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Uma Historia de Amor e TOC - Corey Ann Haydu

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Livro Psicologia

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Traduo deAlda Lima

    1 edio

    Rio de Janeiro | 2015

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    H33uHaydu, Corey Ann

    Uma histria de amor e TOC [recurso eletrnico] / Corey Ann Haydu ; traduo Maria P. de Lima. - 1.ed. - Rio de Janeiro : Galera, 2015.

    recurso digitalTraduo de: OCD love storyFormato: epubRequisitos do sistema: adobe digital editionsModo de acesso: world wide webISBN 978-85-01-10423-6 (recurso eletrnico)1. Fico americana. 2. Livros eletrnicos. I. Lima, Maria P. de. II. Ttulo.

    15-20859CDD: 813

    CDU: 821.111(73)-3

    Ttulo original em ingls:OCD Love Story

    Copyright 2013 by Corey Ann Haydu

    Composio de miolo da verso impressa: Abreus SystemDesign de capa: Marlia Bruno

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literria desta traduo.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-10423-6

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    Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

  • Para mame, papai e Andy

  • 1.

    Para minha sorte, no entro em pnico em espaos pequenos e escuros ou qualquer coisaparecida. Sou um tipo diferente de louca.

    Ento, quando as luzes se apagam no fao muita coisa, exceto evitar os tarados do ensinomdio tentando apalpar as meninas no escuro. Vou s festas da Smith-Latin Boys Academyduas, talvez trs vezes por ano, mas nada desse tipo jamais aconteceu antes. A eletricidade deveter acabado na cidade toda. H um momento de silncio, como um arquejo preparatrio, eento o caos.

    Talvez seja verdade o que dizem sobre ser cego: os demais sentidos ficam mais aguados.Porque, no instante em que as luzes e a msica so interrompidas, percebo como o cheiro noginsio nojento. E, por um momento, os sons dos meus colegas tagarelando e caindo uns nosoutros, gritando com medo fingido, predominam. Em seguida ouo um barulho familiar, umritmo que conheo bem. o passo tenso e super-rpido de um ataque de pnico. Est vindo dealgum lugar minha esquerda, ento uso isso como uma espcie de farol para encontrar ocaminho em meio multido.

    A respirao entrecortada se transforma em inspiraes cada vez mais tensas, e o pobregaroto que sofre o ataque est sufocando com a prpria respirao. E sobre isso eu sei tudo: tivea sorte de descobrir formas de impedir meus ataques de pnico antes mesmo que elescomeassem. Ento me sento ao lado do cara com falta de ar, encontro seu ouvido e sussurro.Digo-lhe para se acalmar e respirar fundo, e estendo uma das mos no escuro em busca de suatesta, que consigo tocar por inteiro. Ele relaxa com o contato, e fao o mesmo em mim,colocando a mo livre na testa. agradvel toc-lo, essa intimidade com um total estranho,ento acho que estou meio que amando a falta de luz. Isso nunca aconteceria sob luzes

  • fluorescentes. Pensando bem, acho que isso serve para um monte de coisas. Isso bom diz ele numa voz ainda engasgada, porm menos apavorada. No sei o

    que aconteceu. Ataque de pnico respondo.Estou pronta para listar todos os sintomas e causas e lhe dar o mesmo conselho que a Dra.

    Pat me d quando estou tendo um ataque, mas assim que tomo flego para recomear aconversa ele me interrompe.

    Entendi.Acho que de propsito, para no me deixar falar, mas no soa como se estivesse me

    dispensando, e sim como uma tentativa de me salvar de mim mesma, o que sou obrigada aapreciar. Como regra geral, quando se trata de falar com estranhos melhor eu desistir enquantoainda h tempo. Embora no escuro eu parea ser realmente boa em decifrar as pessoas. Fecho aboca. Respiro fundo duas vezes. Ento me permito tentar falar outra vez.

    seu primeiro ataque de pnico? pergunto. Perguntaria isso em plena luz do dia, masparece ainda mais natural no escuro. Seu corpo ainda se contrai um pouco como consequnciada onda de ansiedade, e sua pele tem uma textura fria e suada. Mantive meu brao encostado nodele. Com toda essa loucura acontecendo ao nosso redor, bom simplesmente ter algo seencostando em mim. Algum.

    Acho que sim responde. Depois, nada. Eu sou a Bea digo, para preencher o silncio. No que esteja tudo quieto: o lugar

    parece ainda mais barulhento do que estava com as porcarias das Top 40 explodindo no volumemximo. Mas esse cara calmo, e em breve a luz vai voltar e a realidade da nossa visibilidadeprovavelmente tornar tudo mais estranho.

    Beck diz ele. Nome estranho. , o seu tambm.Estico as pernas para a frente. Agora, o silncio entre ns se parece mais com um acordo,

    um pacto, e menos com uma luta. engraado como meus nervos funcionam: pulsando num minuto e recuando no seguinte,

    me deixando totalmente exausta. Se o clima de camaradagem que sinto com a respirao pesadade Beck e suas mos suadas estiver certo, ele agora deve estar sentado nessa mesma gangorra.

    Quer tentar sair? sugiro.Nada est mudando aqui. Os professores esto tentando falar mais alto que os alunos, e

    parece que o centro do ginsio/pista de dana se transformou numa rave improvisada. Se

  • estivssemos na Greenough Girls Academy em vez de na Smith-Latin, conseguiria encontrar ocaminho at a biblioteca, onde poderia me esconder at que toda essa coisa de falta de luztivesse passado. Teria tudo de que gosto ao alcance: sofs, luzes portteis para livros, o cheirodaqueles livros raros centenrios pelos quais nosso bibliotecrio obcecado. Espero que Beckconhea um local parecido na Smith-Latin. E que seu senso de direo no seja prejudicado noescuro. Desejo mais do que tudo que seu rosto combine com sua voz: baixa, doce e um poucorouca. Rostos podem se parecer com sons?, me pergunto. E seria este o tipo de cara que tenhoprocurado, em vez daqueles com quem sempre acabo, atletas do ensino mdio feios de rostomas bonitos de corpo?

    No consigo me mexer diz Beck.Eu me estico para tocar suas pernas, como se ele talvez estivesse com gesso ou um aparelho

    ortopdico ou no tivesse um membro ou algo assim. Um pouco tarde demais percebo que um movimento muito estranho de se fazer, mas, como sempre, no consigo me segurar. Minhamo est bem no topo da coxa dele, e permanece ali por mais tempo do que deveria.

    Meu Deus, como sou estranha.Juro que posso sentir suas pernas tensas e talvez o movimento de alguma outra coisa. Parece normal para mim. Deslizo a mo para longe de sua perna. Pode ir l fora se quiser diz Beck. Eu simplesmente no consigo. Isto , no quero.

    No vou a lugar nenhum at que a luz volte, OK? No tem nada a temer. Voc sabe, alm de jogadores de futebol realmente excitados.

    Sem ofensa, se voc for um deles. Ou ser que estamos evitando algum? Talvez uma garota feiada Greenough com quem tenha ficado sem estar muito a fim?

    Beck ri apenas o suficiente para que eu saiba que no se importa com as provocaes. Voc a nica garota da Greenough com quem falei hoje noite diz, e fico sorrindo

    no escuro como uma boba, como uma menina de 8 anos, que exatamente o que eu pareceria sealgum pudesse de fato me ver agora. Tenho at um espao entre os dentes da frente que,supostamente, me do um sorriso doce, de menina.

    Bem, nesse caso, melhor eu ficar, ento digo.Coisas caem ao nosso redor: pessoas, equipamentos de DJ, faixas escolares. No posso

    acreditar que meu corao est palpitando tanto com o som de sua voz e com a ideia de t-lopara mim, mesmo que por alguns minutos, mesmo que ainda no saiba como esse cara . Largosua testa e toco a mo dele, e quando nossas palmas se encontram, ele aperta. Em seguida, outravez. E mais uma. Depois de alguns apertos, ele expira. Ficamos de mos dadas por mais unsminutos antes de ele comear a entrar em pnico outra vez. Ento ele solta.

  • Estou dizendo, voc vai se sentir melhor com um pouco de ar fresco insisto.No escuro no consigo ver se Beck balana a cabea ou qualquer coisa, mas ele

    definitivamente no diz que no, e sou um tipo de menina copo-meio-cheio, ento para mimaquilo significa que ele vai levantar comigo. Puxo-o para que fique de p. preciso um bomesforo, e ele me puxa de volta numa tentativa de ficar sentado no cho. No me importo.

    Est com medo de me deixar ver voc? Voc superfeio?Espero que isso o faa rir, mas no faz, e me dou conta de que talvez ele seja mesmo feio, e

    no de forma subjetiva, mas verdadeiramente desfigurado. Tenho um talento especial para dizerverdades terrveis para estranhos.

    Hum, isso foi uma coisa superestranha de se dizer. Sou assim, s vezes. Um poucoestranha. Ou, como gosto de pensar, peculiar. Estranha e peculiar. Bem aqui, por isso queafasto os caras.

    Eu tambm diz Beck. Sabia que havia uma razo para gostar dele.O ginsio comea a esvaziar. Os professores esto conseguindo agrupar as pessoas no

    estacionamento para ficarem de olho em ns. Eu os ouo gritando ordens em meio ao caos.Passou tempo suficiente para que a maioria dos presentes comece a ceder aos pedidos. Afinal decontas, com certeza j estamos sem bebida e a emoo de tocar corpos de estranhos ou deesbarrar em seus amigos, no sentido literal, drenou da sala.

    Fica quieto e no se mexe sussurro.Tenho a sensao de que, se formos pacientes, teremos todo o ginsio para ns. Minha

    melhor amiga, Lisha, e eu sempre tentamos encontrar espaos secretos onde ningum pensarem nos procurar. Como uma espcie de pique-esconde com o mundo. Quando ramospequenas, decorvamos o interior do meu closet com glitter e almofadas e fazamos todas asbrincadeiras, conversas e lanches l. Acolhedor e s nosso. Penso que ficar para trs no ginsioescuro com Beck seria algo parecido. Lisha, onde quer que esteja neste enxame escuro de corposadolescentes muito perfumados, aprovaria.

    Quase chamo o nome dela, para que nos encontre, mas sei que Lisha no se importaria queeu tivesse um momento extra a ss com o se-Deus-quiser-bonito, com certeza atraente, meninoda Smith-Latin.

    Em apenas alguns minutos, o ginsio passou de praticamente lotado para quase vazio, e asluzes dos carros no estacionamento no chegam ao canto em que estamos escondidos. Seficarmos quietos, algo grande pode acontecer. Pelo som da respirao pesada de Beck, temo queele esteja comeando a entrar em pnico outra vez (esse garoto tem medo do escuro ou o qu?),ento encontro seu ombro e sigo a linha do seu brao para baixo at chegar mo novamente.

  • Ele aperta.Considero deixar por isso mesmo. Pelo menos at eu encontrar alguma maneira de ter um

    vislumbre de seu rosto.Em vez disso, passo meus dedos de volta pelo brao de Beck, do pulso ao cotovelo e ao

    ombro e para o pescoo at encontrar seu rosto. E ento seus lbios. E, apesar das pernastrmulas e das suas inspiraes e expiraes pesadas, eu o beijo. uma coisa boa na qual eledeve se perder por pelo menos alguns segundos, porque seu corpo relaxa contra o meu. Mas todepressa quanto relaxou, volta a ficar tenso, e deixo que minha boca se afaste.

    Ele tinha gosto de hortel e suor frio. Mentolado. Salgado. Perfeito.Realmente o tive, por um segundo. Vamos ficar aqui digo. No de forma sedutora, porque dou uma risadinha na ltima

    slaba. Estou nervosa demais, mas no to agitada quanto ele.Os ps de Beck batem no cho, e ele parece prender a respirao, e recua para ficar mais

    perto da parede. Fica grudado ali. No posso diz Beck, quando dou mais um passo na sua direo. Preciso ir para

    casa. Estou me sentindo estranho. Estou meio confuso agora. Sua voz um murmrio.Posso sentir o calor surgindo enquanto ele fica corado, mesmo a alguns centmetros de

    distncia. Quero tranquiliz-lo com um toque, talvez at beij-lo de novo, mas quando chegoperto, algum se arremessa contra mim, com fora total, me derrubando. Eu caio. Beck vaiembora.

    Tambm estou muito confusa! Sou totalmente confusa! digo atrs dele, e sinto que eleainda est no ginsio; sinto que me ouviu, mas a escurido profunda demais para eu enxergarat mesmo o menor movimento. Sinto a parede e a acompanho, na esperana de alcan-lo, masno esbarro com ele em canto nenhum, nem agarrado a alguma batente de porta. Ele saiu doginsio. Acho que de alguma maneira ficou com mais medo de mim do que do escuro.

  • 2.

    No dia seguinte, chego terapia muito, muito cedo. Uma hora inteira mais cedo, na verdade,porque gosto de ouvir o casal que faz terapia antes de mim. Algumas pessoas tm reality showsou livros de vampiros. Eu tenho Austin e Sylvia.

    H um lugar na sala de espera da Dra. Pat de onde posso ouvir os murmrios do queacontece no consultrio. A maior parte so apenas entonaes e ocasionais palavras perdidas.Mas quando Austin e Sylvia esto l dentro posso ouvir muito mais. Ocupo meu lugar nacadeira bamba ao lado da porta do consultrio e d para ouvir que eles j esto l, na hora certa,como sempre. Fico instantaneamente mais calma, sabendo que no perdi nada.

    Hora da verdade: um ou dois meses atrs dei uma olhada na agenda da Dra. Pat. Poracidente, em vez deix-la na mesa, ela a largara no sof, e eu permiti meus olhos passarem pelapgina aberta antes de entregar a ela. Foi basicamente um acidente ter visto seus nomes nohorrio das quatro.

    Um pouco menos acidental: hoje estar de pernas cruzadas na cadeira da sala de espera,descobrindo tudo sobre a vida sexual do casal. Ela chega a mim em frases incompletas epalavras gritadas em decibis desconfortveis. Austin e Sylvia so incrivelmente atraentes, mas sea forma como falam um com o outro indicao de alguma coisa, a atrao no o bastante,porque eles claramente se odeiam. , sobretudo, a voz de Sylvia que rompe as paredes: umsotaque de Boston e um tom de voz nasalado, engolido, que difcil de ouvir. Sem sequer terque pensar sobre isso, direcionei toda a simpatia para Austin e para a maneira mais gentil comque ele fala. Alm disso, o cara um gato.

    Escuto essas sesses h mais de um ms, e hoje trouxe um caderninho. uma coisa decouro envernizado sem graa que meu pai me deu no Natal. Tem uma estrela cadente gravada

  • em dourado na capa. Um detalhe enorme e feio num caderno j feio. Um presente bem tpicodo meu pai. Em partes iguais amvel e mal-informado, guardo seus presentes, mas quase nuncaos uso.

    O caderno cor-de-rosa, alm da monstruosidade da estrela cadente dourada, ento no hnenhuma possibilidade de algum sequer pensar em folhear suas pginas; no o tipo de coisaque parea conter segredos. muito frgil e bobo e insuportavelmente cor-de-rosa para conterqualquer coisa substancial.

    Comeo a rabiscar o que consigo ouvir da conversa. No tenho um motivo real para isso,mas no consigo evitar. Talvez o mostre para Lisha esta noite, se nos encontramos no restaurantepara comer panquecas. Tambm sou um pouco coletora de informaes. algo que venhofazendo h anos, uma parte da minha personalidade. Se no fosse ser figurinista, poderiatotalmente virar jornalista.

    S que acho que no conto muito s pessoas sobre minha coleta de informaes. Elascostumam no entender. Exceto Lisha, claro, que entende tudo.

    No h nada como escrever notas numa folha de papel em branco. como meditar. Ou oque imagino que seja meditao.

    Sylvia: ... no jeito de tratar a sua esposa.Austin: Se voc pudesse fazer uma pausa e respirar de vez em...Dra. Pat: (algo muito tranquilo e instigante que no consegui ouvir)Sylvia: ... voc no me toca h meses. Deve estar transando em algum lugar...Austin: Voc no pode agir como uma megera e depois simplesmente esperar que eu...Sylvia: ... tem nojo de mim? isso? Coloquei o silicone, mas voc no parece...Austin: ... nem mesmo queria que voc...Sylvia: ... simplesmente v dormir com alguma menina e acabe com isso...Austin: ... superinadequada... Eu costumava pensar que voc era o tipo de mulher...Dra. Pat: (fala de terapeuta silenciosa, reflexiva, que no consigo ouvir)Sylvia: Voc no gosta de mulheres. Gosta de meninas. Meninas de 19 anos, certo? Vi

    seu computador...Austin: ... No posso acreditar que voc disse algo assim depois de tudo o que te contei

    sobre o meu passado...(Uma longa pausa na conversa.)

    absolutamente to envolvente escrever tudo o que ouo a ponto de esquecer que estou em

  • pblico. A sala de espera comeou a encher, o que significa mudana de hora, em que todos ospacientes das 16h saem e os das 17h chegam. Com um sobressalto percebo que estouestrangulando a caneta e praticamente rasgando a folha do caderno com toda a minha urgncia efoco. Minhas mos esto apertadas, e as notas, rabiscadas. Mas estou mais calma do que estivedurante toda a semana.

    Austin e Sylvia saem do consultrio da Dra. Pat e passam por mim. Tento tirar fotografiasmentais quando passam. Os peitos de Sylvia lideram o caminho e os cabelos cor de mel solongos e volumosos e caem pelas costas. Ela usa tanto delineador que poderia fazer parte de umabanda de rock indie adolescente. Austin tem cabelo vermelho e olhos bem verdes, e a cala mais apertada do que a da esposa. Est usando uma camisa de flanela e uma pulseira de couro ecom um sorriso de foda-se nos lbios.

    Ele no meu tipo, mas sexy demais. Assim como ela.Preciso chegar mais cedo na semana que vem para ouvir a prxima sesso. Sei que um

    pouco estranho, mas eles so um livro que no quero parar de ler.

    A Dra. Pat sempre tira 15 minutos entre as sesses para se recompor. Imagino que fiqueespecialmente distrada aps o drama de Austin e Sylvia. Ambos so altos e magros comorvores, e, entre a barba peluda de Austin e a juba de Rapunzel de Sylvia, so umaresponsabilidade muito grande, mesmo quando no esto gritando um com o outro.

    Quero o que eles tm.E assim que abro minha sesso desta tarde. Os pacientes antes de mim so praticamente perfeitos, no so? digo. como um experimento. Quero ver a reao no rosto da Dra. Pat. quase impossvel

    arrancar alguma coisa dela. Ela mantm uma expresso neutra, ilegvel, que s de vez em quandoparece oscilar entre contemplao, simpatia ou preocupao.

    Ah, ? pergunta. Voc no acha? interessante ficar observando os dois. Ela uma ninja com essas coisas. Uma ninja

    em termos de conversao. Dou de ombros. Isto no vai a lugar nenhum. Sua me disse quevoc parecia particularmente observadora nos ltimos dias. verdade?

    Enrugo a testa tentando avaliar o quo carregada esta declarao pode ou no ser. Precisoter cuidado com a Dra. Pat. Um movimento em falso e ela vai me dar mais antidepressivos oume fazer vir aqui com mais frequncia.

    Eles parecem to... legais digo. Confiantes. Fabulosos. Acho que me pergunto

  • como seria viver suas vidas em vez da minha. Ento eles chamam sua ateno porque voc gostaria de ser como eles? A Dra. Pat

    gosta de pegar o que digo e desvi-lo um pouco para a esquerda ou para a direita. Darsignificado.

    Quer dizer, acho que seria difcil no not-los, certo? Eles se destacam.A Dra. Pat concorda, mas com pouco entusiasmo. Quero tanto que ela concorde. Quero

    que concorde com vigor e que toque meu brao e me diga que, naturalmente, todo mundo sesente como me sinto. Em vez disso, ela inclina a cabea.

    Estou interessada em voc, no nos outros diz. O que mais minha me disse? Quando comecei a vir para a terapia, a Dra. Pat, minha

    me e eu fizemos um acordo de que no haveria segredos entre ela e minha me. Eu ficavaansiosa quando pensava nelas dando longos telefonemas para falar sobre mim pelas costas.

    Acha que ela tinha mais a me dizer? Estou apenas curiosa. Quero dizer, acho que sou bem chata. No pode haver muito para

    ela falar com voc. Ento voc acha que chata e que meus pacientes ou outras pessoas que encontra so

    mais emocionantes? indaga ela.Terapeutas so complicados. Fazem ligaes entre qualquer coisa. Quando comecei a ver a

    Dra. Pat, tentava falar sobre assuntos casuais, mas ela nunca me deixa apenas ter uma conversanormal. Uma vez disse a ela que gosto de picles no sanduche. Ela me lembrou que mencioneique Kurt comia muito picles e perguntou o que eu achava que poderia significar. Como seaquilo de alguma forma provasse que eu estava obcecada por ele.

    Na terapia, no existe tal coisa como apenas gostar de picles em sanduches. Dou umsuspiro longo e audvel, e a Dra. Pat empurra os culos no nariz. Eles tinham escorregado umpouco, os grandes culos de tartaruga, que pareciam ainda maiores quando ficavam tortos.

    Bea? Parece distrada comenta, quando percebe que no vou responder pergunta. Acho que estou um pouco distrada, sim. A questo que gosto da Dra. Pat. Estou

    bem, no preciso v-la ou qualquer coisa neste momento, mas tambm no a pior coisa domundo ter estas conversas com ela. Seu consultrio cheira vela de baunilha e gosto dasenormes pinturas de flores em close, que cobrem as paredes. Elas me acalmam.

    Estava pensando recomea ela com muito cuidado que talvez voc se desse bemem um ambiente de grupo. Terapia de grupo. Outros adolescentes, falando sobre o queacontece em suas vidas. O que acha?

    Tenho certeza de que o choque transparece no meu rosto. No escondo bem os

  • sentimentos, e ela me pegou de surpresa. Terapia de grupo soa como tortura. Hum, no estou me sentindo supersocivel nos ltimos dias digo. Isso foi outra coisa que sua me mencionou.Meu estmago se revira. No uma coisa digo. Muitas pessoas ficam nervosas em, tipo, situaes sociais.A Dra. Pat empurra os culos para cima do nariz outra vez. Eu me pergunto se esto

    precisando de ajuste, se de alguma forma eles afrouxaram. Pode ser perigoso, se os culoscarem enquanto ela estiver dirigindo ou coisa assim.

    Conte mais pede a Dra. Pat. Isso mesmo tudo. Nada mais a dizer. Tenho me sentido um pouco sozinha. Tenho

    certeza de que vai passar. No tem problema nenhum em voc estar passando por um momento difcil, Bea

    insiste a Dra. Pat. Ela faz algumas anotaes no bloco amarelo. Na verdade, mais fcil se medisser o que est acontecendo. Assim podemos enfrent-lo.

    Mas nada est acontecendo. Olho para minhas botas. Costumavam ser de camura,sem graa, toda preta, mas envolvi uma parte do cano da bota com um anel de pele falsa. Estoupensando em fazer o mesmo com o cardig: acrescentar punhos de couro falso nas mangas etransformar o que normal em algo espetacular. Quero dizer, na verdade, nem estou toantissocial assim no momento. Sbado noite, fui a um baile com Lisha. Ser que minha medisse isso a voc?

    Ela no disse, mas timo saber diz a Dra. Pat, e seu sorriso revela que foi sincero.s vezes, ela balana a cabea e sorri apenas com os lbios, e penso que provavelmente estcansada ou entediada. Mas outras vezes seu sorriso brilhante, e me lembro de como gosto dedizer as coisas a ela, a algum com quem fcil conversar. Eu me inclino para a frente no sof.

    Foi muito divertido, na verdade. E conheci um cara. No escondo o sorriso. Tenhomuita facilidade para conhecer pessoas, mas Beck o nico desde Kurt que me afetou assim.Estou sorrindo sem pensar. uma sensao estranha, porque ultimamente no tenho feito nadasem pensar. Gostaria de v-lo de novo, talvez. Mas no sei como ele , nem seu sobrenome.Acho que estuda na Smith-Latin... Isso talvez no esteja ajudando o meu caso, por parecersuperestvel, ento respiro fundo e me lembro de explicar. Eu o conheci quando a luzacabou.

    A-h diz a Dra. Pat. Bem, Bea, acho que se voc pode ir a um baile com Lisha econhecer um menino no escuro, provavelmente pode lidar com uma hora por semana de terapiaem grupo. L vem ela de novo. Um movimento ninja caracterstico da Dra. Pat.

  • Os sentimentos bons que estavam borbulhando no meu peito despencam at o estmago eazedam. Fecho os olhos para evocar uma imagem de Austin, achando que aquilo poderia meacalmar. Cabelo desgrenhado. Jaqueta de couro. Barba por fazer. E me pergunto o que deveestar fazendo agora, o que ele e Sylvia fazem aps a terapia de casal.

    Pessoas com sua maneira de pensar se saem muito bem em terapia de grupo conclui aDra. Pat. Alguns de seus comportamentos me fazem pensar...

    Tudo bem, tudo bem, eu vou interrompo, no querendo que ela termine a frase.Belisco a parte superior da coxa, por cima da cala. Como as pessoas fazem quando queremacordar de um sonho. apenas uma coisa minscula, e no faz mal, mas os olhos da Dra. Patvoltam-se como dardos em direo aos meus polegar e indicador como se o gesto significassealguma coisa.

    No um sonho, e ainda estou aqui, embora apenas um pouco de mim de fato esteja.

  • 3.

    No cumprimento minha me quando chego em casa depois da terapia. Ela estava reaquecendoo jantar da noite anterior e quero que saiba, pelo jeito como jogo a mochila no cho com umbaque, que estou chateada.

    Tudo bem, Bea? pergunta ela, porque estou agindo como se tivesse 3 anos,pisoteando at meu quarto. Bam!, faz cada passo, em cada degrau.

    Simplesmente timo, me respondo l para baixo.Estou pronta para um duelo de gritos. Meio que sei que raiva maldirecionada (uma frase

    da Dra. Pat estou fazendo terapia h muito tempo), mas ouvir a preocupao na voz delareacende a raiva por agora tambm ter que ir para a terapia em grupo.

    to impressionante voc achar que sou uma pessoa estranha. to impressionanteestar reportando Dra. Pat cada coisa que fao.

    Bea, querida, sabe que no acho que seja uma pessoa estranha. s que parece estar umpouco mais ansiosa ultimamente, e imagino que seja muito difcil. Estou tentando ajudar...

    Se estou indo to bem, ento no me obrigue a fazer isso de terapia em grupo peo. Querida, voc j falou sobre tudo o que aconteceu com aquele menino, Jeff, aquele

    amigo de Cooter, durante as sesses com a Dra. Pat? Ao que parece, pode ser uma informaotil para ela...

    Tento impedi-la apenas com os olhos, mas no funciona, ento interrompo: Me! O simples nome Jeff me d arrepios. O nome de Kurt me deixa fraca de tristeza

    e saudade e vergonha, mas o nome de Jeff no meu ouvido me assusta. uma palavra que noquero ouvir, um som de uma nica slaba que desejo que seja apagado do idioma ingls. Levo asmos aos ouvidos e desejo estar longe desta conversa.

  • S estava pensando que foi quando alguns de seus problemas comearam, h algunsanos, e s mencionei isso porque seu pai e eu nos sentimos to responsveis...

    Voc pode, por favor, deixar isso comigo e com a Dra. Pat? Por favor? Se continuar seintrometendo no me d chance de...

    Tudo bem, tudo bem concorda ela. Minha me no gosta de discusses, e nem eu,por isso, normalmente paramos antes que elas comecem. Meu pai sempre mais propenso adeixar uma briga rolar, mas ele ainda no chegou em casa, ento estamos bem. H tantas frasesinacabadas entre minha me e eu, tantas palavras no ditas. Eu me pergunto como seria ter umaconversa inteira com ela, mas quase nunca deixamos isso acontecer. Confio em voc, querida.Vou ficar de fora. S dei uma sugesto. Mas vou ter de insistir em seguir o conselho daterapeuta sobre o grupo, OK? Combinado?

    Decido no responder. Estava claro que ela e a Dra. Pat planejaram isso semanas atrs. Oque totalmente louco, porque no preciso de terapia em grupo. Quero dizer, s fui fazerterapia por causa de um pssimo trmino de namoro. No sou a primeira garota a fazer isso.Lacey da escola foi fazer terapia quando o namorado da faculdade dormiu com outra pessoa. Equase no penso mais em Kurt. Ento, devo mesmo fazer essa coisa em grupo mais de um anodepois?

    Comeo a protestar, mas, em seguida, aperto os lbios e fico em silncio. Minha metrabalha com adolescentes infratores. Ela no fcil, e entrar numa competio de quem gritamais s lhe dar outra coisa para contar Dra. Pat.

    Bato a porta do quarto. No h nada que minha me odeie mais. Ela solta um grande eaudvel suspiro, e sei que no vamos mais nos falar esta noite.

    Entro sob os lenis. um casulo perfeito no qual tenho trabalhado h meses. Colecionocobertores macios: l, pelcia, edredons, colchas grossas, no importa. Desde que sejam grossos,macios e decididamente aconchegantes, os jogo na cama. Minha me mantm a casa numatemperatura ridcula de 18 graus durante todo o ano, por isso estou sempre com frio, e parei detentar faz-la mudar seus hbitos. Alm disso, no h nada mais luxuoso do que entrar sob umapilha de cobertores. Isso me faz lembrar um pouco da histria de A princesa e a ervilha, aquelaprincesa em cima de uma pilha de colches completamente diferentes, mas sempre grossos edeliciosos. s vezes quero ser decadente desse jeito.

    As paredes so cobertas por fotografias de moda, peas da Broadway com seus belosfigurinos e filmes de poca. Um pequeno refgio de aconchego e coisas que amo. Graas a Deustenho este pouquinho de segurana.

    Antes de Kurt me largar, ele adorava vir aqui.

  • Este o esconderijo perfeito disse ele uma vez. Voc mais voc mesmo quandoest em seu quarto, sabia disso? Ento me beijou, uma das mos serpenteando em minhascostas e se enfiando sob minha camisa. Ainda penso na sensao de sua mo na altura da minhacintura.

    Eu me esforo de verdade para parar de pensar muito em Kurt, s que s vezes at umamontanha de cobertores e uma exposio de roupas fabulosas no so suficientes para fazer ador de perder algum desaparecer de vez.

    Quando o conheci estava meio nervosa, o tempo todo. No conseguiria dizer o que estavame deixando ansiosa, no conseguiria especificar uma nica preocupao. Mas meu corpo estavaem um estado geral de inquietao. Que parte do que era to bom em relao a Kurt: gostartanto de algum fazia o resto de mim se acalmar. Acho que o amor faz isso com todo mundo.

    Estvamos tendo uma aula de atualidades na escola e deveramos ler o jornal todos os dias elevar artigos que nos interessavam, ou sobre os quais tivemos dvidas. A maioria das pessoaslevava artigos polticos, e ento discutamos sobre Israel ou Iraque ou o ndice Dow Jones. Mas,para nosso projeto final, Lacey levou um sobre um menininho da cidade chamado Reggie, quehavia esfaqueado a irm de 10 anos. Ele estava no centro de deteno juvenil onde minha metrabalha, e Lacey achou a coisa toda to triste, que quis debater o assunto em sala. Passamos 45minutos nos perguntando em voz alta como um garotinho to fofo fora capaz de algo toterrvel.

    A matria terminou, mas continuei a ler o jornal todos os dias durante meses. s vezes saamatualizaes sobre o caso de Reggie e partilhvamos informaes sobre ele antes de a aulacomear. Todos ficamos um pouco preocupados com a tragdia: eu, Lisha, Lacey, Kim e asoutras oito meninas da classe. Algumas manhs, quando minha me estava especialmentecansada e ainda no tinha tomado seu caf, eu conseguia arrancar dela pequenos detalhes deinformao, e, em seguida, contava a todos sobre como ele estava indo. De qualquer forma, noera grande coisa, mas mantive um pequeno caderno com artigos e outras coisas relacionadas aReggie. E s vezes escrevia o que minha me contava sobre ele, para que me lembrasse do quedizer a Lacey e a todos. Ficou bem completo, mas todas estvamos muito interessadas no garotoe no que ele tinha feito e no que aconteceria com ele.

    De qualquer forma foi mesmo perturbador para todo mundo. Conheci Kurt bem no meiode tudo isso. Ento, estava um pouco sensvel na poca. Todas ns estvamos.

    O corpulento e forte Kurt. Ele no era s to sentimental e doce a ponto de ser incapaz dematar uma aranha, muito menos um ser humano, mas tambm tinha ombros largos,determinados, um jogador de futebol americano de futuro. Era invencvel. Estar com ele fazia

  • com que eu me sentisse segura. Gostava de beij-lo. E de ficar em cima dele em sua pequenacama de solteiro quando sua famlia estava fora da cidade.

    Uma coisa que ningum sabe: caras populares que jogam futebol s vezes ficam a fim demeninas inteligentes e peculiares, desde que, sabe, tenham um rosto bonito e um corpo decente.Acho que ficam cansados das lderes de torcida anorxicas, e se voc peg-los no momentocerto, pode convenc-los a querer algo mais.

    Alm disso, nessa poca eu estava realmente curtindo usar minissaias e botas de cano longo.Minha me no estava feliz com aquilo, mas sabia que no era uma fase com muito poder depermanncia, ento me deixava vestir o que quisesse, desde que fosse retr e do brech doquarteiro.

    Cometi um grande erro com Kurt. Uma vez o deixei sozinho no meu quarto por cincominutos, e ele conseguiu encontrar meu caderno sobre Reggie.

    engraado como algo que para mim no era nada demais parecesse completamentediferente quando o vi atravs de seus olhos. Semanas antes, quando estava colando artigos eimpresses da internet e fazendo anotaes sobre detalhes de informaes que minha medeixou escapar de seus dias de olho em Reggie e seus amigos delinquentes, parecia que estavamontando algo semelhante a um scrapbook. Parecia algo que tinha que fazer para a aula. Masnas mos de Kurt, as pginas grudando umas nas outras por causa da cola aplicada comdesleixo, pedaos de papel saindo por todos os lados formando bordas irregulares, pargrafosdestacados, observaes manacas... Vi tudo de forma diferente.

    Kurt tambm.Surpreendi o olhar e o queixo cado de algum que nunca dormir com voc de novo. Cara disse Kurt. Ele era lindo e forte, mas no muito chegado profundidade

    emocional, e acho que essas pginas eram um pouco demais para ele processar. Me diz queisso no seu.

    E qualquer pessoa normal mentiria na mesma hora ou pelo menos viria com algum tipo deexplicao aceitvel. Mas eu estava com aquela coceira na garganta. Minha cabea girava. Tenteidizer outra coisa. Comecei a dizer outra coisa.

    Ah. . No. Isso um tipo de... Minha garganta estava queimando. Sou uma pssimamentirosa. E estar perto de Kurt me desacelerava. No era rpida para pensar quando estavacom ele. Ento falei a verdade. meu. Fiquei mesmo chateada com aquela criana, sabe?Tipo, s achei muito perturbador e, na verdade, as outras meninas tambm. E foi muito prtico,tipo, um projeto para a escola, mas acho que exagerei um pouco. To estranho, eu sei. Tipo,muito estranho. Mas eu s... eu s me senti to mal pela famlia, e to estranho que ele vivesse

  • to perto e acho que eu... Falo muito rpido quando fico nervosa. Mas isso no importa,porque Kurt j tinha tirado suas concluses. Enquanto a maioria das pessoas expressa emoesno rosto, Kurt fazia isso com os msculos. Eu poderia criar um estudo cientfico sobre amaneira como os flexionava ou esticava ou ondulava.

    Ele parou de retornar minhas ligaes.E foi isso. por isso que fui para a terapia, em primeiro lugar, porque Kurt foi o primeiro

    cara de quem eu realmente gostei, e era to triste no estar com ele. Tem uma foto de ns doisjuntos em algum lugar, acho que no meu armrio, onde guardo os cadernos, e por impulso,apenas por ele estar de novo na minha mente, vou procurar. Eu a encontro e, sim, acho queimagino Beck parecendo-se muito com Kurt msculos e pouco cabelo , mas no me sintonaquela gangorra de dor e desejo como costumava acontecer quando olhava para a fotografia deKurt.

    H outras coisas no armrio tambm. Envelopes com documentos legais nos quais noquero pensar agora. Um bloco amarelo com notas confusas sobre o prprio Kurt. E coisas deLish e eu crescendo, apenas os tipos de memrias antigas que as pessoas guardam. Bilhetinhosque passvamos durante as aulas. Fotografias escolares bregas com fundos horrorosos. Cartesbobos de Dia dos Namorados com Bart Simpson, da minha primeira paixo, anos antes deKurt, aquele cujo nome quero esquecer. Gostaria de no lembrar que Jeff um dia me enviou umcarto de Dia dos Namorados.

    Dou mais um belisco na coxa para acordar. E fecho o armrio com um calafrio pelasmemrias que no quero ter.

  • 4.

    Estamos lendo de um livro de exerccios deprimente e laranja, e no consigo parar de pensar,como fao trs vezes por semana, quando estou nesta aula, que latim no bem o til alicerceque minha me e o manual escolar alegaram que seria. No vai me ajudar a tirar nota mxima noSAT. Sequer uma lngua falada atualmente, ento, quando lemos os pargrafos do livro em vozalta, soamos como robs latinos. Vir est in horto. Nada de forar slabas. Nada de inflexes.Robs. Porque, se de repente precisasse falar com algum esprito romano do passado queaparecesse de toga na Greenough Girls Academy, a primeira coisa que gostaria de dizer-lhe seriauma frase como: O homem est no jardim.

    Estou uma pilha de nervos e Lisha est sentada ao meu lado; ela coloca a mo no meu joelhopara fazer minha perna parar de tremer.

    S os malucos de verdade fazem terapia em grupo, escrevo nas margens do seu caderno.Quando a aula de latim acabar, vou para a primeira sesso. Ela estremece. Lisha no o tipo depessoa que passa bilhetinhos para a frente e para trs no meio da aula de latim. Lisha o tipo depessoa que acredita no panfleto de exigncias da escola, que diz que o latim ajuda com ashabilidades de vocabulrio. um verdadeiro sinal de amizade ela escrever de volta: No verdade! No tem nada de mais. Pode ser bom.

    E tento acreditar nela, ou pelo menos acredito que nada poderia ser mais doloroso ou intildo que estudar latim durante seis anos consecutivos.

    Lisha espera do lado de fora comigo depois da aula. Ela tem bal em uma hora, o que soamuito melhor do que meus planos para a tarde. Minha me vai me pegar na escola pela primeiravez desde que tirei a carteira, pois no confia em mim para ir terapia de grupo por contaprpria. Pensa que na verdade vou pular fora e ir lanchonete com Lisha, mas acho que no sou

  • cool o suficiente para levar frente esse tipo de rebelio. Nem Lisha. Ela no a maior bailarinado mundo, mas leva isso muito, muito a srio. Quando minha me para o carro, Lisha pedepara eu ligar para ela assim que acabar, e nos despedimos com trs beijinhos no rosto, o quecostumava ser uma piada sobre estudantes estrangeiros esnobes de intercmbio, mas setransformou na maneira diria com que dizemos oi e tchau.

    Secretamente, ns duas gostamos da delicada feminilidade do ritual. Como se assimtambm pudssemos ser elegantes e sofisticadas.

    Esse sentimento de meninice fantasiosa dura os dez minutos do trajeto de carro at aterapia, e em seguida, arrancado de mim no instante em que vejo como uma terapia emgrupo.

    Acabo em uma sala com uma menina que tem apenas chumaos de cabelo no courocabeludo e outros trs adolescentes de olhos inquietos retorcendo as mos. Gostaria de pensarque me destaco como normal demais para isso aqui. Pelo menos era esse o meu objetivoquando me vesti esta manh. Nada vintage hoje. Peguei emprestado o conjunto de suter daJ.Crew de Lisha e belas botas de couro da minha me, e meu cabelo est liso e esticado, mas nomuito perfeito. O esmalte azul-marinho foi removido e substitudo por um bem claro na noitepassada.

    Contanto que eu consiga me segurar para no dizer qualquer coisa realmente idiota, talvezpossa sair dessa terapia em grupo em algumas semanas.

    Ah! Bea! exclama a Dra. Pat, efetivamente quebrando o inevitvel silncio que sesegue quando algum novo entra em cena. O lugar no chega nem perto de ser agradvel comoseu consultrio, mas este seria apertado demais mesmo para um grupo pequeno.

    Oi, Dra. Pat.Vem conhecer o grupo. Esta Jenny, Rudy, Fawn e Beck.Beck. Estou tremendo por dentro agora, s que por fora, a parte mais importante,

    mantenho a calma. Olho imediatamente para as mos de Beck. Elas esto rachadas e secas. Sograndes e fortes. No me importaria de segur-las outra vez.

    ele. O mesmo Beck da festa. E, pelo sobressalto de seus ombros, ele sabe que sou eu.Aceno com a cabea (nada de se cumprimentar apertando as mos ou qualquer outro

    contato fsico; as regras foram explicadas em detalhes para mim pela Dra. Pat). Repito os nomesmentalmente, porque odeio a sensao de estar perdida quando me esqueo de um nome, emespecial de pessoas a quem tenho que revelar meus mais profundos e sombrios segredos. Jenny:sem cabelo; Rudy: espreme espinha, Fawn: dedos tamborilantes; Beck: beija bem.

    Oi, pessoal digo, e todos balanam a cabea e resmungam em resposta, e quero dizer,

  • qual , estou to no lugar errado. Estou usando cashmere. Namorei um jogador de futebol. Sfico um pouco nervosa e triste s vezes. Deveria estar em um grupo de meninas bonitas compequenos problemas e cabelo bonito. Ou, sabe, qualquer cabelo pelo menos. A Dra. Pat estcom o Sorriso No Se Preocupe estampado no rosto, e Beck est balanando um pouco acabea, ento acho que no devo confessar que nos encontramos no escuro h uma semana.

    No sou muito f de astrologia ou destino ou Deus ou qualquer coisa desse tipo, mas completamente bizarro e estranho reencontrar Beck e logo neste contexto. Diria que umacoincidncia, e com muita certeza Lisha afirmaria que o destino, mas na verdade apenasprobabilidade e estatstica, pura e simplesmente. No h tantos terapeutas assim nos subrbiosde Boston para jovens com transtornos de ansiedade, e, para comear, o motivo pelo qual meaproximei de Beck foi ter reconhecido o som da respirao acelerada de um ataque de pnico.Ento. Aqui estamos. Matemtica pura. Incrvel.

    Paramos na semana passada com Jenny falando sobre como se sente quando se olha noespelho comeou a Dra. Pat.

    Uma merda, imagino. Sua cabea uma colcha de retalhos de partes carecas.Balano a cabea, concordando com muito entusiasmo, e sorrio para Jenny. J pensou em simplesmente raspar tudo? No consigo segurar as palavras antes que

    elas saiam. Se no me conhecesse melhor, acharia que sofro de algum tipo hbrido de autismo esndrome de Tourette, mas a Dra. Pat insiste que sou capaz de controlar o impulso de dizer oque me vem cabea. Que ele , tipo, um mecanismo de defesa, no um imperativo biolgico.Terapeutas acham que tudo um mecanismo de defesa. Simplesmente estar pensando aqui, naminha cabea, neste momento, um mecanismo de defesa.

    Agora esto todos olhando para mim. Fawn, Rudy e Jenny tm diferentes graus de olhosarregalados na defensiva. Beck est escondendo a boca, e no posso dizer com certeza, mas achoque talvez esteja sufocando uma risadinha.

    No sei por que no consigo parar de puxar o cabelo diz Jenny. Ela esfrega a cabea eacho que est tentando arrancar um pedao de cabelo, aqui mesmo, neste momento. umasensao boa na hora. E, em seguida... isso. Ela aponta para a cabea, para as razes fracas, astentativas tristes de encobrir as partes carecas.

    No h absolutamente maneira alguma de eu ser to fodida quanto Jenny. Se comear a falardas minhas pequenas ansiedades em relao a dirigir e falta que sinto do meu ex-namorado,essas pessoas vo se sentir cerca de mil vezes pior por si mesmas. Na verdade, a Dra. Pat est oscolocando em perigo por me manter aqui.

    Beck est fazendo exatamente o mesmo que eu: olhando para os joelhos e para o colo de

  • Jenny, e no para sua cabea. Mas ele tambm est batucando na coxa com dedos rpidos, eparece mesmo estar um pouco sem flego.

    Dra. Pat, podemos conversar em particular por um... arrisco, emitindo uma voz alta edoce, e muito educada.

    Bea? Gostaria de falar sobre sua autoimagem? Ela sabe que no, mas tambm sabeque vou. Isso ser um problema na terapia de grupo. A Dra. Pat sabe o suficiente sobre mimpara me manipular a compartilhar demais. O que ela no sabe o quanto quero que Beck penseque sou a garota quase meio-normal da festa. Ou talvez gostaria de compartilhar por que estaqui? Podemos comear por a, se preferir. Como a Dra. Pat recomenda, olho para meuambiente fsico para me impedir de me lanar num fluxo de conscincia, numa tempestade deverdades reveladas.

    O cho coberto por uma fina camada de p e todas as nossas vozes ecoam na salamultifuncional quase vazia. Os subrbios esto cheios de lugares como este: sem inspirao evagos. Prontos para serem usados para festas de formatura, reunies do AA e desfiles de Natal.No estou totalmente certa de onde nos encaixamos nessa mistura, mas acho que em algumlugar entre graduao e AA. Todo mundo parece estar a um ano ou dois da faculdade, e umpasso ou dois mais loucos do que o alcolatra padro.

    Exceto eu. E Beck. E, obviamente, a Dra. Pat. Prefiro no falar agora, Dra. Pat digo com um sorriso, jogando o cabelo na direo de

    Beck. Todos ns compartilhamos aqui proclama Jenny. Ela daquela rara combinao de

    pattico e agressivo. Eu a odeio de imediato. Esto todos olhando para mim com ansiedade, atmesmo Beck, doido para ouvir o que me deixa louca. Vi Beck com medo do escuro e senti suasmos demasiadamente secas, ento acho que ele quer que fiquemos quites ou sabe-se l o qu.Descobrir por que estou nesta sala, nesta desconfortvel cadeira dobrvel de metal, meperguntando por que ningum acertou o relgio de parede para que no fique preso por tempoindeterminado em 3h25.

    Eu... er... s vezes fico ansiosa? arrisco. Estou fazendo um teste, para ver se aquelepouco de informao suficiente. No . Est anormalmente quente aqui. As nicas janelas estono alto da parede e provvel que nunca sejam abertas. No sei lidar com minha ansiedade? S estou tentando no vomitar um monte de informaes pessoais antes de Beck ter outrachance de me beijar. Sei que vou perd-lo, algum dia, quando tiver um vislumbre das minhaselaboradas anotaes ou do meu estilo suado e nervoso de dirigir. Ento, a esta altura, s estouesperando por mais um beijo.

  • H um rio de suor fazendo caminho pela minha espinha.Rudy da cara esburacada faz um rudo de tsc-tsc-tsc. Sua lngua bate contra os dentes e em

    seguida um curto sopro de ar por trs deles. Acho que todo mundo aqui sabe o que lidar com muita ansiedade. Por que no fala

    sobre como a ansiedade est relacionada ao modo como voc se v? Terapeutas. Sempre asmesmas perguntas repetidas diversas vezes de formas ligeiramente diferentes. Eles so, tipo, asmelhores enciclopdias do mundo.

    Hum. No sei se est conectado minha autoimagem. Todos me encaram. Mas noestou mentindo; realmente gosto da maneira como minhas curvas surpreendem por minhapequena estrutura, da minha cintura fina, da forma como meu cabelo est pendurado em cachoscastanhos como se eu fosse uma menina num concurso de sapateado em vez da Bea meio-louca.Gosto de ser menor do que todos os outros e de sempre olhar para os olhos das pessoas em vezde para a frente. Franjas leves e irnicas. Gosto do comprimento do meu torso: longo demaispara meu corpo. Ou pelo menos gostava de todas essas coisas at que vi Sylvia com Austin eimaginei como seria ter a vida dela em vez da minha.

    Rudy espreme uma espinha no pescoo. Ele no estremece, mas eu, sim. Acho que todos ns aqui, por vezes, nos sentimos inseguros sobre ns mesmos diz a

    Dra. Pat. Parece perigosamente prestes a quebrar o cdigo de sigilo entre mdico e paciente,mas eu no estaria fazendo nenhum favor a mim mesma se apontasse isso.

    Ento, minha mente comea a vibrar com a imagem de Sylvia e o jeito como ela segurou obrao de Austin, mesmo aps a grande discusso que obviamente tiveram no consultrio daDra. Pat. Engulo aquele pensamento e trinco os dentes para que no diga em voz alta. Mas temalguma coisa nisso. No inveja. No desejo. Mas interesse.

    Seguido na mesma hora pelo desejo de proteg-los. No quero contar a um grupo deestranhos sobre Austin e Sylvia. Parece perigoso, para mim e para eles, e obter as informaes,manter aquilo em segredo, desencadeia uma deliciosa onda de calma em meu corpo. Respirobem, fundo, mas logo me arrependo. O lugar cheira a poeira e meninos assustados que precisamde mais desodorante.

    Alou??? diz Rudy, e move a cadeira para trs com um enorme chiado de metal contralinleo.

    Levo um susto to grande que o som faz meus braos e minhas pernas ficaremcompletamente arrepiados, e sei que tenho que dizer alguma coisa, mesmo que no seja tudo.

    s vezes desejo ser outra pessoa digo. As palavras tm um significado diferente paraJenny do que para mim, acho. S queria o drama da aparncia de Coelhinha da Playboy de

  • Sylvia. Ou meio segundo em sua pele. H uma mulher que vejo por a preciso manter estarevelao soando to insignificante e normal quanto possvel , ela glamorosa, de um jeitomeio californiano. Como aquelas modelos da moda estilo praia. Penso em como seria viver suavida. Me destacar como ela, ser to substancial. Quer dizer, ela no pode ser negada. Ela est l. Cravo as unhas na palma da mo para me calar. Funciona, da mesma forma que a beliscadana coxa para despertar parece estar funcionando, e interrompo a frase inteira assim. Aperto oslbios. Dou de ombros. Olho para Beck.

    No tenho nenhum hbito louco destruidor de pele ou de cabelo, mas alguma coisa naminha cara tambm deve ter uma aparncia de algo-no-est-certo. Eu rezo, rezo, rezo para quetenha sido confisso suficiente para a Dra. Pat. E ento espero pelo que realmente quero: umaespcie de confisso de Beck. Seria bom saber o quo confuso ele , se vou ter qualquer tipo depaixo por ele.

    E a que tipo de compulses esse pensamento leva? pergunta a Dra. Pat.Nunca ouvi ela usar a palavra compulses antes, e sua dico fica mais lenta ao longo das

    slabas. Seu olhar encontra o meu, os enormes culos enfim emoldurando os olhos, em vez dedeslizarem para a ponta do nariz. Fawn olha de um lado para o outro e parece estar ouvindocom ateno. Um sinal claro de que virgem. No sentido virgem em terapia. Rudy, por outrolado, provavelmente, faz isso desde que nasceu. Ele no consegue parar de bater o p, contandoos segundos at que possa sair daqui. Ele tsc-tsc-tsc de novo, a lngua contra os dentes. o tipode cara que pode fazer voc se sentir como se estivesse em uma instituio mental, e no apenasnum grupo de anlise numa tarde de quarta-feira.

    S no consigo desvendar Beck. Ele mais parecido comigo: em algum lugar entreestragado e inteiro. No exatamente desesperado, mas preso em um ciclo do qual no conseguesair. Provavelmente acha que est tudo bem, mas seus pais esto incomodados com a quantidadede sabonete que ele gasta em uma semana. Ou algo assim. S estou supondo.

    Bea? Perguntei sobre seus padres de pensamento? A Dra. Pat est determinada hoje.Devo confessar algo, mas no tenho certeza do qu. Fao anotaes. Dirijo com cuidado.

    Fico um pouco nervosa s vezes. Sei o que se sente ao perder o flego por pensar demais, masno vale mencionar nada disso neste contexto. Jenny leva a mo para trs da cabea e os dedosrastreiam todo o couro cabeludo. Ela olha para o colo e parece ter o foco de um co, farejandoem busca de osso.

    Estou me sentindo reservada hoje respondo enfim. E no mentira. assim queestou me sentindo. No me importa o quo duvidosa a Dra. Pat parea. No vou deix-la meclassificar neste grupo de malucos. Tenho problemas de ansiedade. No exatamente incomum.

  • E nem mesmo grande coisa.Beck reprimi uma risadinha. No acho que j tenha lhe ocorrido enfrentar a Dra. Pat, se o

    rubor em seu rosto servir como indicao. Beck ainda mais bonitinho do que eu teriaimaginado depois da nossa interao no escuro: cabelo raspado to rente que s resta umapenugem preta na cabea. Enormes olhos azuis. No alto, mas todos os msculos, cadacentmetro dele grosso e duro. O cara malha. Isso certo.

    Acho que bom para todos refletirmos sobre como nossos pensamentos criamcompulses em nossos corpos insiste a Dra. Pat. L vem essa palavra de novo, e oabrandamento do discurso que a acompanha. Ela movimenta excessivamente a boca quando dizaquilo, como voc falaria com uma criana. Com-pul-so.

    A Dra. Pat est olhando diretamente para mim, ento balano a cabea, concordando, esorrio e digo tudo bem daquele jeito que s as meninas muito educadas da Nova Inglaterraso ensinadas a fazer. Um buraco de ansiedade se abre em meu peito, ento tento cobrir oespao com a palma da mo. Se ao menos pudesse alcan-lo e aboto-lo de verdade.

    Mas respiro fundo e olho para fora da janela, para as folhas voando das rvores:rodopiando furiosamente, cedendo ao vento em vez de combat-lo.

    O outono em Boston bonito. Repleto de pr do sol laranja, folhas sob os tnis e camposde futebol de meninos bonitos e ansiedade pelo jantar de Ao de Graas. Pelo menos o queele representa para mim. Inspire. Expire. Inspire. Expire.

    Isso bom, respirao calmante nota a Dra. Pat, e dou um salto. Pensei que meumomento tinha acabado, ento havia parado de olhar para mim mesma de fora para dentro. Opoder hipntico de folhas secas em excesso de velocidade com o vento seco. Cinco pares deolhos me observando com interesse.

    Ah, desculpe, me distra digo com a voz mais despreocupada que consigo. No estoumentindo, mas parece mentira na minha boca. Realmente estava apenas distrada. Gosto dooutono. E, sabem como , foi um daqueles dias na escola. Sorrio na direo de Beck, como seesta fosse uma oportunidade de flertar. Seu sorriso se encontra com o meu, mas no possotomar mais de meio segundo fazendo contato visual. Fico vermelha, constrangida e com um nna garganta, como se mais palavras pudessem escapar sem notificao apropriada.

    Se a Dra. Pat percebeu, no demonstrou. Entretanto, parece impossvel que algum pudesseno notar a troca de calor e medo entre ns.

    Bem, todos esperamos mais de voc nas prximas semanas. Mais entrega. Mais vontadede cavar fundo. Certo, cada um? Todos assentimos.

    Beck, por que no nos conta um pouco sobre voc.

  • Bem, tive meu primeiro ataque de pnico na semana passada. Aqueles olhos azuisesto em mim. Di, de to ocenicos que so. Do quanto de seu rosto eles ocupam. O contrasteentre o rosto plido, a cabea raspada e os olhos brilhantes e claros. Ele muita coisa paraassimilar de uma s vez. No consigo segurar uma tosse.

    Seu primeiro ataque de pnico? Voc s teve um? Ento o que diabos est fazendoaqui? provoca Rudy, explodindo de sua cadeira. Seu rosto est vermelho, e no apenas porcausa da formao de crostas das partes que ele andou arrancando. Est corado com manchasvermelhas como picadas de aranha aparecendo nos piores pontos: testa, bochechas, queixo,pescoo.

    Rudy, quando for sua vez vou avis-lo. A Dra. Pat nunca fala comigo com qualquertipo de aspereza na voz, mas isso est presente quando fala com Rudy. Uma espcie deimpacincia que no achava que terapeutas fossem autorizados a ter.

    Ei, s um desses ataques de pnico foi o suficiente para mim diz Beck. Querodizer, a outra noite foi assustadora. E acho que me fez perceber que tem essas coisas que gostode fazer. Como a Dra. Pat estava dizendo. Compulses, acho. Eu meio que gosto de lavar asmos. Meus pais dizem que vou demais para a academia. No sei. Parecem duas coisas boas parafazer. Saudveis. Mas... quando no pude faz-las na outra noite, me senti to horrvel que tiveaquela coisa de ataque de pnico. Beck fechou os olhos assim que despejou todas aquelaspalavras. Ele perfeito de corpo, mas tem um olhar envergonhado como se todos ns oestivssemos julgando. Mas duvido que algum aqui sequer j tenha estado dentro de umaacademia. Essa a questo sobre a ansiedade: uma verdadeira sugadora de tempo.

    Quando Beck abre os olhos, mantemos contato visual prolongado e comeo a sorrir denovo, porque h algo muito atraente em um cara sexy e musculoso ficando completamentevulnervel. A mesma sensao de mulheres acharem sexy quando homens brincam com filhotesou bebs. Os cantos dos meus lbios no conseguem deixar de se erguerem quando estou pertodele.

    Foi quando Jenny comeou a puxar o cabelo de forma mais agressiva. Foi a pior coisa que jvi: pior do que quando vi o tornozelo quebrado da minha me, todo retorcido para trs; piordo que o rosto de crateras de Rudy ou os restos esquisitos de pele seca entre os dedos de Beck.Estremeo com cada puxo, e Jenny coloca cada fio de cabelo na coxa antes de a Dra. Pat puxarsua cadeira at ela. A Dra. Pat segura as mos de Jenny e mantm contato visual, enquanto orestante de ns tenta educadamente desviar o olhar. Ficam sentadas assim por alguns minutos: aDra. Pat e Jenny, joelho com joelho.

    Nunca me sentei to perto da Dra. Pat. Simplesmente digo-lhe tudo e ela mantm a

  • distncia, observando-me de sua posio superior na poltrona. A viso dos fios puxados doscabelos de Jenny alinhados com os sulcos de suas calas de veludo deram em minhas entranhasum aperto doloroso e fizeram um Medo Inominvel aumentar em meu peito.

    Beck deve ter notado algo acontecendo em meu rosto. Porque antes que eu me d conta eleest sentado na cadeira vazia ao meu lado e colocando a mo na minha testa.

    Sem tocar decreta a Dra. Pat, porque ela tem a capacidade de olhar para cinco lugaresao mesmo tempo. Ela pode at estar sentada com Jenny tentando acalm-la, mas todos ns aindaestamos sob sua vigilncia.

    Rudy suspira e Beck resolve voltar para sua cadeira com relutncia. Gostei da mo dele naminha testa, e no segundo em que ele a retira, os pequenos picos de pnico tentam transformar-se em algo maior. Em seguida, um monte de necessidades imediatas entram em ao e comeama sacudir meu crebro para me fazer prestar ateno nelas. O desejo de pegar meu caderno. Odesejo de ver o rosto de Austin outra vez. De ouvir segredos de famlia de estranhos. Emseguida, as memrias tambm comeam a invadir. A memria do rosto de Kurt quando viu ocaderno de recortes de jornais. A lembrana de ter 12 anos e ficar absurdamente a fim doskatista Jeff. pensar em Jeff, acima de tudo, que traz o desejo persistente de manter as mos ea mente to ocupadas a ponto de no conseguir pensar em mais nada.

    Com-pul-so, ouvi a Dra. Pat dizendo na minha cabea, um diagnstico que me recuso aouvir.

    Ento Beck e eu ficamos apenas sentados ao lado um do outro sem nos tocar, mas issotambm tem um clima tenso. Os olhos de Beck so ironicamente azuis, minha concluso depoisde prestar mais ateno neles. Tambm tenho olhos azuis, porm os meus so mais umaimpresso de uma cor enquanto os dele so do tom mais puro, o azul que vem mente quandovoc ouve a palavra. Ele est meio que sorrindo e acho que porque ns dois estamos pensandoem como esta situao totalmente ridcula. Como somos pequenos faris de normalidade emuma sala cheia de loucos.

    Estamos nos dizendo tudo isso (eu acho), sem trocar uma palavra.E tem a espessura do pescoo e a forma com que seus ombros so to mais largos que os

    meus que poderiam ser uma parede de tijolos.No sei como mantive contato visual com algum por tanto tempo assim. Em especial um

    cara com a aparncia do Beck. E quanto mais tempo passa, melhor , at que fica engraado. ADra. Pat e Jenny esto no fundo fazendo um exerccio de respirao enquanto Rudy e Fawnesperam em silncio. Mas, sem aviso, Beck e eu estamos mordendo os lbios para segurar o risoe, em seguida, o soltamos em ofegantes gargalhadas e lgrimas espremidas. Passei um brao em

  • volta da barriga para ajudar a manter as risadas presas, e Beck est apertando a boca com apalma da mo e balanando o corpo em vez de gargalhar.

    Sentimentos se manifestam de formas diferentes diz a Dra. Pat com um olhar severopara mim e para Beck. Ela no pode encrencar conosco por nos emocionarmos, mas tambmno quer promover esse tipo de comportamento. Mas estamos todos aqui para apoiar uns aosoutros. Tenho certeza de que Jenny poderia se beneficiar de um pouco mais de apoio emocional,Bea. Beck. Apenas estejam presentes para todo o resto do grupo, OK?

    Sinto muito diz Beck, parecendo estar falando srio. Em seguida me sinto maltambm, porque no estava mesmo rindo de Jenny, estava rindo de estar nesta sala com Beck. Tudo bem continuou ele, os olhos fixos em Jenny e vice-versa. Voc legal. A maneiracomo nos diz tudo. O modo como se mostra e no esconde... nada. Os olhos de Jennybrilharam de ateno. Se eu pudesse, diria algo parecido, mas no consegui pensar nas coisascertas. Ento, resolvo assentir vigorosamente para mostrar o quanto concordo. Essa merda uma droga conclui Beck. Seu pescoo incha um pouco com a palavra merda.

    Uma pequena bolha de tenso estoura na sala. leve. No muda muito. Mas a Dra. Patinclina a cabea e sorri para Beck, e o resto da sesso parece uma conversa na hora do almoo.Jenny ri e Rudy se inclina para a frente e olha para todos enquanto esto falando. Fawn seremexe em seu assento e boceja.

    No to ruim.

    Beck e eu fazemos uma dana estranha no final da sesso. No exatamente nos falando, mastambm no evitando um ao outro. Estabelecemos contato visual e abrimos nossas bocas comopeixinhos, e ento damos alguns passos para lados opostos em direo a nossos carros.

    Desvio o olhar da sua aparncia: mo batucando a coxa, meia covinha espreitando atravsdo incio de um sorriso, lambendo os lbios como se estivesse relembrando o beijo da outranoite. Ele d um ligeiro aceno, mesmo que eu esteja na maior parte do tempo apenas olhandopara o cho. Mexo os dedos de volta para ele e me permito olhar em seus olhos por meiosegundo antes de entrar no carro. Tenho que esperar para que ele saia primeiro. No sou amelhor motorista, e no quero que ele saiba disso ainda. Alm do mais, no quero trombar emseu carro ou, pior, em seu corpo.

    Assim que ele sai do meu campo de viso, com seu SUV deplorvel descendo a estrada,posso dar partida e dirigir pelos poucos quilmetros at minha casa a passo de tartaruga. Se eupudesse dirigir mais rpido, o faria.

  • Estou aqui, envio para Lisha. Meu carro foi parar na frente da casa dela, e no na minha. Cootere eu fizemos macarro com queijo cor de laranja, entra a, ela responde, como se fosse muitodifcil sair de casa para me dizer aquilo. A famlia de Lisha no tranca as portas. Minha famliatambm no costumava trancar, mas simplesmente no de fato seguro.

    Lish e o irmo, Cooter, esto no sof e Law & Order: SVU est comeando na TV na frentedeles. At mesmo a msica me prende, aquele rudo shoock-shoock da abertura que diz: Algoterrvel est prestes a acontecer.

    Se voc quer um pouco da deliciosa comida laranja, vai ter que nos deixar ver o quegostamos diz Cooter imediatamente. Seus ps cobertos de meias sujas esto esticados sobre amesinha de centro a sua frente, e ele est comendo da panela, e no da tigela.

    Cala a boca retruca Lisha, me entregando os tristes restos do macarro com queijo daKraft agarrados tigela de plstico que usam quase toda noite apenas para este fim. Pegueum garfo e junte-se a ns. Ela no se importa, Cooter. Isso no bem verdade. Odeio Law& Order, mas vou sorrir e aguentar se isso significa Cooter me achando legal de novo. Sentolonge da televiso, na pequena mesa de caf no canto da sala grande.

    Lisha levanta as sobrancelhas e se junta a mim na mesa. Ela pega a cadeira que est de frentepara a TV, e fico de costas para o aparelho, e nesta exata formao ns duas conseguimos o quequeremos.

    Desculpe, um episdio legal, mas juro que estou prestando ateno em voc diz ela.Dou de ombros, e ela no insiste no assunto. Lisha sabe quando deixar algo para l, e talvez oque mais amo nela. Isso e seu amor por uniformes de escolas catlicas. Em geral faz questo deusar pelo menos um elemento (saia xadrez ou meias at o joelho ou blazer azul-marinhoapertado ou camisa branca engomada ou mesmo apenas um crucifixo num cordo de ouro)desse tipo de uniforme todos os dias. No que diz respeito a ela, isso se qualifica como um sensode estilo corajoso.

    Ningum percebe. Mas faz ela se sentir bem, ter um pouco de ironia. Mesmo que seja onosso segredo. Fora isso, ela usa o que todo mundo na escola est usando e faz o que os pais lhedizem para fazer. Mesmo agora est usando jeans e uma blusa de gola alta, mas colocou umcolete por cima do conjunto, e o emblema sobre o corao me diz que da St. Marys Schoolpara Meninas. Provavelmente de 1985, a julgar pelo formato quadrado e botes de ouro.

    Shoock-shoock, diz a televiso, e Lisha volta toda a ateno para mim. Como est a terapia de grupo? pergunta, e meu rosto deve denunciar o quanto minha

    tarde foi estranha, porque ela se inclina imediatamente para a frente. Ah, meu Deus, o quefoi? So todos aberraes?

  • Voc no vai acreditar nisso digo. Eu mesma mal posso acreditar. O cara daSmith-Latin que beijei na festa da semana passada est na terapia de grupo comigo.

    O queixo de Lisha cai at o cho. Cooter aumenta o volume no comercial da JordansFurniture.

    Eu sei continuo. Quais so as chances, certo? basicamente a situao maishumilhante possvel.

    Ai, meu Deus diz ela, enfim. Ai, meu Deus. OK. Tudo bem. Ento? Como ele ? No h nenhuma meno de coincidncia ou destino, ou impossibilidade, porque ela sabeque isso s me deixaria louca (desculpe, mais louca). Mas tenho certeza de que vai consultar asestrelas e os planetas e as cartas de tar ou qualquer outra coisa para ver o que significa eu ter medeparado com Beck outra vez e to rpido.

    Dou de ombros. Law & Order comeou de novo, mas o foco de Lisha em mim. Tentobloquear o mdico descrevendo os resultados da autpsia e o cara de aparncia normal, que jsei que o assassino.

    O cara, Beck, bonito revelo, quando apenas dar de ombros no foi suficiente. Ai, meu Deus, vamos l. Detalhes. ! Detalhes! diz Cooter, zombando a voz semiesganiada de Lisha. Msculos. Cabea raspada. Tpico territrio Bea. Tenho um tipo e, aparentemente,

    to parte de mim que, mesmo no escuro, posso encontr-lo. Sei que ela est atrs de detalhessobre rosto, sorriso e olhos. Mas ele ainda est sem rosto, mesmo aps v-lo na terapia. Noposso ir alm da escurido do ginsio sem luz, do estranho tempo que passamos juntos. Comose um boto de pausa tivesse sido pressionado mas ns no.

    Os olhos mais azuis que j vi. Estpida, irritantemente azuis digo.Belisco a coxa. Lisha no nota. Eu mal noto. Quer dizer, no nada. Vocs conversaram? Vo ficar de novo? Voc no acha mesmo isso a coisa mais

    romntica de todos os tempos? Lisha est praticamente babando por mais informaes, masde repente no sinto mais vontade de falar de Beck. Toda vez que repriso o beijo em minhamente, meu corao bate fora de controle e meu peito fica todo apertado. Preencho o espaocom uma garfada cheia da guloseima de queijo falso. Cooter no misturou o p at o fim, entoo fundo da tigela est cheio de queijo. Pastoso. Delicioso.

    A terapia de grupo da Dra. Pat para adolescentes loucos no muito romntica, Lish respondo com a boca cheia.

    Voc s est com medo afirma Lish. Isso o que a Dra. Pat vai dizer quandocontar a ela todos os detalhes. Lish nunca conheceu a Dra. Pat, nunca a viu nem falou com

  • ela, nem nada. Mas esse pequeno fato nunca a impede de se sentir como se soubesse o que aDra. Pat pensaria. Com Lisha s vezes um pouco como se uma verso mal construda da Dra.Pat estivesse sentada mesa com a gente. Estou cansada da Dra. Pat. Mesmo da falsa Dra. Patque definitivamente no est aqui.

    Claro que tenho medo, fiquei com algum mais perturbado do que eu. Quero dizer, elemesmo disse. Admitiu que esquisito. No foi bem assim que aconteceu, na noite do baile.Sei disso, mas no estou pronta para Beck ter um rosto e uma vida. Ele s um cara que lavamuito as mos e tem bceps incrveis e problemas sobre os quais vou ouvir bastaaaaante nassesses em grupo. Esse no o tipo de cara pelo qual preciso me apaixonar. No vai havernenhum mistrio para desvendar.

    Gosto demais do outro Beck para desistir dele. O da minha cabea. O do escuro. Voc no to esquisita diz Lisha com um grande e provocante sorriso. Ela sabe que

    no quero falar sobre isso.Sorrio tambm, porque quando ela brinca comigo quase como se eu fosse apenas um

    pouco peculiar, e no um desastre total.Cooter d uma risadinha irnica. Shoock-shoock, diz a TV. O cara aparentemente normal

    est sendo julgado, claro. Ele est suando. Ele culpado. As pessoas so to ferradas. Todosns, quero dizer. Somos todos to ferrados.

  • 5.

    A Dra. Pat espera at o finzinho da nossa sesso para me entregar os panfletos. Ela espera at eufalar sobre sentir falta de Kurt: isso acontece em ondas, e no h nada que eu possa fazer arespeito, considerando que no tenho permisso para entrar em contato com ele. Tenho mais oumenos uma dzia de e-mails no enviados na pasta de rascunhos. A Dra. Pat sempre me orientaseveramente a no envi-los e acrescenta que ter que contar aos meus pais sobre eles. Emtermos legais.

    O que fez voc sentir falta dele desta vez? pergunta. Ela gosta de encontrar razespara tudo. Motivaes.

    No sei. Acho que estava pensando nele no caminho para casa depois de me despedir deLisha ontem noite. Assistimos ao episdio horrvel de SVU, e... no sei. No me fez pensar emKurt ou qualquer coisa assim, apenas me chateou, e quando estou chateada com uma coisa meioque fico chateada com tudo, sabe?

    Ela assente enquanto falo. O que foi to perturbador sobre o episdio? O criminoso, o estuprador, ele parecia um pai, sabe? Parecia um pai que joga golfe e usa

    gravata. Ser que fez voc se lembrar do seu pai? pergunta, errando totalmente a questo. No, ele no me lembrou de ningum. S acho que somos todos capazes de verdade de

    coisas assustadoras, sabe? Quero dizer, at eu. Quem sabe, n? Bem, no, no sei. Sabemos que voc no capaz de nada de fato terrvel diz a Dra.

    Pat, mas est fazendo anotaes num ritmo alucinante. No sabemos disso. Leia o jornal, OK? Ficamos sempre surpresos quando uma criana

  • ou uma boa velhinha ou uma menina bonita faz algo horrvel. Sempre dizem como ela pareciaser boa.

    Estou pensando naquele Reggie de novo, cujo caso discutamos na aula de atualidades.Estou pensando em como seus clios eram longos e que na foto do jornal estava vestindo umacamisa de boto azul, e seu queixo tinha uma covinha. Abro a boca para relembrar a histriaangustiante de Reggie, mas a Dra. Pat j ouviu isso antes, e interrompe por estarmos quase semtempo.

    Quero que leia os panfletos setencia. S quero que me diga se alguma coisa neleschamar sua ateno. Podemos falar sobre isso aqui, ou em grupo, se achar confortvel.

    No vou querer falar sobre isso no grupo afirmo. Sorrio com aquelas palavras. A Dra.Pat e eu s vezes brincamos, e eu amo quando ela sorri tanto que chega a enrugar os olhos e porum momento posso fingir que somos amigas.

    Desta vez, a Dra. Pat no sorri. Quando no demonstro inteno de peg-los, ela inclina acabea e coloca os panfletos no meu colo.

    Transtorno Obsessivo-Compulsivo: Gerenciando suas compulses, vivendo sua vida.Dou uma risada. a pior reao. Mas depois no consigo parar. No nem um pouco engraado, mas o riso

    vem bem de dentro de mim e no consigo controlar as ondas. Meus olhos lacrimejam, e tenhomedo de fazer aquela coisa de rir e chorar ao mesmo tempo, porque emoes fortes so todasto prximas umas das outras que s vezes o corpo fica confuso.

    Os outros panfletos so mais do mesmo assunto, e justo quando acho que conseguicontrolar as risadas, elas surgem de novo. As gargalhadas vm tona, de modo que mesmoquando fecho a boca com fora para impedi-las, saliva e risadinhas escapam atravs de meuslbios. Sexy.

    Suponho que esteja se sentindo desconfortvel diz a Dra. Pat quando consigo respirarfundo e as gargalhadas diminuem at me deixarem apenas balanando a cabea e franzindo onariz.

    Hum, estou mais para confusa. Voc acha que eu tenho TOC? Tipo, a doena de lavar asmos? Voc j viu meu quarto? Ou, tipo, minha higiene em geral? Eu nem uso fio dental. Hoje estou vestindo calas jeans de boca de sino de segunda mo e uma camisa de flanela desegunda mo e (embora saiba que um grande tabu) sapatos de segunda mo: Botas marrons deplataforma que esto adaptados aos ps de outra pessoa. A cada passo que dou fico maisconsciente do proprietrio anterior. Estas no so escolhas de algum com TOC.

    TOC realmente apenas um tipo de ansiedade insiste a Dra. Pat. Ela desliza para a

  • frente em seu assento, sinal que usa, semana aps semana, para me alertar que hora de lheentregar o cheque da minha me. E aparece de muitas maneiras diferentes. Algumas dascoisas que sua me e eu conversamos, e alguns dos pequenos comportamentos que notei em vocme...

    Um monte de gente fica nervosa dirigindo interrompo. Sei que soa de fato assustador, mas pode ser timo darmos um nome a alguns dos seus

    comportamentos e temores, no acha? Eu no... Acho que vai se sentir melhor depois de ler algumas dessas informaes continua a

    Dra. Pat, falando mais alto do que eu. Sei que muita informao para voc, mas acho quevai ser melhor se processar isso sozinha e depois conversarmos em grupo sobre o assunto, OK? Isso deve ser alguma lio que ela aprendeu na escola de terapeutas, ento apenas concordo esorrio, pego os panfletos com uma fora violenta que sempre suspeitei que tinha.

    Passando pela porta, avisto Sylvia e Austin entrando. Normalmente s os vejo antes daminha consulta de quarta-feira, mas talvez tenham acrescentado outra sesso esta semanatambm. Dado o decibel em que gritam um com o outro no consultrio, no ficaria surpresa.

    Sorrio ao v-los. Bem do que precisava. Meu peito est apertado por causa da sesso e porainda ter que dirigir depois disso, mas o estalo das botas de cowboy de Austin no linleo me dum pouco de alvio. E sei que preciso de mais de onde isso veio.

    Meu carro parece excepcionalmente pequeno. Ligo o motor, sabendo que no vou sair doestacionamento to cedo. Mas preciso do calor e do rdio sintonizado na Oldies 103,3 e dagraa salvao que My Girl tocando nas alturas.

    Leio os panfletos. Mas no por isso que fico mais de uma hora esperando no carro noestacionamento aps a sesso. Aqui est o que aprendo no panfleto nmero dois, Seu crebro eseu TOC: ao que parece, obsesso e ansiedade andam de mos dadas. TOC tem uma mreputao, mas totalmente tratvel. A pessoa com TOC tem de enfrentar sua ansiedade defrente. Compulses so apenas uma forma de adiar a corrente inevitvel de sensaes e medo.

    Esses so os tipos de coisas que pessoas como a Dra. Pat dizem para fazer voc achar queter TOC no uma sentena de morte.

    Austin e Sylvia no do as mos ao sair do prdio depois que seus 45 minutos acabam. Massuas pernas andam em sintonia, como grandes patas de aranha caminhando pela calada emtempo recorde. Sylvia dirige e Austin se senta no banco do passageiro, um fato que meio quesecretamente amo. Eu o anoto no caderno cor-de-rosa com a estrela na capa. Na verdaderabisco, porque eles partem rpido e preciso acompanhar de perto, sem ultrapassar o limite de

  • velocidade.Tenho um desses carros incuos que do exato tom de azul-marinho empoeirado para se

    misturar com o pavimento ou com o cu ou com as ruas cheias de outros carros igualmenteazuis. No h cicatrizes de maus-tratos na superfcie, mas tambm nunca est brilhante nemlimpo. como eu: no exatamente gasto ou sujo, mas tambm no exatamente bonito. Bom osuficiente. Normal o suficiente. Bonito o suficiente.

    Mas o amo de qualquer jeito, e no s porque ele me leva aos lugares. Pendurados noretrovisor, tenho colares de contas de Mardi Gras de uma grande noite de Ano-Novo em Bostoncom Lisha. Dourados e verdes, minhas cores favoritas, batendo uns contra os outros enquantodirijo. Os demais esto no carro de Lisha, pendurados no espelho. Acreditamos que do sorte,mas nada at agora muito emocionante aconteceu em nossos carros. Alm disso, acho que apenaso fato de Lisha estar na minha vida j sorte. De verdade.

    Mantenho uma minibiblioteca de meus livros favoritos no banco de trs, apenas para o casode ficar no engarrafamento sem nada para fazer, ou se Lisha se atrasar para me encontrar. Temuma edio de capa dura de poemas de Mary Oliver, uma poeta que escreve sobre a natureza.Foi um presente. Para ser sincera algo que pertenceu a Kurt e que ele me deu algumas semanasantes de terminar comigo. A lombada est rachada, de modo que ele automaticamente se abrenos seus poemas favoritos. Tento no pensar muito em por que eram seus favoritos. E maislivros tambm: favoritos tradicionais como Judy Blume. A Nascente, que meu livro favoritode todos os tempos. Posso abrir qualquer um deles em qualquer pgina e me perder por vinteminutos ou uma hora, dependendo do que a situao exigir. Adicione alguns cobertores, e meucarro seria to fantstico quanto meu quarto.

    No um percurso curto at onde eles moram. Abrimos caminho em meio confusa horado rush, dos subrbios para a cidade. Preciso dirigir rpido para acompanhar seu velozVolkswagen, de modo que meu corao fica acelerado. Odeio dirigir rpido. Tento ser comoum falco, observando pedestres e trfego com o pleno conhecimento de que, se no tomarcuidado, poderia ferir algum. Acho que se piscar os faris de aviso de vez em quando possolidar com as estradas mais sinuosas, as junes, os cruzamentos tensos. Ento isso que faodurante todo o caminho da Lexington at um arranha-cu na orla martima. Estamos em algumlugar entre a velha arquitetura italiana do North End e a armadilha de turistas que FaneuilHall. Estaciono do outro lado da rua. Austin e Sylvia estacionam em algum lugar no quarteiro,mas rapidamente voltam para a entrada de seu palcio urbano. cheio de janelas, tudo em pratae de fachadas espelhadas. No o tipo de lugar onde as pessoas de fato moram, no mesmo, etalvez seja por isso que se sintam to infelizes a ponte de precisarem fazer terapia vrias vezes

  • por semana, como eu.Como algum pode viver em um lugar to gelado e imponente, to claramente em conflito

    com o resto da cidade, com o resto da populao humana, e continuar apaixonado? Que eusaiba, o amor acontece em moradias e chals aconchegantes e apartamentos apertados epousadas em runas. Este lugar podia muito bem ser um prdio de escritrios ou uma naveespacial.

    Austin aperta o ombro do porteiro ao entrar. Sylvia no faz contato visual e no hnenhuma hesitao quando ela entra. No h nenhum outro lugar em que queira estar que noseu apartamento no alto, acima de qualquer coisa semelhante verdadeira, perturbadora,emocionante vida.

    Estaria mentindo se dissesse que no entendo isso.Talvez no precise tentar ser Sylvia para entender o que ela sente, afinal.Fico no meu carro. No quero ir embora imediatamente, porque no quero ver o prdio de

    Austin e Sylvia desaparecendo no meu retrovisor. Fico, na esperana de que Austin tenhaesquecido algo importante no carro e volte correndo, e de que assim eu tenha um vislumbrefinal de seu corpo magro e de seus ps batendo no asfalto.

    Quase acerto.No Austin que aparece poucos minutos depois de volta na calada, e sim Sylvia. Ela tirou

    o casaco e vestiu uma coisa quente e confortvel e adicionou um ridculo chapu russo de pele combinao. Esfriou, mesmo dentro do carro. Desliguei o motor para me distrair em meuestranho jogo de espera e, apesar de as janelas estarem fechadas, no h como lutar contra osltimos sopros de inverno.

    Sylvia se encosta no prdio e, como uma estrela de cinema de antigamente, tira umacigarreira e um isqueiro de prata com um ar de certeza sobre a sua importncia no mundo. Elatem importncia. Assisti-la como assistir a um danarino, mas no suficiente apenas observar,e me canso com a forma com que sua mo leva seu cigarro at a boca, vezes e mais vezes, semajeitar a jaqueta nem parar para considerar um cncer de pulmo ou sequer errar a marca. Ela uma pintura, uma obra de arte e uma pessoa que desejo ser. Mas a calma que sinto em observ-la de curta durao. Minha mente continua voltando aos panfletos da Dra. Pat que estoparcialmente amassados no assento ao meu lado.

    Ou talvez seja Austin a verdadeira atrao.Ele me lembra algum. Tipo outro cara de quem gostei com a mesma aparncia magra e

    despenteada, as mesmas camisetas irnicas. Faz meu corao acelerar dentro do peito. Ele no meu tipo, acho, mas se parece com aquele cara, Jeff. O do primeiro beijo. O que no gosto de

  • lembrar. Antigo melhor amigo de Cooter. Afasto o pensamento. A memria de um primeirobeijo gruda no corao muito ferozmente, acho que assim com todos, mas em especial comigo.

    Fao meu corao desacelerar com inspiraes profundas, como a Dra. Pat me ensinou.Coloco uma boa e forte muralha em torno desse pensamento e decido no chegar perto deleoutra vez.

    Sylvia d outra tragada no cigarro e verifica o relgio. Ela no olha com expectativa para aporta do prdio, portanto duvido que Austin v aparecer de repente.

    Ento assim, to impulsivamente quanto decidi segui-los at aqui, que decido ir embora. uma longa viagem de volta quando no se consegue ir muito mais rpido do que cinquentaquilmetros por hora, e preciso encontrar Lisha no nosso restaurante favorito para comerbatatas fritas e fofocar. Tentarei no lhe contar sobre minha rpida e estranha viagem ao edifciodesse misterioso casal, mas Lisha tem um daqueles rostos muito legais que te do vontade defalar. E a garota sempre diz a coisa certa, ou sabe quando no dizer nada. Sou um livro abertode qualquer maneira, e Lisha uma leitora voraz.

    Vou a 52 quilmetros por hora durante todo o caminho. Considero esses dois quilmetros porhora a mais uma pequena vitria. Mesmo assim, chego com uma hora de atraso, e Lisha j estna Pancake House, ainda com sua meia-cala e collant, cabelo emaranhado na testa e amarradoem um coque alto, espinhoso de tantos grampos. Ela est acomodada com o chocolate quente,metade dos waffles j comida e um prato de batatas fritas besuntadas em mostarda e tabasco, doqual est beliscando, espero que no tenha se passado muito tempo. Mas Lisha parecehipnotizada por seu caso de amor com a fico russa, e ergue um dedo quando me sento,indicando que precisa terminar a frase ou captulo, mas espero que no o livro inteiro, antes dese concentrar em mim.

    Sabe que bateu seu recorde de atraso, certo? Ser que precisamos de uma interveno? comenta, quando enfim olha para mim e marca a pgina em que parou em Crime e castigo.J disse a ela para desistir e finalmente ler A Nascente, mas ela determinada. Em relao atudo. Sempre foi.

    Os garons sabem que devem me trazer chocolate quente tambm, e um garfo para ajudarLisha a terminar sua orgia alimentar.

    Acho que j tive uma hoje com a Dra. Pat. Ento, qual a concluso? Voc est louca? pergunta Lisha.No falamos em metforas vagas ou perguntas evasivas, como o resto do mundo. Falamos

    como as coisas so e acrescentamos uma boa dose de autodepreciao, se estiverem

  • particularmente ruins. A Dra. Pat acha que sim. Mas isso, voc sabe, no grande coisa, e eu no deveria deixar

    afetar minha vida ou o que quer que seja. No menciono o termo TOC, porque a Dra. Patno chegou a dizer que seja esse meu problema, e, alm do mais, ainda no posso enunciaraquela terminologia. No estou pronta para o momento Oi, sou a Bea e tenho TOC.

    Enfio uma das mos na bolsa e encontro o panfleto nmero trs, Onde a Ansiedadeencontra a Compulso: Terapia Cognitiva Comportamental e Obsesses. Deslizo-o na mesa eme perco fitando o waffle em vez de o rosto de Lisha.

    Ah diz ela depois de um silncio. . Dou a maior mordida possvel no waffle e, antes de engolir, emendo com trs

    batatas fritas. Bem, oua. No deixe ela te internar diz Lisha com um sorriso. Ela a nica pessoa

    que deixo falar comigo dessa maneira. Em uma escala de um a dez, quo estranha eu sou? Seja sincera. Porque pensei que

    estivesse, assim, no quatro, mas com a Dra. Pat me dando essas coisas sinto que alcancei pelomenos uns seis, certo?

    Te amo demais para te avaliar responde Lisha, com cuidado. Quero dizer, semcontar no quesito ser gostosa. A voc um slido 8.5, e se mostrasse as pernas em vez deescond-las nessas calas estranhas de hippie, seria um nove, com certeza. No consigo deixarde sorrir.

    Minhas pernas so tocos digo, e em seguida engulo mais algumas batatas fritas.Lisha fica colocando os dedos na boca para chupar o molho. Meio infantil, meio sexual.

    Quero tirar seus dedos de sua boca e coloc-los no seu colo. Ela no uma causa exatamenteperdida, mas perde o controle das mos, palavras e expresses faciais com muita facilidade, eessa tem que ser pelo menos parte da razo pela qual ainda nunca beijou um homem.

    Mas aquele tal de Beck gosta delas afirma Lisha, me chutando por baixo da mesa. Er, aquele tal de Beck nunca viu minhas pernas. Nunca vai ver minhas pernas. Franzo

    os lbios e engulo, porque, na verdade, no tenho tanta certeza de que quero que seja verdade. Ele gato? Sinto como se estivesse escondendo os detalhes. Ele parece o Kurt solto, antes de conseguir evitar. Limpo a garganta e fao meno de

    pegar mais waffle, mas conseguimos de forma impressionante esvaziar o prato todo. Querodizer, na verdade no. S, tipo, de corpo. Ou nem isso. No mesmo. Que seja.

    Deus, Kurt! exclama Lisha. Nunca mais pensei nele. Fazemos contato visualpor cima dos pratos vazios e canecas de caf ainda mais vazias. Eu devo dizer que tambm

  • nunca mais pensei nele. Sim concordo.No mentira se eu apenas assentir, dizendo sim. Mas Lisha no vai deixar pra l. Ela

    quer saber, com certeza, que no penso mais em Kurt. Nunca. Levanta as sobrancelhas,esperando que eu diga mais alguma coisa. Quando no o fao, ela se remexe na cadeira.

    Quero dizer, no fala mais com ele ou qualquer coisa, n? Ou, tipo, o v? Claro que no o vejo. Voc sabe que no posso digo. Lisha balana a cabea com

    muito entusiasmo. Nem sei por que mencionei o nome dele. Aquela coisa no meu peito seaperta e, sem pensar, belisco a coxa.

    Ser que isso uma compulso?Passo a mo para baixo da coxa, sento-me nela de um jeito que espero que no seja muito

    bvio, e imploro com os olhos que Lisha mude de assunto. Ela conhece bem aquele olhar ns o aperfeioamos, na verdade e acena com a mo como se fssemos simplesmente apagaros ltimos minutos de conversa.

    Sobremesa diz. Sorvete respondo. Sorvete seguro e suave e fresco. Entorpecente. Concordo plenamente diz Lish.Ela acena para o garom, mas seus olhos ficam em mim apenas um instante a mais do que

    deveriam. Tenho o impulso de me cobrir de maquiagem, delineador lquido escuro e rmel comglitter. Qualquer coisa para esconder o que quer que ela enxergue no meu rosto. Mas quandopeo licena para ir ao banheiro, s aplico uma fina camada de bronzer e brilho labial vermelho-rubi. No quero me olhar muito tempo no espelho, no quero ver com o que uma adolescentecom TOC pode parecer. Mas tambm no estou pronta para voltar aos talheres batendo egarons falando de forma acelerada. Ento abro a bolsa em busca de algo ainda melhor: ocaderno cor-de-rosa. Releio as anotaes das sesses de Austin e Sylvia. Registro a roupa deSylvia de hoje cedo. A cada curva da caneta obtenho algum alvio, e em alguns momentos estoude cabea limpa e corao no agitado e com a crena de que tudo ficar bem: para mim, paraKurt, para Austin e Sylvia, para Beck.

    Lisha e eu dividimos uma taa de sorvete de chocolate. O panfleto sobre TOC est na mesaentre ns. Acho que esqueci de coloc-lo de volta na bolsa, e no suporto mais olhar para ele,ento o deixo l. Eu o abandono em cima da mesa, como se fosse a pior gorjeta do mundo. Mascarreg-lo vai me condenar ainda mais.

    Dirijo para casa devagar prestando ateno em crianas e cachorros e nas curvas e nosidosos. S no quero machucar ningum.

  • 6.

    Tarde de sbado, terapia de grupo. A Dra. Pat disse, aps a sesso de ontem, que se eu for terapia de grupo duas vezes por semana, s preciso v-la uma vez por semana, s quartas-feiras.A sala parece to sufocante quanto na tera tarde, e mais uma vez estamos todos focados emJenny. Ela perdeu ainda mais cabelo e, se no me engano, tambm est sem uma das plidassobrancelhas. Hoje sua misso resistir a puxar o cabelo durante a sesso. Foi o que a Dra. Patinstruiu, e cerca de um milho de vezes mais difcil para ela do que parece. Sempre que algummenciona seus pais, em qualquer contexto, bom ou ruim, ela leva a mo cabea e ento todostemos que estalar os dedos na sua direo para que pare. Em seguida, ela fica ofegante eesperamos enquanto a Dra. Pat segura suas mos.

    Maus-tratos. Sabia.No que eu no sinta pena de meninas que sofreram maus-tratos. Mas sinto um pouco de

    inveja tambm, porque elas sabem por que fazem o que fazem. Sabem o que tanto temem, o quefez de suas mentes um labirinto to estranho de regras e terrores e solues malucas paraproblemas que realmente no podem ser resolvidos. No tenho essa (falta de) sorte.

    Tentei dizer isso Dra. Pat outro dia, e ela falou que posso no ter algo to bvio quantouma dcada de maus-tratos, mas que tenho minhas prprias histrias. Meus prprios traumas.Odeio quando fala esse tipo de coisa. Isso me faz tremer.

    Nesse meio-tempo, j passei de carro pelo prdio de Austin e Sylvia duas vezes desde ontem noite. Acho que como v