràcidade trocaraspelesdosanimaisselvagensqueapanharanasarmadilhasdurantetodooInverno.Porisso,umanoite,fezumgrande fardo com elas. Eram tantas peles que, depois de acamadas umas emcimadasoutrasebematadas,faziamumfardoquasedotamanhodopai.

Demanhãzinhamuitocedo,opaiprendeuofardodepelesàscostas,comcorreias,epôs-seacaminhodacidade,apé.Tinhadecarregartantaspelesquenãopôdelevaraespingarda.

Amãe ficoupreocupada,masopaidisseque,partindoantesdenasceroSoleandandomuitodepressatodoodia,poderiaestardenovoemcasaantesdeescurecer.

A cidademais próxima ficavamuito longe. Laura eMaria nunca tinhamvisto uma cidade.Nemnunca tinhamvisto umarmazém.Nunca tinhamvisto,sequer, duas casas ao lado uma da outra.Mas sabiam que numa cidade haviamuitas casas e um armazém cheio de rebuçados, tecidos e outras coisasmaravilhosas:pólvora,chumbo,saleaçúcardearmazém.

Sabiamqueopaiiriaaoarmazémetrocariaassuaspelesporcoisasbonitasda cidade. Por isso, passaram o dia todo à espera dos presentes que ele lhestraria. Quando o Sol desceu à altura da copa das árvores e deixaram de cairpingos de água dos pingentes de gelo, começaram a aguardar ansiosamente opai.

O Sol desapareceu, a floresta escureceu e o pai não chegou. A mãecomeçouafazero jantarepôsamesa,eelesemchegar.Eramhorasde tratardosanimaiseeleaindanãochegara.

AmãedisseaLauraquepodiaircomela,mungiravaca.Laurasegurarianalanterna.

Lauravestiuocasacoeamãeabotoou-lho.DepoisLauracalçouas luvas

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encarnadas, que lhe pendiamdo pescoço, suspensas de um fio damesma cor,enquantoamãeacendiaaveladalanterna.

Laurasentia-seorgulhosaporirajudaramãeaordenharelevavaalanternacommuitocuidado.Osladosdalanternaeramdelata,mastinhambocadinhoscortados,paradeixarpassaraluzdavela.

EnquantoLauracaminhavaatrásdamãenocarreiroquelevavaaoestábulo,osbocadinhosdeluzdavelaquesecoavampelalanternasaltavamàsuavolta,naneve.Aindanãoescureceraporcompleto.Aflorestaestavaescura,mashaviauma claridade acinzentada no carreiro coberto de neve e no céu brilhavamalgumasestrelaspálidas,quenãopareciamtãoquentesnemtãoluminosascomoasluzinhasquesaíamdalanterna.

LauraficousurpreendidaaoverovultoescurodeSukey,avacacastanha,juntodacanceladopátiodoestábulo.Amãetambémseadmirou.

Ainda era muito cedo para soltar a Sukey e deixá-la ir comer erva naGrandeFloresta.Por isso,elavivianoestábulo.Masàsvezes,quandoosdiasestavammenosfrios,opaideixavaaportadoestábuloaberta,paraelapoderiratéaopátio.Naquelanoite,amãeeLauraviram-naatrásdavedação,àesperadelas.

Amãeaproximou-sedacancelaeempurrou-a,paraaabrir.Masacancelanãoseabriumuito,porqueSukeyestavaencostadaaela.

-Afasta-te, Sukey - disse amãe, aomesmo tempo que estendia amão ebatianolombodavaca.

Precisamente nesse instante, um dos saltitantes bocadinhos de luz dalanterna passou por entre os troncos da cancela e Laura viu um pelo preto,compridoeemaranhado,edoisolhinhoscintilantes.

ASukeytinhapelocastanho,curtoeraloeolhosgrandesemeigos.-Laura,voltaparacasa-mandouamãe.Laura virou-se e começou a andar para casa. A mãe seguia-a. Quando

tinhampercorridopartedo caminho, amãepegou-lhe ao colo, com lanterna etudo,edesatouacorrer.Entrouemcasaacorrerefechoulogoaporta.

EntãoLauraperguntou-lhe:-Eraumurso,Mã?-Era,sim,eraumurso.Lauracomeçouachorar.Agarrou-seàmãe,asoluçar.-VaicomeraSukey?- Não - respondeu amãe, a abraçá-la. - A Sukey está em segurança, no

estábulo.Lembra-tedetodosaquelestroncosgrandesepesadosdasparedesdoestábulo.Eaportatambémépesadaesólida,feitaparanãodeixarentrarursos.Não,Laura,nenhumursopodeentrarecomeraSukey.

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Laurasentiu-semaistranquila.-Maspodiater-nosfeitomal,nãopodia?-Não nos fezmal nenhum - respondeu amãe. - Foste uma boamenina,

Laura,fizesteexatamenteoquetedisse,depressaesemfazeresperguntas.Amãe,queestavaatremer,riu-seumbocadinho.-Imaginem,deiumapalmadanumurso!-exclamou.Depoispôsojantarnamesa,paraLauraeMaria.Opaiaindanãochegara.

Nemchegouenquantocomeram.AmãedespiuLauraeMaria,quedisseramassuasoraçõeseseaninharamnacamabaixa.

Amãesentou-sejuntodocandeeiro,aremendarumacamisadopai.Acasapareciafria,silenciosaeestranhasemele.

LauraouviaoventonaGrandeFloresta.Oventochoravaatodaavoltadacasa,comoseestivesseperdidonaescuridãoenofrio.Pareciaassustado.

A mãe acabou de remendar a camisa. Laura viu-a dobrá-la devagar ecuidadosamente e alisá-la comamão.Depois fez uma coisa que nunca a virafazer: foi à porta e puxou para dentro, através do buraco, a tira de couro dofecho.Assim,ninguémpoderiaentrarseelanãolevantasseofecho.EmseguidafoiàcamagrandeepegouemCarrie,quedormia,aocolo.

ViuqueLauraeMariaaindaestavamacordadasedisse-lhes:-Durmam,filhas.Nãohámotivoparapreocupações.Opaijácáestaráde

manhã.Voltou para a cadeira de balanço e sentou-se, a balançar-se devagarinho,

comabebéCarrieaocolo.Ia ficar apé até tarde, à esperadopai, eLaura eMaria tambémestavam

decididasanãoadormecerenquantoelenãochegasse.Masosonoacabouporvencê-las.

Demanhãopaijáestavaemcasa.TrouxerapirulitosparaLauraeMariaechita bonita para fazer um vestido a cada uma: o deMaria tinha um desenhoazul-porcelana sobre fundo branco e o de Laura era vermelho-escuro compintinhascastanho-douradas.Tambémhaviatecidoparaumvestidoparaamãe:castanho,todocobertodeumpadrãoplumoso,grandeebranco.

Estavamtodosmuitocontentes,poisopaiobtiveratãobonspreçosparaaspelesquelhespuderatrazerprendastãobonitas.

O grande urso deixara pegadas a toda a volta do estábulo, assim comomarcasdasgarrasnasparedes.MasSukeyeoscavalosestavamemsegurança,ládentro.

OSolbrilhoutodoodia,anevederreteu-seedospingentesdegelo,quesetornavam cada vez mais delgados, correram fiozinhos de água. Antes deescurecer, as pegadas do urso estavam reduzidas a marcas informes na neve

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úmidaemole.Depoisdojantar,opaisentouLauraeMarianosjoelhosedissequetinha

umahistórianovaparalhescontar.

Ahistóriadopaiedoursoencontradonocaminho-Ontem,quandofuiàcidadecomaspeles,tivedificuldadeemcaminharna

nevemole. Levei muito tempo a chegar e, entretanto, tinham chegado outroshomenscomassuaspelesparatrocar,primeirodoqueeu.Odonodoarmazémestavaatarefadoe,porisso,tivedeesperarquepudesseverasminhaspeles.

“Depoistivemosdediscutiropreçodecadaumae,emseguida,eutivedeescolherascoisasquequeriaemtroca.Porisso,oSolestavaquaseadesaparecerquandomepusacaminhodecasa.

“Tenteivirdepressa,maseradifícilcaminhareeuestavacansado.Assim,nãotinhaavançadomuitoquandoanoitechegouemeencontrousozinhoesemaminhaespingardanaGrandeFloresta.

“Ainda tinha de calcorrear dez quilômetros e continuei a andar, o maisdepressaquepude.Anoitefoi-setornandocadavezmaisescuraeeucomeceiapreocupar-me por não ter a espingarda, pois sabia que alguns ursos já tinhamsaídodassuascavernasdeInverno.Vira-lhesosrastrosdemanhã,àidaparaacidade.

“Os ursos estão famintos e zangados nesta época do ano. Como sabem,passamoInvernotodoadormirnascavernas,semnadaquecomer,e,porisso,quandoacordamestãomagrosemaldispostos.Nãodesejavanadaencontrarum.

“Continuei a andar o mais depressa possível, às escuras. De quando emquando,asestrelasdavamumaclaridadezinha.Aindaestavaescurocomobreuonde as árvores eram mais densas, mas nos espaços abertos conseguia vervagamente.Viaumpequenotroçodeestradacobertadeneveàminhafrenteeasnegras florestas a toda a minha volta. Fiquei contente quando cheguei a umaclareiraeasestrelasmederamaclaridadezinhadequefalei.

“Iaandandoomaisatentoquepodia,nãofosseapareceralgumurso.Estavade ouvido apurado, para escutar o barulho que eles fazem quando passamdescuidadamentepelomeiodomatagal.

“Depoischegueiaoutraclareirae,mesmonomeiodomeucaminho,viumgrandeursopreto.

“Estava de pé, apoiado nas patas traseiras, a olhar para mim. Vi-lhe osolhosbrilhareofocinhodeporco.Vi-lheatéumadasgarras,àluzdasestrelas.

“Puseram-se-meoscabelosempé.Parei logoefiquei imóvel.Oursonãosemexeu.Continuouparado,aolharparamim.

“Eusabiaqueseriainútiltentarcontorná-lopoiseleseguir-me-ianoescuro

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da floresta,ondeveriamelhordoqueeu.Nãomeapetecianada lutarcomumursoesfomeado,àsescuras.Oh,comodesejeiteraminhaespingarda!

“Tinhadepassarpelodemóniodoursoparachegaracasa.Penseique,seconseguisseassustá-lo,talvezeleseafastassedocaminhoemedeixassepassar.Por isso, respirei fundoe,de repente,desatei agritar com todaa forçae corriparaele,aagitarosbraços.

“Nãosemexeu.“Garanto-lhesquenãomeatreviaaproximar-memuitodele!Pareiaolhá-

lo, e ele continuou especado, também a olhar-me. Gritei outra vez… e nada.Continueiagritareaagitarosbraços,maselenãotugianemmugia.

“Bem,nãomeserviriadenadafugir.Haviaoutrosursosnafloresta.Podiaencontraralgumdeummomentoparaooutro.Porisso,maisvaliaavir-mecomaquele.Alémdisso,vinhaparacasa,parajuntodamãeedevocês,enuncamaiscáchegariasefugissedetudoquantomeassustassenafloresta.

“Por fim, olhei em redor e encontrei um bom cacete, um ramo sólido epesadoqueopesodanevesepararadeumaárvore,noInverno.

“Agarrei-o com ambas asmãos e corri para o urso.Brandi o cacete comquantaforçatinhae,zás!,dei-lhecomelenacabeça.

“Masoursocontinuouimóvel,poisnãopassavadeumgrandetroncopreto,queimado!

“Passaraporeleacaminhodacidade,demanhã.Nãoeraursonenhum.Sóme pareceu que era porque viera sempre a pensar em ursos e com medo deencontraralgum.

-Nãoeramesmoumurso,realmente?–perguntouMaria.-Não,Maria,nãoerarealmenteumurso.Ealiestiveraeuagritar,acorrer

e a agitar os braços, sozinhonaGrandeFloresta, a tentar assustar um tocodeárvore!

-Onossoeraumursoasério-disseLaura.–MasnósnãonosassustamosporquepensamosqueeraaSukey.

Opaiapertou-amaisasi,semdizernada.-Oh,aqueleursopodia ter-noscomido todas,àMãeamim! -exclamou

Laura,eaninhou-semelhornocolodopai.-MasaMãfoidireitaaeleedeu-lheumapalmada,eoursonãofeznada.Porqueseriaquenãofeznada?

-Creioqueficoutãosurpreendidoquenãofoicapazdefazernada,Laura-respondeu-lheopai. -Achotambémqueseassustou,quandoa luzda lanternalhebateunosolhos.Equandoamãefoidireitaaeleelhedeuumapalmada,oursopercebeuqueelanãotinhamedo.

-Bem,oPátambémfoivalente-disseLaura.-Eraapenasumtronco,masoPápensavaqueeraumurso.Ter-lhe-iabatidonacabeçacomocacete,sefosse

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mesmoumursonãoteria?-Claroqueteria.Nãotinhaoutroremédio,compreendes?Entãoamãedissequeeramhorasdeirparaacama.AjudouLauraeMaria

adespirem-seeabotoou-lhesascamisasdedormirdeflanelaencarnada.Asduasajoelharam-seaoladodacamabaixaedisseramassuasorações:Agoraqueparadormirmevoudeitar,PeçoaDeusparaaminhaalmaguardar.Eseantesdeacordareumorrer,PeçoaDeusparaaminhaalmareceber.

Amãebeijou asduas e aconchegou-lhes a roupa.Ficaramumbocadinhoacordadas,aolharparaocabeloliso,comriscoaomeio,damãeeaverassuasmãosatarefadasacosturar,àluzdocandeeiro.Aagulhafaziaumtinidozinho,aobaternodedal,edepoisalinhaatravessavasuavemente-suiche!–achitabonitaqueopaitrouxeraemtrocadaspeles.

Lauraolhouparaopai,queestavaaensebarasbotas.Obigode,ocabeloeacompridabarbacastanhapareciamsedaàluzdocandeeiro,quetornavaalegreas cores do seu casaco aos quadrados.O pai assobiava alegremente, enquantotrabalhava,edepoiscomeçouacantar:Ospássaroscantavamnamanhã,AmurtaeaheradesabrochavamEoSolespreitavasobreosmontesquandoeuadeiteinasepultura.

Estavaumanoitequente.O fogo reduzira-seabrasas,nachaminé,masopainão lhedeitaramais lenha.A todaavoltada casinha,naGrandeFloresta,ouviam-se sons leves, de neve a cair, e o gotejar dos pingentes de gelo dosbeiraisaderreter-se.

Dentrodepoucotempoasárvorescomeçariamavestir-sedefolhasnovas,todasrosadas,amarelaseverde-pálidas,enaflorestahaveriafloressilvestresepássaros.

Acabar-se-iam,então,ashistóriasàlareira,ànoite,masduranteodiatodoLauraeMariacorreriamebrincariamentreasárvores,poisseriaPrimavera.

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7NEVEDOCE

Durante dias o Sol brilhou e o tempo aqueceu. Já não havia geadas nasjanelas,demanhã.Ospingentesdegelo levavamodiaacair,umporum,dosbeirais, e desfaziam-se, com suaves splashes! E estalidos, na neve que seamontoavaembaixo.Asárvoressacudiamosramosúmidosepretosedeixavamcairgrandesbocadosdeneve.

QuandoMariaeLauraencostavamonarizaovidrofriodajanela,viamofio de água que pingava dos beirais e os ramos nus das árvores. A neve nãobrilhava;pareciamoleecansada.Debaixodasárvoresestavaesburacada,ondeos bocados de neve tinham caído, e os aterros que ladeavam o caminho iamdiminuindoeassentando.

AtéqueumdiaLauraviuumamanchadeterranua,nopátio.Amanchafoicrescendo,todoodia,eantesdeanoitecernopátiotodojásóhavialama.

Sórestavamocaminhogeladoeosaterrosdeneveaolongodocaminhoedacercaeaoladodomontedelenha.

-Nãopossoirbrincarláparafora,Mã?-perguntouLaura.-Amanhã,podes-prometeu-lheamãe.Nessa noite, Laura acordou a tremer de frio. Os cobertores da cama

pareciam-lhe leves e tinha o nariz gelado. A mãe estava a tapá-la com outramanta.

-Chega-temaisparaaMariaeaquecerás-,disse-lheamãe.Demanhã a casa estava quente, do fogão,mas quandoLaura olhou pela

janelaviuqueochãoestavacobertodenevemaciaedensa.Aneveempilhava-se,comoplumas,aolongodosramosdasárvores,formavamontesnocimodavedaçãoeadornavaoaltodospostesdoportãocomgrandesbolasbrancas.

Opai entrou, a sacudir anevemaciadosombroseabaterospés,paraasacudirdasbotas.

-Énevedoce-anunciou.Laurachegourapidamentealínguaaumbocadinhodenevebrancaquese

encontravanumapregadamangadopai.Massóasentiuúmidanalíngua,comoqualqueroutraneve.Ficoucontenteporninguémtervistooseugesto.

- É neve doce por que, Pá? - perguntou, mas o pai respondeu-lhe que

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naquelemomentonão tinha tempopara lheexplicar; iaacasadoavôeestavacompressa.

O avô viviamuito longe, num lugar daGrande Floresta onde as árvoresestavammaisjuntaseerammaiores.

Laurafoiàjanelaeviuopai,alto,rápidoeforte,afastar-seapé,naneve.Levavaaespingardaaoombro,amachadaeopolvorinhoàcintaeassuasbotasaltasdeixavamgrandesrastrosnanevemole.Lauraseguiu-ocomoolharatéeledesaparecernafloresta.

Era tarde quando voltou para casa, nessa noite. A mãe já acendera ocandeeiro.Opaitraziaumgrandeembrulhodebaixodeumbraçoedaoutramãopendia-lheumgrandebaldedemadeiracoberto.

-Toma,Carolina-disse,aoentregaroembrulhoeobaldeàmãe,edepoisarrumou a espingardano seu suporte, por cimadaporta.Se tivesse encontradoumurso-acrescentou-,nãoteriapodidoabatê-losemlargaracarga.-Deuumagargalhada. - E se largasse o embrulho e o balde, não precisaria de o abater.Poderiaterficadoquieto,avê-locomeroquecontêmelamberosbeiços.

Amãedesfezoembrulhoeapareceramdoisboloscastanhoseduros,cadaumdotamanhodeumabilhadeleite.Depoisamãedestapouobalde,queestavacheiodemelaçocastanho-escuro.

- Laura, Maria, tomem - disse o pai, e deu a cada uma delas umembrulhinhoredondoquetiroudaalgibeira.

Tiraramo papel que os cobria e ficou cada qual comumbolinho duro ecastanho,enrugadonasbordas.

-Dêemumadentada-disseopai,comosolhosazuisabrilhar.Deramumadentadinhanabordaenrugadadosbolos.Eradoceedesfazia-se

naboca.AindaeramelhordoqueospirulitosdoNatal!-Açúcardebordo-explicouopai.O jantarestavaprontoeLauraeMariapuseramosbolinhosdeaçúcarde

bordoaoladodoprato,enquantocomiampãocommelaçodebordo.Depois do jantar, o pai sentou-se junto do fogo com elas nos joelhos e

falou-lhesdoseudiaemcasadoavôedanevedoce.-OavôpassoutodooInvernoafazerbaldesdemadeiraepequenascalhas.

Fê-los de cedro e freixo branco, porque estasmadeiras não dãomau gosto aomelaçodebordo.

“Para fazer as calhas, utilizou pequenos paus do comprimento da minhamão e da grossura de dois dedos dos meus. Perto de uma das pontas, o avôcortouopauaomeio,nosentidodocomprimento,eseparouumadasmetades.Ficou assim com um pau chato, com um bocado quadrado numa dasextremidades. Depois, com uma broca, abriu um buraco, no sentido do

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comprimento, na parte quadrada e, com a faca, desbastou amadeira até ficarreduzidaaumacamadafininhaàvoltadoburacoredondo.Emseguida,comafaca,escavouaparteachatadadopau,atéatransformarnumacalhazinha.

“Fezdúziasdelasedezbaldesnovosdemadeira.Tinhatudoprontoquandosurgiuoprimeirotempoquenteeaseivacomeçouapercorrerasárvores.

“Entãofoiaobosquedebordose,comabroca,abriuumburacoemcadaárvore, introduziuneleapontaredondadeumacalhazinhaecolocouumbaldedecedroporbaixo.

“Como sabem, a seiva é o sangue das árvores. Sobe das raízes quando otempo começa a aquecer, na Primavera, e chega até às pontinhas de todos osramosegalhos,parafazercrescerasfolhasverdes.

“Bem,quandoaseivadobordochegaaoburacoabertonotronco,escorredaárvoreparaacalhazinhaedestaparaobalde.

-Oh,enãofazdoeràpobreárvore?–perguntouLaura.-Dói-lhetantocomoquandotupicasumdedoesangra-respondeu-lheo

pai.Oavôcalçatodososdiasasbotas,vesteocasacogrossoepõeobarretedepele,evaiàflorestacobertadeneverecolheraseiva.Vaideárvoreemárvorecomumbarrilemcimadeumtrenóedespejaaseivadosbaldesparaobarril.Depoistransporta-oparaumgrandecaldeirãodeferroqueseencontrasuspensoporumacorrentedeumtroncoatravessadoentreduasárvores.

“Despeja a seiva na caldeira de ferro, debaixo da qual está uma fogueiraacesa.Aseivaferveeoavôassisteàoperação,cuidadosamente.Ofogodevesersuficienteparamanteraseivaaferver,masnãotantoqueafaçadeitarporfora.

“Tem de se escumar a seiva com intervalos de poucos minutos. O avôescuma-acomumagrandeconchadecabocomprido,queelefezdemadeiradetília. Quando a seiva fica demasiado quente, o avô enche a concha, levanta-amuitoaltoedespeja-adenovo,devagarinho.Repeteaoperaçãodiversasvezeseissoarrefeceumbocadinhoaseivaeevitaquefervamuitodepressa.

“Quando a seiva ferveu tempo suficiente, o avô enche os baldes com omelaço obtido.Depois disso, ferve a seiva até ela granular, quando a arrefecenumprato.

“Assimqueaseivacomeçaagranular,oavôretiraofogotododebaixodacaldeira,muitodepressa.Depois,comtodaarapidez,deitaoxaropegrosso,àsconchas,paraaslatasdeleitequetempreparadaseondeoxaropesetransformaembolosdeaçúcardebordocastanhoeduro.

-Éporissoqueestasechamanevedoce,porqueoavôestáafazeraçúcar?-perguntouLaura.

- Não - respondeu-lhe o pai. - Chama-se neve doce porque nevar nestaépocadoanosignificaqueoshomenspodemfazermaisaçúcar.Estepequeno

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períodofrioeaneveretardarãoocrescimentodasfolhasdasárvorese,porisso,aseivaterádecorrerdurantemaistempo.

“Quando a seiva corre mais tempo, o avô pode fazer açúcar de bordosuficiente para o ano todo, para o uso diário corrente.Assim, quando leva assuaspelesàcidade,nãoprecisade trazermuitoaçúcardoarmazém.Basta-lheumapequenaquantidade,parapôrnamesaquandotemvisitas.

-Oavôdeveestarcontentecomestanevedoce-disseLaura.-Poisestá,estámuitocontente.Vaioutravezfazeraçúcarnasegunda-feira

edisseparairmostodos.Os olhos azuis do pai brilhavam: tinha estado a guardar omelhor para o

fim!-Haverábaile,Carolina!A mãe sorriu. Pareceu muito contente e interrompeu uns momentos a

costura.-Oh,Carlos!-exclamou.Depoiscontinuouacosturar,semdeixardesorrir.-Levareiomeuvestidodemusselinadelã.Ovestidodemusselinadelãdamãeeralindo.Eraverde-escuro,comum

desenhopequeninodemorangosmaduros.Fizera-lhoumamodistanoLeste,nolugar onde a mãe vivia quando casara com o pai e viera para Oeste, para aGrandeFlorestadeWisconsin.Amãeandaramuitoàmoda,antesdecasarcomopai,etodasassuasroupastinhamsidofeitasporumamodista.

O vestido de musselina de lã estava embrulhado em papel e guardado.Laura e Maria nunca a tinham visto usá-lo, mas ela mostrara-lho, uma vez.Deixara-as tocarnosbonitosbotõesencarnado-escurosqueabotoavamocorpojusto,àfrente,emostrara-lhescomoasbarbasdebaleiaestavamperfeitamentepostasnascosturas,doladodedentro,comcentenasdepontinhoscruzados.

O fatode amãe ir usar obonitovestidodemusselinade lã demonstravacomoumbaile era importante.LauraeMaria ficaram todasagitadas, saltaramnosjoelhosdopaiefizeramumaquantidadedeperguntasarespeitodobaile,atéeledizer:

-Agoratocaaandarparaacama,meninas!Ficarãoasabertudoarespeitodobailequandoovirem.Tenhodepôrumacordanovanaminharabeca.

Havia dedos e bocas pegajosas para lavar e depois houve que rezar asorações.QuandoLauraeMariaficaram,finalmente,aconchegadinhasnacama,jáopaiearabecacantavamjuntos,enquantoelemarcavaocompassocomopénochão:SouocapitãoJinksdacavalaria,Afeijãoemilhoomeucavalomantenho

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EmuitasvezesgastomaisdoquetenhoPorquesouocapitãoJinksdacavalariaPorquesoucapitãodoexército!

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8BAILEEMCASADOAVÔ

Na segunda-feira toda a gente se levantou cedo, com pressa de se pôr acaminho de casa do avô.O pai queria chegar a tempo de ajudar a recolher eferveraseiva.Amãeajudariaaavóeastiasafazerbonspetiscosparatodasaspessoasqueiamaobaile.

Tomaramodesjejum, lavarama louçae fizeramas camasaindaà luzdocandeeiro.O pai arrumou cuidadosamente a rabeca numa caixa e foi pô-la nograndetrenóquejáesperavaàporta.

OarestavafrioealuzcinzentaquandoLauraeMariaeamãeeCarrieseinstalaram,aconchegadasequentinhas,debaixodasmantasedaspeles,nofundocobertodepalhadotrenó.

Oscavalossacudiramacabeçaeempinaram-se,fazendoosguizosdotrenótocaralegremente,eláforampelaestradafora,atravésdaGrandeFloresta,paracasadoavô.

Como a neve estava úmida e macia na estrada, o trenó deslizavavelozmenteeasgrandesárvorespareciamcorrer,deambososlados.

Passado um bocado, o sol brilhou na floresta e o ar deu a impressão decintilar.Haviagrandes riscas de luz amarela entre as sombrasdos troncosdasárvores e a neve ficou levemente rosada. Todas as sombras eram azuladas eestreitasecadacurvazinhadosmontes,deneveecadapequenorastronanevetinhamasuasombra.

OpaimostrouaLauraosrastrosdeanimaisselvagens,nanevedasbermasdaestrada:aspegadaspequenasesaltitantesdecoelhos,aspegadasminúsculasde ratos do campo e as pegadas, semelhantes a plumazinhas, de uma avechamadaemberiza-das-neves.Mashaviapegadasmaiores,dotamanhodasdoscães, em lugares onde tinham corrido raposas, assim como as pegadas de umgamoqueentraraaossaltosnafloresta.

Oarcomeçouaaquecereopaidissequeanevenãodurariamuito.Daíanada,entravamadeslizarnaclareiraondeficavaacasadoavô,com

todososguizosa tocar.Aavóveioàporta, sorriuedisse-lhesqueentrassem,queentrassem.

DissequeoavôeotioJorgejáestavamatrabalharnosbosquesdebordos.

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Por isso, o pai foi ajudá-los, enquantoLaura eMaria, e amãe comCarrie aocolo,entravamemcasadaavóetiravamosagasalhos.

Lauragostavamuitodacasadaavó,queeramuitomaiordoqueadeles.Tinham um quarto grande, um quarto pequeno que era do tio Jorge e outroquartodastias:atiaDóciaeatiaRubi.

Depoishaviaacozinha,comumenormefogão.Era divertido correr a todo o comprimento do quarto grande, desde a

enormechaminé,queficavaaumaponta,atéàcamadaavó,queficavadebaixodajanela,naoutraponta.Ochãoerafeitodetábuaslargasegrossas,queoavôcortaradetroncos,comomachado.Eramuitolisoeestavalimpoebranco,detãoesfregado.Agrandecama,debaixoda janela, tinhacolchãodepenaseeramuitofofa.

Odiapareceupassarmuitodepressa,enquantoLauraeMariabrincavamnoquarto grande e a mãe ajudava a avó e as tias na cozinha. Como os homenstinhamlevadoalmoçoparaafloresta,nãofoiprecisopôramesaeelascomeramsanduíches de veado frio e beberam leite.Mas a avó fez pudimde farinha demilhoparaojantar.

Paradajuntodofogão,deixavacorrerafarinhaamarelaporentreosdedos,paraumtachoondeferviaáguacomsal.Foimexendoaáguacomumagrandecolherdepauedeixandocorrerafarinha,atéotachoficarcheiodeumamassaespessaeamarela,quefaziabolhas.Depoiscolocouotachoatrásdofogão,paraircozendodevagarinho.

Cheiravabem.Todaacasacheiravabem,comosodoresdocesepicantesda cozinha, o dos toros de nogueira que ardiam, com labaredas luminosas, nalareira,eodeumamaçãcravejadadealhos,aoladodocestodacosturadaavó,emcimadamesa.Osolentravapelosvidrosreluzentesdajanelaeeraumregalovertudogrande,espaçosoelimpo.

Àhorado jantar, opai eo avôvieramda floresta, trazendocadaumaosombros um jugo demadeira que o avô fizera. Estava afeiçoado demaneira acontornar-lhesopescoço,atrás,eforaescavadoparaselhesajustaraosombros.De cada ponta pendia uma corrente com um gancho e de cada gancho estavasuspensoumgrandebaldedemadeiracheiodemelaçoquentedebordo.

O pai e o avô tinham trazido o melaço do grande caldeirão da floresta.Imobilizavam os baldes com as mãos, mas o peso exercia-se nos jugos quetraziamaosombros.

Aavóarranjouespaçonofogãoparaumagrandecaldeiradecobre.Eratãogrande que nela coube o melaço dos quatro baldes, que o pai e o avô lhedespejaramparadentro.

DepoischegouotioJorgecomumbaldedexaropemaispequeno,etodaa

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gente comeu, ao jantar, o pudim de farinha demilho quente, commelaço debordo.

OtioJorgeeramilitareestavaemcasadelicença.Vestiaocasacoazuldebotões de latão do exército, e tinha atrevidos e alegres olhos azuis.Era alto eespadaúdo,egingavaumbocadinho,aoandar.

Lauranão tiravaosolhosdeleenquantocomiaoseupudimdefarinhademilho,poisouviraopaidizeràmãequeeleeraestouvado.

-OJorgeestáestouvado,desdequeveiodaguerra,disseraopai,aabanaracabeça,comoselamentasse,masnãopudessefazernada.

OtioJorgefugiradecasaquandotinhacatorzeanos,paratocartambornoexército.

Lauranuncatinhavisto,antes,umhomemestouvado,enãosabiasetinhamedoounãodotioJorge.

Quando o jantar terminou, o tio Jorge foi à porta e tocou a sua cornetamilitar durante um bom bocado e muito alto. Produzia um som vibrante eagradável, que percorria uma grande distância através da Grande Floresta. Afloresta estava escura e silenciosa e as árvores imóveis, como se estivessem àescuta. Depois o som voltou, de muito longe, fraco mas claro, como se umacornetapequeninarespondesseaotoquedagrande.

- Escuta - disse o tio Jorge. - Não é bonito? - Laura olhou-o, mas nãorespondeu,equandoeleacaboudetocarcorreuparadentrodecasa.

Amãeeaavólevantaramamesa, lavaramalouçae tiraramascinzasdofogão,enquantoatiaDóciaeatiaRubisepunhambonitasnoquarto.

Laura sentou-se na cama, a vê-las pentear o comprido cabelo e dividi-locuidadosamente emmadeixas. Abriram um risco da testa até à nuca e depoisoutrodeorelhaaorelha.Fizeramumasgrandestrançascomocabelodetrásedepoisenrolaram-nascuidadosamentenumcarrapitogrande.

Tinham lavado muito bem as mãos e a cara com sabonete, na bacia dacozinha. Mas tinham usado o sabonete do armazém e não o sabão castanho-escuro,moleeescorregadio,queaavófaziaeguardavanumboiãogrande,parausodiário.

Demorarammuitotempoaarranjarocabelodafrenteeaveremoefeito,decandeeiro na mão, no pequeno espelho suspenso da parede de troncos.Escovaramtantoocabelodeambososladosdoriscobrancoqueodeixaramabrilharcomoseda,à luzdocandeeiro.Apequenapoupadecada lado tambémbrilhava.Aspontasforammuitobemtorcidaseenroladasemetidasdebaixodocarrapitodetrás.

Depoiscalçaramasbonitasmeiasbrancasarrendadas,quetinhamfeitodelinha de algodão fina, e calçaram e abotoaram as suas melhores botinas.

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Ajudaram-seumaàoutraavestirosespartilhos.AtiaDóciapuxoucomquantaforçatinhaasfitasdoespartilhodatiaRubi,edepoisagarrou-seaospésdacamaenquantoatiaRubipuxavaoseu.

-Puxa,Rubi,puxa!-pediaatiaDóciaofegante.-Puxamais.AtiaRubifincoubemospésepuxoucommaisforça,enquantoatiaDócia

iamedindoacinturacomasmãos.Porfim,disse,sufocada:-Creioquenãopodesfazermelhor.–Eacrescentou:-ACarolinadizque,

quandocasaram,oCarloslhepodiaabarcaracinturacomasmãos.CarolinaeraamãedeLaura,e,porisso,elasentiu-seorgulhosa,aoouvir

taispalavras.Emseguida,a tiaRubiea tiaDóciavestirama saia interiorde flanela, a

saiainteriorsimpleseasaiabranca,engomadaetesa,comrendaatodaavoltadosfolhos.Finalmente,chegouavezdosbonitosvestidos.

OdatiaDóciaeraazul-escuroestampado,commuitosraminhosdefloresencarnadasefolhasverdes.Ocorpojustoeratodoabotoadocombotõespretos,tãoparecidoscomsumarentasamoraspretasqueLauraaté tevevontadedeoscomer.

OvestidodatiaRubieracordevinho,complumazinhasdetommaisclaro.Tinhabotõesdourados,cadaumcomodesenhodeumcastelinhoeumaárvore.

Umgrandecamafeuredondo,comumacabeçadesenhora,prendiaàfrenteabonitagolabrancada tiaDócia.A tiaRubipreferiuprender a suacomumarosavermelha, feitade lacre.Elaprópriaa fizeranacabeçadeumaagulhadepassajar cujo buraco se partira e, por isso, deixara de poder ser usada comoagulha.

Estavamencantadoras,adeslizarsuavementedeumladoparaooutro,comasgrandessaiasrodadas.Ascinturinhasapertadaseesbeltasfacesvermelhaseosolhosbrilhantessobaspoupas,quepareciamasas,docabelolustroso.

Amãetambémestavabonita,comoseulindovestidodemusselinaverde-escura com as folhinhas que pareciammorangos.A saia tufada tinha folhos edrapeados e era ornamentada com laços de fita verde-escura. Um alfinete deourofechavaodecote,juntoaopescoço.Oalfineterecortadonasarestas.AmãepareciatãoricaefinaqueLauratinhamedodelhetocar.

As pessoas tinham começado a chegar, umas a pé, através da florestacoberta de neve e alumiadas por lanternas, e outras em trenós e carros, queconduziamatéàporta.Ouviam-seconstantementeguizosdetrenós.

Oquartograndeencheu-sedehomensdebotasaltasesenhorasdevestidosroçagantes e na cama da avó foram deitados diversos bebés, em filas. O tioJaime e a tia Libby tinham vindo com a sua filha pequena, que também sechamavaLaura Ingalls.As duasLauras encostaram-se à cama a olhar para os

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bebéseaoutraLauradissequeasuairmãzinhaeramaisbonitadoqueabebéCarrie.

- Issoéquenãoé! -protestouLaura. -ACarrieéobebémaisbonitodomundointeiro!

-Nãoénada!-discordouaoutraLaura.-É,sim!-Nãoé,não!Amãeaproximou-se,comosedeslizassenoseulindovestidodemusselina,

edisseseveramente:-Laura!EnenhumadasLaurasdissemaisnada.OtioJorgeestavaatocarasuacorneta,quesoavaaltoeecoavanagrande

sala.O tio ria-se,gracejavaecontinuavaa tocar.EntãoopaideLaura tirouarabeca da caixa e começou a tocar também, e os pares formaram-se emquadradosecomeçaramadançar,enquantoopaimandavaobaile.

-Voltacompletaparaadireitaeparaaesquerda.-gritouopai,etodasassaiascomeçaramarodopiaretodasasbotasabater.

Oscírculos rodavame tornavama rodar, com todasas saiasa irparaumladoetodasasbotasparaoutroeasmãosaunirem-seeasepararem-senoar.

-Façamrodopiaropar! -gritouopai.–Cadacavalheirodeve inclinar-sediantedadamadasuaesquerda!

Fizeramtodosoqueopaidisse.Lauraviuasaiadamãerodopiar,viuasuacinturaestreitainclinar-seeasuacabeçamorenacurvar-se,epensouqueamãeeraamaisbonitadançarinadomundo.Arabecatocava:ÓmeninasdeBúfalo,Nãovêmestanoite,Nãovêmestanoite,Nãovêmestanoite,ÓmeninasdeBúfalo,NãovêmestanoiteDançaraoluar?

Oscírculospequenoseoscírculosgrandescontinuavamagirareagirar,assaiasturbilhonavameasbotasbatiameosparesinclinavam-seeafastavam-se,paradenovosejuntaremeinclinarem.

Aavóestava sozinhanacozinha, amexeromelaçoque fervianagrandecaldeira de cobre.Mexia a compasso com amúsica. Junto da porta, no pátioestava um balde cheio de neve limpa e, de vez em quando, a avó tirava umacolheradademelaçodacaldeiraedeitava-anumpoucodeneve,numpires.

Lauravoltouaobservarosbailarinos.OpaitocavaALavadeiraIrlandesa.Emandava:

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Dósi,damas,dósi,Apoiar,comforçaapoiar,Nodedograndeenocalcanhar.

Lauranãoconseguiaestarquietacomospés.OtioJorgeolhou-aseriu-se.Depois pegou-lhe namão e dançou um bocadinho com ela, ao canto da sala.LauragostavadotioJorge.

Estavatodaagentearirjuntodaportadacozinha,dondequeriamtrazeraavó.

O vestido da avó também era bonito: um estampado azul-escuro todosalpicadode folhasoutonais.Aavó tinhaas faces rosadas,de rir, e abanavaacabeça,comacolherdepaunamão.

-Nãopossodeixaromelaço-desculpou-se.MasopaicomeçouatocarOViajantedoArkansasetodaagentedesatoua

bater palmas ao compassodamúsica.Por isso, a avó fezumavénia e dançoualgunspassossozinha.Dançavatãobemcomoqualquerdassenhoraspresentes.

Aspalmasquaseabafaramamúsicadarabeca.Nisto,otioJorgedeuumpassochamado“vôodepombo”,queconsistiaem

saltareunirospés,fezumagrandevéniaàavóecomeçouadançarajiga.Aavóentregou a colher a uma pessoa, pôs asmãos nas ancas e virou-se para o tioJorge.Todaagentegritou,porqueaavóestavaadançarajiga.

Laurabateupalmasacompassocomamúsica,comofaziamtodasasmãos.A rabeca tocavacomonunca tocaraantes,osolhosdaavócintilavam,as suasfacesestavamvermelhase,debaixodassaias,osseussaltosbatiamtãodepressacomoasbotasdotioJorge.

Estava toda a gente entusiasmada.O tio Jorge continuava a jigar e a avócontinuava virada para ele, a jigar também.A rabeca não parava.O tio Jorgecomeçouaofegarelimpouosuordatesta.Osolhosdaavóbrilhavamcadavezmais.

-Nãoconseguesvencê-la,Jorge!-gritoualguém.OtioJorgecomeçouadançarmaisdepressa.Duasvezesmaisdepressado

queantes.Eaavótambém.Soaramnovosaplausos.Asmulheresestavamtodasa rir e a bater as palmas e todos os homens troçavam de Jorge. Ele não seimportava,mastambémnãotinhafôlegopararir.Estavaadançarajiga.

Os olhos azuis do pai de Laura reluziam, contentes. Estava em pé, aobservar Jorge e a avó, e o arco dançava sobre as cordas da rabeca. Laurasaltava,gritavaebatiaaspalmas.

Aavócontinuavaajigar.Tinhaasmãosnacinturaeoqueixolevantado,esorria. Jorgecontinuavaa jigar,masas suasbotas jánão faziam tantobarulhocomo ao princípio. Os saltos das botinas da avó mantinham, no entanto, o

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mesmo ritmo alegre e vivo. Uma gota de suor escorreu da testa de Jorge ebrilhou-lhenaface.

Derepente,levantouambososbraçosedisse,ofegante:-Estouvencido!-Eparoudedançarajiga.Ouviu-seumbarulhoterrível,comtodaagenteagritar,abaterospésea

ovacionar a avó. Ela continuou a dançar mais um minutinho e depois paroutambém.Riu-se,ofegante.OsseusolhoscintilavamexatamentecomoosdopaideLaura,quandoeleria.Jorgetambémseriaelimpavaatestacomamangadocasaco.

Nisto,aavóparouderir,virou-seecorreuomaisdepressaquepôdeparaacozinha.Arabecacalara-se,asmulheresestavamafalartodasaomesmotempoeoshomensarreliavamJorge.Mas,aoveremaquelerepentedaavó,calaram-seeficaramimóveis.

Depoiselaveioàportaqueseparavaoquartograndedacozinhaedisse:-Omelaçoestánoponto.Venhamservir-se.Recomeçoutodaagenteafalarearir.Apressaram-seairàcozinhabuscar

pratoseasairparaosencherdeneve.Aportadacozinhaestavaabertaedeixavaentraroarfrio.

Foradecasa,asestrelaspareciamgeladas,nocéu,eoarfriomordiscouasfaceseonarizdeLaura,cujarespiraçãopareciafumo.

ElaeaoutraLaura,etodasasoutrascrianças,apanharamnevelimpacomospratosedepoisvoltaramparaacozinhacheiadegente.

A avó estava junto da caldeira de cobre e, com a grande colher de pau,deitavamelaçoquenteemcadapratodeneve.Omelaçoarrefecia,transformadoemrebuçadomole,eassimquearrefeciaaspessoascomiam-no.

Podiamcomeroquequisessem,poisoaçúcardebordonuncafizeramalaninguém. E o que não faltava era melaço na caldeira e neve fora de casa.Comidoumprato,enchiam-nooutravezdeneveeaavóvoltavaadeitarumacolheradademelaço.

Quandojánãopodiamcomermaisrebuçadomole,foramparaacompridamesa que estava carregadinha de tortas de abóbora, tortas de amoras secas,bolinhosebolosgrandes.Haviapãolevedado,carnedeporcofriaepicles.Oh,comoospicleseramazedos!

Comeramtodosaténãopoderemmaisedepoisvoltaramadançar.Eaavóvoltou a tomar contadomelaçoda caldeirade cobre.Volta emeia, tiravaumbocadinhoparaumpiresemexia, à rodaeà roda.Depoisabanavaacabeçaedeitavadenovoomelaçonacaldeira.

No quarto grande continuava a animação e a alegria, com a música darabecaeobarulhodobaile.

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Porfim,aomexermaisumavezomelaçonopireseaovê-lotransformar-seempequenosgrãozinhosquepareciamareia,aavóchamou:

-Depressa,pequenas!Estáagranular!AtiaRubi,atiaDóciaeamãedeLauradeixaramobaileeforamacorrer

paraacozinha.Pegaramemcaçarolasgrandesepequenase,assimqueaavóasencheu de melaço, arranjaram logo outras. Puseram as cheias de lado, paraarrefeceremeomelaçosetransformaremaçúcardebordo.

-Agoravãobuscarasformasdepastéis,paraascrianças-disseaavó.Havia uma forma de pastel, ou pelo menos uma chávena partida ou um

púcaro,paracadacriança.Olharam todas ansiosamente enquanto a avó distribuía colheradas de

melaço. Talvez não chegasse para todos, e, então, alguém teria de semostraraltruístaebem-educado…

Mas o melaço chegou à justa para todos. As últimas raspas da caldeiraderamparaencherperfeitamenteaúltimaforminha.Ninguémficoudefora.

Amúsicaeobailecontinuaram.LauraeaoutraLauraandavampelasala,aobservarosdançarinos.Depoissentaram-senochão,aumcanto,aobservar.ObaileeratãobonitoeamúsicatãoalegrequeLauratinhaacertezadequenuncasecansariadeumacoisanemdeoutra.

Todasassaiasbonitascontinuavamarodopiar,asbotasabaternochãoearabecaatocaralegremente.

De repente, Laura acordou, atravessada aos pés da cama da avó. Era demanhã. A mãe, a avó e a Carrie também estavam na cama. O pai e o avôdormiamnochão,enroladosemcobertores,juntodalareira.Marianãoseviaemladoalgum-nãoseviaporqueestavaadormircomatiaDóciaeatiaRubi,nacamadelas.

Nãotardoualevantar-setodaagente.Haviapanquecasemelaçodebordoparaodesjejum.Depoisopaifoibuscaroscavaloseotrenóparaaporta.

OpaiajudouamãeeCarrieainstalar-se,enquantooavôpegavaemMariaeotioJorgeemLauraeaspassavamporcimadosladosdotrenóparaapalhadofundo.Opaiaconchegouaspeleseasmantasàvoltadelaseoavô,aavóeotio Jorge ficaram a dizer: “Adeus, adeus!”, enquanto eles se embrenhavam naFlorestaGrande,acaminhodecasa.

O sol estava quente e os cavalos a trote levantavam bocadinhos de neveenlameada, com os cascos. Laura via as suas pisadas, atrás do trenó:atravessavamacamadadenevefinaechegavamàlama.

-Antesdeanoitecer,desaparecerátodaanevedoce-disseopai.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

9IDAÀCIDADE

Quandoanevedocedesapareceu,chegouaPrimavera.Cantavampássarosnasaveleirasaolongodavedação,aervacrescia,denovoverdinha,eaflorestaestava cheia de flores silvestres.Havia por toda a parte ranúnculos e violetas,campainhaseumasestrelinhasminúsculas,queeramasfloresdaerva.

Assim que os dias aqueceram, Laura eMaria pediram que as deixassemandardescalças.Aoprincípio,sópodiamcorreratéaomontedelenhaevoltar,depésdescalços.Nodiaseguinte,jápuderamirmaislongee,porfim,osseussapatosforamensebadoseguardadoseelaspassaramaandardescalçastodoodia.

Todas as noites tinham de lavar os pés, antes de se deitarem.Abaixo dabainhadassaias,osseustornozeloseosseuspésestavamtãobronzeadoscomoasuacara.

Tinhamcasinhasdebrincardebaixodosdoisgrandescarvalhosfronteirosàcasa.A deMaria ficava debaixo da árvore deMaria e a deLaura debaixo daárvore de Laura.A ervamacia fazia de carpete verde e as folhas das árvoreseramostelhados,atravésdosquaisviambocadinhosdecéuazul.

Opai fezumbalouçode cascade árvore resistente e suspendeu-odeumgranderamobaixodaárvoredeLaura.ObalouçoeradeLauraporqueestavanasuaárvore,maselanãopodiaseregoístaetinhadedeixarMariaandartambémdebalouçoquandoqueria.

Maria tinhaumpires rachadoparabrincareLauraumabonitachávena,aquesófaltavaumbocado.CarlotaeNelinha,assimcomoosdoisbonequinhosdemadeiraqueopaifizera,viviamcomelasnascasasdebrincar.Todososdiasfaziamchapéusnovos,defolhas,paraCarlotaeNelinhaassimcomopequeninospiresechavenazinhas,tambémdefolhas,paraporemnamesa.Amesaeraumabonitapedralisa.

SukeyeRosinha,asvacas,andavamagoraàsoltanafloresta,parapoderemcomer a erva fresca e as suculentas folhas novas. Havia dois bezerrinhos noestábuloeseteporquinhosnapocilga,comaporca.

Naclareiraqueabriranoanoanterior,opaiaravaaterraàvoltadoscotosdasárvoresesemeava.Umanoite,aovoltardotrabalho,perguntouaLaura:

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-Sabesoquevihoje?Elanãosabia,claro.-Bem,quandoestavaatrabalharnaclareira,estamanhã,levanteiacabeça

e vi um gamo, na orla da floresta. Era uma corça, uma corça mãe, e nãoadivinhamoqueestavacomela!

-Umcorçozinhobebé! - responderamLauraeMariaaomesmo tempo,abateraspalmas.

-Sim,eraoseucorçozinho-confirmouopai.-Eraumbichinhobonito,deumacorcastanhamuitoclaraecomunsgrandesolhosescuros.Tinhapatinhasminúsculas, não muito maiores do que o meu polegar, pernas fininhas e umfocinhomuitomacio.

“Olhavaparamim,comosgrandesolhosmeigos,comoseperguntasseasimesmooqueseriaeu.Nãotinhamedonenhum.

-Nãomatariaumcorçozinhobebé,poisnão,Pá?–perguntouLaura.-Não, nunca.Nem o corçozinho, nem a suamãe, nem o seu pai.Agora

acabou-se a caça, até todos os animaizinhos selvagens crescerem.Teremos depassarsemcarnefrescaatéaoOutono.

O pai disse que, quando terminasse as sementeiras, iriam todos à cidade.LauraeMariatambémpodiamir.Agorajátinhamidadeparaisso.

Ficaram muito entusiasmadas e no dia seguinte tentaram brincar a ir àcidade.Nãopodiambrincarmuitobem,porquenão tinhamacertezade comoera uma cidade. Sabiam que tinha um armazém, mas nunca tinham vistonenhum.

Depoisdisso,CarlotaeNelinhaperguntavamquasetodososdiassepodiamiràcidade.MasLauraeMariarespondiam-lhessempre:“Não,querida,esteanonãopodesir.Talvezparaoanopossasir,seteportaresbem.”Atéqueumanoiteopaianunciou:

-Amanhãvamosàcidade.Nessa noite, embora estivessem nomeio da semana, amãe deu banho a

Laura e aMaria e arranjou-lhes o cabelo: dividiu-lhes o cabelo comprido emmadeixas,penteoucadamadeixacomumpentemolhadoeenrolou-amuitobemenroladanumbocadinhodetrapo.Ficaramcomacabeçacheiadealtinhosenós,o que não era muito cómodo, na almofada, mas de manhã teriam o cabeloencaracolado.

A agitação era tanta que não adormeceram logo.Amãe não se sentou acosturar,comodecostume,poistevedepreparartudoparaumdesjejumrápidoededeixarprontasasmelhoresmeias,saiasevestidosdeLauraeMaria,acamisaboa do pai e o seu próprio vestido estampado castanho-escuro, com florinhasvermelhas.

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Osdiasagoraerammaiscompridos.Demanhã,amãeapagouocandeeiro,antes de acabarem de tomar o desjejum. Estava uma bonita e claramanhã dePrimavera.

AmãeinsistiucomLauraeMariaparaquecomessemdepressae lavoualouçanuminstantinho.Depoiselascalçaramasmeiaseossapatos,enquantoelafaziaascamas.Emseguida,amãeajudou-asavestirosmelhoresvestidos:odechitaazul-porcelana,deMaria,eodechitaencarnado-escura,deLaura.MariaabotoouascostasdovestidodeLauraeamãefezomesmoaodeMaria.

A mãe tirou os bocadinhos de trapo do cabelo delas e penteou-o emcompridoscaracóisredondos,quelhescaíamatéaosombros.Servia-sedopentetão depressa que os dentes faziam doermuito. O cabelo deMaria era de umlindotomdourado,masodeLauraeradeumcastanhocordeterra.

Feitososcaracóis,amãepôs-lhesastoucasdosol,atadascomfitasdebaixooqueixo.Prendeuagolacomoalfinetedeouroeestavaapôrochapéuquandoopaiconduziuacarroçaparaacancela.

Escovara tão bem os cavalos que eles reluziam. Além disso, varrera acarroçamuitobemvarridaepuseraumcobertor limponobanco.Amãe,comCarrie ao colo, sentou-se no banco com o pai, enquanto Laura e Maria sesentavamnumatábua,atravessadaatrásdobanco.

Sentiram-se muito contentes ao atravessarem a floresta alegrada pelaPrimavera. Carrie ria e palrava, a mãe sorria e o pai assobiava, enquantoconduziaoscavalos.Osolestavaluminosoequente,naestrada,edosbosquesfrondososvinhamodoresfrescoseagradáveis.

Apareciam coelhos na estrada, apoiados nas patas traseiras, com asdianteiras penduradas, o nariz a fungar e o sol a brilhar-lhes entre as orelhasaltas,semprea tremer.Depois fugiam, tãodepressaquequasesóse lhesviaobrilhodacaudabrancapequenina.Porduasvezes,LauraeMariaviramgamosaolharparaeles,comosgrandesolhosescuros,dassombrasentreasárvores.

Eram onze quilômetros até à cidade, que se chamava Pepin e ficava namargemdolagoPepin.

Passadomuitotempo,Lauracomeçouavislumbrarmanchasdeáguaazul,entreasárvores.Aestradaduracedeuolugaraareiamacia.Asrodasdacarroçaenterravam-senelaprofundamenteeoscavalossuavam,detantoteremdepuxar.Opaiparavafrequentemente,paraosdeixardescansaralgunsminutos.

De repente, a estrada deixou a floresta e Laura viu o lago. Era tão azulcomoocéuepareciaqueseprolongavaatéàbeirinhadomundo.Atéondeasuavista alcançava, só havia água azul e lisa. Muito longe, o céu e a águaencontravam-seevia-seumalinhaazulmaisescura.

Océuera enorme, lánoalto,Lauranunca imaginaraqueocéu fosse tão

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grande. Havia tanto espaço vazio à volta dela que se sentiu pequenina eassustada-econtenteporospaisestaremcomela.

Otempoficou,desúbito,maisquente.OSolestavaquaseporcimadeles,nograndecéuvazio,eafrescaflorestaficavaafastadadamargemdolago.AtéaGrandeFlorestapareciamaispequenadebaixodetantocéu.

Opaideteveoscavalosevirou-separatrás,nobanco,enquantoapontavacomochicoteparaafrente.

-Cáestamos,LauraeMaria!-anunciou.-AliestáacidadedePepin.Laurapôs-seempé,natábua,parapoderveracidade,eopaisegurou-apor

umbraço,paraquenãocaísse.Depoisdever, ficouquase sempoder respirar.Agora compreendia o que Ianque Dudle sentia, ao dizer que não podia ver acidadeporqueascasaserammuitas.

Mesmonamargemdolagohaviaumedifíciogrande.Opaidisse-lhequeeraoarmazém.Emvezdeserfeitodetroncos,eradetábuaslargasecinzentas,aoalto.Tinhaareiaatodaavolta.

Atrásdoarmazémhaviaumaclareiramaiordoqueadopai,nafloresta,eentre os cotos das árvores cortadas havia tantas casas que Laura nem asconseguia contar. Também não eram de troncos, mas sim de tábuas, como oarmazém.

Lauranuncaimaginaraquepudessehavertantascasasetãopertoumasdasoutras.Claroqueerammuitomaispequenasdoqueoarmazém.Umadelaseradetábuasnovas,queaindanãotinhamtidotempodeficarcinzentas;tinhaacoramareladamadeiraacabadadecortar.

Morava gente em todas aquelas casas, de cujas chaminés saía fumo.Embora não fosse segunda-feira, uma mulher estendera a roupa a corar nosarbustospróximosdasuacasa.

Alguns rapazes e moças brincavam ao sol, no espaço vazio entre oarmazémeascasas.Saltavamdeumcotodeárvoreparaoutro,agritar.

-Bem,cáestáPepin-disseopai.Lauralimitou-seaacenarcomacabeça.Olhava, olhava, e não era capaz de dizer palavra. Passados momentos,

voltouasentar-seeoscavalosprosseguiram.Deixaram a carroça na margem do lago. O pai desatrelou os cavalos e

prendeuumacadaladodacarroça.DepoisdeuamãoaLauraeaMariae,comamãeaoladodebebéaocolo,láforampelaareiasoltaacaminhodoarmazém.AareiaquenteentravapelossapatosdeLaura.

Haviaumagrandeplataforma,àfrentedoarmazém,comalgunsdegrausauma das extremidades. O coração de Laura batia tão depressa que ela malconseguiasubirosdegraus.Tremiadospésàcabeça.

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Eranaquelearmazémqueopaitrocavaassuaspeles.Quandoentraram,odonodoarmazémreconheceu-o.Saiudetrásdobalcãoparacumprimentaropaieamãe,edepoisLauraeMariativeramdemostrarqueerammeninaseducadas.

- Como está? - cumprimentouMaria, mas Laura não foi capaz de dizernada.

Ohomemdisseaopaieàmãe:- Têm aqui uma bonitamenina - e admirou os caracóis louros deMaria;

masnãodissenadaacercadeLauranemdosseuscaracóis,queeramcastanhosefeios.

Oarmazémestavacheiodecoisasqueeraumregalover.Aumladohaviaprateleiras cheias de tecidos estampados e chitas. Bonitos tons rosados, azuis,encarnados,castanhoseescarlates.Nochão,aolongodosladosdosbalcõesdepranchas,haviabarrisdepregos,barrisdechumbocinzentoeredondoegrandesbaldesdemadeiracheiosdedocesatéacima.Tambémhaviasacasdesalesacasdeaçúcar.

No meio do armazém havia um arado de madeira reluzente e com umarelhaquenãobrilhavamenos,cabeçasdemachadodeaço,cabeçasdemartelo,serras e toda a espécie de facas – facas de caça, facas de esfolar, facas demagarefeenavalhas.Haviabotasgrandesebotaspequenasesapatosgrandesesapatospequenos.

Laurapoderiapassaralisemanasaolharquenãoveriatodasascoisasquehavianoarmazém.Nãoimaginaraquehouvessetantascoisasnomundo.

O pai e a mãe demoraram muito tempo a fazer negócio. O dono doarmazémtiravarolose rolosdebonitosestampadoseabria-osparaamãever,apalpareolharparaopreço.LauraeMariapodiamver,masnãopodiamtocar.Cada nova cor e cada novo padrão lhes pareciam mais bonitos do que osanteriores,eeramtantos!Lauranãosabiacomoamãeconseguiriaescolher.

A mãe escolheu dois tecidos diferentes para fazer camisas para o pai ecotimcastanhopara lhe fazerummacacão.Depoiscomproupanobrancoparalençóiseroupainterior.

Opaicomproutecidoparaamãefazerumaventalnovo.-Oh,não,Carlos,nãopreciso,palavra!-protestouamãe.Masopairiu-seedisse-lhequeescolhessedepressa,senãoeleescolheriao

encarnado com os grandes desenhos amarelos. A mãe sorriu e corou e láescolheu um estampado combotões e folhas de rosa num fundo acastanhado-claro.

Depois o pai comprou uns suspensórios e um pouco de tabaco para ocachimbo e a mãe comprou meio quilo de chá e um pacotinho de açúcar dearmazém, para ter em casa quando tivessem visitas. Era um açúcar castanho-

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claroenãocastanho-escurocomoodebordo,queamãeusavatodososdias.Feitas todas as compras, o dono do armazém deu um pirulito aMaria e

outroaLaura.Ficaramtãoadmiradase tãocontentes,queselimitaramaolharparaaguloseima.Depois,Marialembrou-seeagradeceu:

-Obrigada.MasLauracontinuousemsercapazde falar.Estavam todosàesperaque

dissesse qualquer coisa, mas ela não conseguia dizer nem uma palavrinha. Amãetevedelheperguntar:

-Quesediz,Laura?Entãoelaabriuaboca,engoliuemsecoemurmurou:-Obrigada.Depois disso, saíram do armazém. Ambos os pirulitos eram brancos,

achatados, finos e da forma de um coração. E tinham palavras escritas aencarnado,queamãe leu.OdeMariadizia:Vermelhassãoas rosas,Azuisasvioletas,Eoaçúcarédoce,Tãodocecomotu.

OdeLauradiziaapenas:Docesparaadocinha.Ospirulitoseramexatamentedomesmotamanho,masasletrasdodeLaura

erammaiores.Voltaramtodos,pelaareia,paraacarroça,queficaranamargemdolago.O

paideuaoscavalos,nofundodacarroça,aaveiaquetrouxeraparaeles,eamãeabriuocestodopiquenique.

Sentaram-se na areia quente, perto da carroça, e comeram pão commanteigaequeijo,ovoscozidosebolinhos.AsondasdolagoPepindesfaziam-senapraia,aseuspés,easeguirrecuavam,comummurmúriomuitoleve.

Depois do almoço, o pai voltou ao armazém, para conversar um bocadocomoutroshomens.Amãesentou-secomaCarrieaocolo,muitosossegada,atéelaadormecer.MasLauraeMariacorreramaolongodamargemeapanharambonitaspedrinhastantasvezeslevadasetrazidaspelasondasquetinhamficadolisinhasebrilhantes.

NãohaviapedrinhasassimnaGrandeFloresta.Quando encontrava uma bonita, Laura guardava-a na algibeira. Havia

tantas, cada umamais bonita do que a anterior, que não tardou a ficar com aalgibeira cheia. Depois o pai chamou e elas correram para a carroça, pois oscavalosestavamatreladoseeramhorasdevoltarparacasa.

Laurasentia-setãofelizaocorrerpelaareiaparaopai,comtodasaquelaslindas pedrinhas na algibeira! Mas quando o pai lhe pegou e a colocou nacarroça,aconteceuumacoisahorrível.

Aspedrinhaseramtãopesadasquelhearrancaramaalgibeiradovestido.Aalgibeiracaiueaspedrinhasrolaramtodaspelofundodacarroça.

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Lauracomeçouachorar,porterestragadooseumelhorvestido.Amãeentregouobebéaopai e foinum instanteverosestragos.Depois

dissequenãohavianovidade.- Não chores, Laura, eu posso arranjar isso. Não está estragado, e a

algibeiratambémnão.Aalgibeiraeraumsaquinhocosidojuntamentecomacosturadasaiaeque

pendia debaixo dela. Só as costuras se tinham descosido e amãe poderia pôroutravezaalgibeira.Ovestidoficariacomo-novo.

-Apanhaaspedrinhas,Laura-disseamãe.-Eparaaoutraveznãosejastãosôfrega,nãoqueirastodas.

Laura apanhou as pedras,meteu-as na algibeira e colocou a algibeira nocolo.Não se importoumuito quandoo pai se riu por ela ser umamenina quetinhamaisolhosdoquebarriga,comosecostumavadizer.

Nunca aconteciam coisas daquelas a Maria. Maria era uma menina bemcomportada, que nunca sujava o vestido e tinha maneiras.Maria tinha lindoscaracóislourosenoseucoraçãodeaçúcarestavamescritosunsversos.

Mariapareciamuitoboazinhaebonita, todaarranjadinhae limpa,sentadanatábuaaoladodairmã.Lauranãoachoujusto.

Mas,apesardetudo,tinhasidoumdiamaravilhoso,odiamaismaravilhosode toda a sua vida. Pensou no bonito lago, na cidade que vira e no grandearmazém com tantas coisas. Segurava as pedras cuidadosamente no colo elevavaocoraçãodeaçúcarbemembrulhadono lenço,poisquandochegasseacasaqueriaguardá-loparasempre.Erabonitodemaisparaocomer.

A carroça ia seguindo aos solavancos, pela estrada que levava a casaatravésdaGrandeFloresta.OSolpôs-seeaflorestaescureceu,masopaitinhaasuaespingarda.

O suave luar coava-sepelas copasdas árvores e punhamanchasde luz esombranaestrada,emfrente.Oscascosdoscavalosfaziamumclip-clop,clip-clopalegre.

LauraeMarianãodiziamnada,porqueestavammuitocansadas,eamãetambém ia calada,porque levavaCarrie adormir, ao colo.Masopai cantava,baixinho:Podemosviverentreprazeresepaláciossempar,Mas,pormuitohumildequeseja,nãohánadacomoolar.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

10VERÃO

Era Verão e as pessoas visitavam-se umas às outras. Às vezes, o tioHenrique, ou o tio Jorge, ou o avô, vinham da Grande Floresta visitar o pai.Entãoamãeiaàporta,perguntavacomoestavamtodosedizia:

-OCarlosestánaclareira.Depois fazia um almoço maior do que o habitual e a hora do almoço

também era maior do que de costume. O pai, a mãe e a visita ficavam umbocadinhosentadosaconversar,antesdevoltaremparaotrabalho.

Às vezes, a mãe deixava Laura e Maria atravessar a estrada e descer aencosta, para visitar a Srª. Peterson. Os Petersons tinham-se mudado para alihavia pouco tempo. A sua casa era nova e estava sempre muito limpa earrumada,poisaSrª.Petersonnão tinha filhaspequenasparaadesarrumarem.Era sueca e deixava Laura e Maria verem as coisas bonitas que trouxera daSuécia:rendas,bordadoscoloridoselouças.

A Srª. Peterson falava-lhes em sueco e elas falavam-lhe em inglês, masentendiam-se perfeitamente umas às outras. Dava-lhes sempre um biscoito,quandoseiamembora,eelasiam-nocomendoàsdentadinhasmuitopequeninas,enquantoregressavamacasa.

LauracomiaexatamentemetadedoseubiscoitoeMariaexatamentemetadedodela;asoutrasmetadeseramparaabebéCarrie.Quandochegavamacasa,Carrie ficava com dois meios biscoitos, o que era o mesmo que um biscoitointeiro.

Não era justo. Elas só queriam repartir igualmente os biscoitos com airmãzinha.MasseMariaguardassemetadedoseubiscoitoeLauracomesseodela todo, ou seLaura comessemetade eMariao comesse todo, isso tambémnãoseriajusto.

Não sabiam que fazer. Por isso, cada uma guardava metade e dava-a aCarrie.Noentanto,achavamsemprequenãoerajusto.

Devezemquando,umvizinhomandavaavisarqueafamíliaiapassarodiacom eles. Então a mãe limpava melhor a casa, fazia mais comida e abria opacotedeaçúcardoarmazém.Nodiaprevisto,paravaumacarroçaaoportão,demanhã,eelastinhamcriançasdesconhecidascomquembrincar.

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QuandoocasalHuleattosvisitou,trouxeconsigoEvaeClarêncio.Evaerauma menina bonita, de olhos escuros e caracóis pretos, que brincava comcuidado e nunca se sujava nem amarrotava. Maria gostava disso, mas LauragostavamaisdebrincarcomClarêncio.

Clarêncioeraruivoesardentoeestavasemprearir.Asuaroupatambémera muito bonita. Usava um paletó azul todo abotoado à frente, com botõesdouradosbrilhanteseenfeitadocomgalão,eosseussapatostinhambiqueirasdecobre.

AstirasdecobrequelheatravessavamasbiqueirasdossapatosbrilhavamtantoqueLauraatétinhapenadenãoserrapaz.Asmeninasnãousavamsapatosreforçadosdecobre.

LauraeClarênciocorreram,saltaramesubiramàsárvores,enquantoMariaeEvapasseavammuitosossegadaseconversavam.

AmãeeaSrª.Huleattestavamemcasaaconversareaverumfigurinoquea Srª. Huleatt levara. O pai e o Sr. Huleatt andaram a ver os cavalos e assementeiraseafumarcachimbo.

Umavez,atiaLottyfoipassarodiacomeles.Nessamanhã,Lauratevedeestarquietamuitotempo,enquantoamãelhetiravaospapelotesdocabeloelhopenteavaemcaracóis compridos.Maria já estavapronta, sentadamuitodireitanuma cadeira, comos caracóis louros a brilhar e o seu vestido azul-porcelanamuitolimpoeengomado.

Lauragostavadoseuvestidoencarnado.Masamãepuxava-lheocabelodeumamaneirahorrível.Alémdisso,comoeracastanhoemvezdelouro,ninguémreparavanele.MastodaagentereparavanodeMariaeoadmirava.

- Pronto! - exclamou a mãe, por fim. - O teu cabelo está muito bemencaracoladoeaLottyvemaí.Vãoacorrertercomela,asduas,eperguntem-lhesegostamaisdecaracóiscastanhosoulouros.

Laura eMaria saíram de casa e correram pelo carreiro abaixo, pois a tiaLottyjáestavaaoportão.AtiaLottyeraumameninacrescida,muitomaisaltadoqueMaria.Traziaumbonitovestidocor-de-rosaeseguravaumatoucadesoldamesmacorporumafita.

-Dequegostamais,tiaLotty,decaracóiscastanhosoudecaracóislouros?-perguntou-lheMaria.

Amãedissera-lhesqueperguntassemeMariaeraumameninamuitobemcomportada,quefaziasempreexatamenteoquelhemandavam.

EnquantoesperavaarespostadatiaLotty,Laurasentiu-semuitotriste.-Gostomaisdosdois!-respondeuatiaLotty,asorrir,deuamãoaambas,

umadecadalado,ecorreramparaaporta,ondeamãeasesperava.Osolentravaajorrospelasjanelaseestavatudomuitoarrumadoebonito.

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Amesaestavacobertaporumatoalhavermelhaeofogãodecozinharreluzia,muito preto.Através da porta do quartoLaura via a camabaixa no seu lugar,debaixodacamaalta.Aportadadespensaestavatodaaberta,oquepermitiavere cheirar as coisas boas das prateleiras. A Susana Preta desceu, a ronronar, aescadadosótão,ondeestiveraadormirumasoneca.

Era tudo tãoagradável,eLaurasentia-se tãobemdispostae tãocontente,que ninguém imaginaria que pudesse ser tão mazona como foi nesse fim detarde.

A tia Lotty tinha-se ido embora e Laura e Maria estavam cansadas eamuadas. Estavam no monte de lenha, a encher um cesto de cavacos paraacenderofogo,demanhã.Detestavamapanharcavacos,mastinhamdeofazertodososdias.Enaquelediapareciaquelhesdesagradavamaisdoquenunca.

LauraapanhouocavacomaioreMariadisse:-Nãomeimporto,atiaLottygostamaisdomeucabelo.Ocabelolouroé

muitomaisbonitodoqueocastanho.Laurasentiuumnónagargantaenãofoicapazdefalar.Sabiaqueocabelo

louro era mais bonito do que o castanho. Como não podia falar, estendeurapidamenteamãoedeuumabofetadaaMaria.

Ouviulogoopaichamar:-Vemcá,Laura.Foidevagar,aarrastarospés.Opaiestavasentadopertodaportaevira-a

bateremMaria.-Lembras-tedequeeu lhesdissequenãodeveriambaterumaàoutra? -

disseopai.-MasaMariadisse…-começouLaura.-Issonãofazdiferençanenhuma-interrompeu-aopai.-Devesfazeroque

eudigo.Depoisopaitirouumacorreiadaparedeebateu-lhecomela.Laura sentou-se numa cadeira, a um canto, a soluçar.Quando os soluços

passaram, amuou.Aúnica coisaque lhedava satisfação erapensarqueMariatinhadeencherocestodecavacossozinha.

Porfim,quandoescurecia,opaidisse,denovo:-Vemcá,Laura.Asuavozerabondosae,quandoLauraseaproximou,sentou-anojoelhoe

apertou-aasi.Elaaninhou-senocôncavodoseubraço,comacabeçaencostadaaoseuombroeosolhosparcialmentecobertospelacompridabarbacastanhadopai.Estavatudobemoutravez.

Contouaopaioquesepassaraedepoisperguntou-lhe:-Nãogostamaisdecabelocastanhodoquedelouro,poisnão?

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-Omeucabeloécastanho,Laura.Nãotinhapensadonisso!Ocabelodopaieracastanho,assimcomoasua

barbaeracastanhaeelaachavaessacormuitobonita.Masmesmoassimsentiu-sesatisfeitaporMariaterdeapanharoscavacossozinha.

NasnoitesdeVerãoopainãocontavahistóriasnemtocavarabeca.Osdiaserammuitocompridoseeleestavacansado,depoisdetrabalharodiainteironoscampos.

Amãetambémtinhamuitoquefazer.LauraeMariaajudavam-naamondarahortaeadardecomeraosviteloseàsgalinhas.Tambémrecolhiamosovoseajudavamafazeroqueijo.

Quandoaervaestavaaltaebastanaflorestaeasvacasdavammuitoleite,eratempodefazerqueijo.

Era necessário que alguémmatasse um bezerro, pois não se podia fazerqueijosemcoalheira,queéoforrodoestômagodeumbezerronovo.Mastinhadesermuitonovomesmoenãotercomidonadaalémdeleite.

Laura tinhamedo de que o paimatasse um dos bezerrinhos do estábulo.Eram tão queridos! Um era fulvo e o outro vermelho, tinham um pelomuitomacio e uns grandes olhosmuito espantados.O coração de Laura começou abatermaisdepressaquandoamãefaloucomopaiarespeitodoqueijo.

Opaidissequenãomatarianenhumdosbezerros, pois eramvitelinhas equandocrescessemseriamvacas.Foivisitaroavôeo tioHenrique,para falarcom eles acerca do queijo, e o tio Henrique disse que mataria um dos seusbezerros.Haveria coalheira que chegassepara a tiaPolly, para o avô e para amãedeLaura.

Por isso, o pai voltou a visitar o tio Henrique e trouxe um bocado doestômago do bezerrinho. Parecia um bocado de couro macio, branco-acinzentado,lisinhodeumladoecheiodesulcoseasperezasdooutro.

Quando as vacas foram mungidas, à noite, a mãe guardou o leite emcaçarolas. De manhã retirou a nata, para fazer manteiga, mais tarde. Depois,quando o leite damanhã arrefeceu, juntou-o ao leite desnatado e pôs tudo aofogo,aaquecer.

Antes pusera de molho, em água quente, um bocadinho de coalheiraembrulhadonumpano.

Quandooleiteaqueceuosuficiente,amãeespremeuaáguatodadopanoque continha a coalheira e deitou a águano leite.Mexeumuito bemedeixouficaramisturanumsítioquente,juntodofogão.Poucodepois,tinhaengrossadoeestavatransformadanumamassamacia,quetremiatodacomopudim.

Comumafacacomprida,amãecortouamassaemquadradinhosedeixouficar,enquantoacoalhadaseseparavadosorodoleite.Depoisdeitoutudonum

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pano,paraosoroaguadoeamareladosecoar.Quando jánãoescorriadopanosoronenhum,amãedespejouacoalhada

numagrandecaçarola,salgou-aemexeu-amuitobem.LauraeMariaestavamsempreaseulado,paraaajudaremnoquepodiam.

Adoravamcomerbocadinhosdecoalhada,quandoamãeasalgava.Rangiaentreosdentes,comoborracha.

O pai fizera uma bancada com uma tábua, debaixo da cerejeira, nastraseiras,paracomprimiroqueijo.Abriradoissulcosaocompridodeumatábuae apoiara-a em dois toros, um deles um bocadinhomais alto do que o outro.Debaixodesteúltimoestavaumbaldevazio.

Amãepôsaformademadeiradoqueijoemcimadatábua,forroutodoointeriorcomumpanolavado,úmido,eencheuaformadepedaçosdecoalhadasalgada.Cobriucomoutropanolavadoeúmidoepôs-lheemcimaumarodelademadeira, cortada demodo a encaixar na forma.Depois colocou umapedrapesadaemcimadarodelademadeira.

Durantetodoodiaarodelafoibaixandodevagarinho,sobopesodapedra,e o resto do soro, obrigado assim a sair, foi escorrendo pelos sulcos da tábuaparaobalde.

Namanhãseguinte,amãetiroudaformaoqueijoredondo,amarelo-claro,grandecomoumabilhade leite.Depois fezmaiscoalhadaevoltouaencheraforma,quesechamavacincho.

Todasasmanhãstiravaoqueijonovodocinchoeoaparava,paraficarliso.Depoiscosia-lheàvoltaumpanobemapertado,quecobriademanteigafresca.Oqueijoia,assim,paraumaprateleiradadespensa.

Todos os dias, limpava cuidadosamente os queijos um por um, com umpanoúmido,voltavaacobri-losdemanteiga frescae repunha-osnaprateleira,mascomoladoqueestiveraparabaixoviradoparacima.Aofimdemuitosdias,oqueijoestavacuradoetinhaumacascagrossaatodaavolta.

Então a mãe embrulhava-os em papel, um por um, e colocava-os naprateleiramaisalta.Agorajásórestavacomê-los.

Laura eMaria gostavamda época de fazer queijo.Gostavamde comer acoalhadaquelhesrangianosdentes,enãogostavammenosdecomerasaparasque a mãe tirava dos grandes queijos redondos e amarelos, para os tornarlisinhosantesdeosenvolvernopano.

Amãeria-sedelasporcomeremqueijoverde.-HáquemdigaqueaLuaéfeitadequeijoverde-dizia-lhes.O queijo novo parecia-se mesmo com a Lua redonda, quando ela surgia

atrásdasárvores.Masnãoeraverde:eraamarelo,comoaLua.-Chama-severdeporqueaindanãoestácurado-explicavaamãe.-Quando

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estivercurado,deixarádeserqueijoverde.-MasaLuaémesmofeitadequeijoverde?-perguntouMaria,eamãeriu-

se.-Creioqueaspessoasdizemissoporqueelaseparececomumqueijoverde

-respondeu.-Masasaparênciasiludem.Depois,enquantolimpavatodososqueijosverdeseoscobriademanteiga,

falou-lhes da Lua fria e morta, que era como um pequeno mundo onde nãocrescianada.

Noprimeirodiaemqueamãefezqueijo,Lauraprovouosoro.Provou-osemdizernadaàmãe,masquandoelaseviroueviuasuacara, riu-se.Nessanoite, enquanto lavava a louça do jantar e Maria e Laura limpavam, a mãecontouaopaiqueLauraprovaraosoroenãogostara.

-Nãomorrerias de fome como soro do leite comque amãe faz queijo,comoovelhoGrimesmorreucomodamulher-comentouopai.

Laurapediu-lhequecontasseoqueaconteceraaovelhoGrimes.Por isso,apesardecansado,opaitirouarabecadacaixaetocouecantouparaela:MorreuovelhoGrimes,pobrecoitado,Avê-lonuncamaisvoltaremos;Usavaumsobretudocinzento,roído;Abotoadoàfrentecombotõespequenos.AmulherfaziaqueijodeleitedesnatadoEovelhoGrimesbebiaosorofraquinho.VeioumventoLestedooestesopradoElevoupelosaresovelhoGrimes,pobrezinho.

-Aítens!-exclamouopai.-Elaeraumamulhermesquinha,umaforreta.Senão tivessedesnatadoo leite todo, teriaescorridoumpoucodenatacomosoroeovelhoGrimestalvezsetivesseaguentado:

“Maselatiraraanatatoda, toda,eopobredoGrimesficoutãomagrinhoqueoventoolevou.

Mortinhodefome.Depoisopaiolhouparaamãeeacrescentou:-Ninguémmorreriadefomecontigopresente,Carolina.-Poisnão-concordouamãe.-Ninguémmorreriadefomesetutambém

estivessespresenteparaganharonossosustento.Opai ficou contente.Era tudo tão agradável, as portas e as janelas todas

abertasparaanoiteestival,otinidoalegredospratosqueamãelavavaeMariaeLaura limpavam e o pai a guardar a rabeca, todo sorridente e a assobiarbaixinho!

Passadosmomentos,opaidisse:-AmanhãdemanhãvouacasadoHenrique,pedir-lheemprestadaaenxada

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de surribar. Os rebentos estão a ficar-me pela cintura, à volta dos tocos dostroncos,notrigal.Umhomemtemdeandarsempreatentoeacortá-los,senãoaflorestavoltaaocuparoseulugar.

Demanhãcedopartiu apé, para casado tioHenrique.Masnão tardouavoltarapressadamentepara trás,aatrelaroscavalosàcarroçaeameternelaomachado, as duas tinas, a celha da barrela e todos os baldes de zinco e demadeiraquetinham.

-Nãoseiseprecisareidetodasestascoisas,Carolina,masficariafuriososeprecisasseenãoastivesselevado.

-Masqueé?Queé?-perguntouLaura,aossaltos,todaagitada.-Opaiencontrouumaárvore-cortiço-respondeu-lheamãe.-Talveznos

tragaalgummel.Opaisóvoltouaomeio-dia.Laura,queestiveraaesperá-lo,correuparaa

carroça,assimqueelaparoujuntodopátiodoestábulo.Masnãoconseguiuveroquevinhaládentro.

- Carolina! - chamou o pai. - Vem buscar este balde de mel, para eudesatrelaroscavalos.

Amãeaproximou-se,decepcionada.-Bem,Carlos,mesmosóumbaldedemeljáéalgumacoisa…Depoisolhouparadentrodacarroçaelevantouasmãos.Opairiu-se.Todos os baldes estavam cheios até acima e a escorrermel dourado. As

duastinastambémestavamcheias,assimcomoacelhadabarrela.Amãeeopai andarampara trás eparadiante, a levarpara casa asduas

tinas,acelhaetodososbaldes.Amãeencheuumatravessadepedaçosdouradosdefavosdemeletapoumuitobemorestantecompanoslavados.

Aoalmoçocomeramtodoomeldeliciosoquelhesapeteceueopaicontou-lhescomoencontraraaárvoredasabelhas.

-Não levei aespingardaporquenão iacaçare, comoéVerão,nãohaviagrandeperigode terproblemas.Aspanteraseosursosestão tãogordos,nestaépocadoano,quesetornampreguiçososemansos.

“Bem, meti por um atalho, na floresta, e quase choquei com um grandeurso.Contorneiumamoitadearbustoseláestavaele,aumadistânciaquenãoeramaiordoqueestasala.

“Olhou para mim e creio que viu que eu não levava espingarda. Dequalquermodo,nãomeprestoumaisatenção.

“Estavaparadojuntodeumagrandeárvore,comabelhasazumbiratodaavolta.Elasnãoopodiampicar,atravésdopelodenso,eele ia-asafastandodacabeçacomumadaspatas.

“Fiquei aobservá-lo evi-ometer apatanumburacodaárvore e tirá-la a

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escorrermel.Lambeuomelemeteuamãoparatirarmais.Mas,entretanto,euarranjaraumcacete,poisqueriaomelparamim.

“Porisso,fizmuitobarulho,abatercomocacetenumaárvoreeagritar.Oursoestavatãogordoetãoempanturradodemelquesedeixoucairnasquatropataseseafastou,devagar,pelomeiodasárvores.Persegui-oumbocado,paraoobrigaraandarmaisdepressaeafastar-sedaárvoredasabelhas,edepoisvimbuscaracarroça.

Lauraperguntou-lhecomotiraraomelàsabelhas.- Isso foi fácil.Deixei os cavalosmais atrás, na floresta, para não serem

picados,edepoisderrubeiaárvoreeabri-a.-Asabelhasnãoopicaram?-Não.Asabelhasnuncamepicam.Aárvoreestavaocaecheiademelde

altoabaixo.Asabelhasdeviamandaraarmazenar lámelháanos.Algumeravelhoeescuro,mascreioqueconsegui trazermelbome limpoparanosdurarmuitotempo.

Laura,quesentiapenadaspobresabelhas,disse:-Trabalharamtantoeagoranãotêmmelnenhum.Masopairespondeu-lhequetinhaficadomuitomelparaasabelhaseque

havianasproximidadesoutragrandeárvoreoca,paraaqualsepoderiammudar.Acrescentouqueeratempodeteremumacasanovaelimpa.

Transformariamomelvelhoqueeledeixaranaárvoreantigaemmelnovoearmazená-lo-iamnanovacasa.Aproveitariamcadagotinhademelentornadoeguardá-lo-iam,evoltariamatermuitomelmuitoantesdeoInvernochegar.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

11COLHEITA

O pai e o tio Henrique trocavam o trabalho um com o outro. Quando ocerealamadureceunoscampos,otioHenriqueveioajudaropaieatiaPollyeosprimos todos vieram passar o dia com eles. Depois o pai foi ajudar o tioHenrique a colher o seu cereal e a mãe levou Laura, Maria e Carrie parapassaremodiacomatiaPolly.

AmãeeatiaPollytrabalharamdentrodecasaeosprimosbrincaramtodosjuntos,nopátio,atéàhoradoalmoço.OpátiodatiaPollyeramuitobomparabrincar, porque os tocos das árvores cortadas eram muitos e estavam muitojuntos.Osprimosbrincavamasaltardetocoparatoco,semtocarnochão.

AtéLaura,queeraamaispequena,podia fazer isso semdificuldade,nospontos onde as árvores mais pequeninas tinham crescido chegadas umas àsoutras. O primo Carlitos era um rapaz crescido, que já ia nos onze anos, econseguiasaltarde tocopara tocoàvoltadopátio todo.Saltavaos tocosmaispequenos a dois e dois e era capaz de caminhar em cima da vedação sem termedodecair.

OpaieotioHenriqueestavamnocampo,acortaraaveiacomgadanhasdeancinho.Umagadanhadeancinhoeraumalâminadeaçocurvaeafiada,presaaumaestruturaderipasdemadeiraqueprendiameseguravamasespigasquandoa lâmina as cortava. O pai e o tio Henrique agarravam a gadanha pelo cabocompridoecurvoebrandiam-nodemodoquea lâmina fossecortarospésdaaveia.Quandotinhamsegadoosuficienteparafazerumapilha,sacudiamospésdeaveiadasripasereuniam-nosemmontinhosbemfeitos,nochão.

Eratrabalhoduro,andardeumladoparaooutrodocampodebaixodosolquente,brandiraspesadasgadanhascomambasasmãosparasegarocerealeaseguirformarosmontinhos.

Depoisdecortadotodoocereal,tinhamdedardenovoavoltaaocampo.Destavezinclinavam-separacadamontinho,pegavamnumpunhadodepésdeaveiaemcadamãoeatavam-nosumaooutro,parafazerumaespéciedecordacomprida.Emseguidaapanhavamomontedecereal,cingiam-noentreosbraçose amarravam-nomuito apertado com a corda que tinham feito e cujas pontasmetiamparadentro.

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Depois de fazerem sete molhos desses - cada molho chamava-se umagaveia-reuniam-nosemmedas.Parafazerumamedapunhamcincogaveiasempé,muitochegadasumasàsoutrasecomo ladodasespigasparacima.Sobreelascolocavamentãooutrasduasgaveiascujospésabriam,afimdeformaremumtelhadozinhoparaabrigarascincodoorvalhoedachuva.

Cadapédecerealsegadotinhasempredeestararmadonumamedaantesdeescurecer,poisseficassetodaanoitenosoloorvalhadoestragar-se-ia.

O pai e o tio Henrique trabalhavam muito depressa, porque o ar estavapesado,quenteeparadoeelesesperavamchuva.Aaveiaestavamaduraesenãofosse segada e feita emmedas antes de chover a seara perder-se-ia. E, nessecaso,oscavalosdotioHenriquepassariamfometodooInverno.

Aomeio-dia,opaieotioHenriqueforamacasanuminstanteeengoliramoalmoçoomaisdepressaquepuderam.OtioHenriquedissequeoCarlitosteriadeosajudar,nessatarde.

Lauraolhouparaopai,aoouviraspalavrasdotioHenrique.Emcasa,opaidisseraàmãequeo tioHenriqueea tiaPollyestragavamCarlitoscommimo.Quandoopai tinhaonzeanos, já trabalhavatodoodianocampo,aguiarumajuntadebois.MasCarlitosnãofaziapraticamentenada.

Naquele dia, porém, o tioHenrique disse que Carlitos tinha de ir para ocampo com eles. Poderia poupar-lhes muito tempo. Podia, por exemplo, ir ànascentebuscaráguae levar-lhesabilha,quandoelesprecisassemdebeber.Etambém podia levar-lhes a pedra de amolar, quando as lâminas das gadanhasprecisassemdeserafiadas.

Os primos olharam todos para Carlitos. Ele não queria ir para o campo,queriaficarnopátioabrincar.Mas,claro,nãoodisse.

Opai e o tioHenriquenãodescansaramnemumbocadinho.Comeramàpressaevoltaramlogoparaotrabalho.Carlitosfoicomeles.

Depoisdeelesseiremembora,Mariaeraamaisvelhaeachouquedeviambrincar a uma coisa mais sossegada, mais de meninas. Por isso, à tarde,brincaram às casinhas, no pátio.Os tocos das árvores eram cadeiras,mesas efogões,asfolhaserampratoseosfilhoserampaus.

Acaminhodecasa,nessanoite,LauraeMariaouviramopaicontaràmãeoqueaconteceranocampo.

EmvezdeajudaropaieotioHenrique,Carlitossófizeratropelias.Metia-se-lhesnocaminho,paranãopoderemmanejarasgadanhas,escondiaapedradeamolar,obrigando-osaprocurá-laquandoprecisavamdelaparaafiaraslâminas,sólheslevavaabilhadaáguadepoisdeotioHenriquetergritadoapedi-latrêsouquatrovezeseaindaporcimaamuava.

Emseguidacomeçaraaandaratrásdeles,afalareafazerperguntas.Como

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precisavam de trabalhar muito depressa, não lhe podiam prestar atenção; porisso,mandaram-noemboraequenãoosincomodasse.

Mas largaram as gadanhas e correram para ele, do outro lado do campo,quandooouviramgritar.Haviaflorestaatodaavoltadocampoecobrasentreaaveia.

Quandochegaram,nãotinhaacontecidonadaeCarlitosriu-sedeles.-Destavezenganei-os!-troçou.Opaidisseque,sefosseotioHenrique,terialogochegadoaroupaaopelo

dorapaz,avaler.MasotioHenriquenãoofez.Porisso,aproveitaramparabeberáguaevoltaramparaotrabalho.Carlitosgritoutrêsvezesetrêsvezesforamacorrerveroqueacontecera-

eoutrastantaseleseriudeles.Achavaumaboapiada.EnemmesmoassimotioHenriquelhechegouaroupaaopelo.

AtéqueCarlitosgritoupelaquartavez,maisaltodoquenunca.OpaieotioHenriqueolharamparaondeeleestavaeviram-noasaltareagritar.Masnãolhes pareceu que lhe tivesse acontecido qualquer coisa e como já tinham sidoenganadostantasvezes,continuaramatrabalhar.

Carlitos continuou a gritar,mais alto emais esganiçadamente.O pai nãodisse nada, mas o tio Henrique resmungou: “Deixa-o gritar.” Por isso,continuaramasualidaedeixaram-nogritar.

Carlitos continuou a saltar e a gritar, sem parar. Por fim, o tioHenriquedisse:

-Talvezlhetenhaacontecido,realmente,algumacoisa.Largaramasgadanhaseatravessaramocampoaoseuencontro.Durante todo aquele tempo Carlitos estivera aos pulos em cima de um

ninhodevespas!AsvespastinhamfeitoninhonochãoeCarlitospisara-osemsaber.Todoo

enxame de vespas amarelas saiu, de ferrão em riste, e picaramCarlitos de talmaneiraqueelenãoconseguiafugir-lhes.

Enquantosaltavaparacimaeparabaixo,centenasdevespasenchiam-lheocorpodeferroadas.Picavam-lheacara,asmãos,onarizeopescoço,subiam-lhepelas pernas das calças e picavam-no e desciam-lhe pelo interior da camisa epicavam-notambém.Quantomaiselegritavaesaltava,maisopicavam.

OpaieotioHenriqueagarraram-nopelosbraçoselevaram-noacorrerdoninhodevespas.Tiraram-lhearoupa,queestavacheiadevespas,eviramqueasferroadaslhecobriamocorpotodoeestavamainchar.Mataramasvespasqueopicavam,sacudiramasqueselheagarravamàroupaedepoisvoltaramavesti-loelevaram-noparacasa.

Laura, Maria e os primos estavam a brincar sossegadamente no pátio

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quandoouviramumchoroalto.Carlitoschegouaopátioaostropeçõesecomacaratãoinchadaqueaslágrimasquaselhenãoconseguiamsairdosolhos.

Tinhaasmãoseopescoçoinchadoseasbochechasentãonemsefala.Osdedosestavamtãoinchadosquenãoospodiadobraretinhaacaraeopescoçocheiosdepequenasmarcasbrancaseduras.

Laura,Mariaeosprimosficaramespecados,aolhar.A mãe e a tia Polly saíram de casa a correr e perguntaram-lhe o que

acontecera. Carlitos respondeu qualquer coisa incompreensível, sem parar dechorar.Amãedisseque tinhamsidovespas e foi a correr àhortabuscarumacaçarola de terra, enquanto a tiaPolly levavaCarlitos para dentro de casa e odespia.

Juntaramáguaàterra,fizeramumagrandecaçaroladelamaebesuntaram-notodocomela.Depoisenrolaram-nonumlençolvelhoedeitaram-nonacama.Tinhaosolhosfechados,detãoinchados,eonarizcomumfeitioengraçado.AmãeeatiaPollycobriram-lheacaradelamaeligaram-nacompanos.Sóselheviamapontadonarizeaboca.

AtiaPollyfezumainfusãodeervas,paralhedarporcausadafebre.Laura,Mariaeosprimosficaramumbocadoaolharparaele.

JáestavaescuroquandoopaieotioHenriquevoltaramdocampo.Aaveiaestava toda apanhada e em medas, já podia chover que não lhe faria malnenhum.Opaidissequenãopodiaficarpara jantar,porcausadaordenha.Asvacasjáestavamàespera,emcasa,equandonãoeramordenhadasatemponãodavam tanto leite. Atrelou rapidamente os cavalos e meteram-se todos nacarroça.

O pai estava muito cansado e doíam-lhe tanto as mãos que não podiaconduzirmuitobem,masoscavalossabiamocaminhoparacasa.Amãesentou-seaoladodele,comCarrieaocolo,eLauraeMariasentaram-senatábua,atrás.OuviramentãoopaicontaroqueCarlitosfizera.

LauraeMariaficaramhorrorizadas.Tambémeramtraquinas,muitasvezes,mas nunca tinham imaginado que alguém pudesse ser tãomau comoCarlitosfora.Não trabalharaparaajudar a salvar a aveia,não fizeracasodoqueopaidele lhe dissera e ainda por cima os maçara quando estavam a trabalharduramente.

Depoisopaicontouahistóriadasabelhasecomentou:-Foibemfeito,paraservirdeemendaaomentirosodorapaz.Nessa noite, deitada na cama baixa, Laura ouviu a chuva tamborilar no

telhadoeescorrerdosbeiraisepensounoqueopaidissera.PensounoqueasvespastinhamfeitoaCarlitosetambémachouquetinha

sidobemfeito.Tinhasidobemfeitoporeletersidotãomauzão.E,alémdisso,

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asvespastinhamodireitodeopicar,poiselesaltara-lhesemcimadoninho.Só não compreendeu por quemotivo lhe chamara o pai “omentiroso do

rapaz”.ComoéqueCarlitospodiasermentiroso,senãodisseraumapalavra?

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UmaCasaNaGrandeFloresta

12AMÁQUINAMARAVILHOSA

Nodiaseguinte,opaicortouacabeçaadiversosfeixesdeaveiaelevouapalha limpa, amarela e brilhante àmãe. Elameteu-a numa tina de água, paraamaciar.Depois sentou-se na cadeira ao ladoda tina e começou a entrançar apalha.

Pegava nummolhinho, atava-lhe as pontas e entrançava.Como as palhaseramdetamanhosdiferentes,quandoseaproximavadofimdeumatiravaoutradabanheira,colocava-anolugardaqueterminaraecontinuavaaentrançar.

Deixava a ponta da trança mergulhar de novo na água e ia entrançandosempre,atétermuitosmetrosdetrança.Durantedias,ocupoutodooseutempolivreaentrançarpalha.

Fez uma trança lisa e estreita com sete das palhas mais pequenas. Usounovepalhasmaioresparaumatrançamaiorebemvincadaaolongodoslados.Edaspalhasmaioresfezatrançamaislargadetodas.

Quandoaspalhasestavamtodasentrançadas,enfiouumaagulhacomlinhabranca forte e, começando por uma ponta da trança, foi-a cosendo à roda e àroda,a segurara trançademodoque ficassedireitaeplana,depoisdecosida.Ficouassimumaespéciedepequenotapete,masamãedissequeeraoaltodacopadeumchapéu.

Depoissegurouatrançacomforça,numdoslados,evoltouacoseràvolta,sempreàvolta,fazendoassimosladosdacopadochapéu.Quandoachouqueacopatinhaalturasuficiente,amãepegououtraveznatrançacommenosforçaecontinuouacoseràvolta,paraformaraabadochapéu.

Quandoaabaficoucomlargurabastante,cortouatrançaerematouapontamuitobem,paranãosedesmanchar.

FezchapéusparaMariaeLauradatrançamaisfinaeestreita,eparaopaieparaeladatrançamaislargaeapertada.Oprimeiro,eraochapéudedomingodopai,masdepois ela fez-lhemaisdois, da trançamais larga e áspera, parausartodososdias.

Quandoacabavaumchapéu,punha-onumatábua,parasecar,eaomesmotempomoldava-omuitobem.Quandosecava,ochapéuconservavaaformaqueelalhedera.

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Amãesabiafazerchapéusmuitobonitos.Lauragostavadeavere,assim,aprendeuaentrançarapalhaefezumchapelinhoparaaCarlota.

Osdiascomeçavamatornar-semaispequenoseasnoitesmaisfrias.Umanoite, o Joãozinho Geada passou pelas imediações e, de manhã, havia coresvivas aqui e ali, entre as folhas verdes da Grande Floresta. Depois as folhasdeixaram todas de ser verdes e tornaram-se amarelas, escarlates, carmesins,douradasecastanhas.

Aolongodavedação,osumagreerguiaosseusconesdebagasvermelho-escuras, acima de folhas cor de fogo. Caíam bolotas dos carvalhos e Laura eMariafaziamchavenazinhasepirezinhoscomelas,paraascasinhasdebrincar.Nozes diversas caíam para o chão daGrande Floresta e os esquilos andavamnumaazáfama,àscorridinhasportodoolado,areunirnozesparaoInvernoeaescondê-lasemárvoresocas.

LauraeMariaforamcomamãeapanharnozeseavelãs.Espalharam-nasaosol para secar e, depois, bateram-lhes para largarem a casca seca de fora eguardaramasnozesnosótão,paraoInverno.

Eradivertidocolherasgrandesnozesredondas,umasoutrasmaispequenase as avelãs ainda mais pequenas, que cresciam em cachos nos arbustos. Ascascasexterioresmolesdasnozesestavamcheiasdeumsucocastanho,quelhesmanchavaasmãos,masascascasdasavelãscheiravambemetambémsabiambemquandoLauraseserviadosdentesparaaspartir.

Andava toda a gente atarefada, pois era necessário guardar todos osvegetais da horta. Laura e Maria ajudavam, apanhavam as batatas terrosas,depoisdeopaiasdesenterrar,earrancavamascompridascenourasamarelaseosnabosredondos,comapartedecimaarroxeada.Etambémajudavamamãeacozerabóbora,parafazertortas.

Comagrandefacadacarne,amãecortavaaomeioasgrandesabóborascordelaranja.Tiravaaspevidesdomeioecortavaaabóboraemfatiascompridas,quedescascava.Lauraajudava-aacortarasfatiasemcubos.

A mãe punha os cubos numa grande panela de ferro, no fogão, deitavaalgumaáguaedepoisiatomandoconta,enquantoaabóboraferviadevagarinho,durante todo o dia. Toda a água e todo o sumo tinham de desaparecer, pelafervura,masnuncasedeviadeixarqueimaraabóbora.

Aabóbora ficava transformadanumamassagrossaeescura,quecheiravabem.Nãoferviacomoaágua,masformavabolhasquerebentavamderepenteedeixavam buraquinhos que logo se fechavam. Todas as vezes que uma bolharebentava,espalhava-seumcheirinhoagradávelaboaabóboraquente.

Em cima de uma cadeira, Laura vigiava a abóbora e mexia-a com umaespátula de madeira. Segurava a espátula com as duas mãos e mexia

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cuidadosamente,poisseaabóborasequeimassenãohaveriatortasdeabóbora.Ao almoço comeram abóbora cozida compão. Fizeramdesenhos bonitos

com ela, no prato. Tinha uma cor bonita e alisava-se e moldava-se semdificuldade,comafaca.Amãenuncaasdeixavabrincarcomacomidaàmesa;tinhamde comer, comboasmaneiras, tudo quanto lhes punham à frente, semdeixarnadanoprato.Masnãoseimportavaquemoldassemaabóboracastanhacozidaemformasbonitas,antesdeacomerem.

Noutras ocasiões, tinham assado uma outra espécie de abóbora, chamadaHubbard,paraoalmoço.Acascaera tãoduraqueamãe tinhadeseservirdomachadodopaiparaaabrirecortaraosbocados.Depoisdeaabóboraserassadano forno,Lauragostavadeespalharmanteigano interiormacioedesepararacarneamareladacascacomumacolherecomê-la.

Naquelaépocaerafrequente teremparao jantarmilhodescascadoe leite.Tambémeramuitobom.TãobomqueLauraesperava impacientementequeomilhoficassepronto,depoisdeamãecomeçaradescascá-lo.Eramprecisosdoisoutrêsdiasparaficaremcondições.

No primeiro dia, a mãe retirava todas as cinzas do forno do fogão elimpava-o.Depoisqueimavaalgunscavacoslimposdemadeiraduraeguardavaascinzasnumsaquinhodepano.

Nessanoite,opaitraziaalgumasmaçarocas,comgrandesbagosdemilho.Aparava as pontas das maçarocas, que tinham milho pequeno, e depoisdebulhavaorestoparaumagrandecaçarola,atéaencher.

No dia seguinte, de manhã cedo, a mãe punha o milho debulhado e osaquinhodecinzasnagrandepaneladeferro,enchia-adeáguaedeixavafervermuito tempo.Por fim,osbagosdemilhocomeçavama inchar, a inchar, até apeleseracharecomeçaradespegar-se.

Quando as peles estavam todas rachadas e a despegar-se, amãe levava apesada panela para fora de casa. Enchia uma celha limpa de água fria, danascente,epassavaomilhodapanelaparaacelha.

Depois arregaçava as mangas do vestido florido e ajoelhava-se junto dacelha.Comasmãos,esfregavaosbagosdemilhounsnosoutros,atéaspelessesoltaremeficaremaflutuaraocimodaágua.

Escorria muitas vezes a água e substituía-a por outra, que ia buscar aosbaldes ànascente.Continuava a esfregarosbagosdemilho entre asmãos e amudaraáguaatéteremsaídotodasaspeles.

Amãeficavabonita,comosbraçosbrancose roliçosnus,as facesmuitocoradas e o cabelo bempenteado e brilhante, enquanto esfregava os bagos demilho em água limpa. Nunca deixava cair um pingo de água para o bonitovestido.

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Quandoomilhoficava,finalmente,tododescascado,metiaosbagosmolesebrancosnumgrandeboião,nadespensa.Ejantavam,enfim,milhodescascadoeleite.

Algumas vezes também o comiam ao desjejum commelaço de bordo, eoutras a mãe fritava os bagos moles em banha de porco. Mas como Lauragostavamaiseracomleite.

O Outono era muito divertido. Havia muito trabalho, muitas coisas boasparacomeremuitascoisasnovasparaver.Lauracorriaetagarelavademanhãànoitecomosesquilos.

Numamanhãdegeadachegouumamáquinaàestrada.Puxavam-naquatrocavalosevinhamdoishomenscomela.Oscavalospuxaram-naparaocampoondeopai,otioHenrique,oavôeoSr.Petersontinhamempilhadootrigo.

Mais dois homens trouxeram, depois da grande, outra máquina maispequena.

Opaigritouàmãequeosdebulhadorestinhamchegadoedepoisdirigiu-seapressadamente para o campo, comos seus cavalos.Laura eMaria pediram àmãequeasdeixasse irecorreramparaocampoatrásdele.Podiamver,desdequetivessemcuidadoenãosemetessemnocaminho.

OtioHenriquechegouacavaloeprendeuoanimalaumaárvore.Depoisele eopai atrelaram todososoutros cavalos -oito, ao todo - àmáquinamaispequena.Atrelaramcadaparelhaàpontadeumpaucompridoquesaíadocentrodamáquina.Umacompridavaradeferro,juntoaochão,iadamáquinapequenaàmáquinagrande.

DepoisLauraeMariafizeramperguntaseopaidisse-lhesqueamáquinagrandesechamavaseparadora,avarade ferroeraavara rotativaeamáquinamais pequena se chamava força motriz. Como estavam atrelados a ela oitocavalos,eraumamáquinacomaforçadeoitocavalos.

Umhomemsentou-seemcimadamáquinadaforçamotrizequandotudoficoupreparadogritouaoscavalos,quecomeçaramaandar.Oscavalosandavamnum círculo à volta do homem, cada parelha a puxar o pau comprido à queestava atrelada e a seguir a parelha da frente. Enquanto andavam, passavamcuidadosamenteporcimadavararotativa,quenãoparavadegirarnochão.

Eraa forçadoscavalosapuxarque faziaavarade ferrogirar e,por suavez,pôremfuncionamentoaspeçasdaseparadora,queseencontravaaoladodamedadetrigo.

Toda aquela maquinaria fazia uma grande barulheira, bang-bang, clang-clang.Laura eMaria, demãos dadas, estavamparadas à entrada do campo, aobservartudodeolhosbemabertos.Eraaprimeiravezqueviamumamáquina.Enuncatinhamouvidotantobarulho.

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OpaieotioHenrique,emcimadamedadetrigo,iamatirandofeixesparaumatábua.Ohomemqueestavaemcimadatábuacortavaasatadurasdosfeixesemetia-osumdecadaveznumburacoexistenteaofundodaseparadora.

Oburacopareciaabocadamáquinaetinhacompridosdentesdeferro.Osdentesmastigavam os feixes de trigo e a separadora engolia-os. Saía palha, avoar,pelooutroextremodaseparadoraecorriatrigopelolado.

Doishomens,atrabalharmuitodepressa,calcavamapalhaeempilhavam-na.Outrohomem, tambéma trabalhardepressa, ensacavaocerealque saíadamáquina. Os grãos de trigo saíam da separadora para uma medida de meioalqueiree,assimqueamedidaseenchia,ohomemsubstituía-aporoutravaziaedespejava-anumsaco.Maltinhatempoparaadespejarevoltarapôrdebaixodasaídadotrigoantesdeaoutraseencher.

Oshomenstrabalhavamtodosomaisdepressaquepodiam,masamáquinaacompanhava-os. Laura e Maria estavam tão agitadas que mal conseguiamrespirar.Apertavamamãoumadaoutraeolhavam,admiradas.

Oscavalosiamandando,sempreàroda.Ohomemqueosconduziaestalavao chicote e gritava: “Vamos lá, João! Não sejas calaceiro!” Crac!, estalava ochicote. “Cuidado, Billy! Calma aí! Não podes andarmais depressa do que aconta,mesmoquequeiras.”

Aseparadoraengoliaosfeixes,apalhaamarelasaíanumanuvemdourada,o trigo escorria, dourado-escuro, e os homens açodavam-se. O pai e o tioHenriqueatiravamosfeixesomaisdepressaquepodiam.Andavampeloar,portodaaparte, restosdepalhaepoeira.LauraeMariacontinuaramaolhar,masporfimvoltaramparacasa,afimdeajudaremamãeaprepararoalmoçoparatodosaqueleshomens.

No fogão fervia uma grande panela de carne e couves; no forno coziamumacaçaroladefeijõeseumpãodemilho.LauraeMariapuseramamesaparaosdebulhadores:pão levedadoemanteiga, tigelasdeabóboracozida, tortasdeabóboraedebagassecas,biscoitos,queijo,melejarrosdeleite.

Depoisamãepôsnamesaacarnecozidacombatatasecouves,osfeijõesnoforno,opãodemilhoquenteeaabóboraassadanoforno,edeitouchá.

Lauranãocompreendiaporquemotivochamavamaopãofeitodefarinhademilho“BoloJoãozinho”.Nãoerabolo.Amãetambémnãosabia.Anãoser,dizia, que os soldados nortistas lhe chamassem “Bolo Joãozinho” porque aspessoas do Sul, contra as quais lutavam, o comiam em tanta quantidade.Chamavam“JoãozinhosRebeldes”aossoldadossulistas…etalvezchamassemboloaopãodoSulsódebrincadeira.

A mãe ouvira algumas pessoas dizerem que se devia chamar pão deviagem.Nãosabia,masparecia-lhequenãodeviaserumpãomuitobompara

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levarnumaviagem.Ao meio-dia os debulhadores sentaram-se à mesa carregada de comida.

Masnãoerademais,poisosdebulhadorestrabalhammuitoeficamcommuitafome.

Ameiodatarde,asmáquinastinhamacabadootrabalhoeoshomensaquepertenciam levaram-naspara aGrandeFloresta e levaramconsigoos sacosdetrigoqueconstituíamasuapaga.Dirigiam-separaoutrolugarondeosvizinhostinhamamontoadooseutrigoequeriamqueasmáquinasodebulhassem.

O pai estavamuito cansado, nessa noite,mas sentia-se contente. Disse àmãe:

- O Henrique, o Peterson, o meu pai e eu precisaríamos de umas duassemanas cada um para debulhar tanto trigo, com manguais, como aquelamáquinadebulhouhoje.Eaindaporcimanão ficaríamoscom tanto trigonemtãolimpo.

“Aquelamáquinafoiumagrandeinvenção!Outrospoderãomanter-sefiéisamétodosantiquados,sequiserem,maseusoupeloprogresso.Estamosavivernum grande século. Enquanto cultivar trigo contratarei uma máquina para odebulhar,sehouveralgumanasimediações.

Nessa noite estava tão cansado que nem conversou com Laura, mas elasentiu-seorgulhosadele.Tinha sidoopaique convenceraosoutroshomens ajuntaremo trigo ao dele e a alugarem amáquina.Umamáquinamaravilhosa!Estavatodaagentecontente.

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UmaCasaNaGrandeFloresta

13OVEADONAFLORESTA

Aervaestavasecaemurchaeasvacastiveramdesairdaflorestaeficarnoestábulo,parateremdecomer.Todasasfolhasdecoresvivassetornaramdeumcastanhobaço,quandoasfriaschuvasoutonaiscomeçaram.

Já não se podia brincar debaixo das árvores.Mas o pai estava em casa,quandochovia,erecomeçaraatocarrabecadepoisdojantar.

Depois a chuva parou. O tempo arrefeceu. De manhãzinha, cedo, estavatudobrancodegeada.Osdiastornavam-semaispequenosetodoodiaardiaumpequeno fogo de lenha no fogão, para manter a casa quente. O Inverno nãotardava.

OsótãoeacaveestavamdenovocheiosdecoisasboaseLauraeMariatinhamcomeçadoafazermantasderetalhos.Voltaratudoaseraconchegadoeacolhedor.

Uma noite, quando voltou para casa depois de tratar dos animais, o paidisse que a seguir ao jantar iria ao seu lambedouro de veados, para ver seapanhavaum.DesdeaPrimaveraquenãosecomiacarnefrescanacasinhadafloresta,masagoraosveadinhostinhamcrescidoeopaivoltariaacaçar.

O pai tinha feito um lambedouro num espaço aberto da floresta, comárvores perto, de onde podia vigiar. Um lambedouro era um sítio aonde osveadosiamparaobtersal.Quandoencontravamumaporçãodeterrenosalgado,passavamairlambê-loeolugarpassavaachamar-seumlambedourodeveados.Opaifizeraum,espalhandosalpelochão.

Depoisdojantar,opaipegounaespingardaefoiparaafloresta,eLauraeMariativeramdeadormecersemhistóriasnemmúsica.

Assim que acordaram, de manhã, correram à janela, mas não estavanenhumveadosuspensodasárvores.Eraaprimeiravezqueopaisaíaparacaçarumevoltavasemnada.LauraeMarianãosabiamquepensar.

O pai andou atarefado todo o dia, a proteger a casinha e o estábulo comfolhasmortas e palha, seguras por pedras, para não deixarem entrar o frio.Otempo arrefeceu mais, durante o dia, e à noite voltou a haver fogo aceso nalareiraeasjanelasforambemfechadasecolmatadas,paraoInverno.

Depoisdojantar,opaisentouLauranojoelho,enquantoMariasesentava

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perto,nasuacadeirinha.Eopaidisse:-Agora vou-lhes contar porque não comeram carne fresca, hoje.Quando

fuiparaolambedouro,subiparaumgrandecarvalho.Encontreiumlugar,numramo,ondemepodiasentarconfortavelmenteeobservarolambedouro.Estavaaboa distância para matar qualquer animal que aparecesse e tinha a armacarregadaeprontanojoelho.

“Deixei-me ficar sentado, à espera que a Lua nascesse e iluminasse aclareira.

“Estavaumbocadinhocansadodeterpassadotodoodiadeontemapartirlenha,edevoteradormecido,poisdeicomigoaabrirosolhos.

“AgrandeLuaredondaestavaaaparecerevia-a,atravésdosramosnusdasárvores, subir devagarinho no céu.. E, recortado nela, vi um veado. Tinha acabeçaerguida,àescuta.Viam-se-lheosgrandesgalhos,acimadacabeça.

“Seriaumtiroperfeito.Masoveadoeratãobonito,pareciatãoforte,livreeselvagem,quenãofuicapazdeomatar.Deixei-meficarsentadoaolhá-lo,atéelesaltaredesaparecernaflorestaescura.

“Depoislembrei-medequeamãeeasminhaspequeninasestavamàesperade que eu trouxesse boa carne fresca de veado para casa. Por isso, disse paracomigoqueparaapróximavezdispararia.

“Passadoumbocado,entrouumgrandeursopesadãonaclareira.Estavatãogordo,depassartodooVerãoaempanturrar-sedebagas,raízeselagartas,queeraquasetãograndecomodoisursos.Asuacabeçaoscilavadeladoparalado,enquantoeleatravessavaaclareirainundadadeluar.Nisto,chegouaumtroncopodre, cheirou-o e escutou.Depois partiu-o com as patas, cheirou os bocadospartidosedevorouasgordaslagartasbrancas.

“Emseguidaergueu-senaspatastraseiraseficoucompletamenteimóvel,aolharàsuavolta,comosedesconfiassedealgumacoisa.Tentavaveroufarejaroqueera.

“Também constituía um alvo perfeito, mas eu estava tão interessado aobservá-lo,eaflorestabanhadadeluarestavamergulhadanumapaztãogrande,quemeesquecidaespingarda.Sópenseiemdispararquandoelejáseafastavanafloresta.

“Istoassimnãopodeser,pensei.Destamaneiranuncamaisarranjocarne.“Recostei-me na árvore e esperei de novo. Desta vez estava decidido a

abateropróximoanimalqueaparecesse.“ALuasubiraeoluarestavamaisbrilhante,napequenaclareira.Atodaa

voltahaviasombrasnegras,entreasárvores.“Passadomuito tempo, uma corça e o seu corçozinho de um ano saíram

delicadamente do meio das sombras. Não pareciam ter medo nenhum.

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Dirigiram-separaolugarondeeuespalharasalelamberamambosumpouco.“Depois levantaram a cabeça e olharam um para o outro. O corçozinho

aproximou-se e colocou-se ao lado da corça. Ficaram ao lado um do outro, aolharparaaflorestaeparaoluar.Osseusgrandesolhosbrilhavam,meigos.

“E eu continuei sentado a olhá-los, até se afastarem e desapareceremnassombras.Descidaárvoreevimparacasa.

Laurasegredou-lheaoouvido:-Estoucontentepornãoostermatado!EMariadisse:-Podemoscomerpãocommanteiga.OpailevantouMariadacadeiraeapertouambasasi.-Asminhasboaspequerruchas!-exclamou.–Eagorasãohorasdedormir.

Tocaparaacama,enquantovoubuscararabeca.Depois de Laura e Maria rezarem as suas orações e se deitarem, bem

aninhadinhas,debaixodaroupadacamabaixa,opaisentou-sejuntodalareira,com a rabeca. A mãe apagara o candeeiro, porque não precisava da sua luz.Balouçava-sedevagarinho,dooutroladodalareira,eassuasagulhasdetricotarbrilhavamumadecadavez,porcimadameiaqueestavaafazer.

TinhamvoltadoaslongasnoitesdeInverno,comaluzdalareiraemúsica.Arabecadopailamentava-se,enquantoelecantava:ÓSusa-a-na,nãochorespormim,tesouro,QueeuvouparaaCa-li-fór-ni-a,Paraveropódoouro.

DepoisopaicomeçouatocardenovoacançãodovelhoGrimes.Masaspalavrasnãoeramasquecantaraquandoamãeestavaafazerqueijo.Estaseramdiferentes.Avozforteemeigadopaicantavadocemente:Deverãoesquecer-seantigosconhecimentosEnuncamaisosrecordar?Deverãoesquecer-seantigosconhecimentosEosdiasdeantigamente?Eosdiasdeantigamente,minhaamiga,Eosdiasdeantigamente,Deverãoesquecer-seantigosconhecimentosEosdiasdeantigamente?

Quandoarabecasecalou,Lauraperguntou,baixinho:-Quesãoosdiasdeantigamente,Pá?-Sãoosdiasquepassaramhámuitotempo,Laura-respondeu-lheopai.-

Agoradorme.MasLauraficoumaisumbocadinhoacordada,aouvirarabecadopaitocar

baixinhoeosomtristedoventonaGrandeFloresta.Olhouparaopai,sentado

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no banco junto da lareira, com a luz das chamas a brilhar-lhe no cabelo e nabarba castanhos e a reluzir na rabeca cor de mel. Olhou para a mãe, que sebalouçavadevagarinhonacadeiraetricotava.

Epensou:“Istoéagora.”Sentiu-secontenteporacasaacolhedora,opai,amãe, a luz da lareira e a música serem agora. Pensou que não poderiam seresquecidos,poisagoraeraagora.Nuncapoderiaserhámuitotempo.

FIM

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