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UMA HISTORIA ILUSTRADA DO CRISTIANISMO VOL. 5 A ERA DOS SONHOS FRUSTRADOS JUSTO L. GONZALEZ

Uma Historia Ilustrada do Cristianismo; A Era dos Sonhos Frustrados. Vol: 5

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UMA HISTORIA ILUSTRADA DO CRISTIANISMO VOL. 5

A ERA DOSSONHOS FRUSTRADOS

JUSTO L. GONZALEZ

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E até aos confins da terra:uma história ilustrado do

cristianismo

A era dossonhos frustrados

volume 5

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Justo L. González

Eaté aos confinsda Terra:

Uma história ilustradado Cristianismo

VOLUME 5

A era dossonhos frustrados

Page 4: Uma Historia Ilustrada do Cristianismo; A Era dos Sonhos Frustrados. Vol: 5

c 1994 de Justo L. GonzálezTítulo do original: Y hasta lo último de la tierra:

Una Historia Ilustrada del CristianismoTomo 5 -La Era de los Sueiios Frustrados

1~edição: 1981Reimpressões: 1986, 1989, 1993, 1997,

1999,2000, 2001

Publicado no Brasil com a devida autorizaçãoe com todos os direitos reservados por

SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,Caixa Postal 21486, São Paulo-SP

04602-970

Proibida a reprodução por quaisquermeios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,

fotográficos, gravação, estocagem em banco dedados, etc.), a não ser em citações breves

com indicação de fonte.

Capa: O triunfo da morte, quadro de Brughel,cortesia do Museu do Prado, Madri, Espanha

Printed in Brazil / Impresso no Brasil

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

González, Justo L.E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do

Cristianismo / Justo L. González; IHans Udo Fuchs]. -São Paulo: Vida Nova, 1995.

Título original: Y hasta lo último de la tierra: unahistória ilustrada dei cristianismo.

Conteúdo: v. I. A era dos mártires - v. 2. A era dosgigantes - v. 3. A era das trevas - v. 4. A era dos altosideais - v. 5. A era dos sonhos frustrados - v. 6. A era dosreformadores - v. 7. A era dos conquistadores - v. 8. A erados dogmas e das dúvidas - v. 9. A era dos novos horizontes-v. lO. A era inconclusa.

tSBN85-275-0215-1 (obra completa)

I. Igreja - História 1. Título95-2793 CDD-270

Índices para catálogo sistemático

I. Cristianismo: História da Igreja 270

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DedicatóriaAo meu tio José Maria González,

incansável caçador doscrimes contra o bom falar,

em gratidão porter feito dos meus manuscritos

o seu campo de caça.

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-Indice

Lista de ilustrações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. IXPrefácio 1Cronologia .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 3

I. As novas cond ições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9A peste e suas conseqüências 11A aliança entre a burguesia e a coroa 18O nacionalismo 19A guerra dos cem anos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20

II. O papado sob a sombra da França 35Bonifácio VIII e Filipe, o Belo 35O papado em Avignon 44Santa Catarina de Siena 50A vida eclesiástica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 54

III. O Grande Cisma do Ocidente 57VI. A reforma conciliar 65

A teoria conciliar 66O concflio de Pisa 68Os três papas 71O concflio de Constança 74O triunfo do papado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 76

V. João Wycliff 81Vida e obra de Wycliff 82Suas doutrinas 85Os lolardos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 89

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VIII / A era dos sonhos frustrados

VI. João Huss 93Vida e obra de João Huss 95Huss diante do concílio 99Os hussitas ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 102

VII. Os movimentos populares " 109Beguinas e begardos " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 114Os flagelantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 116Os taboritas 118Hans Bõhrn " 119

VIII. A alternativa m (stica 123IX. A teologia acadêmica 129X. O renascimento e o humanismo 135

A Itália nos séculos XIV e XV 136O despertar das letras clássicas .. . . . . . . . . . . . .. 138A nova visão da realidade. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 144Os papas do renascimento 147A reforma humanista: Erasmo de Roterdã 152

XI. Jerônimo Savonarola 157XII. O fim do Império Bizantino 167

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Lista de ilustracões.1-2. Peregrinos 13-143. Relicário do século XV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 154. Dança macabra ',' . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 165. No leito de morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 166. Os dois caminhos da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 177. JesusCristo, juiz supremo 188. Quadro: A sucessãoao trono da França 219. Mapa: A França durante a guerra dos cem anos 2210. Joana d' Arc 2911. A coroação de Reims 3112. O papado de Avignon 4913. Santa Catarina de Siena 5114. Bodas m (sticas de Santa Catarina . . . . . . . . . . . . .. 5215. O concflio de João XXIII em Roma , 7316. A cidade de Constança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 7517. João Wycliff , 8218. A igreja paroquial de Lutterworth 8419. Wycliff envia os lolardos 8820. A perseguição dos lolardos ,.. 9021. Praga no século XV 9422. A morte de João Huss 10323. A comunidade do Monte Tabor 10424. A devolução do cálice aos leigos 106

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x / A era dos sonhos frustrados.

25. João Am6s Comeno , 10726. A fortaleza da fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11227. Beguinage de Bruxelas 11528. Flagelantes 11729. O anticristo 11930. Manuscrito grego do evangelho de Lucas 13831. A imprensa 13932. Bfblia de Gutenberg , 14033. Biblioteca da universidade de Leyden , 14134. Encadernadores 14335. "Davi", de Miguelângelo " 14536. Leonardo da Vinci 14737. Basflica de São Pedro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15238. Erasmo de Roterdã. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15439. Savonarola em seu escritório 15940. Savonarola pregando 16141. Visão de Savonarola , 16342. Guerreiro otomano , 16943. Maomé II entra em Constantinopla 171

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Prefácio

Este livro conta sua própria história, e por isto há poucoa dizer à guisa de apresentação. Basta assinalar que o períodonarrado aqui inclui os anos imediatamente anteriores à Reformaprotestante, e que por isto seu conhecimento é importantepara compreender completamente esta reforma.

Além disto gostar(amos de advertir o leitor que, por razõesde ordem lógica, nem sempre apresentamos os acontecimentosem sua ordem estritamente cronológica. Por exemplo: no pri-meiro capftulo, quando falamos da guerra dos cem anos, cobri-mos quase todo o per(odo, para logo depois voltar atrás e narraroutros acontecimentos. Da mesma forma a discussão da reformaconciliar que seguiu ao Grande Cisma nos obrigou a estudarWycliff e Huss depois de terminar a história dos concflios. Poristo convidamos o leitor a fazer uso constante da cronologiaque aparece no infcio deste volume. Desta maneira ele poderáver a relação e a ordem no tempo de diversos acontecimentosque no texto são narrados separadamente.

Por último convidamo-lo a que, ao ler as páginas que se-guem, o faça no mesmo esp írito com que foram escritas: com

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a prece de que o Senhor da história nos fale através dela, e noschame a ocupar nosso lugar nela.

J. L. G.15 de agosto de 1978

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Cronologia

Advertências preliminares:1. Como assinalamos no Prefácio, neste volume nos vimos

obrigados a deixar de lado a ordem cronológica mais que nosanteriores. Por isto sugerimos ao leitor que, no processo de sualeitura, acuda repetidamente à presente cronologia.

2. Na lista de papas pusemos, sem outro comentário, osque os papas posteriores consideraram legítimos. Os "antipa-pas" de Avignon estão assinalados com a abreviatura Av., e osde Pisa com P.

3. Dadas as novas circunstâncias pol íticas, em vez de ofe-recer listas dos imperadores do Oriente e do Ocidente, comonos volumes anteriores, preferimos dar uma relação dos reis daFrança e da Inglaterra.

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6 / A era dos sonhos frustrados

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IAs novascondições

E melhor evitar os pecados que fugirda morte. Se hoje não estás pronto,como estarás amanhã? O amanhã é

incerto; como sabes que viverásaté lá? De que serve viver muitosdias, se nossa vida não melhora?

Kempis

No século XIII, como vimos no volume anterior, pareciamestar se cumprindo os mais elevados ideais da cristandademedieval. Na pessoa de Inocêncio" I o papado chegou à pleni-tuce do seu poder, enquanto as ordens mendicantes se empe-nhavam em conquistar o resto do mundo para Cristo, e nasuniversidades eram construídas grandes catedrais do pensamen-to teológico. Pelo menos em teoria, a Europa estava unida sobum cabeça espiritual, o papa, e outro temporal, o imperador.Durante boa parte deste século, enquanto os cruzados ociden-tais reinaram em Constantinopla, aparentemente as igrejaslatina e grega finalmente se tinham reunificado.

rv!as em meio a todos estes elementos de unidade, à primei-ra vista inquebrantáveis, existiam tensões e pontos fracos, quemais tarde derrubariam o grande edifício que a cristandademedieval tinha constru íco com seus ideais elevados. /\ uniãocom a igreja greya era somente aparente, pois sol; a superfíciefervia o ressentimento de um povo que se sentia oprimidopor invasores estrangeiros. Por isto assim que os bizantinoscunseguiram reconquistar sua capital eles cancelaram todos

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10 / A era dos sonhos frustrados

os acordos que os patriarcas latinos de Constantinopla tinhamfeito com a igreja ocidental. A unidade pol (tica da Europa eramais fictfcia que real, pois os imperadores fora da Alemanhatinham uma autoridade somente nominal, e mesmo em seupróprio pafs se viam obrigados a lutar quase constantementecontra os nobres rebeldes. Os grandes sistemas escolásticos doséculo XIII também traziam dentro de si os germes da suaprópria destruição, como veremos mais adiante no presentevolume. A arquitetura gótica, feito supremo da civilizaçãomedieval, logo se dedicou à ornamentação excessiva que écaracterfstica de qualquer arte em decadência.

O papado não estava isento das mesmas forças de destrui-ção. Através de toda a "era dos ideais elevados" tinha existidouma tensão quase constante entre o papado e o império, poisos limites da autoridade de cada um dos poderes não podiamser fixados com exatidão. Na própria cidade de Roma, ondeos papas supostamente reinavam como soberanos, o papadofoi joguete freqüente das ambições dos poderosos, ou doscaprichos do povo. O esp(rito republicano, que se fortalecerano norte da Itália, se fizera sentir em Roma. Dadas todas estascircunstâncias, foram muitas as ocasiões em que os papas seviram obrigados a ir ao ex ílio, ou a se refugiar em algum doscastelos fora da cidade, ou a apelar para o imperador contraos republicanos, ou ao povo contra os nobres, ou para osnormandos para contrabalançar as ameaças do Império.

Mas apesar de tudo isto, durante o século XIII o papadoteve o respeito da Europa. Quando cara em circunstânciastristes a cristandade ficava comovida, e por isto os que o opri-miam se viam obrigados a agir com moderação. Como aprende-ram por experiência própria os nobres italianos, os imperadorese os republicanos romanos, um papa cativo ainda era um inimi-go tem (vel.

No per(odo que estudamos agora estas circunstânciasmudaram. A triste história da decadência do papado, queocupa boa parte do presente volume, teve por conseqüênciaque a cristandade ocidental perdeu o respeito pelo papa. Ogrande sonho de Inocêncio III de um povo cristão unido sobum só pastor tinha sido frustrado muitos anos antes de Luterocomeçar a reforma protestante.

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As novas condições / 11

Contra a corrupção do papado e da igreja em geral surgi-ram diversos movimentos de reforma. Alguns deles se ocupavamquase que exclusivamente da prática da vida cristã, enquantooutros atacavam as doutrinas que se tinham desenvolvidodurante os séculos anteriores. Alguns eram dirigidos por erudi-tos e pregadores, outros tinham raízes mais populares. Estesmovimentos de reforma também ocuparão boa parte da nossaatenção.

Mas antes de passar a narrar toda esta história convém quenos detenhamos para descrever um pouco o pano de fundo detodos estes acontecimentos.

A peste e suas conseqüências

A economia européia, que antes estivera em expansão,estancou em princfpios do século XIV, e em meados desteséculo começou a declinar. Isto era causado pela instabilidadepol ítica, o fim das cruzadas e a decadência da agricultura.IVlas a causa principal foi a epidemia de peste bubónica queaçoitou repeticamente a Europa ocidental a partir de 1347.

t....peste bubónica é propagada principalmente por pulgasque, depois de picar ratos infeccionados, a transmitem aosseres humanos. Perto do fim do século XIII, quando os geno-veses conseguiram derrotar os marroquinos e abrir o estreitode Gibraltar à navegação, o contato entre o norte da Europae as costas do Mediterrâneo foi se estreitando cada vez mais.A navegação tinha sido muito melhorada neste mesmo século,e por isto, mesmo no inverno, constantemente havia barcosprocedentes do Mediterrâneo nos portos do Atlântico. Istocontribuiu para difundir a população de ratos negros, quesão os por.tadores da terrível enfermidade. Além disto a prospe-ridade econômica do século XIII tinha levado a um grandeaumento da população, de modo que restavam poucos lugaresisolados na Europa ocidental. Quando a praga apareceu nascostas do Mar Negro e no sul da Itália, encontrou condiçõesótimas para sua propagação. Em três anos ela varreu o conti-nente europeu, e calcula-se que uma terça parte da populaçãomorreu. Depois desta terrível mortandade a epidemia amai-nou, embora voltando repetidamente, com menos virulência,

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a cada dez ou doze anos. Em cada uma destas novas irrupçõese enfermidade atacava principalmente a geração mais jovem,que não ficara imunizada pela epidemia anterior, e por istoa Europa levou dois séculos para voltar a estabelecer um equi-Iíbrio demográfico.

As conseqüências da praga foram enormes, tanto no aspec-to econômico quanto no aspecto religioso. No econômico aepidemia afetou diversas regiões de diferentes maneiras. Emalguns lugares a falta de mão de obra aumentou o preço dosprodutos manufaturados. Em outros a falta de compradoresproduziu um excesso de produção, com desemprego comoconseqüência. Mas no final das contas o que surgiu foi umdesequil (brio econômico que se manifestou numa instabili-dade pol ítica nunca vista. Nos arredores de Paris, na Inglaterrae em Flandres houve revoltas populares. Em alguns casos,como em Flandres, estas revoltas conseguiram firmar pé, efoi necessário a intervenção de todo o poderio Ga coroa francesapara sufocá-Ias, depois de civersos anos de lutas. Nas principaiscidades manufatoras, por causa da retração do mercado, osmestres artesãos tentaram evitar que os aprendizes chegassema ser mestres, e competissem com eles. O resultado foi umatensão cada vez maior entre mestres e aprendizes ou jorna-leiros, que levou os dois grupos a se organizarem para protegerseus interesses. As greves ficaram cada vez mais freqüentes.Em termos gerais a produção diminuiu, e aumentaram ospreços e as exigências feitas aos trabalhadores.

No aspecto religioso a peste também teve profundasconseqüências. Por causa do caráter da enfermidade, que fre-qüentemente parecia atacar de repente pessoas perfeitamentesãs e matá-Ias em poucas horas, começou-se a duvidar do uni-verso racional e ordenado que os escolásticos tinham conce-bido. Entre os intelectuais alastrou-se a opinião que no fimdas contas o universo não é racional, e eles começaram a duvidarcada vez mais da capacidade da mente humana de penetrarnos mistérios da existência. Entre o povo menos culto aumen-tou a superstição, que sempre tinha existido. Como dissemosanteriormente, vários "gigantes" do século IV se tinham opostoao auge que as peregrinações alcançaram em sua época. Agora,mil anos mais tarde, estas peregrinações eram uma das mani-

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As novas condições / 13

Os ricos partiam para lUf}ares tradicionais de peregrinação: Terra Santa,Roma e Compostela.

festações religiosas mais populares. Os ricos partiam para oslugares tradicionais de peregrinação: Terra Santa, Roma e Com-postela. Os pobres acudiam a santuários mais próximos, cujaeficácia era considerada grande, mesmo que não igual à dostrês lu~ares mencionados. Da mesma forma aumentou o cultoàs rei íquias, que fora abrindo caminho através de toda a IdadeMédia. Logo, as superstições contra as quais protestaram osreformadores do século XVI, se bem que tinham raízes que emmuitos casos remontavam a mais de mil anos atrás, tinham setornado exageradas e especialmente comuns a partir de meadosdo século XIV.

Outra conseqüência da praga foi uma grande preocupaçãocom o tema da morte. Como até mesmo os mais jovens - eparticularmente eles nas epidemias posteriores - podiam morrer

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14 / A era dos sonhos frustrados

Os qU6 possutern menos meios acorriam a santUlÍrios mais próximos, cujaeficácia, mesmo nio sendo igUBI li de Jerusalém ou Compostela, era consl-aerea« grande.

inesperadamente, toda a vida era vista à luz desta possibilidade.A morte era o acompanhante secreto e constante de todo serhumano, disposta a reclamá-lo a qualquer momento e a levá-lo,ou à pátria celestial, ou ao castigo eterno. Quando um enfermoagonizava, anjos e demônios disputavam a alma do moribundo,e a função da igreja e dos seus ministros consistia em facilitara vitória dos anjos. A morte, pois, e seu triunfo aparentementeuniversal, passaram a ser temas constantes na literatura e na ar-te, onde freqüentemente era representada festejando sua vitória.

Pelas mesmas razões, e estreitamente unida com esteinteresse na morte, começou a surgir a idéia de que Jesus Cristoera mais juiz do que redentor. A ira de Deus, aparentemente

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As novas condições / 15

Em luxuosos relicários como este, do século XV, erem conser .•• dBs e .•• ne-redes as rel'-quias dos santos, 8utlnticos ou nêo.

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A dança meceor«, um dos temas mais comuns na arte da époCtl, nio erasomente ume referêncie li inevitebilídede de morte, mes tsmbem a ume

Enquanto o moribundo jaz em seu leito e a morte bate na porta, os demô-nios tentam arrebatar sua alma e estorvar os ministros da igreja, e osanjos velam também pela alma do moribundo.

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A morte é o mestre implsClÍV81 qUB mostre eo jOV8m os dois caminhos queele pode trither ne vids.

presente nesta vida na epidemia e na fome, seria manifestadade maneira especial no ju ízo final, quando Jesus Cristo, sentadosobre o arco-íris, julgaria toda a humanidade. E neste ju ízonão haveria nenhuma palavra de perdão, a não ser para os quenesta vida o mereceram por causa das suas boas obras e de seuuso dos meios da graça.

Por último convém assinalar que a peste contribuiu paraaumentar a inimizade entre cristãos e judeus. Entre os cristãospensava-se que as bruxas eram em parte culpadas pela peste,enfermando seus inimigos com suas maldades. Com este argu-mento perseguiram mulheres inocentes, a quem davam estetftulo. Perseguiram também os gatos, que diziam ser amigosdas bruxas. Por causa disto aumentou a população dos ratos.Já que tudo isto não acontecia entre os judeus, os casos de peste

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Começou-se a pensar em Jesus Cristo mais como juiz que corno redentor.

eram menos freqüentes entre eles. A conseqüência foi que elesforam acusados de envenenar os poços onde os cristãos bebiam,e em represália a isto houve terríveis matanças.

A aliança entre a burguesia e a coroa

Além da peste bubónica outros fatores contribu (rarnpara as condições sociais e pol íticas dos séculos que estamosestudando, o XIV e o XV. O principal destes provavelmentefoi a aliança entre a alta burguesia e a coroa. Nos dois séculosanteriores a economia manufatureira e mercantil apresentaraum progresso considerável. Para mantê-lo difundiram-se ossistemas de crédito, e como conseqüência as casas bancáriasse enriqueceram. Como a indústria manufatureira, o comércioe os bancos estavam em mãos da alta burguesia, esta novaclasse, que surgira com o desenvolvimento das cidades, era amais beneficiada com estas atividades. Seus interesses se opu-nham aos dos grandes senhores do sistema feudal. As pequenas

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guerras entre senhores vizinhos, os impostos que cada nobreimpunha sobre os produtos que passavam por seus territó-rios, e o sonho dos grandes barões de criar unidades auto-suficientes, atuavam em preju (zo do comércio. Do ponto devista da alta burguesia um governo centralizado e forte, queprotegesse o comércio, erradicasse o banditismo, regulamen-tasse a moeda e evitasse as constantes guerras entre pequenosvizinhos era altamente desejável. Por isto esta classe deu apoiodecidido aos esforços por parte dos reis de limitar o poder danobreza.

Os reis também recebiam benefícios com esta aliança.O único meio eficaz de fazer valer a sua autoridade era terum exército permanente, sob as ordens da coroa, que pudesseagir de maneira rápida e eficiente contra qualquer rebelde.Isto custava dinheiro. A maior parte das terras estava nasmãos dos nobres, que usavam este recurso para levantar exér-citos próprios, de acordo com a necessidade do momento.Mas a coroa não podia exigir destes nobres que mantivessemum exército permanente. Pelo menos não podia fazê-lo enquan-to a autoridade da coroa sobre a nobreza não estivesse firme-mente estabelecida. Nestas circunstâncias, os reis tinham derecorrer à burguesia, cujo apoio econômico lhes permitiamanter os exércitos de que precisassem.

o nacionalismo

Este processo deu origem aos estados modernos. A Françae a Inglaterra, junto com os países escandinavos, foram osprimeiros que se uniram sob monarquias relativamente fortes.A Espanha só chegou a este ponto no fim do período queestamos estudando, pois a unidade nacional só foi alcançadacom o casamento de Isabel e Fernando. Portugal era umamonarquia no início deste período, mas através de todo elea coroa foi aumentando seu poder em relação aos nobres.A Alemanha e a Itália chegaram à unidade nacional somentemuito tempo depois.

Isto, por sua vez, deu origem a um crescente sentimentonacionalista. Nos séculos anteriores a maior parte do povoeuropeu se sentia cidadã de algum pequeno condado ou burgo.

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IVias agora começava-se a falar de uma nação francesa, porexemplo, e os habitantes desta nação começaram a evidenciarque estavam pcssu ídos de certo espírito nacional. Isto sucedeutambém em países que não se encontravam unidos sob umamonarquia florescente. Em fins do século XIII várias munici-palicades alpinas se rebelaram e fundaram a ConfederaçãoHelvética, que foi crescendo através de todo o século XIV,derrotandc repetidamente os exércitos que os imperadoresalemães enviavam para sufocar a rebelião. Por fim, em 1499,o imperador Maximiliano I se viu obrigado a reconhecer aindependência da Suíça. Na Alemanha, mesmo não havendoum movimento de insurreição semelhante ao da Suíça, houvetodo tipo de indícios de que os habitantes dos diversos eleito-rados, ducados, cidades livres, etc., começavam a se sentiralemães, e a invejar a ingerência de outros países nos assuntosnacionais cuja unidade lhes dava maior poder.

Estes sentimentos nacional istas, cada vez mais comunsna Europa nos séculos XIV e XV, militavam contra a relativaunidade conseguida em épocas anteriores. Se o papado aparen-temente se inclinava para os interesses franceses, como o fezdurante sua residência em Avignon, os ingleses não vacilavamem se opor a ele. Se, no entanto, ele se negava a ser um instru-mento dócil nas mãos da coroa francesa, esta apoiava o outropapa, como aconteceu durante o Grande Cisma. Mesmo senos séculos anteriores houve situações semelhantes, neste perío-do do fim da Idade lvlédia estas situações passaram a ser a regra,e não mais a excessão. O mesmo aconteceu com respeito aoImpério, principalmente nas regiões fronteiriças da Su íçae da Boêmia. À rebelião su íça fizemos referência mais acima.O sentimento nacionalista boêrnio nos interessará quandofalarmos de João Huss e dos seus.

A guerra dos cem anos

O surgimento das grandes nações modernas, e o uso da arti-lharia no campo de batalha, deram lugar a guerras muito maissangrentas e longas que as dos séculos anteriores. Destas a demais destaque foi a guerra dos cem anos, que envolveu de talmaneira não só a França e a Inglaterra, mas também o restante

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Filipe III (+ 1285)

Filipe IV (+ 1314)

ICarlos de Valois

Luís X(+ 1316)

Filipe V(+ 1323)

Carlos IV(+ 1328)

Isabel

I Filipe VI

Eduardo III daInglaterra

A sucsssíio ao trono da França

ela Europa, que alguns historiadores têm dito que ela deveriaser chamada de "primeira guerra européia".

p\ causa inicial das hostilidades foi a questão da sucessãoà coroa francesa. C rei da França, Filipe IV, o Belo, tinhadeixado três filhos homens; mas um após outro reinaram emorreram, sem deixar descendência masculina. Quando o últi-mo, Carlos IV, morreu, surgiu a questão da sucessão. Na França,Filipe de Valois, sobrinho de Filipe IV, foi coroado rei. ~.~asnaInglaterra o parlamento inglês declarou que seu rei, Eduardo III,era o legítimo herdeiro da coroa, e enviou uma delegaçãoà França para reclamá-Ia. A alegação inglesa se baseava no fatode Eduardo ser filho da irmã dos três últimos reis, e neto dopai deles, Filipe IV. O novo rei da França, Filipe VI de Valeis.respondeu dizendo que, assim como as mulheres não podiamherdar o trono, dever-sé-ia preferir a descendência por linharnasculina à por linha feminina.

Como rei da França Filipe VI era senhor, entre outrosterritórios, do ducado de Guyenne. Como Eduardo III eraduque de Guyenne, cabia-lhe prestar homenagem ao novo reida França. Depois de vacilar por algum tempo Eduardo consen-tiu com esta cerimônia, se bem que se retratou depois dela,dizendo que tinha participado ainda menor de idade, e seguindoos conselhos de conselheiros incapazes.

Tudo isto contribuiu para aumentar a inimizade entre osdois monarcas, até que os assuntos da Escócia os levaram àguerra. Durante várias gerações a França tinha sido o principal

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A França durante a guerra dos cem anos.

aliado da Escócia contra as intensões de conquista que osingleses abrigavam em relação a este território ao norte do seupaís. Quando, por causa da política imperialista da Inglaterra,o rei Davi da Escócia se viu obrigado a abandonar o país, aFrança o asilou, e apoiou seus partidários que continuavamlutando contra as tropas de Eduardo III. Este protestou, e sepreparou para atacar a França.

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Mas Eduardo, envolvido em uma guerra com a Escócia,não podia querer derrotar Filipe sozinho, e por isso passoua tecer uma extensa rede de alianças contra seu inimigo. Seuprincipal aliado era o imperador Lu ís da Baviera, que lhe deuo título de "vicário imperial". Além disto ele contava com oapoio de diversos duques e outros nobres de menor categoria,e com o das cidades de Flandres, que se rebelaram contraseus senhores. O Iíder da rebelião, o cervejeiro Jacobo VonArtaveldt, temia com razão que os nobres que os rebeldestinham expulso buscassem ajuda na coroa francesa, e por istoele buscou a de Eduardo.

Filipe, por sua vez, organizou outra rede de alianças,da qual faziam parte os reis de Navarra e Boêmia, bem como osduques de Bretanha, Áustria e Lorena, e vários nobres alemãesque se opunham à pol [tica do imperador.

As primeiras campanhas da guerra forarn desvantajosaspara os ingleses. Em 1338 Eduardo se apresentou diante dasfronteiras da França, e começou a devastar a região. Mas Filipesabia que seu rival estava esgotando o tesouro da Inglaterra,e que não podia manter seu exército em pé de guerra durantemuito tempo. Por isto se negou a enfrentá-lo numa batalha,e mais tarde Eduardo teve de voltar para a Inglaterra, empo-brecido e decepcionado. Em 1340 os franceses, junto com osnormandos e os genoveses, reuniram uma frota enorme paraapertar os ingleses, mas estes, com a ajuda dos flamengos,os derrotaram decisivamente. Quase toda a esquadra francesafoi destru ída, e milhares de soldados morreram afogados depoisde se lançarem ao mar, fugindo do inimigo. Conta-se que ninguémse atrevia a dar a Filipe a notícia da terrível derrota, até queseu bobo-da-corte lhe disse que parecia que os franceses erammais valentes que os ingleses, porque se atreviam a saltar nomar. Mas também desta vez Eduardo não pôde tirar vantagemdos seus triunfos iniciais, pois seu grande exército se desfezquando os fundos começaram a escassear. Exasperado, o reida Inglaterra convidou o da França para um encontro nocampo da honra. Mas Filipe sabia que o tempo agia a seufavor, e por fim Eduardo se viu obrigado a aceitar um armistícioe voltar para a Inglaterra, onde tinha de enfrentar as enormesdívidas que tinha contraído para financiar sua campanha.

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A próxima expedição inglesa, em 1346, teve resultadosmelhores. Eduardo surpreendeu os franceses desembarcandoinesperadamente na l\Jormandia, onde passou a devastar aregião. Depois de uma longa e complicada série de marchase contramarchas os dois exércitos se chocaram finalmentena batalha de Crécy, onde os arqueiros ingleses derrotaramdecisivamente o exército francês. Eduardo aproveitou entãoa vitória para sitiar Calais, que se rendeu no ano seguinte edesde então foi uma das mais importantes possessões inglesasno continente.

Pouco depois da capitulação de Calais a peste bubônicavarreu toda a Europa, forçando os dois contendentes a abando-nar as hostilidades. Quando estas foram reiniciadas vários anosmais tarde, Filipe VI tinha morrido, e foi seu filho e sucessorJoão II quem enfrentou os invasores ingleses, que marchavamsob o comando de Eduardo, príncipe de Gales e filho de Eduar-do III. Por causa da cor da sua armadura este grande prínciperecebeu o nome de "Prfncipe Negro", pelo qual a posteridadeo conhece. Sua estratégia consistiu em desolar os camposda França, destruindo assim a base econômica do seu oponente.João respondeu reunindo um grande exército que surpreendeuos ingleses perto de Poitiers. Mas uma vez mais a disciplinamelhor do exército inglês, e a destreza dos seus arqueiros, seimpuseram no campo de batalha. Contra todas as previsões oPríncipe Negro e suas tropas derrotaram em Poitiers um exercítomuitíssimo mais poderoso, e coroaram seu triunfo capturandoo rei João. Este foi levado prisioneiro para a Inglaterra, ondepermaneceu até que o tratado de Bretigny, em 1360, lhe devol-veu a liberdade. Neste tratado Eduarrlo III renunciava a todasas pretensões à coroa da França, enquanto João se comprometiaa lhe pagar uma indenização de três milhões de escudos, e areconhecer sua soberania sobre Calais e sobre boa parte daAquitânia.

Mas a guerra, que se tornara endêmica, agora se passoupara a Espanha. Em diversas regiões da França havia bandosde mercenários, as chamadas "companhias brancas", queficaram desempregadas com o acordo de paz, e não tinhamoutro meio de subsistência que o roubo e a violência. Paralivrar-se deles Carlos V, sucessor de João II, decidiu enviá-los

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a Castela, onde Pedro, o Cruel, tinha matado ou mandadomatar diversos nobres, e enviado ao exílio outros tantos. Entreestes últimos estava seu irmão bastardo Henrique de Trastâma-ra, cuja mãe tinha sido assassinada por ordem de Pedro. Osdesmandos do cruel rei de Castela enraiveceram os francesesquando receberam a notícia de que sua esposa Blanca de Bour-bon, princesa francesa que Pedro tinha humilhado repetidamen-te, tinha morrido em circunstâncias misteriosas. Logo surgiu oboato de que ela tinha sido envenenada, e não faltaram cavalei-ros franceses que se dispusessem a vingar a morte da sua prince-sa. Sob o comando de Henrique de Trastâmara, e com dinheiroproveniente da coroa francesa e do papa, um grande exércitode cavaleiros franceses e de "companhias brancas" cruzouos Pirineus, atravessou Aragão e penetrou em Castela. Quandoseus nobres se negaram a defendê-lo, Pedro, o Cruel, fugiu paraPortugal, e depois para Bayonne.

O território onde Pedro, o Cruel, se tinha refugiado, estavasob o governo do Príncipe Negro, que lhe ofereceu seu apoiocontra o "usurpador" Henrique. Ao que parece, uma dasprincipais razões que levaram o chefe inglês a seguir esta pol (ticafoi o desejo de se opor às intenções do rei da França, semromper abertamente com o que o tratado de Bretigny esti-pulara. À frente do seu exército o Príncipe Negro cruzou osPirineus em Roncesvales, conseguiu que o rei de Navarra alimen-tasse suas tropas em Pamplona, e penetrou em Castela. Aliele derrotou decisivamente Henrique de Trastâmara, e recolocouPedro no trono. Este tinha o propósito de matar os dois milprisioneiros feitos no campo de batalha, mas seu aliado inglêso impediu, persuadindo-o a perdoar-lhes a vida e aceitá-los comosúditos. Pouco depois, quando o restaurado rei de Castelacomeçou a fechar os ouvidos para os pedidos do seu aliado,que precisava de provisões para o seu exército, este voltou paraa Aquitânia, e entregou Pedro à sua própria sorte. Enquantoisto Henrique de Trastâmara voltou a apelar à França, e coma ajuda que dela recebeu se apresentou novamente em Castela,onde derrotou seu rival. Pouco depois, em circunstâncias quea história não conseguiu esclarecer, os dois irmãos rivais seencontraram frente a frente perto de Montiel, onde Pedropereceu no combate mortal. A partir de então Henrique reinou

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em Castela, e a França pôde contar ccm um aliado além dosPirineus. Esta aliança provou sua firmeza quando um irmãodo Pr íncipe Negro, o duque de Lancaster, reclamou para si acoroa de Castela por ter se casado com a herdeira de Pedro.

A aliança entre Castela e França mudou o curso que a guer-ra vinha tomando. Com a ajuda da esquadra castelhana os fran-ceses tomaram a ofensiva. Em 1372 os castelhanos destru frarntoda a frota inglesa na batalha de La Rochelle. Dois anos maistarde os ingleses não tinham mais nenhuma possessão no con-tinente além de Calais, Bordeaux, Bayonne e outros lugaresde menos importância. Por fim, em 1375, Eduardo se viuobrigado a aceitar uma trégua, que durou até 1415.

Eduardo morreu em 1377. Como pouco antes falecera oPríncipe Negro, o novo rei foi o filho deste, Ricardo II. Durantetodo o seu reinado e o do seu sucessor, Henrique IV, a Inglater-ra esteve em guerra com a Escócia, e enfrentando rebel iões emovimentos populares que a impediram de continuar com apol (tica belicosa em relação à F rança. Um destes movimentosfoi o de Wycliff e dos "Iolardos".

Foi o filho de Henrique IV, o quinto rei com o mesmonome, que, depois de destruir a rebelião dos lolardos, se dispôsa empreender novamente as hostilidades contra a França.Assim que se sentiu seguro em seu trono ele reclamou a coroafrancesa. Pouco depois ele desembarcou na foz do Sena, tomoua fortaleza de Harfleur, e adentrou a França. Esta invasãofoi facilitada pelas lutas internas do país, por causa da loucurade Carlos VI. Dois partidos, o dos "borgonhões" e o dos "armag-nacs", disputavam a regência. Por isto as tropas francesas evi-taram o combate por algum tempo, mas por fim, confiadasem sua superioridade numérica, tentaram deter o invasor,sendo vencidas na batalha de Agincourt (1415). Mais uma vez,no entanto, os ingleses se viram impossibilitados de continuara campanha, pois as reservas financeiras estavam no fim e oexército tinha sofrido pesadas baixas durante a sua estadiana França. Henrique, então, se contentou em declarar que avitória de Agincourt mostrava que Deus favorecia a sua causa,e que aos olhos de Deus a coroa francesa lhe pertencia. Depoisdesta declaração ele regressou à Inglaterra, onde foi recebidoem triunfo.

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Ali o VISitou O imperador Sigismundo, que anteriormenteestivera na corte francesa, tentando mediar entre as duas partes.Henrique se mostrou disposto a renunciar ao trono da França,desde que o tratado de Bretigny fosse cumprido. Como estetratado concedia ao rei da Inglaterra boa parte do territóriofrancês, as esperanças de chegar a uma reconciliação por estecaminho eram escassas, e os ingleses' continuaram se prepa-rando para a guerra. Quando os franceses tentaram reconquistarHarfleur, Henrique estava preparado, e um contingente enviadoda Inglaterra pôs fim ao sftio desta fortaleza.

Em Paris, estava no poder o partido dos armagnacs. Poristo o I(der dos borgonhões, Carlos, o duque de Borgonha,se negou a enviar tropas contra os ingleses, e corriam rumoresde que ele tinha feito um pacto secreto com Henrique. Sejaisto verdade ou não, quando o rei da Inglaterra desembarcounovamente em território francês, na região da Normandia,os franceses não pucieram lhe oferecer grande resistência, poisos exércitos borgonhões se encontravam diante de Paris. En-quanto os borgonhões tomavam a capital e matavam os prin-cipais lfderes dos armagnacs, os ingleses se apossaram de boaparte da Normandia.

Fugindo dos borgonhões o delfim Carlos, herdeiro dacoroa francesa, escapou de Paris e estabeleceu seu governo emPoitiers, declarando-se regente de seu pai débil mental. Havia,portanto, um rei louco, e dois partidos que disputavam aregência; os borgonhões em Paris e os armagnacs em Pcitiers.Diante da ameaça inglesa estes dois partidos começaram anegociar a paz entre si. Mas quando o duque da Borgonhafoi assassinado durante uma entrevista com o delfim, e empresença deste, os borgonhões decidiram que não lhes restavaoutra alternativa que se aliar a Henrique, e com este propósitolhe prometeram a mão da princesa Catarina, filha do rei demen-te, a regência do reino, e a sucessão ao trono depois da mortedo rei. Em troca disto Henrique respeitaria os antigos privi-légios da nobreza francesa diante da coroa, devolveria ao reinoos territórios que tinha tomado na Normandia, e conquistariaas terras que estavam sob o dorn ínio do delfim. A esta empresao rei inglês estava entregue quando adoeceu e morreu, deixandocomo herdeiro do trono inglês o pequeno filho que tivera de

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Catarina pouco tempo antes. O novo rei da Inglaterra, HenriqueVI (1422-1471), tinha somente alguns meses de idade quandomorreu também Carlos VI, que assim o deixara de posse dascoroas da Inglaterra e da França.

Mas o delfim ainda tinha seguidores e territórios no centroe no sudeste do país, e se fez proclamar herdeiro do seu falecidopai, com o trtulo de Carlos VII. Além disto, quando o rei loucomorreu, muitos franceses começaram a se inclinar para o delfim,que no fim das contas era o herdeiro legítimo. p, guerra, pois,continuou, já não entre franceses e ingleses, mas entre ospartidos na França, um apoiado pelos ingleses, e o outro pelosescoceses. Durante cinco anos a guerra seguiu sem maioresacontecimentos. Mas perto do fim deste período os inglesese seus aliados ganharam importantes batalhas, cruzaram o rioLoire e sitiaram Orleans.

A situação do delfim era cada dia mais desesperadora,quando vieram notícias de uma donzela, natural da pequenaaldeia de Domremi, que dizia ter tido visões em que as santasCatarina e Margarida, além do arcanjo Miguel, lhe tinham or-denado que dirigisse as tropas do delfim para romper o cercode Orleans. e que em seguida o conduzisse para ser coroadoem Reims, tradicional lugar de coroação dos reis da França,e para onde Carlos ainda não pudera ir porque esta cidadeestava em território inimigo.

Conta-se que Carlos VII mandou buscar a jovem Joanad' Arc (este era o nome da donzela) e que, pouco antes deela lhe ser apresentada, se disfarçou e se misturou com seusnobres, colocando outro em seu lugar. Não está claro se elefez isto para zombar dela ou para prová-Ia. Mas a jovem, aoentrar no salão onde estava o rei, se dirigiu diretamente paraele, sem prestar a mínima atenção ao que se fazia passar porrei. Surpreendido, Carlos foi com ela para um lugar separado,e ao voltar para a reunião declarou comovido que Joana sabiasegredos de sua vida que mortal algum poderia conhecer.

Pouco depois lia donzela", como seus contemporâneos achamavam, estava entre as tropas vestida de armadura, e se mos-trou hábil no manejo da sua cavalgadura e da lança. À medidaque sua fama se espalhava, o entusiasmo entre os soldados dodelfim aumentava, bem como o temor entre seus inimigos.

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Carlos reunira em 810is provisões que esperava poderlevar para os que estavam sitiados em Orleans, e Joana se

A humilde aldeã de Domremi chegou a ser a hera/n« nacional da FranÇ/l.

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ofereceu para comandar a expedição. Graças a uma sene decircunstâncias ao que parece inexplicáveis tanto a donzela comoas provisões conseguiram atravessar o cerco, sem encontraros sitiantes. Na cidade ela foi recebida com aclamações, eimediatamente começou a dirigir ataques contra as posiçõesdos ingleses. Cada dia saía uma coluna de Orleans, comandadapor Joana d' Arc, e cada dia caía um bastião inimigo. Maistarde os ingleses decidiram levantar 'J sítio, e a heroína, desdeentão conhecida cemo "a donzela de Orleans", proibiu quefossem perseguidos, lembrando que era domingo, dia de oraçõese não de batalhas.

Depois disto as vitórias seguiram uma à outra, e Carlospôde invadir o território inimigo e marchar para Reims, paraser coroado: Em sua passagem as cidades que durante anosestiveram dominadas por ingleses e borgonhões o recebiam comentusiasmo, ou pelo menos lhe enviavam provisões, quandonão se atreviam a se declarar publicamente a seu favor. A cidadede Reims, ao receber notícias de que o rei e a donzela estavama caminho, expulsou a guarnição dos borgenhões, e recebeuCarlos com festejos. Na catedral o delfim foi coroado, enquan-to Joana, de pé diante do altar, via seus sonhos se tornaremrealidade.

Depois de cumprir sua missão dupla de romper o cercode Orleans e fazer com que o rei fosse coroado em Reims,a jovem visionária estava disposta a regressar à sua vida anterior,como aldeã de Domremi, repetidamente solicitando de Carlospermissão para isto. Mas o monarca não atendeu aos seuspedidos, e Joana continuou lutando até que foi capturada emuma escaramuça, e vendida aos ingleses.

Seus antigos aliados, ocupados em aproveitar as vantagensobtidas nos últimos meses, não se preocuparam mais com ela.Pelo que sabemos, o rei nem sequer se ofereceu para pagar seuresgate, como era costume naquela época fazer com os prisio-neiros de vulto. t: muito provável que seus conselheiros lhe te-nham dito que não permanecesse à sombra de uma mulher ple-béia. Os ingleses, por sua vez, a venderam por dez mil francos aobispo de Beauvais, que queria julgá-Ia como herege e feiticeira.

O juízo teve lugar em Rouen, e Joana foi acusada comoherege, entre outras coisas, por ter dito que recebera ordens

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o delfim foi coroado na catedral de Reims, enquanto Joana d'Arc, em pédiante do altar, via seus sonhos se tornerem realidade.

diretamente do céu sem intervenção da igreja, por dizer queseus santos falavam com ela em francês, e por se vestir de ho-mem. Quando, depois de vários meses na prisão, seus ju ízeslhe declararam que ela seria entregue ao "braço secular" para

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ser executada, ela concordou em assinar um documento abju-rando, "sempre que agrade a Nosso Senhor". Em troca distoem vez de ser queimada viva ela foi condenada à prisão perpé-tua. r/ias poucos dias depois ela declarou que as santas Catarinae Margarida novamente se tinham apresentado a ela, repreen-dendo-a por causa da sua traição. Então ela foi levada à praçado I\:]ercado Velho, em Rouen, e queimada. Suas últimas ins-truções, dadas ao sacerdote que a acompanhou até a pira,foram no sentido de que ele levantasse o crucifixo bem alto,e repetisse com voz bem alta as palavras da salvação, para queela as pudesse ouvir acima do rugir das chamas. Era o dia30 de maio de 1431. Quase vinte anos mais tarde, ao entrarvitorioso em Rouen, Carlos VII ordenou uma nova investigaçãoque, como era de se esperar, a exonerou. Em 1920 o papaBenedito XV a declarou santa. ~,1as já séculos antes ela setransformara na heroína nacional da França.

A partir do episódio de Joana d'Arc as vitórias de CarlosVII se seguiram quase sem interrupção. Em 1435 ele conseguiuseparar o duque de Borgonha (filho do que tinha sido assassi-nado) do partido inglês, assinando com ele a paz de Arras.Dois anos mais tarde suas tropas ocuparam Paris. Quando,em 1449, os reis da Inglaterra e da França acordaram umatrégua, os ingleses tinham sido expulsos de toda a França,a não ser de Calais e de alguns territórios na Guyenne e naNormandia. Carlos VII aproveitou os cinco anos de tréguapara consolidar seu poder e organizar sua administração e seuexército. Isto teve resultados tão bons que quando as hosti-lidades foram reiniciadas os ingleses foram expulsos do terri-tório francês em somente quatro anos. I'Jo fim deste períodorestava-lhes na França somente Calais, que continuou sob seudomínio até 1558. Por isto, a partir de 1453 a guerra dos cemanos se limitou a pequenas escaramuças, até que por fim foifirmada a paz de Picquigny, em 1475.

Esta longa guerra teve conseqüências importantes paraa vida da igreja, como veremos em diversos capítulos destevolume. O fato de que durante boa parte dela o papado esteveem Avignon, onde existia à sombra do trono francês, contribuiupara aumentar a inimizade entre os ingleses e o papado. Maistarde, durante o grande cisma em que a Europa se dividiu em

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sua obediência a dois papas, as alianças estabelecidas durantea guerra dos cem anos foram um dos fatores que decidiampor qual papa cada país se decidia. Além disto a própria guerradificultou a tarefa de sanar o cisma. Por último, tanto naFrança como na Inglaterra, Escócia e outros estados bel igeran-tes, a guerra fortaleceu o crescente sentimento nacionalista,e assim contribuiu para debilitar qualquer pretensão que opapado pudesse ter em termos de uma autoridade universal.

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IIO papado

sob a sombrada Franca•

É absolutamente necessário paraa salvação que todas as criaturas

humanas estejam sob o pontíficeromano.

Bonifácio VIII

Durante a "era dos altos ideais", como já vimos, houveconflitos constantes entre papas e imperadores. Os dois recla-mavam para si uma autoridade universal e, mesmo existindouma distinção teórica entre o poder temporal e o espiritual,o choque era inevitável.

No perfodo que estamos narrando conflitos semelhantescontinuaram existindo. A principal diferença era que estesnão envolviam tanto os imperadores, mas alguns dos monarcascujo crescente poder eclipsava o do Império. Particularmenteas relações entre o papado e a monarquia francesa foram umdos principais fatores na história da igreja nos séculos XIVe XV.

Bonifácio VIII e Filipe, o Belo

No fim do volume anterior dissemos que o papa CelestinoV, um homem de profundas convicções franciscanas, renunciouao seu posto, sendo eleito em seu lugar Bonifácio VIII. Bene-detto Gaetani - era este o nome original do novo papa - era

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um homem de caráter oposto ao de Celestino. Enquanto estemostrara ser um fracasso por causa da sua extrema simplicidade,que não lhe permitia reconhecer as motivações obscuras que ocoração humano abriga, Gaetani tinha vasta experiência diplo-mática como legado pontifício, e tinha tratado com reis epoderosos em diversos países da Europa. Nesta atividade eletinha desenvolvido um conhecimento profundo das intrigas queeram tramadas nas cortes européias. E, enquanto a humildadeextrema levou Celestino a renunciar à tiara, a origem aristo-crática de Bonifácio, e as idéias ambiciosas que tinha sobreas prerrogativas papais, fizeram dele um dos papas mais altivosque a história conheceu.

A sua eleição já é um exemplo da sua maneira de proceder.O conclave cardinal ício tinha se reunido em Nápolest à sombrado rei Carlos, e não conseguia chegar a um acordo sobre quemseria o novo papa. As poderosas fam (Iias dos Colonna e dosOrsini disputavam o papado; nenhuma estava disposta e elegerum membro do grupo oposto. Durante os dez dias que durouo conclave Bonifácio foi trabalhando para ser eleito, e conta-seque ele o conseguiu persuadindo os dois grupos que o deixassemapresentar um candidato imparcial. Depois de conseguir deambos a promessa de que aceitariam o seu candidato, Bonifácioapresentou a si mesmo. Restava ainda a questão se Carlosaceitaria este novo papa, pois o rei tinha dado mostras dequerer um instrumento dócil ocupando a Santa Sé, e todossabiam que Benedetto Gaetani tinha um temperamento alta-neiro e independente. Bonifácio, todavia, como diplomatahábil, convenceu Carlos que não lhe convinha ter em Romaum títere, mas um papa poderoso que fosse seu aliado. Alémdisto parece que Bonifácio ofereceu apoio a Carlos na sua lutapara se apossar da Sidlia, que estava nas mãos da casa deAragão.

A eleição de Bonifácio não agradou a todos. O idealfranciscano, com seus profundos elementos bíblicos, exerciauma forte atração sobre os corações da época. Entre as classespobres a eleição de Celestino V parecera ser a promessa deque por fim a igreja deixaria de servir aos interesses dos pode-rosos e ricos. Entre os monges mais entusiastas chegou-sea pensar que com aquela eleição começara a " Era do Espírito"

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profetizada por Joaquim de Fiore. Mesmo se, ao que tudoindica, a renúncia de Celestino foi totalmente voluntária,provocada por sua profunda humildade e simplicidade fran-ciscanas, logo surgiram rumores de que Bonifácio o obrigara arenunciar, para poder tomar posse do trono papal. Além disto,mesmo que sua renúncia tivesse sido voluntária, alguns dos seuspartidários argumentavam que abdicar não fazia parte das prer-rogativas papais - a atitude não tivera precedentes em todaa história da igreja - e por isto a renúncia de Celestino nãoera válida, e o monge franciscano, mesmo contra a sua vontade,continuava sendo o papa legítimo. Este movimento "celesti-nista" logo se misturou com o dos franciscanos extremistas,ou "fraticelli", e convenceu a muitos de que Bonifácio eraum usurpador, um homem indigno de ocupar o trono de SãoPedro. Quando, pouco tempo depois, Celestino morreu, aoposição perdeu o argumento de que havia outro papa legí-timo, mas não deixou de fazer circular notícias, provavelmentefalsas ou pelo menos exageradas, no sentido de que a mortede Celestino fora causada pelos maus tratos que sofrera porordem de Bonifácio.

Apesar desta oposição, os primeiros anos do pontificado deBonifácio contribu fram para reforçar seu conceito de autorida-de do papa. O novo pontffice cria firmemente que o papa era su-perior a todos os soberanos da terra, e entre assuastarefas esta-va a de estabelecer a paz entre estessoberanos. Ele mesmo dissemais tarde ao rei da França que se o imperador Teodósio se humilhou diante de Ambrósio, o arcebispo de Milão, quanto maisum rei qualquer, que é menos que um imperador, deve se humi-lhar diante do papa, que é muito mais que um arcebispo.

Por estas razões Bonifácio achava que cabia a ele pacificara Itália, constantemente sacudida por guerras internas. Suapol Itica ital iana fracassou somente no seu intento de cumpri ra promessa de colocar o rei de Nápoles sobre o trono da Sicília.No demais, os principais inimigos do novo papa na Itália foramafastados. Os Colonna, inimigos irreconciliáveis de Bonifáciodesde a sua eleição, perderam quase todas as suas possessões,ese viram obrigados a partir para o exílio. Bonifácio conseguiuisto convocando uma cruzada que, com os recursos dos Orsini,tomou todos os castelos e lugares fortificados dos Colonna.

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Apesar dos ressentimentos que isto provocou em muitos, quasetoda a Itália parecia acatar as instruções do papa.

Também no Império, Bonifácio fez valer sua autoridade,quando o inepto imperador Adolfo de Nassau foi deposto porum grupo de nobres, que elegeram em seu lugar Alberto daÁustria. Pouco depois, perto de Worms, os dois rivais se encon-traram no campo de batalha, e Adolfo de Nassau foi morto.Bonifácio considerou todos estes acontecimentos um crime du-plo de rebelião e regicfdio, e se negou a ratificar a eleiçãode .A.lberto, ou a coroá-lo imperador. Durante os primeirosanos do pontificado de Bonifácio, Alberto pôde fazer poucocontra ele, e se viu obrigado a procurar a reconciliação comum inimigo aparentemente poderosíssimo. !'v:as Bonifácio semostrava inflexível no que dizia ser a causa da justiça.

A principal preocupação pol ítica do novo papa foi areconcil iação entre França e Inglaterra. Seus esforços nestesentido se viram a princípio coroados com seu maior triunfo;mas mais tarde foram a causa da sua queda.

Quando Bonifácio foi eleito em 1294 (bem antes da guerrados cem anos que narramos no cap ítulo anterior), França eInglaterra estavam a ponto de mutuamente se declararem guer-ra. Através de um subterfúgio o rei da França, Filipe IV, o Belo,tinha se apoderado da Guyenne, propriedade hereditária deEduardo I da Inglaterra. Em resposta este último, que em suaspossessões francesas era vassalo de Filipe, se declarou em rebel-dia e apoiou economicamente Adolfo de Nassau e o conde deFlandres, inimigos de Filipe. O rei da França por, seu lado, pres-tou ajuda à resistência que os escoceses opunham a Eduardo.

Nestas circunstâncias Bonifácio enviou seus legados àcorte da Inglaterra, objetivando obrigar Eduardo a abrir nego-ciações com Filipe. Quando Eduardo opôs objeções, o papasimplesmente ordenou aos dois soberanos que fizessem umatrégua, primeiro de um ano, e depois de mais três. A Adolfode Nassau, que ainda reinava e era aliado de Eduardo, Bonifácioenviou ordens semelhantes. I'v':as tanto Eduardo como Filipecontinuaram seus preparativos para a guerra, sem dar muitaatenção ao mandado papal.

Vendo o pouco caso que os monarcas faziam dele, Boni-fácio decidiu levantar obstáculos aos seus intentos. Tanto Edu-

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ardo como Filipe necessitavam de muito dinheiro para cobrirseus gastos militares, e para comprar o apoio dos aliados.Nos dois reinos existia a regra de que as propriedades eclesiás-ticas estavam isentas de impostos. Mas tanto na Inglaterracomo na França a coroa tinha descoberto meios de burlaresta norma, geralmente exigindo contribuições "voluntárias"do clero. Estas contribuições eram ainda mais necessáriasdiante da ameaça da guerra. E ao mesmo tempo provocavam aira do clero, que se via despojado de um dos seus privilégiosmais apreciados. Portanto, na tentativa de proteger as propri-edades da igreja, ganhar a simpatia do clero, e opor obstáculosà política bélica de Eduardo e Filipe, Bonifácio promulgou em1296 a bula Clericis laicos, que transcrevemos a seguir:

Os tempos antigos mostram que os leigos foram sempreinimigos do clero; e a experiência dos tempos presenteso confirma, pois os leigos, insatisfeitos com suas limita-ções, querem conseguir o que lhes está proibido, e aberta-mente procuram obter o que ilicitamente cobiçam.Prudentemente eles não admitem que qualquer domíniosobre o clero lhes é negado, bem como sobre qualquerpessoa eclesiástica e suas propriedades, impondo pesadascargas aos prelados, às igrejas, e às pessoas eclesiásticas ...E, dói-nos dizê-lo, certos prelados e pessoas eclesiásti-cas, ... temendo mais a soberania temporal que a ecle-siástica, ... admitem estes abusos Por isto, para pôrum fim nestas práticas in íquas declaramos que qual-quer prelado ou pessoa ecfesiástica ... que pague ouprometa pagar qualquer quantia ... a qualquer imperador,rei, príncipe '" ou alguma outra pessoa, não importasua posiçao, que o exija, requeira ou receba estepagamento está automaticamente, por sua própriaação, sob a sentença de excomunhão.

A resposta dos reis não se fez por esperar. Eduardo decla-rou que, já que o clero estava isento de toda contribuiçãoao estado, estava fora do alcance protetor da lei, e sem direitoLI acesso aos tribunais de justiça. Em seguida ordenou que fos-sem tirados dos clérigos seus melhores cavalos, e que suasqueixas não fossem aceitas pelos tribunais. Naturalmente

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isto nada mais era que um indício da situação diffcil em queo clero se encontrava, e estava claro que Eduardo tomariamedidas extremas se não obtivesse os fundos de que necessitava.Sem demora todo o clero, com a exceção notável do arcebispode Canterbury, decidiu transferir para o rei a quantia exigida,recorrendo ao subterfúgio de não entregá-Ia diretamente, masde colocá-Ia em um fundo que ficava à disposição da coroa"para casos de emergência", e estipulando que o rei tinhaautoridade para determinar quando uma situação qualquerse caracterizava como emergência.

A resposta de Filipe foi mais direta e extrema. Um editoreal proibiu qualquer transferência de dinheiro para o exterior,bem como de metais preciosos, cavalos, armas ou qualqueroutro objeto de valor, sem a autorização expressa do rei. Outroproibiu que bancos e instituições de crédito exportassem qual-quer riqueza.

A intenção clara destes dois editos era privar o papa detoda receita procedente da França. Mas o rei tomou o cuida-do de ditar medidas aparentemente gerais, que colocavamem suas mãos a decisão a respeito de qualquer exportação, eque portanto podiam ser aplicadas ou não, de acordo com aconveniência do momento. Nisto ele seguia os conselhos de doisde seus conselheiros, que estavam entre os juristas mais famososda época, Pedro Flotte e Guilherme de Nogaret. O resultadofoi uma longa e complexa correspondência entre as duas partes,em que tanto o rei como o papa, enquanto se ameaçavam mu-tuamente em termos gerais, em termos concretos se expressa-vam de maneira ambfgua. Os dois sabiam que tinham inimigospoderosos, e não queriam chegar a uma ruptura aberta e de-finitiva.

Enquanto isto a guerra prosseguia, sem vantagens decisivaspara qualquer dos lados, e tanto Eduardo como Filipe estavamcom poucos recursos para continuá-Ia. Foi esta realidade quemais tarde os levou a aceitarem a mediação de Bonifácio, cujatrégua ambos tinham violado. Então, Filipe mesmo insistiuem aceitar a mediação particular de Benedetto Gaetani, e nãodo papa. Apesar disto Bonifácio obteve um grande triunfoquando os dois reis, obrigados pelas circunstâncias, concor-dararn com as condições de paz ditadas por ele, e os oficiais

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do papa ficaram provisoriamente de posse dos territóriosque continuavam em disputa.

Enquanto tudo isto acontecia Bonifácio ainda teve satis-fação de ver a Escócia se declarar feudo seu. Por causa da inva-são dos ingleses os escoceses não tiveram outro recurso que ape-lar às suas próprias armas e à proteção do papado. Como basepara solicitar esta proteção eles declararam que a Escóciadesde tempos antiqu (ssimos sempre fora feudatária da SantaSé. Bonifácio respondeu ordenando a Eduardo que desistissedo seu intento de se apoderar da Escócia, pois este pafs perten-cia ao papado. Apesar de Eduardo não dar muita atenção àordem pontiffcia, Bonifácio viu na atitude dos escoceses maisuma prova da elevada dignidade do papado.

Aproximava-se o ano 1300, e Bonifácio proclamou umgrande jubileu eclesiástico, prometendo indulgência plenáriaaos que visitassem o sepulcro de São Pedro. Roma se viu inun-dada por peregrinos que acorriam para render homenagemnão s6 a São Pedro, mas também a seu sucessor, e pareciaser a pessoa mais poderosa da Europa.

Mas o entusiasmo do jubileu não durou muito tempo,e o grande papa logo viu seu poder se desvanecer. Suas relaçõescom Filipe, o Belo, ficavam cada vez mais tensas. O rei daFrança tomou posse de diversos territórios eclesiásticos, deixouSciarra Colonna, o mais temível membro desta farnflia inimigado papa, se refugiar em sua corte, e ofereceu a mão de Suoirmã ao imperador Alberto da Austria, que Bonifácio tinhadeclarado usurpador e regicida. Pedro Flotte, enviado comoembaixador francês a Roma, pareceu ofensivo ao papa. Amésma impressão Filipe teve do legado papal, que mais tardemandou prender através de uma manobra legal. As cartas ebulas dos dois poderosos ficaram cada vez mais ácidas, atéque, em prindpios de 1302, uma bula papal foi queimada napresença do rei. No mesmo ano Filipe convocou os estadosgerais - o parlamento francês - onde pela primeira vez esteverepresentado, ao lado dos "estados", tradicionais que eramcI nobreza e o clero, o "terceiro estado", a burguesia. Estesestados gerais enviaram diversos comunicados para Roma, emdefesa do rei. A resposta de Bonifácio foi a famosa bula Unam

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sanctam, que citamos brevemente no fim do volume anterior,em que ele expunha a autoridade papal em termos sem pre-cedentes.

Bonifácio pôs em ação seu conceito elevado de autoridadepontlffcia ordenando a todos os prelados franceses que viessema Roma em prindpios de novembro, para tratar ali do caso deFilipe. Este retribuiu proibindo que qualquer bispo ou abadeabandonasse o reino, sob pena de confisco de todos os seusbens. Além disto se apressou em fazer as pazes com Eduardo.O papa, por seu lado, se esqueceu de que, na sua opinião, Alber-to da Austria era um rebelde regicida, e fez um acordo comele, enquanto ordenava a todos os príncipes alemães que aceitas-sem o senhorio de Alberto. Em mais uma sessão dos estadosgerais franceses, Nogaret acusou Bonifácio de ser um papafalso, herege, sodomita e criminoso, e a assembléia pediu aFilipe que ele, como guardião da fé, convocasse um concíliouniversal para julgar o papa usurpador. Para cobrir sua reta-guarda e assegurar o apoio do clero Filipe promulgou as "orde-nanças da reforma", em que confirmava os antigos privilégiosdo clero francês.

Ao papa só restava a última arma que seus predecessorestinham utilizado contra os monarcas recalcitrantes, a exco-munhão. Reunido com seus conselheiros em sua cidade natalde Anagni, ele redigiu a bula de excomunhão, que deveria serpromulgada no dia 8 de setembro. Sciarra Colonna e Guilher-me de I'Jogaret, porém, sabendo que a confrontação estavachegando ao seu ponto culminante, viajaram para a Itália,com a autorização de Filipe de obter crédito ilimitado dos ban-queiros italianos. Com este dinheiro, e o apoio dos muitosinimigos que Bonifácio fizera durante sua carreira, eles organi-zaram um pequeno grupo armado.

No dia 7 de setembro de 1303, um dia antes da plane-jada excomunhão de Filipe, .Sciarra Colonna e Guilherme deNogaret invadiram Anagni, e não tiveram problemas para seapossar da pessoa do papa, enquanto o povo saqueava sua casae as dos seus parentes. O propósito dos franceses era obrigaro papa a abdicar. Mas o velho papa ficou firme, respondendosimplesmente que não abdicaria e que, se quisessem matá-lo,"aqui está meu pescoço; aqui minha cabeça". Nogaret o esbo-

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feteou, e depois o humilharam obrigando-o a montar de cos-tas em um cavalo não muito manso, conduzindo-o pela ci-dade.

Somente dois cardeais, Pedro da Espanha e Nícolau Bocca-sini, ficaram firmes no meio do tumulto. I\/,ais tarde Boccasiniconseguiu comover o povo, que se sublevou, libertou o papae expulsou os franceses e seus partidários.

Mas o mal estava feito. Voltando para Roma, Bonifá-cio não conseguiu inspirar mais nem uma sombra do respeitoque tivera antes. Mais ou menos um mês depois ele morreu.E ainda depois da sua morte seus inimigos o perserguiram,espalhando boatos de que ele tinha se suicidado, quando tudoindica que ele morreu serenamente, rodeado dos seus seguidoresmais fiéis.

O momento era difícil para o papado, e os cardeais elege-ram sem demora Boccasini papa, o mesmo que conseguira liber-tar Bonifácio. Este papa, que tomou o nome de Benedito XI,era um homem de origem humilde e hábitos irrepreensíveis,membro da ordem dos empregadores de São Domingos. Tendoem vista o poder de Filipe, o Belo, o mais sábio parecia ser se-guir uma pol ítica de reconciliação, e foi isto que o novo papatentou fazer. Restituiu as Colonna as terras que Bonifácio VIIItirara deles, começou a tentar fazer as pazes com Filipe, o Belo,e perdoou a todos os inimigos de Bonifácio, menos Sciarra Co-lonna e Nogaret. I'vias suas gestões não tiveram bom êxito. Ospartidários de Bonifácio se queixavam do que aos seus olhoeram concessões excessivas aos que tinham cometido crimesgraves contra o papado. O grupo contrário não se consideravasatisfeito com as medidas conciliatórias do pontífice. lrnpelicopor Nogaret e outros, Filipe, o Belo, insistia em que fosse con-vocado um concílio para julgar o papa falecido. Benedito nãoqueria dar este passo, que seria um rude golpe para a autoridadee o prestígio dos papas. O sucessor de Bonifácio, portanto,estava em dificuldades sérias, acossado por membros dos doispartidos, quando morreu. Logo se espalhou o boato de que eletinha sido envenenado com uns figos que alguém lhe enviou,e cada grupo acusava seus opositores de ter cometido a açãonefanda. Mas nunca foi provado se Benedito XI foi mesmoenvenenado.

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o papado em Avignon

Cs cardeais não conseguiram logo chegar a um acordosobre quem seria o sucessor de Benedito. Por um lado os parti-dários da boa memória de Bonifácio, sob a direção do cardealI\lateo Rosso Orsini, insistiam em que fosse eleito alguém queseguisse a política do pontífice ultrajado. Contra estes, outrogrupo encabeçado por Napoleão Orsini, sobrinho do anterior,dócil aos manejos do rei da França, procurava um meio de ele-ger um papa também dócil. Depois de muitos meses de discus-sões os cardeais conseguiram chegar a uma conclusão, graças auma artimanha de Napoleão Orsini e dos seus. Um dos candi-datos que o partido dos outros Orsini tinha sugerido, no prin-cfpio das negociações, era Bertrand de Got, arcebispo de Bor-deaux. Ele tinha sido nomeado por Bonifácio, e além distoBordeaux pertencia naquela época à coroa inglesa. Por estasrazões o tio Orsini supunha que Bertrand se oporia aos des(g-nios do rei da França. Mas durante o conclave o sobrinho enviouagentes para Bordeaux, e conseguiu a adesão do candidatooriginalmente proposto por seu tio. Então, enquanto os defen-sores da memória de Bonifácio acreditavam que seus oposi-tores, vencidos pela resistência, concordavam com a eleiçãode um dos seus candidatos, o que na verdade estava sucedendoera que este candidato secretamente mudara de lado.

Um papa eleito nestas circunstâncias não podia ser ummodelo de firmeza e retidão. De fato, o pontificado de Clemen-te V - assim Bertrand de Got se chamou depois de aceitar atiara papal - foi funesto para a igreja romana. Durante todo oseu reinado este papa não esteve em Roma nem uma vez. Pareceque isto não foi causado por alguma decisão sua, mas simples-mente por seu caráter indeciso. Como interessava ao rei daFrança ter o papa perto de si, seus agentes faziam todo o possf-vel para adiar a partida do pont(fice para a Itália. Mês após mês,ano após ano, Clemente viajou pela França e regiões vizinhas,sem dar ouvidos às petições que os romanos lhe faziam, rogan-do-lhe que fosse à sua cidade. Um dos lugares em que elepassou boa parte do seu pontificado foi Avignon, cidade pertoda fronteira com a França que era propriedade papal, e ondeseus sucessores fixaram residência depois por muitos anos.

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A política de Clemente ficou clara na primeira nomeaçãode cardeais, porque nove dos dez nomeados eram franceses.Em seu pontificado ele nomeou ao todo vinte e quatro cardeais,e vinte e três eram franceses. Além disto vários eram seus so-brinhos ou parentes, e com isto Clemente fez chegar ao augeo nepotismo, que seria uma das grandes manchas da igrejaaté o século XVI.

Mas foi principalmente no que refere à memória de Boni-fácio e à supressão dos templários que Clemente se mostrouinstrumento dócil aos des(gnios franceses. A questão da memó-ria de Bonifácio era uma arma poderosa nas mãos dos franceses,que sabiam que o novo papa não poderia permitir que fosseconvocado um condlio para julgar seu antecessor. Por isto,sempre ameaçando Clemente com a possível convocação destecondlio, os franceses obtiveram dele tudo o que desejavamem termos de anulação das decisões de Bonifácio. As bulasC/ericis laicos e Unam- sanctam foram revogadas, ou pelo menosreinterpretadas de modo que não dissessem o que Bonifáciointentara. Os Colonna tiveram toda a sua dignidade restaurada.Nogaret foi perdoado, sob a condição de que em futuro nãodeterminado fosse em peregrinação até a Terra Santa. Porfim, em uma bula de 1311, Clemente declarava que, no quereferia às ações contra Bonifácio, Filipe tinha agido com um"zelo elogiável". Todas estas concessões. foram arrancadasdo papa que tinha sido feito arcebispo pelo próprio Bonifá-cio. E lhe foram arrancadas de' uma maneira tal, que sempreparecia que os franceses, mesmo tendo o direito de pedirmais, estavam dispostos a ceder em alguma das suas exigênciasmais extremas, e que por isto o papa deveria estar agradecido.

O caso dos templários foi ainda mais vergonhoso. Nofim das cruzadas a antiga ordem tinha perdido a razão da suaexistência. Mas, pelo menos em teoria, os papas continuarampregando o ideal da cruzada para reconquistar a Terra Santa.Portanto, mesmo se em certo sentido a ordem sem dúvidaestava destinada a desaparecer, também não restam dúvidasde que o momento e a maneira com que desapareceu eramdevidos à avareza de Filipe, o Belo, e à debilidade de Clemente.Através dos séculos os templários tinham acumulado grandesriquezas e extensões de terra. Para uma monarquia pujante co-

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mo a francesa, os bens e o poder dos templários eram um obstá-culo para sua pol [tlca centralizadora. Em outras regiões da Eu-ropa outros monarcas davam mostras de sentimentos semelhan-tes. Pouco a pouco, em parte graças ao apoio da burguesia, osreis iam enfraquecendo o poder de que os grandes senhores feu-dais tinham gozado até então. Mas o caso dos templários era di-ferente, pois, por ser uma ordem monástica, não podia ser sub-metida diretamente ao poder temporal. Por isto recorreu-se aosubterfúgio de acusá-lo de heresia e imoralidade, e forçar odébil Clemente V a suprimir a ordem e a dispor dos seus bensem proveito da monarquia.

De repente, e de maneira totalmente ilegal, os templáriosque se encontravam na França foram presos. Através de tor-turas eles foram obrigados a confessar os crimes mais vergonho-sos. Se bem que muitos se negaram a trair seus companheirose suportaram valentemente os tormentos mais cruéis, maistarde foram reunidas declarações suficientes para justificaro ato ilegal do rei. Alguns confessaram que a ordem dos templá-rios na verdade era uma fraternidade oposta à fé cristã. Osneófitos eram obrigados a praticar a idolatria, cuspir na cruze maldizer a Cristo. Outros declararam sob torturas que haviaa prática da sodomia na ordem, que era incentivada de diversasmaneiras. Entre os que se renderam diante dos suplfcios estavaJacques de Molay, o grão-mestre da ordem, que até enviouuma carta aos seus companheiros, pedindo-lhes que confessas-sem o que soubessem. Alguns pensam que Molay fez istoporque estava certo de que as acusações eram tão absurdasque ninguém lhes daria crédito, e que o escândalo seria tamanhoque o rei se veria obrigado a pôr em liberdade os cativos. Outrosacham que ele o fez simplesmente porque fraquejou sob astorturas.

Quando o papa recebeu not(cias do acontecido, e de comoas confissões tinham sido arrancadas aos torturados, era dese esperar que ele acorresse em defesa dos membros de umaordem que estava sob sua proteção, e cujos direitos o rei tinhaviolado. Mas aconteceu algo muito diferente. Clemente orde-nou que em todos os países os templários fossem presos, impe-dindo desta maneira qualquer atitude que o restante da ordempudesse tomar contra Filipe. Quando ficou sabendo que muitas

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confissões tinham sido obtidas à força, tentou evitar estesabusos declarando que, por causa da importância do caso,ele mesmo serviria de juiz, e que por isto as autoridades locaisnão tinham jurisdição para continuar as torturas. I'vlasisto foitudo que o débil papa fez em defesa dos que lhe tinham ju-rado obediência e confiavam em sua proteção. Enquantoesperavam o dia do julgamento os templários continuaramencarcerados.

No ano seguinte o rei e o papa deveriam se reunir emPoitiers. Chegando nesta cidade, Clemente constatou que eleera acusado de instigar as supostas práticas dos templários.Nas sessões públicas, a instâncias de Nogaret, ele foi insultadoe ameaçado. Além disto, para acalmar sua consciência, foramapresentados a ele alguns dos templários mais dóceis, querepetiram em sua presença as confissões que o medo da dorlhes tinha arrancado anteriormente. Por fim o papa concordouem deixar o assunto nas mãos de um concflio que se reuniriana cidade francesa de Viena.

No dia primeiro de outubro de 1311, quase quatro anosdepois do encarceramento dos templários, reuniu-se o concflio.As esperanças de Filipe, de que a assembléia, dominada porfranceses, chegasse logo à condenação da ordem, mostraramser infundadas. A comissão que o concílio nomeou para ana-lisar o assunto dos templários insistia em que era preciso ouvira defesa dos acusados. O rei trovejou e ameaçou; mas os prela-dos, talvez envergonhados com a fraqueza do seu I(der, perma-neceram firmes. Por fim, enquanto a assembléia se demoravacom assuntos de menos importância, o rei e o papa chegarama um acordo. A ordem dos templários seria suprimida, nãoatravés do julgamento, mas por decisão administrativa do papa.Ao concflio não restou outra alternativa que concordar. De-pois de outra série de negociações decidiu-se cumprir os de-sejos do rei da França, e transferir os bens dos templáriospara os hospitalários. Esta transferência, entretanto, foi inex-pressiva, pois demorou diversos anos, durante os quais o reifez chegar ao papa uma conta dos gastos do julgamento dostemplários, a ser cobrada dos bens da ordem suprimida antesda transferência para os hospitalários, conta esta que quasealcançava a totalidade destes bens.

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Quanto aos acusados, muitos foram condenados à prisãoperpétua. Quando Jacques de Molay e um dos seus principaisassessores foram levados para a catedral de Nossa Senhora deParis para confessar publicamente os seus crimes, se retrataram.Foram queimados vivos no mesmo dia.

Clemente V morreu em 1314. Seu pontificado foi umsinal das condições sob as quais o papado existiria durantediversas décadas. ~ verdade que nem todos os papas desteperfodo quiseram transformar a igreja em um instrumentoda pol ftica francesa. Mas é verdade também que, às vezescom pesar, se viram obrigados a apoiar esta pol ítica.

Não podemos narrar aqui os detalhes dos pontificadosque sucederam a Clemente. Basta assinalar alguns dos aconte-cimentos mais importantes, e por último destacar as principaiscaracterfsticas do papado naqueles dias aziagos.

João XXII foi eleito passados mais de dois anos da mortede Clemente, pois os cardeais não conseguiram chegar a umacordo. Já que o novo papa tinha setenta e dois anos de idadeao ser eleito, é de se supor que o conclave decidiu nomeá-lona esperança de que durante seu breve pontificado surgisseoutro candidato. Mas o papa ancião foi inesperadamente lon-gevo e ativo. Sua preocupação principal durante seu longopontificado (1316-1334) foi tentar restaurar a autoridadepapal na Itália. Sua polftica neste sentido consistiu em intervirem uma série de guerras que dividiram a região, em que osinteresses papais se confundiam cada vez mais com os da Fran-ça. Para poder sustentar esta pol ítica, que foi um fracassototal, João XXII se viu obrigado a procurar aumentar as recei-tas do papado. Deve-se a ele em grande parte o complexosistema de impostos eclesiásticos cujo propósito era fazerfluir para as arcas pontifícias os recursos necessários paraos desígnios políticos e os sonhos arquitetônicos do papado.Como era de se esperar, em muitos casos este sistema de impos-tos eclesiásticos redundou em prejuízo da vida religiosa.

Benedito XII (1334-1342), ao mesmo tempo que pro-metia aos romanos regressar em breve à sede de São Pedro,começou a construção de um grande palácio em Aviqnon,que a partir de então seria a residência papal. Além disto, dandoa entender com isto que Roma não era a residência habitual

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dos papas, ele fez buscar de lá os arquivos papais. Mesmousando os distúrbios que havia na Itália como desculpa paranão ir a Roma, a verdade era que muitos destes distúrbioseram causados pela pol ítica do papa, e que sua ausência contri-bu (a para aumentá-los. Durante seu pontificado ficou claroque o papado estava nas mãos da coroa francesa, pois eraa época da guerra dos cem anos, e tanto os recursos econômicoscomo a rede de informações dos pontífices foram colocadosà disposição dos franceses. Tudo isto alienou cada vez mais opapado da Inglaterra e do seu principal ai iado, o Império.

O próx imo papa, C lemente V I (1342-1352), continuouapoiando o esforço bélico francês. r,,'lesmo servindo às vezescie mediador entre os adversários, ele sempre o foi em beneHcioe conveniência da França. Além disto foi ele quem levou ao seuponto culminante duas das piores características do papadode Avignon: o nepotismo e o excessivo desperd (cio da suacorte, que não podia ser diferenciada da de qualquer outrosenhor poderoso. Quando a peste bubônica irrompeu durante

o grande palácio de Avignon, que Benedito XII começou (I construir, foiu partir de então 8 residlncia dos papas.

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o seu pontificado, não faltaram os que viram nela um castigodo céu por causa do nível a que descera a vida eclesiástica.

Inocêncio IV foi um papa relativamente bom, principal-mente se comparado com seu predecessor imediato. Ele sempresonhou em voltar para Roma, e com este propósito envioupara Itália como legado o cardeal Gil Alvarez de Albornoz.Este conseguiu restaurar em grande parte o poder e o prestígiodo papa na Itália. Mas tanto o papa como seu legado morreramantes de conseguir levar o papado de volta para a cidade eterna.

Urbano V (1362-1370) era um homem de profundasconvicções e rígida disciplina monástica. Sua principal tarefafoi simplificar a vida da cúria. Vários cortesãos papais de gostosmais ostentosos foram despedidos. O próprio papa deu o exem-plo, negando-se a deixar seu hábito monástico e usar as roupasvistosas dos seus antecessores. Ele também incentivou o estudoe tentou reformar a vida eclesiástica. Por fim, em 1365, graçasà obra tenaz e sábia que o cardeal Albornoz realizara, Urbano Vpôde se transferir para Roma, que o recebeu com grande jú-bilo. Mas o santo papa não tinha a sabedoria necessária paraenfrentar as complicações pol íticas da época. Por razões desco-nhecidas, e com certeza escusas, ele desfez a pol ítica de Albor-noz e se lançou em novos empreendimentos fracassados. Oresultado foi tal que em 1370 ele decidiu abandonar Roma eregressar para Avignon.

Gregório XI (1370-1378) fora nomeado cardeal por seutio Clemente VI com somente dezessete anos de idade. Mesmosentindo a necessidade de voltar para Roma, o fracasso deUrbano V o assustava. Foi então que ocorreu a intervençãode Santa Catarina de Siena.

Santa Catarina de Siena

Em 1347 nasceu em uma famflia numerosa no bairrodos curtidores em Siena a que depois seria chamada de "SantaCatarina de Siena". Já muito jovem ela demonstrou uma inclina-ção singular para a vida religiosa, e com dezessete anos de idadese juntou às "irmãs da penitência de São Domingos". Estaorganização era muito flexível, e seus membros continuavamvivendo em suas próprias casas, dedicando-se ali à penitência

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Santa Catar/na da sten«, quadro anónimo aspsnhol, do SBCU/O XVII. Cor-tas/a do MBSdows Musaum, DaI/as, Taxas.

e à contemplação. Para que a jovem Catarina pudesse levar estetipo de vida seu pai separou para ela um pequeno quarto, ondepassou diversos anos da sua vida contemplativa.

Esta contemplação ia além de exerdcios mentais e pensa-mentos piedosos. As visões e experiências de êxtase foramsendo cada vez mais freqüentes na vida da jovem m(stica.Finalmente, em 1366, com dezenove anos de idade, ela tevea principal visão deste primeiro perfodo da sua vida. Nesta

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visão lhe apareceu Jesus Cristo, contraindo com ela núpciasm(sticas.

Depois desta experiência das "bodas místicas com Jesus"o teor da vida religiosa de Catarina mudou. Até então elatinha se ocupado quase exclusivamente da sua própria vidaespiritual. Mas agora, seguindo o exemplo do seu esposo rnfs-tico, ela iniciou um ministério em prol da humanidade. Partedeste ministério consistiu em servir aos pobres e enfermos.Muitos diziam ter sido curados por sua intercessão, e quase

Bodas mtstices de Santa Catar/no. 6180 de Francisco de Zurbaram. Cor-tesia do MeBdows Museum, DIlI/os, Toxss.

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lodos afirmavam que somente a sua presença já trazia consigouma profunda paz espiritual.

A outra parte notável do seu ministério foi o ensino.Ao redor dela se formou um círculo de mulheres e homensque escutavam avidamente seus ensinos sobre a vida espiritual.Muitos destes discípulos eram sacerdotes, monges e nobresque a excediam tanto em idade como em posição social. Aomesmo tempo de alguns destes discípulos - principalmenteos dominicanos - Catarina aprendeu boa parte da teologiada igreja, evitando assim o perigo de tantos outros m ísticos,de desconhecer o pensamento religioso do restante da igreja,e em conseqüência serem acusados de hereges.

Sua tama já era grande quando em 1370 ela teve outraexperiência, que iniciou a terceira e última etapa da sua vidareligiosa. Durante quatro horas seu corpo esteve tão imóvelque os que estavam junto dela pensavam que ela tinha morrido.Ao despertar declarou que na verdade estivera com o Senhor,e que lhe rogara que lhe permitisse ficar com ele. r·llas Jesustinha retrucado: "Muitas almas, para serem salvas, exigemque tu voltes .... A partir de agora, e para o bem das almas,sairás da tua cidade. Eu sempre estarei contigo, e te guiarei,e te trarei de volta."

Daquele momento em diante Catarina se dedicou à árduatarefa de levar o papado de volta para Roma. Para isto eranecessário restaurar a paz na Itália, e convencer o papa de queera necessário voltar. Com este propósito ela viajou de cidadeem cidade. Onde ela chegava as multidões acorriam paravê-Ia. Dizia-se que aconteciam milagres em sua passagem.Ao papa ela escreveu diversas vezes dizendo-lhe que o Senhorlhe tinha revelado que era da sua vontade que o papado voltasseà sede romana. Estas cartas mostram ao mesmo tempo umprofundo amor e respeito, e uma firmeza inquebrantável.Enquanto o estado da igreja a entristece, ela chama o papade "nosso doce pai". E em suas missivas mais respeitosas elase queixa, sem com isto se deixar levar pelo ódio ou pela amar-gura, de "ver Deus assim ultrajado".

Não é possível saber até que ponto tudo isto teve influên-cia sobre Gregório XI. 1\1as é fato que por fim, no dia 17 dejaneiro de 1377, somente três anos antes da morte de Catarina

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aos trinta anos de idade, Gregório XI entrou em Roma, emmeio ao júbilo generalizado. Tinha terminado o perfodo dopapado em Avignon, que foi chamado, com certa razão, de"cativeiro babilônico da igreja".

Catarina, como temos dito, morreu três anos depois dever realizado o seu anseio. Pouco menos de um século maistarde ela foi declarada santa pela igreja romana. E em 1970Paulo VI lhe conferiu o título de "doutor ela igreja". Ela eSanta Teresa de Jesus são as únicas mulheres que receberameste honroso título do papado, até então reservado para unspoucos teólogos homens.

A vida eclesiástica

As conseqüências do papado em Avignon foram funestaspara o cristianismo de fala latina - ou seja, de toda a cristan-dade ocidental. As guerras constantes na Itália, e o luxo dassuas cortes requeriam dos papas de Avignon amplos recursoseconômicos. Como as diversas facções na Itália se apossaramdos territórios que antes tinham constitu ído o "patrimôniode São Pedro", o único recurso que restava aos papas era obterfundos provenientes dos demais países da Europa ocidental.Os fiéis nestas regiões não estavam dispostos a contribuirvoluntariamente para tuco o que o papado queria gastar, epor isto os pontífices de Avignon, particularmente João XXII,elaboraram todo um sistema de impostos eclesiásticos.

Estes impostos resultavam em prejuízo para a vida religio-sa. Assim, por exemplo, quando um prelado era nomeadopara ocupar uma nova sede, as receitas recolhidas ali duranteo primeiro ano, chamadas de "anata", pertenciam ao papa.Por isto o papado tinha interesse em freqüentes transferênciasde prelados. Se uma diocese rica ficava vaga o papa podiademorar para preencher o cargo vacante, recolhendo para sias receitas da sede em questão. Estes hábitos, que pelo menostinham aparência legal, faziam companhia à simonia - nomederivado do episódio em que Simão, o mágico, foi o primeiroa querer praticá-Ia - que consistia em comprar e vender cargoseclesiásticos.

O que o papa fazia com os prelados estes faziam comseus subordinados. Se tinham comprado sua diocese, eles

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precisavam se ressarcir dos gastos vendendo cargos inferiores,e exigindo que as contribuições do povo, que tinham força delei, fossem cada vez mais elevadas. Portanto boa parte davida eclesiástica nada mais era que um sistema de exploraçãodos escassos recursos do povo, arqueado debaixo de encargoscada vez mais onerosos.

À simonia e à exploração se juntaram males relacionados,como o nepotismo, o absentismo e o pluralismo. Como cargoseclesiásticos eram ricas prendas, os papas de Avignon deramrédeas soltas ao nepotismo, que consiste em nomear pessoaspara ocupar cargos não com base em sua habilidade, mas emseu parentesco com quem é responsável pela nomeação. E o queos papas faziam os bispos e arcebispos imitavam. O absentismo,isto é, ocupar um cargo e residir em outro lugar, era cada vezmais comum entre pessoas que não tinham nenhuma vocação.E muitos ocupavam ao mesmo tempo diversos cargos eclesiás-ticos, sem cumprir as obrigações de nenhum deles - pluralismo.

A aliança estreita entre o papado e os interesses franceses,unida a um crescente sentimento nacionalista, contribuiupara aumentar a inimizade que boa parte da Europa tinha pelospapas. Estava em andamento a guerra dos cem anos, e a Ingla-terra e os imperadores alemães se separaram cada vez maisdo papado, que parecia servir aos interesses de seus inimigos,França e Escócia. Em conseqüência obtinha cada vez maisadeptos a teoria de que o estado tinha uma autoridade indepen-dente da do papa. Na Alemanha, por exemplo, o imperadorLu Is da Baviera tentou fortalecer 'sua posição contra JoãoXXII apoiando Nlardlio de Pádua e Guilherme de Occam,dois pensadores que se dedicavam a defender esta teoria. As-sim como Dante poucos anos antes, eles diziam que a autori-dade secular vinha diretamente de Deus, e não através dopapa.

Mardlio ensinava, além disto, que assim como Cristo e osapóstolos foram pobres e se submeteram à autoridade secular,assim também os prelados deveriam ser pobres, sem recebermais que o estado decidia lhes dar, e deveriam se submeterao estado. Occam, por sua vez, declarava que o papado nãoera necessário para a igreja, que consistia no conjunto dosfiéis, e por isto poderia ser dirigida de outra maneira.

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Tudo isto, bem como o modo com que foi acolhida apregação de Catarina de Siena e de muitos outros iguais a ela,nos dá a entender que havia um profundo sentimento de insa-tisfação com a igreja e seus I(deres. Através de todo o períodoque estudamos veremos que, enquanto a estrutura eclesiásticaparece fundir-se cada vez mais, surgem numerosos movimentosreformadores. Uns tentavam reformar a igreja a partir dopapado. Outros tinham interesses mais locais. Alguns con-centravam sua atenção na vida privada e na experiência mística.Uns queriam reformar tanto os costumes como a teologiada época, enquanto outros se contentavam com conclamaras pessoas para uma dedicação nova. Foi uma época em quea triste realidade deu lugar a muitos e muito nobres sonhos.Mas também foi uma época em que quase todos estes sonhosacabaram frustrados.

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IIIO Grande

Cisma do Ocidente

Por causa do perigo e dasameaças do povo ele foi

entronizado e coroado, echamado papa e apostólico.

Mas de acordo com os santospais e a lei eclesiástica

deveria ser chamado apóstata,anátema, anticristo, e

perversor e destruidor da fé.Conclave rebelde contra Urbano VI

o sonho de Catarina de Siena parecia ter se cumpridoquando Gregório XI levou o papado de volta para Roma. Masas condições pol íticas que tinham causado o "cativeiro babi-lônico da igreja" não tinham desaparecido. Em pouco tempoas dificuldades eram tão grandes que Gregório chegou a consi-derar a possibilidade de regressar a Avignon, e provavelmenteo teria feito se a morte não o tivesse surpreendido. E então osonho de Catarina se transformou em um pesadelo ainda piorque o papado de Avignon.

Com a sede pontiffcia vaga, o povo romano receou que onovo papa quisesse voltar para Avignon, ou ao menos fosseum joguete nas mãos dos interesses franceses, como tantosdos seus predecessores mais recentes o tinham sido. Estesreceios não eram infundados, pois os cardeais franceses erammais numerosos que os italianos, e vários deles tinham dado

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mostras que preferiam Avignon a Roma. O que o povo temiaera que os cardeais fugissem, e, uma vez a salvo, se reunissemem outro lugar, possivelmente dominados pela ala simpáticaao rei da França, e elegessem um papa francês que decidisseresidir em Avignon. Por esta razão o povo romano se amotinoue impediu a fuga dos cardeais. O lugar onde o conclave deveriase reunir foi invadido por multidões armadas, que somenteconcordaram em sair depois de receberem permissão para vigiaro ediffcio, para ter certeza de que os cardeais não escapariam.Enquanto tudo isto acontecia o povo gritava, exigindo quefosse nomeado um papa romano, ou pelo menos italiano.

Nestas circunstâncias o conclave teve muitas dificuldadespara deliberar. Os cardeais franceses, que de outro modo teriampodido dominar a eleição, estavam divididos, pois o nepotismodos papas anteriores resultara na nomeação de um bom nú-mero de cardeais procedentes da diocese de Limoges. Estesestavam decididos a fazer eleger um dentre eles, e o restante dosfranceses estava decidido a evitá-lo. Entre os italianos o maispoderoso era Jacobo Orsini, que ambicionava a tiara papal, epossivelmente instigava o levantamento do povo.

I\;ais tarde, enquanto o povo gritava no primeiro andardo ediffcio, os cardeais, reunidos no andar de cima, decidirameleger Bartolomeu Prignano, arcebispo de Bari. Mesmo nãosendo romano, ele pelo menos era italiano, e com isto o povose acalmou. No domingo da ressurreição Prignano foi coroadocom a participação de todos os cardeais que o tinham eleito,com grande pompa, e tomou o título de Urbano VI.

Em meio àquela- igreja corrupta a eleição de Prignanopareceu ser um ato da providência. De origem humilde e há-bitos austeros, não havia dúvidas de que o novo papa se dedi-caria à reforma que a igreja tanto precisava. Nisto era inevitávelque ele se chocasse com os cardeais, que estavam acostumadosa levar uma vida ostentosa, sendo que muitos consideravamseu cargo como uma maneira de enriquecer a si e seus familiares.Por isso, mesmo que Urbano fosse um homem cuidadoso e pru-dente, sua posição sempre seria difícil.

Mas Urbano não era nem cuidadoso nem prudente. Noseu afã de erradicar o absentismo, ele chamou os bispos que

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formavam sua corte, e que por causa disto não estavam emsua diocese, de traidores e perjuros. Do púlpito ele trovejoucontra o luxo dos cardeais, e depois declarou que qualquerprelado que recebesse qualquer privilégio com isto já era cul-pado de simonia, e merecia ser excomungado. Em seus esforçospara livrar o papado da sombra da França, ele decidiu nomearum número tão grande de cardeais italianos que os francesesacabaram perdendo seu poder. Só que antes de dar este passoele cometeu a indiscrição de anunciar seus projetos aos fran-ceses.

Tudo isto constitu ía a tão ansiada reforma por que ane-lavam os fiéis de toda a cristandade. Mas, provocando a inimi-zade dos cardeais, Urbano em pouco tempo começou a serchamado de louco por eles. E suas atitudes em reação a estesrumores até pareciam confirmá-los. Além disto, ao mesmotempo em que se proclamava I[der da reforma de toda a igreja,ele começou a colocar seus parentes em posições de destaque,tanto eclesiásticas como temporais. Com isto seus opositorespodiam dizer que o que o motivava não era o zelo reformador,mas a sede pelo poder.

Com o tempo os cardeais o foram abandonando. Primeiroos franceses, depois os italianos, fugiram para Anagni, e alideclararam, no manifesto que citamos no começo deste cap f-tulo, que Urbano tinha sido eleito sem que o conclave tivesseliberdade de ação, e que esta eleição sob pressão n5 tinhuvalidade. Os que fizeram esta declaração estavam se esquecendode que quase todos eles tinham estado presentes não só na eloicão, mas também na proclamação e coroação de Urbano,sem que sequer um levantasse sua voz em protesto. E tambémesqueciam que durante diversos meses eles tinham formadoa corte de Urbano, considerando-o papa verdadeiro, sem pôrem dúvida a validade da eleição.

A resposta de Urbano foi simplesmente nomear vintee seis novos cardeais de entre os seus adeptos. Se os outroscardeais não o aceitassem como o papa legftimo, eles perderiamseu poder. Por isto não lhes restava outra alternativa que decla-rar que, já que a eleição de Urbano não era válida, a nomeaçãodos novos cardeais também não o era, e proceder à eleiçãode um novo papa.

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Reunidos em conclave, os mesmos cardeais - exceto um -que tinham eleito Urbano, e que por algum tempo tinhamservido a ele, elegeram um novo pondfice. Os cardeais italianosque estavam presentes se abstiveram de votar, mas não pro-testaram.

Surgiu assim um fenômeno sem precedentes na históriado cristianismo. Diversas vezes houvera pessoas que declaravamque o papa era ileg(timo. Mas pela primeira vez havia dois papaseleitos pelo mesmo colégio de cardeais. Um deles, Urbano VI,fora repudiado pelos que o tinham eleito, e criara seu própriocolégio de cardeais. O outro, que tomou o tftulo de ClementeVII, tinha o apoio dos cardeais que representavam a continui-dade com o passado. E toda a cristandade ocidental se viuobrigada a se decidir por um ou outro pretendente.

A decisão não era fácil. Urbano VI tinha sido eleito legi-timamente, apesar dos protestos atrasados dos que o tinhameleito. Seu rival, só pelo fato de tomar o nome de Clemente,se mostrava disposto a seguir a tradição do papado de Avignon.Mas também era verdade que Urbano apresentava cada vezmais evidências de estar louco, ou pelo menos embriagadocom seu poder, e que Clemente era um diplomata hábil emoderado - se bem que a diplomacia não bastava para reco-mendar este pretendente ao papado, pois anteriormente ele esti-vera envolvido em episódios sangrentos, e nem mesmo seus par-tidários defendiam sua piedade e devoção.

Assim que se viu eleito, Clemente tentou se apoderar deRoma, onde se entrincheirou no castelo de Santo Angelo.Mais tarde, porém, ele foi derrotado pelas tropas de Urbano,e se viu obrigado a sair da Itália e estabelecer sua residênciaem Aviqnon. O resultado foi que a partir de então houve doispapas, um em Roma e outro em Avignon. Os dois imediata-mente enviaram legados por toda a Europa, tentando garantirpara si o apoio dos soberanos.

Como era de se esperar a França optou pelo papa deAvignon, sendo acompanhada nesta decisão pela Escócia, suaantiga aliada na guerra contra a Inglaterra. Este último paísseguiu o caminho oposto, pois o papado de Avignon era contrá-rio aos seus interesses nacionais. Também a Escandinávia,Flandres, Hungria e Polônia se declararam a favor de Urbano.

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Na Alemanha o imperador fez o mesmo, pois era aliado daInglaterra contra a França. Muitos dos seus nobres e bisposindependentes, no entanto, se opuseram a esta decisão, ouestavam indecisos entre os dois pretendentes. Na penínsulaibérica, Portugal mudou de parecer diversas vezes; Castela eAragão, que a princfpio se inclinavam para o lado de Urbano,mais tarde optaram pelo grupo de Avignon, graças à hábilpol ítica do cardeal Pedro de Luna. t\a Itália cada príncipeou cidade seguiu seu próprio caminho, e o reino de Nápolesmudou de partido diversas vezes.

Catarina de Siena dedicou os poucos anos de vida que lherestavam para defender a causa de Urbano. Mas esta causa eradiffcil de ser defêndida, pois o papa de Roma decidiu colocarseu sobrinho Butillo Prignano sobre o principado de Cápua,especialmente criado para ele. Esta atitude o levou a guerrasinjustificáveis, que fizeram com que ele perdesse parte doapoio que tinha na Itália. E quando alguns dos seus próprioscardeais tentaram aconselhá-lo a seguir uma pol ítica diferenteUrbano os mandou encarcerar e torturar. Até hoje não sesabe como morreram diversos deles.

Clemente VII, por seu lado, adotou uma pol ítica bemmais cautelosa, e, mesmo não conseguindo fazer valer suaautoridade no resto da Europa, pelo menos se fez respeitarnos países que o reconheciam como papa, dando assim certoprestígio ao papado avinhonês.

Como o cisma não se baseava somente na existência dedois papas, mas também na de dois partidos formados aoredor deles, a morte de um deles não seria suficiente parasubsaná-lo. Assim que Urbano faleceu, em 1389, seus cardeaisnomearam Bonifácio IX. Mais uma vez o nome adotado pelonovo papa indicava que ele seguiria a política de BonifácioVIII, cujo grande inimigo tinha sido a coroa francesa. Estenovo Bonifácio se esqueceu totalmente da reforma, e seugoverno foi caracterizado pelo auge a que chegou a simonia.

O cisma em si estimulava a simonia. Os dois rivais tentavamvencer seu adversário, e para isto precisavam de dinheiro. Poresta razão a igreja se transformou em um sistema de impostose exploração, mais terrível que os piores tempos do "cativeirobabilõnico".

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Em meio a estas circunstâncias os teólogos da universidadede Paris começaram a pensar em um meio de unir novamentea cristandade ocidental. Em 1394 eles apresentaram ao reitrês alternativas para acabar com o cisma: a primeira era que osdois pretendentes renunciassem, e fosse eleito um novo papa;a segunda previa a negociação entre os dois partidos, sujeita aarbitragem; e a terceira, um condlio universal. Destas trêsalternativas a universidade preferia a primeira, pois para poderaplicar as outras duas era necessário resolver as difíceis questõesde quem seriam os árbitros, ou quem convocaria o concílio.O rei seguiu os conselhos da universidade, e por isto, assimque soube da morte de Clemente VII, pediu aos cardeais deAvignon que não elegessem outro papa, na esperança de poderobrigar o pretendente romano a abdicar.

Mas os cardeais temiam que se ficassem sem papa suacausa perderia sua força, e por isto se apressaram em elegero cardeal Pedro de Luna, que tomou o título de BeneditoXIII. Se depois disto o rei quisesse insistir na recomendaçãoda universidade, teria de enfrentar os dois partidos, cada umcom seu próprio papa, e não um partido acéfalo.

Carlos VI, o rei da França, insistiu no caminho que tinhatraçado. Seus embaixadores tentaram persuadir Benedito arenunciar, enquanto outros se empenhavam em conseguir oapoio da Inglaterra e do Império, para que estas duas potênciasobrigassem o papa romano a fazer o mesmo. O papa avinhonês,todavia, que agora era o espanhol Pedro de Luna, se negou aabdicar. Então a igreja da França, reunida em concílio solene,lhe retirou a obediência, e pouco depois as tropas de Carlos VIsitiaram Avignon, no propósito de fazê-lo renunciar pela força.Pedro de Luna, entretanto, ficou firme. I\.lesmo abandonadopelos seus cardeais, ele reforçou a defesa de .L\vignon e resistiuao cerco francês, até que conseguiu fugir disfarçado. Sua obsti-nação rendeu frutos, pois pouco tempo depois as circunstânciaspol (ticas mudaram, e a F rança voltou a se declarar a seu favor.

Todos estes acontecimentos, porém, mostravam clara-mente que a cristandade estava cansada do cisma, e que se osdois papas não dessem sinal de estarem dispostos a resolvera questão, haveria outras pessoas que a resolveriam em seulugar. Isto levou Benedito XIII a iniciar conversações com seu

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rival de Roma. Seu propósito não era nem ceder nem renunciar,mas ganhar tempo enquanto se preparava para vencer seuadversário, e então obrigar a Europa a aceitar um fato consu-mado. Seus embaixadores se entrevistaram com Bonifácio IX,e depois com o sucessor deste, Inocêncio VII.

Com a morte de Inocêncio, entretanto, o partido romanotomou a iniciativa. O novo papa, Gregório XII, declarou ao sereleito que estava disposto a abdicar se Benedito fizesse o mes-mo. Isto forçou o papa avinhonês a agir, pois se não o fizesseele seria culpado por continuar o cisma, perdendo assim oapoio da França e de outros países. Os dois papas marcaramum encontro em Savona, para setembro de 1407. Mas logosurgiram dificuldades, e Gregório não foi ao encontro. Graçasa uma longa série de negociações encetadas por cardeais dosdois partidos os dois rivais foram se aproximando até restarempoucos quilômetros de distância entre eles. Mas em maiode 1408 a entrevista ainda não tivera lugar, e Gregório senegava a ir até onde Benedito o esperava.

Diante desta negativa categórica os cardeais do partidoromano abandonaram seu I (der, e iniciaram por conta própriaconversações com o partido avinhonês. Ao mesmo tempoa França retirou seu apoio a Benedito, e assim os dois papasestavam desamparados, enquanto o restante da cristandadeprocurava por seus próprios meios resolver o cisma. O movimento conciliar, que estivera em formação já há muito tcmp ,via chegar a sua hora.

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IVA reformaconciliar

Um concílio pode retirar osprivilégios dos papas, e não há

apelação possível contra ele. Podetambém eleger, rebaixar ou depor

o papa. Pode fazer novas leis, eanular as antigas.Dietrich de Niem

Durante a "era dos gigantes", quando a igreja ameaçavase dividir por causa da controvérsia ariana, Constantino de-cidiu convocar uma assembléia a que viessem bispos de todoo Império. A partir daquele concílio de Nicéia, e durantevários séculos, cada vez que a igreja se encontrava em situaçãosemelhante apelava-se ao recurso de convocar um concíliouniversal ou "ecumênico". Durante a "era dos altos ideais"o poder do papa era tão grande que os concílios estavam subor-dinados aos papas. Exemplo disto foi, como vimos, o IV Concf-Iio de Latrão, convocado por Inocêncio '" para aprovar umasérie de medidas que ele e sua cúria tinham determinado deantemão.

Mas agora, com as experiências tristes do "cativeiro ba-bilônico" e do Grande Cisma do Ocidente, começou a predo-minar a idéia de um concílio que não somente julgasse as açõesdos papas, mas reformasse a igreja, resolvendo os problemasque os papas tinham criado com suas ambições, disputas ecorrupção.

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A teoria conciliar

Se bem que os papas e cardeais parecessem estar surdosdurante muito tempo, na verdade toda a cristandade ocidentalestava cansada dos desmandos dos potentados eclesiásticos,e anelava por uma reforma moral da igreja. Durante o períododo "cativeiro babilônico" as vozes de protesto vinharr, prin-cipalmente dos países que estavam em guerra com a França.Mas o Grande Cisma criou um clima universal de impaciênciacom as maquinações dos papas. Como eram os eruditos queconstantemente punham na forma escrita seu inconformismo,vemo-nos obrigados a dirigir nossa atenção principalmentepara estes testemunhos. Mas ao fazermos isto não devemosesquecer que para as massas não se tratava somente do escân-dalo que era a existência de dois papas, mas também e sobre-tudo da exploração econômica que a ostentação e as necessi-dades políticas e militares dos contendentes acarretavam. p\simonia, o absentismo e o pluralismo, que incendiavam aambição dos poderosos, resultavam em impostos cada vezmais elevados para as massas. Assim a igreja, que em seusprimeiros séculos e mesmo depois em seus melhores momentosfora defensora dos pobres, se converteu em mais um pesoque oprimia as classes já oneradas.

Enquanto isto, principalmente nas universidades, o descon-tentamento ia assumindo formas teológicas. Os estudiosossabiam que o bispo de Roma nem sempre tivera as prerrogativasque agora exigia, e de que gozara nos séculos anteriores. A esteconhecimento se unia o antigo espírito do franciscanismo, quenão morrera, e para o qual a pobreza voluntária era uma dasvirtudes mais recomendáveis. Por isto muitos dos que se opu-nham à demasiada autoridade do papa e advogavam um concílioque reformasse a vida e os hábitos da igreja eram eruditos,franciscanos, ou as duas coisas.

A teoria conciliar tinha velhas raízes históricas. Para nossosefeitos podemos dizer que o grande mestre dos principais expo-entes do conciliarismo foi Guilherme de Occam, ao qual jáfizemos referência quando falamos do "cativeiro babilônico"do papado, e que ocupará boa parte da nossa atenção, quando,no próximo capítulo, tentaremos resumir a teologia da época.

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A maior parte dos teólogos medievais de antes do séculoXIV estivera convicta de que as idéias universais eram anterio-res às coisas concretas incluídas nestas idéias. Assim, por exem-plo, a idéia de "cavalo" era anterior aos cavalos individuais,e tem uma realidade própria, à parte destes. Esta posição,que veio a ser clássica, é chamada de "realismo", porque afirma-va que as idéias universais eram reais. Occam e boa parte dasua geração teológica, pelo contrário, criam que real é antesde tudo o indivíduo concreto, e que as idéias universais sãonomes ou conceitos que existem somente na mente. Por istosão chamados de "nominalistas".

Aplicando isto à igreja, a conclusão a que chegavamOccam e seus seguidores era que a igreja não era uma realidadecelestial ou ideal, representada na terra pelo papa e a hierarquiaderivada dele, mas era o conjunto dos fiéis. Os fiéis constituema igreja, e não vice-versa, Se isto é verdade, conclui-se que aautoridade eclesiástica não está arraigada intrinsecamente nopapa, mas nos fiéis, de quem o pontífice deriva sua posição.Em conseqüência, um concílio universal que representasseos fiéis de toda a cristandade deveria ter mais autoridade queo papa.

Isto não quer dizer que o concílio seria necessariamenteinfalfvel, pois, como veremos mais adiante, Occam não crêque haja instituição que não erre, e insiste na Iiberdade deDeus para se revelar de acordo com sua vontade soberana.Mas significa que, em um caso em que a igreja claramente procisa de uma reforma, e o papa se nega a dirigi-Ia, um concíliouniversal tem a autoridade necessária para reformar a igreja,mesmo contra a vontade do papa.

Occam desenvolveu estas teorias enquanto o papadoestava em Avignon. Depois, com o Grande Cisma, quandoficou claro que os dois contendentes estavam mais interessadosem seu próprio poder que no bem-estar da igreja, as teoriasconciliaristas receberam um novo ímpeto. Para seus principaisexpoentes a idéia de um concílio universal não somente seriauma maneira de pôr fim ao cisma, mas também o melhorinstrumento para reformar a igreja. Os graves males da épocaeram então atribu ídos à excessiva central ização do podereclesiástico. P. função do concílio, portanto, não poderia ser

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limitada à escolha entre os dois papas existentes, ou à nomea-ção de outro em seu lugar, mas o concflio teria de se ocupardiretamente da reforma da igreja, e parte desta reforma eraa descentralização do poder. Como muitos diziam, "sem con-cflio não há reforma".

Durante muito tempo todas estas idéias foram discutidasnas universidades, e nas principais cortes da Europa. Mas sempreexistia a dificuldade de que os conciliaristas não concordavamentre si quanto a quem deveria convocar o tão ansiado concílio.Durante os últimos séculos os papas tinham convocado oscondi ios. Mas agora havia dois papas, e por isto a convocaçãopor um deles faria perigar a imparcialidade da assembléia.Como os primeiros concflios foram convocados pelos impera-dores, alguns argumentavam que esta tarefa cabia ao imperador,ou pelo menos a soberanos temporais. Todos estes soberanos,no entanto, simpatizavam com um ou outro dos pretendentes,e por isto um concílio reunido por iniciativa deles tambémnão poderia ser o melhor caminho para reformar a igreja.

As coisas estavam nisto quando os avanços e retrocessosde Benedito XIII e Gregório XII levaram os cardeais a intervirdiretamente na questão, abandonando seus respectivos papase fazendo uma convocação conjunta para um grande concíliouniversal, que deveria se reunir em Pisa no ano seguinte (1409).

o concílio de Pisa

Enquanto os cardeais reunidos em Pisa acusavam seusex-I íderes dos crimes mais baixos, estes apressadamente fugirampara se esconder, Benedito XIII em Perpinhão, que entãofazia parte de Araqão, e Gregório XII em Veneza, sua cidadede erigem. Assim que se viram a salvo os dois tentaram se adian-tar aos cardeais, convocando cada qual um concílio universal.

O concílio de Benedito XIII teve certo êxito inicial, poisum respeitável número de prelados atendeu ao seu convite.I\:as não tardaram a surgir discórdias entre os presentes, e poucoa pouco todos foram abandonando o lugar, até que a assembléiase dissolveu. Benedito então se retirou para a fortaleza dePenhíscola, onde viveu mais quinze anos, sempre insistindoem que ele era o legítimo sucessor de São Pedro.

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Quanto a Gregório, sua situação era ainda mais precária,pois não tinha um reino que o protegesse, como Beneditotinha Aragão. Seu pretenso concflio nunca passou de um pu-nhado de partidários de quem ninguém fez caso. Por fim ele seretirou para R(mini.

Enquanto isto chegara o dia marcado para o concíliode Pisa. Na catedral desta cidade se reuniu uma multidãoque inclu (a, além dos cardeais dos dois colégios, um grandenúmero de arcebispos, bispos, abades e ministros gerais deordens, bem como várias centenas de doutores em direito canõ-nico e em teologia.

Como todos os presentes sabiam que a legalidade do con-cílio teria de ser inapelável, as sessões foram extremamentebem dirigidas. Quando chegou o momento de julgar o caso dosdois papas, foi seguido com todo o cuidado o processo formal.Por três dias consecutivos, na porta da catedral, eles foram cha-mados pelo nome (isto é, seus nomes antes de serem papas,Pedro de Luna e Angelo Correr), e solicitados a se apresenta-rem, ou a enviarem representantes. Quando, como era de seesperar, esta convocação não teve resultados, procedeu-se aum julgamento formal. Depois de muitos dias de testemunhoscontra os dois papas, eles foram depostos, e o papado decla-rado vago:

o santo concílio ecurneruco, que representa a católicaIgreja de Deus, e a quem corresponde julgar este assunto,reunido pela graça do Esp(rito Santo na catedral de Pisa,e depois de ter escutado os que querem a extirpação docisma abominável e profundo, e a união e restauração danossa santa mãe igreja, contra Pedro de Luna e AngeloCorrer (que alguns chamam de Benedito XIII e GregórioXII), declara que os crimes e abusos destes dois, comofoi demonstrado diante do sacro condi ia, são verdadeirose conhecidos. Os dois pretendentes, Pedro de Luna eAngelo Correr, foram e continuam sendo cismáticos ma-nifestos, partidaristas obstinados, que aprovam, defendeme promovem o cisma. São evidentemente hereges que seapartaram da fé. Cometeram perjúrio, e suas promessasnada valem. Sua disputa manifesta e repetida escandaliza

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a igreja. Seus enormes abusos e iniquidades os fazemindignos de toda honra e dignidade, e em particular dopontificado supremo. E mesmo se os cânones da igrejajá mostram que eles são automaticamente rejeitados porDeus e separados da igreja, nós, através desta sentençadefinitiva, os depomos, rejeitamos e expulsamos, e proi-bimos aos dois que continuem se chamando de pontf-fices supremos, ao mesmo tempo que declaramos que opapado está vago.

Notemos que este decreto não declara que a eleição desteou daquele papa tenha sido nula. Se a questão fosse levantadadesta maneira, o concílio se teria dividido, pois nele estavampresentes cardeais que tinham votado neste ou naquele preten-dente. Portanto, em vez de tentar resolver a questão, comotinha sido feito até então, com base em que os dois preten-dentes não tinham sido eleitos legalmente, ela foi resolvidadeixando este problema de lado, e o concílio os depôs porcausa de sua conduta indigna. Era impossível determinar qualdos dois era o papa legftimo, mas era de se supor que um dosdois o fosse. Por isto o concílio declarou indiretamente queum papa, mesmo sendo eleito de maneira correta, poderia serjulgado e deposto por uma assembléia que representasse todaa igreja.

Com o papado vago, era necessário eleger um novo papa.Com a presença dos cardeais dos dois partidos esta eleição podiaser realizada imediatamente. Mas a assembléia tinha outro pro-pósito fundamental em sua agenda. Não bastava eliminar ocisma. Era necessário dar pelo menos os primeiros passos emdireção à reforma que todos queriam. E para muitos dos pre-sentes uma das causas principais dos males que afligiam a igrejaera a excessiva centralização do poder. Por isto, antes de umnovo papa ser eleito e a reunião dissolvida, era necessáriogarantir que o pont(fice eleito reconheceria a necessidade doconcflio, e estaria disposto a acatar sua autoridade. Por estarazão todos juraram:

Todos e cada um de nós, bispos, sacerdotes e diáconosda santa igreja romana, reunidos na cidade de Pisa paraterminar o cisma e restaurar a unidade da igreja, empe-

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nhamos nossa palavra de honra e prometemos ... que,se um de nós for eleito papa, ele continuará o presenteconcílio, sem dissolvê-lo nem permitir, até onde estiverao seu alcance, que seja dissolvido, até que tenha ocorridoa reforma adequada, razoável e suficiente da igreja univer-sal, tanto em seu cabeça como em seus membros.

Pouco depois o conclave se reuniu e elegeu Pedro Filareto,o arcebispo de Milão, que tomou o nome de Alexandre V.Depois desta eleição o concflio decretou diversas medidas emfavor da reforma eclesiástica, e se declarou dissolvido, congra-tulando-se por ter terminado o cisma e dado os primeiros passosem direção a uma reforma que eliminaria males tais como asimonia e o absentismo.

Os três papas

Mas o concílio de Pisa, longe de resolver o cisma, o com-plicou, pois agora havia três papas, e cada um se consideravalegCtimo sucessor de São Pedro e cabeça da igreja. Se bem quea maior parte dos países da Europa ocidental aceitava tanto oconcílio de Pisa como o papa nele eleito, Benedito ainda eraconsiderado papa legCtimo por toda a pen fnsula ibérica e pelaEscócia. Gregório, por seu lado, contava com o apoio vaci-lante de Nápoles e Veneza, e com a ajuda decidida dos r"lulutesta, que eram donos da cidade de R (mini. Portanto, m 'SIlIU

sendo o papa pisano sem dúvida o que gozava do reconhecimento mais geral, os outros dois ainda eram capazes de conti-nuar mantendo suas cortes e pretensões.

Em vez de atacar imediatamente seus dois rivais, AlexandreV se dedicou a consolidar sua posição confirmando quase todosos cargos e honras que tinham sido conferidos pelos dois papasque o concílio tinha declarado depostos. Mas isto queria dizerque, mesmo sendo ele um franciscano de vida austera e leal de-fensor da reforma, esta foi relegada a segundo plano, pois osprivilégios confirmados por ele eram precisamente o pior dosmales que deveriam ser erradicados. No momento sua principaltentativa de reforma consistiu em dar mais direitos e ingerêncianos assuntos eclesiásticos aos seus companheiros de ordem.

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Como os franciscanos tinham feito votos de pobreza, e muitosdeles ainda levavam estes votos muito a sério, Alexandre pareceter esperado que sua ordem pudesse ser seu braço direito quan-do chegasse a hora de se dedicar totalmente à reforma da igreja.Mas a única coisa que Alexandre conseguiu obter foi a inimi-zade do restante do clero, para quem os mendicantes eram umestorvo, e que estava insatisfeito porque nada tinha sido feitocontra os males que afligiam a igreja quando o papa morreu,pouco mais de dez meses depois de ser eleito.

Alexandre morreu em Bologna, e ali mesmo os cardeaisse reuniram para eleger seu sucessor, que acabou sendo o menosdigno deles, Baltasar Cossa, que tinha começado sua carreiracomo pirata e na época era dono - mais que dono, tirano -de Bologna. Há diversas versões sobre o que aconteceu no con-clave, mas não resta dúvida de que o fato de estarem reunidosem Bologna pesou sobre a decisão dos cardeais, e conta-seaté que Cassa rejeitou altaneiramente todos os candidatospropostos, e que por fim tomou a estola papal, colocou-a sobreos seus ombros, e declarou: "Eu sou o papa".

Seja qual for o modo com que o novo papa foi eleito, ofato é que ele tomou o nome de João XXIII, e que logo tentouencher suas arcas através de uma guerra contra Ladislau deNápoles, onde esperava obter rica presa. Mas as coisas não saí-ram como João esperava, e ele logo se viu só e ameaçado pelosnapolitanos, que quase tomaram sua cidade.

Em meio a estas dificuldades João XXIII pensou quea melhor maneira de garantir a segurança de Roma era con-vocar um concflio que se reunisse na cidade. Ladislau não seatreveria a agir militarmente contra a sede de uma tão augustaassembléia. Mas o pretenso concflio acabou sendo uma piada.Bem poucos prelados se atreveram a ir para uma cidade tãoem perigo.

Quando a pequen (ssima assembléia por fim se reuniu, oscronistas nos contam que, quando durante a celebração damissa foi implorada a descida do Esp(rito Santo, apareceu umcorvo dando gritos. O incidente se transformou em comédiaquando alguém comentou: "Que forma rara assumiu o EspfritoSanto!" No dia seguinte novamente foi necessário interromperas sessões para expulsar o corvo do recinto com varas e pedradas.

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Enquanto sucedia tudo isto os outros dois papas, BeneditoXIII e Gregório XII, insistiam em suas pretensões. E, depoisde uma breve trégua, Ladislau voltou a ameaçar Roma. Ao papaJoão não restou outro remédio que fugir da Itália e se refugiarsob a ala do imperador da Alemanha, Sigismundo. Foi isto quelevou ao concílio de Constança e ao fim do cisma.

Antes de narrar estes acontecimentos precisamos nos deterpara esclarecer uma dúvida que pode ter surgido na mente doleitor. Como é que o papa de que estamos falando se chamavaJoão XXIII, se houve no século XX outro famosíssimo papacom o mesmo nome e número? Sucede que a igreja romanareconhece como papas legítimos durante o cisma somenteUrbano VI e seus sucessores. Tanto Benedito XIII e seu prede-cessor Clemente VII como os papas pisanos, Alexandre V eJoão XXIII, são considerados antipapas. Isto é necessário paraa igreja romana, ainda que na verdade Alexandre e João tenhamgozado de um reconhecimento muito mais amplo que GregórioX II, porque de outro modo essa igreja teria de concordar queo concflio de Pisa depôs Gregório legalmente, e que assim ospapas estão sujeitos aos concílios e não vice-versa.

A 8ssembléi8 foi interrompias pelo surçirnento de um corvo. lIustr8çBottreae de um livro protestante do século XVI.

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o concílio de Constança

Sigismundo, o imperador da Alemanha sob cuja proteçãoJoão se colocou, era na época o soberano mais poderoso daEuropa. Durante muito tempo a coroa alemã estivera em dis-puta. r~'ias agora estava firmemente colocada na cabeça deSigismundo, que tomou o título imperial com toda a serie-dade, e se dedicou a imitar Carlos Magno. As demais potênciaseuropéias eram mais fracas que ele. A França, a única que emoutras circunstâncias poderia ter-lhe feito sombra, estavadebilitada pela guerra dos cem anos e pela disputa entre armag-nacs e borgonhões. Nestas circunstâncias Sigismundo sonhouem ser aquele que pusesse fim ao cisma, iniciando a tão ansiadareforma eclesiástica. Por isto, quando João XXIII recorreu aele, o imperador concordou em protegê-lo, sob a condição deque convocasse um concílio universal, que deveria se reunirna cidade imperial de Constança.

Quando o concílio iniciou suas sessões, em fins de 1414,João XXIII tinha motivos para ter esperanças, pois tanto oimperador como a grande maioria dos presentes o tinhamrecebido com amplas mostras de respeito, dando a entenderque o consideravam o papa legítimo. Mas ao mesmo tempohavia sinais de perigo. Em um sermão, o cardeal Pedro deAilly, um dos homens mais eruditos e respeitados da época,declarou que o concílio tinha poder sobre o papado, e quesomente era digno de ocupar esta alta dignidade quem levasseuma vida exemplar. Pouco depois correram comentários nosentido de que João era um papa indigno. Muitos dos presentestinham dúvidas sobre se seria possível levar a cabo as reformasnecessárias enquanto ele fosse papa. Quando chegaram os em-baixadores de Gregório XII, declarando que ele estava dispostoa renunciar se os outros dois papas fizessem o mesmo, a situaçãode João ficou desesperadora. Para cúmulo dos males o concfliodecidiu que as votações seriam por nações. Toda a assembléiafoi organizada em quatro "nações": os ingleses, os franceses, ositalianos, e os "alemães", para os quais eram contados tambémos escandinavos, os poloneses e os húngaros - mais tarde, quan-do chegaram os delegados ibéricos, foi acrescentada a quintanação, dos espanhóis. Esta maneira de organizar o sufrágio

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A cidade de Constança, onde se reuniu o concilia, de acordo com umagravura quase contemporânea.

significava que os italianos, em cujo grande número João con-fiava, tinham somente um voto.

Mals tarde o concílio exigiu a renúncia de João XXIII.Este deu a impressão de que cederia, mas assim que surgiua oportunidade ele se disfarçou de lacaio e fugiu de Constança.

Durante mais de dois meses o antes poderoso papa vagoufugitivo. Sua situação ficava cada vez mais difícil, pois seuprincipal protetor entre os nobres, o duque da Áustria, foivencido pelo imperador, e a partir de então era-lhe quase im-possível encontrar asilo. Quando por fim foi aprisionado elevado de volta a Constança ele estava abatido e disposto arenunciar. Sem mais demora o concflio aceitou sua renúncia,e o condenou a passar o restante de seus dias prisioneiro, commedo de que voltasse a reclamar a tiara papal.

Ainda restavam dois papas. A 4 de julho, pouco depois daabdicação de João XXIII, Gregório XII seguiu seu exemplo.Quanto a Benedito XIII, seus seguidores ficaram reduzidos aum punhado quando o imperador Sigismundo, mediante umasérie de negociações com os estados ibéricos, conseguiu que

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todos lhe retirassem sua obediência. De sua fortaleza em Penh ís-cola o velho cardeal Pedro de Luna continuou proclamandoque ele era o único papa legítimo, com o título de BeneditoXIII, mas ninguém já lhe prestava atenção.

Na falta de um papa, o concílio passou a ser o poder su-premo, e se dedicou à reforma da igreja. Pouco antes, comoveremos em outro capítulo, João Huss tinha sido condenado,e muitos dos presentes acreditavam que esta decisão era umpasso necessário para a tarefa de livrar a igreja de qualquermancha de heresia ou corrupção. Mas ainda faltava dar passosconcretos para erradicar males como a simonia, o pluralismoe o absentismo. O concílio, então, se dedicou a esta tarefa,e logo descobriu que, além de uma série de decretos de carátergeral, pouco podia ser feito de imediato. Por isto a assembléiase contentou com promulgar uma série de medidas contra osabusos da época, e se dedicou a outras duas tarefas que aindaestavam pendentes. A primeira era a eleição de um novo papa.A segunda, muito mais importante do ponto de vista dos conci-liaristas, era garantir que houvesse concílios periódicos quecontrolariam os papas, para que eles fizessem as reformasnecessárias.

Cansados de um concílio que tinha durado três anos, osmembros da assembléia decidiram que, em vez de insistir deimediato na reforma, eles simplesmente garantiriam que o mo-vimento conciliar pudesse continuar, e depois elegeriam umnovo papa. Asseguraram a continuação do movimento conci-liar mediante o decreto Frequens, que ordenava que haverianovas assembléias conciliares em 1423, 1430, e a partir deentão a cada dez anos. Feito isto, entre os cardeais presentese uma comissão do concílio, foi eleito um novo papa, quetomou o nome de r"lartim V. O Grande Cisma do Ocidentetinha terminado. O movimento conciliar, entretanto, que porcausa do cisma chegara ao seu auge, não tardou a decair.

o triunfo do papado

Os próximos anos foram um período de tensão constanteentre a doutrina conciliarista e a da monarquia papal. MartimV, que era um diplomata hábil, tomou cuidado em não contra-

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dizer os decretos do concílio de Constança. IVias tampoucoconfirmou os que estavam dirigidos contra seu poder.

Em obediência ao ordenado no decreto Frequens do con-dlio de Constança, o papa convocou uma nova assembléia,que se reuniu em Pávia e depois se transferiu para Siena, fugindoda peste. Mas este condlio, agora que o cisma tinha terminado,teve pouca assistência, e no ano seguinte Martim o declarouconclu ído, sem que ele tivesse aprovado mais que alguns decre-tos de menor importância.

Quando se aproximou a data em que deveria se reunir opróximo condlio (1430), o papa deu mostras de querer ignoraro que fora decretado em Constança. I\:las percebeu que as idéiasconciliares ainda tinham muita força, e acabou convocandoo concfl io, que se reuniu em Basiléia.

Martim V morreu pouco depois de convocado o concílio,e seu sucessor, Eugênio IV, cometeu o grave erre de tentardissolver a assembléia. A reação foi imediata. O cardeal Cesa-rini, que rviartim V nomeara presidente da assembléia, se negoua obedecer ao decreto de dissolução. Isto imediatamente con-centrou a atenção da Europa no condlio, que até então nãotinha causado muito impacto. Em Basiléia o conciliarismo maisextremado se apossou da reunião. O prestigioso erudito Nicolaude Cusa dizia que somente o cencílio era infal ível, e que poristo os ali congregados não tinham obrigação de obedecer aopapa, mas sim, de julgar se ele agia de maneira correta. Os car-deais Cesarini e Enéias Sílvio Piccolomini (que depois seriaPio II) defendiam teses semelhantes. O imperador Sigismundose negou a reconhecer o decreto de dissolução, e pressionouo papa para que o retirasse. Por fim, vendo-se sozinho e desam-parado, Eugênio IV se rendeu, e declarou que o concíl io deBasiléia estava devidamente constitu ído.

Esta capitulação de Eugênio IV parecia indicar para otriunfo final das doutrinas conciliaristas. A partir de entãoo concf'llo de Basiléia deu mostras de pretender continuar sereunido indefinidamente, e governar a igreja diretamente.Uma série de medidas foram limitando o poder do papa, e cor-tando seus recursos econômicos. Enquanto isto, na Itália, asituação política de Eugênio era cada vez mais precária.

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Um acontecimento inesperado, no entanto, veio fortalecero prestígio papal. Constantinopla estava fortemente assediadapelos turcos. Do antigo Império Bizantino restava somente umasombra, e esta sombra também desapareceria se o Ocidente nãoacudisse em socorro dos seus irmãos orientais. Isto não era fácilde conseguir, pois as igrejas do Oriente e do Ocidente tinhamestado separadas por séculos, e se acusavam mutuamente deheresia. Em seu desespero o imperador de Constantinopla e opatriarca desta cidade decidiram que era necessário acabar como cisma que já durava quase quatro séculos. Com este propó-sito eles recorreram ao papa, e se mostraram dispostos a parti-cipar do concüio, se este se reunisse em uma cidade maisacess(vel, a partir de Constantinopla.

O concfllo de Basiléia negou-se 'a se transferir, e o papaproclamou um decreto transferindo-o para Ferrara. A maiorparte da assembléia fez caso omisso da ordem pontiHcia e per-maneceu em Basiléia. Mas outros, vendo a oportunidade de reu-nir as igrejas do Oriente e do Ocidente, acudiram para Ferrara.Resultava, assim, que o movimento conciliar, que chegaraao ápice do seu poder em reação ao Grande Cisma do Ocidente,quando havia dois papas, por sua vez caía no cisma, pois agorahavia um papa e dois concflios.

O concfllo de Ferrara, que depois foi transferido paraFlorença, contava com poucos prelados, e o restante da cris-tandade lhe teria dado pouca atenção se em julho de 1439não tivesse sido proclamada solenemente a reunião das igrejasbizantina e ocidental. Para conseguir esta união tanto o impe-rador como o patriarca de Constantinopla aceitaram a supre-macia papal.

Enquanto isto, não restava ao Concílio de Basiléia, outraalternativa senão tomar medidas cada vez mais extremas contrao papa. Enéias Sflvio Piccolomini e Nicolau de Cusa abando-naram a idéia conciliar e passaram para o partido do papa. Uma um os diversos reinos e senhorios da Europa foram retirandoseu apoio à assembléia de Basiléia, cujos membros se reduziamcada vez mais. O que restava do longo concílio, por sua vez,iniciou um processo contra Eugênio IV, declarando-o deposto.Em seu lugar foi nomeado Félix V. Assim, não só havia doisconcfllos, mas o movimento conciliar ressuscitara o cisma

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papal. Mas já quase ninguém fazia caso daquele sfnodo, quepouco depois se transferiu para Lausanne, e acabou se dissol-vendo. Quando Félix V por fim renunciou, em 1449, o papa-do romano saíra indiscutivelmente vencedor sobre as idéiasconciliares.

Estas idéias continuaram circulando por muito tempo, aponto de, como veremos no próximo volume, Lutero chegara pensar que um concllio universal seria a melhor maneirapara defender sua causa reformadora. A partir da dissoluçãodo concflio de Basiléia, todavia, não houve outra assembléiasemelhante que não servisse aos interesses do papado, ou esti-vesse sob seu dom{nio.

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VJoão Wycliff

Fui acusado de esconder, sobuma máscara de santidade, ahipocrisia, o ódio e o rancor.

Temo, e com dor confesso, queisto me tenha acontecido com

muita freqüência.

João Wycliff

o curso ininterrupto da nossa narrativa levou-nos a continuar a história do papado e do movimento conciliar até prin-cfpios do século XV. Nesta narrativa nos referimos repetida-mente às tentativas de reforma que caracterizaram o movi-mento conciliar. Vimos que esta reforma não era dirigidacontra questões de doutrina, mas mais contra a vida religiosana prática, em particular contra abusos como a simonia, o ab-sentismo, etc. Mas ao mesm tempo que ocorriam os acon-tecimentos que acabamos d nurrur havia outro movimentode reforma muito mais radi til, qiu nllo se contentava com ata-car as questões referente ) vklr: ( I S costumes, mas que queriacorrigir também as d ut ln is ti I JI( j.t medieval, ajustando-asmais à mensagem bfbli I. I)()' mu lo:. que seguiram este cami-nho os que mais se dosi J • II 1111 101 1111 .lo/'í Wycliff e João Huss.Wycliff viveu durante ri {pOI' I do "r: II v 'iro babilônico" dopapado, e do in ício do ii 111111 CI 11'1 IIIISS, a quem dedicare-mos o próximo capftulo, 1'"11' 111111 r.1I I carreira no concüiode Constança.

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Vida e obra de Wycliff

Wycliff foi um destes autores cujos livros dão a entendermuito pouco sobre eles mesmos. A citação que encabeça estecap ítulo é uma das poucas janelas que Wycliff abre para asprofundezas do seu coração. E também ela nos diz somente oque poderíamos adivinhar facilmente: que seus sinceros esforçosreformadores não estiveram isentos totalmente de pecado.

Por isto sabemos muito pouco da sua juventude. E mesmose soubéssemos mais, este conhecimento talvez não fosse tãointeressante, pois o pouco que sabemos parece indicar parauma infância tfpica em uma pequena aldeia da Inglaterra, epara uma juventude dedicada quase exclusivamente ao estudo.

A maior parte da sua vida transcorreu na universidadede Oxford, onde ele chegou a ser famoso por sua lógica e eru-dição. Revelou-se como homem dotado de uma mente privi-legiada, disposto a se ater aos seus argumentos até as últimasconsequencias, e carente de humor. Um dos seus seguidoresnos fala disto, contando que anos depois o arcebispo de Can-

lfobannes rclcleff

João VVyclíff, de ecordo com UnJ8(/ra vure do século XV.

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terbury lhe disse que na sua oprruao Wycliff era "um grandeerudito, e muitos o consideravam um trgado perfeito".

Wycliff saiu da universidade em 1371, para se colocara serviço da coroa. Na época, como dissemos no nosso primeirocap ítulo, havia tensões entre o trono inglês e o pontificadoromano, particularmente com referência aos impostos queuma ou outra parte tentavam impor ao clero. V.,.'ycliff saiu emdefesa da coroa, atacando a teoria que dizia que o poder tem-poral se deriva do espiritual. Dentro deste contexto ele come-çou a desenvolver suas teorias do "senhorio", que abordaremosmais adiante. Ele participou também de uma embaixada que dis-cutiu com os legados pontiffcios os pontos em questão. Pareceque sua lógica inflex(vel e sua falta de senso da realidade pol ítl-ca o faziam pouco apto para a diplomacia, e por isto ele não vol-tou a ser enviado em missões semelhantes. A partir de entãoele foi usado principalmente como o polemista demolidor que opoder secular empregava contra seus inimigos eclesiásticos.

Esta polêmica, porém, o rigor da sua lógica, seus estudosbfblicos. e o escândalo do Grande Cisma, que começou em1378, o conduziram a posições cada vez mais atrevidas. I\~uitasdas suas doutrinas sobre o "senhorio", à medida que iam sedesenvolvendo, atacavam não só o papa e os poderosos senhoresda igreja, mas também o estado. Assim como o poder espiritualtinha seus limites, o temporal também os tinha. Por causa distoos nobres que antes o apoiavam foram se separando dele,deixando-o cada vez mais só.

Wycliff então se contentou com voltar para sua queridaOxford, onde tinha muitos seguidores e admiradores. Mastambém ali o cerco se fechava. Suas doutrinas sobre a santaceia se opunham aos ensinos oficiais da igreja. Seus ataquescontra os frades, que tinham começado anos antes, lhe vale-ram muitos inimigos. Em 1380 o reitor da universidade con-vocou uma assembléia para discutir os ensinos de Wycliffsobre a ceia, e esta asscmlil "k, o condenou por estreita mar-gem. Mesmo assim muit S urn Oxford ainda o defendiam, eas autoridades não se [lI n '/i 1111 LI tornar atitudes contra ele.Durante vários meses oh (!;I( VII plI $0 cm sua casa, privado daIiberdade, mas com porrnls« io p.1I ti continuar escrevendo seuslivros, cada vez mais foqu ,o'"

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Por fim, em 1381, ele se retirou para sua paróquia de Lut-terworth. O fato de Wycliff ter tido uma paróquia mostra atéonde chegavam os excessos da época. Ele mesmo, que tanto osatacava, participava deles, se bem que não no grau extremocomo muitos outros. Durante muitos anos, em sua mocidade,ele tinha custeado sua estadia em Oxford com o que recebia

A igreja peroauiet de t.utterworui

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de um cargo eclesiástico. E mais tarde, quando se viu em dificul-dades econômicas, ele trocou este cargo por outro menoslucrativo, recebendo certa quantia como compensação. ~ dif ícilver a diferença entre isto e a simonia que os grandes preladospraticavam, a não ser em termos de quantidade. Quanto àparóquia de Lutterworth, esta lhe tinha sido concedida pelacoroa em gratidão pelos serviços prestados. Nesta época estetipo de corrupção tinha chegado a tal ponto que quem nãoparticipasse dela, pelo menos em pequena medida, dificil-mente poderia ocu par cargos eclesiásticos.

Em 1382, enquanto estava em Lutterworth, Wycliff tevesua primeira embolia. Apesar disto ele continuou escrevendoaté sua morte, em 1384, em conseqüência de outra embolia.Já que faleceu estando em comunhão com a igreja, ele foienterrado em terra consagrada. Anos depois, porém, quando oconcílio de Constança o condenou, seus restos foram exumadose queimados, e suas cinzas lançadas no rio Swift.

Suas doutrinasWycliff começou sua carreira teológica como teólogo

conservador. Em uma época em que, como veremos mais adian-te, os teólogos mais modernos começavam a duvidar da síntesemedieval da fé e da razão, Wycliff era, e continuou sendo du-rante toda a sua vida, um adepto firme desta síntese. Na suaopinião tanto a razão como a revelação nos dão a conhecera verdade de Deus, sem que haja tensão entre as duas. E a razãoé capaz de demonstrar a doutrina da Trindade e a necessidadeda encarnação. A medida que suas opiniões iam ficando maisradicais, Wycliff foi reafirmando cada vez mais esta relaçãoentre as duas maneiras de adquirir conhecimento, e por istosua oposição às doutrinas geralmente aceitas se baseava tantoem que se opunham à Bíblia como em argumentos racionais.

Durante os primeiros anos de controvérsias, já que eleestava envolvido com a questão da autoridade do papa paraimpor tributos ao clero inglês, seu principal tema teológicofoi a questão do "senhorio". Em que consiste o senhoriolegCtimo? Quais são suas origens? Como é reconhecido? Emresposta a estas perguntas Vv'ycliff declara que não há outro

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senhorio além do de Deus. Qualquer pessoa tem domínio ousenhorio sobre outra somente porque Deus lho concede. Masexiste também um senhorio falso e ilegal, puramente humano.Este é uma usurpação, em vez de ser senhorio verdadeiro. ABíblia nos fornece um critério claro para distinguirmos entreos dois: Jesus Cristo, a quem pertence todo domínio, não veiopara ser servido, mas para servir. Da mesma forma somente élegítimo o senhorio humano que se dedica a servir, e não a serservido. Aquele que procura o seu próprio bem e não serviraos seus governados é tirania e usurpação. As autoridades ecle-siásticas, portanto, o papado em particular, se se empenham emimpor impostos para proveito próprio, e não para servir aosque lhes estão subordinados, são ilegítimas.

Também é usurpação exigir poder sobre uma esfera maisampla do que a que Deus nos conferiu. Por isto, se o papa querextender sua autoridade além dos limites do espiritual, e aplicá-la em questões temporais, esta pretensão já faz dele um tiranoe usurpador.

Naturalmente estas doutrinas foram recebidas com apro-vação pelo poder temporal, que estava às voltas com umaamarga polêmica com o papa. Mas assim que os poderosos com-preenderam as últimas conseqüências dos ensinos de Wycliff,eles começaram a abandoná-lo. E de fato os argumentos deWycliff contra o papado também podiam ser aplicados aopoder temporal. Também este deveria ser medido pelo grauem que servia aos seus súditos. E também este se conteriaem usurpador se tentasse extender sua autoridade para o campoespiritual.Por isto não devemos nos admirar de que no fim da sua vidaWycliff estava totalmente abandonado pelos poderosos queantes tinham se alegrado com seus argumentos. A desculpaque eles deram foi que Wycliff se tornara herege. E não hádúvidas de que o mestre de Oxford se opunha a algumas doutri-nas comumente aceitas na época. Mas também não há dúvidasde que os nobres receberam com ai (vio a oportunidade queWycliff lhes dava de desculparem sua infidelidade. Isto ficouclaramente visível depois da revolta dos camponeses que ocor-reu em 1381. Apesar de Wycliff não ter tomado parte da re-volta, nem sequer a incentivando, não faltaram os que viram

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nas exiqências dos camponeses a relação com muitas coisasque ele tinha dito.

Com o passar dos anos, Wycliff foi dando cada vez maisênfase na autoridade das Escrituras, em detrimento da do papae da tradição eclesiástica. Ele concordava com o que Tertulianotinha escrito, de que as Escrituras pertencem à igreja, e poristo devem ser interpretadas dentro dela e por ela. Mas nãoconcordava que a igreja era a hierarquia eclesiástica. Acom-panhando Agostinho, e se baseando em textos do apóstoloPaulo, ele chegou à conclusão de que a igreja era o conjuntode predestinados. A verdadeira igreja é invisível, pois na visívele institucional há perdidos ao lado dos que foram predestinadospara a salvação. Isto está claro, porque apesar de ser impossívelsaber com certeza absoluta quem pertence a cada grupo, háindícios que podemos seguir, como a obediência à vontade deDeus. Com base nestes ind ícios podemos dizer com certezaque há muitos perdidos na hierarquia da igreja, que não fazemparte da verdadeira igreja, e a quem, portanto, as Escriturasnão pertencem. Até o fim de seus dias Wycliff afirmou que opapa era um destes perdidos, e chegou a chamá-lo de anticristo.

Se a verdadeira igreja é composta de predestinados, e nãode poderosos eclesiásticos, e se as Escrituras pertencem a estaigreja, conclui-se que é necessário traduzir a Bíblia ao verná-culo, à l ínqua comum do povo, devolvendo-a assim a este.Foi por inspiração de Wycliff que a Bíblia foi traduzida parao inglês, depois de sua morte. E foi também pela mesma inspi-ração que em pouco tempo o país se viu invadido pelos "prega-dores pobres", ou lolardos, de quem falaremos na próximasecção.

O ponto em que os ensinos de Wycliff deram a seus ini-migos a oportunidade de declará-lo herege, porém, foi sua dou-trina sobre a presença de Deus na comunhão. Como já falamos,através dos séculos a ceia tinha sido o culto cristão por exce-lência, desde o início. Pouco a pouco ela foi adquirindo umsentido mágico, que no começo não tinha. No sentimento reli-gioso popular surgiu a idéia de que o pão e o vinho se trans-formavam literalmente no corpo e no sangue de Cristo. Fala-mos desta controvérsia no volume III, quando tratamos daépoca carol íngia. Naquela época as superstições populares

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Niio há provas conclusivas de qUt1 Wycliff tenhs envisdo pessos/menteos "pregadores pobres", como está representado squi, mas não restamdúvidas de que eles foram ínspírsdos por e/e.

foram refutadas pelos melhores eruditos. Mas apesar distoelas continuaram se espalhando, e no século XIII o quartoconcflio de Latrão promulgou a doutrina da transubstanciação,de acordo com o qual desaparece a substância do pão, quandoé celebrada a ceia, e o corpo de Cristo ocupa seu lugar, apesarde continuar com a aparência de pão - tamanho, cor, sabor,etc. A mesma coisa era dita do vinho e do sangue do Senhor.

Wycliff rejeitou esta doutrina, não porque quisesse dimi-nuir a importância da ceia, nem porque não cresse que houvessenela um verdadeiro milagre, mas porque ela lhe pareceu contra-dizer a doutrina cristã da encarnação. Quando o Verbo se en-carnou, ele se uniu a um homem. Esta união não destruiu ahumanidade de Jesus Cristo. Afirmar o contrário seria cairem docetismo. De igual modo ocorre na ceia que o corpode Cristo se une ao pão, sem que este deixe de ser o que eraanteriormente. O corpo de Cristo está verdadeiramente pre-

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sente, de um modo "sacramental" e "misterioso"; mas o pãotambém está presente. Sobre se o corpo do Senhor está tam-bém presente para os que participam da ceia sem ter fé, ouse, pelo contrário, esta presença depende da fé, Wycliff nãose pronunciou com clareza. Como veremos mais adiante, noque se refere à maneira com que Cristo está presente na co-munhão, as opiniões de Wycliff se assemelham muito às quemanteria mais tarde Martinho Lutero.

Os lolardosAs doutrinas de Wycliff tiveram sua expressão no movi-

mento dos "Iolardos" - termo pejorativo que seus inimigosaplicavam para eles, e que se deriva de uma palavra holandesaque quer dizer "murmuradores". Não há provas conclusivasde que o próprio Wycliff os tenha encaminhado à pregação.Mas de qualquer forma vários dos seus discípulos se dedicarama divulgar suas doutrinas entre o povo, ainda em vida do mestrede Oxford. No começo, os principais lolardos eram pessoasque tinham estudado em Oxford, com Wycliff. Por causa distosua pregação naturalmente estaria dirigida mais para a aristo-cracia do que para as classes populares. Parte da obra destesprimeiros lolardos consistiu em traduzir as Escrituras para oinglês, como \fIJycliff tinha recomendado, e em percorrer o país,pregando. Mas em 1382 o arcebispo Guilherme Courtenayconseguiu que a universidade de Oxford condenasse o lolar-dismo, e a partir de então diversos dos primeiros membrosdo movimento o abandonaram. Alguns deles chegaram a per-segui-lo. O resultado foi que o lolardismo, em suas origensum movimento acadêmico, se tornou cada vez mais popular.Apesar de contar ainda com adeptos entre a nobreza e o clero,a maior parte dos seus seguidores pertencia às classes menosletradas.

As doutrinas do lolardismo eram claras, taxativas e revo-lucionárias. A B(blia deveria s I colocada à disposição do povono vernáculo. As distincõcs - nrn o cloro e os leigos, com baseno rito de ordenação, (r lIil c(JlII.t1l i;_ISàs Escrituras. A prin-cipal função dos minis u o-, de I)e II!: deveria ser pregar, e elesdeveriam estar proibiclo., do ()('IIi' II Cdruos públicos, pois "nin-

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guém pode servir a dois senhores". Além disto o celibato desacerdotes, monges e monjas era uma abominação que produziaimoralidade, aberrações sexuais, abortos e infanticídios. O cultoàs imagens, as peregrinações, as orações em favor dos mortose a doutrina da transubstanciação eram pura magia e supers-tição. Mais tarde, à medida que o movimento se distanciavadas suas raízes acadêmicas, e havia nele menos pessoas capazesde orientá-lo através de estudos bíblicos e teológicos, começa-ram a surgir dentro dele grupos cujas teorias eram cada vezmais estranhas.

A perseguição não tardou. Os lolardos que ainda haviaentre os nobres tentaram fazer com que o Parlamento mudasseas leis com respeito à heresia, mas não o conseguiram, e a maio-ria deles mais tarde se retratou e voltou ao seio da igreja oficial.Poucos ficaram firmes, e em 1413 e 1414 Sir John Oldcastledirigiu um movimento rebelde fracassado. Três anos depoisOldcastle foi capturado e executado. A partir de então o lolar-dismo desapareceu quase completamente entre as classes letra-

Muitos toterdos morreram COnJO marttres.

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das, mas continuou se espalhando entre os simples. Isto o tor-nou ainda mais radical. Quando em 1431 foi descoberta umanova conspiração lolarda, seu propósito não era somente refor-mar a igreja, mas também derrubar o governo.

Apesar de serem perseguidos constantemente, os lolardosnunca foram totalmente extintos. Em princípios do século XVIo movimento recobrou forças, e o número de mártires execu-tados por defender suas doutrinas aumentou consideravelmente.Mais tarde, o remanescente lolardo, que deve ter sido conside-rável, se misturou com os primeiros protestantes. Por isto,apesar de os sonhos de Wycliff e de seus primeiros seguidoresserem temporariamente frustrados, a longo prazo eles se concre-tizaram na grande Reforma que comoveu a Inglaterra e toda aEuropa no século XVI.

Mas bem antes da Reforma, os ensinos de Wycliff tiveramum eco na distante Boêmia.

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VIJoão Huss

Por isto, nem o papa é a cabeça,nem são os cardeais o corpo da

igreja santa, católica e universal.Porque somente Cristo é a cabeça,

e seus predestinados o corpo, ecada um membro deste corpo.

João Huss

Enquanto Wycliff enfrentava as autoridades eclesiásticasna Inglaterra, na distante Boêmia estava se formando um movi-mento reformador muito semelhante ao que ele propunha.A Boêmia, parte do que atualmente é a Checoslováquia, estavaestreitamente ligada ao Império Alemão. Em 1346 o imperadorCarlos IV tinha herdado o trono da Boêmia, e a partir de entãoas relações entre os dois pa(ses tinham sido muito estreitas.Na Boêmia, assim como no restante da Europa, uma reformaeclesiástica era muito necessária, lois a simonia, a pompa dosprelados e a corrupção moral eram comuns. Calcula-se queaproximadamente a metade do terri tório nacional estava empoder da igreja, enquanto (J corou possu (a u.ma sexta parte. Poristo não devemos nos surpu I tldl r que muitos reis boêmiostentaram limitar o pod r ti" Itll I u(I'Ii:1 eclesiástica, e por istoapoiaram o rnovirnent n IUil1' '.111. IVldS também é certo quemuitos destes reis f rrml II '()ItII,I(I\),()~; sinceros, cujas açõesforam motivadas por um 111111(tlU II! ',I 10 ele corrigir os abusosque existiam na igreja.

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o movimento reformador boêmio parece ter iniciado naépoca de Carlos IV, e por iniciativa sua, pois o primeiro grandepregador do movimento foi Conrado de Waldhausen, que opróprio rei trouxera ao pafs, Conrado logo teve um númeroconsiderável de discfpulos, e é possível traçar uma linha de suces-são ininterrupta entre ele e o mais famoso dos reformadores boê-mios, João Huss. Por esta razão, apesar de ser verdade queas idéias de Wycliff encontraram eco nasde Huss, isto não deveser exagerado a ponto de fazer do reformador boêmio ummero discípulo do inglês.

A situação pol (tica também era importante para compreen-dermos as origens da reforma hussita. Em 1363 Venceslau IVtinha sido coroado rei da Boêmia, ainda em vida de seu paiCarlos IV. Em 1378, quando este morreu, ele o sucedeu tam-bém no trono como imperador da Alemanha. No princípioseu governo nos dois pafses foi eficiente. l\I!aspaulatinamenteele foi deixando de se interessar pelo Império, que finalmentese rebelou em 1400, e o depôs. Onze anos mais tarde Sigismun-do, irmão de Venceslau, foi feito imperador pelos alemães

A ciaede da Prafla no século XV, da acordo com a Crónica da Nurambarfl.

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rebeldes. Como Venceslau ainda se considerava o único impe-rador legrtimo, as relações entre os dois irmãos não eram boas.lVlasfato é que também na Boêmia Venceslau tinha se retiradodos assuntos pol (ticos, deixando o governo nas mãos dos seusfavoritos, e se dedicando demais ao vinho, de forma que emprincípios do século XV o pafs parecia estar à beira da anarquia.

Outro fator pol rtico importante era a tensão entre osboêmios ou checos e os alemães. Estes últimos, apesar de seremuma minoria relativamente pequena, tinham muito poder. Nauniversidade de Praga, por exemplo, sem serem a maioria,eles tinham três votos, e os checos somente um. O sentimentonacionalista boêmio aumentava cada vez mais, e foi um dosfatores importantes no curso posterior da reforma hussita.

Dentro deste contexto de corrupção eclesiástica, mau go-verno e nacionalismo apareceu a figura notável de João Huss.

Vida e obra de João Huss

João Huss nasceu por volta de 1370 de uma famflia cam-ponesa que vivia na pequena aldeia de Hussinek, e ingressouna universidade de Praga quando tinha uns dezessete anos. Apartir de então toda sua vida transcorreu na capital de seu pafs,excetuados seus dois anos de ex fiio e encarceramento em Cons-tança. Em 1402 ele foi nomeado reitor e pregador da capelade Belém. Ali ele pregou com dedicação a reforma que tantosoutros checos propugnavam desde tempos de Carlos IV. Suaeloqüência e fervor eram tamanhos que aquela capela em poucotempo se transformou no centro do movimento reformador.Venceslau e sua esposa Sofia o escolheram por seu confessor,e lhe deram seu apoio. Alguns dos membros mais destacadosda hierarquia começaram a encará-lo com receio, Mas boaparte do povo e da nobreza parecia segui-lo, e o apoio dos reisainda era suficientemente importante para que os preladosnão se atrevessem a tomar medidas contra o pregador entusias-mado.

No mesmo n [uc passou a ocupar o púlpito de Belém,Huss foi feito reitor du universidade, de modo que se encon-trava em ótima posiçf para impulsionar a reforma.

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Ao mesmo tempo que pregava contra os abusos que haviana igreja Huss continuava sustentando as doutrinas geralmenteaceitas, e nem mesmo seus piores inimigos se atreviam a cen-surar sua vida ou sua ortodoxia. Diferente de Wycliff, João Hussera um homem extremamente gentil, e contava com grandeapoio popular.

O conflito surgiu nos círculos universitários. Pouco antestinham começado a chegar a Praga as obras de Wycliff. Umdisdpulo de João Huss, Jerônimo de Praga, passou algum tem-po na Inglaterra, e trouxe consigo algumas das obras mais radi-cais do reformador inglês. Huss parece ter lido estas obras cominteresse e entusiasmo, pois se tratava de alguém cujas preocupa-ções eram muito semelhantes às dele. Mas Huss nunca se tor-nou um adepto de Wycliff. Os interesses do inglês não eramos mesmos do boêmio, que não se preocupava tanto com asquestões doutrinárias como com uma reforma prática da igreja.Ele particularmente nunca esteve de acordo com o que Wyclifftinha dito sobre a presença de Cristo na ceia, e até o fim conti-nuou defendendo uma posição muito semelhante à que eracomum em seu tempo - a transubstanciação.

Na universidade, entretanto, as obras de V\iycliff eramdiscutidas. Os alemães se opunham a elas por uma longa sériede razões, mas principalmente no que referiam à questão dasidéias universais, que já discutimos anteriormente; Wycliff era"realista", e os alemães seguiam as correntes "nominalistas"do momento. Os alemães tratavam os checos corno um punhadode bárbaros antiquados, que não estavam em dia em questõesfilosóficas e teológicas" e por isto não adotavam o nominalismoque estava na moda. P.gora as obras de V\iycliff vinham emsocorro dos boêrnios, mostrando que na muito prestigiosa uni-versidade de Oxford um famoso mestre tinha defendido o rea-lismo, e isto em data relativamente recente.

Por isto, em sua origem, a disputa teve um caráter alta-mente técnico e filosófico. Mas os alemães, em seu intento deganhar a batalha, tentaram dirigir o debate para as doutrinasmais controvertidas de Wycliff, no propósito de provar queele era herege, e que por isto suas obras deveriam ser proibidas.João Huss e seus companheiros boêmios se deixaram levar poresta pol (tica, e logo se viram na difícil situação de ter de defen-

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der as obras de um autor com cujas idéias eles não estavamcompletamente de acordo. Repetidamente os checos decla-raram que não estavam defendendo as doutrinas de Wycliff,mas seu direito de ler as obras do mestre inglês. I',ias apesardisto os alemães começaram a chamar seus adversários de"wyclifitas".

Sem demora, diversos integrantes da hierarquia que eramalvo dos ataques de Huss e de seus seguidores, e que viam nosensinos de Wycliff uma ameaça séria à sua posição, se reuni-ram ao grupo dos alemães.

Era a época em que, em resultado do concílio de Pisa,havia três papas. Venceslau apoiava o papa pisano, enquantoo arcebispo de Praga e os alemães da universidade apoiavamGregório XII. Venceslau necessitava do apoio da universidadepara sua pol (tica, e já que os checos estavam em maioria nela,o rei simplesmente mudou o sistema de votação, dando trêsvotos aos checos e um aos alemães. Estes, então, abandonarama cidade e foram para Leipzig, onde fundaram uma universi-dade rival, declarando que a de Praga se entregara à heresia"Se bem que isto constituiu um grande trunfo para o movimentohussita, também contribuiu para propagar a idéia de que estemovimento não passava de outra versão do wyclifismo, sendo,portanto, herege.

Mais tarde o arcebispo se submeteu à vontade do rei, ereconheceu o papa pisano. lvlas se vingou de Huss e dos seussolicitando deste papa, Alexandre V, que proibisse a posse dasobras de Wycliff. O papa concordou, e proibiu também as pre-gações fora das catedrais, dos mosteiros ou das igrejas paro-quiais. Como o púlpito de Huss, na capela de Belém, não seenquadrava nestas determinações, o golpe estava claramentedirigido contra ele. A univcrsiclacíc de Praga protestou. I'v~asJoão Huss tinha agora de f,v'r ,I diHcil escolha entre deso-bedecer o papa e deixar do pI f:!Jdf. Com o passar do temposua consciência se irru ôs. r 1(: 'lll)lu ,JÜ púlpito e continuoupregando a tão ansiada r '101111 I. I :,11: loi seu primeiro ato dedesobediência, e a ele 'UUi'dlll '111,11(1',outros. pois quando em1410 foi convocado para 11011111,1'11111 d.1t conta das suas ações,ele se negou a ir, e em ' "',( III' 'li II () ('drd 'ai Colonna o exco-mungou em 1411, em rlOrlle chi pIpi, ptlr não ter acedido à

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convocação papal. Mas apesar disto Huss continuou pregandoem Belém e participando da vida eclesiástica, pois contava como apoio dos reis e de boa parte do pa(s.

Assim Huss chegou a um dos pontos mais revolucionáriosda sua doutrina. Um papa indigno, que se opunha ao bem-estarda igreja, não deve ser obedecido. Huss não estavadizendo queo papa não era leg(timo, pois continuava favorável ao papapisano. Mas mesmo assim o papa não merecia ser obedecido.Até aqui Huss não estava dizendo mais que os lfderes do movi-mento conciliar, na mesma época. A diferença estava em queestes se ocupavam principalmente da questão jur(dica de comodecidir entre vários papas rivais, e buscavam a solução desteproblema nas leis e nas tradições da igreja, enquanto Hussacabara por seguir Wycliff até este ponto, declarando que aautoridade final é a Bfblia, e que um papa que não se confor-me a ela não deve ser obedecido. Mas mesmo assim isto era,com poucas diferenças, o que Guilherme de Occam tinha dito,ao declarar que nem o papa nem o concílio, mas somenteas Escrituras eram infal(veis.

Outro incidente turbou a questão ainda mais. João XXIII,o papa pisano, estava em guerra com Ladislau de Nápoles.Nesta contenda sua única esperança de vitória estava em obtero apoio, tanto militar como econômico, do restante da cristan-dade latina. Para tanto ele declarou que a guerra com Ladislauera uma cruzada, e promulgou a venda de indulgências paracusteá-Ia. Os vendedores chegaram à Boêmia, usando de todotipo de métodos para vender sua mercadoria. Huss, que vinteanos antes tinha comprado uma indulgência, mas que agoramudara de opinião, protestou contra este novo abuso. Emprimeiro lugar uma guerra entre cristãos dificilmente poderiareceber o tftulo de cruzada. E em segundo, somente Deuspode conceder indulgência, e ninguém pode querer vender oque vem unicamente de Deus.

a rei, entretanto, tinha interesse em manter boas rela-ções com João XXIII. Entre outras razões para isto, a questãode se ele ou seu irmão Sigismundo era o imperador leg(timoainda não fora decidida, e era possfvel que, se a autoridadede João XXIII viesse a se impor, 'Seriaele quem teria de decidira questão. Por isto o rei proibiu que a venda de indulgências

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continuasse sendo criticada. Sua proibição, todavia, veio tardedemais. A opinião de João Huss e de seus companheiros já eraconhecida de todos, a ponto de terem surgido passeatas do povo,em protesto contra esta nova maneira de explorar o povo checo.

Enquanto isto João XXIII e Ladislau fizeram as pazes, ea pretensa cruzada foi revogada. Huss, no entanto, para Romaficou sendo o I íder de uma grande heresia, e até chegou-se adizer que todos os boêmios eram hereges. Em 1412 Huss foiexcomungado de novo, por não ter comparecido diante dacorte papal, e foi fixado um prazo curto, para ele se apresentar.Se não o fizesse, Praga ou qualquer outro lugar que lhe desseacolhida estaria sob interdito. Desta forma a suposta heresiade Huss resultaria em preju ízo da cidade.

Por esta razão o reformador checo decidiu abandonar acidade onde tinha passado a maior parte da sua vida, e se refu-giar no sul da Boêmia, onde continuou sua atividade reforma-dora dedicando-se à literatura. Ali ele recebeu a notícia de quefinalmente se reuniria um grande concflio em Constança, e queele estava convidado para lá comparecer e se defender pessoal-mente. Para isto o imperador Sigismundo lhe oferecia um salvo-conduto, que lhe garantia sua segurança pessoal.

Huss diante do concílio

O concílio de Constança prometia ser a aurora de um novodia na vida da igreja. Tinham comparecido a ele os mais distin-tos defensores da reforma através de um concílio, João Gersone Pedro de Ailly. Nele seria decidido de' uma vez por todas quemera o papa legítimo, e seriam tomadas medidas contra a simonia,o pluralismo e tantos outros males. E João Huss estava convi-dado, para apresentar seu caso. Aquela assembléia poderia sero grande púlpito que ele usaria para pregar a reforma. Por istoHuss não poderia deixar de ir.

Mas por outro lado já o fato de ter sido necessário um sal-vo-conduto era um indfcio dos perigos que poderiam estaresperando por ele. Huss sabia que os alemães que tinham setransferido para Leipzig tinham continuado espalhando o rumorde que ele era herege. sabia também que não podia contarcom nenhuma simpatia da parte de João XXIII e da sua cúria.

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Por isto antes de partir ele deixou um documento que deveriaser lido no caso de sua morte. Para medirmos o caráter destehomem, observemos de passagem que este documento erauma confissão em que declarava que um dos seus grandes peca-dos era - que gostava demais de jogar xadrez! Os perigos queo esperavam em Constança eram grandes. Mas sua consciênciao obrigava a ir. E assim partiu o reformador checo, confiadono salvo-conduto imperial e na justiça da sua causa.

João XX III o recebeu com cortesia, mas poucos dias de-pois o chamou para o consistório papal. Huss foi, mesmo insis-tindo em que tinha vindo para expor sua fé diante do concílio,e não do consistório. Ali ele foi formalmente acusado de herege,e ele respondeu que preferia morrer que ser herege, e que oconvencessem de que o era, ele se retrataria. A questão ficoususpensa, mas a partir de então Huss foi tratado como um pri-sioneiro, primeiro em sua casa, depois no palácio do bispo, epor último em uma série de conventos que lhe serviam deprisão.

Quando o imperador, que ainda não tinha chegado emConstança, soube o que tinha acontecido, ficou extremamenteirado, e prometeu fazer respeitar seu salvo-conduto. Mas depoiscomeçou a dar menos ênfase nisto, pois não lhe convinha apa-recer como protetor de hereges. Em vão foram os protestosdo próprio Huss, como o foram os que chegaram de muitosnobres boêmios. Huss possu(a inclusive um certificado do Gran-de Inqu isidor da Boêmia, declarando que ele era inocente dequalquer heresia. Só que para os italianos, alemães e franceses,que eram a imensa maioria no concflio. os boêmios não passa-vam de bárbaros que sabiam pouco de teologia, e cujos pro-nunciamentos não deveriam ser levados a sério.

No dia 5 de junho de 1415 Huss compareceu diante doconcflio, Poucos dias antes João XXIII tinha sido aprisionadoe trazido de volta para Constança, como narramos no cap(tuloIV. Já que isto significava que o papa pisano tinha perdido todoo poder, e já que Huss tivera seus piores conflitos com ele, erade se supor que a situação do reformador melhoraria. Massucedeu o contrário. Quando Huss foi levado para a assembléiaele estava acorrentado, como se tivesse tentado fugir ou se játivesse sido julgado. Foi acusado formalmente de ser herege,

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e de seguir as doutrinas de Wycliff. Huss tentou expor suasopiniões, mas a algazarra foi tamanha que ele não se podia fazerouvir. Por fim foi decidido adiar a questão para o dia 7 domesmo mês.

O processo de Huss durou mais três dias. Repetidamenteele foi acusado de herege. Mas quando foram relacionadas asdoutrinas concretas de que supostamente consistia sua heresia,Huss demonstrou que era perfeitamente ortodoxo. Pedro deAilly assumiu a liderança do julgamento, exigindo que Hussse retratasse das suas heresias. Huss insistia em que nunca tinhacrido nas doutrinas de que exigiam que ele se retratasse, e quepor isto não podia fazer o que de Ailly requeria dele.

Não havia maneira de resolver o conflito. De Ailly queriaque Huss se submetesse ao concüio, cuja autoridade não podiaficar em dúvida. Huss lhe mostrava que o papa que o tinhaacusado de desobediência era o mesmo que o concflio acabarade depor. Mostrar suas contradições a um homem supostamentesábio, tido como homem mais ilustre da época, e isto diantede uma grande assembléia, nem sempre é uma atitude sábia.O rancor do seu juiz aumentava cada vez mais. Outros I(deresdo concflio, entre eles João Gerson, diziam que estava desper-diçando o tempo que deveriam dedicar a questões mais impor-tantes, e que de qualquer forma os hereges não merecem tantaatenção. O imperador se deixou convencer de que ele nãoprecisa guardar sua palavra para com os que não têm fé, eretirou seu salvo-conduto. Quando Huss acabou dizendo queera verdade que ele tinha dito que se não quisesse ter vindopara Constança, nem o imperador nem o rei teriam podidoobrigá-lo, seus acusadores viram nisto a prova de que ele eraum herege obstinado e orgulhoso - apesar de o nobre boêmioJoão de Clum, que o defendeu valentemente até o final, terdeclarado que o que Huss dissera era verdadeiro, e que tantoele como muitos outros mais poderosos do que ele teriamprotegido Huss se este tivesse decidido não ir ao condlio.

O concflio pedia unicamente que Huss se submetesse aele, retratando-se das suas doutrinas. Mas não estava dispostoa escutar nem crer no acusado, quanto a quais eram as doutri-nas que tinham crido e ensinado nu verdade. Uma simplesretratação teria bastado. O cardeal ebarolla preparou um

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documento em que exigia de Huss que se retratasse se seuserros, e aceitasse a autoridade do concflio. O documentoestava cuidadosamente redigido, porque seus ju (zes queriamlhe dar todas as oportunidades para que se retratasse, e assimganhar a disputa, mas o reformador checo sabia que se seretratasse, com isto estaria condenando todos os seus segui-dores, pois se declarasse que suas doutrinas eram aquelas queseus inimigos tinham apresentado, estaria nisto impl (cito queseus companheiros criam nas mesmas coisas, e que portantoeram hereges.

A resposta de Huss foi firme:- Apelo a Jesus Cristo, o único juiz todo-poderoso e total-

mente justo. Em suas mãos eu deponho a minha causa, poisEle há de julgar cada um não com base em testemunhos falsose concflios errados, mas na verdade e na justiça.

Por vários dias o deixaram encarcerado, na esperançade que fraquejasse e se retratasse. Muitos foram lhe pedir queo fizesse, talvez sabendo que sua condenação seria uma manchaindelével para o concflio de Constança. Mas João Huss conti-nuou firme.

Por fim, no dia 6 de julho, ele foi levado para a catedralde Constança. Ali, depois de um sermão sobre a teimosia doshereges, ele foi vestido de sacerdote e recebeu o cálice, somentepara logo em seguida lhe arrebatarem ambos, em sinal de queestava perdendo suas ordens sacerdotais. Depois lhe cortaramo cabelo para estragar a tonsura, fazendo-lhe uma cruz na ca-beça. Por último lhe colocaram na cabeça uma coroa de papeldecorada com diabinhos, e o enviaram para a fogueira. Acaminho do suplfcio, ele teve de passar por uma pira ondeardiam seus livros.

Mais uma vez lhe pediram que se retratasse, e mais umavez ele negou com firmeza. Por fim orou, dizendo: "SenhorJesus, por Ti sofro com paciência esta morte cruel. Rogo-Teque tenhas misericórdia dos meus inimigos." Morreu cantandoos salmos.

Os hussitas

Os verdugos recolheram todas as cinzas e as lançaramno lago, para que não restasse nada do suposto heresiarca.

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A morte de Joio Huss, de acordo com um mertiriotoçto do século XVI.

Mas seus discípulos recolheram a terra em que foi queimado,e a levaram para a Boêmia. Pouco depois Jerônimo de Praga,que tinha decidido se unir a João Huss em Constança, sofreua mesma sorte que seu mestre.

A indignação da Boêmia não teve limites. Tanto os nobrescomo a universidade, a cidade de Praga e o povo se negarama reconhecer a autoridade do concflio de Constança. Os nobrestomaram a iniciativa, e protestaram contra o que fora feitoem Constança, reunidos em uma assembléia onde estavam452 deles, e declararam que não estavam dispostos a obedecera um papa indigno. A resposta do concílio foi uma firme insis-tência de que Huss era herege, ao mesmo tempo que acusava osnobres e Venceslau e sua esposa de serem patrocinadoresda heresia. Em seguida o concílio promulgou uma série dedecretos a que ninguém obedeceu: a universidade de Praga erafechada, os nobres que tinham protestado deveriam comparecerem Constança, e todos os boêmios eram proibidos de ordenarsacerdotes que seguissem as doutrinas de Huss.

Na própria Boêmia havia interesses conflitantes entresi, enquanto concordavam em sua oposição ao concílio de

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Constança. Além dos nobres havia os professores da universi-dade, e alguns pregadores de Praga, que eram os verdadeirosseguidores de Huss. E longe da capital existiam movimentospopulares de origens obscuras, que se opunham à igreja esta-belecida. Destes o principal era o do Monte Tabor. Cs taboritaseram revolucionários apocal (pticos que criam que o fim estavaproxrrno, e que estavam dispostos a contribuir para sua vindausando da espada. Suas doutrinas eram muito mais radicaisque as dos verdadeiros hussitas. Outra comunidade ou frater-nidade semelhante à dos taboritas, mas menos apocal íptica,era a do Monte Horebe.

Os taboritas insistiam em que tudo o que não estivesse naBíblia deveria ser rejeitado. Contra eles os hussitas de Pragadiziam que somente deveria ser rejeitado o que contradissesseos ensinos claros das Escrituras. Por isto os hussitas mantiamboa parte das cerimônias tradicionais, as vestimentas eclesiás-ticas e os ornamentos nas igrejas. Os taboritas rejeitavam tudoisto. Na realidade, como acontece tão freqüentemente nestetipo de confronto, tratava-se de um conflito social. Os taboritas

A comunidade do Monte Tabor.

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eram em sua maior parte pessoas de classe baixa, desprovidasde todo bem-estar ffsico, para as quais os ornamentos e ascerimônias eclesiásticas eram um luxo abominável. Os hussitasna maioria eram nobres e burgueses cujos gostos e formaçãoestavam mais dirigidos para a arte, as letras, a tradição e osornamentos.

Estes diversos grupos lutaram entre si sempre que eraposs(vel. Mas diante da ameaça externa eles foram obrigadosa esquecer as diferenças e se unir contra um inimigo comum.Isto os levou a um acordo de quatro artigos, que a partir deentão seria a base do movimento rebelde boêmio. O primeiroera que fosse pregado livremente por todo o reino da Boêmia aPalavra de Deus. O segundo, que a ceia fosse administrada "nasduas espécies", ou seja, que o cálice fosse devolvido aos leigos.A esta conclusão Huss tinha chegado nos últimos dias da suavida, e que depois passou a ser tema característico dos hussitas.O terceiro, que o clero fosse privado ele suas riquezas, e vivesseem pobreza apostólica. E o quarto, que os pecados públicose maiores fossem castigados, particularmente o pecado da si-monia.

Estes quatro artigos foram apresentados a Sigismundoem um momento diffcil para a Boêmia. Venceslau acabarade falecer, e o herdeiro da coroa era nada menos que seu irmãoSigismundo, o imperador que em Constança tinha trafdo Huss.O pa(s estava dividido, e não estava pronto para se opor à suces-são leg(tima do trono. Mas também não estava disposto acapitular e se entregar nas mãos de Sigismundo sem imporcondições. Estas condições, acrescentadas aos quatro artigos,consistiam em que os alemães não recebessem mais cargospúblicos, e que haveria liberdade de culto.

Sigismundo não podia aceitar estes artigos sem rejeitaro concflio que ele mesmo tinha patrocinado, e sem deixarclaro que a condenação de Huss tinha sido injusta. Por isto,em vez de ceder às condições dos boêrnios, ele decidiu tomaro trono pela força. Para isto ele conseguiu que o papa procla-masse uma grande cruzada contra os hereges hussitas. As tropasde Sigismundo chegaram até Pra!J(J, mas foram ali derrotadaspor um contingente constitu fdo pr mcqialrnente por taboritas,sob o comando de João Zizku. ( sl(: Na membro da nobreza

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A devoluçBo do cálice aos leigos foi um dos temes centrais do mo virrentohusslts.

inferior, que, decepcionado com os hussitas de Praga, se tinhaunido aos taboritas, e os tinha organizado militarmente. Suaprincipal arma de guerra eram os carros dos camponeses, queZizka transformou em fortalezas sobre rodas. Convictos deque o Senhor estava do seu lado, os taboritas cafram sobreos exércitos imperiais e os obrigaram a se retirar. Mais tarde,em outra batalha, acabaram por destruir as forças da supostacruzada.

Estes triunfos aconteceram em 1420. Repetidamenteo papa e o imperador tentaram conquistar a região. Em 1421um exército de cem mil cruzados fugiu das tropas de Zizka,que perdeu o único olho que tinha (era caolho desde sua moci-dade), mas apesar disto não abandonou as tarefas militares.No ano seguinte a terceira cruzada contra os boêmios se desfezantes de encontrar o inimigo. Pouco depois Zizka se separoudos taboritas e se uniu à fraternidade do Monte Horebe, poislhe parecia que os taboritas estavam ficando m (sticos e visio-nários demais. Entre os horebitas ele viveu até sua morte, em

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consequencia da praga, em 1424. Mas apesar de terem perdidoseu grande general os hussitas continuaram triunfando nocampo de batalha. As novas cruzadas de 1427 e 1431 nãotiveram melhor êxito que as anteriores.

J. A. Comento foi um dos mais famososherdeiros da tradição bussite. Emmeio li persefluiçio ele esperallfJque em algum I~ar ttceri« um remanes-cente, que alflum dia voltaria a brotar.

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A última campanha mencionada teve lugar enquantoos hussitas negociavam com o ccncflio de Basiléia. Por fimconvencidos de que tinham cometido um grave erro ao conde-nar João Huss, os conciliaristas convidaram os I(deres hussitasa participar do novo concílio, para ali aplainarem suas dife-renças. Mas os boêmios, vacinados pela experiência de JoãoHuss, exigiam garantias impossíveis de atender. Desesperados,os católicos tentaram uma nova cruzada, e foram derrotadosuma vez mais. Isto os levou a negociar um acordo com oshussitas. A igreja da Boêmia regressou à comunhão romana,apesar de receber permissão para a ceia nas duas espécies, eforam garantidos à Boêmia certos elementos contidos nosquatro artigos. Muitos hussitas concordaram com isto, parti-cularmente os nobres. Foi firmado um acordo, e por fim Si-gismundo pôde ocupar o trono da Boêmia - até que morreu,dezesseis meses depois.

Nem todos os boêmios, todavia, estavam de acordo comeste arranjo. Muitos abandonaram a igreja estabelecida, emais tarde fundaram a Uni tas Fratrum - unidade dos irmãos.Esta organização chegou a ser numerosíssima, não somentena Boêmia, mas também na Morávia. Durante a reforma doséculo XVI eles estabeleceram estreitas relações com o protes-tantismo, e por algum tempo pensou-se que eles se juntariamaos luteranos. Pouco depois os imperadores da casa da Austria,que davam todo seu apoio ao catolicismo, começaram a perse-gui-los. A organização foi praticamente destru (da. Mas o bispoJoão Amós Comênio, do exílio, continuava animando-os eintercedendo por eles. Nesta atividade ele alcançou fama deser um homem santo, sábio e grande reformador da educação.

O sonho de Comênio era que algum dia, depois da perse-guição, surgisse em algum lugar um rebento da planta que aviolência tinha cortado. E seu sonho não foi frustrado; maisadiante nesta história voltaremos a nos encontrar com o rema-nescente da Unitas Fratrum, com o nome de "morávios".

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VIIOs movimentos

populares

Os bispos, príncipes, condes ecavaleiros deveriam ter permissão

para possuir somente tanto quantoo povo em geral. Virá o dia em

que também eles terão de ganhara vida trabalhando.

Hans Bôhm

Nos últimos três capítulos, e em diversos dos que seguirãoe este, dedicamos nossa atenção a movimentos reformadores cu-ja origem foi principalmente acadêmica. Os conciliaristas na uni-versidade de Paris, Wycliff na de Oxford, e Huss na de Praga, fo-ram todos respeitados em sua época por seus conhecimentos.Mesmo sendo acusados de hereges e sediciosos, ninguém seatrevia a dizer que seus erros provinham da ignorância.

Ao lermos os anais da época, no entanto, nos assalta asuspeita de que estes movimentos reformadores entre pessoaseruditas eram somente uma parte muito pequena do bulirreligioso, que fervia principalmente no povo pobre e iletrado.Não devemos esquecer, por exemplo, que tanto o movimentode Wycliff como o de Huss mais tarde não tiveram sua expressãomais permanente nas universidades, mas entre o povo. Semos lolardos ou os taboritas, os dois movimentos teriam ficadoesquecidos em documentos antigos. E também é muito impro-vável que Wycliff e os seus pudr ssorn convencer os que seguiramsuas idéias entre as classes b IÍx IS, s neste povo já não existisse

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antes um fervor que encontrou sua expressão nas doutrinasque vinham de Oxford. O mesmo podemos dizer, talvez commais justeza, dos taboritas da Boêmia, que vieram a ser osdefensores mais decididos do movimento hussita, mas prova-velmente não derivavam a maior parte das suas doutrinasdo reformador de Praga, mas de idéias que circulavam entreo povo.

Por quê, então, os livros de história dão tanta atençãoao movimento conciliar, a Wycliff e a Huss, e tão pouca aestes outros movimentos populares? Simplesmente porqueas informações sobre estes últimos são muit(ssimo escassas,e pouco confiáveis. Sobre o movimento conciliar, por exemplo,temos as obras dos seus principais I(deres, bem como as atasdos concílios e as crônicas da época. Apesar de muitas destasfontes terem coloração partidária, sua abundância permiteque as comparemos, para assim tentar equilibrar nosso julga-mento. Mas no caso dos movimentos populares a situação ébem diferente. Seus segu idores eram quase totalmente pessoassem instrução, que ou não sabiam escrever, ou não sentiam odesejo de deixar registros para a posteridade. Muitos destesmovimentos eram de caráter apocal (ptico, e os que deles faziamparte criam que o fim estava próximo, e por isto não viamrazão alguma para narrar sua história, ou para pôr seus ensinosno papel. ~ bem possfvel que, se tivessem a intenção de fazê-lonão o teriam conseguido, pois tratava-se de correntes deentusiasmo, que apareciam de repente em algum lugar, paralogo depois desaparecer, continuar correndo sob a superf(cie,e irromper novamente em outra época e outro lugar. Os pró-prios integrantes dos movimentos desconheciam sua história.

Quanto aos testemunhos dos seus inimigos, sua veracidadeé muito duvidosa. Nesta época fazia-se uma série de acusaçõescontra qualquer movimento que parecesse ser sedicioso ou he-rético. Dizia-se que os I(deres destes movimentos eram pessoasque utilizavam o entusiasmo religioso para soltar as rédeasda imoralidade e do roubo, odiavam os sacerdotes e toda ahierarquia da igreja, profanavam o sacramento do altar, criamque o fim do mundo estava próximo, diziam ter recebidouma nova revelação de Deus, ou que o Espfrito Santo se tinhaencarnado nelas, etc. ~ bem possfvel, e até provável, que em

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alguns casos parte disto tenha sido verdadeiro. Mas o fatode as mesmas acusações terem sido feitas contra movimentosclaramente diferentes nos faz suspeitar que freqüentementeeram falsas.

Por estas razões a história dos movimentos religiosospopulares do fim da Idade Média ainda está por ser escrita.Não é possfvel saber com exatidão como este grupo se relacio-nava com aquele, nem a origem dos seus nomes, nem sequero que muitos destes nomes significavam. Por isto não podemosnarrar aqui a história destes movimentos. Podemos, isto sim,assinalar suas caracterfstlcas comuns, e o que significavampara a história do cristianismo.

Desde os tempos de Constantino o problema dos bense da pobreza tinha sido uma preocupação quase que constantedos cristãos. Quando o Império Romano se tornou cristão,e a igreja ficou cheia de luxo e pompa, o monaquismo surgiucomo movimento de protesto. Quando, nos séculos XII e XIII,a economia monetária começou a mudar a paz social da Europa,houve novos sinais de inconformismo. O mais notável foi ofranciscanismo, cujo fervor varreu toda a Europa ocidental.Mas tanto na época de Constantino como no século XIII aigreja soube assimilar estes movimentos, dar-lhes um lugarna estrutura eclesiástica, e mais tarde transformá-los em instru-mentos dóceis nas mãos da hierarquia .

.Na época que estamos estudando, a igreja tinha perdidoesta flexibilidade. Já no século XLII houve quem temesse quesurgissem mais movimentos como o franciscanismo, prevendoque a igreja não poderia controlá-los. Por isto em 1215 oquarto concflio de Latrão proibiu a fundação de novas ordens.Agora, nos séculos XIV e XV, a tendência que se manifestaraem 1215 chegou ao seu ponto culminante. A hierarquia sentiaseu poder ameaçado pelo fervor dos novos movimentos depobreza. A pobreza franciscana tinha sido reinterpretada demodo, que não requeria a pobreza da ordem em si, mas somentedos seus membros como indiv(duos. Como ordens, tantoa de São Francisco como a de São Domingos se tornaram ricase poderosas. Os prelados, agora senhores poderosos, e os frades,cujo espfrito de crítica profética tinha sido esquecido, viamnos novos movimentos que exaltavam a pobreza uma censura

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A igreja e a fé eram representadascomo uma grande fortaleza, protegidapelos prelados e por alguns frades eruditos, enqoento o povo Ignorantee fBmitico tentallB miná-la.

a eles. Por isto tinham a tendência de rotulá-los de heréticose corruptos.

A questão da pobreza tinha duas origens. De um ladoestavam pessoas relativamente conscienciosas, que abraçavamuma pobreza voluntária, por motivos de renúncia. Este tinhasido o caso, no século XIII, de São Francisco de Assis. Duranteos séculos que estamos estudando - o XIV e o XV - continua-

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ram existindo pessoas da mesma origem social, que se sentiamimpelidas por motivos semelhantes. Mas já que o franciscanismoe outras ordens parecidas tinham abandonado seu espíritoinicial, estas pessoas se viam obrigadas a procurar maneiraspróprias de expressar e viver o que pensavam ser sua vocaçãode pobreza voluntária, e por isto criavam grupos ou movimentosque não eram bem vistos pela hierarquia da igreja. Outrasse juntavam a movimentos que existiam entre as classes humil-des, porque parecia-lhes que ali seria mais fácil cumprir oideal evangélico da pobreza que São Francisco e tantos outrosantes dele tinham pregado.

Bem - e agora chegamos à outra origem da questão - sea pobreza voluntária é uma virtude, a involuntária, que é resul-tado não de uma decisão própria, mas das condições sociais,também não o seria? Nas Escrituras há numerosas indicaçõesde que Deus julga a favor dos pobres e contra os ricos queos oprimem. Por diversos meios esta idéia central da Bíbliachegava aos marginalizados. Um destes meios provavelmenteeram pessoas de posição social melhor, que voluntariamentecompartilhavam da sorte dos pobres, mas cujo nível de instru-ção lhes permitia apelar para as Escrituras para defender o valorda pobreza, e cujos argumentos e ensinos os marginalizadosescutavam. Outro meio eram as muitas histórias de mártirese milagres que circulavam entre o povo. Nestas freqüentementehavia um confronto entre um senhor poderoso e uma pessoaoprimida, e não havia dúvida de que Deus estava do lado destaúltima.

Por todas estas razões, e porque os tempos economica-mente eram maus, surgiu rapidamente uma multidão de movi-mentos que se confundiam entre si. Alguns procuravam somenteuma oportunidade para praticar a pobreza voluntária. Outrosviam nos males da época um sinal dos tempos apocal (pticos.O anticristo viria em breve, ou já estava no mundo. Era neces-sário arrepender-se, castigar o corpo, para assim se salvar domal que viria sem demora. Outros, enfim, passaram do arre-pendimento à ação. Os últimos tempos, que se aproximavam,deveriam ser marcados pela fidelidade ao evangelho e pelajustiça. Nesta hora a tarefa do cristão consistia em empunharas armas e marchar em direção ao Reino de Deus, contra os

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que falsificavam a verdade evangélica, ou contra os que des-tru (am a justiça oprimindo os pobres.

Já que aqui é imposs(vel narrar a história de toda estaagitação, iremos nos limitar a dar uma idéia superficial deum movimento cujo ponto central foi a pobreza voluntária - odas beguinas e dos begardos - de outro cuja caracterfsticafoi a penitência extrema - os flagelantes - de um terceiro quetentou estabelecer a verdade evangélica mediante a força dasarmas - os taboritas - e por fim um dos muitos que sonharamcom o Reino da justiça - o de Hans Bohrn,

Beguinas e begardosO monaquismo sempre tinha exercido uma forte atração

sobre as mulheres. No século XIII o despertamento religiosoque deu origem ao franciscanismo se fez sentir também entreelas. rl:iuitas se uniram aos ramos femininos dos franciscanose dos dominicanos. Outras engrossaram as fileiras das ordensmais antigas. Mas em pouco tempo seu número era tão grandeque os homens começaram a se queixar, e a limitar o númerode mulheres que estavam dispostos a aceitar no ramo femininodas suas ordens. É muito provável que em parte este impulsoentre as mulheres foi motivado pelo fato de a vida monásticaser o único meio ern que elas, mesmo as mais ricas, podiamescapar de uma vida completamente dirigida pelos desejose decisões dos outros - pais, irmãos, esposos e filhos.

Seja como for, os conventos tradicionais em pouco temponão tinham mais espaço para todas as candidatas, e um grandenúmero de mulheres passou a se reunir em pequenos gruposque viviam juntos e levavam uma vida de oração, devoçãoe relativa pobreza. Estas passaram a ser chamadas de "begui-nas", e as casas em que viviam de "beguinagens". A origemdeste nome é obscura, mas tudo parece indicar que ele eradepreciativo, pois era usado freqüentemente como sinônimode "herege" ou de "albigense". Isto é um ind feio de comoo restante da sociedade as considerava, e também a maiorparte da hierarquia eclesiástica. Alguns bispos apoiaram omovimento, mas outros o proibiram em suas dioceses. Emfins do século XIII começou a haver legislação contra este

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Na cidade de Bruxelas, na Bélgica, ainda existe este antigo beguinagem.Foto deJM.

tipo de vida, que ameaçava a estrutura da igreja porque nãoconstitu (a uma ordem oficialmente estabelecida, e tambémnão seguia o tipo de vida do restante dos leigos.

Na mesma época o movimento começou a assumir colo-ração um pouco diferente. No começo muitos beguinagensaceitavam somente mulheres que tivessem meios para suprirsua própria subsistência. Mas depois começaram a ingres$<Jrneles outras de origem mais simples, cuja pobreza não .rntotalmente voluntária, mas mais real que a das primoir I".

Sem demora os beguinagens começaram a ser acusados Utcentro de ociosidade, onde se refugiavam mulheres que nfloqueriam assumir as responsabilidades da sociedade. Com ad .•vez mais insistência os bispos começaram a lhes antepor OUS

táculos. Como conseqüência as beguinas se afastaram cada vezmais da igreja hierárquica, e algumas chegaram a abraçar doutri-nas supostamente ou realmente erradas. Em alguns poucoslugares, particularmente nos Países Baixos, elas conseguiramsobreviver até tempos recentes. Mas em muitos outros elasforam proibidas. ou se juntaram a movimentos mais radicais.

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Em menor número e em data um pouco posterior oshomens seguiram o mesmo caminho das mulheres. Estes rece-beram o nome de "begardos", e também foram acusados maistarde de heresia, e destru (dos.

Os flagelantes

Os flagelantes apareceram pela primeira vez em 1260,mas tiveram uma expansão súbita no século XIV. Eles erampessoas que castigavam seus próprios corpos com chicotes, empenitência por seus pecados. Isto não era novidade, pois diversosgrandes mestres do monaquismo o tinham praticado. Mas atéentão isto sempre ocorrera dentro do âmbito da vida monástica,e quase sempre tinha sido regulamentado pelas autoridades.Agora passou a ser um movimento popular. Convictos deque o fim do mundo se aproximava, ou de que Deus o des-truiria se a humanidade não desse mostras convincentes dearrependimento, centenas e milhares de cristãos começarama se chicotear a ponto de fazer correr sangue.

Não se tratava, ao contrário do que poder(amos supor,de um movimento histérico momentâneo e desordenado,mas de uma disciplina regida e às vezes até mesmo ritualista.Alguém que quisesse se juntar ao movimento tinha de se com-prometer a segui-lo durante trinta e três dias e meio. Duranteeste tempo tinha de obedecer totalmente aos seus superiores.Depois, mesmo voltando para casa, o flagelante ficava com-prometido a se chicotear todos os anos na Sexta-feira Santa.

Durante os trinta e três dias da sua obediência o flagelantese unia a um grupo que seguia diariamente um ritual prescrito.Iam em procissão até a igreja, marchando de dois em dois ecantando hinos. Depois de rezar à Virgem na igreja se dirigiampara uma praça pública, sempre entoando hinos. Ali desnu-davam as costas e formavam um grande círculo. Depois dese prostarem em oração, ficavam de joelhos e, ao mesmo tempoque continuavam cantando, se flagelavam até sangrar. Outras ve-zes, enquanto se chicoteavam, um dos Iíderes pregava, geral-mente sobre os sofrimentos de Cristo. Depois se levantavam, co-briam novamente suas costas, e voltavam marchando em procis-são. Faziam isto duas vezes por dia, além de outra flaqelação-individual, à noite.

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Chicatllallllm-611 até correr SIIngUII. Assim os represent« lista gravura daépoca.

Apesar de serem acusados de gente desordenada, a verdadeé que os flagelantes tinham uma disciplina regida. A princfpioa hierarquia não os viu com maus olhos, mas pouco a poucosua atitude foi mudando. A causa disto foi principalmenteque aparentemente os flagelantes ofereciam um caminhode salvação dissociado dos sacramentos da igreja. Se sua flage-lação constituía uma penitência, como eles diziam, isto impli-cava em que era poss(vel uma penitência válida à parte daconfissão ao sacerdote. Além disto ul(JlIrlS começaram a sereferir à flagelação como um "segundo b.uisrno", imitandoo que tinha sido dito muitos séculos 11111', do martírio. Emconseqüência diversos prelados os ÚCllhllt 1111 do querer usurpar"o poder das chaves" que tinha sidu ti 1<10 I Pedro e a seussucessores. A isto foram acresccnuuhu 111111"', icusacões. Vestirum hábito especial sem ter peru: !ol, II II II ol 1',10 era um ato

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de desobediência. Quando suas reuruoes foram proibidas,os que continuaram se reunindo foram acusados de participarde reuniões ilIcitas. Em vários países eles foram perseguidos.!'v'ais tarde deixaram de praticar sua flagelação em público.Mas parece que o movimento continuou de maneira clandes-tina por várias gerações.

Os taboritas

Quando estudamos os hussitas tivemos oportunidadede nos referirmos aos taboritas. Seu cantata com os hussitasde Praga, e a necessidade de formar uma frente unida contraas repetidas cruzadas que foram lançadas contra a Boêmia,levaram os taboritas a abrandar algumas das suas doutrinasoriginais. Ao que parece estas doutrinas se baseavam no começoem um milenarismo exagerado. O fim estava às portas. EntãoJesus Cristo castigaria os ímpios, e exaltaria os eleitos. Nosúltimos dias, à espera do fim, era tarefa destes eleitos empunhara espada e preparar o caminho do Senhor. Não havia motivopara ter misericórdia daqueles que de qualquer forma o JuizSupremo iria condenar ao fogo eterno. Por isto todos os queagora se opunham à vontade de Deus deveriam ser destru ídospelas mil (cias cristãs. Quando chegasse a hora final Deus restau-raria o para (so. Quando alguns dos taboritas, os adamitas,levaram estas doutrinas ao extremo de andarem nus, imitandoAdão e Eva no paraíso, e se dedicaram a uma vida licenciosa,afirmando que não poderiam ser condenados porque já faziamparte dos eleitos, o restante dos taboritas se voltou contraeles e os passou ao fio da espada.

O estudioso moderno pode descobrir em todo este movi-mento as conseqüências de um profundo sentimento de opres-são social, mas os taboritas não viam o Reino vindouro nestestermos, em primeiro lugar. Não se tratava tanto da vitória dosoprimidos sobre os opressores, como do triunfo dos santossobre os pecados. Mas é realidade que quase todos os taboritaspertenciam às classes marginalizadas da Boêmia, e que os"pecadores" que eles condenavam eram os ricos e poderosos,primeiro na Boêmia, e depois da condenação de Huss de todaa Europa.

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Outro fato significativo é que a expectação escatológicalevou os taboritas a tomar atitudes concretas, e contribuiupara seus repetidos triunfes sobre os invasores alemães. Éimportante mencionar isto, porque freqüentemente se diz queesta expectação leva as pessoas ao conformismo, quando naverdade a história nos relata diversos casos que provam ocontrário. Na realidade muita coisa depende do conteúdoconcreto desta expectativa, e da maneira em que ela se rela-ciona com o presente.

Hens Bohm

Era a quaresma de 1476. As colheitas tinham sido fracasno sul da Alemanha. Na diocese de Wurzburg o bispo, que eratambém senhor da comarca, impunha impostos cada vez maispesados. Na pequena aldeia de Nicklashausen havia uma imagem

A exptlctBtíV8 escstológícs erB urna das coro tnroucos n a!s cumuns destesmo vimentos populares. Aqui vemos o sntl rlsto , fll aludo pelos demânlos,BnqUBnto um anjo tenta derrubá-lo.

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da Virgem que passara a ser alvo de peregrinação, pois dizia-seque ela tinha poderes milagrosos. Num certo dia do mês demarço o jovem pastor Hans Bohrn se levantou no meio dosperegrinos e começou a pregar. Suas palavras tocavam fundono coração. Sua mensagem, que era necessário se arrepender,encontrou eco naquelas pessoasangustiadas, e em pouco tempocontava-se aos milhares os que acorriam para ouvir o jovemBbhm. Muitos deles permaneciam ali, e os cronistas nos contamque o número dos que se reuniram passou de cinqüenta mil.

Então as mensagens de Bbhm começaram a ser maisradicais. Diante de toda aquela miséria reunida ali, não era diff-cil ver o contraste entre a mensagem cristã e a vida luxuosaque o bispo de Wurzburg levava. Bbhm começou a atacar apompa, a avareza e a corrupção do clero. Depois anunciou queviria o dia em que todos os sereshumanos seriam iguais, e todosteriam de trabalhar. Isto era o que o Senhor prometia. Maistarde Bohm instigou seus seguidores a agirem em antecipaçãoao dia do Senhor, negando-sea pagar qualquer tipo de impostos,d(zimos ou outras obrigações, e marcou um dia em que todosjuntos marchariam para reclamar seusdireitos.

Nunca se soube o que Bôhrn tencionava fazer, pois no diaanterior à data marcada os soldados do bispo se apoderaramdele e dispersaram seus seguidores a tiros de canhão. Poucodepois Bohrn foi queimado como herege. Como aparentementeo fermento da sua pregação continuava, o bispo colocou toda aaldeia sob interdito, e proibiu as peregrinações para lá. Masnem mesmo estas medidas sufocaram as últimas fa(scas domovimento, até que a igreja foi destruída por ordem do arce-bispo de Mainz.

Este episódio é somente um de várias dezenas que pode-damos ter contado. Os últimos anos da Idade Média foramcaracterizados por um grande descontentamento popular, quecombinava causassociais com motivos religiosos. Os oprimidosviam que a vida dos apressores não só era injusta, mas tambémse vestia com um manto de piedade cristã, e inclusive se apoiavana autoridade da igreja. Contra esta situação houve inúmerosmovimentos de protesto, e até rebeliões que só puderam sersufocados mediante a ação militar. Em todos estes casos asautoridades eclesiásticas, que integravam o número dos que se

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beneficiavam com a situação existente, deram todo seu apoioaos poderosos. Em conseqüência disto floresceu o sentimentoanti-cJerical, inspirado no início não por correntes modernasde secularização, mas pelo antiquíssimo sonho de justiça entreos seres humanos.

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VIIIA alternativa

mística

A contemplação é um conhecimentosuperior aos diversos tipos de

conhecimento .... É uma ignorânciailuminada, um belo espelho onde

brilha a eterna luz de Deus.João de Ruysbroeck

Os séculos XIV e XV foram um período de muita atividadereligiosa, mesmo em meio às suas muitas frustrações, e talvezem parte por causa delas. Tanto na Espanha como na Inglaterrae na Itália houve místicos notáveis cujas obras serviram deinspiração para várias gerações. Mas foi na Alemanha, nas mar-gens do Reno em particular, que este movimento floresceue realizou seus maiores feitos.

Durante toda a sua história o cristianismo contou comhomens e mulheres cuja relação com Deus foi tal que receberamo título de "místicos". Nesta história; porém, apareceram doistipos diferentes de misticismo, entre os quais convém fazerdistinção. Um é essencialmente cristocêntrico. Não pretendechegar a Deus através da contemplação direta, ou através de umailuminação divina, mas através de Jesus Cristo. Sua contem-plação tem por alvo os sofrimentos de Jesus, ou sua ressurreiçãoe triunfo final. Exemplos deste tipo de misticismo são o Apoca-lipse, São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis. Ooutro tipo de contemplação se deriva principalmente da tradi-ção neoplatônica. O propósito dos que seguem este caminhoé ascender através da contemplação interna, até chegar à união

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com o Um inefável. Plotino, o grande mestre pagão deste tipode misticismo, dizia que nesta união a alma chegava a um estadode êxtase. Mais tarde alguns dos seus seguidores foram ini-migos encarniçados do cristianismo. Mas outros aceitaramesta fé, e desta forma este segundo tipo de misticismo foiintroduzido na tradição cristã. Através do falso Dion(sio, oAeropagita, Gregório de Nissa, Agostinho e outros, o neopla-tonismo se uniu a tal forma ao cristianismo que muitos che-garam a confundi-los. A parti r de então grande parte dos m Is-ticos cristãos escolheu o segundo caminho, em lugar do cris-tocêntrico. Em alguns casos, como no de Boaventura no sé-culo XIII, os dois elementos se uniram, e este místico dedicabel fssimos escritos à contemplação da paixão de Cristo, eoutros ao processo de subir espiritualmente pelos degrausda hierarquia das coisas criadas, até chegar à contemplaçãoco criador.

a grande mestre cio misticismo alemão foi Eckhart deHochheim, conhecido geralmente como I\~estre Eckhart. Emfins do século XIII, quando tinha uns quarenta anos de idade,Eckhart foi enviado por sua ordem - a de São Domingos - pa-ra a universidade de Paris. Depois de completar ali os seusestudos ele foi nomeado provincial da Saxônia, e mais tardevigário-geral da Boêmia. No exercício destes cargos ele demons-trou que seu misticismo não impedia que ele fosse um adminis-trador prático e eficiente. Durante seus últimos anos coube-lheviver na época do papado de Avignon, e ele sofreu muito comas circunstâncias que a igreja atravessava.

A doutrina m (stica de Eckhart é essencialmente neopla-tônica. Seu ponto de partida é a contemplação da divindade,do Um inefável. Tudo que podemos dizer de Deus é inexato,e por isto, em certo sentido, falso. "Se eu digo: Deus é bom,isto não é verdade. Eu sou bom, Deus não". Uma afirmaçãocomo esta pode ser mal interpretada, e de fato o foi. Natural-mente o que Eckhart queria dizer não era que Deus fossemau, mas que qualquer linguagem que descreve Deus é analó-gica, e por isto inexata. Mas no fim das contas suas palavrasdeixam claro a direção em que ia seu pensamento, cujo pro-pósito era exaltar Deus, mostrando que ele está acima de todoconceito humano, razão pela qual o verdadeiro conhecimento

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de Deus não é racional, mas intuitivo. Não podemos conhecerDeus estudando-o, mas vendo-o em contemplação m (stica.

Em Deus estão desde a eternidade todas as idéias de todasas criaturas. Já antes de criar o mundo Deus, como art(ficesupremo, tinha em sua mente a idéia de cada coisa que iriacriar. Este é outro tema caracter(stico do cristianismo detendência platônica. E com base nisto Eckhart chega a dizer:

Nesta verdadeira essência da divindade, que está alémde todo ser e de toda distinção, eu não existia; desejeiestar ali; conheci-me ali; quis criar ali o homem que sou.Por isto eu sou 'minha própria causa de acordo com meuser, que é eterno, mesmo que não de acordo com minhaorigem, que é temporal.

Esta afirmação, e muitas outras semelhantes, fizeram comque Eckhart fosse .acusadc de ser herege. Dizia-se que eleestava ensinando a eternidade do mundo e das criaturas, econfundia Deus com o mundo de tal forma que incorria empante(smo - a doutrina que as criaturas são parte da divin-dade. Ele era acusado particularmente de ter dito que a alma,ou parte dela, não é criada, mas eterna. Repetidamente Eckhartdeclarou que isto se baseava em interpretações falsas dos seusensinos. A verdade parece ser que ele tentou evitar cair nopante(smo, ou na doutrina da divindade da alma, mas freqüen-temente suas afirmações davam margens a estas interpretações.Até o fim de seus dias ele foi acusado de ser herege, e conde-nado como tal. Sua .apelação tramitava na cúria papal em Romaquando morreu.

Mesmo sendo as acusações feitas contra khart exagerosou interpretações erradas dos seus ensinos, não resta dúvidade que o misticismo deste mestre alemão ru bum di] rentedo misticismo cristocêntrico de São Bernardo I I) r (II reis Q.

Prova disto é que para Eckhart os lugares SUIHo!>II U 11111101111 II

importância que tinham tido para aqueles. ,I( dl.1 II <tlll ".11rusalém está tão próxima da minha alma como o III III • III III"

estou neste momento". Para isto não era noc :J', II (j '" I I I)

olhar em di reção a Jerusalém, nem para os Icollli I. 1111 III( I

que tiveram lugar ali. O importante é se dedic Ir ) COi,l, '11111111, II

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interna, "deixar-se levar", e chegar a ver Deus "sem nenhumintermediário".

Mesmo acusado de herege em vida, ~v'~estre Eckhart tevemuitos seguidores, especialmente entre os dominicanos. Osmais famosos destes foram João Tauler e Henrique Susso.Estes dois, apesar de serem menos eruditos que seu mestre, sa-biam expor suas doutrinas de maneira que podiam ser compreen-didas e seguidas por pessoas muito menos estudadas em ques-tões teológicas, e por isto sua obra consistiu mormente em pro-pagar os ensinos m (sticos de Eckhart.

Seguindo o curso do Reno mais para baixo, encontramoso lugar onde viveu o místico flamengo João de Ruysbroeck.E muito provável que Ruysbroeck tenha lido as obras deEckhart, e as seguido em alguns aspectos, mas o misticismodo flamengo é muito mais prático que o do mestre alemão.Esta tendência foi levada mais além por Gerardo de Groote,outro rnfstico flamengo sobre quem Ruysbroeck teve umforte impacto. Por causa da obra destes dois o que é chamadode "devoção moderna" tomou forma e se popularizou. Estadevoção consistia em levar uma vida de meditação disciplinada,orientada principalmente em direção à contemplação da vidade Cristo, e a imitá-lo. O escrito mais famoso desta escolaé Imitação de Cristo, que até hoje continua sendo uma dasobras de devoção mais lidas, tanto por católicos como porprotesta ntes.

Parte da obra de Ruysbroeck e de seus discípulos consistiuem mostrar os erros dos "irmãos de esp(rito livre". As dou-trinas deste movimento não estão bem claras. Mas parece quese tratava de pessoas com tendências m (sticas que diziam que,por causa da sua experiência direta com Deus, eles não preci-savam de meios como a igreja ou as Escrituras. Alguns chegavama dizer que, como eram pessoas espirituais, podiam dar liber-dade ao corpo para que seguisse suas próprias inclinações.

Uma conseqüência notável da obra de Gerardo de Grootefoi o surgimento dos Irmãos da Vida Comum. De Grooterenunciou ao rendimento eclesiástico que recebia, e passou apregar contra os abusos eclesiásticos, e a exortar seus segui-dores para que levassem uma vida de santidade e devoçãorenovadas. Em contraste com os que antes dele tinham pregado

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a mesma coisa, no entanto, de Groote não exigia de seus segui-dores que se dedicassem à vida monástica, mas lhes dizia quedeveriam continuar sua vida normalmente, e nela se dedicarà devoção, a não ser que tivessem uma vocação monástica.Apesar disto mais tarde muitos dos seus discípulos se dedica-ram à vida monástica, seguindo a regra agostiniana. Mas nuncaperderam seu interesse pela vida comum, e por isto os Irmãosda Vida Comum fundaram escolas que não tinham igual. Nestasescolas não educavam só os que queriam ser monges, mas tam-bém pessoas que tencionavam abraçar carreiras bem diferentes.Assim, ao mesmo tempo que estimulavam o estudo, promoviama "devoção moderna". Estas escolas foram um centro de renova-ção da igreja, pois nelas se formaram pessoas de espírito críticoe reformador. O mais famoso de seus alunos foi DesidérioErasmo, a quem voltaremos mais adiante.

A não ser em alguns poucos casos o misticismo alemão eflamengo dos séculos XIV e XV evitou os excessos do entusias-mo. A contemplação mística não tinha o propósito de produzirgrandes emoções, mas uma paz interna. E a maneira utilizadanão era tanto o estfrnulo das emoções, mas a meditação. Naopinião destes místicos chegava-se a Deus não pelos sentimen-tos, mas através do intelecto.

Este movimento não tinha a intenção de se opor à igreja,nem à sua hierarquia. Alguns dos seus JCderes criticaram osabusos dos prelados, em particular o seu espírito de ostentação,mas com o passar do tempo a maioria encontrava uma respostapara esta situação, em termos de não mais atacá-Ia aberta-mente, mas se retirar para meditar. Se a igreja estava corrom-pida, o cristianismo ainda podia se sobrepor a esta corrupçãoseguindo o caminho da devoção morderna, e dedicando-se aimitar a Cristo. Por estas razões o movimento m fstlco pôdecontinuar seu caminho sem que fosse perseguido como o foramreformadores no estilo de Huss e de seus seguidores.

Mas por outro lado o misticismo era uma ameaça, em umsentido mais profundo, não mais para os prelados corruptos,mas para a própria noção de igreja hierárquica como a conheceua Idade lViédia. De fato, se o cristão chega ao nível supremoda vida espiritual chegando-se diretamente a Deus, a conclusãoóbvia é que os sacramentos, a pregação e a comunhão com

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a igreja têm um valor secundário, ou pelo menos passageiro.O m (stico, em seu estado de contemplação perfeita, não precisade sacerdotes que lhe ofereçam os sacramentos, nem de umaigreja que lhe mostre que caminho deve seguir, nem mesmodas Escrituras para lhe mostrarem qual é a vontade de Deus.Os místicos dos séculos XIV e XV poucas vezes chegaram aestas conclusões. Mas em suas doutrinas havia um fermentoque mais tarde despedaçaria a autoridade da hierarquia ecle-siástica, e em alguns casos até mesmo a da Escritura.

Podemos ver no misticismo, assim como já vimos no nacio-nalismo de que já falamos, os primeiros sinais da ruptura daunidade hierárquica que a igreja medieval presenciou.

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IXA teologiaacadêmica

Todos têm um desejo natural desaber. Mas de que serve o

conhecimento sem o temor de Deus?Sem dúvida um lavrador humilde

que serve a Deus é melhor que umfilósofo orgulhoso que ... tenta

entender o rumo do céu.

Imitação de Cristo

A teologia acadêmica teve duas características principaisdepois de seu apogeu com Tomás de Aquino. A primeira foiuma tendência constante para as distinções cada vez mais sutis,as questões rebuscadas e escabrosas, e o estilo condensado ecarregado. A segunda foi uma crescente separação entre a filo-sofia e a teologia, entre o que a razão pode descobrir e o quesomente sabemos depois de Deus revelá-lo.

São Tomás de Aquino e seus contemporâneos tinhamafirmado que entre a fé e a razão havia uma continuidadefundamental, de maneira que certas verdades reveladas -como a da existência de Deus - podiam ser conhecidas tam-bém através do uso correto da razão. I\ías pouco depois damorte do grande mestre dominicano foi se abrindo um abismocada vez mais profundo entre os dois tipos de adquirir conhe-cimento.

João Duns Escoto, o mais famoso do rn stres franciscanosdesde o tempo de Boaventura, recebeu COir1 lodo a justiça otftulo de Doctor suti/. Este título lh . 101 ('Olll( I ido como uma

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honra, mas na verdade é testemunho do maior defeito das suasobras. Sua sutileza e suas distinções constantes são tantas etais que seus escritos somente podem ser compreendidos pelosespecialistas que dedicaram longos anos ao estudo da teologiae da filosofia desta época. Em meio a todo o emaranhado deseus escritos, entretanto, uma coisa fica clara: Duns Escotonão concorda com os teólogos da geração anterior à sua, quecriam que doutrinas como a da imortalidade da alma, ou da oni-presença divina, podiam ser provadas de maneira racional.Escoto não nega estas doutrinas. Nem sequer nega que sejamcompat(veis com a razão. Mas nega que a razão seja capaz dedemonstrá-Ias. No máximo a razão pode chegar a provar queestas coisas são possíveis. mas não que são necessárias.

Esta tendência ficou mais clara na teologia de Guilhermede Occam e de seus contemporâneos e discípulos, nos séculosXIV e XV. Partindo da onipotência divina estes teólogos chega-ram à conclusão de que a razão natural não pode provar abso-lutamente nada relacionado com Deus, nem com seus propó-sitos.

Quase todos estes teólogos estabelecem uma distinçãoentre o poder de Deus "absoluto" e seu poder "ordenado".Se Deus é verdadeiramente onipotente isto quer dizer que elepode fazer o que lhe agrada, de acordo com seu poder absoluto.Não existe nada que possa limitar este poder. Tanto a razãocomo a distinção entre o bem e o mal estão subordinadas aele. Se ocorresse o contrário ter(amos de dizer que o poder deDeus é limitado pela razão, ou pela idéia do bem. ~ somentepor causa do seu poder ordenado que Deus age razoavelmente,e que Deus faz o bem.

Falando em termos estritos, na opinião destes teólogos,não se deve dizer que Deus sempre faz o que é bom, mas quetudo o que Deus faz é bom, seja o que for. ~ Deus quem deter-mina o que é bom, e não vice-versa.

Da mesma forma não podemos dizer que Deus age demaneira razoável. Não é a racionalidade que faz com que Deusaja desta ou daquela maneira. Pelo contrário, é Deus, em suavontade soberana, que determina em que consistirá a razão, eentão, através do seu poder ordenado, age seguindo as diretrizesdesta razão.

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Em conseqüência, os antigos argumentos através dos quaisos teóloqos tentavam demonstrar que esta ou aquela doutrinaera razoável ou "conveniente" perdiam todo seu valor. Tome-mos como exemplo o problema da encarnação. Anselmo, equase toda a tradição teológica a partir dele, tinha dito quea encarnação de Deus em um ser humano era razoável, porquea humanidade tinha uma devida para com Deus que, por serinfinita, somente podia ser paga por Deus, e que, por ser hu-mana, somente podia ser paga por um ser humano. Mas agoraos teólogos dos séculos XIV e XV afirmam que tudo isto,que pode parecer muito racional do nosso ponto de vista, nãoo é se levamos em conta o poder absoluto de Deus. Com seupoder absoluto Deus poderia ter decretado que a d (vida fossecancelada, ou simplesmente declarado que o ser humano nãoera pecador, ou ter contado como mérito qualquer outra coisaque escolhesse, bem diferente dos méritos de Cristo. Por isto,o fato de sermos salvos por estes méritos não é porque tinhade ser assim, ou que a encarnação e os sofrimentos de Cristotenham sido o meio mais apropriado, mas simplesmente porqueDeus assim o determino.u.

De igual modo também não podemos pensar que na cria-tura humana haja algo que a torne particularmente apta paraa encarnação. A presença de Deus na criatura é sempre ummilagre. ~ um milagre tão grande que nada tem a ver com acapacidade do ser humano de receber o Criador. Por esta razão,continuando nesta linha de pensamento, houve discípulos deOccam que chegaram a dizer que, se Deus quisesse, poderiater se encarnado em um burro.

Tudo isto não deve nos levar a pensar que estes teólogosfossem pessoas incrédulas que tinham prazer em fazer pergun-tas sutis só pelo prazer de fazê-Ias. Ao contrário, tudo quesabemos de suas vidas parece indicar que eram pessoas devotase sinceras. Seu propósito era exaltar a Ulól iu de Deus. O Criadorestá a uma distância infinita da criu tur ti. /\ mente humana éincapaz de penetrar os mistérios de I uu:.. 1\ onipotência divinaé tal que todos os nossos esforços (II 1)(III trar nela se deterãodiante dela. Pretender que a man iI U CUIII que Deus age é emi-nentemente racional equivaleria (I I III I II I I )eus, colocando arazão acima dele. Este era o teor d I Ir 010, I d .• época.

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Não se tratava, portanto, de uma teologia incrédula, dis-posta a crer somente o que a razão pudesse demonstrar, masexatamente do contrário. Tratava-se de uma teologia que,depois de provar que a razão tem pouca serventia, colocavatudo nas mãos de Deus, e estava disposta a crer em tudo o queo Senhor tinha revelado; e crer não por ser racional, mas porter sido revelado.

Disto conclu (mos que a questão da autoridade é de sumaimportância para a teologia dos séculos XI V e XV. Se não pode-mos provar pela razão que esta ou aquela afirmação é correta,deve haver autoridades infal íveis que nos dêem a conhecer adoutrina verdadeira. Occam cria que tanto o papa como umconcílio universal podiam errar, e que somente as Escrituraseram infal (veis. Mas algum tempo depois, à medida que oGrande Cisma do Ocidente levou o movimento conciliar aoseu auge, muitos teólogos começaram a pensar que um concíliouniversal era a autoridade suprema, e que qualquer oposiçãodeveria cessar diante dele. Por esta razão no concílio de Cons-tança OS grandes teólogos Gerson e Ailly insistiam na necessi-dade de Huss se submeter ao concílio. Se ele tivesse oportuni-dade de demonstrar que a grande assembléia estava equivocadaao condená-lo, a autoridade do concílio cairia por terra. Ecomo eles mesmos tinham dito que o poder da razão é muitopequeno, não restaria nenhuma alternativa para subsanar ocisma, reformar a igreja, ou determinar qual era a reta doutrina.

Por outro lado, esta doutrina dava muita importância àfé, não só como crença, mas também como confiança. Deusordenou seu poder para nosso bem. E isto quer dizer que deve-mos confiar nas promessas de Deus, mesmo quando todas asconsiderações da razão nos levarem a duvidar delas. A onipo-tência divina é tal que está acima dos nossos inimigos. Os queconfiam nela não serão desamparados. Este foi o tema carac-terístico de alguns teólogos anteriores à Reforma, e o vere-mos aparecer novamente em Martinho Lutero.

Mas por mais devotos que estes pensadores tenham sido,suas sutilezas e sua insistência em definições precisas e sutisnão podiam deixar de provocar uma forte reação entre os queviam o contraste entre a complexidade da teologia acadêmicae a simplicidade do evangelho. Parte desta reação foi a "devoção

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moderna", de que falamos no capítulo anterior. Desta devoçãosurgiu a Imitação de Cristo, livro que logo ficou muito popular,e que expressa no primeiro capítulo o que parece ter sido umareação muito comum contra a teologia da época:

De que te adianta poder debater com profundidadesobre a Trindade, se te falta a humildade, e com isto ofen-des a Trindade?

As palavras altissonantes não fazem com que alguémseja santo e justo. A vida virtuosa é que faz com que seja-mos agradáveis a Deus.

É melhor sentir o arrependimento que saber defini-lo.Se soubesses de cor a Bíblia toda e tudo o que os filó-

sofos têm dito, de que te adiantaria isto, sem o amor deDeus e sem a graça?

Vaidade de vaidades. Tudo é vaidade, exceto amara Deus e servir somente a ele.Em resumo, nos últimos séculos da Idade Média a esco-

lástica seguiu um caminho que não podia deixar de provocaruma reação negativa por parte de pessoas devotas, que viamneste tipo de teologia um obstáculo à piedade, e não uma ajuda.Com sempre crescente insistência e urgência se fez ouvir o gritoangustiado dos que pediam um retorno à simplicidade evan-gélica.

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xo renascimentoe o humanismo

Oh! Suprema generosidade doPai Deus! Oh! altlssima e

maravilhoslssima sorte do serhumano! A ele foi concedido

ter o que decidir, ser o quequiser.

Pico de la Miranaola

Poucos termos na história são usados com maior ambi-güidade que os de "Renascimento" e "humanismo". O própriot(tulo "Renascimento", aplicado a uma época histórica, implicaem um ju ízo negativo da época que lhe precedeu. Neste sentidoo termo foi usado pelos que o cunharam.' Para eles a IdadeMédia era somente isto: um período intermediário entre as gló-rias da antigüidade e as dos tempos modernos. Ao chamar aarte medieval de "gótica" estavam expressando novamente umconceito pejorativo - "gótico" quer dizer "proveniente dosgodos", e assim é sinônimo de "bárbaro". Já dissemos no volu-me anterior que a arte chamada "gótica", longe de ser um sinalde barbárie, foi um dos maiores feitos da civilização ocidental.Mas seja como for, os que deram o nome de "Renascimento"ao movimento intelectual e artístico que surgiu na Itália nosséculos XIV e XV, além de com isto evidenciar seus preconcei-tos com relação aos séculos anteriores, davam sinais de ignorân-cia destes séculos.

De fato, o suposto "Renascimento", apesar de em parteter ido às fontes clássicas de Iiteratu ra e arte, se inspi rou mu ito

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mais nos séculos XII e XIII. Sua arte tem profundas raízes nogótico; sua atitude em relação ao mundo empresta tanto de SãoFrancisco como de Cícero; e sua literatura se inspira em partenos cânticos medievais que os trovadores levavam de regiãopara região.

Mas apesar de tudo isto ainda podemos, particularmentena Itália, dar o nome de "Renascimento" a este período.Muitos dos principais intelectuais da época viam no passadoimediato, e às vezes no presente, uma época de decadênciacom respeito à antigüidade clássica, e por causa disto se empe-nhavam em provocar um renascer desta antigüidade, em voltaràs suas fontes, e em imitar sua linguagem e estilo. É a isto quenos referimos aqui quando falamos de "Renascimento".

Quanto ao termo "humanismo", a ambigüidade não émenor. Por um lado este termo traz em si a tendência de colo-car a criatura humana no centro do universo, e fazer sobressairseu valor. Por outro lado o mesmo termo se refere ao estudodas "humanidades". Um "humanista", então, não é alguémque exalta o valor humano, mas que se dedica às belas artes,em particular à literatura. Como veremos no restante destecapítulo, muitos "humanistas" dos séculos XIV e XV, e mesmodepois, o eram nos dois sentidos. Seu interesse pelas letrasclássicas freqüentemente andava junto com uma grande admi-ração pela criatura capaz de produzir estas obras de arte. Masnem sempre houve esta união. Por isto, à guisa de simples escla-recimento, diremos que ao falarmos do "humanismo" nestecontexto não nos referimos a uma opinião sobre o valor dacriatura humana, mas a um movimento literário que se carac-terizou pelo estudo cuidadoso das letras clássicas, e por suaimitação.

A Itália nos séculos XIV e XV

O Renascimento teve na Itália sua origem e sua melhorexpressão. Podemos ver as causas disto, pelo menos em parte,nas condições polfticas e econômicas desta pen ínsula.

Assim como o restante da Europa ocidental, a Itáliasofreu os estragos da peste bubónica e das guerras, que pare-ciam ter se tornado endêmicas. E sofreu, muito mais que o

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o renascimento e o humanismo / 137

restante da Europa, as conseqüências do "cativeiro babilônico"e do grande cisma do Ocidente. Quase constantemente ela foicenário de guerras entre papas rivais, ou entre nobres ou repu-blicanos que apoiavam um ou outro dos pretendentes. Aomesmo tempo o movimento republicano enfrentava continua-mente a velha aristocracia, e por isto havia em cidades comoFlorença e Veneza revoluções que com freqüência desembo-cavam em conflitos armados que se estendiam inclusive aosterritórios vizinhos.

Em meio a estas circunstâncias a Itália não conseguiaseguir o exemplo da França, que tinha conseguido sua uni-dade nacional, nem da Espanha, que se aproximava desteobjetivo. Os espíritos mais patrióticos entre os italianos lamen-tavam esta situação. Dentro deste contexto devemos entendera mais famosa obra de Nicolau Maquiavel, O pr/ncipe. Maquia-vel era um patriota florentino que sonhava com a unidade ita-liana. Suas convicções eram republicanas, mas ele estava con-victo também que somente um príncipe astuto e sem muitosescrúpulos poderia unir o país. Por isto ele dedicou sua obraao cardeal Lourenço de Médici, que na época governava Flo-rença, incentivando-o a deixar de lado "as debilidades da nossareligião" e se lançar a esta empresa.

Não só Maquiavel estava descontente com as condiçõesda época. Este tema era caracter(stico de toda a Europa, açoitada pela praga, pela guerra dos cem anos e pelo grande cisma.A diferença com a Itália era que nesta a insatisfação ocorriadentro de um ambiente de prosperidade econômica. As cidadesde Florença, Veneza, Gênova e Milão eram importantes centrosde indústria e comércio. A posição geográfica da Itália, nocentro do Mediterrâneo, permitia a estas cidades beneficiar-sedo comércio com os países muçulmanos e com o ImpérioBizantino. A burguesia italiana, que surgiu desta indústria edeste comércio, era poderos(ssima. Daí o conflito quase cons-tante entre esta burguesia com seus ideais republicanos e avelha aristocracia.

A prosperidade econômica, unida à instabilidade pol (tica,deu lugar a uma aristocracia intelectual, de origem principal-mente burguesa, que buscou inspiração nos tempos clássicosda Grécia e da Roma republicana.

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o despertar das letras clássicas

Um dos principais propulsores desta nova tendência foio poeta Petrarca, que em sua juventude tinha escrito sonetos

o Renascimento viu surgir um no !tO interesse nos manuscritos gregos queo Império Bizantino tinha conservedo, Este acima, que é do começo doeV8ngelho de Lucas e data do século XIII, está guardado na bibliotecado Seminário Luterano de Chicago.

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em italiano, mas depois passou a escrever em latim, imitandoo estilo de C (cero. Ele logo teve muitos seguidores, que tam-bém começaram a imitar as letras clássicas. Com este propó-sito copiaram manuscritos dos velhos autores latinos. Outrosviajaram até Constantinopla, e de volta à Itália trouxeramconsigo manuscritos gregos. Mais tarde, quando Constanti-nopla foi tomada pelos turcos em 1453, muitos exilados bizan-tinos chegaram à Itália com seus manuscritos e conhecimentosda antigüidade grega. Tudo isto contribuiu para um despertarliterário que começou na Itália e foi se estendendo por toda aEuropa ocidental.

Este interesse pelo clássico em pouco tempo inclu (a tam-bém as artes, e não só as letras. Os pintores, escultores e arqui-tetos foram buscar sua inspiração não na arte cristã dos séculosimediatamente anteriores, mas na arte pagã da antigüidade.Naturalmente eles não conseguiram se desvencilhar totalmenteda sua herança direta, mesmo querendo fazê-lo, e por isto boaparte da arte do Renascimento tem suas raízes no gótico. O

A invençéo da imprensa de tipos móveis abriu novas possibilidades aohumanismo.

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ideal de muitos artistas italianos da época, no entanto, era redes-cobrir os cânones de beleza da antigüidade, e assimilá-los emsuas obras.

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A S/blia de Gutenberg está impressa de maneira muito semelhante aosmanuscritos da época.

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Todo este interesse na antigüidade clássica coincidiu coma invenção da imprensa, que por sua vez teve um impactoprofundo sobre o humanismo. Mas não devemos pensar queisto fez das letras renascentistas um movimento popular. Aocontrário, os livros que os renascentistas mandaram imprimireram obras dif íceis de serem lidas, compostas em latim clássicoou em grego. Além disto a arte tipográfica da época fez todoo possível para imitar os manuscritos que eram impressos. Asmuitas abreviaturas, muito dif íceis de entender, que os copis-tas usavam para facilitar seu trabalho, continuaram sendo usa-das nos livros impressos. Para os humanistas a imprensa eraum meio magn(fico para se comunicarem entre si, ou parareeditar as obras da antigüidade, mas não para difundir as idéiasentre o povo. Estas idéias continuaram sendo posse exclusivada aristocracia intelectual. Exceto o caso de Savonarola, somen-te quando do advento da Reforma protestante a imprensa come-çou a ser usada como meio de comunicação com as massas,para a divulgação de idéias teológicas e filosóficas.

Apesar disto a imprensa teve um impacto notável sobreas letras renascentistas. Em primeiro lugar os livros se torna-

Os livros eram tio ceras que em multas btollotoou olos estevem errerrsdosem correntes, como no caso dB unlversldedo do Loydon, 8té o século XVII.

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ram relativamente mais acessíveis. Quando somente havia ma-nuscritos, e mesmo durante várias décadas depois da invençãoda imprensa, os livros eram tão caros que em muitas bibliotecaseles estavam amarrados às estantes com correntes. Um eruditode recursos médios podia possuir apenas alguns poucos. Com ainvenção da imprensa foi possível começar a reproduzir emquantidades maiores alguns dos livros mais apreciados daantigü idade.

Isto, por sua vez, fez com que os humanistas vissem atéque ponto os erros dos copistas se tinham introduzido emuma obra. Se um humanista, por exemplo, tomasse um livroimpresso em outra cidade com base em outro manuscrito,lo~.) encontrava diferenças entre este livro e outro manuscritoda mesma obra. Nos séculos anteriores os eruditos não esta-vam de todo ignorantes desta situação, mas a invenção daimprensa a fez mais palpável.

Bem, a própria imprensa oferecia um meio de remediara situação, mesmo que não de todo. Agora era possível produ-zir várias centenas de exemplares de um livro idênticos entresi. Já não era necessário confiar a reprodução de obras lite-rárias a uma multidão de copistas, sob o risco de que cada umdeles introduzisse nelas novos erros. Se um erudito se dedicavaà árdua tareva de comparar vários manuscritos de um mesmolivro e tentar chegar a um texto fiel ao original, sua obra podiaculminar em uma edição impressa, sem mais erros que osque o próprio erudito deixara passar. Assim surgiu a "críticatextual", cujo propósito não é criticar os textos, como pode-damos supor, mas aplicar todos os recursos da crítica histó-rica para chegar novamente ao texto original de uma obra.

Tudo isto deu lugar a uma desconfiança entre os legadosda tradição imediata. Se os manuscritos não eram totalmentefidedignos, não era também possível que algumas destas obrasfossem completamente falsas, produto da imaginação de algumséculo posterior? Logo alguns dos documentos mais respei-tados da Idade Média foram declarados espúrios. Um dos casosmais notáveis foi o da Doação de Constantino, em que o famosoimperador concedia ao papa jurisdição sobre o Ocidente. Oerudito Lourenço Valia estudou este documento, e chegou àconclusão de que era falso, por diversas razões de estilo, vocabu-

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Oficina ele encederneaores, no século XVI.

lário, etc, que impossibilitavam a datação pelo século IV. Damesma forma Valia atacou a lenda de acordo com a qual o Cre-do tinha sido composto pelos apóstolos, antes de se separarempara partir cada um em sua própria missão.

Tudo isto não teve imediatamente conseqüências gravespara a vida da igreja. O próprio Valia serviu como secretário

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do papa, sem que seus estudos e suas conclusões lhe acarre-tassem maiores problemas. Isto porque, como já dissemos,toda esta atividade literária se limitou a uma aristocracia inte-lectual, que tinha a tendência de desprezar as massas, e quenão tinha grande interesse em divulgar os resultados das suasinvestigações.

Mas apesar do pouco impacto que teve de imediato estedespertar literário contribuiu, junto com o misticismo e a de-voção moderna, para marcar o fim da época em que a esco-lástica dominava a vida intelectual.

A nova visão da realidade

Historiadores preconcebidos têm tido o costume de pintara Idade I\;;édia com cores sombrias, para dar assim maior desta-que às glórias da época moderna, mas a verdade é que na Idade1\1édia houve, ao lado dos ascetas que desprezavam o mundopresente na expectativa pelo vindouro, outra corrente que segloriava nas maravilhas da criação. Podemos ver isto no natu-ralismo de São Francisco, entoando louvores às aves, à água,aos astros, e mesmo à morte. Seu canto não era de negaçãodo mundo, mas de concordância com ele. Para ele e para osque seguiram sua inspiração, o mundo vindouro era gloriosonão porque contrastasse com o presente, mas porque o supe-rava. Se este mundo já é belo e digno de admiração, quantomais o será o outro, que o Criador de ambos nos prometeu!Nas catedrais góticas os escultores se regozijavam esculpindocenas da natureza, reais ou imaginárias. Ali aparecem, entrefrondosas vides, mil avezinhas, lesmas e camaleões que dãotestemunho do mesmo Criador universal cantado por SãoFrancisco.

Não é verdade, portanto, que o Renascimento tenha des-coberto a beleza da criação, supostamente esquecida pelo ho-mem medieval. Pelo contrário: a arte renascentista, inspiradaem parte na arte clássica, prestou mais atenção à beleza e perfei-ção do corpo humano.

A Itália tinha belezas exuberantes. Em suas principaiscidades havia dinheiro suficiente para construlr grandes ediff-cios, e para reunir neles todos os recursos artfsticos imagináveis.

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Os nobres e os grandes burgueses tinham meios para suprir ocusto de uma arte dedicada, não para a glória do céu, mas do

o "Davi" de MiflUellnfJelo fi uma mar;ni'flaJ 1I10NcrU do taoet da perfelǧohumana do Renascimento. Foto de JM.

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mecenas que custeava o empreendimento. A arte, portanto,até então dedicada quase exclusivamente ao ensino religioso e àglória de Deus, passou a se ocupar do esplendor humano. Nosmodelos clássicos da Grécia e de Roma estava manifesta umaadmiração pela criatura humana que boa parte da arte medievaltinha esquecido, e que agora os pintores e escultores da Renas-cença assimilaram, em pedra e pintura. O Adão que Miguelân-gelo pintou na abóbada da Capela Sixtina, que recebe do dedode Deus poder para governar a criação, é bem diferente doAdão débil dos manuscritos medievais. Nele está concretizadaa visão renascentista do ser humano, nascido para criar, paragovernar, para deixar sua marca no mundo que o rodeia.

A mesma visão toma carne e osso na pessoa de Leonardoda Vinci. Houve poucas atividades humanas em que este gênioda Renascença não interveio ou tentou mostrar sua maestria.A posteridade o conhece principalmente como pintor, masLeonardo dedicou muito da sua atenção à engenharia, à arqui-tetura, à ourivesaria, à bal (stica e à economia. Sua ambição eraser o "homem universal" que era o ideal da época. Seus gran-des projetos de canalização fluvial, máquinas militares e apa-ratos de voo nunca foram realizados. Muitas das suas escul-turas e pinturas ficaram inconclu (das, ou não passaram de esbo-ços que são conservados até hoje como peças valiosas. Seusinteresses múltiplos, unidos às flutuações pol [ticas que nãolhe permitiram residir por muito tempo no mesmo lugar, deramà sua obra um caráter fragmentário e inconclu(do. Mas apesardisto Leonardo, e as lendas que se formaram ao redor da suapersonalidade, passou a ser símbolo e encarnação do ideal renas-centista do "homem universal".

Esta visão do ser humano e da sua capacidade sem limites,tanto para o bem como para o mal, é o tema principal doautor renascentista Pico de la Mirandola, que citamos no come-ço deste capítulo. Continuando esta citação Pico diz que Deusdeu ao homem todo tipo de sementes, para que as semeassedentro de si mesmo, e assim determine o que há de ser. Quemescolher a semente vegetativa, ou a sens(vel, não será maisque uma planta ou um bruto, 1V1asquem escolher a sementeintelectual, e a cultivar dentro de si, "será um anjo e filho deDeus". E se ele se volta para o centro da sua alma, insatisfeito

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Leonardo da Vinci.

com o fato de ser uma criatura, "seu espírito, unido a Deusem obscura solidão, se elevará por cima de todas estas coisas".Tudo isto levou Pico a exclamar, em estranhas palavras delouvor à criatura humana: "Quem não há de admirar este cama-leão que nós somos?"

Os papas do renascimento

Quando deixamos a história do papado varros capítulosatrás (cap(tulo IV), este acabara de triunfar sobre o movimentoconciliar. Na época Eugênio IV o ocupava, que se ocupou,

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além dos conflitos com o condlio de Cesaréia, do embeleza-mento da cidade de Roma. Isto era o primeiro indfcio de queo espfrito do Renascimento começava a se apossar do papado.A partir de então, e mesmo depois de iniciada a Reforma protes-tante, o pontificado romano estaria em mãos de homens cujosideais eram os que a Renascença defendia. Quase todos eleseram amantes das belas artes, e um dos propósitos fundamentaisdos seus pontificados foi trazer para Roma os melhores artistas,e dotar a cidade de palácios, igrejas e monumentos dignos desua posição como capital da cristandade. Alguns tomaram doespfrito da Renascença seu amor pelas letras, e por isto enrique-ceram as bibliotecas do Vaticano. Mas muito poucos deles seocuparam verdadeiramente da reforma da igreja. Quase todostomaram do espfrito da época seu amor pelo luxo, o poderdespótico e os prazeres sensuais. Vejamos brevemente suahistória.

Nicolau V sucedeu a Eugênio IV quando da morte deste.Os anos de seu pontificado, de 1447 a 1455, foram dedicadosprincipalmente ao fortalecimento da posição pol ítica de Romaentre os estados italianos e a do papa dentro dela. Sua metaera fazer de Roma a capital intelectual da Europa, trazendopara ela os melhores pintores e autores da época. Sua biblio-teca pessoal chegou a ser a melhor do século XV. Ele forti-ficou também a cidade e mandou expulsar os que se opunhamao seu poder monárquico. Em 1453 a queda de Constanti-nopla, a que nos referiremos mais adiante, sacudiu a consciên-cia da cristandade ocidental, e o papa tentou organizar umacruzada contra os turcos, sem ter nenhum êxito. Na reformada igreja ele pensou pouco ou nada.

Seu sucessor, Calixto III, foi o primeiro papa da famfliaespanhola dos Borja - que na Itália recebeu o nome de Bórgia.A única coisa que este papa emprestou dos ideais da Renascençafoi o sonho de ser um grande príncipe secular. Com a desculpade que era necessário unir a Itália para empreender uma cruzadacontra os turcos, ele se dedicou mais à guerra que às suas res-ponsabilidades religiosas. Além disto seu pontificado ficoucaracterizado por um dos piores males da época, que a partirde então se tornaria endêmico do papado, o nepotismo. Umdos parentes que ele cobriu de honras foi seu neto Rodrigo,

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a quem fez cardeal e que mais tarde seria o tristemente famosoAlexandre VI.

O próximo papa, Pio II, foi o último que em todo esteper(odo cingiu com certa dignidade a tiara papal. Em sua moci-dade ele tinha sido um homem característico da Renascença.Mas depois decidiu que precisava emendar sua vida, e assumiusuas responsabilidades pontiffcias com toda a seriedade. Comoa Europa estava ameaçada pelos turcos ele dedicou boa partedos seus esforços para deter seu avanço e tentar organizar umacruzada. Apesar de seus feitos não terem sido especiais, seuserros também não o foram.

Paulo II era um oportunista que, quando soube que seutio Eugênio IV tinha sido feito papa, decidiu que a carreiraeclesiástica lhe prometia mais que o comércio a que se dedicava.Seu interesse principal era acumular objetos de arte, em parti-cular jóias e artigos de ourivesaria. Seu gosto pela pompa setornou proverbial. O fato de agora ser papa não fez com queele abandonasse suas concubinas, que a corte, ao que parece,reconhecia publicamente. Ele se dedicou a restaurar a glóriada Roma pagã, mandando restaurar os arcos do triunfo dosimperadores Tito e Sétimo Severo, e a estátua de rI/arco Auré-lio. Morreu ainda jovem de apoplexia, em conseqüência de seusexcessos sexuais, de acordo com cronistas da época.

Sixto IV comprou o papado, fazendo-se eleger com baseem promessas e presentes que fez aos cardeais. Durante seupontificado o nepotismo e a corrupção chegaram a níveis nuncavistos no papado. A essência da sua pol (tica consistiu em enri-quecer sua fam ília, em particular seus cinco sobrinhos. Umdestes, Juliano della Rovere, mais tarde ocuparia o papado como nome de Júlio II. Sob Sixto a igreja se transformou em negó-cio da fam (lia. Toda a Itália se viu às voltas com guerras e cons-pirações cujo único objetivo era conquistar territórios, riquezase honras para os sobrinhos do papa. Seu sobrinho predileto,Pedro Riário, tinha vinte e seis anos quando foi feito cardeal,patriarca de Constantinopla e arcebispo de Florença. Seus víciose excessos ficaram famosos em toda a Itália, e se diz que foiem conseqüência deles que ele morreu poucos anos depois.Outro deles, Jerônimo Riário, urdiu uma trama em que umdos Médicis foi assassinado diante do altar, enquanto ouvia rnis-

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sa, por um sacerdote. Quando os familiares e amigos do defuntose vingaram enforcando o sacerdote assassino, o papa exco-mungou toda a cidade de Florença, por ter violado a pessoasagrada de um sacerdote, e lhe declarou guerra. Para manteresta pol (tica, e a pompa de seus sobrinhos, ele impôs a todosos territórios papais o monopólio do trigo. O melhor grão eravendido para encher as arcas papais, e o povo somente recebiapão da pior qualidade. Mas apesar de tudo isto a posteridadeconhece Sixto IV como o mecenas que mandou construir aCapela Sixtina, chamada assim em sua honra.

Inocêncio VIII foi eleito depois de ter jurado pelo que ha-via de mais sagrado de que respeitaria os direitos dos outroscardeais, que não nomearia mais do que um da sua fam (Iia,e que poria a sé romana em ordem. Mas assim que se viu de pos-se da tiara papal ele declarou que o poder do papa era supremo,e que por isto não precisava se sujeitar a nenhuma promessa,principalmente quando feita sob alguma pressão. Ele foi o pri-meiro papa a reconhecer publicamente seus vários filhos ilegr-timos, que cumulou de honras e riquezas. A venda de indul-gências se transformou em um negócio vergonhoso sob a admi-nistração e a serviço de um dos filhos do papa. Em 1484 Ino-cêncio quis livrar a cristandade de bruxas através de uma bulacujo resultado foi a morte de centenas de mulheres cujo únicocrime era serem impopulares, ou talvez um pouco excêntricas.Esta foi a única medida deste pontífice que nem mesmo deforma remota poderia ser considerada uma tentativa de refor-mar a vida religiosa.

Então Rodrigo Bórqia comprou os cardeais e foi eleitopapa, com o nome de Alexandre VI. Com ele o papado chegouao ponto culminante da sua corrupção. Alexandre era um ho-mem forte e implacável, que praticava em público todos ospecados capitais - exceto a gula, pois tinha pouco apetite.Conta-se que o povo dizia: "Alexandre joga fora as chaves,os altares e até o Cristo. E no fim das contas ele tem este direi-to, pois os comprou". Enquanto toda a Europa tremia diantedo avanço dos turcos o papa travou contato com o sultãoBaiaceto em segredo. Suas concubinas, esposas legais de algunsde seus subalternos, lhe deram filhos que Alexandre reconheceucomo tais. Os mais famosos foram César e Lucrécia Bórgia. Mes-

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mo nem sempre havendo certeza da veracidade das pioreshistórias que se conta desta farnflia - seus crimes múltiplos eseus incestos - o que resta, mesmo se as descontamos, é umacorrupção e uma ambição sem limites. Suas conspirações esuas guerras banharam a Itália em sangue, e mancharam o papa-do como nunca antes.

Alexandre VI morreu repentinamente - há quem digaque depois de beber um veneno que tinha preparado para outrapessoa. Seu filho César, que tinha planos de se apoderar dopapado quando seu pai morresse, estava de cama por causa damesma doença - ou do mesmo veneno - e não pôde concre-tizar seus projetos. Então foi eleito Pio III, um homem de pro-fundo esp írito reformador que se propôs restaurar a paz naItália. Mas morreu vinte e seis dias depois de ser eleito, e seusucessor foi digno de Alexandre VI.

Júlio II, o mesmo Juliano della Rovere que seu tio SixtoIV tinha feito cardeal, tomou este nome porque queria imitar,não algum santo ou mártir cristão, mas Júlio César. Assim comoa maioria dos papas da época ele foi um grande patrocinadordas artes. Durante seu pontificado 1\1iguelângelo terminou depintar a Capela Sixtina, e Rafael decorou o Vaticano com seusfamosos afrescos. Mas a ocupação favorita de Júlio II foi a guer-ra. Ele reorganizou a guarda papal, vestindo-a com uniformesque, diz-se, foram desenhados por Miguelângelo, e no comandodela se lançou ao campo de batalha. Hábil guerreiro e pol (tico,durante seu reinado chegou-se a pensar que talvez ele final-mente conseguisse a unidade italiana, sob a hegemonia papal.A França e a Alemanha se opuseram aos seus planos, mas opapa soube vencê-los tanto na diplomacia como no campode batalha. Por fim, em 1513, a morte pôs um fim às aspira-ções de conquista daquele papa que recebeu com justiça oep íteto de o Terrfvel.

Seu sucessor foi o filho de Lourenço, o Maqnffico, de Flo-rença, João de Médicis, que tomou o nome de Leão X. Seguindoos passos de seu pai se dedicou a patrocinar as artes, ao mesmotempo que tentava consolidar as conquistas pol (ticas e mili-tares de Júlio II. Nesta última tentativa ele fracassou, e em 1516se viu obrigado a firmar com Francisco I da França um acordoque praticamente transformava a coroa na verdadeira cabeça

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Terminar s bss,7iC8de São Pedro foi um dos sonhos de Leão X. Estesonho foi causaindireta do protesto de Lutero. Foto de JM.

da igreja francesa. Sua paixão pelas belas artes se sobrepôs atodo interesse religioso ou sacerdotal. Seu grande sonho foicompletar a Basflica de São Pedro. Estava entregue a esta tarefaquando irrompeu a Reforma protestante. Mas esta história fazparte do próximo volume desta série.

A reforma humanista: Erasmo de Roderdã

Fora da Itália a Renascença tomou um rumo bem dife-rente. Na Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Países

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Baixos havia eruditos que sonhavam com uma restauraçãodo cristianismo antigo, seguindo os métodos dos humanistas.No próximo capítulo desta história teremos ocasião de nosreferirmos a vários deles. Aqui cabe falar dos sonhos do maiore mais famoso humanista, Erasmo de Roterdã.

Erasmo era filho ilegítimo de um sacerdote e da filha deum médico. Durante toda a sua vida ele teve de carregar a cargadupla das suas origens simples e de ser bastardo. 1\1as, criadoem meio à grande atividade comercial da Holanda, em muitosaspectos suas opiniões refletiam os valores comuns entre a classeburguesa. Estudou um pouco a teologia escolástica, mas logosentiu por ela uma grande repugnância, e se dedicou ao estudodas letras clásssicas, Depois, em uma visita à Inglaterra, elecomeçou a se interessar pelas Escrituras na literatura cristãantiga, que a ele parecia que tinha ele ser arrancada das mãosdos escolásticos. Começou a estudar grego, e chegou a dominareste idioma como poucos em sua época. Sua fama foi crescen-do, e mais tarde ele passou a ser o centro de um círculo inter-nacional de humanistas que queriam reformar a igreja, nãopor meios violentos, mas devolvendo-lhe sua fé simples e pri-mitiva.

O modo de Erasmo entender esta fé era característicode seu espírito humanista, unido à devoção moderna, cujainfluência tinha recebido quando estudou, ainda jovem, comos Irmãos da Vida Comum. Para ele o cristianismo é antes detudo um tipo de vida decente, equilibrado e moderado. Osmandamentos de Jesus, que são o centro da fé cristã, sãomuito semelhantes às máximas dos estóicos e dos platônicos.Sua meta é chegar a dominar as paixões, colocando-as sobo governo da razão. Isto dá lugar a uma disciplina que temmuito de ascetismo, mas que não deve ser confundida como monaquismo. O monge se retira do mundo; o verdadeiro"soldado de Cristo" tem por metas do seu treinamento a vidaprática e cotidiana. A igreja precisa ser reformada porque aban-donou esta disciplina, e se deixou levar pelos vícios dos pagãos.

Para Erasmo as doutrinas tinham importância secun-dária. Isto não quer dizer que ele era indiferente a elas, poishavia doutrinas que eram fundamentais, como a da encar-nação.

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!\;as uma vida reta era muito mais importante que a doutrinaortodoxa, e os frades que se ocupavam com distinções sutisenquanto levavam vidas escandalosas eram objeto freqüentedos ataques mordazes de Erasmo.

Q. ERASMi·ROTRRODA.M. . AB 'ALB~RTO' DVRERO·ADvtvAM..· EFFIGtEM·nELÍNÍATA·

.'lHN' KPEIT'l'n·TA· ,yrn>AM.

M.ATA· mz RI

·.M.D x. x, V 1·

Erasmo de Roterdã, o pflncipe dos humanistas.

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Em resumo, o humanista holandês procurava uma reformados costumes, a prática da decência e a moderação. Pouco apouco foi conquistando a admiração de boa parte dos eruditosda Europa, que se escandal izavam com as atividades dos papasda Renascença. Entre seus admiradores havia não poucos nobrese soberanos. Seu programa de reforma parecia ter boas possibi-lidades de êxito.

Então estalou a Reforma protestante. Os espíritos se infla-maram. As questões levantadas eram de teologia fundamental,e não tanto de moralidade. Os dois partidos tentaram conquis-tar o apoio do famoso humanista. 1\1as Erasmo não podia apoiarde todo coração nenhum dos dois. Por fim ele rompeu defini-tivamente com Lutero e os seus, mas sem dar ajuda aos cató-licos que se opunham à Reforma. Do seu escritório ele conti-nuou pedindo moderação, uma reforma no estilo humanista,e a volta às virtudes dos estóicos e platônicos de antigamente.Mas ninguém lhe dava ouvidos. Erasmo não tinha percebidoa profundidade das questões em debate, e a reforma por queele tanto ansiara não ocorreu. Seu sonho, como tantos outrosantes, foi frustrado.

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XIJeronimo

Savonarola

Estes senhores, como se não soubessemque são tão humanos como os demais,

querem que todos os honrem ebendigam. Mas o verdadeiro pregador

não pode adulá-los, pois tem deatacar seus vícios. Por isto não.

podem suportá-lo, porque não secomporta com eles como os demais o

fazem.Jerônimo Savonarola

Perto do fim da primavera de 1490 um frade dominicanode trinta e sete anos de idade se apresentou diante das portas deFlorença. Seu nome era Jerônimo Savonarola, natural de Fer-rara, onde seu avô paterno o tinha educado, um médico conhe-cido tanto por seu conhecimento como por sua devoção e reti-dão moral. Deste avô, Savonarola tinha recebido princfpios quenunca o abandonariam, e que o levaram a se unir, ainda jovem,à ordem dos pregadores de São Domingos. Em pouco tempo ofrade dominicano se distinguiu por sua dedicação ao estudo e àsantidade, e por isto a ordem lhe conferiu responsabilidadescada vez mais importantes. Anos an tes ele tinha morado jáuma vez em Florença, onde foi admirado por sua erudiçãobfblica, se bem que não por seus sermões, cuja veemência esotaque ferrarense não soavam bem aos ouvidos renascen-tistas dos florentinos. Depois ele tinha sido mestre de estudosno convento dominicano de Boloçnu.

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Agora ele estava voltando a Florença a pedido do senhorda cidade, Lourenço de Médicis. Talvez o que tinha inspiradoneste tirano esta estranha petição tenha sido a recomendaçãode Pico de la Mirandola, que tinha feito amizade com o fradee se tornara seu admirador. Seja como for, Lourenço não tar-daria em descobrir que o pregador que tinha convidado parasua cidade lhe acarretaria problemas.

No começo Savonarola se limitou a expor as Escrituraspara os frades do convento dominicano de São Marcos. Massua fama logo se espalhou, e um grande número de pessoascomeçou a acorrer às suas conferências. Em conseqüência estasforam transferidas do jardim onde até então tinham tido lugarpara a igreja do convento. Durante quase meio ano o eloqüentefrade expôs o livro do Apocalipse. No começo tratava-se de con-ferências, mas que logo se transformaram em sermões. NelesSavonarola atacava a corrupção da igreja, e profetizava que aigreja teria de passar por uma grande tribulação antes de serrestaurada. Ao mesmo tempo que comentava o Apocalipseele atacava também os poderosos, cujo luxo e avareza se contra-diziam com a fé cristã. •

Sua popularidade cresceu rapidamente, e na quaresmade 1491 ele foi convidado para pregar em Santa Maria dasFlores, a igreja mais importante da cidade. Ali viu-se claramenteque sua pregação não era do agrado dos poderosos. Lourençode 1V'lédicistentou fazê-lo se calar; mas o frade lhe respondeuque ninguém podia mandar se calar a Palavra de Deus. Seusataques, dirigidos contra a corrupção que reinava em todos osn (veis sociais, não deixavam de fazer referência aos impostospesados que Lourenço exigia, com os quais custeava a pompada sua casa e dos seus favoritos. Lourenço tentou lhe roubar aaudiência incitando outro pregador a atacar Savonarola doseu púlpito. Mas este acabou provando ser mais popular queseu oponente, e mais tarde o malfadado rival foi para Roma,para ali tramar a ru ína do dominicano.

Poucos meses depois Savonarola foi eleito prior de SãoMarcos. Quando alguns frades lhe disseram que era costumeque cada novo prior fizesse uma visita de cortesia a Lourenço,para agradecer-lhe sua boa vontade para com a casa, frei Jerõ-nimo simplesmente contestou; dizendo que devia sua eleição

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Jerônimo Savonarola /159

Sevonerote em seu escritório.

a Deus e não a Lourenço, e que por isto tinha de se retirarpara dar graças a Deus e se colocar sob suas ordens. Poucodepois ele mandou vender todas as propriedades do conventopara dar o dinheiro aos pobres. A vida dos frades passou aser um exemplo proverbial de santidade e serviço. Inclusiveoutras casas de cercanias pediram ao ilustre prior de São Mar-cos que efetuasse nelas reformas semelhantes às que instau-rara no convento florentino. Quanto a Lourenço, em seuleito de morte ele mandou chamar o santo frade, de quempediu e obteve a absolvição de todos os seus pecados.

Pedro de Médicis tinha sucedido a Lourenço, e provaraser um tirano pior que o anterior, quando chegaram rumoresde que o rei da França, Carlos VIII, se preparava para invadira Itália com o propósito de conquistar o Reino de Nápoles,cuja coroa reclamava. Florença tremeu diante do avanço dastropas francesas, que Savonarola tinha predito dois anos antes.Pedro se mostrou incapaz de orqanizur as defesas da cidade,e tentou comprar o favor do rei fran ôs entregando-lhe literal-mente vilas e castelos. Irados, os fi rOI I! inos enviaram a Carlos

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VIII uma embaixada encabeçada por Savonarola. Este se apre-sentou diante do rei, chamou-o de instrumento da justiça deDeus, declarou-o bem-vindo em nome dos florentinos, e lhedisse que tinha profetizado sua vinda dois anos antes; depoiso ameaçou, e lhe profetizou grandes males se não se compor-tasse da maneira devida com os florentinos. Enquanto istoestes aproveitavam as circunstâncias para expulsar Pedro dacidade, e com ele o jugo dos I'viédicis.

Pouco depois o rei entrou triunfante em Florença. Quandotentou impôr condições insuportáveis em troca de não saqueara cidade, os florentinos recorreram mais uma vez ao seu prega-dor, que enfrentou o rei e conseguiu dele condições muito maisfavoráveis. Poucos dias depois, tendo estabelecido uma aliançacom Florença, o rei francês partiu com suas tropas.

A cidade estava agora acéfala. Poucos desejavam que osMédicis regressassem. Muitos esperavam poder se aproveitardas circunstâncias para dar rédeas soltas aos ódios que tinhamse acumulado nas últimas semanas de incertezas. Por istoSavonarola se viu colocado, quase sem querer, na posição dedeterminar o rumo a ser seguido. Graças a ele foi estabelecidoum governo republicano e evitado o derramamento de sangue.Até mesmo os amigos dos Médicis foram perdoados, graças àintervenção do fogoso pregador.

Praticamente dono da cidade, Savonarola usou o púlpitopara propor as reformas que Ihe pareciam necessárias. Insistiuem que o comércio fosse reaberto, que tinha sido interrompidodurante a invasão francesa, dizendo que era necessário daremprego aos pobres, que tinham perdido seus poucos rendi-mentos. Quanto àqueles para os quais estas medidas não basta-vam, deveriam ser alimentados derretendo e vendendo o ouroe a prata das igrejas.

Seu interesse pelos pobres sem demora lhe acarretou amá vontade de boa parte da aristocracia. O mesmo aconteceucom muitos clérigos, atingidos muito de perto pela reforma ecle-siástica proposta. Mas Savonarola contava com a quase totali-dade do povo, e não teria tido maiores problemas, se não fossepor causa da pol (tica internacional.

A campanha de Carlos VIII na Itália tinha sido facflima.Em seguida o papa - na época o tristemente famoso Alexandre

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Jerõnimo Savonarola / 161

Ssronerote pregBndo. Observ« B Sep8rBç80 entre homens e mulheres.

VI - vários estados italianos e os monarcas da Espanha e daAlemanha se uniram em uma "Santa Aliança" contra o reida França. A cidade de Florença, graças a Savonarola, perma-neceu firme no acordo que tinha feito com os franceses. Seusaliados encarregaram Alexandre VI da tarefa de dobrar o mongeinflex (vel. O cenário estava preparado para a grande tragédiaque mais tarde teria lugar em Florença.

Enquanto isto o movimento reformador chegou a seuapogeu em Florença. Apesar de ter sido dito que Savonarolaera um monge obscurantista, a verdade é o contrário. O freidominicano se opunha às letras renascentistas como descul-pa para todo tipo de excessos morais e um retorno ao paga-nismo. Mas sua atitude em relação ao estudo em si semprefoi positiva. Seu sonho era que São Marcos se convertesseem um centro missionário, e por isto eram estudados nes-te convento, além do latim do grego, hebraico, o árabe eo caldeu.

Por outro lado, Savoruu ol.: :;t mostrou inimigo decididodo luxo e da ostentação. 1!iIO 11('011 m.mi íosto em seus repetidos

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ataques, a partir do púlpito, contra as joras e as sedas, bemcomo todos os vestidos demasiadamente chamativos de algumasmulheres. O resultado foi a "queima de vaidades", que aconte-ceu diversas vezes enquanto o frei teve o apoio dos florentinos.No centro da praça principal da cidade era construída umagrande pirâmide escalonada de madeira, debaixo da qual eramcolocados pólvora, palha e lenha. Depois as pessoas traziam"vaidades" - trajes, perucas, jóias, etc - que colocavam sobreos escalões da pirâmide, à qual no fim era ateado fogo. Estasgrandes fogueiras, com os hinos que eram cantados, as procis-sões e as explosões de pólvora, vieram a substituir a celebraçãodo carnaval em Florença.

A pregação de Savonarola, sempre inflamada, inclu ra pro-fecias cujo cumprimento alimentava o fanatismo com quemuitos veneravam o frade. Assim, por exemplo, quando umdos portos que pertenciam a Florença foi sitiado por um exér-cito e uma esquadra da Santa Aliança, Savonarola declarou que,assim como os montes seriam jogados no fundo do mar, assimtambém a frota seria destru(da. Pouco depois uma tempestadeimprevista destruiu a esquadra da Santa Aliança, vários navios seafundaram, e os invasores se viram obrigados a levantar o s(tio.

Mas isto, por sua vez, queria dizer que de Savonarolaeram esperados cada vez mais e maiores milagres. Quando asituação econômica ficou diffcil não faltaram os que criticaramo profeta por não tirar Florença dos seus problemas. E estascr(ticas aumentavam, por estas dificuldades serem motivadasem parte por Florença, sob a influência de Savonarola, senegar a se juntar à Santa Aliança.

O papa também fez tudo que era possível para conseguiruma mudança na sua pol ítica, Sabendo que o frade dominicanoera o grande obstáculo em seu caminho, enviou bulas de exco-munhão contra ele. Mas Savonarola, com o apoio do governoflorentino, declarou que a excomunhão não era válida, poisse' baseava em supostas heresias que ele não tinha pregado.Quando o papa lhe ordenou que guardasse silêncio e não pregas-se mais, o frade lhe obedeceu por algum tempo. Mas nesteper(odo se dedicou a escrever, com virulência cada vez maior,contra a corrupção da igreja. Pela primeira vez a imprensa foiusada como instrumento de propaganda religiosa, pois os

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Jerónimo Sevonerot« / 163

Ssvonerol« tinha a visão da rena 1IBç80 do mundo todo atraltfls do sangUflde Cristo.

escritos de Savonarola eram lidos avidamente tanto em Florençacomo fora da cidade.

Quando, tentando comprar seu silêncio, Alexandre VIlhe ofereceu o chapéu cardinal (cio, Savonarola lhe retrucou:

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"Não quero outro chapéu que um vermelho: vermelho desangue".

O papa então procedeu a medidas mais extremas. Ameaçoutoda a cidade de interdito, e de prisão todos os mercadoresflorentinos que havia em Roma e nas demais cidades da Aliança.Além disto, por causa do interdito, todos os bens florentinosque ca fssem em seu poder seriam confiscados. Isto era umaameaça de ru fna econômica para toda a cidade, e Savonarolalogo perdeu o apoio que tinha entre os aristocratas e os bur-gueses.

Somente lhe restavam, ainda, seus próprios frades, algunspoucos amigos entre as pessoas abastadas, e o povo baixo.Este último, porém, estava em situação desesperadora, poisa fome aumentava, e pedia-se com cada vez mais insistênciaque o profeta fizesse um milagre.

A ocasião para este milagre pareceu surgir quando umfrade franciscano, inimigo irreconciliável de Savonarola, desa-fiou para a prova de fogo qualquer pessoa que afirmasse que odominicano era verdadeiramente um profeta de Deus. Semconsultar frei Jerônimo um dominicano aceitou o desafio.Depois de longas negociações foram firmados os termos daprova. Se o franciscano saísse vencedor, ou se os dois conten-dentes perecessem, Savonarola teria de abandonar a cidade.

Chegou por fim o dia da prova. No meio da praça foiconstru ída uma grande plataforma retangular, coberta de terrapara não se queimar, e sobre ela duas grandes piras, que deixa-vam uma passagem estreita entre si. Tinha sido combinadoque os dois contendentes entrariam ao mesmo tempo. no fogo,cada um por uma extremidade da passagem. O que saísse dooutro lado seria o vencedor. Savonarola, que nunca concordoucom a experiência, pois dizia que isto era tentar a Deus, por fimconcordou em estar presente. Os mais fanáticos dos seus segui-dores estavam certos de que ocorreria ali um grande milagre,e que ficaria provado de uma vez por todas que frei Jerônimoera profeta do Altíssimo.

Quando chegou o momento, todavia, o franciscano nãoapareceu. Seus companheiros de ordem apresentaram mildesculpas e explicações, que uma a uma foram eliminadas.E o desafiante ainda não tinha aparecido. Durante todas estas

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idas e vindas o céu tinha ficado escuro, e acabou caindo umaguaceiro tão forte que mesmo se os dois contendentes quises-sem, teria sido imposs(vel acender o fogo. Alguns poucos dospresentes disseram que se tratava de um milagre, pois freiJerônimo sempre se opusera à prova. Mas os que tinham acor-rido para ver um espetáculo se sentiram roubados.

Nesta noite os espfritos estavam exaltados. Correu ocomentário de que, já que ninguém tinha ganho a prova, Savo-narola tinha perdido, de acordo com o que tinha sido combina-do. Os poderosos da cidade, que temiam por seu comércio,se uniram aos eclesiásticos que Savonarola tinha ofendido,e promoveram uma grande desordem. A turba acabou porse dirigir para São Marcos, e exigiu que Savonarola fosseentregue.

Enquanto o frade orava alguns dos seus seguidores maisfiéis empunharam as armas em sua defesa. Mas mais tarde oprofeta se entregou aos que exigiam que ele fosse preso. Aover o antes tão poderoso pregador amarrado, muitos zombaramdele, cuspindo nele e dizendo-lhe palavrões.

Quando o conselho da cidade se reuniu para tratar do casode Savonarola, seus amigos não se apresentaram, e imediata-mente foram escolhidos alguns que os substitu íssern. Assimficava garantido que o acusado não teria quem o defendesse.

Mas ainda era necessário encontrar de que acusá-lo. Porvários dias ele foi torturado, e a única coisa que conseguiramarrancar dele, quando estava tão quebrantado que não conseguianem mesmo levar comida à boca, foi que na realidade ele nãoera profeta, mas que as profecias eram invenção sua. E istoele negou assim que a tortura amainou. Foram feitos trêsjulgamentos, dois deles pelas autoridades florentinas e o terceiropelos legados do papa. Este no começo quisera que os florenti-nos lhe entregassem o prisioneiro, para dispor dele a seu modo.Mas os florentinos se negaram a fazer isto, não para salvar seuprofeta, mas por temor dos segredos que ele poderia revelara Alexandre VI. Por fim o papa concordou em enviar os seuslegados para que julgassem o caso em Florença mesmo; apesardisto lhes ordenou antes que partissem que o condenassem.

Nos três julgamentos Savonarola foi condenado semmisericórdia. Os legados do papa não conseguiram mais do que

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a confissão de que ele tivera a intenção de apelar a um concfliouniversal. Por fim, sem obter a confissão desejada, condenaram-no como "herege e cismático", apesar de nunca terem declaradoem que consistia sua heresia. Pouco antes tinham sido condena-dos, em circunstâncias semelhantes, dois de seus colaboradoresmais chegados.

De acordo com o costume, não era a igreja quem castigavaos hereges, mas estes eram entregues ao "braço secular". Poristo o novo conselho de Florença foi convocado para ditara sentença, e este decretou, como era de se esperar, que os trêsfossem mortos. A única misericórdia que tiveram com eles foiordenar que fossem enforcados antes de serem queimados.

Assim sucedeu no dia seguinte. Os três morreram comserenidade exemplar. Depois suas cinzas foram lançadas ao rioArno, para evitar que os seguidores do frade as recolhessemcomo rei (quias, Mas apesar disto houve durante várias geraçõesem Florença, e em outras regiões da Itália, os que guardaramrei Iquias do santo frade. Quando, anos mais tarde, Roma foisaqueada por tropas alemãs, houve quem visse neste aconteci-mento o cumprimento das profecias de Savonarola em relaçãoao castigo que Deus preparava para a cidade corrupta.

Repetidamente, também no século XX, houve católicosque falaram em declarar santo aquele frade dominicano quemorreu mártir das ambições de um papa. Talvez a igreja nuncachegue a dar este passo. Mas todos os historiadores concordamem que, naquele combate desigual, a justiça estava do lado dofrade.

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XIIO fim do

Império Bizantino

Os turcos temem acima de tudonossa união com os cristãos

ocidentais .... Por isto,quando quiseres lhes inspirarterror, faze-os saber que vais

reunir um concílio para chegara um entendimento com os latinos.

Pensa sempre neste concílio,mas nunca o convoques.

Manuel II Paleólogo, a seu filho

Os séculos XIV e XV foram tempos aziagos para o querestava do Império Bizantino. Como já dissemos no volumeanterior, em 1204 os cruzados se apossaram da cidade deConstantinopla, e estabeleceram nela um imperador e umpatriarca latinos. Em 1261 os gregos puderam novamente seapoderar da sua capital, e assim terminou o Império Latino deConstantinopla. Mas o mal estava feito. O velho Império Bizan-tino nunca recobrou sua glória perdida, e teve de se contentarem manter uma existência precária entre os ocidentais deum lado e os turcos de outro.

Nestas condições a questão das relações entre a igrejagrega e a latina dominou o cenário religioso de Constantinopla.O receio do povo em relação aos latinos se tinha aguçadoquando estes usaram a quarta cruzada para tomar Constantino-pla, e depois lhe impuseram seus costumes, doutrinas e hierar-quia eclesiástica. Os líderes bizantinos, tanto polfticos como

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eclesiásticos, tinham os mesmos receios. Mas eles viam a necessi-dade de chegar a um entendimento com o cristianismo ociden-tal, para poder resistir aos ataques dos turcos. Por isto quandoalguém propunha uma reunião com Roma, tratava-se sempredo imperador, o patriarca, ou algum outro civil ou clérigo dealto n (vel. E pelas mesmas razões todas estas propostas sucum-biam diante da firme vontade do povo, dos monges e do clerobaixo, para os quais os latinos eram hereges e cismáticos, comos quais não se deveria ter contato algum.

A situação pol ítica ficava cada vez mais complicada por-que, por ocasião da conquista latina de Constantinopla, tinhamsido fundados diversos países que se separaram da antiga capi-tal. Em Nicéia e Trebizonda houve impérios gregos rivais dolatino de Constantinopla. No Epiro, na Mésia e em outras áreasdo Egeu do Estados menores tentavam continuar a herançabizantina. Quando Constantinopla voltou a cair nas mãos dosgregos alguns destes Estados se submeteram a ela. Mas muitosoutros continuaram tendo sua existência independente, ouuma relação com a capital mais teórica do que real. Em conse-qüência os imperadores bizantinos eram senhores efetivos depouco mais do que Constantinopla e circunvizinhanças. Poucoa pouco os turcos iam estreitando o cerco. E não parecia havernenhuma defesa contra eles.

Em meados do século XIVa situação piorou. Os turcosotomanos, que já tinham se apossado da Ásia Menor, atraves-saram o Mar Negro e começaram a conquistar os Balcãs. Esteera o único território que restava a Constantinopla, além dealgumas ilhas no Egeu. Os genoveses se aproveitaram desta con-juntura e se apoderaram das principais destas ilhas, enquantoos turcos conquistavam toda a península balcânica, exceto oEpiro e o Peloponeso. O primeiro destes dois territórios seguiuum curso independente, até que foi conquistado primeiro pelosalbaneses e depois, no século XV, pelos turcos. O segundo foitomado pelos turcos em 1460, sete anos depois da queda deConstantinopla.

Privada de quase todos os seus territórios, e dividida porquestões de sucessão ao trono, Constantinopla somente pôderesistir como Estado vassalo dos turcos, aos quais se via obri-gada a pagar tributo. E esta situação também era extrema-

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GLlflrreiro o tomeno , de ecorao com 8 Crânice de Nuremberg.

mente precária, pois assim que os turcos se viram livres dosseus conflitos com os húngaros e os albaneses, era de se espe-rar que se voltassem contra Constantinopla. Já rodeada total-mente de territórios otomanos, como uma ponte entre a Asiae a Europa, a velha capital de Constantino era um enclave naspossessões do sultão Baiaceto. No começo do século XV pareciaque os turcos tomariam Constantinopla a qualquer momento.

Então aconteceu o imprevisto. Durante várias décadasos imperadores bizantinos tinham estado rogando ao Ocidentecristão que acudisse em sua defesa. Seus rogos não mereceramnenhuma resposta concreta. Mas no Oriente, entre os pagãos,se levantou o conquistador que, sem querer, prolongaria a vidade Bizâncio por mais meio século. Tamerlão, o terrível mongol

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que se propôs reconstruir o império de Gengis Cã, derrotouos turcos na batalha de Angora, na Asia Menor, em meados de1402. Isto deteve o avanço dos turcos. E apesar de Tamerlãoter logo abandonado a Asia Menor, os turcos se viram depoisdisto divididos por uma guerra civil entre os filhos de Baiaceto.Quando por fim o sultão Maomé I saiu vencedor ele teve dededicar seus esforços à consolidação do seu poder e a impora ordem em seus territórios. Seu filho, Murad l l, sitiou Constan-tinopla em 1422. Mas um novo ataque mongol, e a rebeliãode um de seus irmãos, o obrigaram a levantar o cerco. Dooutro lado os húngaros e os albaneses também obtiveramvitórias importantes sobre os turcos. Assim, salva por aconteci-mentos inesperados, Constantinopla conseguiu prolongar suaexistência. Mas em 1451 Maomé" sucedeu a I\ilurad, quandoeste morreu. E seu grande sonho era fazer de Constantinoplauma cidade muçulmana, capital do império.

Enquanto isto os imperadores de Bizâncio não tinhamoutro recurso que recorrer ao Ocidente latino, na esperançade que talvez desse ouvidos ao seu clamor. Foi então que tevelugar a reconciliação entre os dois ramos da cristandade, noconcflio de Ferrara-Florença, em julho de 1439. Mas isto nãotrouxe nada de proveitoso para a assediada Constantinopla,pois o papado não tinha o poder necessário para obrigar as po-tências ocidentais a enviar reforços à cidade assediada, e osgregos viram na ação de seu imperador e seus lfderes eclesiás-ticos uma traição e uma capitulação diante da heresia. Em1443 os patriarcas de Jerusalém, Antioquia e Alexandria,talvez em parte por pressão dos turcos, repudiaram o quetinha sido feito no concflio. Os russos reagiram da mesmaforma. E assim Constantinopla se viu completamente só, divi-dida e assediada pelos turcos. A Constantino XI, que reinavana época na cidade de seu homônimo, o Grande, não restavaoutro aliado que o ocidente cristão, e por isto ele insistiu emseus planos de união. Em dezembro de 1452 foi celebradoem Santa Sofia a missa romana.

Os dias de Constantinopla estavam contados. No dia 7de abril de 1453 Maomé II sitiou a cidade. Para derrubar asmuralhas ele usou peças de artilharia que engenheiros cristãostinham feito para ele. Os sitiados se defenderam valentemente,

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mas sua situação era desesperadora, pois as muralhas não resis-tiam ao ataque da artilharia turca. No dia 28 de maio houveum culto solene na catedral de Santa Sofia. No dia 29 ocorreuo último assalto dos turcos. O imperador Constantino XI Paleó-logo morreu defendendo a cidade. (Cinco séculos mais tardeeste autor encontrou no cemitério de uma pequena igreja angli-

MlJomé /I tomou posse da c/Um/IJ, I/lN IUI trsnstorrrede ne IstBmbulmuçotmene.

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cana de uma ilha do Caribe uma lápide que dizia: "Aqui jaz oúltimo descendente por linha direta de Constantino Paleólogo,o último imperador de Constantinopla".) Os turcos irromperamatravés da muralha, e por três dias e três noites, como o sultãotinha prometido, a velha capital foi saqueada. Depois Maométomou formalmente posse dela, e Constantinopla foi transfor-mada em Istambul, capital do Império Otomano. Na catedralde Santa Sofia, onde séculos antes João Crisóstomo tinha pre-gado, ressoava agora o nome de Maomé. O grande sonho deConstantino, de fundar uma nova Roma cristã, tinha terminado.

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Novas condições pol íticas e econômicas puseram fim à "era dos altosideais". A peste bubônica, que despopulou regiões inteiras, semeou opavor em toda a Europa. A morte passou a ser o tema principal dapregação cristã. O papado caiu em descrédito ao passar primeiro pelo"cativeiro babilônico" de Avignon, depois pelo Grande Cisma (quandochegou a haver três papas ao mesmo tempo) e pela série indigna depapas do Renascimento. Boa parte da igreja igualmente se corrompeu.Constantinopla, o antigo baluarte cristão, caiu em poder dos turcos.Mas em meio a tudo isto houve um impulso reformador, em queencontraram eco as palavras de Savonarola, Wycliff, Huss e outros.

E ATÉ AOS CONFINS DA TERRA:Uma história ilustrada do cristianismoVOLUME 1VOLUME 2VOLUME 3VOLUME 4VOLUME 5VOLUME 6VOLUME 7VOLUME 8VOLUME 9VOLUME 10

A ERA DOS MÁRTIRESA ERA DOS GIGANTESA ERA DAS TREVASA ERA DOS ALTOS IDEAISA ERA DOS SONHOS FRUSTRADOSA ERA DOS REFORMADORESA ERA DOS CONQUISTADORESA ERA DOS DOGMAS E DAS DÚVIDASA ERA DOS NOVOS HORIZONTESA ERA INCONCLUSA