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International Congress of Critical Applied Linguistics Brasília, Brasil 19-21 Outubro 2015 811 UMA LEITURA DA PERSONAGEM FEMININA DO CONTO “LES FÉES”, DE CHARLES PERRAULT Renata Kelen da ROCHA [email protected] Universidade Estadual de Maringá (UEM) Vilma da Silva ARAÚJO [email protected] Universidade Estadual de Maringá (UEM) Dra. Margarida da Silveira CORSI [email protected] Universidade Estadual de Maringá (UEM) RESUMO Este trabalho, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Língua e literatura: interdisciplinaridade e docência (UNIFESP)” e ao projeto de pesquisa “Os contos de fadas de Charles Perrault: uma leitura de As Fadas”, apresenta resultados de pesquisa analítica acerca da personagem feminina, do conto de fadas, numa perspectiva sócio-histórico-ideológica da linguagem, propondo o estudo da abordagem da narrativa Les Fées de Charles Perrault, a partir da análise centrada na teoria literária dos gêneros e, em seguida, nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos conteúdo temático, estilo e estrutura composicional , para apreender as características do gênero conto de fadas, segundo os conceitos da teoria literária expandidos para os conceitos de Bakhtin (1992). Para tanto, buscamos compreender a evolução dos gêneros desde as definições propostas por Platão, Aristóteles e Horácio até a expansão do conceito de gêneros. Traçamos, com isso, um percurso de análise da narrativa literária baseado na conceituação de gêneros literários e expandido para o conceito de gêneros do discurso. Além disso, nos pautamos no que Bakhtin (2003, p. 186) denomina como estilo: “a unidade de procedimentos de informação e acabamento da personagem edo seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de elaboração e adaptação [...] do material”, através dos quais, propomos analisar por meio da seleção de “recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2003, p. 261), as características e identidades presentes nas personagens femininas de Perrault. A escolha do estilo como recurso para a nossa análise, se justifica, pois é por meio da linguagem das personagens e das marcas linguística presentes no texto literário que determinadas características são reveladas, o que possibilita conhecer a ideologia do escritor, visto que, de acordo com Bakhtin (2002), a língua é viva, e são as ideologias e a evolução histórica que dão vida a ela e criam uma pluralidade de mundos com a associação de história, literatura, ideologias e sociedade. Assim, o resultado de nosso trabalho se propõe a contribuir para a formação de um processo de análise capaz de elucidar as potencialidades da narrativa literária francesa de Charles Perrault. Palavras-chave: Gêneros; Contos de Fadas; Personagem Feminina. 1. INTRODUÇÃO

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Brasília, Brasil – 19-21 Outubro 2015

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UMA LEITURA DA PERSONAGEM FEMININA DO CONTO “LES FÉES”,

DE CHARLES PERRAULT

Renata Kelen da ROCHA

[email protected]

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Vilma da Silva ARAÚJO

[email protected]

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Dra. Margarida da Silveira CORSI

[email protected]

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

RESUMO

Este trabalho, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Língua e literatura: interdisciplinaridade e

docência (UNIFESP)” e ao projeto de pesquisa “Os contos de fadas de Charles Perrault: uma

leitura de As Fadas”, apresenta resultados de pesquisa analítica acerca da personagem feminina,

do conto de fadas, numa perspectiva sócio-histórico-ideológica da linguagem, propondo o

estudo da abordagem da narrativa Les Fées de Charles Perrault, a partir da análise centrada na

teoria literária dos gêneros e, em seguida, nos três pilares constitutivos de gêneros discursivos –

conteúdo temático, estilo e estrutura composicional –, para apreender as características do

gênero conto de fadas, segundo os conceitos da teoria literária expandidos para os conceitos de

Bakhtin (1992). Para tanto, buscamos compreender a evolução dos gêneros desde as definições

propostas por Platão, Aristóteles e Horácio até a expansão do conceito de gêneros. Traçamos,

com isso, um percurso de análise da narrativa literária baseado na conceituação de gêneros

literários e expandido para o conceito de gêneros do discurso. Além disso, nos pautamos no que

Bakhtin (2003, p. 186) denomina como estilo: “a unidade de procedimentos de informação e

acabamento da personagem edo seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de

elaboração e adaptação [...] do material”, através dos quais, propomos analisar por meio da

seleção de “recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2003, p. 261),

as características e identidades presentes nas personagens femininas de Perrault. A escolha do

estilo como recurso para a nossa análise, se justifica, pois é por meio da linguagem das

personagens e das marcas linguística presentes no texto literário que determinadas

características são reveladas, o que possibilita conhecer a ideologia do escritor, visto que, de

acordo com Bakhtin (2002), a língua é viva, e são as ideologias e a evolução histórica que dão

vida a ela e criam uma pluralidade de mundos com a associação de história, literatura,

ideologias e sociedade. Assim, o resultado de nosso trabalho se propõe a contribuir para a

formação de um processo de análise capaz de elucidar as potencialidades da narrativa literária

francesa de Charles Perrault.

Palavras-chave: Gêneros; Contos de Fadas; Personagem Feminina.

1. INTRODUÇÃO

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Nesse capítulo apresentamos uma leitura analítica da personagem feminina

representada no conto de fadas Les Fées, de Charles Perrault, embasada nos conceitos

de gêneros literários de Aragão (1985), Coelho (1987), Moisés (1967) expandidos para

o conceito de gêneros discursivos de Corsi (2-015), Machado (2005), Bakhtin (1997,

2003), entre outros.

Para esta leitura analítica, buscamos compreender a evolução dos gêneros

desde as definições propostas por Platão, Aristóteles e Horácio até a expansão do

conceito de gêneros apresentada por Bakhtin. Para tanto, descrevemos alguns traços

peculiares dos gêneros contos de fadas e contos maravilhosos e, em seguida,

apresentamos a análise das personagens femininas presentes no conto de fadas Les Fées,

de Charles Perrault, a partir dos três pilares constitutivos dos gêneros discursivos –

construção composicional, tema e estilo.

Depois desse trajeto, percebemos o quanto o estilo – um dos três pilares

constitutivos dos gêneros do discurso, proposto por Bakhtin (2003), está intimamente

ligado à caracterização dos personagens, elemento que faz parte da estrutura

composicional. Notamos isso porque a obra literária, escrita por um determinado autor,

se materializa no texto, por meio do uso da linguagem, seja ela verbal ou não verbal.

Com vista nisso, não podemos desconsiderar a grande importância que esse recurso

linguístico desempenha na produção literária, pois é devido a ele que temos como

atribuir sentido ao enunciado. É por meio da linguagem que reconhecemos o estilo do

autor, a estrutura composicional e o conteúdo temático, já que é a língua (fator interno

da narrativa), juntamente ao contexto histórico ideológico (fator externo à narrativa) que

a atravessa, que são essenciais para analisarmos as características femininas

representadas nas personagens de Perrault, pois acreditamos que tanto a literatura

quanto a linguística, em uma proposta como a deste capítulo, são vistas de maneira

imbricada, pois o sentido de uma não se realiza sem a materialidade outra. Assim, são

esses apontamentos que serão considerados em nossa escrita.

2. O GÊNERO LITERÁRIO: SUA ORIGEM E SUAS EVOLUÇÕES ATÉ

AO CONTE DE FÉE

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As obras clássicas III e X livros da República, de Platão; Poética e Retórica, de

Aristóteles; e os tradados de Horácio podem exemplificar a história dos gêneros

literários. O primeiro “estabelece três categorias: a poesia épica, a poesia dramática e a

poesia lírica”; o segundo “defende que estes gêneros são de maneira geral imitações” e

o terceiro, ao reconhecer a existência dos três gêneros, relacionou “a identificação do

lírico com o passado, do épico com o presente e do dramático com o futuro” (CORSI,

2015, p.15). Nesse sentido, ao analisar os textos clássicos, Aragão (1985, p.73-76)

afirma que “a lírica está associada à livre imaginação”, o épico “se caracteriza

primordialmente por ser um estilo narrativo” que “exalta fatos históricos e personagens

heroicos”, e o dramático apresenta os personagens em ação. Os estudos sobre os

gêneros prosseguiram historicamente, sendo, até meados do século XIX, marcados

pelos estudos do francês Ferdinand Brunetière (1849-1906) e do italiano Benedetto

Croce (1902). Com o tempo, surgem teorias mais modernas, como as de Warren e

Wellek, em que se destaca a obra Teoria da Literatura, e também Staiger, com a obra

Conceitos fundamentais da poética, que considera, pela primeira vez, o hibridismo entre

os gêneros.

Nas primeiras décadas do século XX, temos a teoria dos gêneros discursivos

proposta por Mikhail Bakhtin. Um dos primeiros formalistas que buscou substituir a

segmentação dos textos por um modelo elaborado a partir de uma relação dialógica com

outra. Isso só se tornou possível por conta da sua concepção de “palavra literária”,

entendendo-se por “palavra” a ideia de enunciado, no âmbito de uma ciência da

linguagem, por ele chamada de translinguística (NITRINI, 1997). A translinguística e a

linguística estudam a língua, mas cada uma estuda sob diferentes aspectos e diferentes

ângulos de visão: sendo a primeira voltada para às relações dialógicas, enquanto que a

outra é para as relações lógicas. A translinguística não desconsidera as relações lógicas,

entretanto, preocupa-se em “[...] observar a vida da linguagem, sua dinamicidade e

caráter de novidade, o acontecimento, que permite a circulação de posições avaliativas

de sujeitos situados histórico-socialmente e a permanente renovação de sentidos” (DI

FANTI, 2012, p. 310). Com isso, vemos que quando Bakhtin considera o dialogismo no

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processo produtivo de linguagem, os gêneros do discurso passam a ser vistos como

esferas pertencentes ao uso da linguagem verbal ou da comunicação fundada na palavra.

Bakhtin distingue os gêneros em discursivos primários, que concernem à

comunicação cotidiana dos gêneros discursivos, e os discursivos secundários que são

referentes à comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a

escrita. Mesmo com diferenças entre os gêneros, há um ponto de integração entre eles,

pois “os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,

transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua

relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios”

(BAKHTIN, 1997, p. 282). Com isso, podemos afirmar, de acordo com os

apontamentos do autor, que os gêneros estão sempre evoluindo e se transformando.

Quando os gêneros secundários absorvem os gêneros primários, tornam-se outros

gêneros e, nem sempre é possível discernir sua forma primária, sua precedência. Estas

transformações acarretaram na origem de diversos gêneros, inclusive o conto, que,

posteriormente, se desdobrou em conto de fadas. De acordo com Moisés (1967), a

origem da palavra conto pode ter várias proveniências, mas no sentido histórico da

palavra, ele está ligado à narração, à fábula, entre outros, enquanto que na literatura, o

conto se constitui por uma unidade dramática, e contém apenas um conflito, pois seus

elementos convergem para um mesmo objetivo.

Coelho (1987) informa que os contos de fadas surgiram entre os celtas e são

caracterizados pela presença do elemento “fada”, cujo significado etimológico vem do

latim “Fatum”: destino, fatalidade, oráculo. A partir disso, os franceses criaram o termo

Conte de fée, que se tornou Fairy Tale, em inglês e, no Brasil, os contos surgiram no

século XIX, como contos da carochinha. Embora as primeiras narrativas fossem

produzidas e destinadas aos adultos, com o tempo, elas incorporaram à tradição oral

popular e, posteriormente, foram destinadas ao público infantil. Isso ocorreu na França,

com Charles Perrault, escritor e poeta francês do século XVII, que, encantado com a

memória do povo, dispôs-se a redescobri-la e descrevê-la, recontando as histórias da

tradição oral popular, o que acarretou a publicação de sua primeira coletânea de contos

com o nome Contes de la Mère L’Oye, destinado às crianças (COELHO, 1987).

Para distinguir contos maravilhosos e contos de fadas, lembramos que os

contos de fadas são inseridos em um ambiente permeado pela magia feérica, com reis,

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rainhas, príncipes, fadas, bruxas, gigantes, tempo e espaço fora da realidade conhecida.

Eles carregam também questões existenciais, expressas por meio de testes e obstáculos

que precisam ser superados, com a ajuda de elementos mágicos, que trazem o

encantamento à narrativa. Já o conto maravilhoso possui raízes orientais e lida com uma

problemática material/social/sensorial, em outras palavras, a procura de riquezas, de

poder; a satisfação do corpo – ligada à realização socioeconômica do indivíduo em seu

meio e não sexual (COELHO, 2008).

3. ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CARACTERIZAÇÃO DA

PERSONAGEM NA LITERATURA

Conforme Bakhtin (2003), a estrutura composicional diz respeito à estruturação

e ao aspecto formal do gênero e sabemos que a personagem é um dos elementos que

constitui esta estrutura. Para compreendermos e analisarmos as personagens femininas,

dentro da estrutura composicional proposta pelo autor, é de suma importância

definirmos e caracterizarmos a personagem de modo geral: o termo personagem é uma

especificação ou derivação de pessoa e o sufixo -agem aponta o coletivo. Isso faz com

que a personagem tenha como função tipificar, personificar, coletivizar vários tipos de

pessoas e, conforme Gancho (1999), a personagem é um ser fictício que produz a ação

e, por ser a responsável pela ação, é por meio dela que o enredo se constitui, já que é a

responsável pelo envolvimento do leitor na narrativa. No entanto, a personagem não se

estabelece na narrativa sozinha, ela depende de um contexto e da linguagem, visto que

somente esses dois elementos permitem sua aproximação com a realidade histórica e

social. Embora ela seja fictícia, o seu discurso linguístico/literário é carregado de

expressão ideológica do autor, que dialoga com outras linguagens como a social, a

histórica, a ficcional.

Tudo o que envolve a personagem é obra da imaginação do autor e essa criação

imaginária pode advir de dados observados na vida real, o que permite a veracidade e a

verossimilhança. Isto acontece porque, conforme Cândido (1976, p. 78), a personagem é

uma composição verbal, uma síntese de palavras, que sugere certo tipo de realidade, o

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que a sujeita “às leis de composição das palavras, à sua expansão em imagens, à sua

articulação em sistemas expressivos coerentes”. Com vista nisso, retomamos as ideias

de Bakhtin (2002, p.119) e lembramos que a composição, as ações e o desenrolar do

enredo fazem parte do discurso da personagem, pois “palavras de outrem numa

linguagem de outrem, também podem refratar as intenções do autor e,

consequentemente, podem ser, em certa medida, a segunda linguagem do autor”.

Percebemos, assim, que é por meio das escolhas linguística e da linguagem que cerca as

personagens que o conteúdo temático é revelado, por exemplo, uma personagem

feminina descrita, em um contexto opressor, nos leva a inferir aspectos contextuais que

regiam a ideologia do autor e, consequentemente, sua escrita. No caso do conto de fadas

Les Fées, trata-se uma sociedade opressora que considerava a mulher como um ser

subjugado e inferior. Afirmamos isto, porque, ao dialogarmos com as ideias

bakhtininas, consideramos que a língua é viva, tendo as ideologias e a evolução

histórica para mantê-la e proporcionar uma pluralidade de mundos, associando história,

literatura, ideologias e sociedade.

A partir disso, notamos que é preciso estudar a palavra considerando suas

articulações sêmicas com as outras palavras da frase, para encontrarmos as mesmas

relações no nível das articulações de sequências maior (NITRINI, 1997), pois a

linguagem possui subentendidos em suas entrelinhas. Além de expressar a fala da

personagem, ela expressa inclusive a intenção do escritor, cuja escrita reflete

enunciados históricos, sociais, ficcionais. Apesar disso, cada autor carrega uma

perspectiva sócio-ideológica do mundo, que revela sua ideologia no discurso através de

suas personagens, criados por meio de palavras e formas que estão na linguagem: “são

vozes sociais e históricas, que dão determinadas significações [...], expressando a

posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua

época” (BAKHTIN, 2002, p. 106). Assim, todo o texto tem internamente o caráter

sociológico e é nele que se cruzam as forças sociais vivas. Com isso, depois dos

apontamentos que concernem à caracterização da personagem literária e à importância

que os elementos linguísticos, sociais, históricos e ideológicos desempenham nesta

criação; e por meio do que Bakhtin denomina de estilo, propomos a análise das

personagens femininas do conto Les Fées de Charles Perrault.

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4. LES FÉES: AS CARACTERÍSTICAS DE SUAS PERSONAGENS

FEMININAS

O conto Les Fées, de Charles Perrault, apresenta uma narrativa sobre a vida de

duas irmãs filhas de uma viúva camponesa. O autor, no decorrer do enredo, aponta as

diferenças e semelhanças entre as figuras femininas do conto, sendo a irmã mais velha

caracterizada semelhante à mãe: preguiçosa e arrogante, enquanto que a filha mais nova

é descrita como contrária às outras duas mulheres, pois esta era doce, gentil e muito

bonita. Esta era obrigada a ir duas vezes ao dia a uma fonte buscar água para a família, a

fazer todos os serviços da casa e a comer na cozinha.

Um dia, ao chegar à fonte, a menina boa se depara com uma camponesa que

lhe pede um pouco de água. Gentilmente, a garota serve-lhe a água e, para recompensá-

la, a fada, que surge transvestida de camponesa pobre, concede-lhe um dom, “je vous

donne pour don, poursuivit la Fée, qu’à chaque parole que vous direz, il vous sortira

de la bouche ou une Fleur, ou une Pierre précieuse” (PERRAULT, 1995, p. 136). Ao

chegar em casa, a mãe invejou o dom da filha caçula e impôs à primogênita que fosse ao

encontro da fada para que recebesse o mesmo dom: “Vraiment, dit la mère, il faut que

j’y envoie ma fille; tenez Fanchon, voyez ce qui sort de la bouche de votre soeur quand

ele parle; ne seriez-vous pas bien aise d’avoir le même don ?”(p.136).

Ao ir e encontrar a fada transvestida de nobre dama, a primogênita trata a fada

de maneira grosseira “Est-ce que je suis venue, lui dit cette brutale orgueilleuse, pour

vous donner à boire [...] buvez à même si vous voulez”(p.137) e, em consequência, a

mocinha é punida por seu comportamento: a cada palavra dita, ela expelia pela boca

uma cobra ou um sapo, devido à maldição feérica, que se apresenta no trecho “[...]

puisque vous êtes si peut obligeante, je vous donne por don qu’à chaque parole que

vous direz, il vous sortira de la bouche ou un serpente ou un crapaud” (p.137). Ao

retornar à casa, a mãe imediatamente culpa a filha mais nova e a ameaça com uma surra,

mas a moça ameaçada foge de casa e se refugia na floresta. Lá, ela se encontra com um

príncipe e, por possuir um belo dom, ele se apaixona por ela e a pede em casamento,

enquanto que a outra irmã é expulsa de casa e morre sozinha em um bosque.

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Percebemos, no conto de Perrault, a presença dualista entre bons e maus, feios

e belos, fracos e fortes (KHÈDE, 1986, p. 18) se dá pelo uso dos adjetivos utilizados

pelo autor para atribuir características às personagens: belle fille, si bonne, honnête,

douceur; la brutale, ne guère honnête, etc. Sabemos que os contos de fadas expressam

conteúdos que evidenciam problemáticas humanas que atravessam os tempos, como

rivalidades e alianças fraternas, inseguranças, rejeição, ingenuidade, trajetória de

amadurecimento emocional, etc. Nesse sentido, a figura feminina representada nos

contos de fadas, trará a marca da submissão, pois esta faz parte do ideal feminino,

centrada numa visão patriarcal. Além disso, nesse mesmo viés, o principal atributo

feminino é a beleza, então grande parte das heroínas dos contos de fadas são belas e,

quase sempre possuem a bondade como atributo. Estes aspectos são encontrados na

personagem “irmã mais nova”, criada por Perrault. Essa caracterização se revelará por

meio dos adjetivos: belle fille, si bonne, honnête, douceur. Podemos inferir, com isso,

que as qualidades exigidas de uma mulher, a partir do contexto em que o conto Les Fées

foi escrito, correspondem ao que Coelho (1987, p. 147) aponta como “qualidades

exigidas à Mulher: Beleza, Modéstia, Pureza, Obediência, Recato... total submissão ao

Homem (pai, marido ou irmão)”. Visão decorrente do grande período que a mulher foi

tida como um ser inferior ao homem, em todos os meios (estético, social, histórico e

político), o que causou sua exclusão social, sua marginalização, ao longo da história.

Para corroborar com a construção da imagem inferior feminina, havia os valores sociais

patriarcais, que viam a existência da mulher como um ser necessário para a reprodução

e constituição familiar.

Quanto à visão de repressão sexual feminina, os contos de fadas são ambíguos,

porque possuem um aspecto lúdico e liberador que instruem a libertação de desejos,

fantasias, manifestações da sexualidade infantil. Entretanto, há o aspecto pedagógico

que reforça os padrões da repressão sexual vigente, uma vez que orientam a criança para

desejos apresentados como permitidos ou lícitos, narram as punições a que estão

sujeitos os transgressores e prescrevem o momento em que a sexualidade genital deve

ser aceita, qual sua forma correta ou normal, o que alimenta os inúmeros estereótipos da

feminilidade e da masculinidade (CHAUÍ, 1984). No entanto, como Carter (1983)

aponta em seus estudos, o conto não tem função apenas de agir como repressor sexual,

mas também é destinado a instruir as pessoas a deixarem de ser livres, pois os exemplos

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morais dos contos de fadas visam ao sistema ideológico simplista de que as crianças

devem apenas ser boas para merecerem finais felizes (CARTER, 1983, apud

RAPUCCI, 1998, p.65), o que aumenta a mistificação sobre as mulheres.

As morais explícitas, que Perrault (1995, p. 136) produz, no conto Les Fées

retomam o aspecto repressor da sexualidade, assim como o objetivo de instruir e, ao

memso tempo, reprimir a conduta feminina presentes na literatura: “Les Diamants et les

Pistoles, / Peuvent beaucoup sur les Esprits; / Cependant les douces paroles / Ont encor

plus de farce, et sont d’un plus grand prix” e “L’honnêteté coûte des Soins, / Et veut un

peu de complaisance, / Mais tôt ou tard elle a sa recompense, / Et souvent dans les

temps qu’on y pense le moins”. Cada uma das morais possui um ensinamento a ser

seguido e obedecido pelas moças da época, que podemos encontrar a partir das

moralidades citadas. Sendo assim, esse perfil feminino, com a presença do padrão de

beleza, docilidade e obediência desejado às mulheres, é refletido em várias histórias de

Perrault, inclusive no conto Les Fées analisado nessa pesquisa. Resultado do contexto

sócio-histórico-ideológico, cujo autor está inserido, pois estes elementos agem de

maneira expressiva sobre as descrições e caracterizações das personagens, já que elas

são representações de sua época, e isso dá sentido e verossimilhança à sua obra.

Salientamos que estas características apontadas correspondem ao estilo, que é “o

conjunto de particularidades discursivas e textuais que cria uma imagem do autor”

(BARROS, 1994, p. 46).

5. AS MULHERES DO CONTO LES FÉES

No conto Les Fées, podemos destacar características importantes da menina

mais jovem, por meio do emprego dos adjetivos belle fille, si belle, si bonne, honnête,

douceur, pauvre enfant, pauvre fille, jeune fille, bonne fille (PERRAULT, 1995). No

decorrer da narrativa, Perrault destaca com insistência o quanto a menina mais nova é

bela, reforçando a valorização da estética física nos contos de fadas. A beleza destacada

pelo autor transcende o corpo físico e se faz presente também na índole e no carácter da

garota, e nos leva a inferir que, quando o autor escreveu sua obra, a beleza era um

grande estigma da feminilidade, sendo a mulher bela comparada à figura do anjo,

sinônimo de beleza e bondade.

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A exaltação da beleza que ultrapassa as características físicas presente na

narrativa de Perrault por meio do que Bakhtin (2003, p. 261) denomina como o estilo:

um modo de apresentação do conteúdo (formal, informal) traduzido no plano

composicional do gênero por meio da seleção de “recursos lexicais, fraseológicos e

gramaticais da língua”. Esses recursos empregados pelo autor se materializam inclusive

no uso de intensificadores para exaltar a beleza e/ou a maldade das personagens do

conto, utilizando atributos como: si belle, si bonne e si orgueilleuse. Além das marcas

linguísticas, há o contexto, que pode ser entendido em um sentido amplo, envolvendo o

conhecimento de mundo do leitor, para atribuir sentido ao que está sendo lido. Podemos

afirmar, nesta perspectiva, que o significado não reside apenas em palavras, sentenças,

parágrafos, etc. Esses recursos textuais devem ter suas lacunas preenchidas, de forma

que o resultado se confirme com a visão de mundo e a experiência do leitor.

Ainda sobre as características da personagem mais nova, apontamos que ela

não tem coragem de revidar ou enfrentar a mãe e a irmã mais velha quando a obrigavam

a executar as tarefas mais difíceis da casa, submetendo-a a condição de serva do lar,

conforme se percebe nas palavras a seguir: “la faisait manger à la cuisine et travailler

sans cesse” (PERRAULT, 1995, p. 135). Com isso, podemos inferir que a garota é

conformada com sua posição social subserviente, o que a levava a ser submissa às

pessoas e se prestar aos mais grosseiros serviços, sem demonstrar revolta pela mísera

situação a que era imposta: “cette mère était folle de sa fille ainée, et en même temps

avait une aversion efroyable pour la cadette” (PERRAULT, 1995, p. 135). Apesar

disso, ela não era reconhecida por seus feitos, até porque, só de receber recebeu o dom

da fada, encontrou o príncipe que a tirou de sua condição de subserviente à mãe e à

irmã. Entretanto, ao casar-se com o príncipe, inferimos que a menina, que era submissa

à mãe e à irmã, hipoteticamente, passou a ser submissa ao homem, o que mostra que ela

não alcança sua liberdade pessoal e ainda tem necessidade de casar-se para ser alguém

na sociedade, considerando que os contos de fadas são movidos por convenções sociais,

que instruem as meninas a amar, casar e ter um final feliz. Notamos, com isso, a

condição sócio-histórico-ideológica da mulher considerada bela e boa na época de

Perrault: obediente às convenções sociais e submissa ao homem.

A filha mais velha, outra figura feminina do conto, é descrita à

semelhança da mãe. Fanchon é descrita como: la brutale, ne guère honnête,

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orgueilleuse, si peu obligeante. Características que a levam automaticamente a ser

punida ao longo da narrativa. Esta caracterização se opõe a todas as características

destinadas à filha mais nova, que são vistas como ideais, algo entre anjos e crianças,

dependente da figura masculina; com estrutura frágil e impotente (XIMENES, 2009).

Por não se encaixar nos arquétipos da época, a filha mais velha não foi salva pelo

casamento, recebeu um dom negativo e um final fatal.

Como a filha mais velha, a mãe também é descrita como orgulhosa e

desagradável. Sabemos que, nos contos de fadas, o papel da mãe é aquele de quem

cuida, que se preocupa com a saúde, a segurança e o bem-estar dos que estão sob sua

responsabilidade e sempre deseja o melhor para seus filhos, entretanto, no conto Les

Fées, podemos comparar a mãe a uma madrasta dos contos de fadas, aquela mulher que

representa a maldade, que explora a criança e obriga-a a desempenhar as tarefas

domésticas sem cessar, conforme as palavras do autor: “la faisait manger à la Cuisine et

travailler sans cesse” (PERRAULT, 1995, p. 135). O estereótipo das madrastas

presente no conto de Perrault é geralmente de soberba e orgulho e, em alguns

momentos, os filhos da madrasta possuem o temperamento igual ou pior ao seu. Isso

nos leva a pressupor que a mãe considerava apenas a filha mais velha como sua,

enquanto que a filha mais nova era vista como uma intrusa ou desconhecida, dentro da

sua casa. Ressaltamos que os trabalhos destinados à menina são os afazeres domésticos,

provavelmente, para afastá-la de sua condição especial de beleza, delicadeza e bondade

ou por ser um serviço destinado apenas às mulheres.

Ao criar uma mãe que foge de suas funções socialmente definidas, aquela que

gera, que cuida, que se preocupa com a saúde, a segurança e o bem-estar dos que estão

sob sua responsabilidade, Perrault pode levar o leitor a fazer uma leitura maniqueísta da

obra, opondo o bem e o mal o belo e o feio, etc. O desinteresse da mãe pela filha mais

nova é visível em todos os momentos da narrativa, especialmente, quando a garota

recebe o dom da fada, a mãe não demonstra interesse por ela, ao contrário, vemos que

ela a culpa pela maldição recebida pela filha mais velha e a ameaça com punições.

Nesse momento, inferimos que a mãe não foi dissimulada, pois os sentimentos da mãe

não se alteraram durante a obra.

O conto de Perrault traz também uma personagem revestida de magia e

encantamento: a fada. Ela é um belo ser mitológico que tem a missão de influenciar,

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com seus poderes, a vida de alguns personagens. Esse ser tem a função de proteger e

intervir magicamente no destino para evitar malefícios a sua protegida. A personagem

fada, nesse conto, apresenta-se de duas formas. Para a menina boa, ela está vestida

como uma pobre mulher: “un jour qu’elle était à cette Fontaine, il vint à ele une pauvre

femme qui la pria de lui donner à boire” (PERRAULT, 1995, p. 135), já para a menina

má, a fada aparece como uma linda moça, como notamos na citação: “qu’elle vint sortir

du bois une Dame magnifiquement vêtue qui vint lui demander à boire” (PERRAULT,

1995, p. 137). Com isso, compreendemos que a fada, apesar de ser uma entidade mítica

e boa, apresenta personalidades diferentes de acordo com o caráter das personagens a

quem ela se dirige. Para empregar a punição e o dom, ela mudou de personalidade e

estimulou a demonstração das características boas e más de cada uma das irmãs, ações

que contribuíram para o desfecho da narrativa.

Quanto à maldade e à bondade, elas compõem a dicotomia do conto. Nas

conceituações das duas irmãs, na moralidade e na personalidade da fada, no conto Les

Fées. Podemos observar isso quando a menina boa vai à fonte e recebe o dom, na

seguinte citação:

un jour qu’elle était à cette Fontaine, il vint à ele une pauvre femme

qui la pria de lui donner à boire. <Oui-da, ma bonne mère>, dit

cette belle fille; et rinçant aussitôt sa cruche, ele puisa de l’eau au

plus bel endroit de la Fontaine, et la lui presenta, soutenant

toujours la cruche afin qu’elle bût plus aisément (PERRAULT,

1995, p. 135-6).

Vemos no trecho acima que a filha mais nova demonstra bondade e respeito no

momento de servir a água à fada travestida de pobre mulher. Enquanto que a menina

mais velha, ao tentar receber o mesmo dom da caçula, tenta enganar a fada e demonstra

desrespeito e arrogância diante da rica mulher, sendo punida, como é possível notar na

seguinte citação:

elle prit le logis. Elle ne fut pas plus tôt arrivée à la Fontaine qu’elle

vit sortir du bois une Dame magnifiquement vêtue qui avait pris l’air

et les habits d’une Princesse, pour voir jusqu’où irait la mal-

honnêteté de cette fille. ‘Est-ce que je suis ici venue, lui dit cette

brutale orgueilleuse, pour vous donner à boire? Justement j’ai

apporté un Flacon d’argent tout exprès pour donner à boire à

Madame! J’en suis d’avis, buvez à même si vous voulez’

(PERRAULT, 1995, p. 137).

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A personagem boa é descrita como correta e benevolente, enquanto a má é

egoísta, preguiçosa e arrogante, capaz de praticar atos merecedores de punição. Assim,

diante da fonte de águas claras que representa a chance de purificação as irmãs têm seus

destinos traçados pelos seus atos e pela benevolência ou vingança da fada,

concretizando que os bons merecem o final feliz, tal qual ocorre com a irmã mais nova e

os maus merecem a punição e o escárnio, conforme acontece com a irmã mais velha:

“fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1995, p.15). Suas ações ainda podem ser associadas aos atos da

sociedade que exige que as moças sejam puras, benevolentes e gentis, punindo àquelas

que fogem a este estereótipo. De modo semelhante, os leitores veem os bons com

simpatia e identificação, enquanto os maus recebem o repúdio e afastamento.

A sequência dos fatos nos leva ainda ao dom e à punição recebidos e suas

significações. A menina boa é recompensada com diamantes e rosas. O primeiro é o

“símbolo maior da perfeição [...] da incorruptibilidade” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1995, p.338) e a rosa “designa uma perfeição acabada, uma realização

sem defeito.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p.788), mostrando ainda que a

subserviência e a bondade são merecedoras da felicidade. De modo contrário, a irmã

mais velha que é arrogante e preguiçosa recebe como castigos sapos e serpentes que

representam, no primeiro caso, “fealdade e falta de jeito” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1995, p.803) e, no segundo, “um complexo de arquétipos ligado à

noite fria, pegajosa e subterrânea das origens” que podem representar a vida e a morte

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p.815). Se nos dois casos, a simbologia pode

ser dúbia, no conto prevalece a força do escárnio recebido pela pobre moça que se torna

insuportável aos olhos da mãe e, sendo expulsa da casa materna, morre sozinha na

floresta. Os desfechos recebidos pelas duas irmãs também representam a face desta

sociedade calcada em maniqueísmos morais e sociais. A bondade é recompensada com

o casamento, símbolo de realização moral e social das mulheres, e a arrogância e a

preguiça com a solidão e a morte.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O estudo do conto Les Fées, de Charles Perrault, realizou-se, primeiramente, a

partir dos três pilares constitutivos dos gêneros discursivos – construção composicional,

tema e estilo. No entanto, com a conclusão da pesquisa, que se intitulava: Os contos de

fadas de Charles Perrault: uma leitura de As Fadas, realizamos a análise da

personagem feminina, voltada para o estilo bakhtiniano. Elegemos esse viés, porque é

ele que norteia e permite, a partir de traços linguísticos e contextuais, a construção de

uma imagem feminina, presente no texto de Perrault.

Com essa análise feminina, notamos as dimensões culturais e sociais que

regiam o contexto no qual a obra foi escrita, pois consideramos a posição feminina

dentro do contexto sócio-histórico-ideológico dos contos de Perrault e a partir da

linguagem empregada pelo autor da obra. Com isso, verificamos que o exagero presente

nos contos, principalmente por meio dos intensificadores empregados, tem a intenção de

polarizar personagens e leitores para facilitar uma relação identitária entre os envolvidos

na leitura.

Apontamos também que o autor, ao caracterizar uma personagem, utiliza

discursos construídos e existentes na época, por exemplo, o discurso de mulher

idealizada, e, a partir disso, cria novos personagens, miscigenando o discurso de

personagens da vida real com o discurso do sujeito da narrativa, o que corrobora para a

formação dos arquétipos femininos definidos na época de Perrault, no século XVII. A

construção/desenvolvimento das personagens boas é marcada pelos estereótipos da

mulher frágil e indefesa, o eterno feminino, na tentativa de imobilizar a ideia que

corresponde ao senso comum, da mulher clássica, aquela figura feminina, com

qualidades quase abstratas, como maternidade, beleza, suavidade, doçura.

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