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Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 234 Expressividade como qualidade dinâmica: uma discussão sobre percepção na arte Expressiveness as a dynamic quality: a discussion on art perception La expresividad como una cualidad dinámica: una discusión sobre la percepción en el arte Maria Clara de Almeida Carijó Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Virgínia Kastrup Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Resumo O artigo pretende examinar como a expressividade é percebida e criada na arte. Geralmente, a expressividade é entendida como a capacidade das obras de arte de transmitir emoções do artista, ou então como efeito da projeção de sentimentos do percebedor sobre elas. Recusando tais posições, sugerimos que a expressividade é um fenômeno perceptivo que resulta da apre- ensão de certas qualidades dinâmicas intrínsecas às obras. Tais qualidades dinâmicas são dis- cutidas por Arnheim e, como buscamos mostrar, constituem a base daquilo que Stern chamou de “afetos de vitalidade”. Essa nova abordagem da percepção da expressividade conduz -nos a uma reformulação, também, da concepção do ato de expressão artística. Baseados em Dewey, mostraremos que, em vez de uma ação de descarga de conteúdos subjetivos, a expressão pare- ce ser uma atividade perceptivamente guiada, em que o artista, através do modo como organi- za e apresenta os diversos elementos de sua obra, cria forças vivas e dinâmicas. Palavras-chave: Expressividade; Expressão; Percepção; Arte; Qualidades Dinâmicas. Abstract The article investigates the perception and production of artistic expressive- ness. Expressiveness is usually interpreted either as the capacity of works of art to convey the artist’s emotions or as the projection of one’s feelings onto a work of art. We refuse such in- terpretations and suggest instead that expressiveness is a perceptual phenomenon which takes place when specific dynamic qualities which are intrinsic to the works of art are captured by the spectator. Such dynamic qualities are discussed by Arnheim and, we argue, constitute what Stern has termed “vitality affects”. This new approach to the perception of expressiv e-

Uma Discussão Sobre Percepção

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  • Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 234

    Expressividade como qualidade dinmica: uma discusso sobre percepo

    na arte

    Expressiveness as a dynamic quality: a discussion on art perception

    La expresividad como una cualidad dinmica: una discusin sobre la percepcin en el arte

    Maria Clara de Almeida Carij

    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Virgnia Kastrup

    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Resumo

    O artigo pretende examinar como a expressividade percebida e criada na arte. Geralmente, a

    expressividade entendida como a capacidade das obras de arte de transmitir emoes do

    artista, ou ento como efeito da projeo de sentimentos do percebedor sobre elas. Recusando

    tais posies, sugerimos que a expressividade um fenmeno perceptivo que resulta da apre-

    enso de certas qualidades dinmicas intrnsecas s obras. Tais qualidades dinmicas so dis-

    cutidas por Arnheim e, como buscamos mostrar, constituem a base daquilo que Stern chamou

    de afetos de vitalidade. Essa nova abordagem da percepo da expressividade conduz-nos a

    uma reformulao, tambm, da concepo do ato de expresso artstica. Baseados em Dewey,

    mostraremos que, em vez de uma ao de descarga de contedos subjetivos, a expresso pare-

    ce ser uma atividade perceptivamente guiada, em que o artista, atravs do modo como organi-

    za e apresenta os diversos elementos de sua obra, cria foras vivas e dinmicas.

    Palavras-chave: Expressividade; Expresso; Percepo; Arte; Qualidades Dinmicas.

    Abstract

    The article investigates the perception and production of artistic expressive-

    ness. Expressiveness is usually interpreted either as the capacity of works of art to convey the

    artists emotions or as the projection of ones feelings onto a work of art. We refuse such in-

    terpretations and suggest instead that expressiveness is a perceptual phenomenon which takes

    place when specific dynamic qualities which are intrinsic to the works of art are captured by

    the spectator. Such dynamic qualities are discussed by Arnheim and, we argue, constitute

    what Stern has termed vitality affects. This new approach to the perception of expressive-

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    ness leads to a reformulation of the conception of artistic expression. Based on Deweys

    work, we claim that expression is not a discharging of subjective contents, but rather a per-

    ceptually guided activity in which the artist, by organizing and presenting the various ele-

    ments of his work in particular ways, creates live and dynamic forces.

    Keywords: Expressiveness; Expression; Perception; Art; Dynamic Qualities.

    Resumen

    El artculo examina como la expresividad puede ser percibida y creada en el arte. Comnmen-

    te, la expresividad es entendida como la capacidad de transmitir una emocin del artista que

    las obras de arte poseen o como un efecto de la proyeccin de los sentimientos del espectador

    sobre ellas. Recusamos esas posiciones y sugerimos que la expresividad es un fenmeno per-

    ceptivo que resulta de la aprehensin de cualidades dinmicas intrnsecas a las obras. Tales

    cualidades fueron discutidas por Arnheim y, como mostramos, constituyen la base de lo que

    Stern llam de afectos de la vitalidad. Reformulamos tambin la concepcin del acto de la

    expresin artstica. Con base en Dewey, afirmamos que, a cambio de una descarga de conte-

    nidos subjetivos, la expresin parece ser una actividad conducida por la percepcin, en la

    cual el artista, mediante el modo como organiza y presenta los elementos de su obra, crea

    fuerzas vivas y dinmicas.

    Palabras clave: Expresividad; Expresin; Percepcin; Arte; Cualidades Dinmicas.

    Introduo

    A capacidade que as obras tm de

    nos afetar e envolver , talvez, a caracters-

    tica mais marcante de nossa experincia

    com a arte. Ao contemplarmos uma pintu-

    ra, ouvirmos uma msica, assistirmos a um

    filme ou a um espetculo de dana, temos

    um tipo de experincia muito particular,

    bem distinto daquele em que estamos mer-

    gulhados durante a maior parte do tempo,

    quando ocupados com nossas atividades

    habituais e cotidianas. A experincia com a

    arte revela nas obras uma fora prpria,

    uma espcie de vitalidade que nos afeta.

    Valemo-nos de uma srie de termos que

    buscam capturar tal dinmica: dizemos que

    uma pintura melanclica, que uma per-

    formance artstica foi vibrante ou sombria,

    que uma msica soa exultante. Quando

    assim procedemos, estamos buscando for-

    mulaes que deem conta de um aspecto

    muito importante e tambm muito intrigan-

    te das obras de arte: sua expressividade.

    A expressividade pode ser entendi-

    da como um elemento essencial de nossa

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    experincia com a arte, possuindo um pa-

    pel importante na criao de seu carter

    esttico. Entretanto, devemos perguntar

    como somos capazes de perceber expressi-

    vidade em obras de arte e como possvel

    cri-la. Muitos estudos, provenientes tanto

    do campo da psicologia quanto da filosofia

    e da arte, afirmam que a expressividade

    est associada capacidade das obras de

    arte de transmitirem uma emoo ou sen-

    timento do artista ou, ainda, que ela pode

    ser explicada por uma projeo de senti-

    mentos e emoes do percebedor sobre a

    obra. Apesar de afirmaes deste gnero

    serem amplamente aceitas, elas no pare-

    cem dar conta de explicar o fenmeno em

    questo. O objetivo deste artigo , ento,

    compreender a expressividade artstica,

    fundamentando-a na percepo de qualida-

    des dinmicas intrnsecas s prprias o-

    bras, e no na transmisso ou projeo de

    sentimentos e emoes, seja do artista ou

    do percebedor. Para tanto, nos basearemos,

    principalmente, nos trabalhos de Rudolf

    Arnheim e de Daniel Stern. Esta nova for-

    ma de colocar o problema da expressivida-

    de ter consequncias tambm, como mos-

    traremos ao final do artigo, para nossa

    forma de conceber o ato de expresso, uma

    vez que nos levar a reinterpret-lo como

    uma atividade perceptivamente guiada, em

    que o artista cria com foras dinmicas,

    esforando-se para encarn-las em sua o-

    bra, e no mais como uma atividade de

    descarga de sentimentos e emoes pesso-

    ais ou de expresso de um eu. Para isso,

    recorreremos contribuio de John De-

    wey sobre o ato expressivo, apontando as

    afinidades do pensamento deste autor com

    a nova concepo de expressividade arts-

    tica proposta.

    Antes de prosseguirmos, um escla-

    recimento terminolgico e conceitual

    necessrio. Observamos, na literatura per-

    tinente, que o vocbulo mais comumente

    utilizado para se referir ao fenmeno que

    aqui abordamos o termo expresso.

    Porm, este termo comporta uma dificul-

    dade terminolgica, que reflete, na verda-

    de, uma questo conceitual. O termo ex-

    presso d lugar a interpretaes diversas,

    donde decorre que discusses acerca de

    fenmenos completamente diferentes con-

    fundem-se entre si devido ao uso do mes-

    mo vocbulo. Segundo o Dictionnaire

    desthtique et de philosophie de lart

    (Morizot e Pouivet, 2009), a expresso

    um caso difcil de passagem entre o inteli-

    gvel e o sensvel, dizendo respeito capa-

    cidade dos homens e das obras de arte de

    exteriorizar, simbolizar e suscitar pensa-

    mentos e sentimentos. Assim, ora ela se

    refere a uma ao do sujeito sendo defi-

    nida como a operao realizada pelo artista

    que permite que as obras de arte veiculem

    qualidades estticas expressivas , ora se

    refere a uma caracterstica das prprias

    obras de arte sendo sua prpria qualidade

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    esttica, ou seja, um atributo da obra. Da o

    uso do termo expressividade por alguns

    autores que reconhecem a diferena essen-

    cial entre estes dois fenmenos, embora

    no neguem que exista uma relao entre

    eles (Wolheim, 1994 e Tormey, 1971, cita-

    dos por Morizot e Pouivet, 2009). O termo

    expressividade ento empregado para

    designar certa qualidade expressiva dos

    objetos que apreendida pela percepo,

    enquanto o termo expresso refere-se ao

    ato atravs do qual se exprime algum sen-

    timento ou ideia subjetiva atravs da pro-

    duo de uma obra. Assim, usaremos o

    termo expressividade para nos referir-

    mos a um atributo das obras em si e o ter-

    mo expresso para nos referirmos ao ato

    expressivo propriamente dito, a fim de

    evitarmos mal-entendidos.

    Obras de arte entendidas como

    expresso de emoes e sentimentos

    Quando fazemos, ouvimos ou le-

    mos a descrio de uma obra de arte,

    praticamente impossvel escaparmos ao

    uso de termos que fazem referncia direta a

    emoes e sentimentos: uma pintura me-

    lanclica; um espetculo de dana alegre;

    um filme apaixonante; uma msica

    sombria. Tanto na psicologia quanto na

    filosofia e nos estudos sobre arte, encon-

    tramos uma tendncia a se explicar o fe-

    nmeno da expressividade artstica como

    uma forma de expresso ou projeo de

    sentimentos e estados subjetivos, seja por

    parte do artista, seja por parte do percebe-

    dor.

    Carroll (1999) enumera algumas

    teorias provenientes da esttica e da filoso-

    fia da arte que buscam explicar de que mo-

    do a emoo se expressa na arte. Uma teo-

    ria que ficou bastante popular, por exem-

    plo, foi proposta por Tolsti, para quem a

    expressividade seria uma forma de comu-

    nicao de emoes do artista. Carroll a-

    firma que, na filosofia da arte, esta ideia

    foi amplamente aceita e formulada em

    termos de uma teoria da expresso. Se-

    gundo ela, o que marcaria a arte seria uma

    preocupao primria com a comunicao

    de emoes, ou seja, de um estado emo-

    cional interno que seria externalizado e

    transmitido para espectadores, leitores e

    ouvintes:

    De acordo com o terico da expresso, o

    que transferido uma emoo. Um artis-

    ta olha uma paisagem e se sente melanc-

    lico. Ento desenha a paisagem de tal for-

    ma que o espectador experiencia o mesmo

    sentido de melancolia. O artista expressa

    sua melancolia aqui significa que ele tem

    um sentimento de melancolia, o qual

    transmite ou instila em seu pblico ao de-

    senhar de certa maneira1. (Carroll, 1999, p.

    61)

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    Esta teoria pressupe trs condies

    necessrias para que exista arte: um artista,

    um pblico e uma emoo compartilhada.

    Ela tambm deixa subentendido que a e-

    moo expressa pelo artista no uma e-

    moo geral, mas totalmente particular, e

    que a emoo experimentada pelo pblico

    do mesmo tipo daquela que o artista sen-

    tiu.

    Carroll, por sua vez, sustenta que a

    arte expressa no exatamente emoes, e

    sim qualidades humanas, ou propriedades

    antropomrficas (1999, p. 80), que seriam

    representadas por qualidades emotivas

    (raiva, tristeza, e assim por diante) e quali-

    dades de carter (coragem, honestidade,

    imponncia, etc.). Apresenta ento a teo-

    ria da exemplificao metafrica, que

    afirma que estas qualidades estariam e-

    xemplificadas nas obras de arte de manei-

    ra metafrica: uma msica no seria lite-

    ralmente triste, apenas possuiria a proprie-

    dade da tristeza metaforicamente. As pro-

    priedades antropomrficas se instalariam

    na obra atravs da metfora, aqui entendida

    como a transferncia de um conjunto de

    caractersticas de um campo semntico

    original de aplicao para outro campo.

    O autor, entretanto, acredita que

    apenas em alguns casos a arte expressa

    estas qualidades emotivas e de carter a-

    travs da metfora. Em outros casos co-

    mo na literatura e no teatro , as proprie-

    dades expressivas so atribudas pelos pr-

    prios personagens, que, possuindo estados

    psicolgicos, podem express-las de forma

    direta (quando um ator representa estar

    triste ou alegre, por exemplo), ou podem

    ser atribudas a seres inanimados em virtu-

    de de sua configurao, por possurem tra-

    os que associamos com caractersticas

    humanas, tais como quando dizemos que

    uma rvore expressa angstia por conta de

    seus galhos retorcidos (Carroll, 1999).

    De qualquer modo, as teorias apre-

    sentadas por Carroll continuam a se basear

    na premissa de que a expressividade na

    arte se relaciona com a comunicao de

    emoes, qualidades emotivas ou qualida-

    des de carter humano. O ponto de partida

    da experincia , ainda, o ntimo plano

    interior do artista e do percebedor.

    Na psicologia, podemos observar

    uma predominncia de estudos sobre a

    expresso artstica, se comparados com o

    nmero de estudos dedicados ao fenmeno

    da expressividade. Assim, h uma tendn-

    cia a se investigar a expresso no sentido

    de uma ao, de uma projeo de estados

    subjetivos atravs da produo de uma

    obra de arte.

    A expresso de conflitos do artista

    proposta pela psicologia como uma das

    caractersticas primordiais da arte. Com

    frequncia, defende-se a ideia de que a

    personalidade de um artista pode ser traa-

    da e analisada atravs de suas obras. Este

    tipo de ideia foi e proposto por vrias

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    vertentes psicolgicas. Muitos instrumen-

    tos e tcnicas projetivas foram tambm

    inspirados na ideia de que a pintura e o

    desenho so ferramentas de psicodiagns-

    tico. Por sua vez, a arte-terapia defende

    que a arte no somente um instrumento

    de expresso do sujeito como tambm um

    instrumento de cura para seus sintomas

    (ver, por exemplo, Vasconcellos e Giglio,

    2007).

    Sigmund Freud, em seu texto O

    Moiss de Michelngelo (Freud,

    1914/1974), se pergunta como a arte ca-

    paz de exercer to poderoso efeito sobre

    ns, sem que ao menos saibamos por que

    somos afetados e de que modo. Conclui

    que o que nos encanta to poderosamente

    no o objeto artstico (obra de arte) ele

    mesmo; a inteno do artista que nos

    comove. Para ele, uma obra de arte pas-

    svel de anlise e interpretao, de modo

    que, apenas assim, se pode chegar a com-

    preender a expresso efetiva das intenes

    e das atividades emocionais do artista

    (Freud, 1914/1974, p. 252). Apenas esta

    interpretao pode revelar o que aquilo

    que nos afeta to profundamente, quais so

    os significados e contedos ocultos repre-

    sentados na obra de arte. A literatura, por

    exemplo, ocultaria desejos infantis e proi-

    bidos, desejos insatisfeitos que atravs dela

    se realizariam.

    Os desejos que a obra de arte tem

    funo de realizar so desejos que, se fos-

    sem de fato realizados, no causariam pra-

    zer, seriam mesmo excitaes muito peno-

    sas. apenas no jogo de fantasias propor-

    cionado pela obra que a realizao de tais

    desejos pode se tornar fonte de prazer para

    seus ouvintes e espectadores. Segundo

    Freud, os artistas conseguem transformar

    desprazer em prazer atravs da tcnica de

    sua arte. As emoes que causam em ns

    um tipo de prazer preliminar, que esttico

    e formal, uma espcie de prmio do est-

    mulo. Alm disso, a arte funcionaria tam-

    bm como um escape, criando oportunida-

    de para o leitor se deleitar com seus pr-

    prios devaneios sem culpa (Freud,

    1908/1969).

    A despeito de um considervel inte-

    resse pelo ato de expresso, a psicologia

    pouco se pronuncia quanto expressivida-

    de das obras de arte, entendida como uma

    propriedade e uma caracterstica que elas

    portam. Pouco se pergunta sobre o que

    nelas as torna expressivas e de que forma

    percebemos sua expresso.

    Podemos citar trs explicaes psi-

    colgicas principais para o fato de que po-

    demos perceber um objeto como expressi-

    vo (Guillaume, 1937/1966). A primeira

    sustenta que por empatia que um objeto

    pode nos parecer triste, alegre, vibrante.

    Segundo esta explicao, atravs da

    comparao do objeto com certos estados

    pelos quais o percebedor j passou que

    possvel perceber sua expresso. Por e-

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    xemplo, um salgueiro, com seus galhos

    languidamente cados, remeter-nos-ia ao

    caimento de nossos braos e de nosso cor-

    po quando estamos tristes. Desta forma,

    diramos que aquela uma rvore triste,

    pois recorremos a nossa experincia passa-

    da, nos colocamos no lugar do prprio ob-

    jeto, para interpretar aquilo que ele expres-

    sa.

    Outra explicao possvel a de

    que a percepo da expressividade de um

    objeto se deve a uma projeo dos senti-

    mentos do percebedor sobre aquilo que

    percebido. Afinal, como podemos explicar

    que o cair de uma tarde nos parea melan-

    clico? Apenas o vemos assim porque

    assim que nos sentimos. Projetamos nossa

    prpria melancolia naquilo que percebe-

    mos, a expressividade nada mais do que

    o colorido que nossos prprios sentimentos

    do s coisas ao nosso redor (Guillaume,

    1966).

    Por fim, h ainda a clebre explica-

    o associacionista, segundo a qual objeto

    e valor so, a priori, completamente inde-

    pendentes entre si e, apenas por uma coin-

    cidncia casual, atribumos certos valores a

    certos objetos. preciso que ocorra uma

    aprendizagem anterior para que certos ob-

    jetos expressem determinadas emoes ou

    sentimentos. Para os associacionistas, uma

    criana aprende que sorrir significa de-

    monstrar alegria, mas esta interpretao

    no seria jamais espontnea. Apenas por

    observao e aprendizagem podemos atri-

    buir o valor alegria ao objeto sorriso.

    Da mesma forma, aprenderamos que certo

    tipo de grito exprime dor ou que determi-

    nada postura do corpo exprime tristeza

    (Guillaume, 1937/1966).

    A expressividade entendida como

    percepo de foras dinmicas

    Em uma passagem do livro No

    caminho de Swann, de Marcel Proust,

    encontramos a descrio da impresso que

    uma msica escutada pelo personagem

    principal lhe causara:

    (...) eis seno quando, por baixo da linha

    meldica do violino, tnue, resistente, den-

    sa e dominadora, ele vira de sbito elevar-

    se, num marulho lquido, a massa da parte

    do piano, multiforme, indivisa, plana e en-

    trechocada como a malva agitao das va-

    gas que o luar encanta e bemoliza. (...) sem

    poder distinguir com nitidez um contorno,

    dar um nome ao que lhe agradava, subita-

    mente arrebatado, buscara recolher a frase

    ou a harmonia ele mesmo no o sabia

    que passava e que lhe abria a alma mais

    largamente (...) Num ritmo lento, ela [a

    frase] o dirigia primeiro para um lado, de-

    pois para outro, depois mais adiante, para

    uma felicidade nobre, precisa e inintelig-

    vel. E de repente (...) mudava de direo

    bruscamente e, com um novo movimento,

    mais rpido, mido, permanente, melanc-

    lico e suave, ela o arrastava consigo para

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    perspectivas desconhecidas. Depois, desa-

    pareceu. (Proust, 2003, p. 207-208)

    O extrato retirado da obra de Proust

    a descrio da experincia de se escutar

    uma msica. O autor nos envolve na expe-

    rincia vivida pelo personagem, dentro da

    qual mergulhamos. como se experimen-

    tssemos com ele aquela msica: vivemos

    sua dinmica, acompanhamos seu ritmo,

    somos confrontados com suas pausas. En-

    tretanto, nenhuma linha foi reservada pelo

    autor para uma descrio objetiva daquela

    composio. No nos informado seu tom,

    seu tempo, suas notas; apenas sabemos que

    foi tocada por um violino e um piano.

    Proust descreve uma experincia sem con-

    tornos definidos, na qual o personagem no

    consegue identificar com preciso o que

    que lhe agrada. O autor no utiliza termos

    tcnicos para descrever o som do violino,

    mas recorre a suas caractersticas expressi-

    vas: sua linha meldica tnue, resisten-

    te, densa e dominadora. Do mesmo modo,

    a frase da pea musical que mais lhe im-

    pressiona tem um movimento rpido, mi-

    do, permanente, melanclico e suave. E

    Proust fala ainda da relao que se estabe-

    lece entre a msica e Swann: ela o tira do

    eixo, o move por completo, entra em um

    jogo de foras com ele ela lhe arrebata,

    lhe abre a alma. Seu ritmo, ora lento, ora

    rpido, o dirige e o arrasta cada hora para

    um lado. Somos convidados a experimen-

    tar os efeitos provocados pela msica em

    Swann e tal experincia nos parece muito

    mais significativa e potente do que qual-

    quer descrio objetiva minuciosa em ter-

    mos de seu tom, tempo ou sequncia de

    notas poderia ser. Proust descreve-nos a

    msica em termos de sua expressividade.

    Observemos que a descrio do e-

    feito da msica sobre o personagem no

    menciona nenhum tipo de reproduo dos

    sentimentos do artista naquele. Em vez

    disso, Swann parece ser movido por algo

    que o toma de corpo inteiro. A experincia

    que ele narra parece-nos mais compreens-

    vel em termos de foras que o perturbam,

    que o afetam visceralmente, do que em

    termos de sentimentos bem definidos e

    categorizados, que seriam transmitidos

    pela msica. Certamente, ocorre uma afe-

    tao do personagem e seria impossvel

    dizer que ele vivencia tudo de maneira

    impassvel. Porm, as sensaes e senti-

    mentos que aquela experincia provoca

    no podem ser equiparados s emoes e

    sentimentos que estavam presentes na m-

    sica (e, antes, no artista) e que, suposta-

    mente, teriam se reproduzido em Swann;

    eles seriam, muito mais, uma consequncia

    desse efeito primrio de afetao causado

    pela fora dinmica que caracteriza a obra.

    De fato, muitos autores indicam

    uma estreita relao entre a arte e certas

    foras dinmicas que parecem ser centrais

    na experincia com ela. Deleuze e Guattari

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 242

    (2007) afirmam que o problema comum de

    todas as artes o de captar o plano das

    foras. A tarefa da pintura, por exemplo,

    no reproduzir ou inventar formas, mas

    tentar tornar visveis foras invisveis (De-

    leuze, 2007). O artista realiza esta tarefa

    extraindo perceptos de percepes. atra-

    vs dos perceptos que ele torna sensveis as

    foras invisveis que povoam o mundo e

    que nos afetam, nos fazendo entrar em

    devir. Os afectos so estes devires no hu-

    manos do homem. Segundo Deleuze e

    Guattari, o artista algum que v na vida

    algo demasiado grande, sendo por isso um

    vidente, algum que se torna. O afecto que

    transborda dos perceptos marca, ento,

    uma sada de um mundo representacional

    de semelhana entre formas e aponta para a

    potncia de um fundo capaz de dissolver a

    forma e revelar as foras que a habitam.

    Pensando com Deleuze, podemos

    supor que a expressividade artstica est

    relacionada com estas foras que o artista

    captura em tudo que transborda vida. No

    se trata da representao de um contedo

    pelo que ele tem em si, mas de sua potn-

    cia dinmica, que nos atinge e nos absorve

    em seu ritmo. Deleuze e Guattari (2007)

    afirmam que o artista faz vibrar a sensao;

    atravs dela ele captura afectos impessoais,

    e no emoes pessoais.

    Nesse mesmo sentido, Suely Rolnik

    (2000) afirma que as obras so vibrteis. A

    arte deixaria entrever as foras, evidenci-

    ando a potncia vital que tudo agita. A

    competncia do artista encarnar, na o-

    bra, a percepo da vida que pulsa nas coi-

    sas, autonomizada de sua pessoa (Rolnik,

    2001, p.30). O artista deve encontrar nas

    coisas a vitalidade que delas emana e tra-

    duzi-la para um meio de expresso que a

    encarne.

    Mas, do ponto de vista cognitivo,

    como entender a expressividade como cap-

    tura de foras e afectos, como entender

    essa potncia vital que tudo agita e que o

    artista faz aparecer em suas obras? Como

    percebemos essas foras e de que modo o

    artista as captura?

    Para responder a estas perguntas,

    iremos nos apoiar, principalmente, na teo-

    ria da percepo do gestaltismo e no traba-

    lho de trs autores que nos ajudaro a

    compreender melhor os aspectos cogniti-

    vos e experienciais da percepo e da cria-

    o da expressividade na arte: Rudolf Ar-

    nheim (1966, 1984, 2002, 2004), Daniel

    Stern (1992, 2010) e John Dewey

    (1934/2010). Na psicologia, vemos a teoria

    gestaltista se destacar como uma alternati-

    va a explicaes da expressividade pela

    associao, empatia ou projeo de senti-

    mentos. Koffka (1935/1975) e Khler

    (1938/1976), ligados Escola de Berlim, e

    mais tarde Arnheim (2002) cuja afinida-

    de com o gestaltismo inquestionvel ,

    sustentaram que o prprio objeto artstico

    poderia portar um carter expressivo in-

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 243

    trnseco. Com isso, o problema da expres-

    sividade2 pde ser recolocado em novos

    termos.

    Para os gestaltistas, os objetos pos-

    suem um carter, seja ele estranho, gracio-

    so, elegante, irritante ou outro. Esse carter

    se deve prpria estrutura do objeto, sendo

    uma propriedade formal, que possui um

    sentido ou valor intrnseco. O fato expres-

    sivo no se confunde com um signo, cujo

    significado seria algo diferente dele pr-

    prio. Ele fruto do carter objetivo da

    forma e est sempre dado na percepo

    direta (Guillaume, 1937/1966).

    A introduo do conceito de campo

    no estudo da percepo criou condies

    para que a expressividade fosse entendida

    como um fenmeno objetivo. O conceito

    refere-se existncia de foras no meio

    comportamental que determinam e regu-

    lam nossa percepo e comportamento.

    Assim, o campo pressupe no s a exis-

    tncia de objetos no meio comportamental,

    mas tambm a de suas propriedades din-

    micas. O campo , na maior parte do tem-

    po, heterogneo, ou seja, h nele sempre

    uma tenso entre seus componentes e uma

    direo de destaque para onde a percepo

    atrada. O sujeito percebedor no somen-

    te percebe tenses entre os diversos objetos

    do campo, mas , ele prprio, parte deste

    campo, estando sujeito ao das foras

    que o compem. A expressividade uma

    propriedade do objeto artstico e sua per-

    cepo resulta de certa conformao de

    foras e tenses perceptivas no campo, que

    implicam o percebedor e o atingem de

    forma vvida.

    Arnheim (2002) desenvolve as i-

    deias gestaltistas em seu trabalho e susten-

    ta, de forma semelhante, que a expressivi-

    dade uma qualidade intrnseca aos pr-

    prios objetos. Sua teoria sobre a expresso

    afirma a existncia de uma dinmica, ou

    seja, de um jogo de foras, presente na

    estrutura dos objetos. As obras de arte,

    ento, seriam dinmicas por excelncia e

    colocariam em evidncia o jogo de foras

    intrnseco s coisas. tal atributo estrutu-

    ral que confere unidade obra: graas a

    ele, o objeto percebido porta certa qualida-

    de, a que chamamos de expressividade. A

    aparncia dinmica de um objeto revela

    maneiras de comportamento, que possi-

    bilitam que dele se diga que agressivo,

    triste, enrgico, alegre, doce, suave, tenso,

    e assim por diante. Em uma pintura, por

    exemplo, as linhas, as cores e as formas

    possuem direes, intensidades e deforma-

    es que percebemos como foras e ten-

    ses dirigidas. So estas foras e tenses

    que do carter dinmico e expressivo

    pintura. A expresso depende da percepo

    do impacto dessas foras na obra. Tais

    foras chegam vivas ao espectador e pro-

    duzem a espcie de participao ativa que

    distingue a experincia artstica da aceita-

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 244

    o separada da informao (Arnheim,

    2002, p. 452).

    As qualidades dinmicas so um

    aspecto inseparvel da percepo, qualquer

    que seja a modalidade sensorial nela impli-

    cada. Apenas quando atentamos para as

    propriedades mtricas daquilo que vemos

    que existe alguma possibilidade de igno-

    rarmos a expresso direta dos objetos ou

    situaes. Quando apreendidos em termos

    de suas qualidades dinmicas, os objetos

    so percebidos como carregados de signifi-

    cado expressivo. As descries mtricas

    escondem a qualidade fundamental da ex-

    perincia perceptiva, tal como a percepo

    da ponta agressiva de um tringulo, o cho-

    que dissonante de matizes coloridos ou o

    arremesso do movimento explosivo (Ar-

    nheim, 1984).

    A arte afeta: expressividade e afetos de

    vitalidade

    Do mesmo modo, encontramos na

    obra de Daniel Stern (1992, 2010) uma

    importante fonte para entendermos a per-

    cepo da expressividade artstica para

    alm da transmisso ou projeo de senti-

    mentos e emoes. Stern (2010) aponta

    que, em nosso cotidiano, estamos total-

    mente mergulhados em experincias de

    vitalidade. A vitalidade seria uma espcie

    de fora, de energia vital que percebemos

    na ao das pessoas e em certas coisas ao

    nosso redor. Podemos entender a experin-

    cia de vitalidade pela anlise da dinmica

    de eventos muito pequenos e que, segundo

    Stern (2010), so a base dos momentos

    psicolgicos e interpessoais de nossa vida:

    a fora, velocidade e fluir de um gesto; o

    timing e o acento de uma frase ou palavra;

    o modo como algum abre um sorriso ou o

    curso de tempo para desfaz-lo; o modo de

    uma pessoa mudar de posio em uma ca-

    deira; a mudana de direo ou o voo de

    um olhar; a pressa de um pensamento. Es-

    tes so exemplos de experincias em pe-

    quena escala e que so a matriz para expe-

    rienciarmos as outras pessoas e sentirmos

    sua vitalidade. Para o autor, essa experin-

    cia to central que ele chega mesmo a

    afirmar que ns vivemos impresses de

    vitalidade como ns respiramos o ar

    (Stern, 2010, p.3).

    Todavia, as experincias de vitali-

    dade no estariam restritas ao encontro

    com pessoas, mas tambm seriam caracte-

    rsticas de outras situaes, como nossa

    experincia com a arte. Uma vez que a

    expressividade artstica refere-se, justa-

    mente, ao carter dinmico e vvido das

    obras de arte, podemos dizer que o fen-

    meno da expressividade equivale experi-

    ncia de vitalidade proposta por Stern. A-

    final, uma obra de arte sempre mais do

    que um simples objeto que se presta re-

    cognio, e a fora de sua expressividade

    est exatamente em sua intensa relao

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 245

    com os aspectos mais vitais de nossa expe-

    rincia.

    Podemos encontrar em um espet-

    culo de dana ou teatro, por exemplo, uma

    performance tcnica adequada, mas uma

    pea s marca nossa experincia, de fato,

    quando o artista consegue trazer ao seu

    trabalho uma vitalidade dinmica nica

    que se expressa no espetculo. A descrio

    da experincia de Swann de escutar uma

    msica, como mostramos, tambm revela a

    grande vitalidade e dinmica que a msica

    parece portar, atingindo o personagem com

    intensidade.

    Para explicar as experincias de vi-

    talidade, Stern desenvolve o conceito de

    afetos de vitalidade (Stern, 1992) ou

    formas dinmicas de vitalidade (Stern,

    2010)3. A compreenso do papel dos afetos

    de vitalidade em nossa experincia percep-

    tiva ser essencial para compreendermos o

    fenmeno da expressividade e nos permiti-

    r dispensar as noes de emoo e senti-

    mento como base explicativa para o mes-

    mo.

    Stern acredita que os chamados afe-

    tos categricos (alegria, tristeza, raiva, e

    assim por diante) que corresponderiam s

    emoes e aos sentimentos evocados pelas

    teorias estticas e psicolgicas que apre-

    sentamos no incio deste artigo no so

    suficientes para descrever determinadas

    formas de experincia. Ele sugere, ento,

    que preciso acrescentar uma nova catego-

    ria de afetos para dar conta delas, visto que

    existem muitas qualidades de sensao que

    no se ajustam ao nosso lxico ou taxono-

    mia de afetos existentes (Stern, 1992). As-

    sim, os afetos de vitalidade recobrem cer-

    tas qualidades da experincia que so mais

    bem designadas por termos dinmicos e

    cinticos (geralmente adjetivos ou advr-

    bios), como: explosivo, relaxante, tenso,

    parado, crescente, pulsante, lnguido, ace-

    lerado, fraco, decrescente, flutuante, pro-

    longado, entre outros. So eles que trazem

    a experincia de vitalidade para nossas

    percepes, mas no so, de maneira al-

    guma, emoes nem estados motivacio-

    nais.

    Os afetos de vitalidade no dizem

    respeito ao contedo de uma experincia,

    mas, antes, a sua forma dinmica. Relacio-

    nam-se com o como, com o modo e esti-

    lo atravs do qual uma experincia ocorre,

    e no com o o que ou por qu desta.

    Dessa forma, os afetos de vitalidade repre-

    sentam um aspecto de nossa experincia

    cotidiana que permeia todas as nossas a-

    es e percepes, embora nem sempre

    estejamos atentos a eles. Eles esto sempre

    presentes, mesmo que fora de nossa cons-

    cincia, enquanto afetos regulares como

    alegria, tristeza e raiva, ora aparecem, ora

    desaparecem de nossa experincia.

    Assim, os afetos de vitalidade so

    distintos dos afetos categricos, pois so

    inerentes a todo comportamento. Eles po-

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 246

    dem ocorrer na presena ou no de afetos

    categricos, no sendo a mesma coisa que

    uma emoo. A emoo apenas um dos

    possveis contedos que podem ser mode-

    lados em formas dinmicas de vitalidade.

    A dinmica no uma caracterstica per-

    tencente a uma emoo em particular. Por

    exemplo, um afeto de vitalidade de sobre-

    carga pode tanto se referir a uma sobrecar-

    ga de raiva ou alegria, quanto a uma inun-

    dao de luz percebida, uma sequncia

    acelerada de pensamentos, uma imensur-

    vel onda de sentimentos despertada por

    uma msica ou a injeo de narcticos.

    Um afeto de vitalidade no se refere ao

    contedo de um sentimento, mas a uma

    forma que pode se referir a todo e qualquer

    tipo de evento. O afeto de vitalidade ex-

    plosivo, por exemplo, pode tanto se refe-

    rir a um riso quanto a um levantar-se de

    uma cadeira (Stern, 1992).

    Stern afirma que a vitalidade uma

    experincia subjetiva e uma realidade fe-

    nomenal que possui uma base na ao fsi-

    ca e em operaes mentais rastreveis, no

    se confundindo, ento, com uma forma de

    vitalismo. A base fsica dos afetos de vita-

    lidade o movimento, e ele carrega consi-

    go alguns componentes dinmicos impor-

    tantes. Em primeiro lugar, uma vez que

    todo movimento se desenvolve em certo

    perodo de tempo, podemos atribuir a ele

    um contorno ou perfil temporal, de acordo

    com o modo como ele comea, se desen-

    volve e termina. Assim, nossa percepo

    do movimento caracteriza-se por um senso

    de tempo, forma e durao. Alm disso,

    quando percebemos movimento, geralmen-

    te atribumos uma fora a ele e tendemos a

    consider-la como intrnseca ou como es-

    tando por trs dele. O movimento defi-

    ne, tambm, certo senso de espao e, fi-

    nalmente, parece possuir uma orientao,

    ou seja, sentimos que ele vai a algum lu-

    gar (Stern, 2010).

    Stern define, dessa maneira, cinco

    componentes dinmicos que caracterizari-

    am nossa percepo de vitalidade: movi-

    mento, tempo, fora (ou intensidade), es-

    pao (ou forma) e orientao. Eles ocorrem

    sempre simultaneamente, formando uma

    espcie de Gestalt, ou, como o autor no-

    meia, uma pntade dinmica fundamen-

    tal (Stern, 2010, p.4). S podemos separ-

    los de maneira terica ou analtica; a vita-

    lidade sempre experimentada ou percebi-

    da como um todo, surgindo como uma

    propriedade emergente. Stern (1992) tam-

    bm afirma que os componentes da vitali-

    dade so qualidades amodais de nossa ex-

    perincia. Isso significa que, apesar de

    serem compartilhadas por todas as modali-

    dades sensoriais, tais qualidades dinmicas

    da experincia no so especficas de ne-

    nhuma delas, sendo um aspecto mais glo-

    bal de nossa experincia. Elas so caracte-

    rsticas no somente de nossas experincias

    sensoriais, mas de muitas outras formas de

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 247

    experincia. Por exemplo, podemos dizer

    que uma cor (estmulo visual) possui tanta

    intensidade quanto um som (estmulo audi-

    tivo) ou um odor (estmulo olfativo); mas

    tambm podemos perceber intensidade em

    uma gama de experincias no sensoriais:

    uma conversa pode ser intensa, um senti-

    mento ou mesmo um pensamento.

    Assim, em comparao com as e-

    moes e sentimentos, os afetos de vitali-

    dade esto mais aptos a exercerem um pa-

    pel fundamental na percepo da expressi-

    vidade artstica. Com eles, podemos enten-

    der de que modo as obras de arte encarnam

    sua expressividade, identificando nelas as

    qualidades amodais dinmicas que as tor-

    nam expressivas.

    Para Stern (1992), os afetos de vita-

    lidade se apresentam nas obras atravs do

    estilo, ou seja, de acordo com o modo co-

    mo as formas so tratadas na arte como

    as cores e linhas so executadas em uma

    pintura, por exemplo. Assim como com-

    portamentos expressivos comportam afetos

    de vitalidade, a expressividade de uma

    obra de arte tambm seria uma funo do

    estilo, variando segundo o modo como ela

    executada, como nela se criam harmonias

    de cores ou resolues lineares, e assim

    por diante.

    Cada forma de arte possui uma ma-

    neira de traduzir os afetos de vitalidade no

    campo do perceptvel. Cada uma delas,

    recorrendo a seu prprio meio de expres-

    so, incorpora s obras certa vitalidade (ou,

    como preferimos, expressividade) atravs

    da forma pela qual o movimento, o tempo,

    a fora, o espao e a orientao so empre-

    gados. Na msica, por exemplo, a intensi-

    dade equivale qualidade amodal de fora

    dos afetos de vitalidade. A altura perce-

    bida como um reflexo da fora, o que sig-

    nifica, por exemplo, que para que um pia-

    nista alcance um som mais alto, ele deve

    trazer mais peso para suas mos, de modo

    que esta ao tenha um efeito perceptvel

    para o pblico em geral. Isto vale para

    qualquer instrumento. Do mesmo modo, o

    esprito da velocidade das msicas resul-

    ta de variaes no tempo e marcado pela

    conveno musical, algo que est implica-

    do nas indicaes de allegro (suave), an-

    dante (andando rpido), entre outras. Estas

    variaes ajudam tambm a construir a

    forma de vitalidade a ser expressa.

    Na dana e no teatro, diferentes afe-

    tos de vitalidade resultam de variaes de

    esforo e forma que permitem falar em

    fora, velocidade, desacelerao, acelera-

    o, energia, flexibilidade, etc. A singula-

    ridade de uma interpretao vai variar,

    segundo Stern, de acordo com a forma

    como uma performance executada. Isso

    fica evidente na seguinte passagem, em

    que o autor descreve como a maneira de se

    executar determinado movimento pode

    criar efeitos dinmicos completamente

    diferentes algo a que o clebre coregra-

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    fo e diretor americano Jerome Robbins,

    premiado pelo clssico musical West Side

    Story, parecia ser muito sensvel:

    Alguns recursos dinmicos so quase im-

    possveis de codificar; no h linguagem

    ou signo para eles. Dois exemplos da core-

    ografia de Jerome Robbins so notveis.

    Pediu-se a uma danarina que ela virasse

    sua cabea bruscamente para o lado, em

    noventa graus. Ela o fez, e pareceu bom,

    mas no foi exatamente o que Robbins

    queria, ento ele disse, vire a cabea co-

    mo se voc tivesse levado um tapa na cara,

    forte. Quando ela fez isso, o efeito foi

    bem diferente. (Stern, 2010, p.86)

    Assim, cada forma de arte possui

    sua prpria maneira de codificar as formas

    dinmicas. Cada tipo de arte encontra suas

    prprias tcnicas para criar, basicamente,

    as mesmas formas vitais compartilhadas

    por todas.

    Entretanto, uma vez que Stern toma

    o movimento como elemento central para

    explicar o carter dinmico das experin-

    cias de vitalidade, podemos nos perguntar

    como os afetos de vitalidade podem com-

    parecer nas chamadas artes estticas, como

    a pintura, a fotografia e a escultura. Stern

    (2010) prev algumas explicaes poss-

    veis para estes casos, embora no se esten-

    da muito nelas. Em primeiro lugar, aponta

    que a percepo de uma figura esttica no

    instantnea, mas leva tempo para ser cri-

    ada. Para que uma figura esttica seja vista,

    precisamos explor-la, viajar com os olhos

    sobre ela, algo que leva tempo e que no

    feito de maneira suave e uniforme. Para

    Stern, formas visuais estticas, como as

    cores, tambm implicam movimento. Por

    exemplo, as cores quentes, como o verme-

    lho, tendem a se projetar para frente em

    nossa percepo, e as cores frias tendem a

    retroceder. Para o autor, as cores

    (...) so como uma fora que age em voc.

    Curvas se movem suave e graciosamente,

    enquanto ngulos agudos se movem de

    forma denticulada. As linhas horizontais e

    verticais colocam o observador no espao

    virtual de maneira diferente das linhas dia-

    gonais, e assim por diante. (Stern, 2010, p.

    31)

    A posio de Stern encontra resso-

    nncia na teoria gestaltista da percepo,

    que a compreende como resultado de uma

    srie de interaes de foras e vetores no

    campo perceptivo, e concorda especial-

    mente com a posio de Rudolf Arnheim,

    quando este analisa esse jogo de foras

    perceptivas no campo da arte. Para que as

    qualidades amodais apontadas por Stern

    sejam percebidas, no preciso nenhum

    movimento real do objeto percebido. As

    foras perceptivas so de origem mental e

    surgem da interao da estrutura dinmica

    das obras de arte com nosso sistema per-

    ceptivo. Arnheim afirma que no h qual-

    quer razo para no falarmos em foras

  • Carij, M.; Kastrup, V.

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    Rev. Polis e Psique, 2014; 4(3): 234-255 | 249

    perceptivas e em percepo de movimento

    mesmo quando estamos diante de um sim-

    ples desenho num papel. Por exemplo,

    quando estamos diante de uma figura em

    que h um ponto preto ligeiramente deslo-

    cado para a direita em relao ao centro de

    um retngulo dentro do qual ele se encon-

    tra. Embora seja fisicamente esttica, ten-

    demos a perceber na figura um movimento

    tendencial do ponto preto em direo

    borda direita da imagem ou, ao contrrio,

    em direo ao centro dela. O gestaltismo

    explica esse fenmeno atravs da lei da

    boa-forma, que postula que nossa atividade

    perceptiva tende a equilibrar uma situao

    dada. Se compararmos essa primeira figura

    com uma segunda, em que o ponto preto se

    situa perfeitamente centralizado em relao

    ao retngulo que o envolve, veremos que,

    na ltima, o mesmo ponto se apresenta

    mais estvel e esttico, uma vez que sua

    posio no campo perceptivo est mais

    equilibrada do que na primeira figura. As-

    sim, nossa percepo est permanentemen-

    te sujeita a experimentao de foras per-

    ceptivas e a arte , por excelncia, um

    campo de explorao dessas foras (Ar-

    nheim, 2002).

    Arnheim descreve a expressividade

    como um fenmeno diretamente relaciona-

    do com a dinmica das formas, sendo uma

    qualidade fundamental de toda percepo.

    Tomando como exemplo a viso, Arnheim

    afirma que a percepo visual consiste na

    experimentao de foras visuais (Ar-

    nheim, 2002, p. 405). A dinmica a qua-

    lidade responsvel pela percepo da ex-

    presso. O autor observa que qualquer des-

    crio adequada de uma obra de arte car-

    regada de termos dinmicos, que visam dar

    conta de seu carter expressivo. Os percep-

    tos so proeminentemente dinmicos, ou

    seja, so percebidos como possudos por

    foras dirigidas (Arnheim, 1984).

    Arnheim (2002) sustenta que so as

    caractersticas dinmicas dos traos, cores

    e configuraes que tornam uma obra de

    arte expressiva. Para ele, no so sentimen-

    tos que so expressos por uma obra, mas

    qualidades dinmicas de toro, expanso,

    solidez, esforo, entre outros, que so reve-

    ladas atravs da conformao dinmica que

    assume a obra. Para o autor, o esqueleto

    estrutural de uma obra de arte revela o te-

    ma dinmico de uma obra, bem como as

    foras perceptveis que nela atuam, desper-

    tando na mente do observador uma corres-

    pondente configurao de foras, que che-

    gam a ele vivas e que lhe permitem perce-

    ber sua expressividade.

    Por exemplo, o famoso quadro de

    Munch, convenientemente intitulado Me-

    lancolia, apresenta, atravs de um meio

    visual, um afeto de vitalidade tal como o

    decaimento, que se expressa pela inten-

    sidade das cores usadas e por certo gradi-

    ente que formam, assim como pela forma e

    pelo ritmo sugeridos por suas linhas. As

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    qualidades dinmicas dos afetos de vitali-

    dade no so distinguidas como tais na

    experincia do observador, mas so expe-

    rimentadas como uma unidade.

    Para Arnheim (1984), a arte faz

    com que percebamos os estados dinmicos

    presentes na obra de arte atravs de uma

    experincia com caractersticas prprias.

    Esta experincia admite relaes variveis

    entre a estrutura dinmica da obra e o per-

    cebedor, relaes estas que se caracterizam

    por trs estados possveis diferentes. Em

    um primeiro nvel, as estruturas no so

    apreendidas em seu aspecto dinmico. A

    obra , ento, percebida em suas proprie-

    dades estticas, caracterizando uma situa-

    o de mera apreenso de informao, em

    oposio a uma experincia artstica plena

    (que capta as propriedades dinmicas dos

    objetos). Este o caso, por exemplo, de

    quando observamos e descrevemos uma

    pintura como um aglomerado de objetos,

    sem nos darmos conta de seu efeito prim-

    rio, que o efeito expressivo.

    Num segundo nvel, os traos di-

    nmicos daro vida no somente aos per-

    ceptos do mundo fsico, mas tambm s

    sensaes corporais, principalmente s que

    se referem a indicaes cinestsicas dos

    esforos e tenses musculares. Aqui, en-

    contramos uma ideia nova, muito pouco

    explcita nos trabalhos do autor, que chama

    a ateno para um efeito de ressonncia

    corporal, que em algumas pessoas e em

    certas ocasies refora notavelmente a ex-

    perincia artstica, atravs do sentido ci-

    nestsico. Estas sensaes funcionam co-

    mo um objeto perceptivo e ocorrem no s

    no artista, mas tambm no espectador. Po-

    dem ser suscitadas pela percepo de qual-

    quer sistema expressivo em qualquer meio,

    tais como as formas dinmicas da msica,

    da arquitetura ou da pintura. (Arnheim,

    1966).

    Num terceiro nvel, a dinmica do

    produto artstico envolve o prprio eu do

    observador, criador ou intrprete. Tal inva-

    so do eu pela dinmica da obra de arte

    seria responsvel, por exemplo, por uma

    afetao pela obra de tal intensidade que o

    espectador chega mesmo a chorar. Mas

    importante ressaltar que esta afetao no

    se explica pela histria de vida ou por sen-

    timentos de um eu; um produto da pe-

    netrao das foras dinmicas perceptivas,

    fruto de uma ressonncia corporal muito

    forte de tais foras no espectador.

    Deste modo, no reconhecemos a-

    penas a presena de uma agitao numa

    pea musical ou a desconcertante vacilao

    dos pensamentos de Hamlet; no texto de

    Shakespeare, tanto o artista quanto seu

    pblico sentem estes estados dinmicos

    como experincias em seu prprio corpo.

    Quando a percepo se d de maneira est-

    tica, os traos dinmicos dotam de vida

    no s os perceptos do mundo fsico, mas

    tambm as sensaes recebidas dentro do

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    corpo, sobretudo as indicaes cinestsicas

    dos esforos e tenses musculares. Estas

    sensaes funcionam como um objeto per-

    ceptivo. Animada pelo seu carter dinmi-

    co, a interpretao do ator ou bailarino

    expressiva, algo mais que um frio mos-

    trurio de gestos. Assim, sensaes cines-

    tsicas tambm podem ocorrer no especta-

    dor.

    interessante notar que muitos au-

    tores afirmam que a percepo da expres-

    sividade envolve o corpo de maneira dire-

    ta. Assim, quando apreciamos uma obra de

    arte, ao nosso corpo que ela se enderea

    primariamente: num nvel ainda indescri-

    tvel em palavras, mas de realidade e con-

    cretude intensas, que ela causa um impacto

    que , antes de tudo, corporal.

    Os trabalhos de Arnheim e Stern

    nos ajudam a defender e sustentar a ideia

    de que a expressividade no se explica pelo

    contgio do pblico pela emoo pessoal

    do artista, nem pela projeo de nossos

    prprios sentimentos sobre as obras de

    arte, mas pode ser compreendida pelo car-

    ter dinmico das prprias obras, que por-

    tam, pelo modo como exibem as formas,

    cores, movimentos, e assim por diante,

    certos afetos de vitalidade que lhes do um

    carter expressivo nico.

    Concluso: o fenmeno da expresso sob

    a perspectiva da expressividade

    A explicao do fenmeno da ex-

    pressividade tem consequncias diretas

    para o entendimento do fenmeno da ex-

    presso, entendido aqui como o processo

    atravs do qual o artista torna suas obras

    expressivas. Como vimos, a maioria das

    teorias estticas e psicolgicas entendem

    que, no processo de criao, o artista, de

    algum modo, exprime seus sentimentos e

    seu eu atravs da arte. Porm, se recusa-

    mos a ideia de que as obras expressam

    emoes e sentimentos dos artistas, elimi-

    namos tambm a ideia de que expressar

    emoes o que os artistas fazem. Agora

    podemos lanar um novo olhar sobre a

    expresso, tomando-a como um processo

    atravs do qual o artista cria com foras

    dinmicas, apresentando essas foras em

    sua obra com base, principalmente, em sua

    percepo.

    Se entendermos o ato de criao ar-

    tstica tal como proposto por John Dewey

    (1934/2010), admitiremos que a percepo

    esttica no uma atividade exclusiva do

    percebedor, sendo central tambm para o

    ato de criao artstica. Assim, o processo

    de criao no uma descarga de senti-

    mentos ou uma via de autoexpresso. Todo

    ato de criao artstica abarca uma percep-

    o esttica. Ou seja, ao criar, o artista as-

    sume tambm o papel de espectador, j que

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    toda criao se fundamenta na percepo

    de relaes que vo se estabelecendo na

    obra ao longo de sua produo e que orien-

    tam o trabalho. O artista seleciona e rene

    materiais que sero trabalhados a fim de

    criar uma obra na qual se encarnam um

    sentido e uma qualidade expressiva que

    penetram o todo da experincia.

    O autor destaca que nem toda ativi-

    dade de dentro para fora (Dewey,

    1934/2010, p.164) , por isso, expressiva.

    Uma tempestade de paixo, por exemplo,

    no constitui um ato expressivo, visto que

    nela existe apenas atividade. O sujeito d

    vazo a um acesso de paixo, mas no h

    nem reflexo, nem a transformao de e-

    lementos do meio em veculos expressivos.

    H apenas um transbordamento. A descar-

    ga afetiva uma condio necessria, mas

    no suficiente da expresso. Descarregar

    livrar-se de algo, descart-lo; expressar

    ficar com a turbulncia, lev-la adiante em

    seu desenvolvimento, elabor-la at sua

    concluso (Dewey, 1934/2010, p. 148-

    149). Para haver expresso, h que se ela-

    borar as condies objetivas e moldar o

    material para que ele encarne tal agitao.

    Dewey afirma que, ao longo do ato

    expressivo, h uma emoo que guia o

    processo at sua concluso. Mas preciso

    esclarecer que, para o autor, a emoo que

    guia um ato expressivo no um afeto

    categrico que o artista sente e que busca

    expressar em sua obra. A emoo apresen-

    tada por Dewey antes se assemelha noo

    de afetos de vitalidade apresentada por

    Stern (1992, 2010) e possui um papel de

    extrema importncia na conduo do ato

    de expresso, embora no constitua seu

    contedo.

    A emoo, para Dewey, possui uma

    funo fundamental no processo expressi-

    vo devido a seu carter seletivo. Ela pode

    ser comparada com um clima predominan-

    te que exclui tudo aquilo que no se incor-

    pora a ele. Ela seleciona tudo que lhe

    cognato, que pode aliment-la e levar o

    processo de criao a uma concluso. Ela

    extrai matria de uma multiplicidade de

    objetos, numrica e espacialmente separa-

    dos, e condensa o que abstrado em um

    objeto que uma sntese dos valores per-

    tencentes a todos (Dewey, 1934/2010, p.

    157).

    Esta emoo parece sobrepor-se ao

    prprio artista, pois responsvel pela cri-

    ao de um encadeamento que se apresenta

    ao espectador como intrinsecamente neces-

    srio, seguindo uma lgica prpria, que

    est acima da inteno consciente. Dewey

    coloca que esta a razo pela qual, de vez

    em quando, no irritamos ou nos ofendemos

    com certas obras de arte, em que a seleo

    e a montagem dos materiais no parecem

    guiados por uma emoo inerente a ela,

    mas por um esforo do autor em despertar

    no espectador determinada emoo pr-

    definida, que no condiz com o clima geral

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    da obra. Em um romance, por exemplo,

    isto ocorre quando o autor faz de um per-

    sonagem um fantoche para expor uma i-

    deia que ele mesmo aprecia. Este tipo de

    manobra causa-nos muitas vezes desagra-

    do, visto que provm de fora do movimen-

    to temtico da obra.

    preciso, ento, que a criao ar-

    tstica tambm esteja pautada na captura de

    um afeto de vitalidade. O trabalho do artis-

    ta consiste, entre outras coisas, em conse-

    guir transmitir, em sua obra, a dinmica

    desse afeto, e no sua prpria subjetivida-

    de. isso que Matisse parece querer afir-

    mar quando descreve a importncia de se

    capturar as foras dinmicas da natureza

    atravs da pintura:

    na expresso de ritmo que a atividade do

    artista ser realmente criativa (...). Na Na-

    tureza-morta com magnlia, transmiti com

    o vermelho uma mesa de mrmore verde;

    em uma outra parte, precisei de uma man-

    cha preta para evocar a reverberao do sol

    sobre o mar; todas essas transposies no

    foram de forma alguma fruto do acaso ou

    de sabe-se l qual fantasia, mas o resultado

    de uma srie de pesquisas depois das quais

    essas cores me apareceram como necess-

    rias, dada sua relao com o restante da

    composio, para transmitir a impresso

    desejada. As cores, as linhas, so foras, e

    no jogo dessas foras, no equilbrio entre

    elas, reside o segredo da criao. (Matisse,

    2007, p. 371-372)

    Assim, o que parece estar no cerne

    do fenmeno da expressividade no a

    comunicao de uma emoo ou sentimen-

    to. A forma como as coisas nos afetam

    transmitida de maneira vital por uma obra

    de arte atravs das qualidades dinmicas da

    percepo, que so comuns a todos os

    meios expressivos e a todas as modalida-

    des perceptivas, qualidades estas que cons-

    tituem afetos de vitalidade. Estes, sim, con-

    tribuem para o surgimento do carter ex-

    pressivo de uma obra de arte, conferindo-

    lhe um carter vivo e esttico. Nosso corpo

    diretamente afetado pela percepo da

    expressividade, sendo tomado por uma

    espcie de ressonncia com as obras de

    arte. A percepo da expressividade artsti-

    ca no resulta, ento, de processos mera-

    mente intelectuais, mas de uma espcie de

    sintonia que se estabelece entre nosso cor-

    po e os afetos de vitalidade responsveis

    pelo carter expressivo de uma obra.

    Notas

    1 Todas as tradues de obras no publica-

    das em portugus so de nossa responsabi-

    lidade.

    2 importante ressaltar que o termo ex-

    pressividade (e mesmo expresso) foi

    raramente utilizado pelos autores gestaltis-

    tas em seus textos. Apenas em Guillaume

    (1937/1966) encontramos explicitamente o

    uso do termo expresso. Khler

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    (1938/1976) utiliza os termos valor e

    exigncia; Koffka (1935/1975) fala em

    caracteres fisionmicos; outras vezes

    encontramos termos como qualidades

    tercirias, caracteres exigentes e fisio-

    nomia moral na obra dos autores da Esco-

    la de Berlim. Entretanto, em todos estes

    casos, os autores tratam do mesmo fen-

    meno perceptivo que aqui denominamos

    expressividade.

    3 As duas expresses foram utilizadas pelo

    autor para designar o mesmo fenmeno, tal

    como ele prprio afirma em seu livro mais

    recente, Forms of Vitality (Stern, 2010).

    Aqui, seguiremos utilizando a expresso

    afetos de vitalidade, pois acreditamos

    que a palavra afeto transmite melhor o e-

    feito da vitalidade no percebedor, pelo fato

    de sugerir um movimento de fora para den-

    tro, indicando uma verdadeira afetao do

    homem pelas coisas, numa espcie de as-

    salto da percepo.

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    Maria Clara de Almeida Carij: Mestre

    em Psicologia e atualmente doutoranda do

    Programa de Ps Graduao do Programa

    de Ps-Graduao em Psicologia da UFRJ,

    sendo bolsista do CNPq.

    E-mail: [email protected]

    Virgnia Kastrup: Doutora em Psicologia

    e pesquisadora do CNPq. professora do

    Instituto de Psicologia e do Programa de

    Ps-Graduao em Psicologia da Universi-

    dade Federal do Rio de Janeiro.

    E-mail: [email protected]

    Recebido em: 16/05/2014 Aceito em: 20/10/2014