6
Uma História de Reconciliação – por Luciano Subirá A carta de Paulo a Filemom é digna de ser examinada sob a ótica da palavra da reconciliação que temos recebido. Assim como temos a responsabilidade de apregoar aos homens a reconciliação com Deus, também temos de fazê-lo em relação aos homens. Há três personagens em evidência nesta carta do apóstolo: Filemom, Onésimo e o próprio Paulo. Filemom era um amigo de Paulo (a quem a carta foi endereçada) e também um filho na fé. Seu nome significa “afeiçoado”, o que nos faz concluir – juntamente com o conteúdo da carta – que era alguém que facilmente alcançava o carinho das pessoas, e sabia como retribuir o que lhe era dado. Era a pessoa lesada da história. Onésimo é o pivô desta história. Foi em favor dele que Paulo escreveu. Era um escravo fugitivo, e o apóstolo Paulo intercede por ele, para que Filemom o receba de volta e o perdoe. Era o que estava em falta. Paulo, o apóstolo dos gentios, é que assume o papel de reconciliador, e certamente compreendia muito bem o significado das palavras de nosso Senhor: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. (Mt 5.9.) O apóstolo se identifica como prisioneiro de Cristo, lembrando a Filemom que a distância entre eles se dava pelo fato de Paulo estar na cadeia por pregar o Evangelho. Mas a introdução da carta já revela o vínculo que havia entre eles: “Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, ao amado Filemom, também nosso colaborador, e à irmã Áfia, e a Arquipo, nosso companheiro de lutas, e à igreja que está em tua casa: Graça e paz a vós outros da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. Dou graças ao meu Deus, lembrando- me sempre de ti nas minhas orações, estando ciente do teu amor e da fé que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos, para que a comunhão da tua fé se torne eficiente, no pleno conhecimento de todo bem que há em nós, para com Cristo. Pois, irmão, tive grande alegria e conforto no teu amor, porquanto o coração dos santos tem sido reanimado por teu intermédio”. (Filemon 1-7) Filemom era uma pessoa amorosa e hospitaleira, e demonstrava isto para com todos. Por isso, Paulo age de forma muito carinhosa para com ele, ao interceder em favor de Onésimo, um escravo que havia fugido e que, certamente, também o havia lesado.

Uma história de reconciliação

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Uma história de reconciliação

Uma História de Reconciliação – por Luciano Subirá

 

A carta de Paulo a Filemom é digna de ser examinada sob a ótica da palavra da reconciliação que temos

recebido. Assim como temos a responsabilidade de apregoar aos homens a reconciliação com Deus,

também temos de fazê-lo em relação aos homens. Há três personagens em evidência nesta carta do

apóstolo: Filemom, Onésimo e o próprio Paulo.

Filemom era um amigo de Paulo (a quem a carta foi endereçada) e também um filho na fé. Seu nome

significa “afeiçoado”, o que nos faz concluir – juntamente com o conteúdo da carta – que era alguém que

facilmente alcançava o carinho das pessoas, e sabia como retribuir o que lhe era dado. Era a pessoa

lesada da história.

Onésimo é o pivô desta história. Foi em favor dele que Paulo escreveu. Era um escravo fugitivo, e o

apóstolo Paulo intercede por ele, para que Filemom o receba de volta e o perdoe. Era o que estava em

falta.

Paulo, o apóstolo dos gentios, é que assume o papel de reconciliador, e certamente compreendia muito

bem o significado das palavras de nosso Senhor: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão

chamados filhos de Deus”. (Mt 5.9.)

O apóstolo se identifica como prisioneiro de Cristo, lembrando a Filemom que a distância entre eles se

dava pelo fato de Paulo estar na cadeia por pregar o Evangelho. Mas a introdução da carta já revela o

vínculo que havia entre eles:

“Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, ao amado Filemom, também nosso

colaborador, e à irmã Áfia, e a Arquipo, nosso companheiro de lutas, e à igreja que está em tua

casa: Graça e paz a vós outros da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. Dou graças

ao meu Deus, lembrando-me sempre de ti nas minhas orações, estando ciente do teu amor e da fé

que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos, para que a comunhão da tua fé se torne

eficiente, no pleno conhecimento de todo bem que há em nós, para com Cristo. Pois, irmão, tive

grande alegria e conforto no teu amor, porquanto o coração dos santos tem sido reanimado por

teu intermédio”. (Filemon 1-7)

Filemom era uma pessoa amorosa e hospitaleira, e demonstrava isto para com todos. Por isso, Paulo age

de forma muito carinhosa para com ele, ao interceder em favor de Onésimo, um escravo que havia fugido

e que, certamente, também o havia lesado.

O que temos aqui é mais do que mera psicologia ou política de bons relacionamentos. Trata-se de uma

direção do Espírito Santo na vida de Paulo não só para resolver um problema de seus dias, mas para que

ficasse como exemplo e referência para todos nós hoje. O pedido por restauração do relacionamento é

claro e direto:

“Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, prefiro,

todavia, solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro de

Page 2: Uma história de reconciliação

Cristo Jesus: sim, solicito-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre algemas. Ele antes te

foi inútil, atualmente, porém, é útil, a ti e a mim. Eu to envio de volta em pessoa, quero dizer, o meu

próprio coração. Eu queria conservá-lo comigo mesmo para, em teu lugar, me servir nas algemas

que carrego por causa do evangelho; nada, porém, quis fazer sem o teu consentimento, para que a

tua bondade não venha a ser como que por obrigação, mas de livre vontade. Pois, acredito que ele

veio a ser afastado de ti temporariamente, a fim de que o possuas para sempre, não já como

escravo; antes, muito acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com

maior razão de ti, quer na carne, quer no Senhor. Se, portanto, me consideras companheiro,

recebe-o, como se fosse a mim mesmo”. (Filemom 8-17)

Esta epístola nos revela uma história de reconciliação. Quando Paulo escreveu a Filemom, o fez movido

por um único sentimento: promover reconciliação entre ele e Onésimo. E a mensagem dada a Filemom

poderia ser dita assim: “Enquanto estou na cadeia, você deveria estar me servindo, mas não está.

Contudo, Onésimo que era seu escravo e fugiu (e está em falta contigo e precisando de reconciliação)

está me servindo em teu lugar…”. Certamente Onésimo ainda não era um crente quando fugiu, pois

Paulo diz tê-lo gerado entre algemas, ou seja, lá mesmo na prisão.

Naqueles dias a escravidão era algo muito forte no Império Romano. A pessoa poderia vir a tornar-se

escravo por diversas razões: poderia nascer na condição de filho de escravos e assim passaria a

pertencer ao seu senhor; poderia ser devido à pobreza (quando familiares eram vendidos para arrecadar

dinheiro); poderia ser devido à prática do roubo, o que culminava na prisão e possibilidade de se tornar

escravo também.

Não sabemos com certeza o que levou Onésimo a ocupar esta condição, mas sabemos que ele teve um

encontro com Cristo e sua vida foi transformada. Ele se tornou uma nova criatura e as coisas velhas

ficaram para trás. Esta mudança é claramente vista na afirmação de Paulo a Filemom: Ele antes te foi

inútil, atualmente, porém, é útil, a ti e a mim (v.11), Paulo escolhe propositalmente estas palavras porque

o nome Onésimo significa “útil”.

Antes desta transformação, Onésimo demonstrou ser um escravo rebelde e que provavelmente ainda

roubou a Filemom por ocasião de sua fuga, pois Paulo menciona um possível prejuízo e a lógica nos faz

entender que se este homem conseguiu chegar a Roma (onde Paulo estava preso) deve ter conseguido

algum dinheiro ou forma de pagamento de suas despesas – o que um escravo normalmente não possuía:

“E, se algum dano te fez ou se te deve alguma coisa, lança tudo em minha conta. Eu, Paulo, de

próprio punho, o escrevo: Eu pagarei – para não te alegar que também tu me deves até a ti mesmo.

Sim, irmão, que eu receba de ti, no Senhor, este benefício. Reanima-me o coração em Cristo.

Certo, como estou, da tua obediência, eu te escrevo, sabendo que farás mais do que estou

pedindo”. (Filemon 18-21)

Agora tente imaginar Filemom como alguém “afeiçoado”, dócil, e que, com o histórico de virtudes descrito

por Paulo deve ter sido alguém que certamente se classificava como “um bom senhor”. E ainda assim,

Onésimo foge e o rouba.

Acredito que esta história deixou mágoas e feridas. Deixou no ar um cheiro de ingratidão para Filemom.

Não era o que ele esperava colher da parte de Onésimo… Mas por trás de tudo isto vemos a mão

Page 3: Uma história de reconciliação

soberana de Deus. Onésimo vem a ter um encontro com Cristo nestas condições; e parecendo uma

grande coincidência, a pessoa que o leva a Cristo é justamente um conhecido, um amigo de seu senhor.

E este homem se torna agora seu discipulador.

Imagino que muitas coisas devem ter sido tratadas na vida de Onésimo. Paulo não começou pela

necessidade de reconciliação. Quando ele escreve para Filemom, já havia um relacionamento entre ele e

Onésimo.

Temos evidências de que já havia um processo de tratamento e que a maturidade vinha já brotando, pois

quando Paulo diz que Onésimo era alguém que se encontrava “servindo em amor” é porque não estava lá

na condição de escravo, e sim por livre e espontânea vontade e desejo de servir.

Ele também manifesta o desejo de voltar e se reconciliar com seu senhor, embora não tenha condições

de restituí-lo. Isto é evidência de transformação de vida! Depois de ter fugido e alcançado sua liberdade

(ainda que de forma ilegal), Onésimo poderia não mais querer voltar a ser escravo sob hipótese alguma,

porém ele havia aprendido um princípio que seu discipulador costumava a ensinar:

“Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente, o

que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo.  (1 Coríntios 7.22)

Pelo constrangimento do amor de Deus em seu coração, ele passa a ser um escravo. Por amor ele passa

a servir ao apóstolo Paulo e posteriormente se dispõe a voltar para Filemom. Ele entende que mesmo que

tenha alcançado a liberdade no natural, agora é um escravo de Cristo (e de seus ensinos e ordenanças).

PRATICANDO A RESTITUIÇÃO

Agora perceba algo: mesmo reconhecendo que Onésimo havia sido transformado e perdoado por Deus,

Paulo não deixa de reconhecer que ele ainda tinha pendências a serem corrigidas. Nossa transformação

não remove de nós a responsabilidade de consertar algumas coisas que fizemos de errado em nosso

passado. Não podemos agir certo só da conversão em diante, mas precisamos resolver algumas

“coisinhas” que ficam para trás também.

O apóstolo não promove somente a reconciliação, mas também a restituição. Esta era uma ordenança da

lei mosaica: a pessoa devolvia o que pegou e ainda acrescentava uma indenização. Foi o que aconteceu

com Zaqueu quando ele se converteu:

“Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade

dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então,

Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque

o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido”. (Lucas 19.8-10)

Da mesma forma como Paulo pede perdão em favor de Onésimo, poderia também pedir o perdão da

dívida, mas não faz isto, pois sabia que este era um princípio que deveria ser praticado e não ignorado.

Quantos crentes de hoje precisam aprender este princípio! Antes de nos entregar a Jesus deixamos para

trás um rastro de injustiças praticadas e achamos que não precisamos fazer mais nada, só porque Jesus

Page 4: Uma história de reconciliação

nos perdoou… mas não é bem assim! Há situações em que a restituição será impossível de ser praticada.

Mas há condições em que no mínimo uma reconciliação, um pedido de perdão, já faria muita diferença.

Tem muita gente por aí que ainda está presa a situações de seu passado. Nem tudo dá para se resolver.

Tenho um amigo que, antes de se converter, era assaltante de carros e de bancos; jamais poderá restituir

tudo o que roubou antes de conhecer a Cristo. Mas tenho muitos outros amigos que reconheceram estar

ao seu alcance, e que praticaram a restituição. Um deles foi restituir a uma antiga vizinha as galinhas que

roubara em sua infância; e, além de se livrar de um peso que carregava, ainda pôde evangelizar a mulher

que se impressionou com sua atitude.

Veja o caso dos dois personagens em destaque nesta epístola de Paulo. Temos Filemom como a vítima,

e Onésimo como o culpado. Ambos se converteram e conheceram a Jesus. Ambos tinham pendências e

precisavam ser ministrados por Deus. E ambos precisavam de reconciliação! Mesmo reconhecendo que

eram novas criaturas sem condenação alguma (Rm 8.1), Paulo reconhece que eles precisavam desta

reconciliação.

E você? Como está sua vida? Ainda traz consigo pendências não resolvidas? Acredito que esta é uma

mensagem de Deus para muitos corações que necessitam de conserto.

HÁ UM TEMPO ESPECÍFICO PARA ISTO

Como já afirmei anteriormente, Paulo não iniciou o processo de reconciliação imediatamente após a

conversão de Onésimo. Provavelmente este homem não tinha condições de fazer isto logo no início de

sua caminhada. Talvez faltassem condições financeiras suficientes para tal. Talvez faltassem condições

emocionais. Contudo, o que imagino ser mais provável: faltava maturidade espiritual. Este tipo de atitude

não se gera da noite para o dia. Tem a ver com mudança de caráter, ajuste de valores.

A reconciliação costuma produzir vergonha na parte culpada quando sabe que vai encarar a vítima. Não

sabemos quanto tempo isso levou para acontecer, mas o alvo não foi perdido de vista.

Talvez você também sinta necessidade de consertar certas pendências, mas deve procurar amadurecer o

assunto em oração e busca de Deus. Não faça nada correndo. Busque conselho com o seu pastor ou

discipulador antes de dar o passo, porque, mesmo sendo algo certo a ser feito, deve acontecer também

na hora e da forma correta.

O ASPECTO PRÁTICO

Esta história nos ensina três lições práticas:

1. Se você é alguém que está numa condição semelhante à de Onésimo, precisa buscar acerto.

2. Se você é alguém que, como Filemom foi ofendido e lesado, precisa perdoar quem te fez isto.

3. Se você, como o apóstolo Paulo, conhece outros crentes que tenham um problema de relacionamento

‘quebrado’, deve promover entre eles a reconciliação.

Page 5: Uma história de reconciliação

Infelizmente, a intriga sempre existiu e existirá no meio do povo de Deus nesta terra. Mas é em momentos

como este que os aprovados se manifestam: “Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós,

para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio”. (1 Co 11.19). Se no livro de Atos

dos Apóstolos e nas Epístolas do Novo Testamento (mesmo em meio a um grande mover de Deus)

encontramos tantos problemas de divisões, intrigas e dissensões, por que achar que conosco nada

acontecerá?

Mas quando vemos acontecer, devemos interferir como pacificadores. Talvez ao meditar nesta história de

reconciliação você tenha concluído que não se encaixa nas figuras de Filemom ou Onésimo. Mas você

pode ser um Paulo; pode ser um reconciliador!

Há pessoas que colocam sua língua à disposição de Satanás. Tiago escreveu que a língua muitas vezes

é inflamada pelo inferno. Não deixe isto acontecer com você. Semeie a paz e não intrigas.

É muito importante ter o papel e presença de um mediador na hora de resolver certos problemas. Paulo

aconselhou aos coríntios a levantarem alguns como juízes na igreja, a fim de julgar entre as questões e

diferenças dos irmãos (1 Co.6.1-7).

Não é necessário ter pressa. Paulo regou o processo com oração e diálogo, e quando tudo aconteceu só

promoveu a edificação. Não adianta reconciliar “na marra”, a coisa tem que fluir nos corações das

pessoas primeiro. Foi o que Paulo disse a Filemom:

“Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, prefiro,

todavia, solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro de

Cristo Jesus; sim, solicito-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre algemas”. (Filemon 8-

10)

Isto é como aquela mãe que obriga os filhos brigados a darem as mãos e dizerem que perdoam um ao

outro… A “reconciliação” só acontece para não apanharem da mãe! Mas não funciona de fato. Não deste

jeito.

A reconciliação deve ser pregada e ensinada. Deve ser aconselhada e dirigida. Deve ser praticada na

igreja hoje, e nos moldes desta história de reconciliação que o Espírito Santo fez questão que ficasse

registrada para nós… Que Deus nos ajude!