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Fernando Pedrão UMA INTRODUÇÃO À POBREZA DAS NAÇÕES Vozes, Petópolis, 1991

Uma introducao a pobreza das nacoes

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Fernando Pedrão

UMA INTRODUÇÃO À POBREZA DAS NAÇÕES

Vozes, Petópolis, 1991

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O principal traço deste livro é tomar a pobreza como tema necessário da economia praticada como ciência social. Mostra que a cultura capitalista do progresso deve reconhecer seu oposto, que é a pobreza. Daí emerge o entendimento de que a valorização das pessoas nas sociedades é a grande questão subjacente na discussão de temas como desenvolvimento, subdesenvolvimento, acumulação, dependência, regulação. É um ensaio que rastreia uma linha de pensamento crítico configurada como interdisciplinar; e que se concentra nos nexos entre diversas contribuiçõcs essenciais à teoria social. O eixo do trabalho é o comentário à obra de Gunnar Myrdal, com suas conseqüências no pensamento sobre as políticas de desenvolvimento. Fernando Pedrão procura fazer a ponte entre estas contribuições e outros desenvolvimentos da teoria social, como os realizados pela Escola de Frankfurt, para alimentar uma discussão de questões da América Latina. Neste ensaio, o Autor ressalta a necessidade de conviver com a complexidade integral da realidade, sem simplificações de método que mantenham sua consistência formal, mas sacrifiquem sua representatividade. Para resgatar a universalidade da obra de Myrdal, sublinha a importância do realismo da análise. Como disseram, de um modo ou de outro, todos os que esposaram uma perspectiva histórica desde Hegel a responsabilidade da teoria é refletir o real.

Fernando Cardoso Pedrão natural de Salvador, BA, 1933, livre docente em

Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia. Dentre outras funções, foi professor visitante da Escola de Economia da Universidade de Nuevo Leon, México (1963/-1964), economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento Regional do México, México (1972/1978). E, a partir de 1983, professor adjunto da Universidade Federal da Bahia. Alguns de seus trabalhos publicados: Plantificación regional y urbana en America Latina (Siglo XXI, México, 1973), A política de irrigação do Nordeste (UNESCO, 1984), O pensamento da CEPAL (lanamá, Salvador, 1989), Os desafios atuais da economia e a perspectiva da dialética (CME/UFBA, Salvador, 1989).

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“Em minha concepção da ciência econômica e de seu desenvolvimento, um suposto implícito é que em cada período tende a haver um corpo de enfoques e teorias que dominam a cena, apesar de que sempre há rebeldes aberratórios e ocasionalmente eloqüentes”. “Mas o conformismo de vez em quando é quebrado. Uma crise destas implica no desestabelecimento do estabelecimento, até que uma nova ortodoxia tem lugar. O resultado é um desenvolvimento que tende a ser cíclico. A crise de pesquisa normalmente não são um simples desenvolvimento autônomo de nossa ciência, mas são causadas pelas forças externas de mudança na sociedade que estamos estudando e onde vivemos como participantes”. “A assim chamada revolução keynesiana em minha opinião não foi tanto o efeito de um livro e da proliferação de outros livros e artigos na onda que ele criou. Estas manifestações literárias de não-conformismo foram impelidas e ganharam importância de mudanças políticas e econômicas na sociedade (...), mas o amadurecimento ao mesmo tempo de tendências vigentes de mudança de organização no mercado de trabalho e na estrutura de poder político...” Gunnar Myrdal. Against the stream: critical essays on economics. Nova Iorque, Random House, 1973 (tradução livre).

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SUMÁRIO

Introdução 1 A referência wickselliana 2 A proposta do “Drama asiático” 3 Em defesa de uma sociologia da economia do desenvolvimento

3.1 Antecedentes teóricos

3.2 Os motores da desigualdade

3.3 Aspectos do problema na América Latina

4 Temas de maior interesse para os países latino-americanos

4.1 A visão de mundo

4.2 Os juízos de valor

4.3 Estrutura da análise socioeconômica

4.4 As relações econômicas internacionais

5 A valorização dos recursos humanos

51 A orientação do estuo dos recursos humanos

5.2 Os recursos humanos e o aproveitamento dos recursos naturais

5.3 Desemprego e subemprego

5.4 A utilização de trabalho na agricultura

5.5 A utilização de trabalho na indústria

5.6 A qualidade da população

6 As diferenças de condições iniciais 7 O reordenamento do debate 8 O drama latino-americano: a negação na mudança Bibliografia

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INTRODUÇÃO A origem deste trabalho foi o debate sobre o significado social da teoria e da política econômica que teve lugar no contexto da análise do desenvolvimento realizada na América Latina, na crise em que ela se encontrava em 1970. As propostas iniciais da CEPAL tinham sido ultrapassadas pelos acontecimentos: entre a reação do conservadorismo econômico e a instalação das correntes que demandavam maior consistência com a experiência histórica, havia uma forte pressão para a renovação da interpretação da realidade latino-americana. Nesse contexto, Raul Prebisch liderou uma equipe do Instituto Latino-americano de Planejamento Econômico e Social – de que fez parte este autor – com o propósito de gerar um documento que captasse as tensões do debate teórico e refletisse melhor a pluralidade de experiências nacionais. No plano teórico contava-se com contribuições novas sobre os processos de dependência e de marginalização em seus vários níveis e aumentara muito o conhecimento factual dos países da região, pela própria acumulação de experiência em trabalhos de campo. Algumas contribuições significativas no campo da sociologia e da antropologia somavam-se a certo fortalecimento da percepção crítica das questões latino-americanas e maior capacidade para comparar com experiências de outras partes do mundo. E isto ia em paralelo com fortalecimento da análise de fundo marxista. Mas havia limitações decisivas: a dificuldade para tratar sistematicamente – e para expurgar – algumas propostas pouco fundadas de análise; e uma inegável dificuldade para tratar com a pluralidade de experiências nacionais, onde se acentuavam os contrastes entre o recrudescimento das ditaduras e a revolução cubana. Mais que nunca tornava-se necessário processar rapidamente o material teórico e o conhecimento empírico disponíveis, voltar às propostas iniciais identificadas com a análise do desenvolvimento. A incorporação da contribuição de Myrdal significava injetar nesta discussão uma linha de trabalho com certa afinidade com a da CEPAL, mas que pertencia a uma corrente de pensamento surpreendentemente pouco conhecida nesta parte do mundo, dada a proximidade de experiências no âmbito das Nações Unidas e o interesse que diversos círculos latino-americanos tinham pelo trabalho de Knut Wicksell. Mas a incorporação da contribuição do Drama asiático significava o reconhecimento de toda uma linha doutrinária heterodoxa que surgira antes da Teoria geral de Keynes e que continuava como uma vertente de crítica da análise e da política econômicas que são de inegável interesse para os países periféricos. Assim, a leitura do Drama asiático enseja uma revisão de alguns critérios fundamentais da análise social, tais como a questão de valor (no sentido de valorizações), o substrato cultural ligado a valores e à explicação de políticas e uma percepção sociológica da análise econômica levando a uma rejeição sistemática de dogmatismos.

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Mas o Drama asiático nunca foi muito lido na América Latina. Com a intensidade dos acontecimentos ocorridos desde então pode ter caído no esquecimento antes de ter sido analisado. Mas é uma obra muito utilizada – principalmente por suas contribuições práticas – através de leituras de segunda mão, sem que suas principais teses tenham sido examinadas. A revisão da versão original desta monografia é parte de um esforço de retomada de linhas de trabalho que em certo momento ligaram o planejamento a longo prazo com um interesse no tema da distribuição da renda e da pobreza. A redução dos estudos de distribuição aos da distribuição interpessoal, com o concomitante abandono do estudo da distribuição entre grupos e regiões, significou o abandono das discussões dos problemas de formação de poder na política econômica, uma atitude que certamente reflete uma onda de conservadorismo da análise. Discutir a distribuição, como estudar a realização do lucro, são aspectos de uma explicação mais realista do significado social do padrão de formação de capital. E esta é uma questão que não pode ser relegada sem que a análise econômica perca a capacidade para captar a atualidade do processo econômico. Por todas essas razões vejo esta monografia como peça de um debate que pode estar recomeçando, e para isto deve ter a competência de resgatar e criticar suas etapas anteriores. O trabalho toma como referência central o Ásian Dramma, de Guinnar Myrdal (Nova Iorque, Random House, 1968), mas refere-se ao conjunto das obras desse autor e a alguns outros textos da análise social, teórica e prática, que estão mais diretamente ligados ao debate aqui suscitado.

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1. A REFERÊNCIA WICKSELLIANA

Para entender a trajetória e o significado do trabalho de Myrdal convém partir da identificação de uma linha de preocupações com a responsabilidade social da teoria e com os conseqüentes compromissos com uma colocação pertinente - expressão de Myrdal e de sua relação com outras ciências sociais. Corresponde a uma postura cujas raízes estão em Wicksell, tornando necessária uma nota sobre sua obra e sobre sua influência na trajetória de Myrdal. É um nexo fácil de traçar pela leitura de alguns dos textos de Wicksell, de Erik Lindahl e do próprio Myrdal. Uma visão geral desta postura nos é dada por Lindahl em sua introdução aos Selected papers on economic theory de Wicksell.1 Descreve ali o duplo engajamento de Wicksell com a precisão conceitual da teoria econômica e com problemas sociais concretos, como para ele sempre foi essencial a responsabilidade social da teoria. Assim, distinguem-se: (a) o engajamento com a participação cotidiana em questões de interesse público, (b) a responsabilidade social da tributação, (c) a discussão do controle da natalidade, (d) a emancipação da mulher e (e) a liberdade de pensamento.

As palavras do próprio Wicksell na introdução de suas Lectures on polítical

economy2 expõem que “... o mais importante certamente é a distribuição da propriedade, tanto como a posse da terra ou um monopólio excepcional de qualquer tipo necessariamente exclui outros daquela terra ou daquele monopólio. Os interesses econômicos nacionais e os privados então não coincidem, e surge a seguinte questão a ser seguida: em outras palavras, qual dos dois interesses em conflito deve ser preferido como contribuindo mais para o bem comum. A resposta desta questão é o dever social e prático da economia política, e pode-se dizer que a definição da economia política como ciência prática é a teoria da maneira de satisfazer as necessidades humanas que dá a maior satisfação à sociedade em seu conjunto, tanto em relação com as gerações futuras como com as presentes. A atual organização individualística da sociedade, tanto quanto socialmente justificada, deve então ser vista como um meio para alcançar aquele fim". Prevalece, portanto, o interesse social. Ficam as dificuldades técnicas para defini-lo,

1 Os ensaios selecionados de Knut Wicksell (Selected paers on Economic theory. Nova Iorque, A. Kelley, 1969) contêm a maior parte dos seus pronunciamentos explícitos sobre sua concepção teleológica da economia. A introdução de Erik Lindahl ressalta suas duas tônicas no rigor analítico e no engajamento. Para Wicksell a economia é uma ciência social que tem a ganhar e a oferecer em suas relações com as demais ciências sociais. Destaca-se o ensaio "Fins e meios em economia" (1904), incluído nesse volume: "chamar uma ciência ou um método científico de 'exato' e outro de 'empírico' ou 'especulativo e, abstrato', de acordo com circunstâncias, é injustificável. Toda verdadeira Cência e todo método efetivo é empírico na medida em que deve partir de e chegar à realidade" (p. 57). 2 O engajamento da ciência social para Wicksell é com o cotidiano, com questões práticas, não pode ficar restrita a posturas interpretativas. Das Lectuares on polítical economy, citamos: "Pode-se dizer que em certa medida um dos méritos da ciência econômica é ter produzido uma revolução na opinião pública. Logo que vemos os fenômenos econômicos seriamente como um conjunto e procuramos as condicões de bem estar do conjunto, deverá emergir uma consideração pelos interesses do proletariado; e daí à proclamação de igualdade de direitos é somente um curto passo" (p. 4).

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para tratar com ele, para encontrar modos justos de atendê-lo.

Está claro, portanto, que ha uma questão de sentido de finalidade no trabalho teórico que implica num compromisso com a capacidade explicativa do real, assegurada a liberdade do trabalho teórico para realizar-se com o necessário rigor formal. Aí surge o outro lado da questão: o modo como a economia se move entre as demais ciências, sua capacidade para entender-se com elas e para aprender com elas. Lembramos que a teoria econômica continuou trabalhando com uma concepção de análise comportamental que ignora os condicionantes culturais e de diferença de renda no comportamento das pessoas como indivíduos ou como integrantes de núcleos familiares, de que não podem se abstrair. Lembramos que a atual economia positiva trabalha com uma universalização dos comportamentos, que por definição exclui o substrato socioantropológico da análise, bem como, na análise econômica, ignora os efeitos dos progressos da psicologia, da história.

Voltamos a Wicksell, agora em seu ensaio "Ends and means in economics"3: "Assim, a economia sistemática não pode ser desconsiderada no círculo das ciências, nem pode ela própria desconsiderar o apoio disponível". E em outro parágrafo: "O que eu já disse torna suficientemente claro que a história econômica e as estatísticas são de imensa importância para a economia. São realmente seus auxiliares mais importantes. A história em particular tem a tarefa iluminadora e excitante de ensinar-nos a compreender a ordem existente de coisas, e mostrar-nos como certas instituições ultrapassadas ou costumes, que agora aparecem completamente irracionais, foram alguma vez completamente justificados, em diferentes condições".4

Com Valor, capital e renda (1893), Wicksell fez um desdobramento da estrutura de análise da escola austríaca, procurando integrar a teoria do capital de Bohm-Bawerk com uma revisão da teoria da moeda: ao substituir a teoria quantitativa da moeda por uma teoria baseada em preços relativos, abria caminho para uma revisão da posição do governo no processo social de distribuição. Conseqüentemente, revisou a teoria da renda, levantando algumas questões que com o tempo se tornaram imperativas para explicar o funcionamento de economias em que se acelera a capitalização. Diz: "Por outro lado não é certo dizer, como faz Bohm-Bawerk, e tentar excluir os meios de

3 Na visão de Wicksell, as relações entre ciências se dão como resultados de seu espectivo tratamento de problemas práticos e não como resultado do trabalho teórico. Tanto a economia como a sociologia deveriam responder problemas concretos atuais e em todo caso identificá-los com precisão. Temos aqui uma questão de teoria do conhecimento e não apenas uma questão de teoria da ciência. É um ponto levantado por Nicolai Hartmann (Metafísica del conocimiento. Buenos Aires, Losada, 1957) quando apresenta a formação alternativamente à sistematização de fenômenos. 4 A distinção entre caráter histórico dos fenômenos estudados, o método histórico, a historicidade da análise foi aqui indicada, revelando uma atitude de Wicksell contraditória com sua adesão aos procedimentos positivos de análise. A ênfase em extrair observações históricas como meio de dar realismo à análise formal e econômica coloca um problema que certamente não pode ser resolvido no ãmbito da própria análise instantânea. Esta lacuna provavelmente é a primeira justificativa para a posterior ênfase de Myrdal na análise institucional.

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melhoramento do solo, já que eles "cresceram junto' com a terra, da esfera do capital. Do mesmo modo, melhoramentos tais como a fertilização e coisas semelhantes serão suficientes apenas por algumas colheitas e devem subseqüentemente substituir o capital investido depois de algum tempo, fazendo parte do capital integrado na agricultura como ferramentas, trabalho, animais de tiro e animais produtores de alimento". Mais uma vez aí encontramos a combinação do esforço pelo rigor da análise com a preocupação com a aplicabilidade da teoria no plano prático

Por tudo isso e principal referência da obra de Wicksell é Bohm-Bawerk, com cuja teoria do capital teve que lutar para chegar à identificação de sua própria contribuição teórica. Esta aparece no primeiro volume de suas Lições de economia política (2a ed., 1911), onde ele empreende uma apresentação conjunta dos problemas de produção e distribuição. O centro da questão aí é a determinação conjunta dos preços e dos salários, atingindo simultaneamente o ritmo de inovações tecnológicas e de uso de capital. A teoria da moeda é o complemento necessário do anterior Será através da análise do valor de troca da moeda que Wicksell completará a estrutura de seu pensamento teórico. Assim, o fator tempo é fundamental na montagem dessa proposta teórica tão próxima da problemática econômica atual A correlação entre o tempo na formação do produto e na formação da taxa de juros é o traço fundamental da análise que procura mostrar como o controle da variável monetária é parte do movimento da esfera real.

O legado de Wicksell aparece com muita força em dois dos primeiros trabalhos de Myrdal, que são muito reveladores de sua posição sobre a progressão da teoria econômica e sobre os aspectos institucionais do funcionamento dos sistemas econômicos São eles o Equilíbrio monetário (1939) e o Elemento político no desenvolvimento da teoria econômica (originado em 1928 e publicado em inglês em 1953), ambos valorizando a leitura crítica da teoria e submetendo-a à prova da aplicabilidade.

O Equilíbrio monetário contém fortes críticas à onda keynesiana que devem ser atribuídas aos requisitos wicksellianos de clareza e à questão da identidade da poupança com o investimento. Cabem algumas citações: "Na teoria dos preços, Wicksell era um aluno de Bohm-Bawerk, a taxa monetária de juros assim definida corresponde à produtividade física marginal do processo de produção" (p. 39). E adiante: “O problema dinâmico propriamente dito concerne ao desenvolvimento de um ponto no tempo, a um segundo, a um terceiro, e assim por diante. Por serem, os períodos de tempo, definidos como intervalos entre dois pontos, torna-se claro que uma análise instantânea não é somente uma preliminar de uma solução completa dos problemas dinâmicos, mas é necessária como uma base para uma análise ulterior destes problemas" (p. 55). E depois de comentar sobre a falta de clareza dos conceitos de Keynes, reitera que "esta idéia de não identidade entre o investimento e a poupança é de importância fundamental para o conjunto da teoria de Wicksell, e, como já tínhamos apontado, evidente para um espirito prático" (p. 95).

O Elemento político no desenvolvimento da teoria econômica tem como tema

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central a relação entre a teoria econômica do valor e o fundo ideológico da teoria; e vê o plano político como a formalização operacional desta relação. Significa uma demanda de operacionalidade da teoria pela qual a teoria para ser prática tem que ser fortemente abstrata e ao mesmo tempo resolver a relação entre a estrutura teórica da economia e a estrutura teórica das demais ciências sociais. Aqui também são pertinentes algumas citações: "A crença implícita na existência de um corpo de conhecimento científico adquirido Independentemente de todos os juízos de valor é ingênuo empirismo. Os fatos não se organizam a si mesmos em conceitos e teorias apenas por serem contemplados; em verdade, exceto dentro da moldura de conceitos e teorias, não há fatos científicos, mas apenas o caos" (P 9).

A referência wickselliana leva, em suma, ao tratamento explícito dos problemas de valor na prática social e na formação da teoria. Este é o traço que se torna nítido no Drama asiático, quando Myrdal precisou reorganizar a análise dos processos econômicos para sua busca de respostas do processo de formação de capital para a sociedade. A questão central é: como fará a economia para devolver à sociedade o que tira dela para sustentar o processo de acumulação? Ao perceber que a referência à pos-tura de Wicksell se transforma numa proposta política e internacionalista, teremos que ver, adiante, como as propostas de política econômica nacional terminam por constituir a sustentação de propostas de internacionalização igualitária. Estes últimos aspectos constituem o tema de Solidariedade ou desintegração (1955) e Além do estado do bem-estar (1960), que exploraram a interdependência entre a formação de uma ordem internacional construída sobre os princípios do fortalecimento do poder dos Estados nacionais – com prevalência ao distanciamento dos países mais poderosos e ao egoísmo de todos – e a universalidade da pobreza e da exclusão social. Os dois trabalhos combinam certa dose de utopia com um humanismo valoriza a pessoa, bem ao tom do que recomeçou a aparecer com os movimentos do fim da década dos anos 60. Mas é este mesmo humanismo que aparece, circunstanciado na análise de problemas concretos de pobreza, no contexto do Drama asiático. A discussão explícita de valores reclamada por Wicksell e por Myrdal termina sendo uma proposta de recuperação das conotações ideológicas da política econômica e uma crítica ideológica do planejamento.5

5 A explicitação de valores é um dos pontos maia fortes das orientações do Drama asiático e foi retomada por Myrdal em seu Against the stream (Nova Iorque, Random House, 1573). A sustentação conceitual desta posição está em seu anterior The polítical element in the development of economic theory traduzido em português com o título de Aspectos políticos de teoria econômica (Rio, Zahar, 1962). É um ponto importante porque assinala uma separação Myrdal em relação com Weber, de quem está muito próximo no tratamento que deu à análise das classes sociais nos países asiáticos. Nestes textos e no anexo em que critica o trabalho de W. W. Rostow, Myrdal apresenta a explicitação de valores como uma queslão praticamente inseparével de sua concepção da ciência social, como dotada sempre de sentido de finalidade. estudos sociais não são gratuitos nem apenas factuais: estão aí como contribuição para resolver problemas práticos.

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2. A PROPOSTA DO "DRAMA ASIÁTICO"

O Drama asiático é um estudo de grandes proporções sobre o conjunto dos problemas sociais, econômicos e técnicos enfrentados pelos países do sul da Ásia no mo-mento da desarticulação dos impérios coloniais. Tem, portanto, um compromisso primordial com a oportunidade histórica dos problemas, com o fato de que são estes problemas que acontecem deste modo nesta experiência histórica. "As condições econômicas e sociais dos países do sul da Ásia não são muito diferentes das que existiam antes da desintegração do sistema colonial de poder. A única mudança maior é a acumulação da taxa de crescimento da população" (p. 9). Já aqui ficam registradas sua preocupação com as condições específicas dos processos sociais, sua ênfase no plano institucional e sua adesão ao neo malthusianismo O Drama asiático toma a ruptura política da desintegração dos sistemas coloniais como ponto de partida e da formação de novas estruturas políticas nacionais; procura contrastar o quadro de valores transmitido pelo movimento de modernização representativo do processo do capital na Europa com o movimento de transformação de valores que ocorre no interior de cada país representativo da conjunção de sua formação com o choque da expansão do capital. A relação entre o plano político, contendo o da formação cultural, e o plano econômico fica definida, desde o começo do livro, como um componente essencial dos movimentos econômicos do capital.

O quadro político é tomado como uma ruptura decisiva na discussão das transformações sociais, em que se conjugam a questão do desenvolvimento, tomado como o oposto da permanência da pobreza. Assume-se claramente que a pobreza não será superada sem uma atividade deliberada do governo para este fim, em que também está claro que o governo deverá mobilizar a sociedade, ou ser parte de uma mobilização da sociedade para transformação de estruturas persistentes. Não se trata em momento algum de uma intervenção pública a la Keynes para manter o padrão de acumulação, senão de uma intervenção identificada com um aumento de mobilidade social e uma mudança na distribuição. A modernização é tomada como o oposto do eixo tradição-cultura; e o planejamento representa uma ruptura na racionalidade prevalecente nas ações do governo. O quadro político também é fundamental. porque, como diz Myrdal, "todos os estudos sociais, mesmo naquele plano teórico em que os fatos e as relações causais não são colocadas, estão dirigidos para a política. no sentido em que assumem uma determinada mudança social como desejável" (p. 49). O planejamento aparece como a representação de uma vontade social diante daqueles problemas inevitáveis: uma forma e uma prática de coordenação. Assim, tanto quanto se declara pró-planejamento, Myrdal se reconhece em busca de uma ética renovada dedicada a modos de sociedade que levem à superação da pobreza. Mas a condição de subdesenvolvimento faz com que o planejamento tenha que enfrentar com maior clareza os problemas de utilização do trabalho na produção. O engajamento de trabalhadores na produção é a preocupação central do "Drama asiático. A grande

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tese subjacente no livro é a de que não há como dirigir uma economia sub-desenvolvida sem planejar; e não há como planejar sem tomar integralmente o eixo de problemas, emprego, remuneração dos trabalhadores. A quarta e a quinta partes do livro são dedicadas, respectivamente, ao planejamento, aos problemas de utilização de trabalho no processo produtivo, considerando o potencial de trabalho representado pelos trabalhadores e o trabalho que eles efetivamente realizam. Supostamente, se o planejamento reflete a capacidade da sociedade para dirigir-se racionalmente, não há como ignorar que a análise do planejamento deva ser uma análise institucional, ou em todo caso uma análise capaz de captar a estruturação institucional e as substituições que ocorrem neste âmbito.

Assim, é necessário revisar em que consiste a análise institucional. Não pode ser uma análise descritiva das instituições, ou que as trate como produtos de processos insólitos. Esta análise deve explorar os efeitos das mudanças no quadro institucional na organização e no funcionamento dos sistemas produtivos dos países subdesenvolvidos. Myrdal tentou captar a especificidade do Terceiro Mundo pela novidade de sua experiência com a modernização do capital industrial, diferente dos países europeus. Mas em momento algum identificou desenvolvimento com industrialização. Pelo contrário, focalizou as inter-relações entre as transformações da agricultura e as da indústria e atingiu, repetidamente, os pressupostos da dominância da indústria na expansão econômica moderna.

A visão critica da teoria é um traço marcante da obra de Myrdal. Significa primeiro uma revisão das questões fundamentais de sustentação da teoria: a questão da teoria do valor, a relação entre as posições sobre a temática da teoria e as propostas de política, a teoria das finanças públicas onde Myrdal desenha a relação entre a trajetória do pensamento teórico e político de Wicksell, as contribuições de Lindahl e seu próprio trabalho; mostra aí um sentido da relação teoria-práxis, em que a postura de justiça distributiva está ligada a uma prática ao nível do cotidiano da política social, o engajamento político direto. Na visão crítica da teoria, entre um poderoso e explícito componente de discussão de método que passa pela revisão dos agregados macro-econômicos e de seu significado, da posição da análise institucional, da análise aplicada especialmente no que se refere à agricultura e ao emprego e no tratamento dos elementos subjetivos da análise. A análise social tem um componente subjetivo inevitável, que deve ser explicitado justamente para controlar as tendenciosidades (Drama asiático, prólogo e cap. 2).

A postura teórica que se adotar frente ao subdesenvolvimento influirá ao juízo que se fizer do significado de um trabalho sobre este tema. Myrdal advoga pela consideração sistemática da sociologia do conhecimento, um terreno em que se aproxima das posições de Schumpeter.6 Entendia que a validade atual de um trabalho de 6 Trata-se basicamente do bem conhecido capítulo de Schumpeter em sua History of economic analysis (Princeton, 1956), em que ele colocou a integração da análise econômica com outras formas de análise social como um requisito de solidez da análise econômica e não como uma opção de método. Significa também uma cobrança de atualidade da análise econômica, que simplesmente não pode ignorar

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teoria depende de sua relação com o fluxo anterior de pensamento sobre a matéria que trata. O Drama asiático constitui um retorno à atitude dos clássicos na análise social, tal como declara através da paráfrase do subtítulo: uma pesquisa sobre a pobreza das nações. Refere-se diretamente aos fatos e através deles desenvolve a discussão teórica. A revisão das teorias se faz ao longo da discussão de problemas concretos, como contraponto da discussão de questões práticas.

O livro consta de um prólogo que antecipa a situação sócio-histórica do

subdesenvolvimento e divide-se em sete partes. A primeira é precedida de uma introdução que examina o escopo do estudo, os problemas de valor em que ele implica e a aplicação dos critérios resultantes da problemática estudada. A segunda parte situa, política e historicamente, a região estudada, com a apresentação de seus problemas econômicos. Na terceira parte apresentam-se os casos de subdesenvolvimento econômico a partir da relação recursos/fatores de produção. De certo modo a segunda e a terceira partes constituem uma unidade no sentido em que até ali serão expostos, a nível global, os casos de desenvolvimento que se estuda. A quarta, a quinta e a sexta partes tratam de problemas de planejamento, inclusive da crítica da viabilidade da política econômica frente ao seu marco institucional, e da problemática da utilização de trabalho e de trabalhadores na produção. (Trata-se aqui de um enfoque alternativo ao da análise marxista da composição orgânica do capital, que se centra no processo social de emprego.) Este último tema, fundamental em toda a estrutura do livro, começa com uma crítica à transferência dos conceitos em que se baseia a análise socioeconômica dos países desenvolvidos para as economias subdesenvolvidas e termina por estruturar uma perspectiva de estudo do desenvolvimento que consiste numa maximização do aproveitamento da força de trabalho. A sétima parte aborda os recursos humanos do ponto de vista da organização social e dos investimentos que lhes são destinados.

O livro se prolonga ainda numa série de ensaios anexos em que se situam as

discussões teóricas colocadas pelos problemas empíricos tratados. Abrangem um campo que vai desde o exame de questões de forma até aspectos substantivos da teoria econômica do desenvolvimento e seus correspondentes fundamentos sociais e políticos. Estes ensaios cobrem a maior parte dos antecedentes teóricos do planejamento, tal como ele se apresenta nos países subdesenvolvidos. O substrato cultural, resultado do processo de incorporação de experiências e substituições na formação das identidades nacionais, ocupa um lugar fundamental nesta qualificação dos usos do aparato de análise econômica. Reaparece de modo explícito nos ensaios anexos. É utilizado para estabelecer os limites de validez e significância dos resultados alcançados. É importante observar que a argumentação cultural e política em Myrdal foi trabalhada como uma linha de análise não ortodoxa que contrasta com mais força com seus primeiros trabalhos, como o Equilíbrio monetário. A reivindicação feita por ele da heterodoxia de Wicksell, e da importância da contribuição desenvolvida nos países nórdicos antes de

inpunemente os progressos de outras ciências. Um dos pontos mais fortes desta discussão, que encontramos adiante em trabalhos de Myrdal, é a reivindicação de uma reivsão dos pressupostos da análise econômica à luz dos progressos da psicologia, da antropologia.

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Keynes, primeiro aparecida no Elemento político na formação da teoria, atinge também a postura interdisciplinar, em que insiste no Drama asiático e numa discussão dos conteúdos culturais, que apareceu explicitamente em Contra a corrente (1973). Assim, podemos considerar que a principal proposta do Drama asiático é de uma crítica "prática" da teoria, entretanto sustentada numa visão crítica da própria teoria, isto é, trabalhando as contracorrentes, as dissidências do fluxo central da teoria econômica ortodoxa. O contraste da originalidade das experiências atuais dos países subdesenvolvidos com a formalização de um corpo teórico de validez universal é um problema central da análise econômica. Em texto posterior – "How scientific are the social sciences?", incluído em Against the stream – Myrdal oferece uma resposta: os problemas sociais são mais difíceis que os das ciências naturais porque "o comportamento humano não é constante, como o dos corpos celestes". A economia enfrenta uma dificuldade adicional, que provém de ter pretendido por tanto tempo ser mais parecida com as ciências naturais e não ter se esforçado o suficiente para distinguir os elementos relevantes e não relevantes de cada problema. Estas questões metodológicas tornam-se mais pesadas de carregar quando se trabalha com as formalizações matemáticas que tendem a diluir ou contornar as diferenciações qualitativas. E esta é uma questão que terá que ser enfrentada, de um modo ou de outro, no momento em que desenvolvimento.

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3. EM DEFESA DE UMA SOCIOLOGIA DA ECONOMIA

DO DESENVOLVIMENTO

3.1. Antecedentes teóricos

A orientação dada por Myrdal à análise contida no Drama asiático revela sua atitude frente à natureza do conhecimento científico na ciência econômica e de uma crí-tica – pertinente segundo sua própria linguagem – das generalizações irrestritas e não confrontadas com material do real. Desta crítica partem duas tendências de seu tra-balho: a de revisar os fundamentos da ciência econômica à luz da teoria do conhecimento e a de manter-se sempre em contato com o real. A coincidência com o método pessoal de trabalho de Marx é grande, a despeito das imensas diferenças no manejo do material empírico, em que Myrdal situou-se sempre naquele plano de generalização que pressupõe a ação constante do Estado nacional. Mas em comum há também um outro aspecto, de primazia ao problema, à problematização implicando no manejo explícito de relações de causalidade, como caminho de superação do empirismo e como referencial na crítica das simplificações infundadas de análise e no absolutismo lógico.7

Tudo isso atribui uma posição-chave na estrutura do Drama asiático à critica dos

fundamentos empíricos da teoria, cujos elementos essenciais podem ser representados mais ou menos do modo seguinte: com referência ao que denominou de "crise de princípios que as ciências sociais experimentam depois de terem passado por períodos de intenso crescimento e de acumulação de informações novas – tal como Ortega y Gasset atribuiu à filosofia8 - ao destacar a alternância entre períodos de consolidação e

7 A crítica ao absolutismo implítico no positivismo é um dos pilares da teoria crítica contemporânea em seu enfrentamento com as estratégias de adaptação do cientificismo às demandas da pesquisa atual. Os elementos essenciais desta crítica foram colocados por Theodor Adorno em sua introdução ao volume que reúne um debate entre a corrente crítica representada pelo grupo de Krankfurt e es posições do empirismo racional de Karl Popper e hermenêutica de Hans Albert. Este volume – La disputa del posi-tivismo eu 1a sociología alemana (Barcelona, Grijalbo, 1973) – reflete uma reststência a uma teoria da ciência imune crítica da teoria do conhecimento (ver meu próprio: Os desafios atuais da economia e a perspectiva da dialética, 1989) e estabelece uma postura crítica sobre o método científico que se opõe também a propostas de “adaptação” da dialética – agora recuperando a designação anterior de Lukács como de realismo crítico – do tipo daquela defendida por Geymonat (ver, por exemplo, GEYMONAT, L. -GIORELLO, G. As razões da ciência Lisboa, Ed 70, 1986). O absolutismo lógico implica, essencialmente, na busca de uma teoria do proceder científico independente do objeto, de quaisquer qualificações do objeto, que leva a excluir a originalidade da teoria social. É urna disputa não concluída porque passa agora por uma revisão do poder explicativo e do significado da explicação: reconhecer um saber como tal, esperar uma função libertadora do saber etc. 8 Em seu “Que es filosofia? (Revista del Occidente, Madri, 1958) Ortega y Gasset propõe que o desenvolvimento do pensar filosófico, com a apreensão de problemas, leva naturalmente a crises, no sentido em que expõe necessidades adicionais de consistência com um campo maior de referências. É uma idéia de mudanças qualitativas ao longo de uma progressão, diferente da noção de paradignma exposta por Thomas Khum e antecipada por Myrdal em seu Contra a corrente. As crises do pensamento indicadas

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períodos de crise. Esta mesma atitude foi tomada por Schumpeter quando separou os problemas de teoria do conhecimento aplicada à ciência social em geral e à ciência eco-nômica em particular, do que chamou de sociologia da ciência, que trata a ciência como um produto social e "analisa os fatores sociais que produzem um tipo de atividade, condicionam sua taxa de desenvolvimento, determinam sua orientação na direção de certos objetivos em vez de outros".9

Estas observações estão relacionadas com a possibilidade material de formular ou descobrir leis em ciências sociais cujo emprego possa generalizar-se para tratar de novas experiências. A colocação de Myrdal a favor de uma revisão dos pressupostos de método da teoria econômica, especialmente dos pressupostos políticos e culturais, coincidia com as vertentes da crítica sociológica e filosófica de Frankfurt no relativo à resistência àquelas hipostasias de método que consistiam em atribuir maior rigor ao indutivismo que o justificado pelos âmbitos históricos de análise. Esta posição, marcada sucessivamente por Adorno10 e por Habermas11, demandava uma revisão dos procedi-mentos práticos da análise que a nosso ver são justamente aqueles propostos no Drama asiático. Esta crítica, que passa pela rejeição de generalização dos comportamentos, portanto, pela reivindicação de uma análise cultural da formação de classes, vai ao encontro dos problemas teóricos suscitados pelas experiências dos países sub-desenvolvidos, especialmente quando eles são projetados numa ruptura externamente deflagrada, como é o fim dos impérios coloniais, ou como é a ruptura do comércio inter-nacional, tal como aconteceu na América Latina no começo dos anos 60 e meados da década de 70. Que pertinência tem uma teoria que parte justamente do pressuposto de

por Ortega pressupõem a continuidade da tensão causada pelo esforço de interpretar problemas; portanto, estão ligadas à internalização do objeto por parte do sujeito. 9 Faz-se aqui alusão à History of economic analysis (Princeton, 1956), um trabalho póstumo, inconcluso,

mas que projeta muita luz sobre trabalhos anteriores de Schumpeter, tais como Capitalismo, socialismo e democracia e outro ensaios. Mais uma vez a reivindicação de uma fundamentação da ciência social a partir de suas próprias determinações, que não pretenda justificar perante a ciência física ou a metemática. É interessante observar como Schumpeter e Wicksell originários da ortodoxia vienesa, geraram correntes de opinião cujos respectivos desdobramentos expõem contradições entre método e sentido de finalidade, ou ainda que vetam a colocação do método por separado dos temas em questão.

10 Alusão ao ensaio "Sociologia e investigação empírica" (em La disputa del positivismo en la sociología alemana. Barcelona, Grijalbo, 1972) em que Adorno critica o absolutismo metodológico do positivismo: "a frase de um pesquisador precisa de dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração, que vemos citada com freqüência, é subalterna e aponta a ums proibição do pensar, ou: “a pesquisa social empírica deveria liberar-se radicalmente da superstição de que toda pesquisa deve começar como uma tábula rasa em que ficam incrustados os dados, dados que são encontrados sem quatquer pressuposto". As críticas de Adorno à Sonometria são equivalentes às que podemos fazer à econometria, quando ela substitui o modo econômico (social) de pensar pelo matemático. Neste sentido vale lembrar também o ensaio de John Hicks "Linear tbeory" (The Economic Journal, 1961), em que há uma tentativa de recomposição entre o modo econômico de pensar e os modos instrumentais que terminam por substituí-lo. 11 Em seu Problemas de legitimación en el capitalismo tardio (Buenos Aires, Amorrortu, 1973), Habermas aponta para a necessidade de se captar o conteúdo processual incorporado às estruturas institucionais do capitalismo. É um dos grandes pontos de aproximação do trabalbo aplicado de Myrdal com o pensamento teórico de Frankfurt.

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ausência de rupturas, que supõe que o curso da história econômica da Europa ocidental é representativo do curso da história econômica dos países subdesenvolvidos?

O Drama asiático contém uma defesa vigorosa da pesquisa econômica diretamente orientada aos fatos, na qual se incluem os antecedentes históricos com que trabalham os economistas. O esforço que realiza para identificar o arcabouço institucional com que operam as economias subdesenvolvidas do sul da Ásia, para compará-las com o arcabouço institucional que está atrelado ao estilo europeu de desenvolvimento, é o instrumento que permite identificar as tendências de comportamento nas sociedades que analisa e que lhe servem de referência em seu traba-lho. Cumprem eles a função de ajudar a selecionar as variáveis mais representativas do processo econômico e social e avaliá-las. Há, portanto um esforço de análise categorial e apoiado no real, do mesmo tipo daquele elaborado por Adam Smith, cujo questionamento de valores aqui é explícito.

Para Myrdal a questão moral está em toda a teoria econômica, como declara em Solidariedade ou desintegração12: "No fundo da integração econômica internacional existe, como em todas as demais situações econômicas e sociais, um problema moral". E esta questão moral não está jamais separada de problemas de poder: "... não se pode esperar que uma liberalização do comércio internacional por si só mude radicalmente esta situação de aberta desintegração internacional, ou esta tendência a uma diferença cada vez mais profunda nos níveis de produção, de consumo e de vida. Por si só um comércio mais livre propenderia a perpetuar a estagnação nas regiões subdesenvolvidas' (p. 13).

Assim, temos uma delicada contradição a tratar, que põe frente a frente a busca de pautas gerais de comportamento, que em princípio poderiam ser atribuídas ao modo capitalista contemporâneo e à necessidade de tratar com relações essencialmente desiguais entre países, em que a especificidade institucional revela diferentes trajetórias de suas respectivas formações sociais. Um dos aspectos mais interessantes do tratamento da questão institucional em Myrdal, que aparece em Além do estado do bem-estar, justamente aquele que correlaciona as propostas de mudança institucional com a especificidade da formação das instituições no quadro de cada processo nacional.

12 A reivindicação de que a economia é uma ciência moral aqui é feita deliberadamente, no sentido oposto ao que lhe foi dado pelo empirismo considerano que ela trabalha com os códigos que correspondem à formação de cada sociedade, identificando a formação cultural como um contexto à formação de cada sociedade, identificando a formação cultural como um contexto de responsabilidads. A negação do interesse ilimitado do indivíduo por oposição implica no conhecimento de responsabilidades que exprimem o interesse social. Incorporando a análise de classes, esta perspectiva sgnifica um tratamento do coletivo como uma categoria alterna, mais ampla que o indivíduo. Preferência por consumo, decisões sobre que produzir são vistas então representando interesses que não podem ser traduzidos em termos individuais. Assim, por exemplo, a preferência por maior intensidade na exploração de recursos minerais representa uma opção ditada por uma perspectiva dos capitalistas em seu conjunto, assim como a preferência por transporte coletivo urbano é uma preferência que representa a perspectiva dos trabalhadores em seu conjunto.

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Assim, no quadro de sua análise, mais que noutras propostas de análise, na teoria do desenvolvimento os pressupostos relativos ao comportamento social – e especifi-camente ao comportamento do capital e do trabalho – são fundamentais, não só para chegar a respostas razoáveis para problemas específicos, senão para reconhecer as questões teóricas e apresentá-las na forma de hipóteses plausíveis. A teoria do desenvolvimento deve acusar as mudanças de comportamento das variáveis; portanto, as novas condições históricas de formação da oferta e da demanda e as novas condições de estruturação das relações internacionais.

Ainda no plano das críticas das insuficiências da análise econômica, Myrdal assinala diversos casos de pressupostos que foram aceitos durante muito tempo e que não correspondem mais à realidade. Nisto suas posições assemelham-se muito as dos post-keynesianos da primeira hora, ou dos que começaram como colaboradores de Keynes. Joan Robinson notou, por exemplo, que uma das principais debilidades da doutrina neoclássica está em "tratar o progresso técnico como uma série de choques ocasionais que deslocam a posição de equilíbrio do sistema"13, e prossegue dizendo que Harrod foi o primeiro a tratar o progresso técnico como uma propensão intrínseca do sistema econômico. Na América Latina encontra-se uma falácia equivalente no tratamento do fator demográfico. Fala-se de uma pressão demográfica excessiva e de uma escassez crônica de mão-de-obra como se fossem temas independentes, como se a pressão demográfica não fosse precisamente um coeficiente que relaciona consumidores e meios disponíveis para o consumo, como se não fosse paralelamente uma relação entre a população e as mercadorias geradas pelo sistema produtivo.

O principal alvo da crítica de Myrdal é a dificuldade dos economistas para identificar corretamente as causas do comportamento social nos países subdesenvolvidos, um ponto no qual sua crítica devesse deter-se mais na análise da formação e das relações de classe, justamente para superar uma outra abstração já criticada por Marx no tratamento dado pelos clássicos. 3.2. Os motores da desigualdade

Para Myrdal, a essência do problema assinalado como de subdesenvolvimento é a pobreza, entendida como expressão extrema de um processo de desigualdade de con-dições e de renda. O foco da análise está no significado social da modernização e numa crítica da modernização em sua qualidade de transmissora de progresso. Trata-se de 13 Trata-se do paradigma do equilíbrio em sentido mais amplo, que compreende o equilíbio estáticodo tipo walrasiano e o reprsentado por uma taxa de crescimento sustentado a la Harrod. O opsoto deste conceito é considerar que os movimentos dos sistemas econômicos resultam da ação de elementos que não só variam como mudam de feição ao longo do tempo. O que se coloca como perspectiva neoclássica não é tratar com situações de equilíbrio, mas supor que todo movimento das economias nacionais exrpime um deslocamento que só pode ser percebido em sua relação com uma dada situação de equilíbrio. A noção de acumulação implica em que os sistemas mudam irreversivelmente, que a volta a situações de equilíbrio é um falseamento da questão, já que não se volta a situações anteriores de composição do capital.

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distinguir a desigualdade intrínseca do processo econômico, tal como ele se realiza nos países subdesenvolvidos, daqueles outros mecanismos que agravam a pobreza., ou que perpetuam o subdesenvolvimento. Trata-se, em suma, de reconstruir a perspectiva do interesse da maioria pobre de cada sociedade nacional, que é o único modo de mate-rializar esta crítica dos interesses do capital. Assim, em termos práticos, há dois níveis de análise: o que trata das relações sociais e do quadro de institucionalidade ligado a elas e o que procura explicar a mecânica do processo.

Essa discussão implica numa comparação, às vezes explícita e às vezes tácita, entre a percepção ocidental – leia-se, dos países ricos – e a do Oriente post-colonial, em que se julga o que se entende por progresso e em que se visualizam perspectivas de mudança a curto, a médio e a longo prazos. A modernização parece caminho de uma transferência de modos de funcionamento da produção e do consumo, que é inevitável neste processo. Mas como se realiza a modernização? Myrdal elaborou bastante na discussão dos mecanismos do processo, destacando, em diferentes trechos do Drama asiático, a causação circular acumulativa, descrita no apêndice n. 2, e as contradições no uso de trabalho nos principais setores da produção e suas conseqüências na valorização social do trabalho, ou seja, na proporção em que os investimentos novos implicam em investimento nos recursos humanos. O estudo desta última parte ocupa todo o 5o capítulo deste livro e a nota 16.14

a) A causação circular acumulativa. A idéia de causação circular acumulativa decorre de observações sobre o aspecto econômico do processo social, mas tem importantes rebatimentos para as interpretações dos processos cultural e político. Surgiu em substituição da noção de círculo vicioso da pobreza posta em voga por Ragnar Nurkse15 e em contraposição às idéias, então prestigiosas, de W. W. Rostow 14 A valoriazação dos recursos humanos necessária a cada trajetória de formação do capital é a principal questão que distingue a análise econômica socialmente orientada da análise determinada pelo interesse na reproducão do capital. Por ela se distinguem as diferenças entre o sistema escravista que investe o mínimo necsssário em qualificação de trabalhadores; o sistema industrial competitivo, em que oa investimentos em trabalhadores são administrados sobre a distribuição entre os custos absorvidos pela empresa e pelo Estado na reprodução do capital industrial; e o sistema oligopolista, onde aumentam as diferenças de tamanho entre empresas, e os investimentos em recursos humanos ficam compartsmentalizados entre os que são realizados pelas grandes empresas, na que são realizados pelos diversos órgáos da sociedade civil e os que são realizados pelo Estado. 15 A idéia de círculo vicioso da pobreza merece ser lembrada num período em que as políticas econômicas têm como norte a contenção da demanda em países com grande parte da população com rendas muito baixas e fora do mercado formal de trabalho. A idéia de que a estagnação da renda converte-se em bloqueio ao crescimento doa investimentos tem que ser reconsiderada à luz (a) de uma revisão de quem realiza os investimentos, (b) de uma reconsideração das interdependências entre investimentos em bens de consumo e de capital ao longo da vida útil de cada um dos dois; e (c) de uma revisão da diferenciação no efeito de acelerador do consumo que resulta do fosso entre o consumo realizado com bens industriais e com bens localmente produzidos na produção primitiva. A contestação que foi formulada inicialmente à proposta teórica de Nurkse trabalhava com o pressuposto de que o consumo se realizava todo dentro do mesmo mercado capitalista e que, por extensão, todo o efeito de acelerador seria recuperado pelo dinamismo da indústria. Agora temos que admitir que a proporção de população excluída do emprego formal é induzida a realizar consumo de bens e serviços que não são produzidos como mercadorias senão como parte do funcionamento das famílias marginadas da própria produção capitalista organizada.

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sobre etapas do progresso econômico. A idéia de causação circular acumulativa confronta-se com o positivismo rostowiano porque (a) aponta à inevitabilidade de dis-cutir as relações causais dos processos sociais e (b) toma os aspectos de continuidade e descontinuidade dos processos como duas caras de movimentos que só podem ser adequadamente apreciados sobre períodos de tempo histórico, isto é, na forma de processos concretos.

Myrdal fez profissão de fé contra o empirismo dos historiadores saxões que se recusam a sair do âmbito do particular para aventurar-se com a construção de hipóteses sobre a generalidade dos processos de transformação social: "O viés antiteórico e antifilosófico de muitos historiadores profissionais, especialmente na Grã-Bretanha, que os leva a suspeitar de qualquer tentativa de mover-se do particular para o geral é, no fundo, uma defesa de sua tentativa de permanecer ingênuos acerca dos elementos te-leológicos que são a essência do enfoque genético" (p. 1849). Esta postura foi naquele momento também uma antecipação do movimento de aproximação entre contribuições na sociologia e na economia por um lado e na história por outro lado, que se tornaram internacionalmente mais visíveis durante a difusão a década de 1970, com uma maior difusão dos trabalhos de historiadores franceses como Braudel, Chaunu, Le Goff e Ladurie16, e de italianos como Conte e Sofri17, além da difusão dos efeitos do aprofun-damento na leitura de Gramsci por autores como Gruppi e Porteili.18 A experiência da

Assim, o acelerador real descreve relações diferenciadas entre os segmentos de produção realizada para mercado e de produção que somente vai a mercado de modo eventual. 16 O reconhecimento dos progressos nos estudos históricos por parte dos economistas sempre foi muito irregular e restrito àqueles que se preocuparam com as conotações ao trabalho. Adam Smith, J. S. Mill, Marx, Schumpeter foram brlhantes exceções. Mas o foco na formalização positiva da na´lise fez com qye a economia desse as costas aos estudos históricos. Por isto não surpreende que a análise das implicações históricas do processo econômico tenha sido feita mais por estudiosos de outras áreas das ciências sociais por economistas. No contexto do debate sobre o desenvolvimento, este fenômeno se repetiu, agora com outras exceções, como Maurice Dobb, Celso Furtado, Samir Amin e outros. Mas repete-se a história de que a maior parte dos trabalhos dos economistas revela um sentido corporativo de literatura: economistas citam economistas etc. A abertura de Myrdal para o corte histórico da na´lise tem o valor adicional de reportar-se à análise autenticamente histórica, plano no qual se configuram as peculiaridades dos diversos processos nacionais. No entanto este reconhecimento da profundidade histórica direta ficou limitada aos fenômenos em discussão, raramente levando em conta a análise hist´´orica propriamente dita. O reconhecimento da literatura histórica propriamente dita tem grnades conseqüências no pensamento econômico, seja valorizando o método histórico, seja incorporando observações que ajudam a rever o conceito de totalidade no social. 17 O corte específico da análise política no plano histórico passou a ser reconhecido como parte de uma análise institucional mais voltada para explicar a gênese das relações de classe. O tema da circularidade do poder autoritário,geralmente identificado com a noção de modelo asiático, aparece nestes autores de modo que possibilita a comparação entre experiências políticas historicamente distantes umas das outras. 18 Curiosamente, a análise da superestrutura na América Latina teve um percurso curioso: passou pelo desconhecimento das experiências autóctones, e depois, ao incorporar a análise de Gramsci, fez-se ainda com pouca referência à experiência dos países latino-americanos com a permanência das estruturas de poder. O uso recente dado aqui à explicação da superestrutura pouco apresentou, por exemplo, à

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década de 1970 deu munição à posição de Myrdal sobre o papel da interdisciplinaridade como meio necessário para sustentar e fortalecer cada ciência social.

No fundo, para Myrdal trata-se de chegar a uma teoria satisfatória da mudança, que obviamente não pode ignorar uma doutrina de classes capaz de captar a heterogeneidade do mundo atual e de fazer a ligação entre a centralização do capital e a alternância entre organização de classes e proliferação de sociedade de massas, Assim, seria inevitável tratar de superar a doutrina do círculo vicioso da pobreza porque ela não se separa do paradigma do equilíbrio que, reconhecemos com Myrdal, está por trás da preferência pelo particular, pela limitação aos aspectos positivos da análise. Mas ao reconhecer a relação entre a noção de mudança e as condições de renovação do capital, Myrdal, sem dizer, trabalha na linha de Marx, de tomar as formações sociais como os lugares concretos das mudanças causadas pelo movimento mundial do capital.

Essencialmente, a causação circular acumulativa descreve o mecanismo de inter-relação entre sucessivos impulsos de consumo e de investimento, percebidos pelo modo como correspondem à estruturação social e de serem exercidos a partir de estruturas institucionais atuais. Mas de qualquer modo descrevem o sentido da flecha do processo, ou seja, a trajetória implícita do processo de formação de capital. Assim, para Myrdal há um modelo de causação circular implícito na teoria da população de Malthus, já que suas implicações sobre a composição do produto levam, por sua vez, a uma composição dos investimentos. A diferença é que a causação circular passa a ser incluída no arsenal de princípios teóricos que sustentam o planejamento. E é por sua inserção na política econômica que a causação circular deverá ser examinada.

b) As contradições no uso do trabalho. No tratamento dos problemas de utilização do trabalho surge uma certa descontinuidade entre a apresentação dos aspectos teóricos do argumento e o reconhecimento das condições históricas específicas da região estudada. Parece-nos que se os problemas de uso de trabalho são considerados como conseqüentes de condições específicas de funcionamento da economia capitalista, não há como escapar do fato de que o tipo de análise proposto por Myrdal – que em todo caso é uma análise externamente organizada de uma grande região – confronta duas realidades fortemente diferenciadas – a européia e a asiática – inscritas em dois processos de transformação em que: (a) os modos de participação de trabalhadores na produção correspondem a diferentes estruturações sociais; e (b) as contradições próprias de cada uma destas duas trajetórias não necessariamente são transferíveis à outra.

Por estas razões o emprego e o subemprego têm diferentes conotações, segundo sejam definidos em um meio ou no outro. Por exemplo, a análise desenvolvida por Myrdal dos usos do trabalho na agricultura tradicional e fora dela pressupõem uma dicotomização entre as duas que (a) ignora os mecanismos de ligação de uma com a outra e (b) não articula a análise da agricultura com a dos mecanismos de subordinação

explicação da articulação entre a sustentação das elites de poder e a estruturação financeira da produção pré-industrial.

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financeira dos programas de produção agrícola (ver cap. 22 e 23). Na medida em que o funcionamento da agricultura periférica compreende segmentos mais ou menos modernos, ao lado de segmentos mais ou menos tradicionais, e em que o funcionamento dos diversos componentes da produção convivem em formas regionalmente organizadas de produção, torna-se inadequado falar de compartimentos agrícolas isolados, ou mesmo de formas de produção que não sejam mutuamente interdependentes. (Ver, por exemplo, o estudo da CEPAL sobre Agricultura comercial y agricultura campesina.19) Mais ainda, a análise da economia rural que se desenvolveu na América Latina durante a década de 1970 mostrou que as formas de produção dificilmente podem ser explicadas sem considerar as transformações nas condições de mercado.

A mesma crítica aplica-se à análise do uso de trabalho na indústria. Myrdal identificou as diferenças entre indústrias de diferentes tamanhos no modo como elas articulam suas respectivas soluções de política de financiamento, de tecnologia e de uso de trabalho. Registrou as rupturas na pauta de comportamento das indústrias periféricas quando tentam mudar de escala de mercado e procuram ser internacionalmente competitivas. Mas podemos considerar que a analiso de Myrdal combinou uma análise da empresa em relação às estratégias de mercado e de relações com os governos com uma análise muito mais tradicional a nível de estabelecimento, em relação à tecnologia. Assim, os diversos gêneros industriais são tomados isoladamente uns dos outros, levando a uma visão fragmentada dos fatos da indústria que (a) impede perceber as interconexões entre os movimentos de aceleração e de substituição de equipamentos; e (b) dificulta perceber os efeitos da progressão dos investimentos indus-triais na ampliação dos mercados internos nacionais. Este último aspecto, como sabemos, tem sido um importante limitante da análise do desenvolvimento no que ela, por exemplo, continuou separando os condicionantes da substituição de importações dos condicionantes da criação de uma capacidade para exportar. Por isto mesmo ficou no plano daquelas análises industriais que procuram explicar os movimentos de parte da economia, como as cifras agregadas deste setor e como uma coleção de fatos técnicos – a análise de insumo/produto – relativos a estabelecimentos industriais.

No entanto, Myrdal penetrou em alguns aspectos mais sutis na relação capitalização/emprego no processo de capitalização, especialmente em sua crítica do processo industrial: "as conseqüências da concentração de competência em empresas intensivas em capital e de larga escala não são, entretanto, uniformemente favoráveis. Esta rota pode servir para acelerar o crescimento da produção industrial. Mas requer um mínimo de perturbações na estrutura institucional estabelecida e um mínimo de 19 Este trabalro, elaborado por Alejandro Szejtmann aborda um tema de especial interesse para a explicação da formação da agricultura moderna nos países latino-americanos. A elaboração de uma tipologia das formas de produção agrícola certamente passa pela explicação das formas de articulação da produção com a comercialização; e os controvertidos conceitos de camponês e de empresário agropecuário dependem destes aspectos básicos do funcionamento dos diversos tipos de eatabelecimento agropecuário. Os estudos da agricultura que mostraram como se realiza a subordinação da agricultura ao setor financeiro foram também levados a analisar os mecanismos internos à produção agrícola que realizam esta subordinação no campo. Mas ainda temos pouca explicação das formas de interdependência entre eles.

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difusão de habilidades na mão-de-obra em seu conjunto... O uso de tecnologias modernas que minimizam o impacto da expansão industrial na economia em seu conjunto, quaisquer que sejam seus méritos em outros aspectos, evadem a confrontação direta com os obstáculos sociais e institucionais que têm inibido o desempenho da economia e perpetuado baixos níveis de uso do trabalho".

Mas em seu conjunto, esta análise das contradições no uso de trabalho, como tudo que revela a discussão mais profunda do emprego, não esgota os demais aspectos da subutilização do talento ou da capacidade dos trabalhadores. Este outro aspecto do mesmo tema, que é desenvolvido na 7a parte do Drama asiático – Problemas de qua-lidade da população – aponta à inter-relação entre os movimentos no plano institucional e os movimentos no plano da organização da economia para usar trabalho. 3.3 Aspectos do problema na América Latina

Desde a conclusão do Drama asiático ocorreram profundas mudanças na economia mundial que alteraram a interpretação que pode ser dada às teses levantadas nesse livro na perspectiva latino-americana. O esgotamento do modelo de financiamento público multilateral, o encarecimento das divisas, o fortalecimento das empresas multinacionais e a divisão do mercado mundial, resultaram em restrições decisivas aos modelos de crescimento das economias nacionais subdesenvolvidas, por ende enfatizando os argumentos que valorizam a expansão internacional do capital. Ao mesmo tempo as economias latino-americanas entraram num prolongado processo de obstrução de seu crescimento, que contribuiu para perpetuar restrições externas tradicionais, que foram agravadas por uma substancial perda de capacidade dos governos nacionais para conduzir suas relações externas. A virtual perda do decênio de 1980 do ponto de vista do crescimento do produto e da formação de capital significou um agravamento do quadro social da economia. Assim, a leitura dos questionamentos levantados pelo Drama asiático leva agora a por mais atenção nas rupturas mundiais do processo do capital, justamente como Myrdal utiliza o contraste das situações de colônia e de ex-colônia para demarcar a conjunção da ruptura institucional com a ruptura política.

Torna-se, portanto, mais importante do que antes, o confronto dos aspectos conjunturais e dos estruturais da análise e o confronto dos aspectos macro e micro dos movimentos dos agentes da economia. O aumento de escala das operações de cada uma das grandes empresas – e dos grupos econômicos – e o maior compromisso dos orçamentos nacionais com despesas correntes fazem com que o investimento se distribua de novos modos entre os agentes da formação de capital. Assim, a utilização de trabalho e o engajamento de trabalhadores – que são as principais preocupações de Myrdal – estão subordinados a novos jogos de força na organização social da produção. E o componente de trabalho realizado sem garantias formais do governo – o setor ou componente informal da produção – assume novos papéis nos países subdesenvolvidos mais avançados. Destarte, a leitura da análise exposta no Drama asiático tem que

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focalizar no essencial dos processos nacionais, independentemente das pressões criadas neste período.

Em primeiro lugar destaca-se a irregularidade da monetarização das economias nacionais, que também toma a forma de grandes diferenças de velocidade de circulação entre setores e regiões em cada país. Isto deu lugar, tradicionalmente, a uma serie de mal-entendidos e de falácias nos trabalhos de teoria que se apóiam na experiência destes países. Mas a distinção wickselliana entre poupança e investimento é de grande valia para analisar países em diferente níveis de desenvolvimento sem considerar os compromissos respectivos dos agentes da poupança e do investimento e sem considerar as relações entre eles. Com diversificação da estrutura produtiva das economias subdesenvolvidas, o excedente físico de consumo nelas não significa necessariamente a habilitação de um montante de investimento, por diversas razões; dentre as quais por problemas institucionais na operação destes recursos. Isso tem sido evidenciado nos diversos obstáculos encontrados para conseguir uma mobilização adequada de capacidade de poupança de seus setores urbanos para investimentos industriais ou para outros tipos de investimento. As razões que comandam os investimentos no âmbito do setor terciário não necessariamente coincidem com as que explicam as decisões de tecnologia e de comercialização da produção industrial. Mais ainda, a realização de uma seqüência, em cadeia de investimentos, em atividades terciárias urbanas geralmente se beneficia de modalidades de capitalização em recursos humanos que não têm por que retroagir no tipo de acumulação de tecnologia que favorece a realização de investimentos em indústrias de todo tipo. Por outro lado, a progressão de investimentos na indústria requer uma continuidade de investimento em tecnologia e uma cultura de uso do tempo que difere claramente da que prevalece na produção rural tradicional e da que se desenvolve no meio do terciário urbano. Tudo isso exemplifica como o funcionamento financeiro destas economias periféricas semi-industrializadas tem peculiaridades que não podem ser ignoradas nas análises do processo de realização de investimentos. Por isto é pouco provável que as regras de funcionamento das economias plenamente monetizadas possam ser aplicadas a países em processo de monetização. O pleito de Myrdal com a generalização excessiva da análise comportamental atinge aqui outro ponto, de extremo interesse para a explica-ção da formação de capital na periferia semi-industrializada da economia mundial.

Outra limitação à aplicação dos pressupostos da teoria econômica neoclássica ao subdesenvolvimento latino-americano é aquela que resulta de seus problemas recor-rentes de uso de capacidade instalada. As políticas de desenvolvimento voltadas para alcançar e utilização plena da capacidade instalada podem resultar em estímulos à perpetuação de formas de produção antiquadas, que não podem concorrer no mercado internacional, tampouco para suprir o mercado interno a preços compatíveis com o

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perfil da renda disponível.20 No setor industrial, a plena ocupação pode ser uma justificativa na modernização de grupos de indústrias envelhecidas e protegidas por deficiências do sistema de transportes ou cronicamente dependentes do setor público.

Há um terceiro aspecto que não pode ser descuidado porque corresponde às economias que experimentam processos inflacionários crônicos, que introduzem modificações da preferência pela liquidez. A preferência por bens e por consumo imediato substitui em grande parte a preferência pela liquidez de empresas, atingindo o perfil de comportamento do sistema bancário. Sob inflação crônica, estas mudanças nas condições de operações dos sistemas bancários ampliaram o poder dos bancos que se retroalimenta num clima de juros excessivamente altos.

20 Temos aqui um ponto altamente controvertido da teoria do desenvolvimento, que é a relação entre o crescimento do produto, sua composição e a disponibilidade de alimentos. A análise da agricultura em função da eficiência do capital nela aplicado, seja ele privado ou público, indica que os produtores deverão escolher programas de produção que maximizem seus resultados financeiros, sejam a curto ou a longo prazos; e isto logicamente significa a preferência por aqueles produtos de maior demanda em preços e quantidades. Na prática, isto tem s!gnif.cado que os produtores tendem a produair produtos guiados pela demanda internacional, ou, em todo caso, por produtos de elevado preço por peso. Com isto, a produção agrícola dos países subdesenvolvidos distancia-se da produção de alimentos, pr,ncipalmente daqueles alimentos que constituem a dieta dos pobres rurais e orbanos. A lógica que sustenta este tipo de decisão é que a produção agrícola tem que ser feita de modo lucrativo para os produtores; e que estes, mesmo quando sendo produtores de baixa renda, poderão comprar os produtos que consomem com a renda obtida com a venda de seus produtos de alto preço por peso. Na prática, as coisas não acontecem exatamente assim, porque primeiro os produtores não necessariamente conseguem vender seus produtos por preços compensatórios, e com os produtos retldos, não podendo ser consumidos, não há substitutibilidade entre a compoalção do produto fisco e a do consumo; segundo, porque as aíternativas de comercialização são d ferentes para produtos que podem ser localmente vendidos e para produtos cuja venda depende de cadeias mais complexas de comércio. Na prática verifica-se que os produtores de zonas próximas de centros de comercialização têm maIor fac-lldade para colocar seus produtos, mesmo qusindo se trata de produtos semelhantes aos de produtores mais distantes destes centros. Admitir que não neces£ar,lamente há substitutíbilidade implica em admitir que há um problema social com a produção - ou com a provisão - de ali-menina que transcenós o cálculo de eficiência do capital de cada produtor agrícola; admitir que há uma responsabilidade do Estado possuir uma política macroeconomicamente compensatória que resolva este problema.

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4. TEMAS DE MAIOR INTERESSE PARA OS PAÍSES LATINO-AMERICANOS

4.1. A visão de mundo

A análise do desenvolvimento implica sempre numa visão de mundo, seja a que atribui papéis significativos ao Estado e às empresas locais na determinação do processo econômico, seja a que apenas reconhece papéis significativos a agentes externos. A proposta de análises que rejeitam considerar a visão de mundo como referencial das análises específicas fica, para bem ou para mal, restringida às teorias do crescimento, mesmo quando levando em conta restrições de distribuição à sustentação do cres-cimento do produto.21 Mas a análise do desenvolvimento trabalha com uma concepção de mudança que abrange do plano técnico ao cultural, que não pode, por isto, limitar as explicações do crescimento do produto às relações de causalidade econômica. Torna-se, portanto, necessário enfrentar o conjunto de problemas de conteúdo e de método conseqüentes da conjunção da análise econômica com a análise sociopolítica e sociocultural. Myrdal presume que esta não pode ser cumprida sem uma proposta de análise interdisciplinar que capte o sentido de urgência dos problemas sociais. Assim, a leitura consistente do Drama asiático deve ser uma leitura atualizada em rela-ção aos problemas de subdesenvolvimento. Se em linhas gerais os problemas básicos são os mesmos, mudam as formas como eles se materializam ao longo do tempo.

Com esta perspectiva vemos a pobreza, a dominação, a marginalização, que são aspectos de problemas mais amplos, mas que devem ser tratados em suas formas con-cretas. A visão de mundo transmitida pelo Drama asiático leva a uma análise social onde a análise da política é parte essencial da explicação do processo de produção. Defende o trabalho interdisciplinar, com uma recomposição da análise social em torno da valorização de problemas. Atribui tacitamente ao planejamento a tarefa de captar as necessidades de intervenção do poder público.

Essa foi a ideologia do planejamento que se instalou e prevaleceu no mundo da cooperação internacional, em cuja prática o próprio Myrdal foi figura destacada, e que

21 É necessário distinguir a percepção da distribuição como uma restrição na formação da taxa de crescimento e como uma condição da formação social. No primeiro plano a distribuição e simplesmente uma medida de distribuição da renda entre pessoas, que se traduz num determinado efeito sobre os investimentos, e levada a suas últimas conseqüências, quando muito pode informar sobre efeitos mediatos de deslocamentos na distribuição sobre mudanças de composição dos investimentos. Entendida como condição da formação social, a distribuição abrange a renda, o capital e o poder político. Manfesta-se na relação entre a reprodução do poder econômico e a do poder político. A primeira leva a uma análise da mecânica do crescimento, a segunda leva a uma compreensão do processo social do desenvolvimento. Cada uma se situa num determinado patamar de abstração. A principal objeção que se pode fazer à primeira é que a progressão de mudanças na composição dos investimentos corresponde necessariamente a mudanças na propriedade do capital que jamais deixam de ter significado político. O primeiro nível de análise seria uma aproximação simplificada da realidade em que se deixam de lado aspectos não controlados da questão.

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se verifica em trabalhos de autores como Hirschman22, Chenery23, Balogh24, Tinbergen25 e outros. Até que ponto este ideário foi realmente útil ou representativo dos interesses dos países ou em que medida foi instrumento oportunamente apropriado pelos países hegemônicos para manter suas margens de controle, ou até que ponto foi uma postura utópica, é algo ainda por determinar. De qualquer modo ha aí uma transferência de valores que em alguns aspectos beneficia a sustentação dos interesses dos mais ricos e que em alguns aspectos – inquestionavelmente – descreve problemas essenciais dos que foram ou são marginalizados. O ideário de cooperação internacional aparece em Myrdal mais claramente em. Além do estado do bem-estar e em Solidariedade ou desintegração, que deveremos considerar adiante.

O Drama asiático foi escrito sobre uma experiência e uma base territorial

escolhidas ex professo com a possibilidade de tomar seu objeto de estudo como opcional, de manter-se numa posição externa aos problemas que estuda. Isto logicamente significa uma vantagem em relação à situação dos próprios países em relação à situação dos próprios subdesenvolvidos, que em todo caso devem estudá-los. Isto permitiu que Myrdal pudesse analisar a generalidade dos países do sul da Ásia com uma visão de mundo que não se deriva de nenhuma das experiências deles e que, tanto

22 Albert Hirschmann combinou uma revisão do enfoque de análise institucional – “socioeconômico – com um tratamento de problemas operacionais do planejamento. Sua visão estratégica do processo de planejamento concentrou-se na estratégia de atuação de um setor público modernizador cujo principal instrumento são os investimentos. Valorizou a modernização do setor público como um meio de fomentar atividades que incluem uma democratização do capital. Insistiu nos efeitos em cadeia dos investimentos, onde estão incluídas inter-relações entre o dianismo gerado por projetos específicos e uma ação setorialmente concentrada do governo. estes efeitos em cadeia, na verdade, foram antes apresentados por Jorge Ahumada (“Preparación y evaluación de proyectos de desarrolo económico. Em: El trimestre económico, jul-set 1995) com o nome de efeitos para diante e efeitos para trás. Ahumada, através dos cursos de planejamento econômico da CEPAL, divulgou um enfoque de planejamento a médio prazo, que se formou a partir das análises de economias nacionais feitas pela CEPAL durante a década de 1950, e que estavam baseadas na combinação do modelo de crescimento de Harrod com a técnica de análise interindustrial de Leontief. Assim, continha uma referência às estruturas de poder (ver os trabalhos de José Medina Echevarria e de Marshall Wolfe) muito mais profunda que a de Hirschmann. 23 Hollis Chenery trabalhou num enfoque de política econômica que combinava variáveis quantitativas e qualitativas, onde as primeirs representavam o componente diretamente quantificável e o qualitativo representava asações que não mobilizavam diretamente recursos, mas que tinha expressão final qiantificável. Era, portanto, um tratamento positivo do não econômico, que não levava à análise dos agentes nem das estruturas responsáveis da política. 24 T. Balogh (Unequal partners, Obstáculos al desarrollo económico) focalizou na desigualdade de condições em que os diversos países participam do processo capitalista de formação de capital, mostrando como os resultados concretos da formação de capital na produção de agentes da formação de capital estão às orientações deste processo. Representou uma crítica institucional à sustentação das premissas neoclássicas de análise, principalmente no relativo à análise das relações internacionais e na do setor público. 25 Jan Tinbergen deu a contribuição mais extensa à articulação de uma política econômica positiva, combinando curto e médio prazos, com uma expressão matemática de análise. Representou uma proposta de matematização ilimitada da política econômica; portanto, incluindo os setores sociais e reduzindo o campo institucional a uma representação formal. Mas certamente representou um proposta de racionalidade total da política, que tacitamente implicava numa situação de capitalismo concorrencial e de manejo democrático do Estado.

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como não corresponde a alguma outra experiência, identifica, transfere pontos de vista que são gerados nas experiências dos países de centro. É um outro modo de colocar a questão da imparcialidade ou da pseudo-imparcialidade dos estudos de “brazilianists” ou “mexicanists”, comparados com os estudos diferentemente colocados dos naturais destes países.26

Mas é justamente esta questão de identificação ou de identidade dos

subdesenvolvidos que implica em situar geo-historicamente as experiências sociais e que leva, por força. a colocar questões regionais ou a colocar a regionalidade do social. Myrdal considera que não há justificativa a1guma a priori na teoria econômica a favor do uso de um enfoque regional para o estudo do subdesenvolvimento. Inclusive questiona a consistência científica de semelhante expressão. Em termos práticos, como se infere do Drama asiático, o que se costuma chamar de enfoque regional é simplesmente um enfoque diferente do nacional, que prescinde do referencial do Estado, apesar de não poder dispensar a análise da formação de poder. Segundo este critério, são igualmente regionais os estudos da América Latina, do Caribe, do vale do Cauca etc. Em todo caso, apesar de que podem ser aduzidas várias razões a favor de uma determinada definição de uma região, há sempre um componente arbitrário, ao qual está vinculada a decisão de escolher esta região. Do que ele diz depreende-se que este componente arbitrário precede a delimitação de urna região para estudo e não se explica necessariamente pela coerência interna que geralmente identifica uma extensão territorial como uma região.

O sul da Ásia de Myrdal é bastante arbitrário, suas fronteiras poderiam ser

questionadas por diversas razões, tais como o tratamento desigual dado aos países da península da Indochina comparado com o da Índica. Mas uma discussão como esta desviaria a atenção dos problemas centrais que ele coloca, que são: a relevância da aná-lise socioeconômica realizada a partir da região escolhida e o significado de ulteriores análises complementares ao primeiro, e que tratam como sub-regiões ou com categorias equivalentes. Para nós, a questão é esta: com os mesmos argumentos com que se poderia discutir a legitimidade da análise socioeconômica do sul da Ásia poderiam pôr-se em tela de juízo os critérios de análise econômica e social os países da América Latina. Aqui, como lá, a única pauta segura de que se dispõe consiste em avaliar a pertinência da

26 Os grandes países latino americanos foram objeto de grande interesse de estudiosos dos países desenvolvidos, principalmente de norte-americanos, que depois da 2a Guerra Mundial, e principalmente a aprtir da década de 60, tiveram uma abundante produção nas diversas ciências sociais. Devido à fragilidade das universidades latino-americanas e às notórias restrições de expressão sob os diversos tipos de governos autoritários, esta produção desempenhou a importante função de ventilar fatos que não correspondem ao interesse dos governos latino-americanos ou ao das empresas que lhes estão mais ou menos associadas. Algimas contribuições autenticamente acadêmicas têm, de qualquer modo, um papel insubstituível neste plano de informação cientificamente válida. Mas, talvez, por preferências de método ou preconcepções, a maior parte dos trabalhos realizados por estes estudiosos tem contribuído pouco na explicação de processos sociais. Provavelmente por falta de manifestações do lado dos países latino-americanos, em crítica e debate mais direto com estes estudiosos, seus trabalghos geralmente correm ao lado das grnades linhas de tensão da discussão realizada aqui. os exemplos obviamente são muitos, mas as críticas pessoais são também inadequadas.

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região utilizada, de acordo com os resultados alcançados até agora pela análise. Da orientação de Myrdal pareceria inferir-se que fosse mais razoável dedicar um esforço maior para precisar o conceito de região e que este conceito, em todo caso, seria a base para uma linha de análise diferente ou mesmo oposta à nacional.

A região de que fala Myrdal contém, necessariamente, uma conotação de

desequilíbrio proveniente da formação social histórica. No contexto latino americano este desequilíbrio está marcado pelas peculiaridades pré-colombianas, pela diversidade de formas como se realizou a articulação do mundo ibérico – português e espanhol – sobre territórios extremamente vastos e ainda, pela peculiaridade daquelas grandes regiões, como o Brasil, onde a pressão européia se fez sobre povos muito primitivos. As características da herança colonial são visíveis no fato de que o conjunto econômico e cultural acabou formando grandes "bacias" – a negra, a índia temperada e a antiplãnica – que estão registradas, de algum modo, na composição dos Estados nacionais. As diferenças de tamanho, como entre o Brasil e o Chile, podem ser facilmente com-preendidas se se reconhece que o Chile sempre foi uma autêntica "região" cultural com uma determinada posição no mundo hispãnico. Mas não são tão facilmente explicáveis frente ao fato de que a grã-Colômbia se fragmentasse, ou que jamais fosse possível agregar os países centro-americanos. A tensão entre localismos e grandes formações políticas ficou como um tema sem resolver, que certamente qualifica os diversos usos que podemos dar agora ao termo regional.

Internamente em cada país a questão regional tem uma raiz histórica que antecede e prepara a formação dos Estados nacionais. Na atualidade, é uma dimensão das realidades nacionais que alterna com as estruturações políticas nacionais, do que resultam certas margens de pluralidade de interesses no contexto de cada país que se modifica com maior ou menor intensidade com a expansão do capital, mas que não foi anulada em país algum. E a principal questão até agora enfrentada pelo planejamento regional em suas diversas formas e modalidades tem sido justamente a de manejar as diferenças entre os interesses representados no plano nacional e no regional, seja enfa-tizando as tendências integradoras da expansão do capital, seja explorando o significado das contradições contidas em cada quadro nacional. Assim, o plano da análise regional é, por definição, o plano do concreto, contrastando nitidamente com o da abstração da análise setorializada.

Em conseqüência, os problemas epistemológicos suscitados pela utilização de um enfoque regional derivam, portanto, de sua validez para enfrentar problemas concretos. No sul da Ásia, como na América Latina, as diversas circunstâncias nelas tornaram necessário concentrar o foco da análise em sub regiões e utilizar as comparações entre países como parte essencial da análise, geralmente sem atentar para a presença de regiões historicamente formadas e que subjazem na expansão em curso do capitalismo.

Explorando a linha de análise de Myrdal, a perspectiva regional tem duas conseqüências principais para a análise social, que são as de: (a) ligar a análise interdisciplinar e do uso de recursos naturais e de recursos humanos com a construção de blocos de poder em cada país; e (b) estudar as conseqüências da formação de poder

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no âmbito local na formação de capital em cada país. Os resultados que se pode eventualmente obter com estas linhas de pesquisa levam a novas leituras da pluralidade interna de cada país, que não podem ser ignoradas pelas generalizações sobre a expansão do capital ou sobre a macroeconomia nacional.

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4.2. Os juízos de valor Um aspecto fundamental do Drama asiático é a explicitação das premissas de valor escolhidas (cap. 2). A análise social "mesmo no nível teórico, em que os fatos e as relações causais não devem ser precisados, está voltada para política, no sentido de que assume uma determinada direção da mudança como desejável" (p. 49). Ainda, "a pesquisa, como qualquer outra atividade que se realiza racionalmente deve ter esta orientação... Deixar ocultos ou não ter consciência destes juízos de valor é abrir espaço para um non sequitir e para uma dispersão das possibilidades de sucesso a que se pode almejar". Há dois planos de discussão dos problemas de valor – o da fundamentação da ciência social e o da sustentação da análise aplicada – e o tratamento dos problemas de desenvolvimento implica na junção dos dois.

Essas observações estão ligadas a aspectos já examinados no capítulo anterior: enquanto se mantiverem as características de ciência social que tem a ciência econômica, a teoria do desenvolvimento terá que se estruturas sobre uma base diferente daquela da teoria do crescimento ficando esta última como o estudo da mecânica do crescimento do produto.27 No entanto, permanece uma questão sem resolver, qual seja: de que a explicação da mecânica do crescimento fica sempre incompleta por esquivar aqueles elementos não econômicos que são inseparáveis das decisões de produção e de consumo. A insistência de Myrdal com a revisão do componente institucional da análise da mudança é também o modo de garantir que sejam seriamente consideradas as peculiaridades da formação social dos países geralmente considerados como subdesenvolvidos. Ao revisar o papel da mudança na estruturação ideológica dos países não-europeus, simultaneamente estabelece as bases para uma crítica da modernização que agora não pode ignorar a trajetória de discussão do moderno, desde as primeiras propostas de modernização positivista identificadas com transferência de tecnologia até 27 A discussão da explicação teórica do desenvolvimento – qualquer que seja o nome que se lhe dê – sempre esteve envolvida num véu preconceitos, em que principalmente se destacam por um lado os diversos preconceitos que tentam reduzi-la a um problema prático interno ao capitalismo atual; e por outro lado, os preconceitos que negam a existência de diferenciações extra-econômicas concomitantes com as econômicas, e que demandam explicações mais amplas e profundas que os movimentos econômicos do capital. A defesa de uma discussão do desenvolvimento sempre coincidiu com propostas de autodeterminação econômica de países e com a eliminação de opressão entre classes. A distribuição, em seu sentido mais amplo, da discussão do desenvolvimento, que se diferencia de qualquer discussão da mecânica do crescimento, mesmo que nesta sejam incluídas ligações com a distribuição. A frontal diferença entre os interesses incorporados em cada uma destas posições acabou fazendo com que a discussão do crescimento tenha sido principalmente apropriada por economistas ortodoxos sejam rotulados como neoclássicos ou não; que a discussão do desenvolvimento tenha sido encetada por heterodoxos, keyneaianos de esquerda ou não, e que a negação da discussão do desenvolvimento tenha ficado por conta de marxistas. A questão, entretanto da inter-relação entre mudança social e distribuição da renda perpassa os cânones da base nacional ou de classe da análise assim como o fato da distribuição não pode ser negado simplesmente porque alguém prefere trabalhar a partir do ponto de vista da produção. Enquanto estes aspectos de fundo não forem esclarecidos, ficamos numa dicotomização do debate que apenas serve aos que usam os artifícios conceituais para escamotear os fatos históricos concretos da desigualdade e de que sua explicação implica num problema que deve ser analisado em sua integralidade, independente de preconceitos ou de postulados acadêmicos.

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as críticas mais recentes do moderno refletindo as rupturas de valores no centro do capitalismo.28

De qualquer modo, a crítica do moderno enseja uma revisão - impensável até pouco tempo atrás - do substrato ideológico da luta pelo desenvolvimento na América Latina em que surge com mais clareza o contraponto entre os projetos de poder identificados com a modernização e os projetos de poder que pretendem viabilizar a permanência da composição tradicional de poder mediada em formas modernas de organização.29 Certamente temos aí uma discussão de sociologia do poder que transcende a crítica da ideologia de políticas especificas de desenvolvimento. Mas a própria articulação desta análise passa por uma apropriação do contexto histórico em que se realizou e realiza a controvérsia sobre o desenvolvimento. Nesse sentido vale lembrar que os estudos da América Latina têm sido feitos em geral a partir de pressupostos de que os ideais de desenvolvimento são gerados nos países mais industrializados, que constituem uma transferência de ideologia, portanto, que ignoram a perspectiva cultural própria de cada sociedade, ou que ignoram os efeitos das contradições ideológicas na formação de cada sociedade. Myrdal aponta que esta é uma interpretação simplificadora. E somos levados a considerar que este seja um ângulo pouco explorado pelos sociólogos latino-americanos, apesar de algumas observações coincidentes nesta direção. O fato de que grande parte dos países latino-americanos contém elementos de experiências anteriores à constituição de colônias e que as próprias colônias tenham sido modificadas, obriga revisar o conceito de pluralidade com que se

28 A crise da visão de mundo do capitalismo tem diversas manifestações com diferente coerência interna. O que vem sendo denominado de post-moderno (ver, por exemplo, Revista do pensamento Contemporâneo, nov. 87: Filosofia e pós-modernidade, Lisboa 1987) é o conjunto de manifestações – díspares – que sucedem a ordem e entre a representatividade do moderno como tal. Não descarta nem confronta com significado do moderno como estilo cujo conteúdo se liberta de restrições formais. O post-moderno não é uma proposta. A idéia da crise é válida neste caso porque o post-moderno simplesmente denota uma dificuldade de convivência entre formas do capitalismo e sua articulação no plano da expressão estética. Algo semelhante pode-se dizer a respeito da crise na ideologia do progresso, que foi fundamental no capitalismo em expansão, mas que precisou ser substituída por uma ideologia da esta-bilidade que contraditoriamente deve conviver com uma economia mundial inflacionária. 29 Na maior parte dos países latino americanos o movimento de modernização econômica foi capturado pelas estruturas tradicionais de poder que o usaram para se perpetuarem. São as mesmas famílias ou as mesmas empresas que controlam a relação com o exterior e a relação com o Estado, uqe são os principais meios da controle do padrão de acumulação. A operacionalização deste controle no pleno tecnológico tem sido feita pelos interesses externos na produção – diretamente pelas multinacionais ou por inspiração delas – ou utilizando o governo, transferindo estes custos para instituições públicas de pesquisa e assistencia' técnica No entanto, este controle da modernização não se exerce sem custos para as estruturas de poder. A substituição do sistema patriarcal de produção rural por uma produção capitalista comercial significa a perda de alguns espaços de poder correspondentes ao fato de que com ela se abre espaço para a sindicalização e, portanto, para a criação de um limite interno ao poder do capital Nos países de maior porte econômico, ou nos proporcionalmente mais ricos, a modernização se fez apoiada na criação de importantes instituições financeiras (BNDE no Brasil, NAFINSA e SOMEX no México BIRA na Argentina, CORFO no Chile, IFI na Colômbia) que absorveram os custos da implantação da infra-estrutura, ou que subsidiaram diretamente o capital inorporado à produção, criando novos mecanismos de seleção que os tornaram elementos essenciais na determinação da continuidade ou da interrupção das estruturas de poder.

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trabalha. Estes conceitos são, adiante, essenciais para entender a formação das oli-garquias e dos diversos tipos de trabalhadores que compõem a suposta sociedade sem classe ou pré-classe.

As dificuldades encontradas por Myrdal para resolver os problemas conceituais da interpretação da estruturação social situam-se, como seria de esperar, ao nível da identificação e do manejo de categorias teórica e historicamente adequadas para explicar os problemas do subdesenvolvimento. E como a principal questão tratada é a modernização, oferece uma lista de valores que são incorporados na transmissão da modernização – aqui considerada como inerente à forma atual do desenvolvimento – e que são os seguintes: a) Racionalidade. O modelo ocidental pressupõe uma marcha geral ao aumento da racionalidade nas decisões de todo tipo, partindo da racionalidade do consumidor e da do produtor, pressupondo uma universalidade da cidadania e das sociedades liberais, em cujo fundo está a superação das tradições, considerando, entretanto, que as tra-dições, mesmo as européias, são contraditórias àquela tendência homogeneizadora contida na expansão do capitalismo. Superficialmente, este ideal do capitalismo coincide com o desejo generalizado de absorver tecnologia, sem perguntar se a renovação de técnicas específicas está ou não inserida em correntes de produção de tecnologia ou se forma parte de blocos de tecnologia e com que capacidade de adaptação. Mas, num plano mais profundo, esta discussão atinge o coração da ideologia do progresso material do capitalismo: o absolutismo lógico criticado por Adorno30 a herança de uma concepção racionalista a-histórica vinda do iluminismo, a determinação de padrões oficiais de racionalidade baseados na prevalência do egoísmo do indivíduo. O ideal de racionalidade, portanto, quando tornado uma expressão da modernização, constitui uma forma de exclusão dos conteúdos multidimensionais incorporados por cultura e por diversidade de experiências atuais.

b) Desenvolvimento e planejamento para o desenvolvimento. Supõe-se que o desejo de se desenvolver corresponde ao mencionado aumento de racionalidade,

30 Trata-se de uma crítica ao sentido de finalidade do uso da lógica. Nada da novo de Hegel para cá!' Mas certamente é a revalidação de uma crítica que atinge os usos que sub-reptícios da razão para fins políticos. Como colocou Hegel, toda vez que se pressupõe uma separação intransponível do sujeito e do objeto, lógica discute as formas de relação entre os dois. Mas quando se admite a identificação dos dois, a lógica é a lei da progressão do ser que é sujeito e objeto deste processo. O absolutismo lógico consiste em considerar que todo conhecimento por ende, todo raciocínio científico apóia-se em decmonstrações que (a) pressupõem a separação do sujeito e do objeto; b) tomam se formas das relações sem considerar que o conhecimento vazado nas predicações contém seus próprios limites; e (c) não se entra no mérito do sentido de de finalidade do conhecimento. Como dizem Adorno e Horkheimer (Dialética do esclarecimento) “O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, que ele próprio produz para que ela possa substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado a exigencia clássica de pensar o pensamento... o procedimento matemático tomou, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática ele se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio denomina" (p. 37). E adiante: “Sujeito e objeto tornam-se, ambos, nulos. O eu abstrato... não tem diante de si outra coisa senão o material abstrato que nenhuma outra propriedade tem além da de ser um substrato para semelhante posse" (p. 38).

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portanto, à emulação para assemelhar-se aos padrões europeus e norte-americanos. Assim, ignora o significado de interesse de classe, toma a política econômica apenas como uma técnica, sem entrar no mérito de quais interesses ela representa. Por isto mesmo tampouco entra no mérito da identificação de alternativas de política como interdependentes do balanço de poder em cada sociedade nacional.

c) Crescimento da produtividade. O aumento sistemático de eficiência é a justificativa central do capitalismo e é representado genericamente pela produtividade. Na verdade, encobre um conjunto de diversas medidas de eficiência, representando fenômenos muito diferentes uns dos outros, compreendendo os rendimentos do capital fixo (como os rendimentos da terra por área cultivada ou os rendimentos físicos do equipamento industrial), a rentabilidade das aplicações de capital (que permitem comparar as aplicações financeiras com investimentos na produção) e a produtividade do trabalho, representando os resultados em produção conseqüentes das diversas participações especificas de trabalhadores na produção. Myrdal assinala a falácia da suposição comum de que o desenvolvimento corresponda a um aumento da densidade de capital por homem ocupado em todas as atividades produtivas e de um melhoramento contínuo das técnicas de produção. Isto também significa que os aumentos de produtividade em cada linha de produção podem ter efeitos de transborda-mento sobre os demais. É um pressuposto de pouca sustentação empírica, já que os diversos estudos das transformações dos países latino-americanos mostram que per-sistem diferenças entre linhas de produção, inclusive com diferenciais que persistem ou se ampliam.

d) Elevação dos níveis de vida A ideologia da modernização pressupõe que o desenvolvimento está composto de crescimento do produto e de renovação tecnológica, de tal modo que haja um transbordamento generalizado de efeitos positivos, em termos das condições materiais de vida de toda a população. Corresponde à velha análise da renda per capita, que certamente não entra no mérito dos movimentos no perfil da distribuição da renda e nas oportunidades de mobilidade social da população. Todo o problema de valoração do consumo, de emergência de uma sociedade de massa e de consumismo dirigido está incluído neste tema, que inevitavelmente trata da interpretação que se dá a nível de vida.

e) Igualdade social e econômica. Com o desenvolvimento deveriam diminuir os desníveis das condições de renda e acesso a formas de consumo coletivo, as oportu-nidades de emprego e as condições de mobilidade social. Nestes ideais "ocidentais" pressupõe-se que os movimentos coincidentes com o progresso são sempre positivos, o que certamente é uma visão simplificadora de um quadro de problemas onde entram a marginalização de grupos sociais e a expansão da população periférica. (Myrdal apresentou-se sempre como um liberal progressista, como se declara em Além do estado do bem-estar e em Contra a corrente, e este liberalismo implica numa cobrança ética em relação ao capitalismo, terminando por tornar-se uma defesa intransigente da participação do Estado na economia e do fortalecimento do planejamento. É necessário, portanto, entender que a crítica dos ideais de igualdade social e econômica da

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modernização equivale às críticas de Marcuse ao autoritarismo implícito do liberalismo no poder.)

f) Melhoramento das atitudes e das instituições. Este ideal consiste em que as instituições evoluam num sentido favorável à modernização, na direção de uma elevação do bem-estar, vagamente associada com a urbanização, com modificações nos padrões de consumo e com a incorporação daquela racionalidade genérica no cotidiano das diversas formas de organização. Também não critica as contradições destas formas de consumo, inclusive naquilo em que elas significam práticas contraditórias com a composição dos recursos localmente disponíveis.

g) Consolidação nacional. Este ideal da modernização está ligado ao de um governo internamente representativo e coerente em propósitos e ações, com autoridade indiscutível dentro dos limites territoriais do país. Supõe principalmente a noção de Estado moderno do tipo ocidental, com uma composição interna de poder invariante, o que provavelmente é o pressuposto mais afastado da realidade de todos. Também implica numa composição homogênea de poder local e regionalmente distribuído, o que significa ignorar uma das principais fontes de tensão interna dos países periféricos.

h) Independência nacional. Está aí projetada a imagem que os países europeus têm de si próprios, que é essencialmente contraditória com suas próprias práticas como poderes coloniais e intervencionistas. O tema se complicou cada vez mais com a ampliação do poder das multinacionais, que cada vez mais têm agido em interde-pendência com a racionalização da política externa dos países ricos. Myrdal denunciou a falácia da independência nacional como ideal passado adiante pelos países europeus e pelos Estados Unidos, que continuamente agem no sentido contrário do que pregam.

i) Democracia. Toda esta ideologia do desenvolvimento pressupõe uma democracia efetiva, capaz de levar a bom termo um trabalho cotidiano de planejamento. A colocação do tema da democracia implica numa referência à representatividade do governo, à sustentação de sua estrutura administrativa e numa participação social que fazem a ligação da análise atual do planejamento com a análise da trajetória política de cada país. Mas aqui não se questiona como conciliar a democracia de cada país com a divisão mundial do poder, nem se discute a ambivalência da democracia formal e a centralização do poder econômico.

4.3. A estrutura da análise socioeconômica

O Drama asiático dispõe-se a enfrentar os problemas práticos da análise e da política de desenvolvimento num conjunto de países muito diferentes uns dos outros, que têm em comum uma diferença ainda maior com os países europeus. Encontra-se na situação contraditória de ser obrigado a usar criticamente métodos convencionais de análise e de registrar uma determinada linha de crítica destes métodos, que justamente reflita a justaposição da pluralidade nacional com as características dos agentes do processo: pessoas, formas de organização, instituições.

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O encaminhamento da análise é original porque o Drama asiático observa o processo social do ponto de vista da sociedade civil em seu conjunto, que aqui contrasta com o ponto de vista do capital e não necessariamente com o do Estado. A problemática social é apresentada na forma de um contínuo que vai da composição da população aos recursos humanos em geral, onde as condições específicas de cada trabalhador, ou de cada tipo de trabalhador, estão inscritas num processo mais amplo de uso de trabalho em suas diferentes formas nas diferentes modalidades de produção. Assim, o estudo das condições materiais de vida dos integrantes da sociedade civil torna-se uma avaliação da modernização. Esta percepção de que a pobreza se acumula com o avanço do capitalismo é fundamental na crítica humanista de Myrdal. Os dados e as observações reunidos como resultado da análise da distribuição da renda são utilizados principalmente para qualificar o subdesenvolvimento, mas não se cristalizam num sistema de proposições interdependentes que possa ser tomado como proposta doutrinária, por mais que contenha elementos que levem a uma explicação teórica da pobreza.

Diversas das observações do Drama asiático sobre a análise social podem ser de grande utilidade no estudo da América Latina. Em primeiro lugar estão os níveis de vida, que ele define como "os montantes de bens e serviços regularmente consumidos por uma pessoa média" (p. 529). Deste modo, apesar de levar em conta os dados de renda por habitante, o uso que deu a estes conceitos para a análise dos níveis de vida parece ter sido secundário, pois considera que as elevações no nível de vida são instru-mentais ao desenvolvimento, mas não são uma informação suficiente quando não estão correlacionadas com mudanças no plano institucional e da distribuição da renda Noutras palavras, uma coisa é que uma sociedade se distancie da pobreza e outra coisa é que surjam alguns muito ricos que distorçam a renda per capita.

Baseando-se no princípio de causação circular acumulativa, destaca Myrdal os efeitos indiretos da elevação do consumo que advêm, pela própria viabilização, da formação de capital (o que é um modo de utilizar o princípio do acelerador de Harrod para explicar a concomitância de mudanças na composição do capital e na composição de demanda), não só por seu significado de expansão da demanda interna como por elevar a eficiência do trabalhador e atingir a produtividade do sistema em seu conjunto na produção de bens. Como conseqüência disto, Myrdal apóia-se no confronto dos conceitos de consumo x excedente físico (quantidade tecnicamente disponível para consumo), em vez de utilizar o conceito financeiro de poupança, salientando O problema de realização (realização no sentido marxista de transformação de excedente físico em mais-valia, transformação de mais-valia em lucro), enfatizando que a persistência da pobreza está ligada ao acesso a este excedente físico. O conceito de poupança é o "daquela parte da renda gerada para produção que não se orienta ao uso de bens e serviços durante o processo de produção. Isto obviamente implica em considerar que a produção não consumida hoje pode ser consumida amanhã; e que o problema de realização numa economia pouco diversificada seria relativamente simples porque a maior parte de seu produto poderia fisicamente ser utilizada pela sociedade.

Assim, a verdadeira questão da distribuição subjaz no perfil atual de distribuição

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da renda, é um tema que se situa no plano do controle político do processo econômico, que somente poder ser explicado com a incorporação da discussão do controle das decisões sobre o capital; portanto, passando pelos problemas de auto-regulamentação do capital e, sua expansão. Assim, a análise macro-econômica não deve ficar centrada na relação imediata entre consumo da relação entra as decisões relativas à renda e as decisões relativas ao capital e suas aplicações. Retoma-se aí a diferenciação de Wicksell entre poupança e investimento como parte da teoria do capital.

Isso significa que a análise econômica interessada em enfrentar os problemas da desigualdade forçosamente tem que operacionalizar a explicação dos movimentos do capital e do produto de tal modo que esta análise reflita os movimentos na inter-relação entre produção e distribuição. Por isto, teria que insistir em alguns pontos, como em comparar a composição do esforço de produção com a composição das remunerações e com as oportunidades de mobilidade social. E justamente porque as decisões acerca do capital são diferentes das decisões acerca da poupança, Myrdal teria que se aprofundar na doutrina wickselliana que não identifica poupança com investimento, que insiste nos problemas de registro do tempo na teoria do capital.

Myrdal não contribuiu para uma solução deste problema, limitando se a manter-se na base wickselliana para criticar a doutrina keynesiana da poupança, limitando-se a dizer (em Equilíbrio monetário) que "uma parte da suposta poupança consiste, na realidade, numa parte do esforço de produção que jamais poderia ser utilizado como consumo durante o período de produção".31 Por conseguinte, o investimento consiste em produção deliberadamente posta de lado durante o período de produção, que jamais poderia ser consumida. Noutras palavras, uma produção planejada para ser utilizada no futuro, do que decorre que a teoria do investimento deve ser desvinculada da teoria da poupança.

Essas considerações são de óbvia importância para os países latino-americanos, dado o grande peso relativo dos inventários de produtos agropecuários ao término de cada ano de produção. Ao mobilizar uma parte do produto interno bruto na forma de excedente agrícola, aumentam os riscos de perda como resultado (a) de perdas de qua-lidade dos produtos no período de armazenagem; (b) de variações de preços que podem ocorrer depois de terminados os produtos agrícolas e que não podem ser registradas nos cálculos de custos de produção do ano seguinte. A comercialização aparece aqui corno o lado prático do processo genérico de geração de excedente em investimento, que implicitamente se reconhece como fundamental na explicação da formação da taxa, de crescimento.

Esses problemas são particularmente graves nos casos de produtos sujeitos a mudanças significativas de qualidade durante a armazenagem ou por manipulações pro-

31 É urna questão que se expõe corn mais clareza com o conceito composição do capital. O excedente físicotem a forma de alguimas poucas mercadorias que não podem fisicamente ser absorvidas e para as quais não há demanda no país que as produziu. A dificuldade de conversão de um excedente físico pouco diversificado é proporcional à monotonia do capital que o produz.

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longadas, como acontece com o cacau ou com o café, cujas áreas cultivadas podem ser destinadas a culturas mais rentáveis seguindo alguma política de compensação de custos, se as variações destes custos puderem ser previstas com aproximação razoável. Myrdal assinala (p. 532 a 538) alguns problemas que resultam da mensuração do consumo, de acordo com estes critérios, levando em conta a estrutura das informações disponíveis naqueles países. Como indicadores da situação de consumo, tomou alimentação, vestuário, moradia, serviços de saúde pública, serviços de educação, serviços de informação, energia e transportes. Isto é uma aproximação deste problema que permite ignorar as diferenças de grau de monetização das transações econômicas numa economia nacional, o que tem inegáveis vantagens para os estudos de países latino-americanos e para estabelecer comparações entre eles.

A principal dificuldade continua sendo a valoração dada a cada um dos diferentes elementos de consumo, que varia de acordo com o ambiente, a educação, o nível de renda; e que deve considerar a ruptura entre o componente formal de cada sociedade e seu componente informal, ou entre a parte diretamente ligada à formação de capital externamente regulada e a parte centrada em produção localmente consumida. A experiência da América Latina no período de 1960 até o presente mostra que a progressão da marginalidade – e da informalidade com que ela se confunde – corresponde a um aprofundamento da ruptura entre o âmbito formal e o informal da comercialização, em que paralelamente há certa identificação das políticas econômicas e sociais com o âmbito formal e em que o funcionamento do âmbito informal está regido pela precariedade da ocupação e pela correspondente incerteza da renda familiar (examinaremos este tema adiante, na seção sobre desemprego e subemprego e na seção sobre a qualidade da população).

A expansão do capital tem sido conduzida pela combinação do referencial de lucratividade dos investimentos, pelo controle de subsídios e pela transferência de riscos ao governo; portanto, resultando na produção constante de vantagens diferenciadas entre diferentes grupos sociais e contemplando um desperdício estrutural de recursos, tal como descreveu Paul Baran.32 Assim, na América Latina, a expansão do capital reproduz pluralidade: retém formas tradicionais de pluralidade e incorpora novas formas de absorção de trabalho e de capital, tanto como as formas de poder oligárquico se desdobram em elites modernas de poder e compõem com elas modos de sobrevivência.33 O valor socialmente atribuído às diferentes formas de consumo tem que 32 A visão do processo econômico como uma combinação de produção e destruição é essencial nos grandes teóricos desde Adam Smith. É fundamental na formação do conceito de mercadoria em Marx. Baran aprofundou esta análise ligando destruição a desperdício na produção monopolística. E até aí registra-se o fenômeno como uma tendência inerente ao capitalismo. E por isto mesmo trata se da produção capitalista de modo genérico, sem entrar nas qualíficações que decorrem de poder administrar a acumulação ou de ser obrigado a adaptar-se a ela. A discussão da destruição nos países subdesenvolvidos tem características muito especiais, porque inclui as conseqüências da dominação e do fato de conviverem lado a lado a destruição causada por uma acumulação predatôria e a destruição causada pela pobreza e pelas estratégias de sobrevivência. 33 O entendimento de que a modernização leva à substituição das oligarquias por elites modernas permeia toda a leitura sociológica do desenvolvimento e alimenta a suposição de que esta substituição seja

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ser apreciado, levando-se em conta que corresponde ao consumo de grupos que estão inseridos no processo social de produção de diferentes modos, que estão identificados como pertencentes ao âmbito formal ou ao informal, ou que se movem entre os dois. A multiplicidade de formas do âmbito "informal" e a multiplicidade de modos de articulação entre formal e informal na América Latina mostram, por um lado, as novas experiências com urbanização e urbanidade, e, por outro lado, os limites das políticas sociais em sua abrangência e em sua eficácia. Assim, tanto como a experiência latino-americana leva a discutir estes movimentos, leva também a rever o significado da modernização contida na formação de capital como movimento empregador e valorizador de trabalho. 4. As relações econômicas internacionais

A primeira observação de Myrdal neste tema, fundamental para toda a análise de

relações mundiais desiguais – ou da inserção dos atuais subdesenvolvidos na economia mundial – é que as atuais relações externas dos países subdesenvolvidos "são em grande parte o produto de relações econômicas e políticas que se desenvolveram no século passado". A persistência deste sistema de relações externas revela a capacidade do sistema colonial para se adaptar aos requisitos da modernização. Em contrapartida, a expansão do comércio mundial, que resultou da expansão das grandes empresas na década de 1970, corresponde a uma reorganização da economia mundial, em que as posições dos diversos países refletem movimentos cujos verdadeiros agentes são as empresas cuja explicação demanda um prévio estudo das transformações da empresa. Uma vez mais, a controvérsia sobre o estudo das relações internacionais parte da revisão do pressuposto básico da análise convencional, qual seja, de considerar que os mo-vimentos agregados na balança de pagamentos são representativos de transações que realmente ocorrem entre empresas; ou dito de outro modo, que os resultados ma-croeconômicos do setor externo são igualmente válidos independente de mudanças que ocorram ao nível micro da relação entre empresas. No Drama asiático há um tra-tamento contraditório desta questão, que leva a um surpreendente subdimensionamento da análise da relação externa, considerando que o próprio Myrdal socialmente favorável, já que esta substituição implica em atitudes mais propensas à mobilidade social e a situações mais equânimes de renda É uma idéia que também está ligada a suposição de que deste modo se fomenta o espírito e a competência empresariais. Mas a observação da experiência dos países latino-americanos com a modernização mostra que na realidade tem havido uma sucessão de alianças entre as oligarquias e segmentos de capital internacional, geralmente intermediados por movimentos de concentração do sistema bancário em cada país, geralmente apoiados por políticas governamentais de fomento. A estratégia de permanência no poder das oligarquias passa pelo controle fundiário – que denominamos de bloqueio fundiário no caso da região do Recôncavo baiano – e pelo comando da maquina política local, que permite retroalimentar em subsídios à produção e em vantagens especiais para a comercialização. Esta permanência das oligarquias prossegue através da industrialização, quando as políticas industriais de fomento são feitas mediante créditos especiais que atendem repetidamente pequenas proporções de empresas, tal como se tem observado no Nordeste do Brasil, no México, na Argentina. Na década de 80, com a liberalização política no Brasil, este fenômeno tornou-se mais evidente ao perceber-se que a concentração do sistema financeiro independe da liberdade econômica.

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reconhece que a análise do subdesenvolvimento fica incompleta enquanto não dispõe de respostas razoáveis para o papel da relação externa na formação do produto.

As principais lições que tiramos daí são, em primeiro lugar, que este tema não deve ser tratado a partir de situações hipotéticas genéricas, porque deste modo perder-se-ia de vista o fato de que a composição da relação externa – em termos de produtos, de empresas e de países – antecede as quantidades transacionadas; segundo, porque os fluxos de capital são diretamente interdependentes dos fluxos de renda; e terceiro, porque os fluxos atuais de renda estão determinados pela progressão de fluxos de ca-pital, resultando em que a análise da relação externa deva combinar os dados de curto e de médio prazos.

As dificuldades desta análise, no entanto, surgem – e não foram resolvidas por Myrdal – quando se considera este cornunto de inter-relações â luz de modificações na composição do capital, respectivamente dos países desenvolvidos e dos subdesenvolvidos. A bem do realismo, temos que admitir que a formação de capital nestes dois grupos de países segue diferentes pautas e que não há regras a priori que expliquem o curso futuro de suas respectivas trajetórias. Já na perspectiva dos dois decênios transcorridos desde a publicação do Drama asiático verifica-se que as principais limitações das análises como a de Myrdal (que se apóiam nos dados dos movimentos de capital e renda entre países) não registram a expansão das relações intra-empresas, seja os movimentos de bens entre empresas de um mesmo grupo econômico, seja movimentos de troca de bens e de financiamento entre bancos e empresas associados de algum modo. Esta nova modalidade de expansão do capital traz consigo uma canalização das transações internacionais ao redor de determinadas linhas de produção – como no contexto da indústria automobilística no da petroquímica ou na agroindústria – que funcionam como regulador de investimentos e que mediatamente estabelecem os espaços de operação dos bancos. A conseqüente organização do comércio ao redor da renovação de seus agentes torna pouco eficaz a teoria ortodoxa do comércio internacional que supõe invariantes; portanto, nulos os efeitos das mudanças na organização social do comércio.

5. A VALORIZAÇÃO DOS RECURSOS HUMANOS

5.1. A orientação do estudo dos recursos humanos

Alguns aspectos do estudo dos recursos humanos devem ser comentados do

ponto de vista da ciência econômica antes de examinar como são tratados na obra de Myrdal. Diz ele que na análise econômica convencional o estudo dos recursos humanos faz se primordialmente do ponto de vista da combinação de fatores, ou, dizemos nós,

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mais restrita ainda, do ponto de vista da função produção. Isto quer dizer que o objetivo deste tipo de estudo é chegar a certas observações sobre a participação dos trabalhadores no processo de produção. A distribuição dos resultados da produção é estudada como um campo especial da teoria econômica, e apesar dos evidentes vínculos entre produção e distribuição34, considera-se que o nexo entre as duas interessa à análise dos fundamentos morais da teoria e não se formaliza como um campo identificável de análise, diferente do que pretendeu Ricardo (ver prefácio de Princípios de economia política) e do que pretendeu Marx (em sua análise da relação entre a mais-valia relativa e a acumulação). A consolidação de uma visão integrada da distribuição como parte de uma compreensão do processo econômico continuou em aberto, seja porque a distribuição seja tratada sempre como subordinada à organização da produção, seja porque o próprio problema de distribuição seja reduzido ao da distribuição da renda entre pessoas e não contemple a composição da distribuição pessoal com a funcional e com a distribuição entre classes, além de ignorar os aspectos de consumo coletivo e renda familiar. Este tema, de que já tratamos em trabalho anterior35 sugere uma revisão 34 A linha de analise que se apóia no nexo produção/distribuição está no corpo da teoria económica desde seus inícios. Ricardo, sem dúvida foi o primeiro a por a prioridade da análise na distribuição, mas a operacionalização da explicação da distribuição teve que esperar pela teoria da exploração de Marx ainda que colocada apenas no modo como está inserida na produção A retroalimentaçao dos efeitos da distribuição na produção pressupõe uma conceituação muito mais ampla de distribuição, compreendendo a mediação das instituições, os efeitos da estruturação social dos trabalhadores, as posições de uns setores da produção em relação com os outros. Do ponto de vista de uma teoria do desenvolvimento, isto é, de uma teoria que explica mudanca em longo prazo, a questão é saber qual o sentido de uma teoria que separa produção e distribuição, se ela é relevante para explicar os processos sociais concretos da atualidade. O que ficou praticamente sem resolver é a utilidade das teorias do crescimento para mannejar problemas de deseovolvimento. E como a famosa tendência à simplificação leva justamente a isto, a recuperação da teoria do desenvolvimento implica na recuperação dos enfoques básicos de análise da distribuição. 35 O dimensionamento adequado do estudo da distribuição pressupõe uma compreensão dos sistemas de produção como sociedades, como totalidades compostas de elementos diferentes una dos Outros e em constante relação com outras totalidades equivalentes. Noutras palavras, uma teoria do Estado e uma compreensão das relações entre Estados. Paralelamente, pressupõe que o fenômeno genericamente denominado distribuição abranja, concomitantemente, a distribuição da renda e a do capital, e também, concomitantemente, a interpessoal e a interfamiliar. A separação entre a análise da distribuição atual e a da retroalimentação dos efeitos dos processos distributivos tem efeito, por exemplo com que a análise positivista da distribuição resulte sempre em coeficientes de distribuição da renda que não estão postos em relação com modficações nas posições das famílias nem das empresas. Ao imaginar por um momento que a análise economica parte de situações de distribuição para considerar como pode se realizar a produção e como pode se realizar o consumo, pode se considerar, primeiro, que a produção pode ser realizada por aqueles que contam com capital, crédito e poder político para aproveitar a tecnologia disponível, seja para realizar investimentos conhecidos, seja para criar oportunidades de investimento; segundo, que a produção é concebida de modo a manter a situação de distribuição, o que onde significar que sejam escolhidas aplicações de capital autenticemente rentáveis e outras aplicações não necessariamente rentáveis, mas que podem resultar em lucro em função das margens de poder político disponíveis; e terceiro, que entre aplicações equivalentes podem ser preferidas aquelas que melhoi se ajustem a previsões de demanda compatíveis com as previsões de distribuição. Adicionalmente, pode-se considerar que a distribuição jamais é uma situação estática, senão que é um quadro cambiante que se desloca acompanhando a composição orgânica do capital e a capitalização dos recursos humanos. Em longo prazo é inútil pensar em termos de emprego sem reconhecer que o quadro do emprego acompanha ou reflete as mudanças no quadro dos recursos humanos, em termos de educação e acesso a

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do tratamento dado à distribuição na análise de processos de mudança econômica e política acelerada, que é a situação da análise do desenvolvimento.

Mas isto também significa uma crítica ao tratamento do comportamento dos agentes sociais. A teoria convencional da produção pressupõe um comportamento ex professo das pessoas e dos grupos sociais, que ficam unidimensionalizados, como apontou Marcuse36, na condição de produtor ou de consumidor. A teoria convencional da produção baseia-se em que o egoísmo do indivíduo pode se realizar no meio social (fazendo caso omisso daquelas restrições à separação entre indivíduo e grupo), enquanto a teoria da distribuição demandou uma crítica ética explícita dos pressupostos do comportamento econômico para introduzir o ponto de vista das classes e dos grupos formados sobre identidade cultural ou experiência histórica comum.37 Efetivamente, desde os clássicos, a ênfase da teoria econômica posta em um ou outro enfoque respondeu sempre a mudanças na importância atribuída a cada um destes problemas na explicação do processo econômico ou para resolver problemas econômicos concretos imediatos. A teoria da distribuição ocupa-se das leis pelas quais o produto gerado se reparte entre classes segundo sua participação na produção e na propriedade, como disse Ricardo. O estudo da participação dos trabalhadores no processo econômico e a função oportunidades de trabalho. Considerando ainda que o acesso a emprego está marcado por rupturas na qualificação, no nível de informação dos trabalhadores e pelo controle social dos postos de trabalho, cabe supor que, em cada situação de distribuição em cada sociedade, primeiro, existam diferenças que não estão registradas na desigualdade de renda e que somente aparecem na renda em forma terminal, nua realmente se processam anfes da formação da renda; segando, a irregularidade no acesso a postos de trabalho equivale a precariedade no emprego e nas remunerações, resultando em subutilização crônica da força de trabalho. Estas observações, obviamente, situam-se no nível de uma discussão categorial da distribuição, prévia a qualquer formalização de análise. Mas ao que tudo indica, são elementos necessários no pensamento sobre este tema. 36 O homem unidade unidimensional é o homem destituído por excelência. É o homem reduzido à função que desempenha no processo de produção, que por oposição signifiica o homem destituído de cidadania A redução do cidadão à força de trabalho, entretanto, significa sua inclusão no mercado de trabalho; portanto, que sua presença na sociedade está regulada por seu acesso virtual ou real aos postos de trabalho que são criados. Entretanto, a discussão atual das economias periféricas, em seu conjunto e no tocante à pobreza queelas contêm obriga a reconhecer que a conseqüência final da unidimensionalidade – a perda de cidadania – decorre de um processo muito mais amplo de exclusão, em que se conjugam a segmentação do mercado de trabalho, o controle das informações, os diversos mecanismos de segregação. A pobreza cria um patamar inferior adicional na destituição dos atributos do homem, criando cidadãos de segunda classe, cujas perspectivas são de um agravamento da exclusão e de uma perda irremediável das condições para participar da força de trabalho regularmente remunerada.

37 A multidimensionalidade do homem socialmente reconhecido significa também a profundidade histórica a que corresponde, a sedimentação cultural. A disputa por uma noção historicamente adequada ao desenvolvimento é também uma disputa pela antropologia do processo social. O desenvolvimento, ou a superação do subdesenvolvimento, foi descoberto como uma expressão de modernizaão ligada à proposta de universalização do capitalismo. Mas ao entrar em contato com a originalidade das sociedades, esta proposta de progresso se defronta com a identidade dos povos convidados a se desenvolverem, entra em contato com esta profundidade histórica e passa a ter uma definição atropológica, positiva no caso de um desenvolvimento socialmente pleno, negativo no caso da mecânica do crescimento.

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que ela desempenha na sociedade faz-se sob o título geral de teoria da produção. Assim, torna-se logicamente inevitável que aqui o trabalho seja tratado como agente da produção e pela eficiência com que cumpre esta função. A partir daí podem-se lazer duas observações importantes sobre o curso seguido pelo tratamento dos recursos humanos na teoria econômica: (a) que haja uma incompatibilidade entre objetivo de elevar a produção e a produtividade e o de focalizar na distribuição; e (b) uma tendência inevitável para subordinar o estudo dos recursos humanos às categorias em que se desenvolveu a teoria da empresa. Este último aspecto é a chave de um debate de profundas raízes na teoria do desenvolvimento, que Myrdal enfrenta no Drama asiático. Se o desenvolvimento é concebido como um processo cujos fins últimos são sociais, a perspectiva correta de seu estudo deve ser a de maximizar o potencial representado pelos recursos humanos. Este critério supera a singela perspectiva “demográfica” do estudo dos recursos humanos, que sempre identifica a disponibilidade atual de recursos humanos com a composição atual da mão-de-obra, que portanto desconhece a relação de tipo potenciada entre a formação social do trabalho e as condições concretas de seu engajamento no processo de produção. /subjaz que o tratamento dos recursos humanos como potencial contempla as transformações deste potencial, seu eventual aproveitamento, seus efeitos como viabilizador da capitalização. A importância desta preocupação para os países subdesenvolvidos não pode ser exagerada. Mesmo naqueles raros casos em que há pouca pressão demográfica38, é inegável a necessidade de incrementar a qualificação da população, tanto no sentido mais amplo da educação – incluindo aí a apropriação de cultura – como nos aspectos técnicos, orientando a para formas de adestramento que viabilizem sua absorção e sua inserção em tarefas especializadas no sistema de produção. Cabe anotar que o conceito 38 A discussão sobre população, especialmente no que se refere ao controle da natalidade, corresponde sempre a alguma interpretação da influência do tamanho da população e da velocidade de seu crescimento em suas condições sociais de vida e em sua participação na produção. Em qualquer caso, a suposição é que o excesso atual ou futuro da população frente a postos de trabalho e meios de consumo impeça ou atrase a suprção do subdesenvolvimento. A visão da tragédia da pobreza confirma esta postura. A frustraão dos países subdesenvolvidos que não conseguem sustentar taxas significativas de crescimento dá munição a este ponto de vista. Mas independência dos argumentos contrários, há algumas qalificações desta discussão que são de especial interesse para os países latino-americanos. Uma delas refere-se à noção de pressão demográfica. A pressãop efetiva exercida pela população sobre os meios de produção e sobre os meios de consuno resulta da distribuição da renda e da composição da demanda; e se concretiza sobre a capacidade instalada em cada linha de produção, tanto no nível da infra-estrutura como no da produção de cada bem específico. A razão que faz com que se reconheça uma determinda pressão demográfica decorre, por exemplo, de que As necessidades de moradia e de transporte coletivo urbano são, em grande parte, necessidades de pessoas que não podem pagar por estes serviços. Podemos supor, primeiro, que uma menor população significa menor necessidade, mesmo sem mudar o perfil da distribuição; segundo, que uma mudança na distribuição muda a compsição da demanda e pode reduzir a pressão específica sobre determinados bens e serviços; e terceiro, que os mecanismos sociais que geram a desigualdade não são afetados pelos movimentos da população, sejam eles causados por políticas, deliberadas ou não, e que, conseqüentemente, um movimento de redução da população que comece agora não significa que não haverá adiante uma nova pressão demográfica, quando o perfil de distribuição colocar outra vez uma parte da população sem condições de demandar na escala de suas necessidade. A percepção de que o problema demográfico consiste realmente em uma pressão demográfica equivale a considerar que por trás da questão demográfica atual estão os efeitos acumulados de um perfil desigual de distribuição da renda.

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de pressão demográfica na América Latina passa pela discussão da espacialidade do sistema produtivo, que de modo algum pode ser controlado somente sobre a base da relação entre população total e território. Todos os grandes países latino-americanos – Brasil, México, Argentina – sofrem os efeitos de uma elevada pressão demográfica sobre os pontos de maior capitalização, contrastando com a persistência de grandes regiões abandonadas, subutilizadas ou relegadas à pobreza extrema. É uma questão que envolve a maior concentração de pressa o social urbana na Argentina e nas regiões mais capitalizadas do Brasil, comparadas com o panorama social-político mexicano, apesar de que este último país tem uma pressão demográfica muito mais concentrada em sua capital. Estes problemas acentuaram-se na década de 70, quando o estrangulamento externo das economias latino-americanas coincidiu com uma reorganização do uso de trabalho – mesmo rara sustentar o setor exportador –, que contribuiu para acelerar a concentração de capital. Surpreendentemente, a questão demográfica continuou sendo discutida separadamente da análise do crescimento, seja tomada como residual da outra ou que corresponda a objetivos "sociais" diferentes dos econômicos.

A discussão deste problema ao nível da formação social implica numa reconsideração do efeito emprego desse movimento; portanto, contemplando a relação entre o sistema produtivo, a infra-estrutura e a urbanização. Mesmo sem entrar no mérito dos problemas teóricos que freiam este tipo de análise, pode-se sublinhar a interdependência entre o tamanho de uma população e sua capacidade para absorver mão-de-obra, bom como a relação entre os incrementos de população e os empregos novos que a sociedade gera. É evidente que quando se alude à pressão demográfica no Brasil ou na Colômbia, se está relacionando a população com os recursos naturais e com o capital disponível, bem como a eficiência do sistema produtivo em seu conjunto – ou em cada uma de suas regiões –, sem baixar sua eficiência. Por isto é logicamente necessário supor que uma modificação no perfil dos usos dos recursos pode significar uma mudança na capacidade do sistema produtivo para aproveitar plenamente o potencial de trabalho de sua população. Tudo isto mostra a gravidade das simplificações em voga no tratamento do eixo população/emprego na teoria econômica, que em vez de aprofundar neste processo segue o caminho inverso, de simplificar as referências com que o trata, e, finalmente, de reduzir a contribuição da sociedade à produção ao simples empregadas e de pessoas vinculadas ao mercado de trabalho.

Por essas razões, o enfoque do Drama asiático adapta- se à realidade dos países latino-americanos quando destaca o potencial representado pela população, e ao propor que o desenvolvimento deste potencial seja o objetivo fundamental. Corresponde a uma reordenação das preocupações com o desenvolvimento, no sentido de oferecer condições às economias periféricas para criar riqueza segundo pautas próprias, que realizem esta valorização da população enquanto trabalhadora, em vez. de concentrar-se na explicação da mecânica da criação, em que consistia a teoria do desenvolvimento. A questão das margens de autonomia das economias nacionais frente ao movimento internacional do capital está aqui em jogo conjuntamente com a das margens de auto-nomia dos programas de investimento em relação à composição do capital de cada país. A criação de emprego aparece então como um processo duplamente subordinado, que segue uma trajetória peculiar, concomitante com a da formação de capital.

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5. Os recursos e o aproveitamento dos recursos naturais

O papel atribuído por Myrdal à relação entre o aproveitamento dos recursos humanos e o dos recursos naturais leva a destacar este tema. Uma breve revisão de seu significado teórico e de sua posição na análise dos recursos humanos pode ser oportuna para explicar seu papal agora nas ciências sociais.

Os clássicos deduziram leis do processo econômico pressupondo uma oferta ilimitada de trabalho vivo, ou de trabalhadores pretendendo emprego, o que significa trabalhar com um conceito de trabalho atual correspondendo a um potencial de trabalhadores não especializados. O conceito de trabalho abstrato oferecido por Marx reflete uma quantidade e qualidade de trabalho necessário na sociedade em seu conjunto, que por sua vez constitui uma alternativa do trabalho simples, supostamente realizável pelo trabalhador muito pouco qualificado. Indiretamente, pressupõe algum tipo de correspondência entre trabalho pouco qualificado – ou seja, aquele realizado pelos trabalhadores menos qualificados, que em caso algum serão totalmente qualificados – e toda a multiplicidade de formas de trabalho qualificado. As condições de correspondência entre estas diversas qualidades de trabalho, no entanto, jamais ficaram claras. Marx explicou o modo de uso de trabalho na produção em que o tempo é fundamental, tanto para definir a jornada de trabalho como para determinar os períodos de produção e a conseqüente renovação de capital nas diversas linhas de produção. Mas estas explicações correspondem sempre ao trabalho atualmente incorporado à produção e em caso algum ao potencial de trabalho da população. O trabalho de Myrdal sobre o aproveitamento do potencial de trabalho atinge este ponto indefinido e identifica novos problemas na relação entre a progressão do sistema produtivo e o uso de recursos naturais.

A linha de argumentação de Myrdal rejeita as suposições dos clássicos de uma oferta ilimitada de trabalho. Pelo contrário, reivindica os dados concretos da realidade: um determinado perfil de recursos humanos e um determinado perfil de recursos naturais, cada um com suas próprias leis de reprodução, articulados pelos movimentos do capital, que também são específicos em tempo e espaço. Myrdal começou por considerar a relação entre a magnitude da população e os recursos de terra já dispo-níveis e logo com os tipos de agricultura que utilizam estas terras. Compara a densidade demográfica com a produtividade agrícola, mas, invertendo a ordem do argumento de Malthus, focaliza na relação entre a pressão demográfica na estrutura agrária e as concomitantes formas de subemprego no meio rural. Examina as alternativas contidas no agricultura autóctone e examina a repercussão socioeconômica das grandes unidades agrícolas, sejam elas modernizações dos antigos latifúndios, sejam novas modalidades de “plantations”. Conclui com o exame dos efeitos indiretos da agricultura nas economias nacionais em seu conjunto e com a relação entre o desempenho da agricul-tura e o advento da industrialização e da urbanização.

Essa análise dá uma importância central à estruturação agrária, a cujas

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transformações atribui um papel central na utilização de recursos físicos. Por isto mesmo é de extrema validez para os países latino-americanos, que quase sem exceção têm grandes possibilidades de desenvolvimento pela mobilização de suas terras subutilizadas. No entanto, transmite uma idéia inadequada do problema de mobilização de recursos naturais porque não inclui neste conceito as modificações na pluralidade do contexto agrícola que são inerentes à própria expansão do capital.

Essa relação entre a situação agrária de um país e a dinâmica do aproveitamento dos seus recursos abre grandes possibilidades para o estudo do subdesenvolvimento e a desigualdade nos países latino-americanos. Tomando-a como ponto de partida, levantando algumas perguntas relativas a sua situação, pode se chegar a colocações que por sua vez mostram qualificações do cálculo econômico em cada país. Pode-se argüir, por exemplo, (a) as bases teóricas para a formulação de expectativas econômicas sobre o valor da terra ao aumentar a área cultivada, dependendo do comportamento da fronteira agrícola; (b) os problemas teóricos que deverão ser resolvidos para colocar a questão agrária em termos comparáveis com os da organização da produção na agricultura; (c) os problemas teóricos correspondentes à especificidade ("uniqueness") do trabalho especializado na organização da produção na agricultura e seus efeitos indiretos na produtividade dos demais fatores.

As situações correspondentes a estes três supostos são muito freqüentes nas economias dos países latino-americanos e justificam perfeitamente um esforço teórico para incorporar suas soluções à teoria do subdesenvolvimento da América Latina. Sua colocação correta, entretanto, demanda confrontar a disponibilidade de mão-de-obra e de trabalho com os problemas de mobilização dos recursos naturais de cada país. Seguindo o raciocínio de Myrdal sobre a relação entre a estrutura agrária e os usos da terra, cabe colocar que: (a) a relação entre a absorção de mão-de-obra na produção e o desenvolvimento de recursos pesqueiros referidos no contexto de oferta e procura de alimentos; e (b) a relação entre a absorção de mão-de-obra e a exploração de recursos, principalmente os minerais.

Essas atividades não agrícolas estão sujeitas a grandes pressões indiretas para que absorvam contingentes de mão-de-obra superiores a suas necessidades, sobretudo nos casos de países com altas margens de desemprego e de subemprego rural. Também se prestam mais que outras para absorver trabalhadores pouco qualificados. Obviamente são atividades de extrema importância no perfil da produção nos países latino-americanos. Myrdal examinou O significado econômico da proporção dos alimentos na produção agrícola, comparando-a com a densidade demográfica e observando o nexo entre a eficiência da organização da agricultura, especialmente daquela voltada para exportação, e o aparecimento de certas formas limitadas de industrialização. 5.3. Desemprego e subemprego

Como ponto de partida Myrdal criticou a opinião generalizada entre os

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economistas dos países desenvolvidos de que o desemprego e o subemprego sejam causados por falta de demanda de trabalhadores e que a mão-de-obra nos países subdesenvolvidos – fala dos países do sul da Ásia – reage no mercado de trabalho com a mesma racionalidade dos trabalhadores da Europa ocidental. Ambos pressupostos, diz ele, constituem uma interpretação incorreta do comportamento da população dos países subdesenvolvidos, uma atitude que leva a definir como objetivo do planejamento a absorção de toda a mão-de-obra, um objetivo simplesmente de reverter a situação atual e não de propor um curso alternativo de formação de capital. Esta atitude, assinala Myrdal, fracassa quando trata de vincular o tratamento do desemprego e do subemprego com o da produtividade do trabalho dos trabalhadores efetivamente ocupados (ver p. 962). Isto significaria uma volta à atitude colonial de buscar trabalhadores para as atividades rentáveis de exportação, uma atitude bem conhecida na América Latina, onde também é freqüente a queixa de escassez de mão-de-obra nas atividades de exportação. A contribuição de Myrdal neste caso está justamente em mostrar a contradição incluída na proposta dos economistas de transformar as economias subdesenvolvidas em reproduções da economia européia do bem-estar e pôr a descoberto o substrato mercantilista das teorias do emprego: "o principal propósito dos regulamentos das condições de trabalho estabelecidas pelo Estado e pelas autoridades municipais era de assegurar força de trabalho adequada em termos favoráveis (a esses produtores)" (p. 966).

A sobrevivência do enfoque mercantilista pode ser comprovada na produção de banana, açúcar, cacau, algodão e outras mercadorias mundiais, para cujo desenvolvi-mento formularam-se políticas especiais, criaram-se instituições, transladou-se população e, como conseqüência, acumularam-se problemas sociais de grandes proporções quando estas culturas de exportação entraram em decadência por uma razão ou outra. As limitações do desenvolvimento pela industrialização, verificadas durante a década de 1970 pela dificuldade de realizar exportações industriais, demonstraram a conveniência de uma nova leitura da influência do pensamento mercantilista na formação da política econômica e na política de emprego. A própria noção de que cada país constitui uma reserva de trabalho disponível para o capital ali sediado é uma extensão deste ponto de vista que implicitamente nega aos trabalhadores a liberdade de decidir em qual mercado participar.

Todas essas políticas, assinala Myrdal, estiveram ligadas a preconceitos raciais, reconhecidos quando se aceita que existem diferenças importantes no mesmo mercado de trabalho, entre as populações locais e as de origem européia. Fatos similares registraram-se na América Latina, servindo como desculpa para estabelecer políticas discriminatórias de salário e de condições de vida. A discriminação racial em muitos casos é completamente negada e em outros reconhecida apenas em parte. Problemas de populações economicamente segregadas ou mantidas em condições desfavoráveis, como grande parte das comunidades índias nos países do altiplano andino, no Brasil, são colo-cados como questões separadas da constituição do sistema de produção. Os movimentos sociais e políticos desde começos da década de 70 tornaram mais visíveis os problemas de discriminação em países oficialmente multirraciais ou que negam a discriminação,

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como o Brasil. Mas o reconhecimento da pluralidade racial e cultural implica em novas necessidades da análise social, da revisão de categorias de análise, que constituem perturbações para a análise social academicamente reconhecida. No Brasil, parti-cularmente, esta dimensão da problemática social fica parcialmente obscurecida pela visão étnico-cultural e folclórica da questão social, que tacitamente pressupõe que o mercado de trabalho contém segmentações que não podem ser evitadas. A superação destas distorções pressupõe um reconhecimento da inter-relação entra a formação cultural e a trajetória política e econômica que certamente não foi feita. Assim, a pluralidade de formas de dominação interna opera no sentido de uma hegemonia em que a apropriação dos próprios movimentos de liberação retroage como mecanismo de legitimização do poder nacionalmente estruturado.39

Em termos de teoria econômica, como indica Myrdal, tudo isso evidencia que a teoria econômica liberal – a clássica e a neoclássica – conservou os preconceitos sociais da teoria mercantilista em relação ao mercado de trabalho. Mas os problemas de desemprego estrutural em condições de subdesenvolvimento ficaram sem resposta. O ponto de vista dos mercantilistas corresponde aos interesses da reprodução do capital mercantil e ao seu modo de ver a presença dos capitalistas na produção. Os mer-cantilistas analisaram o mercado de trabalho do ponto de vista do empresário, que não necessariamente é um produtor; e este ponto de vista continuou ao longo da formação da teoria. A mudança mais importante surgiu como resposta aos ciclos econômicos e tom como principal novidade uma nova definição das funções do governo, que passa a ser visto como mantenedor do nível de emprego, como uma condição para o funcionamento dos sistemas econômicos nacionais ao longo daquelas flutuações ineren-tes à expansão do capital. A teoria do emprego exerce um atrativo inevitável sobre os países subdesenvolvidos, mas, dizemos nós, é necessário advertir que o desemprego denunciado por Keynes resultava de circunstâncias econômicas e sociais diferentes daquelas agora enfrentadas pelos países subdesenvolvidos: o traslado do conceito key-nesiano de desemprego involuntário às condições de subdesenvolvimento termina por facilitar um escapismo bem conhecido, que consiste em atribuir a principal responsabi-lidade do desemprego a uma má utilização da força de trabalho conseqüente de falta de capital. É importante lembrar, entretanto, que este pressuposto neoclássico de escassez de capital foi revalidado na teoria do desenvolvimento, naquilo em que primeiro mostra

39 A diferença entre as análises baseadas na estruturação das unidades nacionais e as baseadas nas estruturação de classes ainda fará com que muita tinta seja derramada. Mas há alguns pontos em que as duas caminham juntas para construir a explicação de determinados problemas. A fundamentação nacional da formação de blocos hegemônicos é um referencial que não pode ser ignorado – pela análise que se organiza a partir de uma perspectiva nacional ou de uma perspectiva de análise de classe. Esta perspectiva nos leva a destacar que a distribuição econômica correponde a uma distribuição política, ou seja, o controle da reprodução do capital equivale ao controle da reprodução do poder político. O controle dos movimentos da modernização, na realidade é o mecanismo que viabiliza a apropriação política dos recultados econômicos de consumo popular, obtido por pequenos produtores a partir de uma situação de baixo consumo por família, pode não acionar nenhum mecanismo de poder; mas um aumento equivalente em valor da produção de mercadorias que incorporam tecnlogia gera deslocamentos de poder. a questão que enfrenta agora consiste em que esta apropriação da modernização é heterogênea e dá lugar a uma pluralidade de posições no controle da reprodução do capital e na do poder político.

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as restrições a uma progressão contínua de investimentos dada pelos tamanhos técnicos e econômicos de fábrica; segundo, aponta as interdependências entre escalas de tamanho de infra-estrutura e produção de bens; terceiro, mostra que o início de qualquer processo de investimento requer uma massa prévia de acumulação que deve ser explicada fora do capitalismo industrial. E um ponto certamente controverso, mas que não pode ser ignorado, já que dificilmente se pode conceber processos acelerados de investimento que possam ser iniciados separadamente das relações internacionais.40

Assim, do ponto de vista dos países subdesenvolvidos, seria necessário liberar a análise do mercado de trabalho destas impropriedades. Neste sentido Myrdal identifica aqueles que considera como "pressupostos básicos do enfoque moderno". Segundo ele, três destas premissas são evidentes: (a) que o insumo trabalho pode ser tratado principalmente como uma quantidade, com escassa ou nenhuma referência a sua eficiência; (b) que o ócio pode ser considerado involuntário; e (c) que o trabalho ocioso – representado por desemprego e subemprego – constitui uma oferta imediatamente disponível de trabalho, mesmo que, dizemos nós, esta oferta não necessariamente coincida com o perfil da demanda de trabalhadores.

Comparando as diferenças entre estes pressupostos e as condições materiais dos países por ele estudados, Myrdal pôs em relevo os fatores climáticos, os níveis de saúde e de nutrição, as condições institucionais, as atitudes condicionadas e condicionantes das instituições, a relativa mobilidade do trabalho e a imperfeição do mercado, os aspectos administrativos e políticos que são desdenhados na análise econômica corrente. Tais deficiências do enfoque moderno são, logicamente, as que o inabilitam para analisar os países do sul da Ásia. Algumas delas são igualmente válidas para os países latino-americanos, como, por exemplo, a imposição de determinar em quais proporções a desocupação é involuntária porque simplesmente não tem como participar no mercado de trabalho. Para os países subdesenvolvidos, o problema consiste em grande parte em saber se a subocupação e a desocupação poderiam ser eliminadas na prática para que aumentasse a disponibilidade de financiamento para produzir.

40 Um aspecto pouco explorado na reoria do desenvolvimento é o significado do momento (na formção de cada país) a partir do qual se iniciam os impulsos de modernização ou de autêntica superação do subdesenvolvimento. Nos diversos países, as estruturas de poder manejaram com dirferent flexibilidade o capital disponível em direção a formas de produção mais adequadas para conviver com um clima de mudança tecnológica. Os impulsos de transformação não partem de situações idênticas, e os diversos momentos de cada trajetória nacional correspondem a diferentes possibilidades de acesso a alternativas de diversificação na formação de capital. este aspecto do processo reveste-se de especial importância quandose percebe que a progressão da formação de capital é atingida, uma e outra vez, por substituições de técnica de maior impacto indireto, como nos sistermas de transportes e na produçãode energia, quie modificam o espectro de alternativas de investimento. Assim, os países latino-americanos como a Argentina e o Uruguai, que tiveram sua infra-estrutura construída e estabilizada até 1930, ficaram condicionados às possibilidades daquele sistema de transportes e, por extensão, àqueles usos de território e àqueles modos de articulação da infra-estrutura com a capacidade direta de produção. Por outro lado, os países que construíram sua rede de infra-estrutura depois de 1945, como o Brasil, o México e a Venezuela, tiveram a opção de ingressar em outras trajetórias de formação de capital com outras combinações de infra-estrutura com capital direto de produção, que por sua vez lhes permitiram nova territorialidade: expansão da fronteira agrícola e da mineração etc.

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Trata-se agora de verificar como se pode eliminar a subocupação e seu

equivalente em pobreza extrema. Não se descarta o argumento da escassez de capital, mas pergunta-se como interpretá-la nos quadros institucionais específicos destes países, em sua situação de distribuição da renda. Myrdal chamou a atenção para a trama de relações entre o perfil cultural e as estruturas oligárquicas, concretamente manifestadas no plano político. Não se pode, conseqüentemente, tratar os problemas de emprego por separado da estruturação política em que eles têm lugar. A suposta substituição de oligarquias por elites modernas de poder, que ocorreria com a industrialização41 , pode ter sido uma falácia, pode ter desviado as atenções de processos mais complexos de reordenamento do capital, em que a formação de novas elites de poder pode ter sido feita como um desdobramento das oligarquias, que entretanto permanecem com o controle de seus centros tradicionais de poder. A observação dos processos de reforma agrária em países como o Equador e a Venezuela, a substituição de velhos latifúndios no México e no Brasil por modernas explorações testemunham diversas experiências em que as estruturas tradicionais de poder utilizaram o controle da máquina estatal para viabilizar a continuidade de aspectos essenciais do padrão de acumulação do capital.42

Esse, portanto, é um tema a ser examinado em relação ao conjunto das formas de

renovação de capital no campo, da renovação da produção agrícola no contexto de estruturas mais complexas de financiamento e de comercialização. A velha distinção entre monoculturas de exportação e agricultura diversificada cedeu lugar a uma distin-

41 A questão da substituição das oligarquias tem sido geralmente tratada como um fenômeno resultante do impacto da modernização, que presumivelmente se faz mais evidente na industrialização. Pouco se tem trabalhado sobre o que podemos denominar de desenvolvimento das oligarquias; ou seja, do comando que elas conseguiram ter da formação de capital e poder, em parte mediante suas alianças externas e em parte mediante o controle do sistema político. As ligarquias seriam então objeto de um processo exogenamente determinado, no qual teriam poucas oportunidades de influir. No entanto, o que a pesquisa histórica mostra é que em todos os países latino-americanos tem havido um controle conservador da industrialização, que mostra justamente que as estruturas tradicionais de poder, onde se conjugaram as oligarquias de base rural com os comerciantes que controlavam a relação externa, mantiveram eseencialmente o contrate das conversões entre formas de capital e entre formas de poder. Esta perspectiva leva a ver que a modernização industrial é um processo que tem sido controlado pelas alianças do capital e poder, em que estas oligarquias jamais deixaram de participar. 42 Ao ver O desenvolvimento como desenvolvimento das forças produti vas, que se concretiza em experiências de países seguindo determinados percursos da acumulação, abre-se a possibilidade lógica de que os referidos percursos estejam compostos de diferentes modos do acumulação. A teoria convencional do crescimento passa por alto esta questão, que entretanto é essencial em nossa discussão de desenvolvimento. Questiona-se realmente se é dado conceber o processo do capital como um movimento de longa duração que não muda de forma. A resposta é negativa por diversas razões. Uma delas é a interdependência entre a intra-estrutura e o capital diretamente adscrito à produção; outra é o fato de que os deslocamentos na capitalização da infra-estrutura na da produção de bens se dão com diferente tempo e com diferentes escalas e divisibilidade. A formação de capital se faz mediante movimentos discretos – ligados à dimensão e à duração dos bens de capital – e não há como antecipar que estes movimentos não modifiquem as condições de distribuição incorporadas a cada nível de produção e não retroalimentem na composição da produção, e assim sucessivamente. A compreensão de que o desenvolvimento compreende uma pluralidade de movimentos de acumulação é essencial para que se possa adiante chegar à explicação dos movimentos econômicos do capital com os movimentos políticos do poder.

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ção entre a agricultura realizada sob controle financeiro local e a agricultura subordinada a esquemas internacionais de financiamento.

Myrdal tratou do exército de reserva destacando suas implicações políticas. Segundo ele, o exército de reserva deve ser compreendido em seus aspectos dinâmicos, tanto considerando a substituição de trabalhadores concretos que dele fazem parte, como reconhecendo seus aspectos qualitativos, isto é, sua composição por níveis e va-riedade de qualificação dos trabalhadores. O pressuposto de Marx de que a captação de mais-valia ocorre mediante o duplo processo de liberação e de engajamento de tempo – força de trabalho – entre diferentes tarefas, tem que ser revisto já que isto depende da pressuposição de que se ampliem as opções de variedade de atividades entre as quais absorver o tempo trabalho. O fato de que determinados trabalhadores sejam desligados de determinadas tarefas não significa necessariamente que eles mesmos sejam engajados em outras atividades. Os requisitos de qualificação incluídos na composição orgânica do capital são concomitantes dos requisitos técnicos do capital e também da heterogeneidade incorporada no capital constante. Os requisitos de qualificação dos trabalhadores e as defasagens ou desajustes da educação fazem com que muitos trabalhadores sejam expelidos do processo de produção e retirados da posição de empregados potenciais, ou seja, retirados do exército de reserva. A discussão desse tema desenvolveu-se bastante em alguns países latino-americanos a partir da década de 70, beneficiada pelas contribuições sobre o dinamismo interno da marginalidade, reconhecendo que (a) a composição do exército de reserva é conseqüência do rumo seguido pelo progresso técnico, (b) as modificações no exército de reserva refletem-se imediatamente na estruturação social, já que indicam o âmbito de assalariamento no total do trabalho realizado. Subentende-se, portanto, que isto tem profundas conseqüências na concepção da sociedade periférica, que se percebe como segmentada, contendo rupturas entre o âmbito informal e o formal, e contendo com-plexos mecanismos de articulação entre o dinamismo de um e do outro. A apropriação de uma concepção deste tipo leva por extensão a uma compreensão da mudança como resultante de dinamismos desiguais e dando lugar a novas escalas de pluralidade. Assim, a discussão do exército de reserva não pode em são juízo considerar que os desempregados em idade de trabalhar tendencialmente serão incorporados ao pro-cesso produtivo. A incerteza sobre o emprego torna-se um traço cada vez mais forte, à medida em que avança a formação de capital e se definem os limites do trabalho assalariado em relação à expansão do âmbito informal e com a erraticidade dos empregos formais. 5.4. A utilização de trabalho na agricultura Tradicionalmente, o uso de trabalho na agricultura foi analisado na teoria do desenvolvimento a partir de requisitos estabelecidos pelo imperativo de reprodução do capital; portanto, do ponto de vista do capital aplicado na produção agrícola. A

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novidade do Drama asiático é que Myrdal examinou o mesmo fenômeno a partir das necessidades da sociedade de empregar a população rural. Nisto distinguiu a utilização de trabalho no meio rural em seu conjunto, distinguindo o trabalho agrícola do não-agrícola e examinando as inter-relações entre os dois nas economias sul-asiáticas. Propôs-se "examinar a realidade de utilização de trabalho na região... sem compreender as forças que governam a utilização do trabalho, o planejamento para o desenvolvimento dificilmente poderia ter sucesso" (p. 1029).

Myrdal estudou os determinantes da atual estrutura agrícola daquela região manejando os conceitos de tradicional e moderna num sentido weberiano, associando a modernidade com tipos ideais próprios do contexto europeu. É fundamental anotar que o segmento tradicional é apresentado como o lugar de um processo secular modificado pela experiência colonial, e por isto com um dinamismo próprio, exercendo uma influência continua na modernização. Por sua vez, o segmento moderno representa a europeização, compreende experiência específica do período colonial e os processos post-coloniais que continuam o vínculo com o centro do capitalismo mundial. Também se registra que o componente de atividades não-agrícolas do meio rural corta transversalmente o âmbito tradicional e o moderno, já que o conjunto delas compreende algumas de caráter nitidamente tradicional e outras que são trazidas pela modernização. Myrdal separa a esfera do tradicional da do moderno, retirando pouco das inter-relações entre os dois. Esta é a principal deficiência de sua análise agrícola, que contrasta com a do sistema político onde justamente procura uma explicação das transformações do quadro institucional. A brecha da análise fica na explicação das estruturas de poder, com o que as oligarquias se tornam o referencial de um quadro atual aparentemente estático, apesar da explicação histórica da formação destas oligarquias sobre a proteção dos sistemas coloniais. (Ver principalmente a análise desenvolvida no segundo volume do Drama asiático, onde é a análise do poder que liga os sistemas produtivos.) Desta análise sai uma explicação da formação da oligarquia, mas pouco se explica de sua estratégia de poder na formação do segmento moderno.

Há uma grande diferença entre os países estudados por Myrdal e os latino-americanos, justamente na estruturação institucional da agricultura. Apesar de que aqui se registram experiências de continuidade de estruturas oligárquicas, as experiências são muito mais no sentido de uma modernização do poder oligárquico, ou de modificações formais e de um desdobramento dos modos de poder da oligarquia no meio rural propriamente dito em centros urbanos dependentes dele. Logicamente há outras diferenças entre as experiências do sul da Ásia e da América Latina em aspectos tais como a permanência da população no meio rural e na forma de relações com as nações mais industrializadas. Mesmo quando os dramatis personae são outros, a trama é parecida.

A medula da análise de Myrdal é identificar os efeitos desta estrutura

institucional na utilização de trabalho, para adiante resolver o uso de trabalho em termos de incorporação de trabalhadores ao sistema de produção. Mas é uma estratégia

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de análise que deixa a desejar, por penetrar pouco na inter-relação entre a organização técnica e a organização social no meio rural. Torna-se difícil comparar o trabalho rural não-agrícola do sul da Ásia com o dos países latino-americanos ou das diversas regiões de alguns destes países. Myrdal destaca que nos países que estudou os trabalhadores vinculados de modo estável às propriedades agrícolas utilizam parte de seu tempo em tarefas não-agrícolas, que aumentam de modo significativo o uso total de seu tempo de trabalho. Na América Latina, situações deste tipo ocorreram em grande escala no passado e ainda ocorrem em boa medida, mas a própria expansão da agricultura moderna reduz o trabalho não-agrícola e a permanência média dos trabalhadores em suas ocupações. O conceito de camponês está sujeito a controvérsia que põe de um lado estudiosos provenientes de países com experiências multisseculares e com importante produção de pequenos produtores, e de outro lado os estudiosos vindos de países de agricultura recente, moderna, sem tradição comunitária.43

Mas, num outro aspecto as duas experiências de análise se aproximam. E em relação à intensidade de uso de trabalho e à duração da jornada de trabalho. Myrdal assinala que não há estímulos institucionais para que trabalhem mais. Mesmo considerando que a produtividade do trabalho seja pequena em grande parte das tarefas realizadas no campo, cabe reconhecer que a jornada de trabalho varia principalmente de acordo com o programa de produção de cada estabelecimento, que é um dado externo 43 A expansão do capitalismo torna cada vez mais difícil definir quem é um camponês na América Latina. Há pouca dúvida entretarnto, de que é um conceito que pressupõe uma permanência significativa na terra e certa margem de liberdade na decisão dos programas de produção Istp presumivelmente significa certa falta de divisão do trabalho da família como conjunto na formação da renda familiar. A aceleração da expansão do capital no campo tem se traduzido no aprofundamento da diferenciação no campo significando isto: (a) a identificação de certo número de produtores médios que conseguem se capitalizar; (b) aumentos do número dos pequenos produtores que não conseguem se libertar da linha de subsistência; (c) diminuição do tempo de permanência média dos pequenos produtores em cada localização. Não está realmente claro se a produção camponesa é residual no sentido de que se realiza a níveis de tecnologia em média atrasados em relação ao da produção considerada comercial (o que não significa que a produção camponesa não seja capitalista); ou que ela seja um tipo de produção que, independente de leis próprias de capitalização, funciona como complemento da produção capitalista de maior escala. Mas há pouco do que duvidar que esta produção camponesa depende da organização familiar e do um conhecimento prático que só pode se acumular pela permanência numa mesma gleba. A análise deste tema se complica em países como o Brasil a Venezuela, o Peru, a Argentina, onde é indispensável levar em conta os deslocamentos territoriais da produção, seja por expansão ou por substituição de áreas cultivadas: a nova ocupação supõe sempre uma falta ou perda de conhecimento tradicional e sua substituição por novos modos de conhecimento. A literatura sobre este tema mais ou menos se divide entre aquela alimentada por uma percepção da substância cultural-política-histórica do camponês, que geralmente se refere regiões de formação antiga, como no México, no altiplano andino, e a literatura gerada nos países e regiões de formação recente e mais afetados pela experiência de imiarantes, como a Argentina e o Brasil, que se centram nos aspectos atuais de organização da produção e tendem a deixar de lado a formação social Autores como Arturo Warman e Bernardo Sorj são representativos da primeira e da segunda correntes. Em nosso modo de ver há uma perigosa tendência à simplificação e ao positivismo da análise agrícola ligada à primeira posição, e um perigo de falta de realismo na segunda, que tende a subestimar o peso da modernização da comercialização na organização da produção rural. Parece-nos pouco produtivo discutir um tema como este sem relacioná-lo com o das formações sociais na escala de regiões, que finalmente identifica, em cada país, situações de diferente permanência e diferente intensidade de modernização.

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aos trabalhadores. Neste caso a importância dos estímulos econômicos de mercado dependerá da intensidade de integração das propriedades à economia monetária e da disponibilidade de capital dos trabalhadores. Assim, finalmente, são as restrições de financiamento que obstaculizam os incrementos de produtividade dos estabelecimentos e que, indiretamente, regulam a produtividade dos trabalhadores. Obviamente, temos aí um argumento que requer exame adicional, já que, ao enfatizar a Interdependência entre os movimentos financeiros e o desempenho real, destaca também o papel de relações entre diferentes capitalistas – os que controlam capital financeiro e os que produzem – não controle da produtividade do trabalho. 5. 5. A utilização de trabalho na indústria

Há uma diferença fundamental entre o tratamento dado por Myrdal à questão industrial e o que ficou consagrado pela CEPAL na análise de países subdesenvolvidos da América Latina e que o aproxima mais de algumas teses de Samir Amin. Myrdal vê a indústria do ponto de vista de uma crítica de longo prazo do processo econômico, principalmente preocupado com seus resultados em termos de criação de emprego e distribuição da renda, considerando ainda que a indústria não pode ser tida a priori como uma atividade sempre detentora de um dinamismo capaz de trazer desenvolvimento. É uma posição que contrasta com a que sai da velha tese de que somente a industrialização pode furar o bloqueio da relação desfavorável de comércio, que por isto é o caminho de uma reprodução do capital que também pode levar à su-peração da pobreza. A postura de Myrdal tem conseqüências decisivas no encaminhamento da análise, principalmente no relativo aos efeitos da industrialização na mobilidade social e na estruturação de poder.

Na análise da industrialização Myrdal explicitou a controvérsia sobre a teoria do desenvolvimento ao opor o conjunto das teorias que estudam o crescimento do produto e a distribuição da renda dentro do padrão atual de acumulação com aquelas que contemplam a mudança do padrão de acumulação. Esta controvérsia era apresentada, diz Myrdal, "pela doutrina comunista de industrialização dirigida e planejada como técnica para gerar desenvolvimento. (...) O desenvolvimento ocorrido no período co-lonial ficara quase completamente restrito à produção primária para exportação e a uma certa produção industrial para o mercado interno" (p.1151). Mas é inevitável que esta doutrina de desenvolvimento via industrialização defronta-se com as peculiaridades da própria indústria, especialmente com a proporção entre a produção de bens de capital e a de bens de consumo. Reconhecidas as peculiaridades técnicas desta inter-relação, é necessário, segundo ele, desmistificar a doutrina segundo a qual a produção de bens de capital é básica e a de bens de consumo não o é.

Assim enfrentam-se restrições inerentes às características da atual expansão da indústria e restrições da política industrial no país em estudo. No primeiro plano a análise de Myrdal coloca a questão industrial como subordinada à decisão social mais ampla de se desenvolver ou de manifestar interesses suficientemente fortes para pro-

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duzir "desenvolvimento". No segundo plano esta crítica leva a penetrar nas peculiaridades do processo industrial. Para Myrdal, a indústria não é uma questão setorial tanto como a industrialização é um tema que afeta as economias nacionais em seu conjunto e implica em opções de poder que modificam o possível curso da formação de capital. A escolha de um ou outro caminho de industrialização significa maior ou menor mobilidade social e maior ou menor flexibilidade na distribuição da renda. Assim, a escolha da doutrina do desenvolvimento pala industrialização é, concomitantemente, uma doutrina de concentração do capital e de fortalecimento do Estado nacional. Diz Myrdal: "claramente uma industrialização deste tipo não é suficiente para alcançar mudanças significativas na estrutura econômica destes países e para dar impulso real ao desenvolvimento. Outrossim, se não acompanhada de políticas intervencionistas diretas em outros setores da economia, apenas fortalecerá o padrão de quistos provenientes da experiência colonial" (p. 1169).

Nesse contexto a substituição de importações não é uma escolha de política, senão a única alternativa disponível, dadas as dificuldades para exportar manufaturados. Myrdal insiste em desmitificar as doutrinas da industrialização, apontando as inter-relações entre os movimentos dos diferentes e mostrando as restrições inerentes aos efeitos em cadeia destas inter-relações entre setores. A difusão de efeitos (spread effects) surge como uma questão a ser considerada levando em conta as deformações dos sistemas de planejamento: "Há um óbvio perigo que iniciativas industriais agora planejadas perpetuem o padrão colonial" (p. 1197). Esta percepção, que penetrou na América Latina mais tarde, enfatiza os efeitos contraditórios contidos nas próprias políticas de desenvolvimento que são, num e noutro momento, apropriadas por aqueles interesses identificados com a ordem colonial ou com seus substitutos. No plano estritamente técnico há questões, entretanto, que devem ser discutidas. Não tem sentido colocar os problemas industriais de qualquer país subdesenvolvido sem considerar as restrições concretas de mercado em que eles operam. Myrdal alerta para os problemas de simultaneidade das medidas de política (p. 1165). Mas como garantir esta simultaneidade com as restrições de mercado e de financiamento? A política industrial contém as contradições conseqüentes de um maior atrativo para concentrar capital nas indústrias de maior porte e mais intensivas em capital. E mesmo quando houve uma predisposição para aproveitar mais os efeitos-emprego destas grandes indústrias, como Myrdal aponta o exemplo das repúblicas soviéticas da Ásia Central, a efetividade da indústria no nível do emprego somente apareceu muitos anos depois de ter sido implantada (ver p. 1175). Mas a avaliação final da industrialização está no que se refere à mobilidade social e a sua relação com o perfil da distribuição. Esta percepção da industrialização como de algo específico identifica época e condições históricas – a formação social – implica em desenvolvimentos também específicos da agricultura e das diversas formas de prestação de serviços. O que a análise do desenvolvimento deverá responder refere-se aos efeitos

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da industrialização no processo de geração de emprego e absorção de trabalhadores e como ele modifica o perfil de remuneração do trabalho. 5.6. A Qualidade da população O sentido de finalidade do Drama asiático é avaliação do significado do progresso material para a sociedade e o modo como a mordernização contribui para esta finalidade. Assim julga o crescimento da produção e a expansão do capital por seus resultados sociais. E estes resultados são acompanhados no que toca à população como quantitativo mais geral, como população trahalhadora, como recursos humanos e como trabalho que se realiza. Obviamente, estas categorias estão conceitualmente ligadas umas às outras, e o tratamento da população como um simples quantitativo torna-se contraditório em relação aos níveis seguintes da análise. Mas como estudar consistentemente os diversos níveis de envolvimento do fator humano no processo econômico? Trata-se de uma tarefa teórica de enormes proporções, que de certo modo é inversa à análise de Marx, que, como esta última, demanda uma mediação da análise prática pela teórica, que é uma orientação de trabalho distante da perspectiva pragmática de Myrdal.

Essa análise requer alguns esclarecimentos conceituais. Inicialmente não há como duvidar que o envolvimento da sociedade no processo econômico resulte simul-taneamente da trajetória do capitalismo e da de cada país em particular, ou seja, que pressupõe a percepção do processo e de sua estruturação, igualmente compreendendo a formação da sociedade e a de suas relações com outras sociedades. A realização deste tipo de trabalho, portanto, supõe uma análise a nível de categorias, capaz de representar os movimentos do trabalho nas diversas formas de produção e nos diversos patamares de capitalização. Mas Myrdal seguiu outro caminho: desenvolveu sua análise sobre os setores tradicionais da política social – saúde e educação – procurando em cada um distinguir os aspectos culturais, do substrato político e as técnicas atuais.

a) Saúde. No contraste entre as propostas pré-coloniais, as dos sistemas coloniais e as posteriores à independência política, ressaltam: (a) os resquícios culturais que estabelecem comportamentos específicos de saúde pública e de atitude acerca de saúde em geral; (b) o significado político das campanhas maciças de saúde pública – e as políticas de saúde inscritas em propostas regionais ou de outra índole, que refletem a formação de pontos de vista locais. Com isto ressalta-se a conotação cultural da política de saúde, já que ela progride mediante uma combinação de modernização e retenção de comportamentos tradicionais. Quando Myrdal contrasta o aperfeiçoamento de pautas tradicionais com os choques causados pelas campanhas de saúde, no fundo contrapõe comportamentos tradicionais com os preconizados pelas políticas de modernização, sendo que na categoria de tradicionais reúne comportamentos de origem popular com comportamentos gerados em momentos anteriores da formação das elites (p. 1576 a 1619).

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A questão cultural é enfatizada pelo que a formação cultural significa, concomitantemente, uma ajuda e uma obstrução ao melhoramento das condições de saúde pública. Mas o horizonte das campanhas de saúde é limitado pelo nível de informação com que elas funcionam: "É tarefa dos planejadores de saúde desenvolver medidas que atinjam o quadro de saúde como um todo. (...) Para ter sucesso neste planejamento eles precisam, entretanto, dispor de maior conhecimento específico de fatos e de relações causais... (p. 1619). O papel atribuído à coleta e análise de estatísticas e à antropossociologa da saúde é fundamental. Na prática trata-se de trabalhar em planejamento da saúde supondo que o planejamento contribuirá, queira ou não, para uma mudança profunda nas sociedades nacionais através de movimentos localmente definidos. Na crítica das políticas de saúde Myrdal mencionou as transferências unilaterais de experiências européias, que certamente estiveram na origem da formulação das políticas de modernização. Mas não há também como negar que a experiência gerada pela realização destas políticas é o único referencial para substituir as práticas tradicionais. A avaliação destas políticas é um novo elemento de juízo, que pode ser usado para distinguir entre o aumento de população resultante da diminuição da mortalidade nos primeiros anos de vida e os problemas de saúde direta e indiretamente causados por fome. Está claro que o objetivo não-econômico inicial de reduzir a taxa de mortalidade infantil se transforma no problema econômico de realizar maiores gastos com as pessoas, de modo constante, inclusive dando-lhes acesso a uma alimentação adequada. Por isto, ponderamos nós, levada a suas últimas conseqüências, a política de saúde depende de uma melhor distribuição da renda e implica em alguma medida em que haja uma distribuição mais equitativa da renda. Não há como imaginar que o Estado avance até as últimas conseqüências da política de saúde nos países subdesenvolvidos sem que ela se converta numa restrição da política econômica. Assim, por trás da formulação técnica da política de saúde, há uma colocação financeira e de mobilização de recursos em geral, que indica a vontade real da sociedade de transferir renda neste campo.

Nos países latino-americanos temos verificado que o manejo da questão saúde se faz, em grande parte, para superar determinados problemas especiais, como a tu-berculose e a malária. O prolongamento destas políticas específicas termina afetando a orientação dada à formação de capital social para este setor, finalmente introduzindo tendenciosidades que o distanciam, por exemplo, de uma maior mobilização social para enfrentar problemas de desnutrição. Esta interdependência entre aspectos conjunturais e estruturais repete-se adiante em outros setores sociais, levando-nos a considerar como hipótese que as políticas sociais, em seu perfil, são paulatinamente levadas a refletir mecanismos de condicionamento da política que estão na relação entre política social e política econômica, e não ao nível de qualquer política social específica. b) Educação. Para Myrdal a educação é o campo estratégico por definição do processo de transformação social identificado com o desenvolvimento. Mas para chegar a uma colocação como esta é preciso rever o conceito de educação, para registrar as

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marcas culturais que estão incorporadas nas opções de política e para compreender o sentido de finalidade da política de educação concretamente praticada até o presente.

O sistema educacional é o produto de uma sedimentação de interesses, é funcional à reprodução de poder no plano político, produz as elites, assim como cria as condições para que elas se consolidem. A análise de Myrdal focaliza-se nos aspectos de transferência de modelos culturais de poder ligados ao colonialismo e no significado po-lítico da modernização. Esta aparece, portanto, como um movimento que encaminha novas modalidades de dominação. E a análise social deve explicar o sentido de finalidade e os conteúdos específicos que estão incorporados nela. Não se pode avançar com as propostas de industrialização sem perceber que a expansão industrial cria novas relações de poder que diferem daquelas identificadas com a sustentação das oligarquias. Trata-se, portanto, de encarar a educação como grande mediadora entre estruturações de poder, que transmite as opções de engajamento das pessoas no processo de produção. Cabe, portanto, avançar em algumas observações sobre o papel da educação como mecanismo de valorização da população. A questão se centra na apropriação das oportunidades de trabalho e dos diferenciais de remuneração que elas oferecem. A progressão do aprofundamento do capital significa uma mudança na composição dos postos de trabalho e da escala de remunerações que correspondem a eles, com as implicações de que (a) as pessoas sejam habilitadas para ocupar postos atualmente melhor remunerados e os postos com melhores perspectivas de remuneração; e (b) as pessoas – incorporadas em alguma modalidade de organização – tenham a capacidade de criar novas oportunidades de trabalho melhor remunerado. Mas a criação de postos de trabalho é comandada por uma racionalidade (do capital) que não contém uma pro-posta de emprego com maior eqüidade na distribuição. E a progressão do emprego leva a novos perfis de desigualdade, que são alimentados pelos diferenciais de educação. Este é o mecanismo que atribui à educação uma posição especial de trânsito entre diferentes níveis de capitalização e diferentes níveis de modernidade. Assim, a educação cumpre o duplo papel de dar acesso a novas oportunidades atualmente existentes e de alterar a inserção dos diversos grupos sociais na escala de oportunidades. Este é, em nosso entender, o fundamento de Myrdal para adotar o argumento weberiano de oportunidades como matriz da formação de classes. Essencialmente, a educação faz o nexo entre emprego como representação econômica de remuneração e o emprego como expressão de identificação de classes.

No processo do capital nos países latino-americanos, a educação desempenha um papel ainda mais importante, porque constitui a ponte entre uma trajetória de convalidação do sistema oligárquico tradicional e de seus desdobramentos e o aparecimento de novas alternativas, consistentes ou precárias, de mudança dos sistemas produtivos. As mudanças na ordem econômica mundial de fins da década de 60 tornaram mais claras as diferenças entre os requisitos de investimento nos recursos humanos. A leitura atual da proposta de análise de Myrdal sugere uma revisão do tratamento da educação no contexto da teoria da mudança ligada ao desenvolvimento.

6. AS DIFERENÇAS

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DE CONDIÇÕES INICIAIS Em seu capítulo sobre as condições iniciais para o desenvolvimento, Myrdal abriu a discussão sobre o desenvolvimento em várias direções ainda pouco exploradas e assentou as bases de um estilo de trabalho que, conquanto ele mesmo denominasse de "institucional", de fato colocava as dificuldades de uma ciência social que deve se adaptar a uma intensificação da renovação de seus temas. Esta postura apareceu em sua plena maturidade em seu posterior Contra a corrente, onde registrou os problemas conseqüentes de incorporar temas como a internacionalização da economia mundial e o manejo do ambiente e o encaminhamento metodológico da análise. O ponto de partida tácito desta discussão é que todos os países estão sempre realizando alguma política que afeta o desenvolvimento, seja positivamente ou negativamente. Imaginar condições iniciais significa valorizar o contraste entre dois pontos na história, possivelmente antes e depois da modernização. Significa, portanto, identificar um determinado conjunto de elementos que representam a trajetória de transformações que não estava ligada à modernização e outro conjunto de elementos que a representa. Mas como tratar esta conjunção de rotas: como o deslocamento de uma das duas, como a eliminação de uma delas, ou como a fusão das duas?

Ao referir-se à especificidade das condições iniciais de cada país para desenvolver-se, Myrdal questionou as responsabilidades do Estado, das empresas e dos trabalhadores em relação à concepção e à realização de políticas econômicas e sociais. O subdesenvolvimento é uma qualificação desta especificidade, uma condição que reúne uma situação externa desfavorável a uma forte desigualdade interna. A análise social que reconhece a pobreza e que a toma como tema obrigatório tem, necessariamente, que qualificar os processos de formação de capital e de estruturação de classes em cada país, bem como reconhecer a formação da empresa e a organização dos trabalhadores. Por isto é uma análise que não pode se realizar sem se apoiar nas condições concretas em que a pobreza se forma, sem considerar os mecanismos que a sustentam, ou o modo como ela se organiza localmente, no meio urbano e no rural. Assim, entendemos, em. qualquer momento que se escolha para tratar problemas de desenvolvimento, encontra-se um conjunto de condições "iniciais" que representam o momento atual de uma trajetória única que representa os movimentos da economia mundial e os da economia nacional. A reversão dos processos que implicam em permanência ou em agravamento do subdesenvolvimento pressupõe mudanças que atinjam esta trajetória: jamais pode levar a imaginar que a trajetória da economia possa mudar sem que mudem seus determinantes.

No final da primeira parte do Drama asiático Myrdal voltou-se para as diferenças de condições iniciais que situam, simultaneamente, o enraizamento do processo de formação e de reprodução da pobreza e o do processo de formação da política. Enfrentou aí um complicado problema de valoração, que é o próprio julgamento do

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projeto de desenvolvimento como expressão de interesses de classes.44 Na prática, isto é, nas condições históricas concretas com que se trabalha, isto implica em julgar o projeto de desenvolvimento revisando a partir de quais princípios se julga o período pré-colonial e como se valoram as oportunidades de crescimento da produção que podem ter ocorrido no período colonial frente às oportunidades posteriores. Noutras palavras, significa um julgamento da direção do processo mais que de sua intensidade.

Esse capítulo do Drama asiático situa a crítica de Myrdal à modernização, sua ênfase na relativização dos valores transmitidos pela visão de mundo européia. Na América Latina esta relativização também é essencial, porque permite observar os diversos impulsos de crescimento da produção e avaliar as perdas sucessivas da economia nacional, em termos do aproveitamento e da preservação de seus recursos naturais e de sua concentração de equipamentos e instalações produtivas. Observando experiências de diversos países, principalmente de países de clima tropical, como o Brasil, o Equador, a Venezuela, o México, encontramos uma série de incidentes de substituições entre plantações de banana e pecuária, entre café e cítricos etc., tanto no contexto colonial como no atual, que revela momentos em que os capitalistas conseguiram converter integralmente seu capital entre diferentes formas de produção e momentos em que esta conversão significou transferências para o exterior ou entre grupos nacionais.45 A questão é que os países “novos”, ou seja, países que deixam agora

44 A teoria convencional do desenvolvimento é fundamentalmente uma explicação dos procesos econômicos de diferenciação entre países, à qual foram incorporados argumentos culturais, administrativos e outros, como explicações subsidiárias. Tomou por supostas a unidade nacional, a identificação do Estado com um interesse social majoritário ou tacitamente representalivo do progresso. A própria noção de progresso passou a ficar questionada desde então! A discussão marxista do modo de produção e da formação social ligou a transformação econômica com a especificidade da organização social, estabelecendo papéis para os que operam a infra-estrutura e os que operam diretamente a produção. Entretanto para os periféricos – ou subdesenvolvidos – isto deixa em aberto uma questão, que se refere à correlação entre os papéis socialmente identificados neste plano da operacionalidade do sistema produtivo com o jogo de interesses que se perfila atrevés da formação de classes em cade um desses países. A verdade é que a incorporação da análise de classes à análise do desenvolvimento não é nada simples. (a) porque coloca a disjuntiva de tratar com os interesses determinados pela ostruturação de classes ou de analisar os efeitos da formação de capital como formadora de interesses de classe; e (b) porque leva a distinguir o componente de relações atribuível a classes efetivamente estruturadas por relações capital/trabalho e o componente que não se resolve neste âmbito, seja porque não chegou a estruturar-se em calsses (a organização da produção primitiva e das diversas formas de produção pré-industrial) ou porque e´complementar às classes estruturadas (as diversas modalidades de informalidade urbana). estas caracteríticas do capitalismo periférco atual levam a demandar que a teoria do desenvolvimento seja capaz de combinar o tratamento de movimentos seletivos de expansão do capital com o tratamento de sociedades segmentadas. 45 A explicação de Marx do processo de formação de capital a um nível sintético consiste em contrapor o movimento geral de incorporação de mais-valia ao capital com a sucessão de movimentos de conversão entre formas de capital. O reconhecimento de realações internacionais desiguais leva a ver que as conversões entre formas de capital são um mecanismo pelo qual se transfere formação de capital de um sistema produtivo a outro. Supostamente, a explicação destas transferências corre por conta de uma teoria da dominação que vincule o controle da lucratividade da produção com o controle das decisões de investimento. Mas isto significa entrar na formação de grupos de poder e nas alianças ente os grupos que

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de ser colônias, chegam a um novo espectro de alternativas de decisão de política a curto prazo, que significa a absorção de um outro modelo de formação de capital. O verdadeiro peso destas decisões é muito maior que seus efeitos diretos em termos de crescimento da produção ou de expansão da capacidade instalada de produção.

As reflexões reunidas por Myrdal nesse capítulo constituem o núcleo de uma discussão do desenvolvimento que abre novas oportunidades para questionar o significado a longo prazo da modernização. Aparecem aí argumentos que foram desenvolvidos ao longo da década de 70 sobre o conteúdo ideológico da modernização e de seu significado para o atual padrão de acumulação de capital. A modernização é uma projeção dos interesses das classes médias, representa a incorporação dos grupos de rendas médias ao bloco de poder controlado pelas oligarquias? Como são processados politicamente os aumentos de produção e de produtividade? Certamente não se trata apenas de distinguir entre substituições de técnica e reorganização administrativa, de um lado, e ajustes tecnológicos, de outro. Mas será que esta modernização é a única opção, ou deverão os interessados – os países subdesenvolvidos – procurar outras opções? A reflexão de Myrdal sobre este tema certamente não é conclusiva. Mas talvez aí esteja, por isto mesmo, seu maior valor, ao apontar que são os próprios países subdesenvolvidos que devem descobrir novas alternativas para suas políticas econômicas.

Esse capítulo segue uma renovação da discussão sobre o significado do longo prazo na análise e na política de desenvolvimento. As condições iniciais dos países para realizar suas políticas de desenvolvimento nunca são as mesmas, assim como mudam as condições de funcionamento da economia mundial em que elas devem ser realizadas. Muda o próprio paradigma de desenvolvimento, que é outra noção avançada por Myrdal em relação, por exemplo, às contribuições de Thomas Khun. (Veja a epígrafe deste trabalho e a nota n. 46.)46 Quando se vê o desenvolvimento como uma mudança social e técnica em que o componente qualitativo predomina sobre o quantitativo, não se pode ignorar as mudanças de posição dos diversos países na economia mundial. Tampouco se pode ignorar a mudança que ocorre ao nível da estruturação de classes e as relações de poder, nem se pode negligenciar as modificações nas posições dos agentes que acompanham esta estruturação de classes. Num primeiro momento estas reflexões podem ser rebuscadas. Mas são necessárias para garantir que a análise do processo e a da política não percam o sentido

se fixam em cada sistema nacional de produto destas transferências e por extensão em modificações nas condições internas de distribuição correlacionadas com os movimentos entre sistemas produtivos. Certmanente, muito disto está latente na teoria do desenvolvimento. Mas ao tomar sistematicamente o plano da distribuição, a análise econômica do capital se torna uma discussão do poder. 46 Myrdal fez algumas obsarvações de método, em Contra a corrente, que anteciparam ou foram paralelas às hipóteses de Thomas Kuhn sobre os paradigmas da ciência. A idéia tem alguma ligação com a de uma formação de núcleos da poder ao redor dos movimentos da ciência, que se exerce na discriminação do trabalho científico e no seu direcionamento para sustentar o poder político organizado. Neste sentido o paradigma é uma hegemonia, e como tal uma discriminação contra a mudança de pontos de vista: na visão myrdaliana é realmente a explicação do "establishment" científico.

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de proporção entre os condicionamentos históricos da política e as condições atuais de ação dos agentes do processo em cada lugar. Entendemos que este tipo de análise leva, necessariamente, a valorizar as inter-relações entre o poder concentrado no Estado nacional e manifestações locais de poder, no que, por exemplo, encontram-se pistas para uma revisão das teorias regionais ou da análise regionalmente organizada. O tema do poder local contrapõe-se à teoria regional oficial, que ou trabalha com as formas organizadas do poder espacialmente organizado ou com os modos de organização ditados pelo centro em expansão do capital47 mas que ignora a sustentação da formação de poder em impulsos partidos de relações concretas entre pessoas e grupos. O foco no poder local facilita a análise da pluralidade do subdesenvolvimento e, justamente, nos aproxima das atuais transformações das sociedades "clássicas" de classe em sociedades de classe e de massa, como agora ocorre nos países latino-americanos.48

Com a continuidade da urbanização e da industrialização, certamente mudaram a estruturação e a escala da sociedade de classe (entendida como a sociedade de cida-dãos, mesmo quando oprimidos> ampliando e tornando se mais complexa a sociedade de massa (entendida como aquela subordinada à anterior, cujos membros não têm acesso aos mesmos sinais de cidadania) - A compreensão destas mudanças é essencial para uma rearticulação do discurso sobre os problemas de subdesenvolvimento, prin-cipalmente naqueles países em que a formação de interesses das classes médias faz a ponte entre as oligarquias tradicionais e as novas formas de organização da produção. A

47 A eapacialidade da organização do poder foi exposta com Clareza por historiadores da urbanização desde Munford. Foi utilizada para explicar os desdobramentos de poder, próprios da expansão de capital, por autores como Lojkine e Lipietz. Mas contraditoriamente não foi incorporada pela teoria econômica regional que sempre tratou com a positivização do capital. Mas ao focalizar na segmentação do próprio processo do capital, necessita-se trabalhar com uma noção de região que possa captar a conjunção de impulsos externos e internos que alimentam esta espacialidade. Isto se obtém principalmente através da sociabilização dos Usos do tempo, seja no emprego, no tempo dos investimentos, ou no tempo do consumo. A região é, portanto, antes que nada, histérica. E como a história aqui se faz por grandes períodos que são os das civilizações, a espacialidade da região pede corresponder a diferentes experiências: a cidade do México encontra-se no lugar de uma outra cidade que desempenhou outro papel e conteve outra organização social. O dinamismo da região corresponde a cada época e se materializa em diferentes contextos de relações. A análise econômica convencional não pode entrar no mérito desta questão porque está atada a uma percepção de prazos – curto, médio e longo – em que todos eles estão subordinados ao ritmo, portanto ao tempo, da produção atual. A análise do desenvolvimento tem que conviver com a noção de pluralidade no tempo e libertar-se de qualquer forma de produção em particular. 48 Tem havido uma forte identificação entre a noção de desenvolvimento modernizador e a de emergência ou de ascensão numérica das classes médias. A análise comparativa do ocorrido nas décadas de 50 e de 70 pode mostrar algo muito diferente na América Latina, com significativos movimentos de “proletarização” de grupos de rendas médias e com interpretação de ideais entre os segmentos mais próspreros do operariado e segmentos decadentes das classes médias tradicionais. Em geral, há grande dificuldade de chegar a colocações claras sobre esta premissa de expansão da classe média. Há poucas dúvidas que estamos diante de outros tipos de sociedades, que não podem ser interpretadas mediante as tediosas comparações com os países da Europa ocidental e os Estados Unidos. Mas como tratar a originalidade? Precisamos de novas propostas de explicação sobre o papel das classes médias, que nos permita discutir os âmbitos de sociedade de classe e de sociedade de massa, nas vertentes anteriores e posteriores à industrialização.

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pesquisa que teve lugar depois da publicação do Drama asiático apontou justamente para esta modificação dos contextos nacionais, especialmente em estudos que tomaram o Brasil, o México e a Argentina como tema.49

Mas essas mudanças ao nível do processo defrontam com os azares da política. O esgotamento das políticas de desenvolvimento pela industrialização acelerada no final dos anos 60 mostrou que a proposta de desenvolvimento gerada no período de 46 a 55 partia de pressupostos falsos, ou que confundia os movimentos do setor industrial em seu conjunto com os movimentos que resultavam das transformações em curso nas empresas. Assim, podemos destacar as inconsistências de (a) tratar o mercado interno e o internacional como dois âmbitos separados, portanto, distorcendo os termos em que se coloca a competitividade entre empresas; e (b) de tratar com a categoria nação sem passar pela mediação de uma teoria de classes e de correspondentes teorias do Estado e da empresa. A correção desta tendenciosidade significa uma volta ao momento em que se fundamentava a análise do subdesenvolvimento justamente na identificação do país subdesenvolvido como representativo de uma determinada situação de relações Estado-empresa-trabalho. É evidente que as mudanças que ocorrem em cada um destes três âmbitos e nas inter-relações entre eles nos obrigam a rever o conceito de subdesenvolvimento.

No entanto, a experiência que se acumulou com a política econômica nos países latino-americanos desde começos da década de 70 mostra que o erro de separar o mercado interno do externo continuou, mesmo quando praticado no sentido Inverso: na década de 50 este erro levou a tentar políticas de substituição de importações sem considerar suas restrições na capacidade para exportar suas restrições de mercado interno (outros tipos de política são praticados sem, sequer, saber os custos sociais dos subsídios às exportações). Com o passar do tempo, estas opções de política ganharam conotações ideológicas: substituição de importações versus fomento às exportações, como se as duas não funcionassem com restrições mútuas no contexto da mesma balança de pagamentos, e como se fosse possível levar a separação entre as duas como princípio tácito de política. Na prática, encontramos aqui uma manifestação inconfundível daquilo que Myrdal acusou no Drama asiático como perspectiva 49 Estamos acostumados a reconhecer mudanças no contexto das relações internacionais e no de relações de classe em cada país. Mas não estamos acostumados a reconhecer mudança na unidade nacional. No entanto, tanto como se reconhece que a nação é o objeto últi mo dos movimentos da capitalização, deveríamos reconhecer também que o conteúdo cultural e organizacional da nação muda à medida em que se expande e aprofunda sua experiência. A experiência colonia1 veiculou um aumento do conteúdo das unidades nacionais, e a modernização agora representa outro movimento que muda cada país de de-terminados modos uns diferentes dos outros. A mudança na conteúdo da unidade nacional está correlacionada com mudanças no tecido das relações de classe (aumento do número total dc operários, crescimento do componente de população marginalizada etc.) e na organização do espaço (regiões que se definem mais que outras regiões que perdem peso relativo ou mesmo que perdem identidade). A análise das mudanças da unidade nacional aparece agora como uma linha de explicação do subdesenvolvimento que deve ser tomada comparando-se períodos caracterizados por um movimento geral de crescimento e períodos em que não há crescimento; portanto, se coloca que mudar não necessariamente significa crescer.

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mercantilista da política econômica moderna. Certamente, um exame mais minucioso das implicações destas duas opções de política indica que cada uma delas corresponde a um sistema de poder, cada uma favorece um determinado tipo de relação entre a reprodução do poder econômico e a do poder político. Assim, a crítica explícita da política é um passo necessário para formar um juízo sobre as condições atuais e as opções dos países subdesenvolvidos.

Mas nessa linha de raciocínio há um argumento a ser revisado, relativo à pluralidade de situações a partir das quais se configura atualmente o problema da modernização. Ficaram há muito superadas aquelas análises baseadas em comparações de renda per capita e em cifras globais de emprego. Mas o que se pôs no lugar delas? Como se registram as diferenças de condições dos diversos países em relação ao centro mundial da acumulação? E como se registram as mudanças no âmbito da empresa?

Finalmente, como encarar a relação curto prazo/médio prazo e a relação estrutura/conjuntura?

A diversidade de experiências com a política econômica é o primeiro aspecto a considerar. As relações de dominação e dependência são um fato comum a todos os subdesenvolvidos e assumem diferentes formas; segundo as dominações, são economias mais capitalizadas e de maior porte ou menos capitalizadas e de menor porte. Mas dentro do espectro de situações de dominação, o colonialismo tem que ser examinado de diferentes modos, quer se trate do colonialismo formal que entrou em cadência após a segunda Guerra Mundial ou de formas mais sutis de controle econômico, político e cultural. No essencial, o colonialismo é a forma mais pura de dominação explícita e teve conseqüências duradouras na Ásia e na América, se bem que de diferentes modos e com diferente intensidade. Neste nível ele é um referencial a ser considerado nestes dois universos, inclusive para identificar as diferentes experiências pós-coloniais. A literatu-ra que foi produzida na América Latina sobre dependência na década de 60, principalmente aquela de sociologia, como os trabalhos de Cardoso, Quijano, Faletto, que avançaram sobre contribuições de Medina Echevarria50, explorou justamente as conotações de estruturação social atrelada às relações internacionais desiguais antes descritas pela CEPAL. Marcou mais o caráter interdisciplinar da análise mas ficou fortemente dominada pelos pressupostos da análise econômica já estabelecida pela própria CEPAL e centrou-se nos movimentos atuais do capitalismo. Destarte, tornou-se uma análise de índole histórica sem perspectiva histórica: uma história atual sem formação social. Vale a pena lembrar ainda que este desenvolvimento teórico, que se diferenciou da doutrina de relações centro/periferia, acabou abrindo espaço para uma positivização da análise cujos últimos resultados foi a doutrina dos chamados estilos de 50 No Brasil a CEPAL foi sucessivamente acusada de economicismo, nacionalismo, marxismo e keynesianismo. Na distância do tempo sobressaem a influência dos primeiros post-keynesianos (Harrod, Hansen, Robinson, Kaldor etc.) do lado da análise econômica, e a influência principal de Weber e dos funcionalistas norte-americanos na primeira etapa e de Marx adiante, no lado da análise sociológicaA influência de Medina Echevarria na análise sociológica de modo direto e de modo indireto na análise econômica é uma das marcas indicativas da importãncia dos intelectuais espanhóis republicanos exilados na renovação do pensamento latino-americano.

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desenvolvimento51, que no fundo não são mais que formas de produção. A recaída no positivismo que está embutida neste percurso da análise social, não deixa dúvidas: é indispensável reunir uma recuperação adequada do real com uma fundamentação teórica capaz de escapar do provincianismo dos estudos de "casos" latino-americanos.

Nesse último sentido vale a pena retomar a discussão de referencial histórico da dominação, com a necessária amplitude, escapando da tendência à positivização. Neste contexto verificamos que o colonialismo é muito mais atual na América Latina que fora antes reconhecido; e que as experiências coloniais e post-coloniais estão ligadas à formação social dos países, a sua sedimentação cultural pré-industrial e a seus problemas étnicos. E a resposta talvez esteja em reconhecer que a discussão do colonialismo é muito mais rica de indicações para a análise atual do que se tem admitido. Na verdade, a expressão colonialismo designa uma ampla variedade de situações em relação à diversificação de capacidade de produção, se bem que reflete um perfil comum de dominação cultural. De qualquer modo, o colonialismo teve sua oportunidade: deixou de retroalimentar na progressão das experiências nacionais, mas deixou marcas na composição das relações com os países desenvolvidos, que continuam ajudando a sustentar a hegemonia mundial. O que nos interessa na discussão atual do colonialismo é estabelecer a perspectiva dos dominados; e nela advertir para as diferenças entre processos com maior ou menor acesso a relações internacionais flexíveis, com maior ou menor acesso a alternativas tecnológicas. Certamente é uma discussão cada vez mais complicada porque as experiências dos países latino-americanos com a dominação não é igual nem é uma linha contínua; nem na direção da superação do domínio externo nem de sua perpetuação, mesmo que esta última tenha sido a tônica. As próprias complicações da reprodução do sistema hegemônico mundial ao longo da heterogeneização do capital indicam a necessidade de uma revisão da sustentação teórica desta análise, especialmente em relação à histori-cidade dos argumentos utilizados. A revisão, agora, das colocações de Myrdal implica, portanto, em retomar o tema da heterogeneidade das economias nacionais, ou seja, da heterogeneidade dos sistemas produtivos representados pelas economias nacionais. Esta, sem dúvida, foi uma das vertentes menos convencionais da análise realizada no âmbito da CEPAL, que mais se aproximou do uso operacional do conceito de formação social. (Distingue-se neste

51 A expressão estilos de desenvolvimento foi introduzida com os trabalhos do físico Oscar Varsavsky e de alguns economistas e sociólogos que colaboraram com ele entre fins de 60 e começos da década de 70. O uso desta expressão generalizou-se depois. Mas jamais foi apresentado qualquer trabalho que a justificasse de um ponto de vista epistemolégico ou de teoria da ciência; portanto, que criticasse sua origem nas Ciências físicas, ou examinasse sua aplicabilidade no campo social. Na acepção generalizada é uma espécie de substituição da conceituação da trajetôria de cada sociedade e de cada sistema de produção, sem entretanto enfrentar a complexidade histórica do conceito de formação social.

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campo o trabalho de Aníbal Pinto.52) Mas foi um esforço que não teve suficientes se-guidores que a ligassem a estudos empíricos e não chegou a uma generalidade suficiente para captar a relevância teórica do espectro de experiências latino-americanas. No entanto, não é uma linha de trabalho que se possa realizar plenamente no plano especulativo, senão que necessita de apoio empírico suficiente para situar as, questões atuais de heterogeneidade como parte da trajetória da composição do capital num dado padrão de acumulação. Assim, esta análise da heterogeneidade ficou de certo modo limitada como meio de aproximação à experiência atual específica dos países latino-americanos. Mas esta linha de trabalho teve a grande virtude de focalizar nos elementos que identificam a continuidade dos processos econômicos e não em seus pontos de ruptura, como se tornou um hábito da análise econômica oficial geralmente atraída pelos choques da economia mundial e pelos fatos da política econômica. Esse é precisamente um ponto que merece agora toda atenção. O confronto dos aspectos de continuidade e de ruptura nos movimentos das economias nacionais é o procedimento que nos permite apreciar as coincidências ou os nexos entre os movimentos na organização e nas estruturas tecnológicas e, portanto, tratar da relação entre a composição da taxa de crescimento e a. estruturação do poder. É, portanto, um elemento necessário para toda análise social do desenvolvimento que pretenda não ser ingênua sobre as motivações dos agentes sociais.

A continuidade da política é um tema que interessa à explicação dos movimentos que ocorrem no âmbito institucional e à da mecânica dos investimentos. Pensando ou não em desenvolvimento, não há como ignorar que cada decisão de política sucede um conjunto de decisões anteriores; e que atinge sempre o quadro de condições de uso do capital e de emprego dos trabalhadores. O planejamento do desenvolvimento implica sempre em uma qualificação das políticas pelo que elas atingem a distribuição da renda e a mobilidade social, o que significa que falar de política de desenvolvimento é apenas falar de um qualificativo da política econômica e social.

Tratando de países subdesenvolvidos, em que se intensificam as mudanças pertinentes à modernização, não podemos perder de vista que a continuidade da política em si já é um resultado da continuidade do sistema de poder, que, portanto, deve ser tomada como um parâmetro do processo social. Não podemos ignorar que a maior ou menor continuidade da política reflete a tensão entre a organização dos interesses de classe em torno de uma estruturação do poder econômico e político e aquela orga-nização da economia mundial em que estes interesses se manifestam. As políticas econômicas, que por um imperativo da situação atual dos países latino-americanos não pedem ignorar a questão do desenvolvimento, têm que vincular as opções de decisão 52 Na década de 60 surgiram alguns trabalhos que exploravam os efeitos de diferenças de heterogeneidade entre sistemas econômicos nacionais, tomando como principal referência a contribuição de Kalecki à teoria do investimento. Esta busca de uma fundamentação estrutural para as políticas de transformação dos sistemas produtivos nacionais defrontava-se, entretanto, com aspectos não explicados da economia mundial atual, no queseu comportamento não podia ser reduzido aos seus aspectos industriais, bem como pecava por não explicar o comportamento do consumo tal como segmentado por classes e níveis de renda. Tornou-se uma análise quase keynesiana, limitada por suas próprias hipóteses industriais.

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com a capacidade para pô-las em prática. Subentende-se e parece ocioso questionar que há um desajuste entre a estrutura institucional e a condução da política econômica a longo prazo, seja no encadeamento de uma seqüência de programas a médio prazo, seja na articulação entre programas a médio e a longo prazos. As dificuldades institucionais enfrentadas pelo planejamento governamental da década de 50 levaram a um mecanicismo da análise econômica, que se refletiu em sua perda de representatividade. Com isto facilitou-se o caminho para que fossem prestigiadas as políticas a curto prazo e fosse retirado do planejamento seu significado transformador; ou seja, fizeram com que o planejamento não atinja as estruturas institucionais. Assim, as políticas a curto prazo tornam-se contraditórias com a crítica da função das instituições no processo eco-nômico, justamente porque a estabilidade se torna um parâmetro da política ao eliminar a mudança das instituições como alternativa de política. Isso leva, por extensão, a valorizar aqueles elementos da mecânica do processo econômico que contribuem para sua continuidade. Nesta categoria, como parte da aná-lise habitual do crescimento, que finalmente nunca se desprende da mecânica do desenvolvimento, salientamos a inércia dos investimentos. São eles, de qualquer modo, o componente da política econômica que determina como se prolonga ou modifica a composição do capital e que faz com que em cada momento que se inicie uma política econômica haja um impulso que deva ser absorvido como parte da determinação da rentabilidade dos investimentos novos. Este encadeamento dos movimentos do capital corresponde ao concomitante encadeamento das decisões de política que revela a artificialidade da separação entre curto e médio prazos ou entre o conjunto dos elementos de conjuntura e os de estrutura. A reconstrução de uma visão integradora dos diversos aspectos do funcionamento da economia é uma tarefa de maior interesse para os que trabalham com problemas de desenvolvimento, que em nosso entender devem contribuir para que isto não se resolva ao nível da teoria "pura", isto é, daquela análise formal que por princípio exclui o plano institucional e político da discussão.

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7. O REORDENAMENTO DO DEBATE

O Drama asiático foi publicado pouco antes que se configurasse a crise da economia mundial que ficou demarcada pela instalação da "trilateral" em 1968 e pelo choque do petróleo em 1973. Mas já anunciava plenamente a conclusão do período de expansão da economia mundial que indiretamente justificou as políticas de desenvolvimento via industrialização dos países periféricos. No plano da política econômica já estava claro o esgotamento das propostas de cooperação internacional multilateral para o desenvolvimento; e tanto a análise da política comercial como os estudos de países mostravam que as dificuldades para sustentar diretrizes de política decorriam em grande parte do debilitamento financeiro dos governos nacionais. O rápido aumento do peso dos compromissos dos governos coincidia com a queda da carga tributária real. Em linhas gerais, as dificuldades de financiamento das economias latino-americanas tornavam-se evidentes no foro do Comitê Interamericano de Planejamento da OEA, onde os governos latino-americanos concentravam suas ne-gociações de financiamento. E estas dificuldades de financiamento correspondiam a um nível de restrições (no eixo setor externo-setor monetário-finanças públicas) que ante-cedia quaisquer restrições de rentabilidade de investimentos específicos. Noutras palavras, em 1968 estavam suficientemente claras as razões que determinavam a interdependência entre a análise do processo econômico e a do processo político; e entre a análise do processo econômico e a da política econômica. Os estudos econômicos que se acumularam ao longo da década de 60 nos diversos órgãos internacionais que se ocupavam de desenvolvimento econômico e social e em centros acadêmicos em diversos países mostravam que o esgotamento dos motores financeiros do anterior impulso de crescimento vinha acompanhado de rápida intensificação de pressões sociais internas que não podiam ser atribuídas – como fizera Myrdal com o sul da Ásia – ao crescimento da população. Outros fatores ligados à pró-pria modernização, como a urbanização e a formação de segmentos importantes de trabalhadores ligados à produção assalariada em geral, tornam demasiado simplista a explicação demográfica. Assim também, as contradições entre os interesses dos grupos ligados à produção exportável não industrializada e os grupos capazes de ganhar com a modernização revelaram um impasse na política econômica destes países, que se converteu em restrição à própria política de desenvolvimento. Ao ser publicado, o Drama asiático foi uma experiência original no conjunto dos estudos de problemas de desenvolvimento, em parte porque se voltou diretamente para as transformações de economias periféricas, olhando-as a partir do ponto de vista do homem em sua condição de trabalhador e de integrante de uma sociedade, ou seja de pessoa concretamente incorporada a um sistema de relações marcado por sua participação na produção, mas antes de tudo como integrante de uma determinada experiência social. Por isto, o Drama asiático procurou romper o etnocentrismo tácito das análises de desenvolvimento, criando um referencial policultural. Além disso,

principalmente porque foi uma tentativa de resgate do real como único modo válido de estruturar a teoria social. Do ponto de vista metodológico, representa uma postura

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alternativa – e em boa parte contrária – à postura acadêmica convencional de analisar as experiências de cada sociedade como casos, por separado do conjunto da expansão do capital. Assim tem uma conotação de utopia, que entretanto pode ser entendida como antecipação das novas modalidades de humanismo que surgiram na década de 60. Nesse sentido cabe uma reflexão sobre o tema central do estudo de Myrdal, a pobreza. A pobreza qualifica o tema mais geral de distribuição e ao mesmo tempo que demanda uma revisão de categorias de análise, do papel que se atribui à distribuição no corpo central da teoria econômica. O estudo da distribuição é um campo no qual se externam as raízes da teoria numa percepção da sociedade em seu conjunto e onde não se podem evadir as conseqüências das decisões de produção. A pobreza é o aspecto negativo mais extremo da distribuição, e por isto qualifica as colocações mais abstratas sobre ela. Como disse Dobb, "é possível caracterizar e classificar as teorias econômicas pelo modo como elas captam as raízes e a estrutura da sociedade econômica".53 A mesma questão genérica – desenvolvimento para que e para quem – tem diferente significado quando aplicada a sociedades onde a totalidade da população tem garantido o consumo básico ou a sociedades onde a maior parte da população não tem sequer perspectiva de solução para seu consumo básico. Como a pobreza tem persistido em muitos países e aumentado em outros, como o desemprego tem sido crônico, mesmo nos países europeus, não há razão para supor que a capitalização da economia mundial leve espontaneamente à superação da pobreza. Volta-se a ver a distribuição como o tema principal da teoria econômica e como o que liga a explicação dos movimentos do produto com seus resultados sociais.

O tema da distribuição tem um interesse especial quando o crescimento do produto social é inferior ao da população, pelo menos por duas razões: primeiro, porque se configura uma pressão regressiva na distribuição que representa uma crescente insatisfação de um número crescente de pessoas; segundo, porque o movimento regressivo da distribuição significa uma modificação no perfil da demanda, que por sua vez modifica as perspectivas de rentabilidade dos investimentos. Assim, os movimentos regressivos da distribuição nos países subdesenvolvidos – onde a relação produto/população tem sido geralmente negativa – são aspectos essenciais na determinação do rumo do crescimento ou do "modelo de desenvolvimento" como se tem denominado ao rumo do processo de produção. Mas na medida em que se reconheça que esta direção do processo de produção é afetada mediatamente pela distribuição, torna-se evidente que o desdobramento deste processo ao longo do tempo está ligado ao modo como se absorvem as pressões conseqüentes da desigualdade, seja na criação de

53 A obra de Myrdal retirou a pobreza do contexto de uma discussão genérica das transformações econômicas e sociais do capitalismo. Na análise de Marx subjaz que o capital tomará aquelas decisões que melhor servirem a sua reprodução, que portanto tem um comportamento que não é afetado por contradições éticas enquanto elas não se transformarem em pressões que obstaculizem seus interesses. A retomada da perspectiva ética vem junto com o reconhecimento de que a pobreza é a negação da mudança que se realiza em conjunto com a expansão do capital. A expansão da pobreza invalida a expansão do capital tanto como a destruição de recursos impede, adiante, a continuidade deste processo.

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postos de trabalho, na formação de expectativas de mobilidade, seja ainda na recomposição das expectativas de rentabilidade do capital junto com modificações, em sua composição. Daí, a questão prática que se apresenta agora é determinar de que modo a distribuição afeta os rumos da produção e corno cria ou não tensões que bloqueiem o crescimento. Esse problema tem sido escamoteado pelo expediente de considerar que o bloqueio distributivo em um dado país é contornado pela expansão das exportações, o que pressupõe que este fenômeno fique restrito a um país. Obviamente é uma hipótese dificilmente sustentável toda vez que se considera que os bloqueios distributivos surgi-dos em cada país estão ligados a modalidades do funcionamento do capital na escala mundial.

Essas qualificações fazem com que a análise do desenvolvimento deva explicar a progressão em cadeia de restrições que dão lugar a trajetória do crescimento em cada país e os movimentos, externos e internos, que determinam a estagnação. Isto significa um programa de trabalho muito mais amplo que qualquer análise institucional, por mais ampla que ela seja. Não há como dispensar uma análise econômica rigorosa, capaz de explicar os nexos entre os planos interno e externo do processo em termos de um conjunto de relações atuais e da progressão dos nexos que as explicam. Os questionamentos institucionais levantados por Myrdal ampliam e não substituem os termos de referência da análise econômica. E as reivindicações que surgiram nos últimos vinte anos são mais no sentido de capacitar as análises do Estado, da empresa e do trabalho organizado para sustentar uma revisão da mecânica do comportamento econômico na escala nacional e na internacional. Significa enfrentar as dificuldades inerentes a uma teoria da ação econômica. Mas não há como esquivar esta tarefa se se pretende superar o atual nominalismo da teoria econômica, sustentada sobre postulados de ação individual – do consumidor e do produtor – que com este estratagema evita os inconvenientes de explicar o funcionamento dos serviços coletivos, as formas de consumo coletivo e a não continuidade entre a renda individual e os tipos de renda coletiva, como a renda familiar.

Mas como enfrentar esses problemas sem questionar conjuntamente o conteúdo e o método da análise? E como fazê-lo sem levar em conta as principais contribuições do pensamento crítico contemporâneo? A própria reivindicação de Myrdal de um trabalho interdisciplinar torna necessário este cuidado. No entanto, e aqui também esta discussão de economista passa por alto a disputa entre a dialética e o positivismo em suas diversas versões54 evidenciou-se a crítica da análise de cunho histórico ao tratamento de questões de método, como questões independentes dos conteúdos. A

54 O abandono da questão de método implica tacitamente, em uma determinada escolha de método. A teoria econômica tem se mantido à distância de uma discussão de método que põe o eixo das transformações das ciências sociais na conjunção da sociologia com a filosofia e com a história. É interessante observar que os positivistas militantes em economia, como Milton Friedmann e seus seguidores, ou os dissimulados como os keynesianos, não têm registrado a discussão de método que tem lugar nestes outros departamentos da ciência social.

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independência das ciências sociais frente às ciências naturais surge deste ponto. Aqui, no entanto, encontramos uma contradição do trabalho de Myrdal, que é representativa das tendenciosidades que ele critica. Aparentemente trata-se de uma tendenciosidade que vem do próprio Wicksell, consistindo na rejeição de modos de pensar não diretamente práticos, que o pôs na curiosa posição de tentar resgatar o método de Adam Smith, o instrumental de Bohm-Bawerk e rejeitar o método de mediações de Marx; de valorizar o uso do tempo na análise teórica mas de não romper com a análise marginalista. Em Myrdal esta postura reflete-se na busca sistemática de alternativas a propostas socialistas (seus pronunciamentos sugerem uma posição social-democrata criticamente modernizadora), mesmo quando sua análise da valorização do trabalho e seu princípio de causação circular acumulativa são contribuições à incorporação da análise da mais-valia relativa e do monopólio na formação de políticas econômicas; e a revisão da base institucional da política econômica que ele propõe leva a uma discussão aberta dos interesses coletivos, que por sua vez fundamenta um planejamento democrático. Por extensão, é difícil compreender como se pode trabalhar com interesses coletivos sem avançar na explicação da estruturação social em classes e sem trabalhar a relação entre estruturação em classes organizadas e massas periféricas na formação de capital.

Ao parar no meio do caminho nesta análise, Myrdal continuou tratando a sociedade periférica somente como objeto de sua análise e não trabalhou com as vontades da sociedade periférica, que em última análise refletem sua posição de sujeito histórico. E este é outro ponto em que a perspectiva da experiência de cada povo implica na manifestação de seu conteúdo, que é insubstituível com os conteúdos de outras experiências. No entanto, a verdadeira discussão do desenvolvimento parte daí, do confronto da trajetória de cada experiência com um sistema mundial de forças políticas. Como ficam as experiências dos países subdesenvolvidos hoje? Amplia-se ou se restringe sua margem de autonomia para decidir sobre seu futuro? E o que significa a decisão do país; a permanência de oligarquias tradicionais, sua substituição por elites modernizadoras ou seu desdobramento nestas elites? A relação entre a reprodução do poder político e a do poder econômico é um desdobramento inevitável de uma discussão da distribuição que analisa o padrão de acumulação. Obviamente, não se pode aprofundar na discussão de mudança social e econômica intensa sem enfrentar o dinamismo da distribuição, a genética do poder político mediada pelo processo econômico. Mas para isto a análise não pode ficar restringida à metodologia da economia ortodoxa, nem pode esquivar a análise das conseqüências da distribuição na formação de poder. São, afinal, os velhos problemas enfrentados por Marx e reiteradamente negados por Weber, que contraditoriamente não deixou de tratá-los.

A novidade da análise de Myrdal foi atingir a neutralidade axiológica por um novo caminho – o da crítica do componente cultural na pluralidade de formas econômicas – e mostrar que o mesmo elenco de questões levantadas por estes clássicos do pensamento social tem outro caráter quando colocado num quadro de pobreza extrema e dependência externa crônica. Vemos que ao avançar a década de 60, os países periféricos, grandes e pequenos, mais ou menos industrializados, passaram a rejeitar os

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sinais externos de sua condição de desfavorecidos; e passaram a combinar uma vontade dissimulada de se identificarem com a ideologia e as formas de consumo dos desenvolvidos, assim como a rejeitar o estigma do subdesenvolvimento. Não está claro o quanto isto é uma autêntica superação ideológica da noção de que a inferioridade econômica denota inferioridade em outros campos, ou quanto ela não é mais que um falseamento da questão essencial da dominação junto com novas formas de alienação. mas não há como negar que a explicação da mudança nos atuais países periféricos implica em tratar do modo de sua participação no sistema mundial de poder, passando pela economia mundial. A grande questão levantada depois da Segunda Guerra Mundial e diluída na década de 70 é explicar os processos de exclusão e de bloqueio da mobilidade social que advieram no atual modo de transformação do capital. E nisto são oportunos alguns comentários sobre o modo como se realiza a relação entre a determinação dos movimentos financeiros e os deslocamentos no quadro tecnológico.

A análise vertida no Drama asiático refere-se à economia mundial de inícios da década etc. 60, quando havia um clima de expansão concomitante com Juros baixos. Noutras palavras, quando as economias subdesenvolvidas trabalharam com o referencial de exportação do capital dos desenvolvidos aos subdesenvolvidos, ou seja, antes que este movimento se invertesse. Por mais que este quadro temporariamente parecesse corresponder a um dado estrutural do capitalismo maduro, ele se acabou. O fim do clima de expansão trouxe de volta a percepção de que a acumulação nos países subdesenvolvidos está subordinada à desigualdade das relações internacionais e à incidência de crises na economia mundial. Paradoxalmente, isto leva a análise do desenvolvimento de volta à controvérsia sobre o eixo crise financeira/crise de comércio, que ocupou lugar proeminente no debate característico da década de 50.

Assim, o debate sobre o desenvolvimento volta ao eixo principal: mudança social, regulação do capital livre das travas constituídas do particularismo dos estudos de caso e da generalização formal da teoria do crescimento. A raiz distributiva do problema do desenvolvimento torna-se evidente justamente quando o crescimento é insignificante e a reprodução social se materializa na reprodução de sociedades nacionais cujas necessidades – socialmente registradas55 aumentam acompanhando movimentos mundiais do consumo. A experiência dos subdesenvolvidos a partir da década de 70 registra o confronto de um sistema de necessidades que aumentam em duas direções: na revelada pela incorporação de população marginada ao sistema de informações geradas pela sociedade consumidora; e na incorporada à expansão do conhecimento das formas de consumo, individual e coletivo, que são continuamente criadas pelos desenvolvidos. O curso seguido pela economia mundial, compreendendo a internacionalização do capital e o reordenamento do mercado de mercadorias agrícolas e industriais, justifica esta colocação: ao final da década de 80 os subdesenvolvidos estão circunscritos a

55 A transferência de pessoas dispersas no meio roral para o meio urbano significa que a sociedade organizada registra suas necessidades, já que elas passam a poder pressionar. As comunidades isoladas retém um número importante de pessoas em muitos países latino-americanos, e sua transferência para o meio da economia organizada tem implicações específicas na intensidade com que a modernização reconhece novos tipos de problemas, especialmente o da informalidade.

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espaços de mercado sumamente limitados e têm perspectivas declinantes de captação de recursos externos. Para eles torna-se mais claro agora que a questão do desenvolvimento não pode ser confundida com a do crescimento.

Em seu posterior Contra a corrente (1973), Myrdal continuou insistindo no problema populacional, inclusive vinculando a ele a questão então emergente do ambiente. Independente da correlação de fato, que sem dúvida pode ser comprovada entre a sustentação da população de baixa renda e comportamentos predatórios, não há como desconhecer que agora esta linha de argumentação ajuda a desviar o principal problema ambiental, que é o oposto: a contaminação por sobrecarga e distorção dos sistemas ambientais ligada à concentração de riqueza e de consumo. A literatura sobre esta matéria é inequívoca: concentração de usos de energia em poucos países e poucas regiões, formas de consumo suntuário predatórias, destruição ecológica por consumo caprichoso socialmente não controlado, revelando a arrogância do consumo individual hegemônico e a falta de poder na sociedade civil para controlá-lo. O tema proposto por Myrdal – a economia de um ambiente melhorado56 – tem conseqüências de diferentes tipos para os desenvolvidos e para os subdesenvolvidos, já que para os primeiros significa revisar a racionalidade do confronto de usos atuais com usos futuros de recursos, que sustentam sua atual prosperidade, e para os últimos significa trabalhar sobre escolhas atuais de direcionamento de suas economias.

A noção de escassez absoluta (alternativa da noção de escassez relativa que fundamenta a análise econômica, e a que se chega ao comprovar que todos os recursos são esgotáveis a prazo secular ou a uso incontrolado) põe por terra a posição ortodoxa de que a política econômica confronta alternativas atuais com alternativas futuras de usos de recursos, que a frugalidade atual significa reserva de consumo para o futuro, ou que o consumo futuro está regulado pelo presente. A compreensão do processo eco-nômico supõe que o desenvolvimento do sistema produtivo compreenda movimentos de diferente intensidade de esgotamento de recursos esgotáveis, que não só levam a novas composições de custos como contribuem para criar uma trajetória irreversível de transformação dos sistemas produtivos nacionais.

Mais uma vez é preciso distinguir entre o tratamento do ambiente em condições

56 A idéia de um ambiente melhorado – expressão de Myrdal – alude justamente à conjunção de proteção dos elementos físicos e dos sociais, de ambiente como precipuamente social. E a visão de ambiente que corresponde a uma discussão socialmente dirigida, que possivelmente contrasta com a de uma ação de ambiente predominantemente físico, ou restrito à preservação das espécies. Como esta noção do ambiente melhorado está ligada à da pluralidade de experiências ao longo do tempo em cada sociedade, ela também significa a preservação dos ingredientes culturais, seja por uma leitura competente dos elementos simbólicos legados por cada expressão cultural, seja pela identificação de cada linguagem com os modos de apropriação dos elementos físicos do ambiente. Nos diferentes países laino-americanos isto tem conseqüências bem diferentes, seja que o ambiente é modelado por uma experiência historicamente unificada, seja que ele reflete dicotomizações Como ocorre nos países que tiveram uma herança indígena maia forte. No Brasil esta percepção de ambiente coloca outros problemas, seja de reconhecer o contexto de relações com elementos de culturas mais simples, seja de revisar o significado das sucessivas contribuições trazidas por imigrações mais recentes.

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de crescimento e com perspectivas de mobilidade social e o tratamento do ambiente físico, com as pressões sociais próprias da falta de crescimento. Assim, tanto como se reconhece que a noção de ambiente enseja uma visão articuladora da reprodução social, ela deve ser incorporada ao contexto analítico da teoria social. E as noções de ambiente social historicamente formado e de ambiente físico, e a complementação e a oposição entre elas são um desdobramento inevitável desta percepção.

Para os subdesenvolvidos é uma extensão da questão central mudança social/regulação do capital, já que à parte dos movimentos próprios do sistema físico mundial, os rumos da transformação socialmente determinada do ambiente não estão separados dos movimentos que ocorrem ao nível da recomposição/modernização do poder, passando pelo reprocessamento das estruturas tradicionais de poder às demandas do núcleo hegemônico que administra a própria modernização.

A ênfase na dimensão ambiente expõe as raízes físicas do processo social. Mas não autoriza o desprendimento desta análise de sou corpo social, como não justifica confundir as restrições físicas dos sistemas produtivos com a progressão de pressões socialmente determinadas sobre o ambiente. Mas, uma vez posta às claras, a dimensão ambiente simplesmente não pode ser ignorada. E sua incorporação efetiva obriga também a análise social a tratar com resultados irreversíveis, e por isto assumir o sentido fínalístico da ação.

8. O DRAMA LATINO-AMERICANO: A NEGAÇÃO NA MUDANÇA

Uma América Latina foi um projeto do império espanhol. Outra foi um projeto

do império português. A América Latina jamais foi exclusivamente latina, porque se fez sobre povos não latinos – índios – e com povos não latinos: negros. A construção da América Latina se fez, desde o primeiro momento, em confronto interno, compreendido na natureza da dominação, para usar índios e negros e incorporá-los quando inevitável; e em confronto externo, com opositores, mais ou menos corsários: franceses, ingleses, holandeses e norte-americanos. A presença não ibérica foi essencialmente contrária; a presença ibérica foi essencialmente autoritária e predadora. A América Latina, entendida como espaço histórico latino, consolidou-se e aprofundou-se como uma unidade preenchida de pluralidade, mediante seu enfrentamento, ora cultural ora político, ora militar, com os europeus não ibéricos e com os saxões, cada vez mais com os norte-americanos. O histórico e a forma dos enfrentamentos tornam-se cada vez mais conhecidos57, se bem que seu desconhecimento foi sempre parte do

57 A América Latina é pobre de análise histórica e pejudicada – ou simplificada – pela história oficial, primeiro das metrópoles coloniais, depois pela dos governos autoritários. A visão de que a Amperica Latina se forma em confronto com porojetos expansionistas gerados nos países mais capitalizados, seja como resultado de contradições do jogo colonial, seja como efeito de confrontos mundiais, ajuda a esclarecer a história recente. mas teria que ser melhor utilizada para avaliar o significado de enfrentmamentos entre propostas de implantar algo duradouro e impactos de movimentos gerados em outros contextos sociais.

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próprio processo de dominação. O surgimento do contexto latino-americano plurinacional, que se forma em concomitância com as experiências nacionais, ficou marcado pelas lutas do começo do século XIX, com os projetos políticos representados por Miranda e Bolivar. Desde seus primeiros momentos ficou marcado pelo confronto externo, em que a oposição das colônias com suas metrópoles jamais esteve separada de concomitantes oposições com os centros mundiais de poder: França, Inglaterra, Estados Unidos. O desenvolvimento dos processos nacionais e de suas contradições desde a segunda metade do século XIX levou a um quadro de pluralidade de formações sociais e de aspirações que se configurou, primeiro, com o referencial da Primeira Guerra Mundial, e, segundo, sob as pressões desencadeadas pela depressão de 1930, que permitiu identificar grandes linhas de interesse, situações características de alguns grupos de países.

Ao finalizar a segunda Guerra Mundial e serem reconhecidas as aspirações das ex-colônias asiáticas e africanas, houve uma nova oportunidade para que se vissem melhor as reivindicações captadas pelos Estados nacionais latino-americanos. A parte das notórias diferenças na complexidade da formação de classes entre uns e outros, evi-denciavam-se diferentes posturas de seus respectivos blocos dominantes, em alguns casos reivindicando a restauração de condições internacionalmente privilegiadas – principalmente a Argentina, o Uruguai e o Chile58 – e em outros casos procurando novas oportunidades de expansão, como nos casos do Brasil, do México, da Venezuela, da Colômbia. A experiência da CEPAL da década de 1950 foi representativa deste contraste entre uma pluralidade de aspirações e um referencial externo comum.59 E apesar do esforço canalizado mediante a colocação internacional dos pleitos que se formaram no âmbito de cada país latino-americano, os traços comuns do conjunto continuavam sendo muito desiguais: suas principais fontes de unidade continuavam sendo a unidade subcontinental do altiplano andino, a colonização espanhola e a cultura negra. O mundo português alimentou a formação do subcontinente brasileiro com ligações muito limitadas com outros países, que começariam a ganhar corpo na década de 1960.

Assim, no contraste da continuidade das formações sociais com as rupturas nas relações internacionais, a questão do desenvolvimento tem que ser revista agora, 58 Grande parte da inspiração das teses de desenvolvimento da CEPAL foram pretensões dos países do cone Sul, de recuperar condições de comércio de que desfrutaram até 1930. O contraste entre este tipo de pretensão e as reivindicações de superação de pobreza ou de capitalização para subir de posição, marcaram diferenças entre os estudos que a própria CEPAL fez dos diferentes países – na série Análises e projeções – assim como marcou diferenças entre trabalhos de economistas e sociólogos voltados para a superação da pobreza ou para a solução de problemas nacionais de comércio. A predominância certamente foi do segundo grupo. 59 A dificuldade de chegar a um referencial comum de aspirações dos diversos países latino-americanos corresponde a diferenças no modo como eles participaram do projeto de modernização capitalista. As diferenças, por exemplo, entre as propostas do política econômica do Brasil e de Cuba na década de 70 são bem representativas desta separação. Porém, mesmo considerando situações menos extremadas, estas diferenças estão claras entre países que tiveram condições para aspirar a uma industrialização mais diversificada – Brasil, México e, em menor escala, Argentina – e os que aspiraram a uma industrialização limitada – Peru, Chile, Colômbia –, entendendo-se que as escalas de tamanho médio corresponderam a diferenças de complexidade de composição social do capital.

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primeiro pelo modo como a mudança social é processada pelos grupos hegemônicos latino-americanos, segundo pelo modo como ela se converte no instrumento subordinado à modernização externamente conduzida; pelo modo como a idéia de desenvolvimento, mesmo diminuída, torna-se contraditória com as propostas de continuidade do poder dos grupos dominantes em cada país e das alianças externas que eles estabelecem com os países mundialmente dominantes.

Ao começar a década de 1970, aquilo que antes fora percebido como o fim do modelo de desenvolvimento via substituição de importações, revelava-se como o esgotamento do clima de expansão da economia mundial e o começo de um movimento de elevação dos custos financeiros da produção e de centralização do controle financeiro da economia mundial. Os países latino-americanos perdiam as oportunidades antes oferecidas por aquele motor de crescimento e voltavam a depender do anterior perfil colonial de suas economias para obter as divisas requeridas para atender suas necessidades. O ideal de desenvolvimento visualizado junto com a possibilidade de firmar trajetórias alternativas às dos países dominantes, especialmente dos Estados Unidos, passava a ser considerado impraticável ou simplesmente a projetar a moderni-zação e o fortalecimento de burguesias ligadas às oligarquias tradicionais. A seqüência de golpes de Estado iniciada em 1964 mostrou os abalos causados pela adaptação das estruturas políticas nacionais para atender as necessidades das novas alianças internacionais requeridas pelos blocos dominantes de cada país para modernizar-se e reproduzir-se no poder.

Mas ao avançar a década de 80 surgiram importantes novidades nesse quadro internacional. O avanço da internacionalização do capital significa um reordenamento do poder entre governos e entre governos e multinacionais, com uma relativa redução do poder econômico dos Estados Unidos – limitado por seus próprios aliados – para sustentar um controle direto do crescimento dos países periféricos. Pelo contrário, os Estados Unidos convertem-se em grandes devedores, são levados a redistribuir os custos financeiros do endividamento, tanto como são levados a se apoiar em sua capacidade de captadores de recursos externos e nas vantagens derivadas da demanda mundial de dólares para financiar seu próprio déficit. Em contraposição, os latino-americanos são induzidos a serem mais agressivos em sua participação no mercado mundial e a diversificar suas mercadorias e seus parceiros. Mas não há dúvida de que se trata de estratégias concebidas e executadas pelos grupos dominantes de cada país, cujo sentido de finalidade é a busca de retornos não-decrescentes para o capital atual, isto é, a sustentação de um padrão de acumulação que administre as margens de modernização econômica sem ruptura do controle social do capital (o que não significa qualquer garantia a priori da forma do controle político). Assim, a continuidade do processo de acumulação identifica-se com um determinado padrão de acumulação ou, ainda, identifica-se com o princípio básico de que a modernização será feita com pouca circulação das elites, sem perda de controle do processo do capital por parte da superestrutura política.

O aspecto mais delicado e complexo deste processo é o ajuste do sistema de

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alianças externas com a formação do bloco hegemônico de cada país, vendo-se que esta correlação de interesses se faz mediante o Estado; e que os interesses do capital – em diversos países – têm que se exprimir sem necessariamente contar com empresas adequadas para acompanhar as transformações do capital na escala mundial. (Chamam a atenção as diferenças entre as empresas que lideram a formação de capital nos países mais industrializados e nos menores, não só pela importância da organização familiar, como pela atitude em relação à renovação de técnicas.) As grandes exceções, além do Brasil e do México, também são os países que abrigam um espectro mais amplo de empresas, inclusive com sistemas cada vez mais complexos de inter-relações entre o âmbito da produção considerada formal e o da considerada informal, e que, por conseguinte, são também países onde os componentes da produção não controlados pelo Estado são relevantes para a sustentação deste mesmo padrão atual de acumulação. (Cabe lembrar, por exemplo, que esta produção não controlada é responsável de grande parte da produção de bens-salário; e que deste modo facilita a liberação de recursos humanos e de capital para a produção de mercadorias exportáveis.) Assim, o ajuste das economias nacionais latino-americanas com os grandes movimentos da economia mundial tem um duplo significado, de torná-las funcionais ao processo mundial do capital e de viabilizar sua modernização econômica sem quebra de seus mecanismos de controle.

Desse modo os movimentos da economia mundial redefiniram os âmbitos e o significado da política econômica na América Latina. Os países latino-americanos passaram a adotar, relutantemente ou não, políticas de curto prazo que visam adaptar as propostas – ou reivindicações de crescimento – a exigências de estabilidade que são definidas como nacionalmente necessárias, mas cujo perfil básico é dado como um requisito de participação no financiamento mundial. Alguns aspectos incidentais destas restrições de política, como a crise do petróleo, não obscurecem o fato de que os países periféricos cada vez têm menores margens de decisão para direcionar suas políticas, seja pelo aumento da carga de seu endividamento em proporção ao seu produto e à receita real de seus governos, seja porque os próprios países centrais exercem uma pressão contínua para que os subdesenvolvidos aumentem suas compras no exterior. Assim, desvaneceu se o cenário mundial do período em que se teorizou sobre política econô-mica para o desenvolvimento, como se ela fosse uma disciplina positiva isenta de restrições políticas.60

A experiência com políticas a médio prazo, muitas vezes ordenadas em planos de desenvolvimento econômico e social em diversos países latino-americanos e para algu-mas regiões especiais, mostrou a virtual impossibilidade de modificar muito os

60 As teorizações positivas sobre política econômica, especialmente sobre uma política econômica voltada para o planejamento a médio prazo, pressupuseram certas escalas de tamanho dos instrumentos e certas condições financeiras. Perderam interesse na medida em que se aprofundaram os problemas financeiros mundiais – o dinheiro tornou-se mais caro – e os govornos nacionais se enfraqueceram financeiramente. A literatura gerada na década de 50 – Tinbergem, Frisch, Chenery e muitos outros – trabalhava com uma constância do instrumental que não estava mais disponível. A discussão de política econômica partiuse entre os que a criticavam e os que o reduziram a uma prática de equilíbrio a curto prazo.

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objetivos e as estratégias operacionais, já que as equações políticas, os balanços de formas e as relações de classe não mudavam. O aparente esgotamento técnico do planejamento esteve claramente ligado à estabilidade dos blocos hegemônicos nacionais e à contradição entre as propostas de modernização setorializada e o fato de que os interesses destes blocos se realizam mediante um processo que centraliza capital sobre um conjunto de setores e não tem nenhum compromisso efetivo com um possível confronto entre interesses industriais e agrícolas, ou entre interesses urbanos e rurais.

Mas no contexto de cada país as necessidades que sustentaram a busca de políticas de mudança refletiram deslocamentos na composição das sociedades nacionais de classe61, onde se destacaram a emergência de grupos urbanos de renda média e a emergência de segmentos de trabalhadores, possivelmente mais por sua capacidade de organização que por seus diferenciais de renda com outros segmentos de trabalhadores urbanos e rurais.62 Sinteticamente, as propostas de mudança apareceram naquelas oportunidades em que a continuidade dos grupos dominantes em cada país demandou composições de poder socialmente mais amplas, o que em certa medida coincide com os projetos de industrialização, de expansão de fronteira agrícola e d modernização da produção. Mas estas políticas perderam força quando esta mesma continuidade das hegemonias nacionais passou por reajustes determinados mais diretamente por pressão externa, o que ocorreu a partir da década de 70, com o antes mencionado fim do período de expansão da economia mundial a partir dos Estados Unidos. Assim, de certo modo não surpreende que as soluções nacionalmente encontradas para manter o padrão de acumulação se tornassem contraditórias com a ampliação das estruturas políticas de poder, e, por fim, que levassem a políticas de investimento e de gestão pública que fossem mais concentradoras.63

61 A renovação da crítica das sociedades latino-americanas como sociedades de classe que convivem com importantes segmentos de sociedade de massa apenas começa. mas sem dúvida é uma discussão que exige uma volta à análise categorial, ou à análise de seus fundamentos. Que é classe neste contexto? Que se entende realmente por sociedade de massa? O coneito de classe necessita de sua dimensão formativa, assim como tem que incorporar flexibilidade suficiente para explicar os matizes, as situações intermediárias, os embriões de classe. O conceito de massa alude a diferenças tipos de massa, à pré-industrial e às concomitantes com a urbanização concentradora. 62 Numa sociedade segmentada, onde uma das principais diferenças é a duração do emprego, as diferenças de renda são claramente insuficientes para indicar diferenças na esruturação social. As condições em que o trabalho é realizado, que estão ligadas ao segmento do capital a que ele corresponde e ao lugar onde ele se encontra, revelam diversos outros dados cuja importância não pode ser prejudicada. Também, a proximação entre o rural e o urbano significa o aparecimento de diversas situações e tipos intermediário de renda e de mobilidade, que não se resolvem com os dados de renda. Aparentemente, a principal pista nesta análise é o significado político da fontre da renda e seu efeito na identificação de classe de seu recebedor. Admitindo que o acesso aos postos de trabalho regular está sempre afetado por um conjunto de elementos políticos, deve-se considerar que diferentes empregos com rendas aparentemente semelhantes podem ter significado muito diferente no que dêem maior ou menor acesso a formas indiretas de renda ou pura e simpesmente a poder. 63 A inércia do governo em sua qualidade de representação administrativa do Estado é na direção de favorecer a reprodução dos segmentos do capital que se reproduzem com meis intensidade, ou que estão em consonância com as tendências da reprodução do capital. Supostamente, as contradições com este perfil de comportamento se acentuam à medida em que se ampliam as margens de componentes

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Nesse quadro situa-se a discussão latino-americana da pobreza.. Já não como um referencial de políticas paliativas de partidos moderadamente modernizadores64, mas como uma categoria do processo social periférico atual, que não se explica pela análise convencional da distribuição, e que aparece agora como um produto do confronte da centralização no processo de acumulação conduzido pelo capital privado e pelo engajamento dos governos nacionais em sustentar o padrão vigente de acumulação. Essa análise da pobreza parte portanto da observação inicial de que ela não é incidental nem externa a coleção de processos econômicos, culturais e políticos que representam a dominação. Pelo contrário, trata-se de que a atual pobreza revela, em sua escala e composição, os sucessivos movimentos do capital desde a formação das colônias até o presente; e que a proliferação e a diversificação de formas de pobreza nas cidades de diferentes tipos e no meio rural reflete justamente o modo como o capital se articula para reduzir os custos do trabalho na produção.

O reordenamento da economia mundial significa uma mudança na composição da produção dos países latino-americanos, que atinge simultaneamente a indústria, a agricultura e a produção mineral e extrativa. No Brasil, cujo sistema produtivo alcançou maior complexidade, isto traduziu-se numa grande diversificação das exportações, mas com subsídios cujos custos jamais foram conhecidos.65 No México, cujas trocas e fluxos de capital estão mais concentrados com os Estados Unidos, isto representa uma dificuldade adicional para aprofundar na diversificação da indústria e para fortalecer a produção de bens de capital. Na Argentina isto significa o bloqueio de quaisquer pro-gramas a longo prazo que dependam de um aumento prolongado da receita de exportações. A Venezuela e a Colômbia, que não tinham alcançado uma estrutura produtiva suficiente para ampliar suas trocas com o exterior, ficaram bloqueadas por um setor externo pouco dinâmico e com mercados internos exíguos. Paralelamente, alguns movimentos mais significativos da formação de capital, tanto nestes países grandes como nos pequenos, a exemplo do Panamá, do Equador e do Uruguai, originaram-se de operações financeiras que não necessariamente se refletiram em sua estrutura produtiva. Mas em todos estes países houve uma revitalização da produção primária extensiva – pecuária, exploração florestal, produção de fronteira agrícola – que

representativos do trabalho, que por definição discordam destas tendência. Mas não há como supor que as tendênctas do Estado sejam para a Concentração. 64 Neste ponto, o que se coloca realmente é se é possivel controlar a modernização, ou conduzi-la, seja no plano econômico ou no de propostas políticas, entendendo que as propostas políticas de modernitação passam sempre pela identificação de interessados, definem sempre deslocamentos de grande porte na relação entre interesses de grupo e ideologia de classe. Uma posição pessimista sobre esta condução da modernização significa que ela será externamente comandada, que refletirá deslocamentos de poder no centro mundial do capital – e implicará numa negação rotunda a priori do desenvolvimento. 65 Em momento algum as propostas neoliberais de política trataram dos custos sociais acumulados ao longo dos últimos decênios pelos subsídios ao capital, ou esclareceram que pretenderiam abdicar de subsídios. Entende-se que uma posição deste último tipo signiticaria um retorno utópico às condições de capitalismo concorrencial de décadas atrás. Mas não Será que o liberalismo realmente pressupõe uma autêntica concorrência que apenas não existe?

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coincide com uma preferência do capital por linhas de produção em que seja possível aproveitar vantagens – autênticas ou subsidiadas – de uso de recursos naturais.

Há, portanto, razões para supor que o momento atual deste padrão de

acumulação implica numa composição de capital pouco adequada para superar as margens atuais de pobreza e geradora de novas modalidades de exclusão de trabalhadores do processo de produção. Esse esboço do processo recente do capital mostra como é inadequado tentar explicar o emprego e a remuneração dos traba-lhadores pela análise da composição dos postos de trabalho por setor, ou por nível de renda, ou mesmo pela comparação da composição do emprego com a qualificação dos trabalhadores. Por extensão significa que a insuficiência de postos de trabalho e de remuneração – que implica na presença de pobreza aguda – não pode ser percebida como um fenômeno aderido ao da formação de salários: a pobreza é a ausência de emprego e de renda, é a negação do capital.

Nas condições antes descritas, a atual pobreza nos países latino-americanos não pode, portanto, ser tida como residual em relação à expansão do capital. A parte de que uma expansão contínua do capital permite supor a absorção de um número crescente de pessoas, isto não necessariamente significa a absorção de proporções crescente da população, nem diz nada sobre a remuneração paga aos trabalhadores. Admitindo que os velhos latifúndios e a velha e pequena propriedade rural já estavam num processo próprio de decadência, é possível admitir que o desemprego causado por sua destruição não teria motivo de ser compensado pela criação de uma produção agrícola moderna. Mas, sem dúvida, o desemprego da população rural tornou-se um traço básico das modernas economias latino-americanas: não foi compensado pela abertura de fronteiras agrícolas nem por emprego rural não agrícola, basicamente converteu-se em pressão para uma urbanização mais desigual.

No entanto, supor que a pobreza é gerada pelo campo, conforme dizem alguns autores66, parece ser um excesso de simplificação, pela simples razão de que a subordinação da produção agrícola ao capital financeiro organizado no meio urbano mostra que este perfil de comportamento da agricultura resulta de opções de modo de acumulação em que a produção agrícola deve adaptar-se às preferências do capital mercantil67; e em que as escolhas de técnica e as escalas de produção ajustadas em função

66 Alguns autores ligados à análise do subdesenvolvimento e à análise do Nordeste do Brasil têm trabalhado com a hipótese de que o semi-árido, especialmente o campo semi-árido, gera pobreza que se transfere para outras regiões. Entendemos que é um ponto de vista que não leva em conta que a organização da economia do semi-árido é controlada desde outras regiões; que sua política é a mesma, sujeita a subdivisões semelhantes; e que este campo semi-itrido está agora mais diretamente integrado com a expansão do capital – através de agroindústrias de exportação – do que as velhas regiões agrícolas costeiras do mesmo Nordeste. Trata-se, portanto, de um argumento que peca por localismo, ou por não perceber que o semi-árido é tão pobre justamente porque está fortemente subordinado pelo capital em expansão: e não porque esteja isolado dele. 67 A maior parte das empresas de grande porte e a maior parte do capital que elas controlam no Nordeste é de fundo mercantil. Seus interesses principais estão regulados por comercialização ou operações comerciais. Em grande parte a indústria aparece ou se implanta como extensão destes interesses e não em

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de objetivos de reprodução do capital levam os capitalistas a trabalharem com aplicações que compreendem combinações de investimentos na produção e de formação de patrimônio que não podem ser explicadas pela lógica do capital industrial.68 Paralelamente, na gestão do capital aplicado nos setores de serviços, vemos que os interesses comerciais em diversos países ligaram-se diretamente aos bancos; e que são estes últimos que conduzem a modernização do sistema produtivo, inclusive na indústria.

Assim, as aplicações de capital nos diversos setores são conduzidas a partir de uma percepção de lucratividade situada desde o ponto de vista do capital mercantil-financeiro, que continua operando com a pressuposição de abundância de recursos naturais e de baixos salários. E este é certamente um ponto que não pode ser ignorado, porque concerne à competitividade do capital dos países periféricos operar internacionalmente; e porque indica que ele tentará sempre compensar suas deficiências de competitividade com estratégias de redução do pagamento do trabalho. Mais uma vez nos defrontamos aqui com pistas para a interpretação do percurso seguido pelas economias latino-americanas no período desde 1970.

O bloqueio externo do crescimento é um aspecto macroeconômico que deve ser esclarecido com observações sobre a composição da produção entre empresas e sobre as novas modalidades de associação entre empresas que conduzem a formação de capital. Na realidade – e como pode ser inferido de diversos documentos oficiais – as baixas taxas de crescimento do produto social e o endividamento são concomitantes com uma centralização do capital nos grupos que detêm o controle da relação externa. São eles que assumem a liderança na composição dos grupos nacionalmente dominantes e que em última instância dão a principal opinião na formação das políticas econômicas nacionais.

A aceleração da inflação desde o final da década de 70 confirma este movimento. Os governos dos países latino-americanos de maior porte ficaram amarrados a políticas de curto prazo, restritivas de seu crescimento, coincidindo com orientações externas de "ajuste estrutural"69, cujo significado final no perfil do crescimento jamais foi ofi-

oposição a eles. A distinção entre capital mercantil e industrial no Nordeste pressupõe um tratamento de empresa limitado a seu perfil industrial sem considerar seu caráter multifacético. 68 A predominância da lógica do capital industrial no Nordeste esta restrita a alguns âmbitos limitados a empreendimentos de tecnologia mais avançada e, em todo caso, de comercialização apta para participar de operações internacionais. Torna-se agora muito arriscado trabalhar com as dilerenças tradicionais entre capital mercantil, industrial e financeiro, apesar de haverem poucas dúvidas de que os interesses financeiros comandam o perfil da produção agrícola e da industrial. 69 Faz-se aqui referência a certo tipo de política de curto prazo, que tem sido favorecida pelos órgãos financeiros internacionais, pelos principais países credores mundiais e pelos Estados Unidos (apesar de que este seja um devedor que não a pratica). E uma política que trabalha com proporções entre setores externamente estabelecidos: externamente porque não se considera quais proporções possam precipitar crescimento. A crítica desta política vem sendo uma peça essencial das dvergências em relação à participação do Banco Mundial no quadro de financiamento de economias nacionais. Ao mesmo tempo é um estilo de política que tem sido optada, inclusive por segmentos supostamente progressistas,

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cialmente questionado. No entanto, seus pressupostos são facilmente reconhecíveis: a presença de cada país periférico na economia mundial deve ser ajustada a suas reais condições de competitividade; e cada país deve dimensionar o consumo de sua população em função da renda social de que dispor, em condições de entrada decrescente de empréstimos externos e com o pagamento dos compromissos de seu atual endividamento. Estes pressuposto incluem também proporções estáveis entre as despesas com infra-estrutura e os investimentos na produção de bens de capital e de bens de consumo.

À parte de que este tipo de raciocínio contém uma surpreendente simplificação do funcionamento de economias industrialmente maduras, como a brasileira e a me-xicana, sugere que uma política de compressão do consumo e de forçar a composição dos investimentos para um perfil de prazo mais curto, apoiada num aumento da pressão interna de financiamento.

Destarte, o fundamental é que a direção do processo de produção, com ou sem crescimento, favorece uma com posição do produto com determinados requisitos de recursos, que, até onde mostra a experiência, tem requisitos de trabalho diferentes daqueles incluídos no anterior projeto de industrialização. Daí não há como ocultar que o padrão de acumulação prevalecente distancia-se cada vez mais do perfil de possibilidades de engajamento da população no processo de produção.

Frente a este referencial colocam-se agora os aspectos negativos da distribuição, ou seja, a informalidade e a pobreza.

A informalidade pode ser vista alternativamente na perspectiva do capital organizado, ou seja, da empresa e da projeção de seus interesses na ideologia das classes superiores e médias da renda; e na perspectiva da população que aspira participar da produção, quer dizer, que quer ser trabalhadora. Do ponto de vista do capital orga-nizado, a informalidade é o conjunto de atividades que recebem as vantagens de realizar-se sem pagar impostos, que representam uma concorrência desleal" nos comer-ciantes formalmente estabelecidos. Observe-se que a informalidade concorre ao nível da comercialização, mesmo quando compreende a elaboração de produtos manufaturados. Supostamente, o que passamos a denominar de produção informal não se confunde com a produção primitiva.70 E tem se concentrado acompanhando a urbanização, com

ideologicamente "adaptada" para transmitir os princípios da estabilização a curto prazo com os da condução no médio prazo. 70 Por produção informal entendemos aqui o conjunto das atividades produtivas, direta ou indiretamente ligas a mercado, que correpondem à sobrevivência da população pobre, independente da renda monetária que geram. Por produção primitiva entendemos aqui aquela produção principalmente atraída pelo consumo local e com escassa interferência de informações de mercado. Entende-se que a produção informal está sempre articulada com o mercado e que compreende uma grande pluralidade de atividades, arituladas umas com as outras também por uma grande pluralidade de mecanismos. Igualmente entende-se que a produção informal é moderna, isto é, ela se produz e reproduz em relação à modernização das cidades em seu cknjunto. Ela não depende da permanência de atividades tradicionais, mesmo nos casos em que é realizada com pessoas, entretanto, é parte de modos de vidatradicionais, no sentido de que

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variadas formas de operação. Do ponto de vista da população aspirante a trabalhar, a informalidade é uma alternativa de ocupação remunerada que se distingue das limitações de número de postos de trabalho e de remuneração. Toda esta população tem uma referência comum, que é a de encontra-se em oposição aos interesses que comandam os postos de trabalho e a remuneração. Vem aos postos de trabalho como um meio de chegar ao sistema de vantagens indiretas ligado ao sistema de produção (regularidade do salário, aposentadoria, férias etc.); valorizam a estabilidade do emprego como um componente extra de renda, como em meio de liberação de sua capacidade para administrar seu tempo para produzir e para criar alternativas de remuneração atual e futura.

É fundamental observar que a extensão e a profundidade do espaço ocupado pela informalidade corresponde ao âmbito do emprego formal, que é a principal fonte de ocupação do trabalho não formalizado e que mediatamente é a origem de uma parte da demanda que absorve este tino de trabalho. À medida em que a produção se torna mais complexa e aumenta o número de postos de trabalho cuja remuneração também cresce, aumenta a complexidade da informalidade e tornam-se também mais complexas suas inter-relações com os modos de funcionamento da produção formal. Assim, a reprodução da produção informal está regida pelos mecanismos de formação de renda da produção formal. Mas como a produção informal não se traduz em empregos – isto é, não se converte em postos de trabalho – senão em tempo de trabalho realizado, existe um problema de conversão de tempo padronizado da produção formal (o tempo que Marx representou com a noção de jornada de trabalho) em tempo de produção informal, que apenas pode ser reconhecido como a efetivação do potencial socialmente qualificado de capacidade atribuível a um dado conjunto de trabalhadores.71 E apesar de que este conceito também enfrenta as dificuldades decorrentes de ter que explicar as diversidades de capacidades compreendidas na produção informal, torna-se claro que o potencial da produção informal é própria de cada formação social e de cada composição de capital, guardando inequívoca relação com a formação cultural, as condições de saúde e de organização social de cada população.

Por isso, se não se pode conceber o potencial de trabalho da informalidade separadamente de uma determinada trajetória histórica do sistema de produção de que ela faz parte, tampouco tem sentido analisar a informalidade sem considerar a questão mais ampla – mas claramente ligada a ela – de equivalência entre o tempo de trabalho realizado na produção informal e na formal e a formação da renda familiar.

Por aí deve-se lembrar que nos países latino-americanos a produção em geral tem

sido realizada em condições de trabalho abundante e barato. Sem chegar ao extremo

pouco é modificada por inovações tecnológicas e que se reproduz com pequena presença no mercado. A distinção entre elas pe necesária para trabalhar com regiões latino-americanas em que as duas convivem sem se modificarem. 71 O conceito de potencial de trabalho aqui inclui o qualificativo das condições de educação e treinamento profissional das pessoas.

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teórico das condições de oferta ilimitada de trabalho72, a produção na América Latina certamente tirou sucessivas vantagens da presença de população índia, de imigrações diversas, e, em todo caso, de uma numerosa população que se reproduz com baixíssimos custos para o capital organizado. Este foi um rumo da estratégia do capital escravista e feudalista73, que tem operado de modo a reproduzir nos segmentos modernos estas características da produção pré-industrial. A organização do mercado de trabalho fez-se sempre mediante uma correspondência entre o valor criado na produção de mercadorias imediatamente exportáveis e o valor criado na produção não ime-diatamente exportável (mesmo quando potencialmente exportável), aí incluídas a produção para consumo local imediato e a produção de mercadorias não necessariamente exportáveis.

Assim, na medida. em que a produção informal concentra as possibilidades de remuneração dos trabalhadores de menor nível de educação e com menores possibilidades de incorporação a produção formal ela também é parte da produção total que mais se identifica com a pobreza. E tanto como a pobreza se descreve como uma situação em que não se obtém uma renda familiar igual ou superior ao custo do consumo básico, cabe supor que ela está naturalmente ligada às necessidades de aproveitar as oportunidades oferecidas pela produção informal.

Nas condições atuais de segmentação do mercado de trabalho nos países latino-americanos, a pobreza é uma condição social que conjuga a diferenciação atual de renda com outros mecanismos de diferenciação organizados no plano cultural e de organização social da produção, incluídos a discriminação étnica de negros e índios na quase totalidade dos países, o analfabetismo e as deficiências e desigualdades do sistema educativo e os mecanismos de controle do acesso aos postos de trabalho melhor remu-nerados. Assim, a relação global entre o crescimento do produto e a criação de postos de trabalho induz a um engano sobre as condições de vida da população. A desigualdade é uma categoria do processo do capitalismo na periferia econômica que toma determinada forma econômica da distribuição da renda, mas que ao consubstanciar-se na pobreza aguda incorpora aspectos não econômicos – políticos, culturais – da reprodução social que são essenciais para a continuidade do processo do capital. Assim, a pobreza é continuada nos planos local e central da organização do poder, refletindo as contradições de interesse entre estes dois níveis. (Por exemplo, a experiência com os programas rurais especiais tem mostrado uma ambigüidade em relação à reforma agrária, que corresponde a esta colocação.) Justamente por esta permanência das estruturas de poder, a propriedade da terra e a organização do sistema financeiro têm sido os dois grandes eixos deste padrão de

72 Se bem que a idéia de oferta ilimitada de trabalho é 5atificial, as condições de operação do capitalismo periférico pressupõe salários muito baixos e um grande exército de reserva que estão próximos daquele pressuposto. 73 A expressão feudalista é utilizada aqui para indicar a organização social da produção agropastoril nas regiões onde a presença do Estado sempre foi tênue, mas onde não há condições para falar de uma organização genuinamente feudal.

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acumulação, já que geram vantagens que se reproduzem ao longo do trajeto, desde as formas mais simples de produção até as mais tecnificadas, urbanizadas ou não. Por isto não tem sentido tentar organizar a análise destes mecanismos a partir de algum ponto de ruptura, como poderiam ser a industrialização ou as mudanças de paradigma energético. (O exemplo da substituição do transporte ferroviário pelo rodoviário já foi razoavelmente estudado. Mas é conveniente lembrar também que estes dois modos de transporte têm sido combinados em novas cadeias de transportes que tornam inadequada qualquer referência a possíveis rupturas entre modos de transporte.) Pelo contrário, estes termos aparecerão adiante como conseqüências do desdobramento do processo de acumulação. Como notou Marx, as formas de produção se desenvolvem para viabilizar a produção de determinadas mercadorias que são objeto de demanda, e jamais ao contrário. A segmentação do mercado de trabalho esta ligada à estabilidade da propriedade da terra através da falta de mobilidade na composição da renda e da exigüidade da renovação dos que têm acesso a compras de terra. Revela também uma diferenciação cujas raízes estão (a) na perpetuação da estrutura fundiária rural e urbana; (b) nos mecanismos de educação, com a discriminação por profissão, por acesso a informações e pela concentração do controle do acesso a postos de trabalho; (c) uma rápida con-centração do poder de decisão sobre a substituição de técnicas, que ao longo do processo de modernização fica sob controle de número menor de instituições e pessoas. Através dela são garantidas as condições de controle da mobilidade, seja porque o aparelho educativo restringe o acesso a novas oportunidades de trabalho melhor remunerado74, seja porque aprofunda as diferenças entre as faixas de baixa renda, tornando cada vez mais difícil a mobilidade em cada cidade. Os custos crescentes dos serviços públicos urbanos aprofundaram a segregação nas grandes cidades latino-americanas nas décadas de 70 e 80, levando à intensificação da especulação imobiliária urbana e ao aprofundamento das diferenças no acesso a moradia.

A internacionalização do comando financeiro da economia mundial modificou a importância da propriedade fundiária como alicerce do controle da acumulação nos países latino-americanos e gradualmente transformou-a em instrumento da produção de poder, geralmente fazendo a ponte entre o controle do aparelho de poder político e o controle do capital. Verificamos que em todos os países que têm uma agricultura significativa houve uma sensível modificação no modo de atuação dos bancos, que ora financiam a criação de novas empresas de exploração agropecuária, ora funcionam como intermediários na canalização de recursos subsidiados para as mesmas oligarquias rurais. A coincidência da expansão dos interesses das multinacionais com o encarecimento do dinheiro afunilou o financiamento da agricultura, ao mesmo tempo em que levou as empresas a vincularem suas aplicações rurais com suas operações financeiras e patrimoniais urbanas.

Assim, a marca da trajetória da acumulação nos países latino-americanos agora é 74 Trata-se aqui da remuneração real, incluindo axesso a formas de consumo coletivo, que são extremamente desiguais, dependendo de quais cidades e quais bairros são considerados.

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uma crescente integração dos diferentes tipos de investimento em algumas grandes linhas de formação de capital, de congregação das despesas com a infra-estrutura ao redor dos mesmos objetivos de produção. Portanto, a criação de postos de trabalho, ou a remuneração das diversas categorias de trabalhadores, fica regulada pela rentabilidade ou pela eficiência aparente do capital75 nestas linhas de aplicação de recursos.

Essa pode ser a colocação central que situa agora a pobreza como o anverso do processo de formação de capital na América Latina. Não podemos ficar com um conceito de pobreza que a veja como a reprodução demográfica dos atuais pobres, ou como residual da criação de empregos, senão como a conseqüência de um processo que muda de forma ao longo da formação de capital e da modelagem das sociedades nacionais. A concomitância de mudanças no plano econômico, no cultural e no político faz com que as dificuldades conjunturais no plano econômico dêem lugar a agravamentos das dificuldades de distribuição nas dimensões não econômicas do processo. E o debilitamento econômico dos governos nacionais latino-americanos faz com que a ação do Estado não se distancie dos objetivos mais claros da harmonização da continuidade do poder político com as adaptações do poder econômico. As perspectivas da pobreza são de perdurar tanto quanto os países continuem em seu rumo atual.

75 Usamos a expressão eficiência aparente para indicar a eficiência mensurável do capital que não considera os subsidios indiretos que ele recebe da concentração de infra-estrutura e da concentração de apoio institucional.

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