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371 UMA ETNOGRAFIA DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DA CAPOEIRA ANGOLA EUROPEIA: DE ESPORTE BRANCO À ARTE MÍSTICA NEGRA Celso de Brito (UNESPAR), [email protected] Resumo: Através de uma etnografia junto ao Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros da Europa, entenderemos a dinâmica contemporânea da Capoeira Angola Transnacional. A análise das estratégias de legitimação de uma tradição afro-brasileira na Europa e dos percursos e representações dos praticantes europeus nos permite sugerir que a Capoeira Angola ("arte negra") tornou-se uma "comunidade transnacional" devido ao intermédio da Capoeira Regional Nacionalizada (esporte branco). O estudo dessa dinâmica nos faz crer que pela via de um percurso de contraditórias transformações, a Capoeira Angola tornou-se uma manifestação cultural que opera, na atualidade, uma "indigenização do Ocidente". Palavras-chave: Transnacionalismo; Capoeira Angola; Identidade.

UMA ETNOGRAFIA DA …...foi e escrito em 1968 por Waldeloir Rêgo: Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico, mostrando as indumentárias, as canções, os rituais e as relações

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UMA ETNOGRAFIA DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DA CAPOEIRA

ANGOLA EUROPEIA: DE ESPORTE BRANCO À ARTE MÍSTICA

NEGRA

Celso de Brito (UNESPAR),

[email protected]

Resumo: Através de uma etnografia junto ao Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros da Europa,

entenderemos a dinâmica contemporânea da Capoeira Angola Transnacional. A análise das

estratégias de legitimação de uma tradição afro-brasileira na Europa e dos percursos e

representações dos praticantes europeus nos permite sugerir que a Capoeira Angola ("arte

negra") tornou-se uma "comunidade transnacional" devido ao intermédio da Capoeira

Regional Nacionalizada (esporte branco). O estudo dessa dinâmica nos faz crer que pela via

de um percurso de contraditórias transformações, a Capoeira Angola tornou-se uma

manifestação cultural que opera, na atualidade, uma "indigenização do Ocidente".

Palavras-chave: Transnacionalismo; Capoeira Angola; Identidade.

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1. Introdução

O campo de estudos sobre a capoeira teve seu surgimento ainda na primeira metade do

século XX. Nesse período, tais estudos eram divididos em dois grandes blocos: um atribuindo

ênfase a criação e sistematização de uma linguagem esportiva mais palatável à elite brasileira

afeita ao positivismo e ao higienismo (BURLAMAQUI, 1928; MARINHO, 1930); e outro

enfatizando a importância da herança africana para a cultura brasileira (QUERINO, 1916;

CARNEIRO, 1936). Já poderíamos antever nessa divisão uma divisão interna à própria

Capoeira: a Capoeira Angola explicitamente conectada à cultura africana e a Capoeira

Regional implicitamente adequada à identidade mestiça brasileira que se formava na ocasião.

O primeiro estudo que apresentava uma análise mais aprofundada da Capoeira Angola

foi e escrito em 1968 por Waldeloir Rêgo: Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico,

mostrando as indumentárias, as canções, os rituais e as relações (alianças e disputas) entre

diferentes "linhagens" de capoeira angola de Salvador.

Depois desse período, as reflexões acadêmicas sobre Capoeira mostraram-se escassas

e sem muitas inovações até que, no final da década de 1980, surge um artigo publicado na

Revista Brasileira de Ciências Sociais que demonstrava as transformações que a Capoeira

havia passado no século XX, durante sua difusão nacional: Capoeira, de arte negra a esporte

branco, de Alejandro Frigerio (1989).

Esse artigo trouxe uma renovada mirada aos estudos sobre Capoeira demonstrando

uma alteração das formas rituais e das representações dos capoeiristas acerca de suas práticas

associadas à interdependência de dois movimentos: 1) movimento geográfico, sobre a

imigração de mestres baianos ao sul/sudeste do Brasil e 2) movimento social, sobre a inserção

da prática da capoeira nas camadas mais abastadas da sociedade brasileira. Foi essa alteração

que Frigerio (1989) chamou de passagem de uma "arte negra [Capoeira Angola] a esporte

branco [Capoeira Regional]1". Tal transformação fez com que muitos participantes da

Capoeira Angola se convertessem à Capoeira Regional em busca de maior aceitação social,

inclusive, ao tratar de mestres de capoeira angola,

1 É interessante ressaltar que sua comparação entre a "arte negra" (Capoeira Angola) e o "esporte branco"

(Capoeira Regional) é posta em relação de analogia com a comparação estabelecida por Ortiz (1978) entre o

Candomblé e a Umbanda, ou seja, uma análise que tomava a descaracterização da cultura afro-descendente por

um processo de branqueamento da cultura nacional.

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podemos atribuir essa conversão à busca de um mercado de trabalho inaugurado pela

Capoeira Esportivizada.

Veremos que, após a décadas de 80 e 90, a Capoeira Angola ou "arte negra" passou

por um processo de revalorização que conduziu muitos dos capoeiristas por um novo fluxo de

conversões2: do "esporte branco" (Capoeira Regional nacionalizada) à "arte negra" (Capoeira

Angola revitalizada).

A partir dos anos 2000 surgiram muitos estudos sobre Capoeira, sobretudo

relacionados à sua diáspora. Se Frigerio (1989) deu início à reflexão sobre as dinâmicas

simbólicas relacionadas às mudanças sociais e espaço-geográficas da capoeira no interior do

Brasil, surgia, nesse período as indagações acerca de tais dinâmicas fora do território nacional

(ver BRITO 2015).

Tendo em vista a relevância e o pioneirismo das discussões levantadas pelo

antropólogo Alejandro Frigerio acerca do transnacionalismo da cultura afro-brasileira,

sobretudo da Capoeira, buscaremos demonstrar um último estágio da disseminação da

Capoeira pelo mundo como uma continuidade da reflexão de Alejandro Frigerio. No que se

refere aos dados empíricos, apresentarei o Grupo Irmãos Guerreiros que acompanhei no

período de setembro de 2013 e junho de 2014 nas cidades de Lisboa, Berlim e Viena3

2. O continuum "arte negra" - "esporte branco": os fluxos de conversão entre

Capoeira Regional e Capoeira Angola em São Paulo

Frigerio (1989) analisa as transformações da Capoeira no período entre 1930 e 1980;

desde a formação da Capoeira Regional Baiana até a esportivização e nacionalização da

capoeira em 1970, em São Paulo. Esse continuum refere-se ao mesmo processo analisado por

Ortiz (1978) quando, com referência ao Candomblé baiano e ao Kardecismo, foi criada a

Umbanda, no Rio de Janeiro. Tanto as mudanças da capoeira como as da religião afro-

brasileira são tratadas como enquadradas em dois polos representativos de culturas distintas:

uma "mais

2 "Conversão" Termo utilizado por Araújo (2004) para designar os praticantes de capoeira regional que se

tornaram praticantes de capoeira angola sem passar aprendizados e por vínculos com suas linhagens. 3 Trabalho realizado durante um estágio doutoral no Centro em Rede de Investigação em Antropologia-

Universidade Nova de Lisboa (CRIA/UNL) no quadro do Doutorado Sanduíche do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS). Agradeço o apoio da CAPES pela concessão de uma bolsa de estudos que permitiu tal realização.

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tradicional" e outra "menos tradicional" ou, em outras palavras, uma cultura "africanizada" e

outra cultura "ocidentalizada".

A transformação descrita pelo autor foi analisada a partir de oito elementos

característicos da Capoeira Angola. elementos esses que teriam perdido relevância durante o

processo de criação da Capoeira Regional, na década de 1930, e com a formalização da

Capoeira enquanto esporte, em São Paulo, na década de 1970.

Os critérios são os seguintes: "ausência de violência"; "complementação";

"movimentos bonitos"; "música lenta"; "importância do ritual" e "teatralidade" (FRIGERIO,

1989), ou seja, a capoeira teria se ocidentalizado a partir da potencialização da violência e da

assunção de uma estética linear, ambas características das artes marciais já disseminadas entre

as classes médias do sudeste brasileiro; assim como a ênfase no ritual ancorado na conexão

entre a música lenta e as pantomimas sutis das expressões faciais durante o jogo teria sido

substituído por jogos individualizados pautados em movimentos espetaculares e rápidos como

os saltos mortais da Ginástica Olímpica.

Contudo, ainda na década de 1980, surge uma resposta a essas alterações (descritas

êmicamente como processo de "embranquecimento") encabeçada pelo GCAP (Grupo de

Capoeira Angola Pelourinho) em Salvador-BA. Esse grupo associou-se ao Movimento Negro

Unificado e revitalizou a Capoeira Angola baiana através de um processo de "etnopolítização"

(AGIER) ou "re-africanização" (CAPONE, FRIGERIO).

A partir da década seguinte, 1990, a referência da Capoeira Angola revitalizada em

Salvador chega até o sudeste do Brasil e, em São Paulo, muitos dos praticantes de "Capoeira

Regional Nacionalizada" convertem-se para a Capoeira Angola. Vemos que, se na década de

1980 a Capoeira se re-africanizava em Salvador, nas décadas seguintes, a Capoeira de São

Paulo vivenciava esse processo pela primeira vez, pautada na referência de Capoeira Angola

de Salvador, ou seja, ela era "afro-baianizava".

2.1. A inversão do sentido: a afro-baianização da Capoeira em São Paulo

O responsável pela disseminação do Grupo Irmãos Guerreiros na Europa é mestre

Perna (Márcio Lourenço Araujo, 42 anos de idade); natural de Taboão da Serra em São Paulo.

Filho de imigrantes baianos, mestre Perna começou a praticar Capoeira aos 10 anos de idade,

com mestre Milton e após algum tempo passou a

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treinar com mestre Alcides do Grupo Cativeiro na USP (Universidade do Estado de São

Paulo). Na adolescência, conhece mestre Marrom, que na ocasião era responsável pelo Grupo

Falange de Capoeira Regional Nacionalizada. Mestre Marrom, por sua vez, havia treinado

com mestre Boneco e com mestre Meinha, alguns dos mestres baianos que iniciaram a

Capoeira Regional Nacionalizada na capital de São Paulo.

Na década de 1990, mestre Marrom e mestre Perna começaram a participar de oficinas

dos mestres de Capoeira Angola de Salvador e conhecer velhos mestres soteropolitanos .

Esses passavam a ser solicitado pelos capoeiristas paulistas para ensinar àquela Capoeira

Angola soteropolitana revitaliza e re-africanizada4.

Mestre Marrom e seus alunos mais velhos decidiram que, daquele momento em diante,

se dedicariam apenas àquela forma de Capoeira Angola. Começaram a acompanhar mestre Pé

de Chumbo, que foi um dos primeiros da Capoeira Regional de São Paulo a fazer a conversão

para a Capoeira Angola soteropolitana filiando-se ao mestre João Pequeno, discípulo de

mestre Pastinha5.

Com as informações das aulas de mestre Pé de Chumbo, mestre Marrom reproduzia a

Capoeira Angola soteropolitana aos seus discípulos paulistas em sua academia no Taboão da

Serra. Mas começava, nessa ocasião, as diásporas dos angoleiros à Europa e mestre Pé de

Chumbo também mudou-se para esse continente em busca do recente mercado cultural e suas

possibilidades de ascensão social característico das "cidades mundiais" descritas por Hannerz

(1997). Mestre Marrom, então, passou a frequentar os eventos de mestre soteropolitano Jogo

de Dentro (também discípulo de mestre João Pequeno), que havia chegado a São Paulo no

mesmo fluxo da década de 1990/2000.

Nessa nova fase de afro-baianização da Capoeira do Grupo Falange, mestre Baixinho,

seus dois irmãos (Guerreiro e Macete) e seu filho (mestre Marrom) criavam um novo grupo

agora chamado "Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros".

A liderança mais ativa do grupo acabou sendo delegada ao mestre Marrom, razão pela

qual as cores utilizadas pelo grupo são marrom e branca.

4 Um dos grandes responsáveis por esse movimento foi Mestre Plínio do Grupo "Angoleiros Sim Sinhô". O

nome do grupo refere-se ao dilema da ocasião, com conta mestre Plínio: "O nome do grupo é a resposta daqueles que diziam que não havia capoeira angola em São Paulo: aqui tem angoleiros sim sinhô!" 5 Uma das principais referências da tradição da capoeira angola soteropolitana.

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Símbolo do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros

Nos anos seguintes, o esforço de africanização da tradição da capoeira angola paulista se

intensifica e as estratégias levadas a cabo pelos mestres da Capoeira Angola de Salvador da

década de 1980 passam a ser contextualizadas em São Paulo. Tal estratégia alcança sua maior

visibilidade na última década, como vemos na imagem que segue:

Participação do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros (mestre Marrom à esquerda e mestre Perna à direita)

na campanha "Eu africanizo SP"6 (foto: Léo Guma, 2011)

Atualmente, o Grupo Irmãos Guerreiros é considerado um dos grupos tradicionais da

Capoeira Angola em São Paulo e, como veremos, um dos grupos maiores da Europa.

6 Campanha vinculada ao Festival WAPI (Words and Pictures). Evento de afirmação da cultura afro-diaspórica

que começou em Nairobi, no Quênia, e chegou a países da diáspora, como Estados Unidos e Brasil. A

preparação do WAPI em São Paulo teve como base a campanha publicitária “Eu Africanizo São Paulo”, com

imagens de diversas pessoas ligadas à cultura afro no Brasil, clicadas pelo fotógrafo Guma (ver

http://www.acaoeducativa.org.br/index.php/todas-noticias/2670-cultura). Consultado em 17/10/2015.

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3. Do "esporte branco" à "arte mística negra": a cultura afro-brasileira e a

tradição afro-paulista na Europa

Assim como acontecera com os mestres soteropolitanos no final da década de 1990,

em 2002, mestre Marrom recebeu um convite para dar aulas a um grupo de capoeira de

Bremen-Alemanha. Não podendo sair do Brasil na ocasião, ele propôs ao seu discípulo,

mestre Perna, que o fizesse. O que foi aceito como uma boa oportunidade de melhorar sua

condição econômica.

Após algum tempo, mestre Perna decide retornar ao Brasil, mas foi convencido a ficar

quando alguns de seus novos alunos alemães conseguiram vistos de permanência e

organizaram uma Associação Cultural. E assim nasceu o Grupo de Capoeira Angola Irmãos

Guerreiros em Bremen, no ano de 2004.

Salvador continua sendo a "Meca" da Capoeira atraindo muitos angoleiros do mundo

para suas peregrinações (GRIFFITH, 2010), mas o Grupo Irmãos Guerreiros da Europa

representa a construção de novos "locais de origem legítimos" da tradição afro-brasileira

situada na Europa.

Mesmo assumindo que as linhagens de Capoeira Angola de Salvador são as

tradicionalmente legitimas, mestre Perna aponta para essa hegemonia soteropolitana quando

reflete sobre o destaque que grupos de outras regiões brasileiras têm alcançado na Europa:

Os novos representantes, das novas gerações da cultura afro-brasileira não

tem tanta familiaridade com a cultura africana do Brasil quanto quem é de

Salvador que vive com isso desde criança. Mas é por isso mesmo que essa

nova galera se destaca, entendeu? Por que a gente tem que pesquisar mesmo,

tá entendendo? Aí a gente traz a cultura afro de outras regiões do país, como

o maracatu, tambor de crioula, o jongo, o samba de coco, o candomblé

(Entrevista com mestre Perna, Berlim, 2013).

Algumas das ideias de Frigerio (2004) servirão como inspiração para a reflexão sobre

essa nova posição do Grupo Irmãos Guerreiros na Europa. Para o autor, diferentemente da

"primeira diáspora" das religiões de matriz africana (da África para o Brasil ou para Salvador)

que passaram por um processo de "africanização", na "segunda diáspora" (de Salvador para

São Paulo, por exemplo, ou do Brasil para países da América do Sul e EUA) elas passaram

por um processo de "re-africanização":

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O aspecto sociológico mais relevante do deslocamento espacial que garante a

distinção [entre a primeira e segunda diásporas] é que na segunda diáspora o

estatuto/posição social obtidos na primeira diáspora tem que ser recuperado

(FRIGERIO, 2004, p. 3).

O autor diz que tal recuperação passa pelas seguintes etapas: 1° ser aceito na nova

sociedade; 2° ganhar independência das vertentes da primeira diáspora; e 3° estabelecer uma

estrutura hierárquica da nova comunidade que está sendo formada. Tomando essas ideias de

empréstimo para analisar o grupo de capoeira angola Irmãos Guerreiros temos:

1° Mestre Perna e seu grupo foram aceitos na nova sociedade através da formalização

da Associação Cultural Irmãos Guerreiros junto ao governo alemão, com a ajuda de muitos de

seus alunos nativos; 2° ainda em São Paulo, mestre Perna e seu mestre (mestre Marrom),

"africanizaram" sua prática de capoeira através da conversão da Capoeira Regional

Nacionalizada para a Capoeira Angola re-africanizada soteropolitana, efetuando assim uma

afro-baianização da capoeira de São Paulo. Mesmo tendo como referência de seu aprendizado

os mestres angoleiros de Salvador-BA, fizeram questão de manter sua independência em

relação a eles o que permitiu construir as bases para uma tradição afro-paulista que se

disseminasse transnacionalmente; e 3°o Grupo Irmãos Guerreiros manteve uma hierarquia

entre mestre Marrom (em São Paulo) e mestre Perna (em Bremen), mas após algum tempo os

núcleos europeus foram se espalhando pela Europa e constituindo uma instância europeia

coordenada continentalmente por ele.

Frigerio (2004) diz que as religiões de "segunda diáspora" passaram a construir sua

legitimidade pela "re-africanização" em um contato direto com a África. Mas no caso da

Capoeira Angola do Grupo Irmãos Guerreiros, a legitimidade começou com uma afro-

baianização que se tornou, num segundo momento, uma "afro-brasileiração", quando estando

na Europa, teve de disputar um mercado com as linhagens soteropolitanas mais tradicionais e

sua estratégia consistiu na pesquisa de manifestações culturais afro-brasileiras não restritas à

cultura afro-baiana.

3.1. Estratégias de legitimação da capoeira angola na Europa: do "afro-baianismo"

ao "afro-paulistanismo".

Enquanto em São Paulo o grupo se engaja em campanhas de africanização, na Europa,

mestre Perna afro-brasileirava seu grupo através da criação da

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"Associação Cazuá" e reunindo uma equipe de artistas brasileiros que se tornaram parte do

Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros na Europa. Babalorixá Murah, professor

Kenneth, Miguel Arruda e contramestre Forró (Joelson Menezes) são os principais membros

da Associação.

Miguel Arruda é um músico da cidade de Londrina, no Paraná. Atualmente reside em

Porto–Portugal, onde trabalha com bandas de música popular brasileira realizando shows de

"samba de roda" ou "coco" com mestre Perna durante as festas noturnas após os treinos,

animando os membros das diferentes localidades nas quais o grupo mantém núcleos ativos.

Contramestre Forró é discípulo de mestre Marrom do Grupo "Mestre Marrom e

alunos"7, sediado no Rio de Janeiro. Embora seja de outro grupo, contramestre Forró consta

nos projetos formais desenvolvidos pela associação Cazuá. Contramestre Forró é

candomblecista e grande conhecedor de manifestações culturais afro-brasileiras, como

maracatu, jongo e tambor de crioula. Ele reside em Hannover-Alemanha onde desenvolve

trabalhos voltados à extensão do seu grupo brasileiro e oficinas de percussão relacionada a

diversas manifestações afrobrasileiras. Babalorixá Murah8, conhecido pelos membros do

grupo como mestre Murah, oferece aulas de dança afro e danças de orixás nesses eventos.

Ao menos uma vez por ano, o grupo se reúne em Berlim durante a festa do orixá de

Babalorixá Murah, Iansã, e realiza uma roda de capoeira angola em pleno ritual. A capoeira

angola e o candomblé de Berlim são intrinsecamente relacionados entre si, como vemos nas

fotos a seguir, onde os ogãs do terreiro são todos capoeiristas, inclusive mestre Perna.

7 Assim como mestre Marrom de São Paulo, mestre Marrom do Rio de Janeiro também era praticante de Capoeira Regional e se converteu para a Capoeira Angola na Década de 1990 aproximando-se de mestres de Salvador e consolidando, após duas décadas, uma tradição mundialmente legítima da Capoeira Angola carioca.

8 Murah divide seu trabalho na Europa em duas grandes dimensões complementares: uma cultural e outra religiosa. Através de aulas de coreografias de danças de Orixá, Babalorixá Murah abre espaço para sua religião através da "cultura" e junto aos admiradores de seu trabalho que, a principio se interessam pelo exotismo de sua arte, forma seus filhos de santo, aqueles que uma vez superado a ilusão do exotismo entendem e passam a vivenciar o candomblé como religião. Para informações complementares ver Bahia (2014).

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Ritual de Candomblé (dir.) e ritual de Capoeira Angola (dir.). Ambos no terreiro de Pai Murah, em Berlim, em

2013 (foto minha)

Nessa possibilidade de construção de legitimidade para a construção de outras

tradições legítimas para a capoeira angola, mestre Perna leva, de tempos em tempos, muitos

de seus alunos europeus à cidade de São Paulo, como fosse uma "Meca" alternativa à cidade

de Salvador. Mestre Perna se esforça para representar uma cultura afro-paulista, inclusive

seguindo os passos de mestre Pastinha e desenvolvendo uniformes do Grupo Irmãos

Guerreiros com as cores de seu time de futebol: São Paulo Esporte Clube9 com o símbolo do

Grupo Irmãos Guerreiros:

Figura 1 - Mestre Perna com seu uniforme do Grupo e as cores do São Paulo Esporte Clube (foto acervo Irmãos

Guerreiros Bremen)

9 Há que se lembrar que as cores amarelo e preto utilizadas por mestre Pastinha deve-se ao seu time de futebol,

Esporte Clube Ypiranga.

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3.2. Os percursos dos angoleiros europeus no universo da capoeira e suas

representações

O Grupo Irmãos Guerreiros se espalhou por muitos países da Europa e, uma vez por

ano, ocorrem eventos em cada um deles com oficinas de capoeira, samba, maracatu, danças de

orixás e todas as atividades afro-brasileiras pesquisadas pela Associação Cazuá. Ao ver a

agenda europeia do grupo temos uma ideia da organização e do número de núcleos:

Agenda de eventos do Grupo Irmãos Guerreiros na Europa para o ano de 2014 (página de Facebook Irmãos

Guerreiros Bremen)

Durante esses eventos, a maioria dos membros se reúne para realizar oficinas com os

treineis e mestres do Grupo, inclusive o mestre situada=o na sede do Grupo em São Paulo:

mestre Marrom. Trata-se de uma grande "comunidade transnacional imaginada"

(APPADURAI, 2001) pautada em filiações e relações de reciprocidade algo próximo às

relações estabelecidas em um terreiro de Candomblé que vinculam indivíduos de diferentes

países da Europa ao Brasil, especificamente à cidade de São Paulo.

Ao analisar a trajetória de membros do Grupo Irmãos Guerreiros vemos que a grande

maioria se aproximou da Capoeira Angola depois de praticar Capoeira Regional e, por sua

vez, se aproximou da Capoeira Regional depois de praticar esportes de luta/artes marciais.

Ao serem perguntados por que foram atraídos pela Capoeira, todos eles se referem aos

elementos artísticos como a dança e a música. Ao serem perguntados se conheceram a

Capoeira Angola antes da Capoeira Regional, alguns deles responderam que sim, mas que na

ocasião não lhes parecia algo interessante, ao

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passo que a Capoeira Regional correspondia aos seus anseios: um "esporte exótico".

Treinel Grego, por exemplo, relatou que quando conheceu a Capoeira Angola a achou

feia e desinteressante, por que não a entendia, ao passo que a Capoeira Regional lhe pareceu

diferente devido ao acompanhamento da música de um instrumento exótico (o berimbau), mas

compreensível pela intensidade dos movimentos que lhe pareciam de arte marcial.

Na década de 2000, como vimos muitos dos ex-praticantes de Capoeira Regional

começaram a requisitar mestres de Capoeira Angola. Os relatos dizem que tal demanda diz

respeito à busca de um entendimento maior acerca da verdadeira tradição afro-brasileira. Uma

vez inseridos na prática da Capoeira Regional, o exotismo se redirecionou para a Capoeira

Angola "mais tradicional" ou "menos ocidentalizada".

Clara Saraiva, ao analisar a difusão dos terreiros de Candomblé em Lisboa,, percebeu

que a trajetória dos filhos de santo passava do catolicismo à Umbanda e da Umbanda ao

Candomblé, gradativamente se distanciando das referências culturais ocidentais do

catolicismo e se aproximando da cultura afro-brasileira. Para essa análise, Saraiva usou a ideia

de "ponte cognitiva" de Frigério (2004). através desse conceito, a Umbanda foi entendida

como uma ponte cognitiva necessária entre o catolicismo e o Candomblé.

Aqui percebemos que a Capoeira Regional Nacionalizada disseminada para a Europa

serviu nos anos 2000 como uma "ponte cognitiva" entre uma linguagem esportiva e outra

linguagem mais ritualizada da capoeira angola.

A estratégia de "afro-brasileirizar" a Capoeira Angola na Europa acabou levando os

angoleiros europeus do Grupo Irmãos Guerreiros até o Candomblé, buscando conhecer seus

orixás, aprender suas danças rituais e suas cantigas em Yorubá e, finalmente, a entender a

Capoeira Angola como uma manifestação mística afro-brasileira.

Parece que um continuum presente no percurso dos praticantes de Capoeira Angola

europeus é marcado, de um lado por uma concepção europeia de esporte de luta/arte marcial e

de outro por uma concepção mística da cultura afro-brasileira.

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Considerações finais

Vemos que um mesmo continuum que explica as transformações da capoeira do século

XX no Brasil fornece um importante quadro para o entendimento das transformações atuais

dessa manifestação em nível global.

É possível sugerir que a relevância que, se por um lado, a Capoeira Regional

Nacionalizada ou o "esporte branco ocidentalizado" - se lembrarmos da discussão de Frigerio

(1989) - foi a responsável pelo enfraquecimento da Capoeira Angola ou a "arte negra" (idem)

desde 1930 até 1990, por outro lado, foi graças à esse "branqueamento" ou "ocidentalização"

que a "arte negra" tornou-se apreensível no centro do "Ocidente".

Sahlins (1997) diz sobre o que chamou de “indigenização da modernidade”, apontando

para o modo como “certos povos usam sua participação na moderna "economia de mercado" para expandir sua "economia do dom" tradicional” (s/p). ele escreve:

[...] diferenças culturais que a força do Sistema Mundial expulsou pela porta

da frente retornam, sorrateiramente, pela porta dos fundos, na forma de uma

„contracultura indígena‟, um 'espírito de rebelião', ou algum retorno do

oprimido do mesmo tipo (s/p).

Vemos, então, ao mesmo tempo em que a Capoeira Angola torna-se uma mercadoria de

exportação, expressa uma qualidade de “contracultura” frente ao discurso totalizante do

“Sistema Mundial”, como parte de um processo de “orientalização” do Ocidente.

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