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JOSU DE CASTRO
GEOGRAFIA DA FOME (O DILEMA BRASILEIRO: PO OU AO)
10. EDIO REVISTA
antares
Copyright: Glauce Pinto de Castro Capa: AG Comunicao Visual, Assessoria e Projetos Ltda. 1984 Impresso no Brasil Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Castro, Josu, 1908-1973.
C351g Geografia da fome : o dilema brasileiro : po ou ao Josu de Castro. Rio de Janeiro : Edies Antares, 1984.
(Clssicos das Cincias Sociais no Brasil)
Bibliografia
1. Brasil Condies econmicas. 2. Fome. 3. Poltica nutricional. 4. Subnutrio. S. Subnutrio Brasil. I. Ttulo. II. Srie.
CDU 613.24:308
84-0193 613.24:308(81) 612.391:308 338(81) Direitos desta edio reservados a
Rua Nina Rodrigues n 9 Jardim Botnico 22461 Rio da Janeiro, RJ.
A
Rachel de Queiroz e
Jos Amrico de Almeida,
romancistas da fome no Brasil.
A memria de
Euclides da Cunha e
Rodolfo Tefilo,
socilogos da fome no Brasil.
SUMRIO Prefcio nona edio
Andr Meyer Prefcio dcima edio
Alceu Amoroso Lima Prefcio do autor I Introduo II rea amaznica III rea do Nordeste aucareiro IV rea do serto do Nordeste V As reas de subnutrio: Centro e Sul VI Estudo do conjunto brasileiro VII Glossrio Apndice oitava edio Biografia Bibliografia 339
PREFCIO A NONA EDIO
A fome eis um problema to velho quanto a prpria vida. Para os homens,
to velho quanto a humanidade. E um desses problemas que pem em jogo a prpria
sobrevivncia da espcie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar
contra as doenas que a assaltam, abrigar-se das intempries, defender-se dos seus
inimigos. Antes de tudo, porm, precisa, dia aps dia. encontrar com que subsistir
comer. E esta necessidade, a fome que se encarrega de lembr-la. Sob o seu ferro
e para lutar contra ela. a humanidade aguou seu gnio inventivo. Ningum o ignora.
E todo mundo sabe tambm que. nesse velho combate contra esta praga permanente,
o homem conseguiu apenas uma vitria incerta e precria.
Contudo e o que nos faz ver o Prof. Josu de Castro logo s primeiras
pginas do seu livro a Geografia da Fome nos pases mais adiantados, parece que
as geraes passadas preferiram no aprofundar muito esse grande problema. Para
qu? No decurso da Histria, linha havido, sem dvida, pocas de fome. Mas isso
parecia to remoto! Continuava a haver fome em certos pases. Mas isso parecia to
distante! As guerras s vezes acarretavam a fome. Mas isso parecia to raro!
Na realidade, sob essa aparente indiferena, havia algo mais do que simples
imprevidncia e egosmo. Havia dois sentimentos mais profundos. O primeiro,
oriundo da convico milenar de que os males provocados por flagelos naturais so
inevitveis: o segundo, da idia de que a prpria organizao [pg. 11] das sociedades
comporta desigualdades entre os homens e que estas, por sua vez, so inevitveis.
Para que ento pensar no irremedivel?
Essas duas idias, essas duas atitudes j se tornaram, porm, insustentveis.
Um flagelo s inevitvel quando permanece em mistrio. Os males provenientes
da falta de alimentos continuam sendo um problema, mas j no so um mistrio.
Foi este o resultado de cento e cinqenta anos de trabalho cientfico. J hoje
sabemos em que consistem as necessidades em alimentos. J hoje sabemos o que
alimentao.
Trs etapas foram percorridas nessa conquista de importncia capital para a
humanidade. Foi no sculo XVIII que Lavoisier abriu as portas e mostrou o caminho
da primeira etapa. Descobriu o que o fogo, a combusto viva: uma fixao de
oxignio, uma oxidao. A seguir, o que a calcinao das terras: uma combusto
lenta e, por conseguinte, tambm uma fixao de oxignio, uma oxidao. E,
finalmente, o que a respirao: uma combusto ainda mais suave, porm, da
mesma forma, uma fixao de oxignio, uma oxidao. E foi assim que demonstrou
que a prpria vida se assemelha aos grandes processos da Natureza. A vida traduz-se
por um encadeamento organizado de acontecimentos fsico-qumicos. Quando nosso
organismo mantm constante sua temperatura, enquanto declina a do meio ambiente
ou quando ele desempenha qualquer trabalho muscular tudo isso se traduz em
reaes qumicas: o gasto das reservas que se faz atravs da fixao do oxignio e da
emisso de calor. O trabalho do organismo sua vida pode, pois. exprimir-se
exatamente por essa emisso de calor que permite determinar-se o que ele perde.
Determinar a perda significa tambm determinar as necessidades, uma vez que, para
manter-se, o organismo precisa reparar suas perdas. E pela alimentao que fazemos
essa compensao, essa restaurao. Consumimos fragmentos de seres vivos, que,
por sua vez, so combustveis. Seu valor de reparao, de restaurao, seu valor
como alimento pode tambm, por seu lado, ser medido com exatido, pelo calor que
se desprende de sua combusto. Assim, as necessidades alimentares do homem e o
valor de sua alimentao podem ser definidos fisicamente, tornando-se calculveis
em termos de calor, em calorias.
A segunda etapa teve lugar no sculo XIX. Seguindo as pegadas de Lavoisier,
descobriram os qumicos que a Natureza [pg. 12] e os seres vivos, que nela se
encontram so todos compostos de elementos simples que, segundo supunham,
seriam imutveis e indestrutveis. O organismo formado de certo nmero desses
elementos, presentes em determinadas propores. Uma parte desses elementos se
perde no trabalho do organismo. Se essa perda no for reparada, o organismo estar
em perigo mortal. Foi levantada a relao desses elementos indispensveis.
Calculou-se o que o organismo gasta e o que necessita para recuperar estes gastos.
Pois, tal como ocorria com os qumicos do sculo XIX, mas no com os dos nossos
dias o organismo no sabe fabricar elementos qumicos. Precisa encontr-los
todos em sua alimentao. Esta se tornou, desde ento, quimicamente definida.
Terceira etapa: a do sculo XX. Acreditava-se at ento que, de posse dos
elementos, o organismo era capaz de sintetizar todas as molculas de que ele se
compe, mas isso era um erro. Os seres vivos so qumicos incompletos. Descobriu-
se que existe toda uma srie de molculas (cidos aminados, cidos graxos,
vitaminas) que eles no sabem fazer e que precisam encontrar j preparadas, dentro
da alimentao. Mas essas molculas so indispensveis vida. Basta faltar alguns
miligramas de algumas delas na alimentao cotidiana para sobrevir uma doena
grave ou a morte.
Os resultados dessas descobertas tm alcance incalculvel. Para comear, a
palavra fome j no basta. que o termo evoca simplesmente a insuficincia da
quantidade de alimentos, provocando a subnutrio e a morte pela fome. Trata-se
agora de outra coisa. Viemos a saber que no apenas quando nossa alimentao
insuficiente que estamos ameaados. Tambm o estaremos se ela for mal
constituda. Neste ltimo caso, surge uma srie de estados de subnutrio. Quando
essa subnutrio grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenas
de h muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas. Se a carncia de
molculas indispensveis for menos pronunciada, determinar o mau funcionamento
do organismo, o desenvolvimento defeituoso das crianas, a fraqueza parcial dos
adultos, certa desagregao do estado mental e, por fim, a degenerao progressiva
terminando por provocar o desaparecimento de grupos humanos. Os efeitos de uma
m alimentao so, por conseguinte, muito mais profundos e mais amplos do que se
pensava. Influem na durao e na qualidade [pg. 13] da prpria vida, na capacidade
de trabalho, no estado psicolgico das populaes.
Mas esses males so facilmente curveis. Quem j tiver assistido ressurreio
de um pelagroso coberto de horrveis leses, devorado pela doena, demente,
moribundo, curando-se em poucos dias pela ingesto de alguns miligramas dessas
molculas que faltavam na sua alimentao e que os qumicos fabricam hoje s
toneladas, no duvidar dessa verdade. A subnutrio endmica no se presta,
porm, a essas curas espetaculares. Exige interveno contnua. Pode ser eliminada e
pode ser evitada por meios naturais: basta que se garanta s populaes uma boa
alimentao, suficiente, completa e equilibrada.
Sabemos hoje em que consiste tal alimentao. Sabemos calcular em termos de
calorias em que deve consistir a massa de alimentos cotidianos. Podemos calcular
em gramas, em miligramas, o que essa alimentao deve conter de princpios
alimentares, de molculas indispensveis. Temos, pois, doravante, noes slidas,
inabalveis, permitindo determinar com bastante preciso o que deve ser a
alimentao de uma criana, de um adulto em descanso ou trabalhando, de uma me,
de uma famlia, de uma cidade, de uma populao inteira. E isso constitui um
acontecimento de importncia capital na histria da humanidade.
A questo , pois. a seguinte: existem, no nosso planeta, mais de dois bilhes
de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquritos realizados nos
permitem responder: alimentam-se mal. Mais da metade desses seres humanos se
encontra, mais ou menos, em estado de subnutrio. E tal estado s tende a agravar-
se, uma vez que a populao da Terra cresce de ano a ano em cerca de 50 a 60
milhes de indivduos. Devemos acrescentar que a subnutrio no atinge apenas os
pases mais atrasados, mas tambm grupos inteiros de populao nos pases mais
adiantados do mundo.
Trata-se, por conseguinte, de alimentar bem essas populaes. Ao plano de
alimentao traado deve corresponder um plano de produo agrcola adequado.
Os clculos indicam que esse plano dever comportar considervel aumento da
produo atual. Ser tal aumento tecnicamente possvel? Neste caso ainda resposta
ser bem diferente da que se poderia ter dado h um sculo atrs. Os progressos [pg.
14] da Cincia e da Tcnica tm sido de tal ordem dispomos hoje de inmeros
meios pura aumentar a produo das plantas e do trabalho humano que j
possvel, querendo, alimentar e alimentar bem todos os homens.
Provocar sistematicamente um aumento considervel e ordenado da produo
agrcola no problema de pura tcnica agronmica. um problema econmico.
Efetivamente, trata-se de integrar a agricultura no conjunto da economia.
No se pode criar uma agricultura moderna sem considervel despesa de
equipamento. No se pode fornecer esse equipamento sem criar a indstria
necessria. No se pode tornar a indstria e a agricultura fregueses recprocos, faz-
las interdependentes, sem distribuir metodicamente a populao ativa de acordo com
certa diviso do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa
populao, uma distribuio da renda nacional, de modo a permitir o intercmbio
entre elas. E ainda: no basta criar a capacidade aquisitiva, a capacidade de
intercmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente essas capacidades, aumentar
a renda nacional. Ser isso possvel? Ainda neste ponto a resposta positiva: no
impossvel uma vez que tal desideratum j foi conseguido nos pases mais
adiantados.
E no s. H uma condio indispensvel criao de uma economia de
expanso e essa condio suscita um problema social. Para multiplicar os bens da
Terra, valorizar o mundo e obter plena utilizao dos recursos naturais
necessrio aplicar integralmente as possibilidades da Cincia e da Tcnica. Mas essa
aplicao completa s se consegue atravs de um imenso esforo de educao,
atravs de uma elevao progressiva do nvel cultural das populaes do mundo. E
tudo isso depende da instruo que se der s crianas e aos adolescentes e das
informaes que forem divulgadas entre os adultos.
Por outro lado a expanso econmica e a multiplicao do intercmbio s
sero conseguidas pela diversificao das necessidades humanas, fornecendo-se
meios para satisfaz-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade aquisitiva
e a parte reservada s despesas de civilizao.
Assim, a valorizao do mundo s possvel graas valorizao dos
homens, permitindo-lhes a expanso de suas faculdades. No basta dizer que a
valorizao do Homem deveria [pg. 15] constituir o objeto da Economia. Na
realidade constitui ela a condio indispensvel para a expanso econmica.
Essa grande obra que se ergue diante de ns nada tem de irrealizvel. Em
nenhum ponto est fora do nosso alcance, desde que saibamos querer. O problema
da fome difcil, no h dvida. Mas pode ser exposto claramente. As condies de
sua soluo podem ser definidas e a ao a empreender para chegar ao fim j pode
ser calculada. J no podemos, pois, silenciar sobre o assunto. E preciso, pelo
contrrio, atac-lo com coragem, no interesse de todos. As cinqenta e sete naes
membros da Organizao Internacional de Alimentao e Agricultura (FAO) j o
compreenderam. E resolveram agir.
dentro dessa ao de grande envergadura, de tanta amplitude e de
importncia to fundamental, que se coloca o livro do Prof. Josu de Castro. E chega
em momento oportuno. Uma das primeiras coisas a fazer levantar um inventrio,
to completo quanto possvel, da situao atual. preciso designar as populaes, os
grupos mais ameaados e estud-los. Trata-se, no sentido mdico da palavra, de
fazer a observao de seu estado de nutrio. No sentido geogrfico, de um ensaio
ecolgico dessas populaes, estudando o complexo que criou o solo, o clima, as
plantas e os animais. E no sentido sociolgico, um inqurito econmico-social.
Historicamente, trata-se de um estudo da origem e do desenvolvimento da situao
atual.
O Prof. Josu de Castro estava bem apto para empreender essa difcil tarefa.
No ele apenas um homem de laboratrio um conceituado fisilogo. tambm
um gegrafo, um pesquisador, um historiador. E os resultados que conseguiu atravs
dos mtodos de indagao de disciplinas to diferentes foram por ele ordenados
filosoficamente.
Seu livro no apenas uma coletnea sistemtica de fatos instrutivos. uma
obra profundamente atraente porque eminentemente viva. Ningum poder
esquecer, depois de as ter lido. as pginas em que o autor nos conta a tragdia dos
seringueiros alquebrados pelo beribri, engolidos na voragem da floresta amaznica,
nem aquelas em que nos descreve a seca alastrando-se pelo serto do Nordeste
brasileiro, esterilizando as terras, matando os animais, expulsando os homens. Ou
ento as pginas em que nos narra a histria impressionante dos colonos destruindo
progressivamente a floresta do mesmo Nordeste, para plantar a cana-de-acar e
deixando-se iludir pela [pg. 16] atrao do lucro, at suprimirem as prprias culturas
de sustentao e destrurem aquelas mesmas populaes que edificavam sua fortuna.
Nesta Geografia da Fome, o problema da subnutrio e da carncia alimentar
aparece em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos
aspectos e a importncia primordial. Um livro como este suscita ao e serve-lhe de
guia. O leitor ver que um livro de utilidade imediata e, ao mesmo tempo, um livro
inteligente e generoso. Em suma: que um bom livro.
Andr Mayer
Professor da Universidade de Paris
ex-Presidente do Conselho
Executivo da FAO [pg. 17]
PREFCIO DCIMA EDIO
Nos dois artigos,* ora transcritos nesta nova edio de uma das obras clssicas
de nossa literatura, a Geografia da Fome de Josu de Castro (1956), artigos esses
publicados em 1973, tive ocasio de apreciar a atualidade, a originalidade e o
sentido proftico da sua obra. O regime poltico ditatorial, que o perseguiu em vida,
longe de afetar o valor de sua obra monumental em prospetiva, no fez seno
ressaltar seu valor permanente. Passados 25 anos da publicao desse livro-chave,
representa ele ainda hoje o retrato mais trgico e igualmente mais fiel de nossa
realidade nacional. Comparvel a ele, somente Os Sertes de Euclides da Cunha.
Durante esses 25 anos nada foi feito para que a carncia alimentar do nosso povo
fosse atendida. A grande novidade do momento ... a volta agricultura. Nunca
deveramos ter sado dela. O primado da agricultura, da minerao e da pecuria, em
um pas de to vastas dimenses e de natureza to diversificada, no prejudica em
nada, e antes incentiva, a organizao de um grande parque industrial. Campo e
cidade devem sempre estar intimamente ligados. O que faz a sua separao a
anttese de classes, como a poltica de recurso contnuo aos capitais estrangeiros,
para promover o progresso nacional. Quando este deve ter sempre, por base, o
trabalho e no o capital. Foi o segredo [pg. 19] do Japo. Pois o capital, para ser
slido e no atentar contra a independncia nacional, prejudicando outrossim a
prpria interdependncia, deve ter por base o trabalho. A poltica da primazia do
recurso ao capital estrangeiro , sem dvida, uma das fontes desse drama da fome,
que Josu de Castro foi o primeiro a colocar como o problema bsico do Brasil.
Hoje se fala muito na primazia do Homem. bom que se fale, pois a verdadeira
filosofia social se baseia nessa primazia. Mas, para que isso no seja apenas uma
figura de retrica, preciso partir do problema da alimentao desse homem, em
cujo trabalho reside a riqueza nacional. Foi tudo isso que levou Josu de Castro a
levantar esse monumento de sabedoria social, que tanto entusiasmou o Padre Lebret
e , at hoje, como ser para sempre, uma das pedras angulares de nosso edifcio
social.
* Os dois artigos a que se refere o prefaciador foram publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudnimo de Tristo de Athayde.
Hoje tambm se invertem outros valores que Josu de Castro sempre colocou
como fundamentais. Procuram, hoje, reduzir artificialmente a populao, para
melhor aliment-la. Josu de Castro, pelo contrrio, partia do elemento qualitativo e
no do elemento quantitativo. No preciso reduzir artificialmente a populao,
para melhor aliment-la. E sim aliment-la melhor, para que o seu aumento
quantitativo se processe normalmente e no artificialmente. Invertendo a equao,
colocando o carro da quantidade adiante dos bois da qualidade, altera-se
completamente o equilbrio da situao homem-alimento, que Josu de Castro
coloca numa base racional e moral e no irracional e amoral. Colocaram a pirmide
com a ponta para baixo. Menos habitantes para melhor alimentao. Quando o
racional melhor alimentao (base), para mais habitantes (ponta). Chesterton
props, com humour, a seguinte frmula: quando existem 7 crianas e 6 chapus, ou
se arranja mais um chapu, ou se corta a cabea de uma criana...
Por essas e outras que a obra clssica de Josu de Castro merece ser relida e
aproveitada, pois sua inspirao , ao mesmo tempo, cientfica e moral, como deve
ser toda frmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a
nossa. Josu de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justia e
h de aproveitar-se de sua cincia. Como a tragdia da fome no privilgio do
Brasil, nem do Sahel, Josu de Castro [pg. 20] deixou, para a posteridade, aquela sua
frase famosa, j citada em um dos meus artigos: Metade da humanidade no come e
a outra no dorme com medo da que no come...
Alceu Amoroso Lima
Rio, 1980
O ESPECTRO DA FOME
Tempos atrs, um surto de sarampo, de tipo violento e infeccioso, que
praticamente dizimou uma localidade mineira do vale do Jequitinhonha, revelou, ou
antes, confirmou, a situao calamitosa, em matria de sade e desnutrio, em toda
aquela vasta regio. Logo em seguida, ou pouco antes, as cifras enumeradas no
documento trgico de 18 altas autoridades eclesisticas mostravam a mesma
situao por todo o Nordeste. E outro documento, talvez ainda mais impressionante,
dos bispos do Centro-Oeste (Marginalizao de um povo), confirmava o impacto do
primeiro e acentuava-o. Ainda outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda
mais alarmante, pois se refere regio considerada mais sadia de todo o Brasil: o
Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de So Paulo de 12 de agosto: A
Revista da Associao Mdica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma
pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianas gachas (1
milho em 2 milhes e 600 mil) so desnutridas (sic). A desnutrio responsvel
pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evaso escolar: menos de 10% dos
alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava srie do ensino fundamental.
A desnutrio causada pela falta de alimentos, dificuldades econmicas e
desconhecimento dos princpios de alimentao balanceada. Uma criana de quatro
anos da classe A (isto , das camadas ricas da populao, lembro eu), diz a revista,
em geral, 9,19 centmetros mais altas que uma da classe B (isto , das camadas
populares, lembro eu) e seu peso superior. [pg. 21]
Isso significa que no Estado mais sadio da federao, a desnutrio est
concorrendo, fundamentalmente, para a diviso crescente de nossa terra em dois
modelos de populao: os tipos biologicamente superiores e os tipos biologicamente
inferiores. E como estas estatsticas informam, a proporo entre os exemplarei: bem
nutridos e sadios e os desnutridos e enfermios praticamente de 50%. Isso na
regio mais sadia e rica de nossa ptria. Imaginemos ento o que ocorre nas regies
que representam uma proporo de mais de 80% da nossa populao total.
Alis, h muito que os nossos mais ilustres nutricionistas, como um Rui
Coutinho, em obras rigorosamente cientficas, sem nenhum bias ideolgico ou
poltico, tm chegado a idnticas concluses.
H muitos anos, alis, o eminente socilogo Josu de Castro, prematuramente
falecido h pouco e afastado do seu pas pelo terrorismo cultural, desencadeado em
64, deu o alarme em sua obra clssica A Geografia da Fome e, como dirigente
eventual da FAO, comeava anos atrs uma alocuo, em um congresso da
instituio, com uma imagem impressionante: Enquanto metade da humanidade
no come, a outra metade no dorme, com medo da que no come.
Era, evidentemente, uma imagem literria forjada precisamente para
impressionar os espritos e alertar as conscincias. Baseada, alis, em sentena
semelhante lanada em 1950 por Lorde Boyd Orr, ento presidenta da FAO, que
vejo contestada por outro especialista no assunto, o cientista Colin Clark, da
Universidade de Oxford, em artigo transcrito no nmero de 17 de junho do
LOsservatore Romano. Diz ele: A situao da fome (no mundo) muito grave mas
ainda no envolve, de nenhum modo, metade da humanidade. E considera
contraproducente qualquer exagero, pois o homem mdio reage imaginando que
no pode fazer nada. Penso exatamente o contrrio. Justamente porque o homem
mdio, isto , todos ns suficientemente bem nutridos, temos a tendncia natural a
no pensar nos desnutridos e a crer que realmente as cifras e os alarmes so
exagerados, que preciso despertar as nossas conscincias adormecidas para o
flagelo que j chegou a introduzir um nome prprio e cientfico para a molstia da
fome: kwaskiorkor ora grassando, dramaticamente, [pg. 22] no corao da frica.
Nem creio que essas imagens sejam exageradas, embora acredite que a verdade a
nica mestra autntica das convices. Acontece, porm, que a verdade sobre a fome
incomoda os governos e fere as suscetibilidades patriticas e, por isso mesmo, so
frequentemente vedadas ao grande pblico, pelas respectivas censuras polticas.
Especialmente nos pases que se preocupam exageradamente com a imagem que
deles se faa no estrangeiro.
E no tm a mesma coragem de dizer as coisas pelos seus nomes como
acontece particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos e em todos os pases
onde existe verdadeira liberdade de informao. Alis, esse eminente cientista
ingls, que subestima o perigo da fome e critica os que exageram as estatsticas,
tambm nesse mesmo artigo declara que a populao mundial aumenta com um
ritmo de aproximadamente 2 por cento ao ano, quando esse ritmo chega, em certas
regies latino-americanas, a ultrapassar 3,5 por cento, sem que a produo de
alimentos e especialmente sua distribuio pelo povo seja equitativa.
O prprio Clark, alis, embora subestimando o flagelo da fome, apela para a
interveno imediata dos governos, como nico meio de corrigir o desnivelamento
desumano entre os bem nutridos e os desnutridos, em conseqncia de fatores
polticos e sociais. Se verdade que as disponibilidades de alimentos nos pases da
frica, na mdia, so superiores ao mnimo necessrio, tambm verdade que uma
inqua distribuio dos rendimentos acaba por deixar uma grande parte da populao
margem da fome. E cita o caso do sistema de castas na ndia, que significa que
muitos milhes de pessoas esto condenadas a uma existncia de discriminao e
impossibilidade de progresso econmico.
Entre ns, a situao ainda mais grave, pois no se traiu da existncia, nos
costumes embora no mais nas leis , de um sistema de intocveis margem
da sociedade e da satisfao das suas mais elementares exigncias de sobrevivncia.
Entre ns est ocorrendo exatamente o mesmo, justamente na medida em que cresce
a estrutura industrial e urbanstica, mas dentro diurna estrutura social de tipo
nitidamente feudal. Acredito que o progresso tecnolgico esteja em condies de
equilibrar o aumento mundial das populaes. Mas para isso preciso reagir [pg.
23] contra o sistema feudal que entre ns corresponde, analogicamente, ao sistema
de castas, na ndia, ou ao sistema tribalstico, na frica, onde o flagelo da fome ,
neste momento, um pesadelo mundial. Como preciso que as verdades do
desnutricionismo crnico da maioria de nossa populao sejam ditas livremente,
pois no so as obras faranicas, nem mesmo os esforos da desanalfabetizao, que
vo nutrir os famintos e vestir os nus, no apenas pirandelicamente.
AS DUAS FOMES
A propsito do flagelo da fome, a que ontem aludamos, o novo diretor da
FAO, o tcnico holands A. N. Boehns, declarou recentemente que: A escassez
mundial de alimentos a pior crise que se registra desde a Segunda Guerra Mundial,
pois o crescimento demogrfico de 2% ao ano, enquanto a produo de alimentos e
a colheita agrcola do mundo, em 1972, teve 3% de reduo. (Apud ). B., 6.09.73).
O crescimento demogrfico do Brasil, convm lembrar, de 3%.
Mas essa defasagem entre o dinamismo crescente da vida e o dinamismo
decrescente da tcnica no pode ser eliminada pela conteno do primeiro e sim pelo
incremento do segundo. Como dizia Chesterton, em uma de suas imagens pitorescas,
se s temos cinco chapus para seis crianas, h duas solues a empregar: ou
arranjamos mais um chapu ou cortamos a cabea de uma das crianas...
O nosso saudoso Josu de Castro, precursor entre ns, e mesmo no plano
internacional, dos estudos cientficos a respeito desse problema trgico da
humanidade, e que afeta de modo to desastroso e doloroso o nosso pas, mostrou
bem claramente a interdependncia entre o problema sanitrio da populao, cuja
fonte primacialmente de natureza alimentar, e o problema scio-econmico da
estrutura poltica da nacionalidade. Josu de Castro faz mesmo remontar as causas
originais da subalimentao endmica em nosso pas. ao incio de nossa colonizao.
[pg. 24]
A fome, no Brasil, conseqncia, antes de tudo, do seu passado histrico,
com os seus grupos humanos sempre em lula e quase nunca em harmonia com os
quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa portanto da
agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre
por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que no significasse
vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura
desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva, ou pelo menos
desiquilibrante da sade econmica da nao: a do pau-brasil, a da cana-de-acar, a
da caa ao ndio, a da minerao, a da lavoura nmade, a do caf, a da extrao da
borracha, e finalmente a da industrializao artificial baseada no ficcionismo das
barreiras alfandegrias e no regime da inflao... E o fique rico to agudamente
estigmatizado por Srgio Buarque de Holanda... Em ltima anlise, esta situao de
desajustamento econmico e social foi conseqncia da inaptido do estado poltico
para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo.
A princpio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e
independncia dos senhores de terras, manda-chuvas em seus domnios de porteiras
fechadas... Ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso
centralizante do poder... Conseqncia dessa centralizao absurda e da poltica de
fachada da Repblica foi o quase abandono do campo e o surto da urbanizao... que
no encontrando no pas nenhuma civilizao rural bem enraizada veio acentuar de
maneira alarmante a nossa deficincia alimentar. (Geografia da Fome, 1946, pg.
293.)
H trinta anos, portanto, um socilogo da estirpe de Josu de Castro j
demonstrava, exaustivamente, a influncia dos fatores scio-econmicos sobre os
prprios fatores biolgicos de nossa populao, atravs da deficincia alimentar e da
primazia dos interesses privados, junto incapacidade equilibrante das instituies
polticas. E como as causas sociais so sempre correlativas, essa deficincia
alimentar, causada primacialmente por fatores poltico-sociais, veio afetar
indiretamente essas estruturas polticas, sempre intimamente ligadas s subestruturas
cconmico-sociais. [pg. 25]
Ainda agora, o socilogo Glucio Soares publica um estudo do maior interesse
cientfico e social, e, elaborado luz de uma sociologia analtica, enquanto a obra
clssica de Josu de Castro foi elaborada luz de uma sociologia globalista e
sinttica, sobre um problema anlogo. Esse magnfico trabalho sobre Sociedade e
Poltica no Brasil (Dif. Europeia do Livro, S. Paulo, 1973, pp. 237 e ss.) estuda
apenas o desenvolvimento, classe e poltica durante a Segunda Repblica, de 1945
a 1964, mas interessa toda a nossa formao social contempornea. Embora
partindo de uma orientao sociolgica geral marxista, que diz serem os fenmenos
supra-estruturais determinados, em ltima instncia. pela infra-estrutura scio-
econmica (p. 15), na realidade mostra a interdependncia das infra e supra-
estruturas sociais, comprovando, ao longo de nossa histria mais recente, o domnio
da oligarquia, isto , das elites instaladas, ricas, poderosas, sobre a poli-arquia,
isto , as maiorias entaladas, isto , de situao profissional precria, pobres e
impotentes.
Estudo magnificamente documentado e coincidindo, embora a partir de
orientao sociolgica diversa, com o de Josu de Castro na verificao da
influncia decisiva e recproca de fatores scio-econmicos e polticos na
constituio da sociedade brasileira. Josu de Castro, estudando a situao sanitria
e biolgica da populao, substancialmente viciada pela Fome Fsica: Glucio
Soares, estudando a situao poltica tambm viciada pela marginalizao das
maiorias, esmagadas pela Fome Poltica, isto , pela passividade e pela
imparticipao nos negcios pblicos. O prof. Glucio Soares, examinando as
conseqncias da Revoluo de 30 e da queda do getulismo em 1945, mostra como a
poltica oligrquica no foi sucedida por uma poltica democratizada, com ampla
participao de setores e classes menos privilegiadas. Seria ingnuo crer que o
colapso da oligarquia foi total (com a queda da Primeira Repblica, lembro eu), e
que as estruturas scio-econmicas que possibilitaram sua existncia ruram e que se
abriu o caminho para a participao das classes populares na poltica, tanto no nvel
eleitoral quanto no nvel de representao. Persistindo a distribuio desigual da
propriedade e um sistema de valores claramente classista (isto , burgus, lembro
eu), as pessoas que ocupam posies altas e mdias continuam [pg. 26] a gozar de
maior prestgio que as demais, sendo de salientar que essa diferenciao aceita por
amplos setores das classes populares (p. 136). E a propsito do golpe de 64 lembra
que:
No obstante, essa situao no provocaria um golpe de estado (64 no foi
propriamente um golpe de estado, isto , de cima para baixo, mas um golpe contra-
estado, isto , de fora para dentro, lembro eu) se as classes mdias e a sua maior
representante, a UDN, paladina da democracia liberal no Brasil, efetivamente
acreditassem no princpio democrtico... No fundo, seu modelo no era a
democracia liberal, mas sim o da democracia com participao restrita, que havia
sido proposto pela primeira vez quarenta anos antes pelos tenentes e reiterado nos
manifestos do Clube 3 de Outubro. Muitos dos antigos tenentes agora eram generais
que, acionados politicamente pelos conservadores e socialmente pelas classes
mdias, interromperam pela fora o Governo Goulart (p. 234). Durante o decnio
corrente o predomnio absoluto do sistema oligrquico s fez aumentar. E as duas
misrias, a da Fome Orgnica, denunciada por Josu de Castro, e a da Fome
Poltica, denunciada por Glucio Soares, explicam os ps-de-barro da esttua de
Nabucodonosor, isto , do famoso milagre brasileiro de nossos dias. [pg. 27]
PREFCIO DO AUTOR
1. O assunto deste livro bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e
perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilizao. realmente estranho,
chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por to excessiva
capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja at hoje to pouca coisa escrita
acerca do fenmeno da fome, em suas diferentes manifestaes. Consultando a
bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigidade. Extrema
quando a pomos em contraste com a minuciosa abundncia de trabalhos sobre temas
outros de muito menor significao. Tal pobreza bibliogrfica se apresenta ainda
mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do contedo do tema da
fome de sua transcendental importncia e de sua categrica finalidade orgnica.
J outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicvel vazio
bibliogrfico: no h muito, Gregorio Maraon, recolhendo material para a
elaborao de um trabalho sobre a regulao hormonal da fome,1 se surpreendeu
com o nmero insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema
fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra
ordem de idias, no se deu ao trabalho de buscar as razes ocultas que
determinaram esta quase que absteno de nossa cultura em abordar o tema da [pg.
29] fome. Em examin-lo mais a fundo, no s em seu aspecto estrito de sensao
impulso e instinto que tem servido de fora motriz a evoluo da humanidade
(Espinosa) como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este
ltimo aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes
calamidades que costumam assolar o mundo a guerra e as pestes ou epidemias
1 Maraon. Gregorio, La Regulacin Hormonal del Hambre, in Estudios de Endocrinologa, 1938.
verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas
causas e efeitos, exatamente a fome. Para cada mil publicaes referentes aos
problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto,
os estragos produzidos por esta ltima calamidade so maiores do que os das guerras
e das epidemias juntas, conforme possvel apurar, mesmo contando com as poucas
referncias existentes sobre o assunto.2 E h mais, a favor deste triste primado da
fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela
constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatria do
terreno, quase que obrigatria, para a ecloso das grandes epidemias.
Quais so os fatores ocultos desta verdadeira conspirao de silncio em torno
da fome? Ser por simples obra do acaso que o tema no tem atrado devidamente o
interesse dos espritos especulativos e criadores dos nossos tempos? No cremos. O
fenmeno to marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir
obra do acaso, parece condicionado s mesmas leis gerais que regulam as outras
manifestaes sociais de nossa cultura. Trata-se de um silncio premeditado pela
prpria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de
ordem poltica e econmica de nossa chamada civilizao ocidental que tornaram a
fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhvel de ser abordado
publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espcie de interdio
baseia-se no fato de que o fenmeno da fome, tanto a fome de alimentos como a
fome sexual, um instinto primrio e por isso um tanto chocante pura uma cultura
racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomnio da
razo sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o
animal e s a razo [pg. 30] como o social, a nossa civilizao, em sua fase
decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos,
tidos como foras desprezveis. A encontramos uma das imposies da alma
coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus impuros e
escabrosos e por isto indignos de serem tocados. Sobre o problema do sexo, foi
mantido um silncio opressor, at o dia em que um homem de gnio, num gesto
inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da cincia e da
moral oficiais, que o instinto sexual uma fora invencvel, to intensa que atinge a
2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878.
conscincia e a domina inteiramente. Freud demonstrou com tal genialidade o
primado do instinto, que essencial, sobre o racional, que acessrio, no
desempenho do comportamento humano, que no houve remdio seno aceitar-se,
mesmo a contragosto, a sua teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava
ingenuamente afogar as razes da prpria vida. Desde ento foi possvel debater-se
em altas vozes o problema do sexo.
Quanto fome, foram necessrias duas terrveis guerras mundiais e uma
tremenda revoluo social a revoluo russa nas quais pereceram dezessete
milhes de criaturas, dos quais doze milhes de fome, para que a civilizao
ocidental acordasse do seu cmodo sonho e se apercebesse de que a fome uma
realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos
do mundo.
Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econmicos das minorias
dominantes tambm trabalhavam para escamotear o fenmeno da fome do panorama
espiritual moderno. que ao imperialismo econmico e ao comrcio internacional a
servio do mesmo interessava que a produo, a distribuio e o consumo dos
produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenmenos
exclusivamente econmicos dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses
econmicos e no como fatos intimamente ligados aos interesses da sade
pblica. E a dura verdade que as mais das vezes esses interesses eram antagnicos.
Veja-se o caso da ndia, por exemplo. Segundo nos conta Rclus,3 nos ltimos trinta
anos do sculo passado morreram de inanio naquele pas mais de vinte milhes de
habitantes; s no ano de 1877 pereceram de [pg. 31] fome cerca de quatro milhes.
E, no entanto, de acordo com a sugestiva observao de Richard Temple
enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcut continuava a
exportar para o estrangeiro quantidades considerveis de cereais. Os famintos eram
demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida. lgico que os
grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praas
europias, que tiravam grandes proventos de suas importaes da ndia, faziam o
possvel para abafar na Europa os rumores longnquos desta fome longnqua, a qual,
se tomada na devida considerao, poderia atrapalhar os seus lucrativos negcios.
3 Rclus. Elise, Nouvelle Gographie Universelle, 1875-94.
Tambm os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vrios
pases e de cuja poltica fazia parte obrigatria a propaganda intempestiva de
prosperidades inexistentes, no podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que
viessem mostrar, s claras, aos outros pases, em que extenso a fome participava
dos destinos de seus povos. A prpria cincia e a tcnica ocidentais, envaidecidas
por suas brilhantes conquistas materiais, no domnio das foras da natureza, se
sentiram humilhadas, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em
melhorar as condies de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente
silncio sobre o assunto faziam-se, consciente ou inconscientemente, cmplices dos
interesses polticos que procuravam ocultar a verdadeira situao de enormes massas
humanas envolvidas em carter permanente no crculo de ferro da fome.
2. Hoje, tendo sido possvel realizar com a aquiescncia oficial4 uma srie de
pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regies da terra acerca das condies
de nutrio dos povos, e tendo-se evidenciado, dentro de um critrio rigorosamente
cientfico, o fato de que cerca de dois teros da humanidade vivem num estado
permanente de fome, comea a mudar a atitude do mundo. claro que para essa
mudana de atitude muito tem contribudo a presso de fatos inexorveis. H a
conscincia universal de que atravessamos uma hora decisiva, [pg. 32] na qual s
reconhecendo os grandes erros de nossa civilizao podemos reencontrar o caminho
certo e faz-la sobreviver catstrofe. Desses erros, um dos mais graves , sem
nenhuma dvida, este de termos deixado centenas de milhes de indivduos
morrendo fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua
produo e que dispe de recursos tcnicos adequados realizao desse aumento.
Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhes de homens, segundo
os clculos de East, oito bilhes, segundo os de Penk, e onze bilhes, segundo os de
Kucszinski; portanto, pelo menos para o dobro da populao atual.5
A demonstrao mais efetiva da mudana radical da atitude universal, em face
do problema, encontra-se na realizao da Conferncia de Alimentao de Hot
4 Desde 1928 a Liga das Naes inscreveu o problema da alimentao no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocnio de sua Organizao de Higiene, estudos detalhados em diferentes pases e dando publicidade a uma srie de valiosos relatrios sobre o assunto. 5 Ferenczi, Imre, LOptimum Synthtique du Peuplement, 1938.
Springs, a primeira das conferncias convocadas peias Naes Unidas para tratar de
problemas fundamentais reconstruo do mundo de aps-guerra. Nesta conferncia
reunida em 1943, e que deu origem atual Organizao de Alimentao e
Agricultura das Naes Unidas a FAO quarenta e quatro naes, atravs dos
depoimentos de eminentes tcnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento,
quais as condies reais de alimentao dos seus respectivos povos e planejaram as
medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos
clareadas, nos mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que
representam ncleos de populaes subnutridas e famintas, populaes que
exteriorizam, em suas caractersticas de inferioridade antropolgica, em seus
alarmantes ndices de mortalidade e em seus quadros nosolgicos de carncias
alimentares beribri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalcia,
bcios endmicos, anemias, etc. a penria orgnica, a fome global ou especfica
de um, de vrios e, s vezes, de todos os elementos indispensveis nutrio
humana.
Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo, faz-se
necessrio, no entanto, intensificar e ampliar, cada vez mais, os estudos sobre a
alimentao no mundo inteiro; donde a obrigao, em que se encontram os
estudiosos deste [pg. 33] problema, de apresentarem os resultados de suas
observaes pessoais, como contribuies parciais pura o levantamento do plano
universal de combate fome, de extermnio mais aviltante das calamidades, uma
vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que
as organizaes sociais vigentes se encontram incapazes de satisfazer a mais
fundamental das necessidades humanas a necessidade de alimentos.
Um dos grandes obstculos ao planejamento de solues adequadas ao
problema da alimentao dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que
se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestaes
simultaneamente biolgicas, econmicas e sociais. A maior parte dos estudos
cientficos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma
viso unilateral do problema. So quase sempre trabalhos de fisilogos, de qumicos
ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingncia profissional ao
quadro de suas especializaes.
Foi diante desta situao que resolvemos encarar o problema sob uma nova
perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma viso panormica
de conjunto, viso em que alguns pequenos detalhes certamente se apagaro, mas na
qual se destacaro de maneira compreensiva as ligaes, as influncias e as
conexes dos mltiplos fatores que interferem nas manifestaes do fenmeno. Para
tal fim pretendemos lanar mo do mtodo geogrfico, no estudo do fenmeno da
fome. nico mtodo que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade
total, sem arrebentar-lhe as razes que o ligam subterraneamente a inmeras outras
manifestaes econmicas e sociais da vida dos povos. No o mtodo descritivo d
antiga geografia, mas o mtodo interpretativo da moderna cincia geogrfica, que se
corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes,
Vidal de La Blanche, Criffith Taylor e tantos outros.
No queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma
monografia geogrfica da fome, em seu sentido mais restrito, deixando margem os
aspectos biolgicos, mdicos e higinicos do problema: mas, que, encarando esses
diferentes aspectos, sempre o faremos orientados pelos princpios fundamentais da
cincia geogrfica, cujo objetivo bsico localizar com preciso, delimitar e
correlacionar os fenmenos [pg. 34] naturais e culturais que ocorrem superfcie a
terra. dentro desses princpios geogrficos, da localizao, da extenso, da
causalidade, da correlao e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o
fenmeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de
natureza ecolgica, dentro deste conceito to fecundo de Ecologia, ou seja, do
estudo das aes e reaes dos seres vivos diante das influncias do meio. Nenhum
fenmeno se presta mais para ponto de referncia no estudo ecolgico destas
correlaes entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do
que o fenmeno da alimentao o estudo dos recursos naturais que o meio
fornece para subsistncia das populaes locais e o estudo dos processos atravs dos
quais essas populaes se organizam para satisfazer as suas necessidades
fundamentais em alimentos. J Vidal de La Blanche havia afirmado h muito tempo
que entre as foras que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais
tenazes a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares
regionais.6
6 Blanche, Vidal de La, Prncipes de Gographie Humaine, 1922.
Neste ensaio de natureza ecolgica tentaremos, pois, analisar os hbitos
alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas reas
geogrficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais
que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas e defeitos
caractersticos, e, de outro lado, procurando verificar at onde esses defeitos
influenciam a estrutura econmico-social dos diferentes grupos estudados. Assim
fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inmeros fenmenos de
natureza social at hoje mal compreendidos por no terem sido levados na devida
conta os seus fundamentos biolgicos.
No se deduza da que, num exagero descabido de especialista obcecado pela
importncia de seus problemas, iremos tentar a criao de qualquer nova teoria
alimentar das civilizaes, num novo broto desta escola bissocial de inesgotvel
fecundidade. Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso
escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do sculo passado, um
tanto influenciado pelas idias das hierarquias sociais, procurou explicar todas as
diferenas entre os grupos culturais por seus tipos de alimentao: [pg. 35] A
humanidade, de acordo com uma severa classificao econmica, deve ser dividida
em trs grandes raas a raa do trigo, a raa do milho, e a raa do arroz. Qual
delas indiscutivelmente superior? Com esta pergunta iniciava Bulnes o
desenvolvimento do seu raciocnio para demonstrar que s a raa do trigo capaz de
atingir as etapas da alta civilizao. No seu livro extraordinariamente interessante, se
anotarmos a poca do seu aparecimento no sculo passado El Porvenir de las
Naciones Hispano-Americanas ante las Conquistas de Europa y Estados Unidos
(1889) Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do
panorama mental americano, mas tambm um apaixonado de suas prprias idias,
capaz de forar os argumentos para demonstrar a mais absurda das teses. No nosso
ensaio no pretendemos provar nada de parecido. No queremos convencer ningum
de que a fome seja a mola nica da evoluo social, nem que sejam os alimentos a
nica matria-prima para fabricao das tintas com que so coloridos os diferentes
quadros culturais do mundo, mas to-somente destacar desses quadros os traos
negros da fome e da misria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou
menos acentuado.
3. Acreditamos que j tempo de precisar bem o nosso conceito demasiado
extenso e, portanto, suscetvel de grandes confuses. No constitui objeto deste
ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiolgico, j hoje bem
conhecido graas aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turr, Cannon e
outros fisilogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensao interna, aspecto este que
tem servido de material psicolgico para as magnficas criaes dos chamados
romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos
legaram pginas geniais e hericas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance
Fome verdadeiro relatrio minucioso e exato das diferentes, contraditrias e
confusar sensaes que a fome produziu no esprito do autor; como as de um Panait
Istrati, vagando esfomeado nas luminosas plancies da Romnia; como as de um
Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramtica intensidade a fome
negra da Rssia em convulso social; como as de um George Fink, sofrendo fome
nos subrbios cinzentos e srdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck,
contando, em Vinhas da Ira, a epopia de fome da famlia Joad, atravs das mais
ricas [pg. 36] regies do pas mais rico do mundo os Estados Unidos da Amrica.
No esse tipo excepcional de fome, simples trao melodramtico no
emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso estudo.7 O nosso
objetivo analisar o fenmeno da fome coletiva da fome atingindo endmica ou
epidemicamente as grandes massas humanas. No s a fome total, a verdadeira
inanio que os povos de lngua inglesa chamam de starvation, fenmeno, em geral,
limitado a reas de extrema misria e a contingncias excepcionais, como o
fenmeno muito mais freqente e mais grave, em suas conseqncias numricas, da
fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de
determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de
populaes se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.
principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes especficas,
em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho.
Nos ltimos dez anos aps a publicao deste nosso livro, este conceito j
ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se reconhece a existncia desses
vrios tipos de fome, e se fala sem maior constrangimento na luta universal contra a
fome, na batalha da fome etc. Deve-se, em grande parte, a implantao destes 7 Sobre os aspectos fisiolgicos da fome. consulte-se a obra recente de Masseyeff. Ren. La Faim, 1956.
conceitos, at bem pouco considerados como revolucionrios e heterodoxos,
prpria FAO, que, a princpio discreta e reticente em falar em fome, preferindo em
seus relatrios referir-se subnutrio dos povos, acabou por aceitar a nomenclatura
de fome, e a us-la largamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente cientficos.
Visamos com a publicao deste ensaio contribuir com uma parcela
infinitesimal para a construo do plano de ressurgimento de nossa civilizao,
atravs da revalorizao fisiolgica do homem. Poder, primeira vista, parecer
uma desmedida pretenso que o autor de um estudo de categoria to modesta como
este, lhe atribua qualquer interferncia por mnima que seja nos destinos
universais da humanidade. Encontramos, porm, uma explicao e uma justificativa
para nossa atitude, [pg. 37] na afirmativa recente do filsofo ingls Bertrand Russell
de que nunca houve momento histrico no qual o concurso do pensamento e da
conscincia individuais fosse to necessrio e importante para o mundo como em
nossos dias. E mais ainda que todo homem, qualquer homem comum, poder
contribuir para a melhoria do mundo.8 com esta mesma crena na obra de
cooperao de cada um, de coparticipaco ativa na busca de um mundo melhor, que
planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua expresso universal,
mostrando com que intensidade e em que extenso o fenmeno se manifesta nas
diferentes coletividades humanas.
4. De fato, o conhecimento exato da situao alimentar dos povos, dos recursos
de que podero dispor para satisfazer suas necessidades de nutrio, absolutamente
indispensvel para que se leve a bom termo a revoluo social que se processa com
incrvel velocidade nos dias em que vivemos. Revoluo que, segundo se vislumbra
pelas transformaes j processadas, est criando universalmente um novo sistema
de vida poltica, que poderemos chamar, como sugere Julian Huxley,9 a era do
homem social, em contraposio a essa outra era que terminou com a Segunda
Guerra Mundial, a era do homem econmico. O que caracteriza fundamentalmente
esta nova era uma focalizao muito mais intensa do homem biolgico como
entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os
problemas de categoria estritamente econmica no sentido da clssica economia do
8 Russell, Bertrand, Essais Sceptiques, Paris. 9 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.
lucro. Realmente, enquanto at a ltima guerra a nossa civilizao ocidental, em seu
exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-
se morbidamente em conquistar pela tcnica todas as foras naturais, pondo todo o
seu interesse nos problemas de explorao econmica e de produo de riqueza,
vislumbra-se hoje o estabelecimento de formas polticas dispostas a sacrificar os
interesses do lucro pelos interesses reais das coletividades. a tentativa cada vez
mais promissora de pr o dinheiro a servio do homem e no o homem escravo do
dinheiro. De dirigir a produo de forma a satisfazer as necessidades dos grupos
humanos [pg. 38] e no deixar o homem matando-se estupidamente para satisfazer
os insaciveis lucros da produo.
Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do
fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentrio
cientfico desta tragdia biolgica, na qual inmeros grupos humanos morreram e
continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem
econmico.
Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em
certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, bom que o leitor se lembre
de que esta obra, documentrio de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob
a influncia psicolgica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos
ltimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhes,
pela presso das censuras polticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos
oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o
socilogo Sorokin pinta com as seguintes palavras: vivemos e agimos numa era de
grandes calamidades. A guerra, a revoluo, a fome e a peste cavalgam novamente
em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortfero tributo humanidade
sofredora. Novamente elas influenciam cada momento da nossa existncia: nossa
mentalidade e nossa conduta, nossa vida social e nossos processos culturais.10
Devemos confessar honestamente que no nos foi possvel fugir na elaborao do
nosso trabalho a to dominadora influncia.
5. Vrias foram as razes que nos levaram a planejar a realizao desta obra
10 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942.
em mais de um volume. A primeira delas a desmedida extenso do seu campo de
observao, abrangendo todos os continentes, investigando as condies de vida nos
mais variados recantos da superfcie da terra. Por mais impressionista que seja o
retrato que tentamos pintar de cada uma das regies estudadas, no possvel
sintetizar os seus traos caractersticos atm de certos limites. A segunda razo se
fundamenta na evidncia de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as
condies so as mais favorveis sua execuo, leva vrios anos para ser
completado e a paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria
um tanto antiquadas [pg. 39] certas indicaes bibliogrficas e certos aspectos de
atualidade do problema em suas manifestaes regionais.
Considerando que o Brasil constituiu o nosso laboratrio natural de observao
sobre o problema a cujo estudo nos dedicamos h mais de vinte e cinco anos,
achamos de toda a convenincia concentrarmo-nos de incio na anlise do fenmeno
da fome no nosso pas, de sua influncia como fator biolgico na formao e
evoluo dos nossos grupos humanos. Estudando o fenmeno da fome no nosso
meio, daremos um balano geral das influncias de categoria biolgica que tm
interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa civilizao.
Buscando essa valorizao dos fatores de categoria biolgica, no quer dizer
que desprezemos a importncia dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria
do latifundismo agrrio-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade
brasileira. Isto inegvel. O que tentaremos mostrar que, mesmo quando se trata
da presso modeladora de foras econmicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre
homem e sobre o grupo humano, em ltima anlise, atravs de um mecanismo
biolgico: atravs da deficincia alimentar que a monocultura impe, atravs da
fome que o latifndio gera, e assim por diante. No defenderemos, pois, nenhuma
primazia na interpretao da evoluo social brasileira. Nem o primado do biolgico
sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biolgico. O que pretendemos pr ao
alcance da anlise sociolgica certos elementos do mecanismo biolgico de
ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do pas.11
11 Sobre a participao do biolgico no mecanismo social consulte-se a srie de interessantes estudos reunidos pelo eminente antroplogo R. Redfield, no livro Leveis of Integracion in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para uma orientao firme nesse campo cientifico tambm a obra de G. F. Gause The Struggle for Exis-tence (1934). Alexander Lipschtz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Amricas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicao bem orientada dos mais modernos
No temos a pretenso de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a
influencia de todos os fatores dessa categoria: raa, clima, meio bitico, etc., que
constituem a base orgnica da estrutura social dos nossos grupos humanos.
Estudando, porm, [pg. 40] os recursos e os hbitos alimentares de vrias regies,
teremos forosamente que levar em considerao todos esses fatores ecolgicos que
participam ativamente na interao do elemento humano e dos quadros geogrficos
brasileiros. Caracterizando o tipo de alimentao e os variados tipos de fome que
tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir nessas
caractersticas biolgicas, com maior exatido do que atravs do estudo de quaisquer
outras manifestaes de natureza ecolgica, o grau de adaptao e ajustamento dos
diferentes grupos regionais de nossas populaes s variadas zonas geogrficas do
pas. E so exatamente as expresses dessas variadas formas de adaptao que do
relevo fisionomia cultural de uma nao. por isso que julgamos ser este volume,
at certo ponto, uma tentativa de interpretao biolgica de determinados aspectos
da formao e da evoluo histrico-sociais brasileiras.
O nosso projeto inicial era escrever vrios volumes sobre o fenmeno da fome
universal um volume sobre cada continente assolado por este flagelo social.
A marcha dos trabalhos, a repercusso internacional que provocou o primeiro
volume acerca do Brasil e a necessidade um tanto urgente de apresentar um
panorama universal da matria nesta hora grave do mundo, em que a humanidade se
confronta com dois trgicos problemas o da guerra e do medo da guerra e o da
fome e do medo da fome todos estes fatores em conjunto alteraram o nosso plano
inicial. Chegamos, pois, concluso de que, aps apreciar regionalmente o problema
da fome no Brasil, seria til apresentar o panorama do mundo em conjunto, dentro
do mesmo mtodo de estudo, embora sem a mesma riqueza de detalhes que um
trabalho de categoria universal no poderia comportar. Assim, escrevemos e
publicamos a nossa Geopoltica da Fome, que dentro do nosso esquema geral
constituiu a segunda parte do nosso estudo do problema da fome em sua significao
biolgica, econmica e social.
conceitos de sociologia, na anlise do biolgico e do social na organizao dos diferentes grupos de populao deste continente.
A generosa acolhida que recebeu a Geopoltica da Fome no mundo inteiro,
sendo traduzida em dezenove lnguas e agraciada com o Prmio Roosevelt,
concedido nos Estados Unidos ao melhor livro publicado durante o ano sobre
assuntos sociais e de bem-estar humano, e com o Prmio Internacional da Paz, pelo
Conselho Mundial da Paz, d-nos a impresso de que fizemos [pg. 41] bem em
tomar esta deciso de concentrar nossa ateno no estudo do problema em sua
expresso universal correlacionando a crise biolgica da fome mundial com a
crise poltica em que o mundo se debate atualmente. E procurando demonstrar que o
caminho da paz e da felicidade humana est numa economia de abundncia, na luta
contra a fome e a misria e na vitria integral contra o medo tanto da fome como da
guerra. Medo que ameaa paralisar a capacidade criadora do homem e. portanto,
provocar o desmoronamento de toda a civilizao.*
* Estes esclarecimentos, escritos para o prefcio 9. edio da Geografia da Fome, foram mantidos nesta edio para que o leitor possa situar-se dentro do nosso plano de estudo e colocar-se a par das razes que determinaram nossa conduta diante do problema em equao.
6. Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma
explicao e uma ltima advertncia. A explicao visa a esclarecer as razes que
levaram o autor a dedicar dois volumes de sua obra ao estudo de um s pas, o
Brasil, concentrando em dois outros volumes o estudo do mundo inteiro. No foram
razes de ordem sentimental, nem de supervalorizao patritica que nos ditaram
essa conduta: foram razes de ordem didtica. O Brasil constituiu o nosso campo de
observao e de experimentao diretas do problema. De comprovao de inmeros
aspectos doutrinrios da questo e de ensaio e verificao de muitas hipteses que
formulamos sob aspectos particulares nesse setor cientfico. O seu vasto territrio
com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial supermido da
Amaznia at o tropical seco e semi-rido do serto do Nordeste e o subtropical com
seus variados tipos de organizao econmica, apresenta condies excepcionais
para uma larga investigao do problema da alimentao nos trpicos. Nenhum pas
do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro
laboratrio de pesquisa social deste problema.
Os resultados das observaes e investigaes que aqui procedemos durante
vinte e tantos anos, e que so apresentados neste ensaio, podero permitir, pela
aplicao do mtodo comparativo, generalizaes at certo ponto vlidas para
inmeras outras regies tropicais do mundo. Acentuar, pois, certos detalhes do caso
brasileiro, nesse estudo da geografia da fome, significa [pg. 42] procurar ilustrar
com exemplos concreto o estudo do fenmeno em diferentes reas geogrficas que
apresentem condies naturais ou culturais mais ou menos semelhantes s deste
pas. Ademais, desenvolvendo neste estudo certos aspectos doutrinrios da questo
para sua melhor compreenso por parte dos no iniciados na matria, fomos
poupados de voltar ao assunto na Geopoltica da Fome, em que apresentamos em
forma mais densa traos e fatos objetivos que caracterizam as inmeras reas
geogrficas analisadas.
H, no entanto, um perigo em publicar separadamente esse estudo das reas de
fome no Brasil, destacado das outras reas de fome do continente. Perigo de que, por
desconhecimento ou por m f, possa algum julgar serem as condies de vida no
nosso pas, na hora atual, mais graves e mais difceis do que no resto da Amrica.
Afirmativa que est longe de ser verdadeira.
Na maioria dos pases da Amrica Latina, conforme pudemos verificar em
visitas locais e atravs de documentos estatsticos e informes cientficos obtidos, as
condies de vida so ou idnticas ou ainda mais precrias do que as do Brasil.
Temos uma confirmao destas palavras no resumo que, acerca das condies
de vida na Amrica Latina, apresentaram George Soule, David Efron e Norman T.
Ness, no seu livro Latin America in The Future World (1945).
Como se trata de uma publicao que resume os resultados de minucioso
inqurito levado a efeito atravs do continente por notveis investigadores e peritos,
supervisionados pela National Planning Association, cuja idoneidade tcnica est
acima de qualquer suspeita, parece-nos recomendvel transcrever na ntegra os 13
itens em que os autores registram os aspectos mais significativos da vida
econmico-social desta larga poro do continente americano:
A necessidade de encarar realisticamente os problemas da Amrica Latina
tornou-se urgente depois da guerra. A participao desses povos, na reconstruo do
novo mundo, imprescindvel e valiosa. Como, porm, tornar possvel essa
participao? Quais so as condies existentes entre esses povos? O que se segue
ajuda a compreender a situao desses pases:
1.) Dois teros, talvez mais, das populaes da Amrica Latina so de
subnutridos, apresentando-se mesmo as populaes [pg. 43] de certas regies em
estado de fome absoluta. A maioria mal nutrida, mal vestida e mal alojada.
2.) Trs quartos da populao da maior parte dos pases da Amrica Latina
so de analfabetos; nos pases restantes a proporo de analfabetos varia de 20 a
60%.
3.) A metade da populao da Amrica Latina sofre de doenas infecciosas ou
carenciais.
4.) Dois teros da populao da Amrica Latina no gozam dos benefcios da
assistncia social.
5.) Cerca de um tero das populaes trabalhadoras (especialmente milhes
de trabalhadores ndios) continua sem participao alguma na vida econmica,
social e cultural da comunidade latino-americana. O poder aquisitivo do ndio , em
muitas reas, igual a zero. Com exceo do Mxico, ele politicamente um cidado
de segunda classe.
6.) Dois teros da populao latino-americana vivem em condies
semifeudais de trabalho.
7.) Uma surpreendente maioria da populao rural no possui terra. Dois
teros, se no mais, dos recursos agrcolas, florestais e o gado pertencem ou so
controlados por uma minoria de senhores de terra nacionais e por organizaes
estrangeiras.
8.) A maior parte das indstrias extrativas da Amrica Latina pertence ou
controlada por organizaes estrangeiras, sendo considervel parte dos lucros
desviada dos vrios pases. Da mesma forma muitas das instituies de produo e
distribuio so controladas pelo capital estrangeiro ausente.
9.) As condies de vida da massa da populao latino-americana so
particularmente instveis, dependendo das flutuaes do mercado estrangeiro. A
concentrao numa espcie de indstria extrativa ou a monocultura de produtos de
sobremesa (caf, acar, cacau, banana, etc.) para o consumo externo mais que
para o consumo interno, arrastaram vrias regies latino-americanas beira da runa
econmica. [pg. 44]
10.) O comrcio interno e o intercmbio comercial dos pases latino-
americanos so essencialmente rudimentares. Existe grande desequilbrio econmico
entre diferentes zonas de um mesmo pas, como tambm entre os vrios pases. As
limitadas oportunidades de intercmbio comercial nos pases latino-americanos so
semelhantes s do sculo XVI, quando a Espanha, por intermdio da Cmara de
Contratos de Sevilha, proibia as colnias latino-americanas de negociar entre si. O
intercmbio latino-americano representa apenas 7% do comrcio total da Amrica
Latina.
11.) A estrutura semicolonial da economia latino-americana reflete-se nos
meios de transporte: as estradas de ferro e a navegao martima destinam-se, na
maior parte, ao transporte de matrias-primas do interior para os pontos de embarque
para o estrangeiro e ocasionalmente para o desenvolvimento do mercado interno.
Essa deficincia de transportes fator importante do limitado intercmbio latino-
americano.
12.) Com exceo da Colmbia, Argentina, Brasil e Uruguai, a percentagem
de indivduos produtivos ou dos bem remunerados muito mais baixa do que nos
Estados Unidos ou na Europa (cerca de 31% enquanto a dos Estados Unidos, no
tempo do desemprego, era de 30,8%). Essa alta proporo de populao no
aproveitada constitui um grande peso para a parte economicamente produtiva.
13.) A capacidade produtiva do trabalhador latino-americano muito inferior
do americano ou do europeu, pelas razes acima expostas subnutrio,
ignorncia e falta de aparelhagem adequada.
Pela leitura da Geopoltica da Fome, em que so apresentadas as manchas de
fome da Amrica Espanhola, o assunto ficar bem compreendido e afastado o perigo
das interpretaes errneas. No se pode, pois, tirar concluses de qualquer paralelo
entre a situao do Brasil e a de outros pases da Amrica, seno tomando por base
de comparao trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses
pases, destacando os seus traos mais significativos, com o mesmo realismo isento
de preconceitos, com que estudamos a situao alimentar no Brasil. [pg. 45]
Se no so muito abundantes os estudos sobre as condies alimentares na
Amrica Latina, h, no entanto, alguns trabalhos que nos permitem ajuizar bem
delas, podendo ser considerados documentos absolutamente idneos. Veja-se, assim,
para uma viso de conjunto, o trabalho de Woodbury Food Consumption and
Dietary Surveys in The Americas (1942); E o notvel livro de George Soule, David
Efron e Norman T. Ness Latin America in the Future World (1945). Para estudo
em separado dos diversos pases, consulte-se, entre outros, os seguintes trabalhos:
Alfredo Ramos Espinosa La Alimentacin en Mxico, Mxico, 1939; Arturo
Guevara El Poliedro de la Nutricin Aspectos econmico y Social del
Problema de la Alimentacin en Venezuela, Caracas, 1944; E. Quintana El
Problema Diettico del Caribe in Amrica Indgena Mxico, abril, 1942;
Jorge Bejarano Alimentacin y Nutricin en Colombia Bogot. 1941; Pablo A.
Suarez La Situacin Real del ndio en Equador in Amrica Indgena
Mxico, janeiro, 1942; Salvador Allende La Realidad Mdico-Social Chilena
Santiago, 1939; J. Maudones e R. Cox La Alimentacin en Chile, Estudios del
Consejo Nacional de Alimentacin Santiago, 1942; e Francisco A. Montalto
La Nutricin en el Paraguay 1956. Que a situao alimentar da Amrica Latina
pouco mudou nos ltimos anos, apesar dos esforos empreendidos por governos e
instituies internacionais, pode deduzir-se atravs dos relatrios das trs
Conferncias Latino-Americanas de Nutrio, convocadas sob o patrocnio da FAO
por proposta pessoal nossa, quando delegado do Brasil, em 1947, e que se reuniram,
com a colaborao da Organizao Mundial de Sade, respectivamente em julho de
1948 em Montevidu, em junho de 1950 no Rio de Janeiro, em outubro de 1953 em
Caracas. Essa situao se confirma ainda atravs do bem elaborado relatrio da
CEPAL (Comisso econmica para a America Latina), publicado em agosto de 1955
sob o ttulo: A Expanso Seletiva da Produo Agropecuria na Amrica Latina e
suas Relaes com o Desenvolvimento econmico. De uma simples referncia ali
encontrada pode deduzir-se da falta de recursos alimentares para sanar o estado de
fome reinante em nosso Continente: A produo agrcola entre o perodo de antes
da guerra e 1954-1955 cresceu de 35% mas a mdia de produo per capita caiu de
8%, no mesmo lapso de tempo. [pg. 46]
A verdade que a Amrica Latina uma das poucas regies do mundo onde a
produo agrcola no tem acompanhado o aumento da populao, quando a
produo total do mundo nos ltimos anos sobrepujou sensivelmente o aumento
populacional.
7. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor
esboar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrs. Do Brasil que era ento
um pas tipicamente subdesenvolvido, com sua caracterstica economia de tipo
colonial, na exclusiva dependncia de uns poucos produtos primrios de exportao,
entre os quais se destacava o caf. Ao retratarmos a fome no Brasil estvamos a
evidenciar o seu subdesenvolvimento econmico, porque fome e
subdesenvolvimento so uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econmico-social
com todas suas trgicas conseqncias que inspirou este ensaio. Que nos levou a
tentar o levantamento cientfico de uma geografia da fome. Em sucessivas edies
que ocorreram desde ento, procuramos sempre reajustar o nosso trabalho
realidade vigente, o que no constituiu tarefa difcil porque o pas no mudara muito
nestes aspectos de sua estrutura social. Bastaram algumas atualizaes dos dados
estatsticos e pequenos retoques para que o retrato permanecesse vlido e vlida,
pois, a interpretao apresentada da realidade social brasileira.
Nos ltimos anos vem entretanto o Brasil sofrendo uma profunda
transformao em sua economia, a qual embora nem sempre traduza um autntico
progresso social, capaz de melhorar as condies de vida do seu povo, tem de
qualquer forma provocado substancial alterao no quadro da realidade social
brasileira. O Brasil inicia com vigor a sua emancipao econmica e fugindo ao
crculo de ferro do subdesenvolvimento se projeta na fase construtiva de seu
desenvolvimento autnomo.
J no somos um pas simplesmente agrcola e de pura economia colonial. A
industrializao se vem processando nos ltimos anos em ritmo acelerado,
deslocando sensivelmente o eixo da nossa economia.
Esta transformao substancial da vida econmica brasileira inspirou ao autor
deste livro uma reviso mais acurada de alguns dos seus traos mais significativos,
das principais tendncias de sua dinmica social para que este ensaio no viesse a
perder o seu sentido de um documento interpretativo [pg. 47] desta realidade. E foi o
que resolvemos fazer ao prepararmos esta 9.a edio da Geografia da Fome: trazer
para o quadro de nossas investigaes as incgnitas que se levantam neste momento
de transio por que atravessa o Brasil. Principalmente perplexidade que at certo
ponto se cria diante da experincia indita do nosso desenvolvimento econmico, o
qual foge, sob vrios aspectos, s regras tericas da economia clssica. Neste ponto
o livro que ora apresentamos representa uma verdadeira inovao sobre as suas
edies anteriores. um livro revitalizado por novas indagaes de semiologia
econmica para reajustar o primitivo diagnstico formulado. quase que um novo
livro, utilizando o mesmo mtodo de investigao, a mesma perspectiva de anlise
dos problemas e muitos dos materiais de base j expostos, mas tudo completado por
uma nova formulao da realidade do Brasil atual e da atual conjuntura econmica e
social do mundo, bem diferentes das de 1946.
Neste sentido nos detivemos principalmente em analisar os efeitos atuais e
futuros deste tipo de desenvolvimento econmico que se processa no Brasil de hoje
e na necessidade de reajust-lo em certos pontos para corrigir os desvios, os
desequilbrios e as distores que podero criar que j esto criando srios
impactos ao verdadeiro progresso e ao bem-estar social a que aspiram as populaes
nacionais.
A experincia brasileira por sua originalidade e por sua extenso constitui
mesmo um exemplo significativo para orientao de outros pases que se esforam
no momento por vencer o estgio de subdesenvolvimento. Os nossos erros e os
nossos acertos merecem, pois, uma anlise mais profunda e se possvel algumas
dedues genricas que possam conduzir formulao de uma nova teoria do
desenvolvimento das regies subdesenvolvidas. Uma teoria mais emancipada das
formulaes livrescas, de uma economia clssica de gabinete e das utopias de
exportao forjadas nos grandes centros de estudo dos pases ricos e bem
desenvolvidos para serem impostas artificialmente aos pases de economia
dependente.
O drama atual do Brasil, que . promover o seu desenvolvimento, com suas
escassas disponibilidades, em ritmo acelerado e sem sacrificar as aspiraes de
melhoria social de seu povo, constitui a pedra de toque da acuidade poltica dos
nossos dirigentes. A conscincia nacional despertada acompanha alerta [pg. 48] o
desenrolar da odissia de nossa emancipao econmica, com os seus avanos e
recuos, e dela participa de corpo e alma.
Nenhum problema se sobrepe no equacionamento, planificao e na execuo
de um programa desenvolvimentista, ao da prioridade dos investimentos, de forma a
evitar os desequilbrios graves que depressa se constituem como fatores de
estrangulamento de toda a economia.
O dilema de apoiar-se mais a economia no setor agrcola ou no setor industrial
o dilema do po ou do ao para atender s verdadeiras necessidades do pas, se
apresenta como o fio da navalha que pode pr em perigo todos os sacrifcios e
esforos despendidos pela coletividade.
nesta contingncia que o nosso mtodo de estudo talvez possa trazer alguma
luz a este angustiante problema, mostrando at que ponto o progresso econmico
realizado tem sido favorvel e at que ponto tem ele fracassado no sentido de
melhorar as condies de alimentao do nosso povo alargando as negras
manchas de misria de nossa geografia da fome. E servindo desta forma este nosso
ensaio como uma modesta contribuio na reformulao de nossa poltica
econmica ainda bem incipiente em seus mtodos de ao.
8. Ao publicar esta. 9.a edio da Geografia da Fome, em forma que julgo de
uma edio definitiva, atualizada e ampliada em dois volumes, desejo aproveitar a
oportunidade para formular os meus agradecimentos a todos aqueles que prestaram
na realizao deste projeto sua valiosa cooperao, sem a qual dificilmente seria
possvel ao autor se aventurar a empreend-lo. Abrange este agradecimento a toda
espcie de ajuda e colaborao, desde os servios prestados por um Tom Spies,
quando atendendo a nosso pedido envia-nos com toda presteza uma srie de
interessantes subsdios sobre a situao alimentar no sul dos Estados Unidos, at a
espontnea colaborao dum simples sertanejo de So Joo do Cariri, que nos
manda amostras de mel de abelha e de farinha de macambira para verificao do seu
valor nutritivo.
Considerando no entanto que foram inmeras essas colaboraes, limitaremos
as referncias nominais no momento queles que ajudaram a elaborao dos dois
volumes sobre o Brasil. Sobre os outros, sobre o envio de valiosos materiais,
informes e conselhos referentes ao problema em outras regies do mundo, [pg. 49]
nos reservaremos para apresentar nossos agradecimentos com o aparecimento dos
volumes que cuidem diretamente do estudo dessas reas.
Fica aqui consignada a nossa gratido a todos os nossos colaboradores no
extinto Servio Tcnico de Alimentao Nacional, e no atual Instituto de Nutrio
da Universidade do Brasil, em cujos laboratrios foram realizadas algumas das pes-
quisas referidas neste trabalho. Desses colaboradores destacamos os nomes de
Slvio de Azevedo e Pedro Borges pela coleta de dados estatsticos que levaram a
efeito com o fim de fornecer ao autor uma documentao mais objetiva de certos
aspectos do problema; de talo Mattoso, Emlia Pechnik, Isnard Teixeira e Jos
Maria Chaves pelas anlises que realizaram acerca do valor nutritivo de vrios
alimentos brasileiros e a cujos resultados nos reportamos neste ensaio; de
Clementino Fraga Filho pela constante colaborao no esclarecer certos aspectos
mdicos e higinicos das carncias alimentares em nosso pas, e de Firmina Santana
pelas tbuas de composio de alimentos que organizou e que nos foram de grande
ajuda neste trabalho.
Agradecemos nossa assistente na cadeira de Geografia Humana na Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, Professora Lucy de Abreu, pela
dedicao e pelo interesse com que realizou buscas bibliogrficas de alta valia na
execuo deste trabalho. Ao nosso prezado amigo, o ilustre antroplogo baiano
Thales de Azevedo, e ao eminente nutrlogo Orlando Parahym, pelos valiosos
informes que nos prestaram, respectivamente acerca das condies alimentares no
recncavo baiano e nos sertes de Pernambuco, e a este ltimo ainda pelos envios de
materiais alimentos sertanejos que nos fez vrias vezes para anlises no
Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil.
Ao saudoso Professor Jorge Zarur pela prestimosidade com que ajudou a
seleo e a incluso nestes volumes do material ilustrativo retirado dos arquivos do
Conselho Nacional de Geografia. Ao higienista Oswaldo Costa, nosso colaborador
de h muito, pelas sugestes e dados fornecidos sobre aspectos epidemiolgicos do
Brasil.
Ao nosso estimado colega Dr. Cludio Arajo Lima por nos ter confiado os
originais inditos de um estudo da autoria de seu saudoso pai, o mdico e socilogo
Arajo Lima, acerca da Alimentao da Amaznia trabalho apresentado ao
Congresso [pg. 50] Mdico Amaznico, reunido em 1939, em Belm, do qual
tambm participamos, e no qual este grande estudioso de problemas brasileiros fixa
interessantes aspectos da dieta do homem que habita esta extensa rea do pas.
A Luiz da Cmara Cascudo pelas sugestes que dele recebemos em saborosas
conversas ou atravs de cartas mandadas do Nordeste, tratando principalmente de
um projeto que os acasos da vida no nos permitiram realizar, o de escrevermos em
colaborao uma histria da cozinha brasileira. A Edson Carneiro, srio estudioso
dos problemas negros no Brasil, pela amabilidade que teve de nos emprestar os
originais do seu livro ainda indito sobre os Palmares, pondo ao nosso alcance
informaes de primeira ordem sobre a agricultura dos negros fugidos dos engenhos
do Nordeste e acantonados nos Quilombos. Ao meu saudoso amigo Joo Alberto
Lins de Barros, conhecedor profundo dos problemas rurais do Brasil, atravs da
experincia viva e direta de suas realidades singulares, p