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Revista de Geografía Norte Grande, 38: 5-20 (2007) Uma leitura geográfica da fome com Josué de Castro 1 José Jakson Amancio Alves 2 RESUMO O primeiro passo no estudo do fenômeno da fome na obra de Josué de Castro foi o de precisar o conceito de fome através do método geográfico. Tornar pública a existência da fome através da denúncia de suas causas e conseqüên- cias foi seu grande objetivo a partir de suas obras; a primeira publicada em 1947, “A Geografia da Fome”, e a segunda publicada em 1951, “Geopolítica da Fome”. Em ambos os livros, Josué inicia sua apresentação do fenômeno da fome através de um tratamento geográfico da questão. Depois em “Geopolítica da Fome” Josué de Castro trata da face da fome no mundo por continentes. A importância destas obras se revela a todo o momento, pois o fenômeno da fome continua a existir e a se revelar cada fez mais forte sobre a superfície da terra. Palavras-chave: Fome, método, Geografia, Josué de Castro, Geopolítica. ABSTRACT The first step in this study about the phenomenon of hunger in the work of Josué of Castro was defining the concept hunger through the geographical method. To turn public the existence of hunger through the accusation of its causes and consequences was one of his great objectives of his work. A first publication dates from 1947 - the Geography of the Hunger - and a second one published in 1951 - Geopolitics of the Hunger -. In both books, Josué begins his presentation of the phenomenon of hunger through a geographical treatment of the subject. Then in “Geopolitics of Hunger” Castro treats hunger at the continental level. The relevance of these works is revealed at all moments, since the phenomenon of hunger continues, revealing that it continues to exist on the surface of the world. Key words: Hunger, method, Geography, Josué de Castro, Geopolitics. Josué Apolônio de Castro nasceu no Re- cife, em 05 de setembro de 1908. Filho úni- co de Manoel Apolônio de Castro e de Jose- pha Carneiro de Castro. Passou a interessar-se pelos estudos graças à influên- cia do educador e pedagogo Pedro Augusto Carneiro Leão, o qual, segundo Josué, foi a figura humana que mais influência teve em sua vida. Josué de Castro não via fronteiras sociais nem culturais que não pudessem ser ultra- passadas na conquista da valorização e re- conhecimento de seu trabalho. Os seus vá- rios artigos e crônicas publicadas na época de estudante já revelavam a multiplicidade de interesses; ciências, literatura, pintura e cinema foram alguns dos temas abordados naquele período. Aos 24 anos torna-se livre- 1 Artículo recibido el 16 de abril de 2007 y acepta- do el 10 de septiembre de 2007. 2 Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Hu- manidades - Região Nordeste do Brasil (Brasil). E-mail: [email protected]

Uma leitura geográfica da fome com Josué de Castro · Fome” Josué de Castro trata da face da fome no mundo por continentes. A importância destas obras se revela a todo o momento,

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5UMA LEITURA GEOGRÁFICA DA FOME COM JOSUÉ DE CASTRO Revista de Geografía Norte Grande, 38: 5-20 (2007)

Uma leitura geográfica da fome comJosué de Castro1

José Jakson Amancio Alves2

RESUMOO primeiro passo no estudo do fenômeno da fome na obra de Josué de Castrofoi o de precisar o conceito de fome através do método geográfico. Tornarpública a existência da fome através da denúncia de suas causas e conseqüên-cias foi seu grande objetivo a partir de suas obras; a primeira publicada em1947, “A Geografia da Fome”, e a segunda publicada em 1951, “Geopolítica daFome”. Em ambos os livros, Josué inicia sua apresentação do fenômeno da fomeatravés de um tratamento geográfico da questão. Depois em “Geopolítica daFome” Josué de Castro trata da face da fome no mundo por continentes. Aimportância destas obras se revela a todo o momento, pois o fenômeno da fomecontinua a existir e a se revelar cada fez mais forte sobre a superfície da terra.

Palavras-chave: Fome, método, Geografia, Josué de Castro, Geopolítica.

ABSTRACTThe first step in this study about the phenomenon of hunger in the work of Josuéof Castro was defining the concept hunger through the geographical method. Toturn public the existence of hunger through the accusation of its causes andconsequences was one of his great objectives of his work. A first publicationdates from 1947 - the Geography of the Hunger - and a second one published in1951 - Geopolitics of the Hunger -. In both books, Josué begins his presentationof the phenomenon of hunger through a geographical treatment of the subject.Then in “Geopolitics of Hunger” Castro treats hunger at the continental level.The relevance of these works is revealed at all moments, since the phenomenonof hunger continues, revealing that it continues to exist on the surface of theworld.

Key words: Hunger, method, Geography, Josué de Castro, Geopolitics.

Josué Apolônio de Castro nasceu no Re-cife, em 05 de setembro de 1908. Filho úni-co de Manoel Apolônio de Castro e de Jose-pha Carneiro de Castro. Passou ainteressar-se pelos estudos graças à influên-cia do educador e pedagogo Pedro AugustoCarneiro Leão, o qual, segundo Josué, foi afigura humana que mais influência teve emsua vida.

Josué de Castro não via fronteiras sociaisnem culturais que não pudessem ser ultra-passadas na conquista da valorização e re-conhecimento de seu trabalho. Os seus vá-rios artigos e crônicas publicadas na épocade estudante já revelavam a multiplicidadede interesses; ciências, literatura, pintura ecinema foram alguns dos temas abordadosnaquele período. Aos 24 anos torna-se livre-

1 Artículo recibido el 16 de abril de 2007 y acepta-do el 10 de septiembre de 2007.

2 Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Hu-manidades - Região Nordeste do Brasil (Brasil).E-mail: [email protected]

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docente em Fisiologia da Faculdade de Me-dicina do Recife com a tese “O problema fi-siológico da alimentação no Brasil”. Estatese já indica o caminho e a importânciaque o autor atribui ao campo da alimen-tação, o que caracterizará toda sua obra.

Em 1935 se muda para o Rio de Janeiroonde assume a cátedra de Antropologia daantiga Universidade do Distrito Federal e em1940 se torna professor catedrático de Geo-grafia Humana na Faculdade Nacional de Fi-losofia da Universidade do Brasil. Neste pe-r íodo destaca-se a publicação de “AAlimentação Brasileira à Luz da GeografiaHumana” de 1937, sendo a primeira publi-cação na qual Josué de Castro se posicionaabertamente a serviço do “método geográfi-co”. Tratando diretamente da Geografia bra-sileira é imprescindível apontar para sua ins-titucionalização a partir da década de 30.São Paulo e Rio de Janeiro se tornam re-ferência para a Geografia Nacional e têmuma característica em comum: ambas sãofortemente ligadas à escola francesa de Geo-grafia que chega ao país através das “mis-sões francesas”. A relação com os professo-res franceses como Pierre Deffontaines, porexemplo, certamente motivou o modo comoJosué de Castro passa a arrostar a ciênciageográfica e seu método de pesquisa.

Com relação à conjunção política, tendoem vista o cenário Nacional, pode-se dizerque Josué de Castro viveu três fases da histó-ria Nacional: De 30 a 45 vive sob o governode Vargas; de 45 a 64 vive a curta experiên-cia democrática, e de 64 até 73 presencia atomada de poder por parte dos militares. Jácom relação ao contexto político Internacio-nal, Josué de Castro testemunha os horroresda Segunda Guerra Mundial e vive forte-mente a bipolarização do mundo em tornode EUA e Ex-URSS durante a Guerra Fria.

Esse estudo trata de um resgate do méto-do utilizado por Josué de Castro no estudoda fome em suas diversas dimensões. Essadescoberta foi de grande importância para ageografia, como também, a continuidade deseu estudo e domínio na a aplicação do mé-todo que se traduziu em tantas obras, esque-cidas ou desconhecidas por tantas acade-mias nos dias atuais, principalmente noBrasil, em que o valor geográfico das obras

desse grande mestre da geografia brasileira emundial vem à tona nesse artigo, pelo fatodo grande passo dado na atualidade pelogoverno brasileiro para combater a fome.

Um outro aspecto em especial diz res-peito em conhecer pessoas e pensamentos,refletir sobre atos e ações, pensar o futurosão procedimentos para nutrir as espe-ranças, porque aproxima os pesquisadoresde hoje e o de ontem.

O uso do método geográfico

Os primeiros estudos de Josué de Castro:“O Problema Fisiológico da Alimentação noBrasil” de 1932, “O Problema da Alimen-tação no Brasil” de 1933, “Condições deVida das Classes Operárias do Recife” e“Alimentação e Raça” ambos de 1935”;apresentam certamente uma inclinaçãomaior para as áreas da Nutrição e da Antro-pologia, o que muda a partir de 1937 com apublicação de “A Alimentação Brasileira àLuz da Geografia Humana”.

Neste importante livro Josué de Castro afir-ma que para o estudo da alimentação, devidoa sua complexidade, é necessário abordar di-versos aspectos da realidade e que “o únicométodo eficaz para essa análise é o métodogeográfico” (Castro, 2006). Neste sentido Jo-sué de Castro entende o método geográficocomo um método de síntese de diversos con-hecimentos, sejam eles naturais ou humanos,que ocorrem sobre a superfície da Terra.

A base da definição do método aplicadopor Josué de Castro está nos quatro “princí-pios geográficos” que podem ser notadosem toda sua obra. O primeiro princípio seriao da localização, extensão e delimitaçãoque determina que o geógrafo deve semprelocalizar e delimitar a ocorrência dos fenô-menos que ocorrem sobre a superfície da Te-rra. O segundo princípio seria o da coorde-nação ou correlação onde o entendimentode cada fenômeno nunca se dá de modoisolado, mas sempre levando em conside-ração outros fenômenos ocorridos em outraspartes do globo terrestre. O terceiro princí-pio seria o da conexidade que aponta para aconexão dada pelo meio aos fenômenos im-pondo uma unidade terrestre. E o quarto eúltimo princípio geográfico seria o da causa-

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7UMA LEITURA GEOGRÁFICA DA FOME COM JOSUÉ DE CASTRO

lidade que estabelece que os geógrafos aoexaminar qualquer fenômeno devem atentarpara suas causas e efeitos. A opção pelo mé-todo geográfico possibilitou a Castro umaanálise mais ampla sobre as necessidadesfundamentais das populações.

A partir deste momento Josué de Castrotrilha um longo caminho marcado por conti-nuidades e descontinuidades. Antônio Alfre-do Teles de Carvalho aponta para uma claradistinção na definição do método na obrade Josué de Castro. Segundo ele, haveriauma primeira etapa mais descritiva que seestende até meados da década de 40 e umasegunda etapa crítica a partir de 1946, datada publicação de “Geografia da Fome”. Po-demos aqui denominar esta primeira etapacomo uma fase explicativa, onde Josué deCastro lança as bases para suas publicaçõesque tratarão diretamente do fenômeno dafome (“Geografia da Fome” e “Geopolíticada Fome”) adotando uma fase mais crítica.

É necessário ressaltar que a escolha da te-mática da fome, como cerne de sua obra,tem tanto um significado científico de cunhopolítico, que se manifestará durante toda suaobra, como um elemento potente na reali-zação da crítica ou denúncia das relações so-ciais existentes. Podemos dizer que este mo-mento mais crítico atinge o ápice no ano de1957 quando Josué de Castro publica “O Li-vro Negro da Fome” e adota claramente umainterpretação do fenômeno atravessada peloconceito de subdesenvolvimento.

Segundo Gonçalves e Fernandes (2000) afome é a questão central dos estudos e daluta de Josué de Castro. Por meio desse eixoprincipal, o autor dimensiona suas análisesem diversos outros temas como, por exem-plo, a reforma agrária, a questão ecológica,o subdesenvolvimento e as desigualdadessociais. Afirma, explicitamente, que a fomeé o problema ecológico número um na me-dida que todo ser vivo deve se alimentarpara se manter vivo.

Descoberta do conceitoda fome

Ao longo de sua obra Josué de Castrodesenvolveu diversos temas de relevância

para a Geografia e para a sociedade comoum todo. Mas, certamente, a temática dafome foi a que mais tomou sua atenção eque acabou por torná-lo internacionalmentereconhecido. Josué revela no prefácio do li-vro “Homens e Caranguejos” “a descobertada fome” nos mangues e alagados de Recife.

São duzentos mil indivíduos, duzentosmil cidadãos feitos de carne de caranguejos.O que o organismo rejeita volta como detri-to para a lama do mangue para virar caran-guejo outra vez. Nesta aparente placidez docharco desenrola-se, trágico e silencioso, ociclo do caranguejo. O ciclo da fome devo-rando os homens e os caranguejos, todosatolados na lama (Castro, 2003).

Sua vida e sua obra são marcadas por es-sas experiências, que mesmo tendo se for-mado em Medicina é na Geografia que elese realiza e tornar-se reconhecido nos estu-dos e na luta que trava contra a fome. Provadisso é seu estudo de 1935 “Condições deVida das Classes Operárias do Recife” onde,após poucos anos de ter completado sua for-mação como médico, dirige um estudo vol-tado para a Geografia Humana, dando ênfa-se às condições de vida, moradia ealimentação das classes mais pobres do Re-cife. Porém a opção pelo fenômeno da fomenão é dada somente pelo contexto. É impor-tante notar que esta preferência é tambémintencional e tem uma perspectiva política.Castro visava através dela agitar tanto omeio acadêmico como o meio político Na-cional e Internacional, que por anos virou ascostas para este grave problema que afetavae ainda hoje mantém refém grande parte dapopulação brasileira e mundial, deveras inti-tulada como pobreza.

Em 1932, por intermédio do Departa-mento de Saúde Pública do Estado de Per-nambuco, orientou a realização da primeirapesquisa cientifica sobre as condições devida do brasileiro no Recife, intitulada Ascondições de vida das classes operárias noNordeste, entrevistando 850 famílias em trêscomunidades de grande concentração detrabalhadores. Com uma abordagem inédita,o estudo virou pelo avesso a discurssão daquestão alimentar no Brasil, repercutindoem todo o País e provocando a realizaçãode pesquisas semelhantes em outros Estados.

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Esse estudo teve papel de destaque no pro-cesso que culminaria na criação do saláriomínimo, em 1940. Foi inicialmente publica-do pela Diretoria de Estatística e Publicida-de do Ministério do Trabalho, sob o titulo AsCondições de Vida das Classes Operárias,tratando do problema da subsistência ali-mentar em seus aspectos econômicos e so-ciais.

Com essa pesquisa, Josué de Castro pro-curou demonstrar, através de dados estatísti-cos, que “o fator primário da alta mortalida-de da população brasileira é o estado depobreza que condiciona a fome coletiva”,documento assim, segundo ele, “uma faseda evolução econômica e social do Nordes-te”. Abrindo caminho para esse gênero depesquisa, concentrando-se na Geografia ena Antropologia, influenciando no surgi-mento de investigações semelhantes emoutras áreas do País.

Os estudos sobre alimentação e nutrição,do geógrafo Josué de Castro tornou-se umareferência em todo o mundo como especia-lista nos problemas da fome e do subdesen-volvimento em geral. Josué de Castro levan-tava comprovações radicais de uma série deidéias, não só pela seriedade e audácia comque enfrentou o grande tabu, a fome, maspela denúncia que fez da situação em quevivia a maioria da população do país, usan-do metodologia eminentemente geográfica,analisou as suas características físico-natu-rais e sociais. “Denunciei a fome como fla-gelo fabricado pelos homens, contra outroshomens”, afirmava Josué de Castro, apon-tando a dimensão social do problema.

As soluções para eliminar essa tragédiadevem partir, portanto, de uma abordagemmais ampla, seguindo os ensinamentos domestre Josué, que tratava a fome como “aexpressão biológica dos males sociológi-cos”. A fome passou a ser o objetivo de seusestudos. Passou a estudá-la cientificamente,tal como ela se manifesta em nosso país, pu-blicando sua conhecida obra Geografia daFome (1946), na qual apresenta o problemada subnutrição e da carência alimentar emtoda a sua realidade. Até então a fome eratratada apenas em sua variante biológica,como a necessidade de comer. Josué trouxepara a analise do tema aspectos econômi-

cos, políticos, sociais e geográficos. O livrofez o primeiro mapa da fome do Brasil, divi-dindo o País em cinco regiões, sendo queduas eram de fome (Norte e Nordeste) e asdemais de subnutrição. O livro foi traduzidoem 25 idiomas e tornou Josué de Castroconhecido no mundo. Pôs em alvoroço oambiente intelectual e político brasileiro,pois o livro aflorou algo que todos tentavamocultar, a fome.

Na época, o ufanismo permeava o senti-mento Nacional. O livro de Josué ia à con-tramão dessa tendência. Por isso foi acusadode estar passando para o mundo a imagemde um Brasil “país de famintos”. Como pen-sador conseqüente não se limitou a dar odiagnóstico da fome do mundo, passou tam-bém a orientar como se poderia desenvolvera luta pela sua erradicação, a questão ali-mentar passava a ter forte prioridade naspreocupações governamentais e já se co-meçava a entender que os grandes proble-mas não dependiam apenas de aspectos ét-nicos ou climáticos, mas do sistema socialgerado pela colonização e sugeria a necessi-dade de se desenvolver uma política de co-rreção dos seus impactos negativos. Comabsoluto domínio do método geográfico, Jo-sué foi o primeiro a dizer: “Existe fome noBrasil”.

Josué de Castro terá sido o homem daciência e o homem da visão política, no seutempo, de maior significação e de maior re-percussão. O autor célebre, o cientista céle-bre e o homem de visão política aqui está ofruto de seus estudos, da sua investigação,da sua extraordinária capacidade de refletir,deveres e compromissos com a humanidade,no seu talento de escrever e no seu talentode dizer. Josué de Castro marca de forma ex-traordinária o seu tempo, o meu tempo e otempo de Milton. Não sei de ninguém quetenha sido como ele: uma expressão daciência brasileira em que determinados ins-tantes foi uma espécie assim de confron-tação com pensamentos, os mais consolida-dos, os mais realçados das ref lexõesinternacionais (Pires, 1996).

Foi através da leitura deste livro [Geogra-fia da Fome] que me tornei um militante dascausas da população [...] Muitos, tambématravés da leitura de Josué de Castro torna-

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ram-se colegas de luta, companheiros degrande atividade profissional. “Para se daruma dimensão maior, tenho a impressão enão apenas aqui no Brasil, mas no mundointeiro, esse livro foi traduzido em 26 idio-mas e de que “fez a cabeça” de muita gente,revelando uma realidade, que até então,nunca havia sido mostrada de forma tão dra-mática” (Batista, 1996).

Quero dizer, pois, que a sua palavra nãocaiu em vão e se o lábaro que nos mostroude certo modo, neste país que fala em sub-nutrição, não fala mais de fome, esse lábarode certa forma, por muito tempo não foi er-guido, ou foi erguido de maneira equívocapara que justamente, logo tivesse os frutosdesejados ainda é tempo de retomar o ca-minho que ele nos mostrou e de ganhar abatalha. Imagino, pois, que a lição de Josuéde Castro é uma lição permanente e quedeve ser recebida com a emoção que elamerece (Santos, 1996).

Josué de Castro foi um homem que viveuum amor intenso por esse país. E a forma demostrar esse amor foi denunciar através dasua imensa capacidade, da sua enormecompreensão social, a fome que sempre gra-fou nesse país e que as elites descompromis-sadas com o que há de mais importante noBrasil, sempre ignoraram e fizeram questãode ignorar e que agora o destino está aí,exatamente mostrando e repetindo, seguin-do os passos de seu mestre e mostrando exa-tamente que a fome está aí. No momentoem que o país tem a 8ª ou 9ª economiamundial, já teria condições de dar a essaspessoas uma vida melhor, escola, cultura e,sobretudo o que comer e nada se faz deconcreto. Um país rico, um país que tem aspotencialidades do Brasil e que hoje conti-nua da mesma forma como Josué denuncioue mostrou, analisou, pesquisou, continuaainda com essa enorme gama, com esseenorme número de excluídos sociais (Celso,1996).

“... a palavra proletariado, como indica-dor de prole, de muitos filhos, para indicaras camadas mais pobres é a indicação exatada tese de Josué, que nações mais populosasdo mundo não são pobres porque são popu-losas ou porque têm fome, são populosasporque têm fome e porque são pobres. A co-

ragem de pensar isso diante do mundo, acoragem de levantar essa tese, era algumacoisa de extraordinário, que teria colocadoqualquer pessoa tímida com certo receio. Eume lembro de muitos falsos cientistas, des-ses que só sabem ler o já escrito, só sabempensar o já pensado, a perplexidade deles, ea raiva e o ódio de Josué, a perguntar, masonde, em que autor, onde, onde ele se ba-seia para dizer isso? [...] Josué foi este ho-mem, este pensador que nós tivemos quenasceu entre nós, que cresceu que amadure-ceu aqui e que não foi um homem, um inte-lectual, mais um dos que lêem o que osoutros escreveram. Foi o mais lido dos inte-lectuais brasileiros. Nenhum de nós conse-guiu publicar mais livros, em tantas edições,com tantas tiragens como Josué” (Ribeiro,1983).

Josué fala de uma humanidade entregueaos instintos primitivos porque se de umlado se justificava, perfeitamente, a falta desono daqueles que não tinham alimento, deoutro lado, não se podia compreender a ati-tude impassível daqueles que tendo sobrademais no seu bem estar, não desejavamatender e ajudar a atenuar a situação de mi-séria daqueles que se achavam dentro dos _de famintos. E no mundo, hoje, sobram cadavez mais as verbas para armamentos e cadavez minguam mais as verbas para a assistên-cia social. Enquanto homens do Nordeste sevêem obrigados a consumir a sua dieta delagartos e cobras, outros realizam banquetesrequintados (Lima Sobrinho, 1983).

O Prof. Josué de Castro bem poderia terdado ao seu l ivro de alcance mundial“Geopolítica da Fome”, o título de “Fome ePolítica” por que, nesta obra, surgem pers-pectivas políticas de primeira grandeza.Mas, como salienta o próprio Autor, semprefoi considerado pouco conveniente, entre ospovos bem alimentados, discutir-se a fomedos menos afortunados-fome que nunca foiassunto muito popular em matéria de políti-ca. E, no entanto, a fome tem sido atravésdos tempos, a mais perigosa das forças polí-ticas. Foi a fome que precipitou a RevoluçãoFrancesa. Uma multidão de mulheres doscortiços de Paris marchou até a sede do Par-lamento, bradando por pão. Os políticos fu-giram. As mulheres, com suas hostes re-forçadas pelos homens, rumaram para a

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10 R E V I S TA D E G E O G R A F Í A N O R T E G R A N D E

Bastilha. A queda da Bastilha foi o golpe demorte contra o sistema feudal na França, ini-ciando uma nova era. Na atual crise mun-dial, livro como a “Geopolítica da Fome” éde vital importância. Se os políticos de to-das as nações do mundo pudessem esquecerpor um momento os seus conflitos políticose lessem “Geopolítica da Fome”, sem idéiaspreconcebidas, adquiririam certamente umavisão mais sadia dos problemas universais eteriam, assim, maior possibilidade de salvarnossa civilização de perecer numa terceiraguerra mundial (Boyd Orr, 2007).

O livro de Josué de Castro, em que sãoestudadas, em seu quadro geográfico, as in-suficiências de alimentação dos grupos hu-manos vem, de certo modo, ao encontro devárias ordens de preocupações. Primeiro,uma angústia despertada em todas as almaspela lembrança de misérias recentes e pelaconsciência que temos, agora, de sua persis-tência em várias regiões. Depois, o senti-mento de uma contradição entre duas sériesde fatos, o crescimento demográfico atualda espécie humana e a possibilidade de ace-leração deste crescimento pela generali-zação dos cuidados higiênicos, dum lado, ede outro lado, o balanço dos recursos ali-mentares. A velha fórmula de Malthus já nãoé aceitável, mas a inquietação que a inspiraainda perdura. Enfim, os progressos da fisio-logia da alimentação orientaram para essesproblemas todos aqueles que, a um título ououtro, se têm interessado pela ecologia hu-mana. Seja permitido dizer que este é o meucaso. O movimento natural do pensamentodo ecologista o conduz para o estudo dascondições de nutrição dos grupos humanosno seu quadro geográfico, independente-mente de toda preocupação de atualidade(Sorre, 2007).

Diante de certos livros é que a gente vêcomo é fácil e sem importância o ofício deliterato. Sim, são realmente os cientistas quenos botam complexo de inferioridade. Por-que afinal de contas fazer literatura não émais do que coisa gratuita e à toa, anotarimpressões, traduzir um estado de alma, ourelatar algum sucesso havido, sempre defor-mado. Em suma: tudo improvisação, falsifi-cação, fingimento. Mas escrever um livroque informe, ensine, descubra verdades en-cobertas ou controvertidas, isso sim, repre-

senta, na realidade, um mundo de honesti-dade, esforço, labuta, rigor além do talentonatural que exige em grandes doses. E é,pois o sentimento da minha inidoneidadeque me afeta ao tentar um comentário emtorno do livro do ilustre professor Josué deCastro: A “Geografia da Fome” (Queiroz,2007).

“A Geografia da Fome” é, sem dúvida,um dos mais valiosos livros publicados naúltima década. Os fatos e teorias nele conti-dos são de imediata, radical e fundamentalimportância para a humanidade. Seu tema éa pior enfermidade do mundo, mais comume mais mortífera do que as guerras e pestesem conjunto (Holloway, 2007).

O prof. Josué de Castro enfrentou justa-mente esse assunto tabu (Fome), difícil, ne-gaceado, escondido nos relatórios e cobertocom os retalhos de sinônimos bonitos comomentiras. É um sentimento primário que hu-milha a nossa cultura de raciocínio. Não hu-milha a concepção instintiva de civilização,mas os elementos formadores, minando-lheso interior com denúncia de uma desanima-dora e diária verdade natural (Cascudo,2007).

Na verdade, Josué de Castro reunia emuma só pessoa as qualidades da inteligên-cia, da agilidade mental, da argúcia na ob-servação, e da coragem em denunciar as in-justiças e os dramas sociais, apontando suascausas e alternativas para dominá-los e porfim às suas conseqüências. Sendo médicode formação profissional, especializou-seem fisiologia e dedicou-se a problemas denutrição. A partir de observações individuaisde seus clientes, passou a procurar uma di-mensão social para o problema da alimen-tação escrevendo um livro sobre a “Alimen-tação Brasi leira à Luz da Geograf iaHumana” (Andrade, 1981).

A sociedade de opulência, em que nosencontramos por direito ou como satélite,institucionalizou a fome. Neste momentoqueria render minha homenagem e lem-brança à memória de Josué de Castro umbrasileiro universal. Josué de Castro, que foiPresidente do Conselho da FAO e o primeirotambém a prever os problemas que hoje en-frentamos. Josué de Castro sintetizou sua

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análise sociológica e cultural em seu livrointitulado “Geografia da Fome”, que depoisde um quarto de século continua atual, par-tindo de um modelo crítico da sociedadeimperialista. Nesta hora decisiva para aFAO, momento em que é indispensável in-vestir no homem assegurando seu pleno des-envolvimento, o México se inclina respeito-samente diante de Josué de Castro, homemque, do Nordeste do Brasil, ergueu, movidopor sua angústia de médico e sociólogo doTerceiro Mundo, sua experiência em teoria esua teoria em conhecimentos antropológicose objetivos do mundo, onde o problema dofuturo ameaça, pelas realidades imediatas, oque há de mais premente, a saber, a alimen-tação e a agricultura. Pela memória e pelocoração, nós nos rejubilamos por este brasi-leiro extraordinário que conosco lutou parafazer reinar a justiça e a solidariedade inter-nacionais, Josué de Castro não é mais um denós. Poderíamos dizer como os Romanos“Ele viveu” e dizer como ele “somente solu-cionando os problemas atuais poderemostentar resolver os do futuro. A vida do ho-mem está em marcha para uma nova socie-dade. Ou nós a construiremos com as nos-sas mãos e nossa intel igência, ouassistiremos, inevitavelmente, à sua des-truição violenta do sistema que impede suarealização pelo egoísmo e particularismo(Alvarez, 1974).

A notícia da morte súbita de Josué deCastro, ocorrida em Paris, deixa consternadaesta Universidade que tinha nela um de seusmais talentosos mestres. Era desta extirpe dehomens raros, a quem jamais seria possívelignorar, ou ficar indiferente, tal a força desua personalidade e o vigor de sua atuação,sempre combativa, às vezes contundente eincômoda. Dotado de grande inteligência eimaginação fértil, servia-se da palavra fácil,escrita ou falada, para defender suas idéias,que convergiam, afinal, para o grande sonhode construir um mundo melhor, onde a mi-séria e a fome não sacrificassem milhões depessoas. Em Josué de Castro realizou-se adifícil harmonia do sonhador com o homemde ação. Dou testemunho de quem o conhe-ceu de perto, privando de sua amizade porcerca de trinta anos. Apreciei-lhe o incon-formismo, o ideal, o ânimo combativo, osdevaneios e as realizações. Ele usou a pró-pria angústia para dar um sentido humano e

social à sua obra, que há de ressurgir na ad-miração póstuma (Fraga Filho, 1973).

Fredéric Joliot Curie, grande sábio egrande homem, falecido recentemente, cos-tumava dizer, ao falar da América Latina, terlido nos últimos anos poucos livros tão im-portantes quanto a “Geopolítica da Fome” esua voz era veemente ao fazer o elogio daobra e do autor. De Josué de Castro e de suaobra de escritor e cientista, sobretudo daGeografia e da Geopolítica da Fome ouvi fa-lar, tanto em Paris, como em Moscou, tantoem Viena e Berlim, quanto em Pequim eUlan Bator, cidade encravada nas Montan-has da Mongólia. Por toda parte onde se lê eonde o trabalho da inteligência é respeitadoe amado. Possuímos um pequeno grupo dehomens de ressonância universal: o políticoOswaldo Aranha, o arquiteto Oscar Nieme-yer, os pintores Portinari e Di Cavalcanti, ocompositor Villa-Lobos, uns poucos. Onome mais conhecido de todos, no sentidoda extensão desse conhecimento pelas fron-teiras do mundo, é, no campo científico esocial, o de Josué de Castro. As traduçõesdos seus livros, o eco despertado por suaobra sobre os problemas da fome, no mundomoderno, fizeram dele um dos grandes no-mes, dos mais célebres e dos mais respeita-dos da cultura contemporânea. Seus admira-dores chamam-se Pearl Buck, Ann Seguers,Vercors e Joliot-Curie, Kuo-Ko-Jo e Lisenko,para citar apenas meia dúzia entre centenasde milhares (Amado, 1996).

É este o mais encorajador, o mais espe-rançoso e o mais generoso livro que eu já liem toda a minha vida. Livro escrito por umfamoso cientista, um técnico que sabe o queestá dizendo, um conhecedor dos problemaspráticos, um homem do mundo no melhorsentido da palavra, porque conhece o mun-do e suas populações e apresenta-nos numaobra magistralmente escrita o conhecimentofundamental para felicidade e paz dos ho-mens. É por esta razão que eu afirmo queeste livro - A Geopolítica da Fome, do emi-nente cientista Josué de Castro – é o maisimportante livro que já foi publicado nestesconfusos, perigosos e ridículos temposatuais. Ridículos porque, embora a paz sejaprática e possível, indivíduos há, em váriaspartes do mundo, tocando seus tamborespara manufaturar uma guerra (Buck, 2007).

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12 R E V I S TA D E G E O G R A F Í A N O R T E G R A N D E

Quantos professores, jovens e militantesdo Brasil conhecem ou ouviram falar denossos queridos Josué de Castro, Paulo Frei-re, Darcy Ribeiro, João do Vale, Patativa doAssaré, Câmara Cascudo, Caio Prado Junior,Nelson Wernek Sodré e tantos outros. Essespensadores foram “esquecidos” pela classedominante, para que as gerações atuais nãopudessem se apropriar de seu pensamento,de seu exemplo, de suas reflexões. E nosproibiram de conhecê-los porque sabem queseu pensamento e ação são revolucionários.Revolucionários não numa retórica agitado-ra de gritar loas à mudança. Revolucionáriosno verdadeiro sentido de Marx e de CaioPrado Júnior: de revolucionar as estruturaseconômicas e sociais, para que o povo pos-sa se apropriar coletiva e socialmente dosbens da natureza e das formas de produziros bens, utilizando-os em favor da melhoriade vida material e cultural de todos e nãoapenas de uma minoria, como sempre acon-teceu nestes 500 anos. Nossa obrigação,como militantes estudiosos e dedicados quedevemos ser, se quisermos honrar a memó-ria de Josué de Castro, é estudar suas obras,compreendê-las, utilizá-las para transformarnossa realidade. Recuperar seu pensamentoe ação para que todos os estudantes e mili-tantes o conheçam (Stédille, 2007).

Josué percebia a necessidade de refor-mas, sabia manter sempre a modéstia entreo presumível e o ilusório, entre a fato e autopia, de fato foi um homem além do seutempo. Viu a fome de tal forma que só hojeé que o mundo enxerga. Pois deu a fomeuma forma política e cientifica a luz da geo-grafia. No Brasil existe a característica de seocultar seus grandes problemas, como sobrea Amazônia, Agroenergia, Transposição doRio São Francisco, etc. Porém, naquela épo-ca tínhamos um Josué, que anunciava, con-tradizia e denunciava o mal contexto vividoe com coragem expõem ao mundo que afome existe no Brasil e em outras partes, e éum problema político e do estado, que essaé uma questão em si mesmo que tem de serenfrentada. Passados tantos anos da desco-berta da fome como um problema político,no Brasil ela sempre se encontra tão atualcomo nunca, e as tentativas de acabar sãomuitas, através de diversas entidades nãogovernamentais, Ongs, etc., porém todas asreceitas caminho sobre uma única cartilha,

as orientações do mestre Josué de Castro,que, como exemplo, uma resposta de Furta-do para acabar com o problema da fomecom base na leitura geográfica de Castro,ele afirma:

Visto apenas do ângulo da fome, o pro-blema da pobreza pode ter no Brasil soluçãorelativamente fácil. Mas no Brasil não há es-cassez de alimentos. Somos um país expor-tador de alimentos, temos um potencialagrícola enorme. Basta, num primeiro mo-mento, assegurar o acesso a uma cesta bási-ca de alimentos (Furtado, 2002).

No polêmico tema da fome, deve se falarobrigatoriamente em pobreza foi isso que Jo-sué descobriu nos mangues do Recife. Nãose combate fome sem combater pobreza.

Segundo Ricardo Abramovay a palavrafome tem dois significados bem distintos:Um deles é o de apetite, vontade de comer,um fenômeno instintivo que nos leva a bus-car alimentos e, conseqüentemente, preser-var a nossa vida; O outro, de subalimen-tação ou desnutrição, tem a ver com aimpossibilidade de se alimentar ou com ofato de se alimentar de forma errada.

Para Carlos Augusto Monteiro, do Depar-tamento de Nutrição da Faculdade de SaúdePública da Universidade de São Paulo, épreciso que se defina com clareza a dimen-são que cada um desses “três flagelos” -apobreza, a desnutrição e a fome-alcançamem nosso país. -Pode-se dizer que pobrezacorresponde à condição de não satisfaçãode necessidades humanas elementares comocomida, abrigo, vestuário, educação e assis-tência à saúde.

As definições operacionais de pobrezalevam em conta a renda das famílias e achamada linha de pobreza corresponde aomínimo de renda que as pessoas devem terpara satisfazerem suas necessidades básicas.Quando a linha da pobreza se baseia ape-nas no custo da alimentação, estamos diantede uma condição de pobreza extrema ou in-digência. As deficiências nutricionais, porsua vez, são doenças que decorrem da in-gestão insuficiente de energia e de nutrien-tes ou ainda do mau aproveitamento bioló-gico dos alimentos ingeridos, e pode ser

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13UMA LEITURA GEOGRÁFICA DA FOME COM JOSUÉ DE CASTRO

perfeitamente diagnosticada por meio deexames laboratoriais.

Fome como fenômeno na obrade Josué de Castro

O primeiro passo no estudo do fenôme-no da fome na obra de Josué de Castro deveser o de precisar o conceito de fome que oautor desenvolve. Este conceito foi clara-mente exposto em seu livro “A Geografia daFome” no terceiro item do prefácio intitula-do: “Nosso conceito de fome: as fomes indi-viduais e coletivas. As fomes totais e par-ciais. As fomes específ icas e as fomesocultas”. Neste ponto Josué de Castro afirmaque irá tratar especificamente da fome cole-tiva seja ela endêmica (permanente) ou epi-dêmica (transitória), seja ela total (inanição)ou parcial ou oculta.

Ele confere uma atenção especial para afome parcial ou oculta, por esta, segundoele, ser mais freqüente e atingir uma maiorparte da população. É de extrema importân-cia notar que Josué de Castro não irá restrin-gir o conceito de fome, ao contrário, utiliza-rá este conceito, mesmo quando outrosautores utilizariam conceitos como o desubnutrição ou desnutrição. Esta opção em“abrir” o conceito tem razões científicas,pois como ele mesmo aponta, a fome par-cial além de ser mais freqüente também se-ria mais grave. Ao mesmo tempo tem razõespolíticas, pois assim a fome não poderá sertratada como um fenômeno restrito às “re-giões longínquas” como o Oriente e a Euro-pa do pós-guerra. Tornar pública a existên-cia da fome através da denúncia de suascausas e conseqüências foi o grande objeti-vo de duas das maiores obras de Josué deCastro, a primeira publicada em 1947, “AGeografia da Fome”, e a segunda publicadaem 1951, “Geopolítica da Fome”. A dife-rença teórico-metodológica é praticamentenula entre ambas, sendo a escala de análisea principal modificação de uma para aoutra.

Josué de Castro aponta no prefácio de “AGeografia da Fome” duas razões que o leva-ram a pensar em escrever esta obra em dife-rentes volumes. A primeira se refere à exten-são do fenômeno da fome que abrange

todos os continentes e a segunda se refere àpossibilidade de lançar volumes separada-mente sem prejudicar o conteúdo da obracomo um todo. Em ambos os livros Josuéiniciam sua apresentação do fenômeno dafome através de um tratamento mais teóricoda questão. Este tratamento tem como obje-tivo dar base para que o leitor possa enten-der o conteúdo que virá a seguir, ou seja,dar instrumento para que o leitor entenda oconteúdo dos estudos das regiões afetadaspelo drama da fome. Em “Geopolítica daFome”, utilizando-se de zoneamento apre-sentado pelo próprio autor em “A Alimen-tação Brasileira à Luz da Geografia Huma-na” Josué de Castro divide o Brasil em cincograndes áreas sendo três delas consideradasáreas de fome. Área Amazônica, Área daMata do Nordeste ou Área do Nordeste Açu-careiro e Área do Sertão do Nordeste são asáreas de fome no Brasil, enquanto as áreasdo Centro-Sul e Extremo Sul, apesar de nãoapresentarem um padrão dietético satisfató-rio, mas não são consideradas áreas defome. Já em “Geopolítica da Fome” Josué deCastro trata do fenômeno da fome no mun-do dividindo sua análise nos seguintes con-tinentes: América, Ásia, África e Europa.

De certo modo podemos apresentar duaslinhas principais apontadas por Josué deCastro em “Geopolítica da Fome”. A primei-ra trata-se, de como já foi mencionado, dasuperação do tabu da fome, onde Josué deCastro tenta demonstrar como a humanida-de sempre sofreu com o drama da fome, nãoimportando a época ou a região do globo.Neste sentido o autor realiza em todos oscapítulos uma retrospectiva histórica dofenômeno da fome para cada região. A se-gunda linha principal, que já pode ser nota-da em “Geografia da Fome” é a denúnciados estragos cometidos pelo processo de co-lonização ao redor do mundo.

Josué de Castro indica insistentementepara o fato de que todas as regiões que pas-saram pelo processo de colonização (euro-peu principalmente) sofreram e ainda sofremcom o flagelo da fome. É imprescindíveldestacar ainda o debate que Josué de Castrotrava com a teoria de Malthus principalmen-te após 1948, ano da publicação do livro “Ocaminho da sobrevivência” de Willian Vogt,livro este que teve grande repercussão entre

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os adeptos do malthusianismo. É verdadeque desde o início de sua obra Josué de Cas-tro trata o fenômeno da fome como umfenômeno social e não natural que pode sersuperado através da ação do próprio Ho-mem. Porém, a partir de 1948, Josué de Cas-tro se coloca em franco debate com asidéias malthusianas negando suas teses eapontando dois erros graves na tese malthu-sianas: que afirma que a população cresceem progressão geométrica e a produção dealimentos em progressão aritmética.

Primeiramente Josué de Castro afirmaque não se pode ver o crescimento da popu-lação como uma variável independente,sendo este crescimento sujeito a fatores po-líticos e econômico variando de acordo coma conjuntura social.

Depois Josué de Castro aponta para osavanços técnicos que foram realizados des-de os tempos de Malthus que provaram queo crescimento da produção de alimentospode acompanhar o crescimento da popu-lação, ou muito mais.

Contudo, a principal e talvez mais polê-mica tese de Josué de Castro, trata da re-lação entre a fome e o fenômeno da “super-população”. Trabalhando com o princípiode causalidade Josué de Castro afirma que ofenômeno da “superpopulação” não causafome, mas sim que a fome é a causa dofenômeno da “superpopulação”. Para Josuéde Castro populações com deficiências ali-mentares se tornariam mais férteis, tendomais filhos o que causaria um aumento in-desejado da população. Além disso, segun-do Josué de Castro, com um alto índice demortalidade infantil e a necessidade debraços para trabalhar para o sustento da fa-mília o número de filhos por casal tambémaumentaria significativamente.

É através desta relação de causa e efeito–fome e “superpopulação”– que Josué deCastro combate o discurso malthusiano eainda afirma que a melhor maneira de secontrolar o crescimento da população é pro-movendo uma melhoria significativa do pa-drão alimentar das pessoas. Porém é possí-vel perceber que assim como Malthus, Josuéde Castro trabalhou somente com uma re-lação de causa e efeito (causalidade). Trata-

se de uma lacuna deixada em sua obra e umconvite aos pesquisadores na atualidade emcomplementar, pois este tratamento nãochega a superar a lógica do pensamentomalthusiano.

Segurança alimentar nocombate a fome

Resta a fome, certamente o problemamais difícil de definir e mensurar. “Se des-cartarmos a fome aguda, ou momentânea,que corresponde ao apetite, temos que pen-sar na fome crônica, permanente, que oco-rre quando a alimentação habitual não pro-picia ao indivíduo energia (calorias)suficiente para a manutenção do seu orga-nismo e para o exercício de suas atividadescotidianas”, explica o professor, lembrandoque as dificuldades técnicas de se medir, deforma confiável, a ingestão alimentar habi-tual dos indivíduos e suas correspondentesnecessidades energéticas tornam difícil amensuração direta da extensão da fome ouda deficiência energética crônica em umapopulação, que acaba sendo determinadade forma indireta a partir da avaliação dopercentual de pessoas que apresentam insu-ficiente relação peso/altura.

É possível, portanto, que uma pessoaseja pobre, mas não passe fome e que, emsituações especiais, de guerra ou catástrofesnaturais, por exemplo, haja fome sem quehaja pobreza. Além disso, se podemos afir-mar que a fome sempre acarreta deficiênciasnutricionais, não podemos dizer que todasas deficiências são devidas a falta de comi-da. Muitas vezes a desnutrição ocorre porconta da baixa qualidade dos alimentos in-geridos, da falta de higiene no preparo dosalimentos, de doenças diarréicas e parasitasintestinais ou até mesmo por questões so-ciais e culturais ou por distúrbios alimenta-res de ordem psicológica, como a anorexiaou a bulimia. Isso significa que, apesar deserem igualmente graves e indesejáveis, afome, a desnutrição e a pobreza não são amesma coisa e, dessa forma, requerem tam-bém soluções com escala, investimentos econteúdos distintos.

Na opinião de D. Mauro Morelli, bispode Duque de Caxias (RJ), se houvesse de-

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cisão política e boa gestão seria possívelacabar com a fome no Brasil em cinco anos,mas não com a miséria: “Eu acho que temoscondições e competência para produzir edistribuir alimentos e isso acabaria com oproblema da fome. Quanto à miséria, eupenso que seriam necessários uns 50 anospara se eliminar as suas marcas”.

Diante dessa perspectiva o Programa“Fome Zero” do Governo Lula é um impor-tante passo para acabar com a fome: “En-quanto houver um irmão brasileiro ou umairmã brasileira passando fome, teremos mo-tivos de sobra para nos cobrirmos de ver-gonha. Por isso, defini entre as prioridadesde meu governo um programa de segurançaalimentar que leva o nome de “Fome Zero”.Como disse em meu primeiro pronuncia-mento após a eleição, se, ao final do meumandato, todos os brasileiros tiverem apossibilidade de tomar café da manhã, al-moçar e jantar terei cumprido a missão daminha vida. É por isso que hoje conclamo:Vamos acabar com a fome em nosso País.Transformemos o f im da fome em umagrande causa Nacional, como foram nopassado à criação da Petrobrás e a memo-rável luta pela redemocratização do País”(Silva, 2003).

No programa estão englobados os efeitosda fome, noções de segurança alimentar enutricional, enfatiza os aspectos do acesso eda disponibilidade em termos de suficiên-cia, continuidade e preços estáveis e com-patíveis dos alimentos com o poder aquisiti-vo da população ressalta a importância daqualidade e valoriza os hábitos alimentaresadequados, colocando a segurança alimen-tar e nutricional, como uma prerrogativa bá-sica para a condição de cidadania.

Esse foi o primeiro e grande momentoapós tantos anos de se ter descoberto a fomeno país como uma questão política, hoje de-nominada de Segurança Alimentar, que umgovernante, busca combate-la pelo lado dadistribuição de alimentos. Porém, o termo“fome” tem um apelo muito forte e servepara chamar atenção sobre um grave proble-ma, é que dentro do conceito de segurançaalimentar, qualquer política que vise resol-ver o problema da fome não pode descuidardo aspecto nutricional.

Para consolidar esse marco histórico decombate a fome no país, foi que em 16 desetembro de 2006, entra para a história dasconquistas sociais no Brasil, o ato de pro-mulgação da Lei Orgânica de Segurança Ali-mentar e Nutricional (LOSAN), carregandoem si uma teia de significados ao elevar oacesso à alimentação à condição de políticade Estado permanente, que tanto defendia omestre Josué de Castro.

O conceito de Segurança Alimentar e Nu-tricional tem sido difundido no mundo desdeo início do século XX, e significa “garantia, atodos, de condições de acesso a alimentosbásicos de qualidade, em quantidade sufi-ciente, de modo permanente e sem compro-meter o acesso a outras necessidades essen-ciais, com base em práticas alimentaressaudáveis, contribuindo, assim, para umaexistência digna, em um contexto de desen-volvimento integral da pessoa humana”.

Algumas coincidências cercaram o even-to ampliando ainda mais sua importância: alei fora aprovada no Senado no dia 5 de set-embro, dia do aniversário de Josué de Cas-tro, médico e geógrafo, pioneiro na defesadas políticas de segurança alimentar no Bra-sil que, se estivesse vivo, completaria 98anos. E sua principal obra, “A Geografia daFome”, completaria neste ano de 2007, 62anos, com um rigor científico e político quea mantém como referência de todos que mi-litam na área.

Seguramente ao defender a fome comoum problema institucional, neste momentoJosué rompe com muitos limites de sua épo-ca e ele sabia o que estava fazendo, pois elepróprio afirmou ser necessário derrubar otabu que existe por trás do tema da fome.

Herança da obra de Josué

Nota-se que Josué de Castro tem umavasta obra (Quadro Nº 1) que permite diver-sas leituras. A importância destas obras serevela a todo o momento, pois até hoje ofenômeno da fome não foi extinto da super-fície da terra. Josué de Castro apresenta di-versos elementos para a discussão do fenô-meno da fome hoje, seja t ratando depolíticas públicas de combate à fome, sejatratando dos discursos produtivistas das em-

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presas multinacionais, seja tratando do ima-ginário da população com relação ao fenô-meno da fome. Para a “História do Pensa-mento Geográf ico Brasi leiro” suacontribuição foi decisiva.

Sua obra apresenta um rico debate comdiversos geógrafos, em especial com os daGeografia Francesa, e por vezes é possívelapontar para avanços teóricos realizados peloautor no sentido de uma Geografia que tenhauma postura mais crítica e ativa frente à reali-dade brasileira e mundial. Aplicando métodode trabalho geográfico em escala universal,lança o livro Geopolítica da Fome (1951),apresentando uma analise de aplicação práti-ca dos conhecimentos gerados pela geografia

política, isto é, a temática da relação entre oespaço e o poder e entre o estado e o territó-rio na investigação da fome.

Josué denunciou a fome universal comouma praga fabricada pelo homem contraoutros homens, tentou criar uma teoria ex-plicativa para a triste realidade do desenvol-vimento, da pobreza, da miséria (Souza,2005).

Ele era apenas um brasileiro. Cientista,escritor, um homem público devotado a suapátria, a seu povo, aos povos do Brasil. Sa-bia das injustiças, sabia das nossas mazelas,sabia da fome, e como sabia da fome (Ama-do, 2005).

Título Responsável pela publicação Ano

O problema fisiológico da alimentação no Brasil Faculdade de Medicina de Recife 1932

Metabolismo basal e clima Revista Médica de Pernambuco 1932

O problema da alimentação no Brasil CIA. Editora Nacional 1933

Condições de vida das classes operárias do Recife Departamento de Saúde Pública do Recife 1935

Alimentação e raça Civilização Brasileira 1935

Alimentação Brasileira à luz da geografia humana Edição da Livraria Globo 1937

Documentário do Nordeste J. Olympio 1937

Fisiologia dos tabus Edições Nestlé 1939

Ensaios de Geografia Humana Ed. Globo 1939

Geografia da Fome O Cruzeiro 1947

Geopolítica da Fome Casa do Estudante do Brasil 1951

A cidade do Recife: Ensaios de geografia Humana Casa do Estudante do Brasil 1955

Três personagens: Einstein, Fleming, Roosevelt Casa do Estudante do Brasil 1955

O Livro Negro da Fome Brasiliense 1957

Ensaios de Biologia Social Brasiliense 1957

Sete palmos de terra e um caixão Brasiliense 1964

Ensayos sobre el Sub-Desarrollo Siglo Veinte 1965

Adonde va la América Latina? Latino Americana 1966

Homens e caranguejos Brasiliense 1967

Explosão demográfica e a fome no mundo Editora Itaú 1968

El Hambre: problema universal Editora la Pleyade 1968

Latin American Radicalism Vintagem books 1971

A estratégia do desenvolvimento Ed. Seara Nova 1971

Mensagens Ediciones Colibri 1980

Quadro Nº 1PRINCIPAIS OBRAS DE JOSUÉ DE CASTRO

Fonte: Elaboração própria.

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17UMA LEITURA GEOGRÁFICA DA FOME COM JOSUÉ DE CASTRO

Um dos traços fundamentais de JosuéCastro era a sua clarividência. A clarividên-cia é uma virtude que se adquire pela in-tuição, mas, sobretudo pelo estudo. É tentarver a parte do presente que se projeta no fu-turo (Ribeiro, 2005).

Josué foi um homem na geografia quedeixou sua historia, que soube lutar por umfuturo melhor para o seu país e para a hu-manidade, usando como armas apenas o seuconhecimento, a sua capacidade de trabalhoe a sua ação. Sua vida foi uma grande liçãopara humanidade, tentou modificar a histo-ria de seu país, em sua própria realidade,sua própria cultura. É este cidadão pernam-bucano que o Brasil e a Geografia de hojeprecisa dar valor, deixando de ignorar seusconhecimentos (Santos, 2005).

“A Geografia da Fome” identificou, comprecisão cirúrgica, o problema da fome noBrasil, conferindo ao conceito a complexi-dade e diversidade que lhe é inerente e tam-bém proporcional aos problemas sociais queestão na sua gênese. Vasculhou todas assuas especificidades de modo a reunir ele-mentos para apontar as multiplicidades deações de políticas necessárias para o setor.São “as fomes individuais e coletivas. As fo-mes totais e parciais. As fomes específicas eas fomes ocultas”. Sua preocupação voltou-se principalmente para as fomes coletivas,em especial atenção para as parciais ouocultas que, segundo ele, por mais freqüen-tes e graves, são as que mais atingem as po-pulações e com elevado poder de dizi-mação.

É a fome provocada pela falta permanen-te de determinados componentes nutritivos;é quando a pessoa come, todos os dias ouquase todos os dias, mas não se alimenta. Oacesso à alimentação, em quantidade, regu-laridade, quantidade suficientes e ainda su-ficientemente diversificados para cobrir asnecessidades alimentares da população.Esse é o primeiro direito constitutivo na for-mação da cidadania, da dignidade humana.O direito elementar e humano à alimen-tação é uma condição básica para que aspessoas tenham saúde, que tenham con-dições de almejar outros direitos, outrosdesejos de uma vida melhor. Cuidar paraque isso aconteça não é assistencialismo, é

promover reconhecimento de direitos ele-mentares e é um movimento que tem raízeshistóricas na sociedade brasileira, tendo Jo-sué de Castro como principal referência.Outras pessoas e entidades se mobilizaramem torno dessa bandeira, como o Herbert deSouza (Betinho), Dom Hélder Câmara, DomJosé Maria Pires, Dom Marcelo Pinto Caval-heira, além de tantos outros anônimos quededicaram e dedicam suas vidas à luta porum Brasil sem fome que em parte se traduzhoje no Fome Zero (Programa do Governofederal Brasileiro).

Seus livros tornaram-se referências clás-sicas da produção intelectual brasileira. Ce-lebrizaram a frase que ainda hoje é repetidaquando se trata sobre fome. “Metade da po-pulação não dorme porque não tem o quecomer, a outra metade não dorme commedo dessa que não tem o que comer”.

Conclusão

Josué dedicou o melhor de seu tempochamando a atenção para os problemas dafome e da miséria que ocorria no mundo,dirigiu seus estudos para a analise não ape-nas da fome em si e de sua incidência sobreas pessoas mal alimentadas, mas das causasdo problema e da ameaça que representavapara a humanidade, das seqüelas que deixa-va nas populações mal alimentadas, com re-percussões na esperança de vida, na pro-dução e no desenvolvimento intelectual.

Castro levantava a partir de constataçõesradicais uma série de idéias, não só pela se-riedade e audácia com que enfrentou ogrande tabu, a fome, mas pela denúncia quefez da situação em que vivia a maioria dapopulação do país, usando metodologiaeminentemente geográfica, analisou as suascaracterísticas físico-naturais e sociais.

Como pensador conseqüente, não limi-tou a dar o diagnóstico da fome do mundo,passou também a orientar como poderiadesenvolver a luta pela sua erradicação, aquestão alimentar passava a ter forte priori-dade nas preocupações governamentais e jáse começava a entender que os grandes pro-blemas não dependiam apenas de aspectosétnicas ou climáticas, mas do sistema socialgerado pela colonização e sugeria a necessi-

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dade de se desenvolver uma política de co-rreção dos seus impactos negativos.

Um outro aspecto que é de fundamentalimportância está em estabelecer as dife-renças de abordagem para que possamosperceber como o reconhecimento da assis-tência no campo dos direitos sociais é o ca-minho para combater o assistencialismo,muito perceptível em todas as pesquisasdesenvolvidas por Castro. Por muito tempo,prevaleceu uma visão equivocada sobre aquestão da alimentação, que era vinculada àcaridade. Na lacuna deixada pela ausênciahistórica de políticas na área, sobressaíamos movimentos de combate à fome, de cole-ta de alimentos para distribuição em datas eeventos específicos. Não há como negar queforam - e ainda são - importantes manifes-tações de filantropia e de boa vontade. Noentanto, pelas limitações inerentes à nature-za dessas iniciativas - por vezes segmenta-das, pontuais e exclusivamente emergenciais- não se constituem, efetivamente, em alter-nativa para solucionar um problema que éestrutural e tem implicações sociais.

O direito à alimentação, exatamente porsua premência, não pode estar sujeito à boavontade das pessoas e instituições, por mel-hor que sejam as intenções e por mais im-portância que tenha essas iniciativas no sen-tido de mobilizar as consciências em tornodas soluções do problema da falta do quecomer. É necessário, considerando os ensi-namentos de Josué de Castro e outros queestudaram o fenômeno, que o direito à ali-mentação faça parte de políticas públicaspermanentes, articulando com outras políti-cas que ataquem, na origem, os problemassociais que produzem a situação de fome.

As políticas precisam, inclusive, conside-rar a história dos movimentos sociais, des-envolvendo também a capacidade de articu-lar o esforço coletivo de homens e mulheresde boa vontade que estão em contato, naponta, com o problema da fome e se mobili-zam em torno dele.

Mas, nesse caso, os movimentos passama existir num outro patamar, contribuindo,com sua capilaridade e potencial mobiliza-dor, como parceiro de uma política elabora-da estrategicamente e que pense o problema

da fome de maneira global. Essas caracterís-ticas se refletem na LOSAN, resultado de umprojeto elaborado pelo governo com partici-pação efetiva do Conselho Nacional de Se-gurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)em sintonia com os conselhos estaduais emunicipais e prontamente acolhidos peloCongresso Nacional, que o aprovou com aagilidade necessária.

Penso que um governo entra para a his-tória quando ele expressa e viabiliza senti-mentos e desejos presentes na consciênciada população. Erradicar a fome e a desnu-trição no Brasil, na perspectiva de direitoslegitimados e normatizados em lei e articu-lando com outros direitos, é um sentimentoforte na sociedade brasileira. Juntos estamosalcançando essa conquista histórica: erradi-cando a forme e a desnutrição no Brasil.

Finalmente podemos observar que umestudo que durou a vida toda de Josué, oBrasil considerou com a LOSAN a importân-cia do seu trabalho, levando em conside-ração sua diagnose e seus ensinamentos.Contudo, ainda estamos longe de erradicar afome, pois necessariamente pesquisas e con-hecimentos sustentáveis as ciências geográ-ficas e afins dispõem a serviços dos gover-nos, o que na realidade falta e o interesse deacabar com a fome, que não é apenas bioló-gica, mas principalmente material.

A editora Civilização Brasileira lançou a6ª Edição do livro “Geografia da Fome”(2006). Foi também lançado, pelo MST, umcaderno de Estudos de autoria de Anna Ma-ria de Castro denominado Josué de Castro -Semeador de Idéias contendo uma biografiaresumida do autor. O Conselho Universitárioda Universidade Federal do Rio de Janeiro,acolhendo por aclamação proposta de seuReitor, houve por bem conferir o Título deDoutor Honoris Causa- in memoriam a Jo-sué de Castro. Ainda em dias deste ano, emcomovente e até certo ponto surpreendentehomenagem, a Turma de Estagiários da Esco-la Superior de Guerra, que se auto denomi-nou “Consciência Nacional”, escolheu Josuéde Castro como seu Patrono, fazendo inau-gurar seu retrato na galeria de homenagea-dos naquela Escola de Altos Estudos dasForças Armadas Brasileiras. Também o CON-SEA, Conselho Nacional de Segurança Ali-

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19UMA LEITURA GEOGRÁFICA DA FOME COM JOSUÉ DE CASTRO

mentar e Nutricional, Órgão de Assessora-mento da Presidência da República, elegeuJosué de Castro como seu Patrono.

Castro combateu as injustiças sociais,apontando as causas e soluções. Josué Apo-lônio de Castro, além de desenvolver pes-quisas no Brasil, em especial na região Nor-deste, considerada uma área de existênciade um bolsão de pobreza, também, viajouos quatro cantos da Terra para conhecer eestudar as razões desse mal que afirmara ser“tão antigo como a própria humanidade”: AFome. Contudo sua ferramenta de pesquisa,seu método na peleja contra a fome, foi fa-zer da geografia um bandeira de luta contraa fome e respaldando a importância para oestudo do homem e do meio.

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20 R E V I S TA D E G E O G R A F Í A N O R T E G R A N D E

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