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JOSUÉ DE CASTRO GEOGRAFIA DA FOME (O DILEMA BRASILEIRO: PÃO OU AÇO) 10.ª EDIÇÃO REVISTA antares

CASTRO, Josué de - Geografia Da Fome

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  • JOSU DE CASTRO

    GEOGRAFIA DA FOME (O DILEMA BRASILEIRO: PO OU AO)

    10. EDIO REVISTA

    antares

  • Copyright: Glauce Pinto de Castro Capa: AG Comunicao Visual, Assessoria e Projetos Ltda. 1984 Impresso no Brasil Printed in Brazil

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Castro, Josu, 1908-1973.

    C351g Geografia da fome : o dilema brasileiro : po ou ao Josu de Castro. Rio de Janeiro : Edies Antares, 1984.

    (Clssicos das Cincias Sociais no Brasil)

    Bibliografia

    1. Brasil Condies econmicas. 2. Fome. 3. Poltica nutricional. 4. Subnutrio. S. Subnutrio Brasil. I. Ttulo. II. Srie.

    CDU 613.24:308

    84-0193 613.24:308(81) 612.391:308 338(81) Direitos desta edio reservados a

    Rua Nina Rodrigues n 9 Jardim Botnico 22461 Rio da Janeiro, RJ.

  • A

    Rachel de Queiroz e

    Jos Amrico de Almeida,

    romancistas da fome no Brasil.

    A memria de

    Euclides da Cunha e

    Rodolfo Tefilo,

    socilogos da fome no Brasil.

  • SUMRIO Prefcio nona edio

    Andr Meyer Prefcio dcima edio

    Alceu Amoroso Lima Prefcio do autor I Introduo II rea amaznica III rea do Nordeste aucareiro IV rea do serto do Nordeste V As reas de subnutrio: Centro e Sul VI Estudo do conjunto brasileiro VII Glossrio Apndice oitava edio Biografia Bibliografia 339

  • PREFCIO A NONA EDIO

    A fome eis um problema to velho quanto a prpria vida. Para os homens,

    to velho quanto a humanidade. E um desses problemas que pem em jogo a prpria

    sobrevivncia da espcie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar

    contra as doenas que a assaltam, abrigar-se das intempries, defender-se dos seus

    inimigos. Antes de tudo, porm, precisa, dia aps dia. encontrar com que subsistir

    comer. E esta necessidade, a fome que se encarrega de lembr-la. Sob o seu ferro

    e para lutar contra ela. a humanidade aguou seu gnio inventivo. Ningum o ignora.

    E todo mundo sabe tambm que. nesse velho combate contra esta praga permanente,

    o homem conseguiu apenas uma vitria incerta e precria.

    Contudo e o que nos faz ver o Prof. Josu de Castro logo s primeiras

    pginas do seu livro a Geografia da Fome nos pases mais adiantados, parece que

    as geraes passadas preferiram no aprofundar muito esse grande problema. Para

    qu? No decurso da Histria, linha havido, sem dvida, pocas de fome. Mas isso

    parecia to remoto! Continuava a haver fome em certos pases. Mas isso parecia to

    distante! As guerras s vezes acarretavam a fome. Mas isso parecia to raro!

    Na realidade, sob essa aparente indiferena, havia algo mais do que simples

    imprevidncia e egosmo. Havia dois sentimentos mais profundos. O primeiro,

    oriundo da convico milenar de que os males provocados por flagelos naturais so

    inevitveis: o segundo, da idia de que a prpria organizao [pg. 11] das sociedades

    comporta desigualdades entre os homens e que estas, por sua vez, so inevitveis.

    Para que ento pensar no irremedivel?

    Essas duas idias, essas duas atitudes j se tornaram, porm, insustentveis.

    Um flagelo s inevitvel quando permanece em mistrio. Os males provenientes

    da falta de alimentos continuam sendo um problema, mas j no so um mistrio.

  • Foi este o resultado de cento e cinqenta anos de trabalho cientfico. J hoje

    sabemos em que consistem as necessidades em alimentos. J hoje sabemos o que

    alimentao.

    Trs etapas foram percorridas nessa conquista de importncia capital para a

    humanidade. Foi no sculo XVIII que Lavoisier abriu as portas e mostrou o caminho

    da primeira etapa. Descobriu o que o fogo, a combusto viva: uma fixao de

    oxignio, uma oxidao. A seguir, o que a calcinao das terras: uma combusto

    lenta e, por conseguinte, tambm uma fixao de oxignio, uma oxidao. E,

    finalmente, o que a respirao: uma combusto ainda mais suave, porm, da

    mesma forma, uma fixao de oxignio, uma oxidao. E foi assim que demonstrou

    que a prpria vida se assemelha aos grandes processos da Natureza. A vida traduz-se

    por um encadeamento organizado de acontecimentos fsico-qumicos. Quando nosso

    organismo mantm constante sua temperatura, enquanto declina a do meio ambiente

    ou quando ele desempenha qualquer trabalho muscular tudo isso se traduz em

    reaes qumicas: o gasto das reservas que se faz atravs da fixao do oxignio e da

    emisso de calor. O trabalho do organismo sua vida pode, pois. exprimir-se

    exatamente por essa emisso de calor que permite determinar-se o que ele perde.

    Determinar a perda significa tambm determinar as necessidades, uma vez que, para

    manter-se, o organismo precisa reparar suas perdas. E pela alimentao que fazemos

    essa compensao, essa restaurao. Consumimos fragmentos de seres vivos, que,

    por sua vez, so combustveis. Seu valor de reparao, de restaurao, seu valor

    como alimento pode tambm, por seu lado, ser medido com exatido, pelo calor que

    se desprende de sua combusto. Assim, as necessidades alimentares do homem e o

    valor de sua alimentao podem ser definidos fisicamente, tornando-se calculveis

    em termos de calor, em calorias.

    A segunda etapa teve lugar no sculo XIX. Seguindo as pegadas de Lavoisier,

    descobriram os qumicos que a Natureza [pg. 12] e os seres vivos, que nela se

    encontram so todos compostos de elementos simples que, segundo supunham,

    seriam imutveis e indestrutveis. O organismo formado de certo nmero desses

    elementos, presentes em determinadas propores. Uma parte desses elementos se

    perde no trabalho do organismo. Se essa perda no for reparada, o organismo estar

    em perigo mortal. Foi levantada a relao desses elementos indispensveis.

    Calculou-se o que o organismo gasta e o que necessita para recuperar estes gastos.

  • Pois, tal como ocorria com os qumicos do sculo XIX, mas no com os dos nossos

    dias o organismo no sabe fabricar elementos qumicos. Precisa encontr-los

    todos em sua alimentao. Esta se tornou, desde ento, quimicamente definida.

    Terceira etapa: a do sculo XX. Acreditava-se at ento que, de posse dos

    elementos, o organismo era capaz de sintetizar todas as molculas de que ele se

    compe, mas isso era um erro. Os seres vivos so qumicos incompletos. Descobriu-

    se que existe toda uma srie de molculas (cidos aminados, cidos graxos,

    vitaminas) que eles no sabem fazer e que precisam encontrar j preparadas, dentro

    da alimentao. Mas essas molculas so indispensveis vida. Basta faltar alguns

    miligramas de algumas delas na alimentao cotidiana para sobrevir uma doena

    grave ou a morte.

    Os resultados dessas descobertas tm alcance incalculvel. Para comear, a

    palavra fome j no basta. que o termo evoca simplesmente a insuficincia da

    quantidade de alimentos, provocando a subnutrio e a morte pela fome. Trata-se

    agora de outra coisa. Viemos a saber que no apenas quando nossa alimentao

    insuficiente que estamos ameaados. Tambm o estaremos se ela for mal

    constituda. Neste ltimo caso, surge uma srie de estados de subnutrio. Quando

    essa subnutrio grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenas

    de h muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas. Se a carncia de

    molculas indispensveis for menos pronunciada, determinar o mau funcionamento

    do organismo, o desenvolvimento defeituoso das crianas, a fraqueza parcial dos

    adultos, certa desagregao do estado mental e, por fim, a degenerao progressiva

    terminando por provocar o desaparecimento de grupos humanos. Os efeitos de uma

    m alimentao so, por conseguinte, muito mais profundos e mais amplos do que se

    pensava. Influem na durao e na qualidade [pg. 13] da prpria vida, na capacidade

    de trabalho, no estado psicolgico das populaes.

    Mas esses males so facilmente curveis. Quem j tiver assistido ressurreio

    de um pelagroso coberto de horrveis leses, devorado pela doena, demente,

    moribundo, curando-se em poucos dias pela ingesto de alguns miligramas dessas

    molculas que faltavam na sua alimentao e que os qumicos fabricam hoje s

    toneladas, no duvidar dessa verdade. A subnutrio endmica no se presta,

    porm, a essas curas espetaculares. Exige interveno contnua. Pode ser eliminada e

    pode ser evitada por meios naturais: basta que se garanta s populaes uma boa

  • alimentao, suficiente, completa e equilibrada.

    Sabemos hoje em que consiste tal alimentao. Sabemos calcular em termos de

    calorias em que deve consistir a massa de alimentos cotidianos. Podemos calcular

    em gramas, em miligramas, o que essa alimentao deve conter de princpios

    alimentares, de molculas indispensveis. Temos, pois, doravante, noes slidas,

    inabalveis, permitindo determinar com bastante preciso o que deve ser a

    alimentao de uma criana, de um adulto em descanso ou trabalhando, de uma me,

    de uma famlia, de uma cidade, de uma populao inteira. E isso constitui um

    acontecimento de importncia capital na histria da humanidade.

    A questo , pois. a seguinte: existem, no nosso planeta, mais de dois bilhes

    de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquritos realizados nos

    permitem responder: alimentam-se mal. Mais da metade desses seres humanos se

    encontra, mais ou menos, em estado de subnutrio. E tal estado s tende a agravar-

    se, uma vez que a populao da Terra cresce de ano a ano em cerca de 50 a 60

    milhes de indivduos. Devemos acrescentar que a subnutrio no atinge apenas os

    pases mais atrasados, mas tambm grupos inteiros de populao nos pases mais

    adiantados do mundo.

    Trata-se, por conseguinte, de alimentar bem essas populaes. Ao plano de

    alimentao traado deve corresponder um plano de produo agrcola adequado.

    Os clculos indicam que esse plano dever comportar considervel aumento da

    produo atual. Ser tal aumento tecnicamente possvel? Neste caso ainda resposta

    ser bem diferente da que se poderia ter dado h um sculo atrs. Os progressos [pg.

    14] da Cincia e da Tcnica tm sido de tal ordem dispomos hoje de inmeros

    meios pura aumentar a produo das plantas e do trabalho humano que j

    possvel, querendo, alimentar e alimentar bem todos os homens.

    Provocar sistematicamente um aumento considervel e ordenado da produo

    agrcola no problema de pura tcnica agronmica. um problema econmico.

    Efetivamente, trata-se de integrar a agricultura no conjunto da economia.

    No se pode criar uma agricultura moderna sem considervel despesa de

    equipamento. No se pode fornecer esse equipamento sem criar a indstria

    necessria. No se pode tornar a indstria e a agricultura fregueses recprocos, faz-

    las interdependentes, sem distribuir metodicamente a populao ativa de acordo com

    certa diviso do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa

  • populao, uma distribuio da renda nacional, de modo a permitir o intercmbio

    entre elas. E ainda: no basta criar a capacidade aquisitiva, a capacidade de

    intercmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente essas capacidades, aumentar

    a renda nacional. Ser isso possvel? Ainda neste ponto a resposta positiva: no

    impossvel uma vez que tal desideratum j foi conseguido nos pases mais

    adiantados.

    E no s. H uma condio indispensvel criao de uma economia de

    expanso e essa condio suscita um problema social. Para multiplicar os bens da

    Terra, valorizar o mundo e obter plena utilizao dos recursos naturais

    necessrio aplicar integralmente as possibilidades da Cincia e da Tcnica. Mas essa

    aplicao completa s se consegue atravs de um imenso esforo de educao,

    atravs de uma elevao progressiva do nvel cultural das populaes do mundo. E

    tudo isso depende da instruo que se der s crianas e aos adolescentes e das

    informaes que forem divulgadas entre os adultos.

    Por outro lado a expanso econmica e a multiplicao do intercmbio s

    sero conseguidas pela diversificao das necessidades humanas, fornecendo-se

    meios para satisfaz-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade aquisitiva

    e a parte reservada s despesas de civilizao.

    Assim, a valorizao do mundo s possvel graas valorizao dos

    homens, permitindo-lhes a expanso de suas faculdades. No basta dizer que a

    valorizao do Homem deveria [pg. 15] constituir o objeto da Economia. Na

    realidade constitui ela a condio indispensvel para a expanso econmica.

    Essa grande obra que se ergue diante de ns nada tem de irrealizvel. Em

    nenhum ponto est fora do nosso alcance, desde que saibamos querer. O problema

    da fome difcil, no h dvida. Mas pode ser exposto claramente. As condies de

    sua soluo podem ser definidas e a ao a empreender para chegar ao fim j pode

    ser calculada. J no podemos, pois, silenciar sobre o assunto. E preciso, pelo

    contrrio, atac-lo com coragem, no interesse de todos. As cinqenta e sete naes

    membros da Organizao Internacional de Alimentao e Agricultura (FAO) j o

    compreenderam. E resolveram agir.

    dentro dessa ao de grande envergadura, de tanta amplitude e de

    importncia to fundamental, que se coloca o livro do Prof. Josu de Castro. E chega

    em momento oportuno. Uma das primeiras coisas a fazer levantar um inventrio,

  • to completo quanto possvel, da situao atual. preciso designar as populaes, os

    grupos mais ameaados e estud-los. Trata-se, no sentido mdico da palavra, de

    fazer a observao de seu estado de nutrio. No sentido geogrfico, de um ensaio

    ecolgico dessas populaes, estudando o complexo que criou o solo, o clima, as

    plantas e os animais. E no sentido sociolgico, um inqurito econmico-social.

    Historicamente, trata-se de um estudo da origem e do desenvolvimento da situao

    atual.

    O Prof. Josu de Castro estava bem apto para empreender essa difcil tarefa.

    No ele apenas um homem de laboratrio um conceituado fisilogo. tambm

    um gegrafo, um pesquisador, um historiador. E os resultados que conseguiu atravs

    dos mtodos de indagao de disciplinas to diferentes foram por ele ordenados

    filosoficamente.

    Seu livro no apenas uma coletnea sistemtica de fatos instrutivos. uma

    obra profundamente atraente porque eminentemente viva. Ningum poder

    esquecer, depois de as ter lido. as pginas em que o autor nos conta a tragdia dos

    seringueiros alquebrados pelo beribri, engolidos na voragem da floresta amaznica,

    nem aquelas em que nos descreve a seca alastrando-se pelo serto do Nordeste

    brasileiro, esterilizando as terras, matando os animais, expulsando os homens. Ou

    ento as pginas em que nos narra a histria impressionante dos colonos destruindo

    progressivamente a floresta do mesmo Nordeste, para plantar a cana-de-acar e

    deixando-se iludir pela [pg. 16] atrao do lucro, at suprimirem as prprias culturas

    de sustentao e destrurem aquelas mesmas populaes que edificavam sua fortuna.

    Nesta Geografia da Fome, o problema da subnutrio e da carncia alimentar

    aparece em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos

    aspectos e a importncia primordial. Um livro como este suscita ao e serve-lhe de

    guia. O leitor ver que um livro de utilidade imediata e, ao mesmo tempo, um livro

    inteligente e generoso. Em suma: que um bom livro.

    Andr Mayer

    Professor da Universidade de Paris

    ex-Presidente do Conselho

    Executivo da FAO [pg. 17]

  • PREFCIO DCIMA EDIO

    Nos dois artigos,* ora transcritos nesta nova edio de uma das obras clssicas

    de nossa literatura, a Geografia da Fome de Josu de Castro (1956), artigos esses

    publicados em 1973, tive ocasio de apreciar a atualidade, a originalidade e o

    sentido proftico da sua obra. O regime poltico ditatorial, que o perseguiu em vida,

    longe de afetar o valor de sua obra monumental em prospetiva, no fez seno

    ressaltar seu valor permanente. Passados 25 anos da publicao desse livro-chave,

    representa ele ainda hoje o retrato mais trgico e igualmente mais fiel de nossa

    realidade nacional. Comparvel a ele, somente Os Sertes de Euclides da Cunha.

    Durante esses 25 anos nada foi feito para que a carncia alimentar do nosso povo

    fosse atendida. A grande novidade do momento ... a volta agricultura. Nunca

    deveramos ter sado dela. O primado da agricultura, da minerao e da pecuria, em

    um pas de to vastas dimenses e de natureza to diversificada, no prejudica em

    nada, e antes incentiva, a organizao de um grande parque industrial. Campo e

    cidade devem sempre estar intimamente ligados. O que faz a sua separao a

    anttese de classes, como a poltica de recurso contnuo aos capitais estrangeiros,

    para promover o progresso nacional. Quando este deve ter sempre, por base, o

    trabalho e no o capital. Foi o segredo [pg. 19] do Japo. Pois o capital, para ser

    slido e no atentar contra a independncia nacional, prejudicando outrossim a

    prpria interdependncia, deve ter por base o trabalho. A poltica da primazia do

    recurso ao capital estrangeiro , sem dvida, uma das fontes desse drama da fome,

    que Josu de Castro foi o primeiro a colocar como o problema bsico do Brasil.

    Hoje se fala muito na primazia do Homem. bom que se fale, pois a verdadeira

    filosofia social se baseia nessa primazia. Mas, para que isso no seja apenas uma

    figura de retrica, preciso partir do problema da alimentao desse homem, em

  • cujo trabalho reside a riqueza nacional. Foi tudo isso que levou Josu de Castro a

    levantar esse monumento de sabedoria social, que tanto entusiasmou o Padre Lebret

    e , at hoje, como ser para sempre, uma das pedras angulares de nosso edifcio

    social.

    * Os dois artigos a que se refere o prefaciador foram publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudnimo de Tristo de Athayde.

    Hoje tambm se invertem outros valores que Josu de Castro sempre colocou

    como fundamentais. Procuram, hoje, reduzir artificialmente a populao, para

    melhor aliment-la. Josu de Castro, pelo contrrio, partia do elemento qualitativo e

    no do elemento quantitativo. No preciso reduzir artificialmente a populao,

    para melhor aliment-la. E sim aliment-la melhor, para que o seu aumento

    quantitativo se processe normalmente e no artificialmente. Invertendo a equao,

    colocando o carro da quantidade adiante dos bois da qualidade, altera-se

    completamente o equilbrio da situao homem-alimento, que Josu de Castro

    coloca numa base racional e moral e no irracional e amoral. Colocaram a pirmide

    com a ponta para baixo. Menos habitantes para melhor alimentao. Quando o

    racional melhor alimentao (base), para mais habitantes (ponta). Chesterton

    props, com humour, a seguinte frmula: quando existem 7 crianas e 6 chapus, ou

    se arranja mais um chapu, ou se corta a cabea de uma criana...

    Por essas e outras que a obra clssica de Josu de Castro merece ser relida e

    aproveitada, pois sua inspirao , ao mesmo tempo, cientfica e moral, como deve

    ser toda frmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a

    nossa. Josu de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justia e

    h de aproveitar-se de sua cincia. Como a tragdia da fome no privilgio do

    Brasil, nem do Sahel, Josu de Castro [pg. 20] deixou, para a posteridade, aquela sua

    frase famosa, j citada em um dos meus artigos: Metade da humanidade no come e

    a outra no dorme com medo da que no come...

    Alceu Amoroso Lima

    Rio, 1980

  • O ESPECTRO DA FOME

    Tempos atrs, um surto de sarampo, de tipo violento e infeccioso, que

    praticamente dizimou uma localidade mineira do vale do Jequitinhonha, revelou, ou

    antes, confirmou, a situao calamitosa, em matria de sade e desnutrio, em toda

    aquela vasta regio. Logo em seguida, ou pouco antes, as cifras enumeradas no

    documento trgico de 18 altas autoridades eclesisticas mostravam a mesma

    situao por todo o Nordeste. E outro documento, talvez ainda mais impressionante,

    dos bispos do Centro-Oeste (Marginalizao de um povo), confirmava o impacto do

    primeiro e acentuava-o. Ainda outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda

    mais alarmante, pois se refere regio considerada mais sadia de todo o Brasil: o

    Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de So Paulo de 12 de agosto: A

    Revista da Associao Mdica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma

    pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianas gachas (1

    milho em 2 milhes e 600 mil) so desnutridas (sic). A desnutrio responsvel

    pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evaso escolar: menos de 10% dos

    alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava srie do ensino fundamental.

    A desnutrio causada pela falta de alimentos, dificuldades econmicas e

    desconhecimento dos princpios de alimentao balanceada. Uma criana de quatro

    anos da classe A (isto , das camadas ricas da populao, lembro eu), diz a revista,

    em geral, 9,19 centmetros mais altas que uma da classe B (isto , das camadas

    populares, lembro eu) e seu peso superior. [pg. 21]

    Isso significa que no Estado mais sadio da federao, a desnutrio est

    concorrendo, fundamentalmente, para a diviso crescente de nossa terra em dois

    modelos de populao: os tipos biologicamente superiores e os tipos biologicamente

    inferiores. E como estas estatsticas informam, a proporo entre os exemplarei: bem

    nutridos e sadios e os desnutridos e enfermios praticamente de 50%. Isso na

    regio mais sadia e rica de nossa ptria. Imaginemos ento o que ocorre nas regies

    que representam uma proporo de mais de 80% da nossa populao total.

    Alis, h muito que os nossos mais ilustres nutricionistas, como um Rui

    Coutinho, em obras rigorosamente cientficas, sem nenhum bias ideolgico ou

  • poltico, tm chegado a idnticas concluses.

    H muitos anos, alis, o eminente socilogo Josu de Castro, prematuramente

    falecido h pouco e afastado do seu pas pelo terrorismo cultural, desencadeado em

    64, deu o alarme em sua obra clssica A Geografia da Fome e, como dirigente

    eventual da FAO, comeava anos atrs uma alocuo, em um congresso da

    instituio, com uma imagem impressionante: Enquanto metade da humanidade

    no come, a outra metade no dorme, com medo da que no come.

    Era, evidentemente, uma imagem literria forjada precisamente para

    impressionar os espritos e alertar as conscincias. Baseada, alis, em sentena

    semelhante lanada em 1950 por Lorde Boyd Orr, ento presidenta da FAO, que

    vejo contestada por outro especialista no assunto, o cientista Colin Clark, da

    Universidade de Oxford, em artigo transcrito no nmero de 17 de junho do

    LOsservatore Romano. Diz ele: A situao da fome (no mundo) muito grave mas

    ainda no envolve, de nenhum modo, metade da humanidade. E considera

    contraproducente qualquer exagero, pois o homem mdio reage imaginando que

    no pode fazer nada. Penso exatamente o contrrio. Justamente porque o homem

    mdio, isto , todos ns suficientemente bem nutridos, temos a tendncia natural a

    no pensar nos desnutridos e a crer que realmente as cifras e os alarmes so

    exagerados, que preciso despertar as nossas conscincias adormecidas para o

    flagelo que j chegou a introduzir um nome prprio e cientfico para a molstia da

    fome: kwaskiorkor ora grassando, dramaticamente, [pg. 22] no corao da frica.

    Nem creio que essas imagens sejam exageradas, embora acredite que a verdade a

    nica mestra autntica das convices. Acontece, porm, que a verdade sobre a fome

    incomoda os governos e fere as suscetibilidades patriticas e, por isso mesmo, so

    frequentemente vedadas ao grande pblico, pelas respectivas censuras polticas.

    Especialmente nos pases que se preocupam exageradamente com a imagem que

    deles se faa no estrangeiro.

    E no tm a mesma coragem de dizer as coisas pelos seus nomes como

    acontece particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos e em todos os pases

    onde existe verdadeira liberdade de informao. Alis, esse eminente cientista

    ingls, que subestima o perigo da fome e critica os que exageram as estatsticas,

    tambm nesse mesmo artigo declara que a populao mundial aumenta com um

  • ritmo de aproximadamente 2 por cento ao ano, quando esse ritmo chega, em certas

    regies latino-americanas, a ultrapassar 3,5 por cento, sem que a produo de

    alimentos e especialmente sua distribuio pelo povo seja equitativa.

    O prprio Clark, alis, embora subestimando o flagelo da fome, apela para a

    interveno imediata dos governos, como nico meio de corrigir o desnivelamento

    desumano entre os bem nutridos e os desnutridos, em conseqncia de fatores

    polticos e sociais. Se verdade que as disponibilidades de alimentos nos pases da

    frica, na mdia, so superiores ao mnimo necessrio, tambm verdade que uma

    inqua distribuio dos rendimentos acaba por deixar uma grande parte da populao

    margem da fome. E cita o caso do sistema de castas na ndia, que significa que

    muitos milhes de pessoas esto condenadas a uma existncia de discriminao e

    impossibilidade de progresso econmico.

    Entre ns, a situao ainda mais grave, pois no se traiu da existncia, nos

    costumes embora no mais nas leis , de um sistema de intocveis margem

    da sociedade e da satisfao das suas mais elementares exigncias de sobrevivncia.

    Entre ns est ocorrendo exatamente o mesmo, justamente na medida em que cresce

    a estrutura industrial e urbanstica, mas dentro diurna estrutura social de tipo

    nitidamente feudal. Acredito que o progresso tecnolgico esteja em condies de

    equilibrar o aumento mundial das populaes. Mas para isso preciso reagir [pg.

    23] contra o sistema feudal que entre ns corresponde, analogicamente, ao sistema

    de castas, na ndia, ou ao sistema tribalstico, na frica, onde o flagelo da fome ,

    neste momento, um pesadelo mundial. Como preciso que as verdades do

    desnutricionismo crnico da maioria de nossa populao sejam ditas livremente,

    pois no so as obras faranicas, nem mesmo os esforos da desanalfabetizao, que

    vo nutrir os famintos e vestir os nus, no apenas pirandelicamente.

    AS DUAS FOMES

    A propsito do flagelo da fome, a que ontem aludamos, o novo diretor da

    FAO, o tcnico holands A. N. Boehns, declarou recentemente que: A escassez

    mundial de alimentos a pior crise que se registra desde a Segunda Guerra Mundial,

  • pois o crescimento demogrfico de 2% ao ano, enquanto a produo de alimentos e

    a colheita agrcola do mundo, em 1972, teve 3% de reduo. (Apud ). B., 6.09.73).

    O crescimento demogrfico do Brasil, convm lembrar, de 3%.

    Mas essa defasagem entre o dinamismo crescente da vida e o dinamismo

    decrescente da tcnica no pode ser eliminada pela conteno do primeiro e sim pelo

    incremento do segundo. Como dizia Chesterton, em uma de suas imagens pitorescas,

    se s temos cinco chapus para seis crianas, h duas solues a empregar: ou

    arranjamos mais um chapu ou cortamos a cabea de uma das crianas...

    O nosso saudoso Josu de Castro, precursor entre ns, e mesmo no plano

    internacional, dos estudos cientficos a respeito desse problema trgico da

    humanidade, e que afeta de modo to desastroso e doloroso o nosso pas, mostrou

    bem claramente a interdependncia entre o problema sanitrio da populao, cuja

    fonte primacialmente de natureza alimentar, e o problema scio-econmico da

    estrutura poltica da nacionalidade. Josu de Castro faz mesmo remontar as causas

    originais da subalimentao endmica em nosso pas. ao incio de nossa colonizao.

    [pg. 24]

    A fome, no Brasil, conseqncia, antes de tudo, do seu passado histrico,

    com os seus grupos humanos sempre em lula e quase nunca em harmonia com os

    quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa portanto da

    agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre

    por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que no significasse

    vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura

    desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva, ou pelo menos

    desiquilibrante da sade econmica da nao: a do pau-brasil, a da cana-de-acar, a

    da caa ao ndio, a da minerao, a da lavoura nmade, a do caf, a da extrao da

    borracha, e finalmente a da industrializao artificial baseada no ficcionismo das

    barreiras alfandegrias e no regime da inflao... E o fique rico to agudamente

    estigmatizado por Srgio Buarque de Holanda... Em ltima anlise, esta situao de

    desajustamento econmico e social foi conseqncia da inaptido do estado poltico

    para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo.

    A princpio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e

    independncia dos senhores de terras, manda-chuvas em seus domnios de porteiras

  • fechadas... Ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso

    centralizante do poder... Conseqncia dessa centralizao absurda e da poltica de

    fachada da Repblica foi o quase abandono do campo e o surto da urbanizao... que

    no encontrando no pas nenhuma civilizao rural bem enraizada veio acentuar de

    maneira alarmante a nossa deficincia alimentar. (Geografia da Fome, 1946, pg.

    293.)

    H trinta anos, portanto, um socilogo da estirpe de Josu de Castro j

    demonstrava, exaustivamente, a influncia dos fatores scio-econmicos sobre os

    prprios fatores biolgicos de nossa populao, atravs da deficincia alimentar e da

    primazia dos interesses privados, junto incapacidade equilibrante das instituies

    polticas. E como as causas sociais so sempre correlativas, essa deficincia

    alimentar, causada primacialmente por fatores poltico-sociais, veio afetar

    indiretamente essas estruturas polticas, sempre intimamente ligadas s subestruturas

    cconmico-sociais. [pg. 25]

    Ainda agora, o socilogo Glucio Soares publica um estudo do maior interesse

    cientfico e social, e, elaborado luz de uma sociologia analtica, enquanto a obra

    clssica de Josu de Castro foi elaborada luz de uma sociologia globalista e

    sinttica, sobre um problema anlogo. Esse magnfico trabalho sobre Sociedade e

    Poltica no Brasil (Dif. Europeia do Livro, S. Paulo, 1973, pp. 237 e ss.) estuda

    apenas o desenvolvimento, classe e poltica durante a Segunda Repblica, de 1945

    a 1964, mas interessa toda a nossa formao social contempornea. Embora

    partindo de uma orientao sociolgica geral marxista, que diz serem os fenmenos

    supra-estruturais determinados, em ltima instncia. pela infra-estrutura scio-

    econmica (p. 15), na realidade mostra a interdependncia das infra e supra-

    estruturas sociais, comprovando, ao longo de nossa histria mais recente, o domnio

    da oligarquia, isto , das elites instaladas, ricas, poderosas, sobre a poli-arquia,

    isto , as maiorias entaladas, isto , de situao profissional precria, pobres e

    impotentes.

    Estudo magnificamente documentado e coincidindo, embora a partir de

    orientao sociolgica diversa, com o de Josu de Castro na verificao da

    influncia decisiva e recproca de fatores scio-econmicos e polticos na

    constituio da sociedade brasileira. Josu de Castro, estudando a situao sanitria

  • e biolgica da populao, substancialmente viciada pela Fome Fsica: Glucio

    Soares, estudando a situao poltica tambm viciada pela marginalizao das

    maiorias, esmagadas pela Fome Poltica, isto , pela passividade e pela

    imparticipao nos negcios pblicos. O prof. Glucio Soares, examinando as

    conseqncias da Revoluo de 30 e da queda do getulismo em 1945, mostra como a

    poltica oligrquica no foi sucedida por uma poltica democratizada, com ampla

    participao de setores e classes menos privilegiadas. Seria ingnuo crer que o

    colapso da oligarquia foi total (com a queda da Primeira Repblica, lembro eu), e

    que as estruturas scio-econmicas que possibilitaram sua existncia ruram e que se

    abriu o caminho para a participao das classes populares na poltica, tanto no nvel

    eleitoral quanto no nvel de representao. Persistindo a distribuio desigual da

    propriedade e um sistema de valores claramente classista (isto , burgus, lembro

    eu), as pessoas que ocupam posies altas e mdias continuam [pg. 26] a gozar de

    maior prestgio que as demais, sendo de salientar que essa diferenciao aceita por

    amplos setores das classes populares (p. 136). E a propsito do golpe de 64 lembra

    que:

    No obstante, essa situao no provocaria um golpe de estado (64 no foi

    propriamente um golpe de estado, isto , de cima para baixo, mas um golpe contra-

    estado, isto , de fora para dentro, lembro eu) se as classes mdias e a sua maior

    representante, a UDN, paladina da democracia liberal no Brasil, efetivamente

    acreditassem no princpio democrtico... No fundo, seu modelo no era a

    democracia liberal, mas sim o da democracia com participao restrita, que havia

    sido proposto pela primeira vez quarenta anos antes pelos tenentes e reiterado nos

    manifestos do Clube 3 de Outubro. Muitos dos antigos tenentes agora eram generais

    que, acionados politicamente pelos conservadores e socialmente pelas classes

    mdias, interromperam pela fora o Governo Goulart (p. 234). Durante o decnio

    corrente o predomnio absoluto do sistema oligrquico s fez aumentar. E as duas

    misrias, a da Fome Orgnica, denunciada por Josu de Castro, e a da Fome

    Poltica, denunciada por Glucio Soares, explicam os ps-de-barro da esttua de

    Nabucodonosor, isto , do famoso milagre brasileiro de nossos dias. [pg. 27]

  • PREFCIO DO AUTOR

    1. O assunto deste livro bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e

    perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilizao. realmente estranho,

    chocante, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por to excessiva

    capacidade de escrever-se e de publicar-se, haja at hoje to pouca coisa escrita

    acerca do fenmeno da fome, em suas diferentes manifestaes. Consultando a

    bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigidade. Extrema

    quando a pomos em contraste com a minuciosa abundncia de trabalhos sobre temas

    outros de muito menor significao. Tal pobreza bibliogrfica se apresenta ainda

    mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do contedo do tema da

    fome de sua transcendental importncia e de sua categrica finalidade orgnica.

    J outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicvel vazio

    bibliogrfico: no h muito, Gregorio Maraon, recolhendo material para a

    elaborao de um trabalho sobre a regulao hormonal da fome,1 se surpreendeu

    com o nmero insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema

    fundamental. Registrando o fato, o escritor espanhol, interessado no momento noutra

    ordem de idias, no se deu ao trabalho de buscar as razes ocultas que

    determinaram esta quase que absteno de nossa cultura em abordar o tema da [pg.

    29] fome. Em examin-lo mais a fundo, no s em seu aspecto estrito de sensao

    impulso e instinto que tem servido de fora motriz a evoluo da humanidade

    (Espinosa) como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este

    ltimo aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes

    calamidades que costumam assolar o mundo a guerra e as pestes ou epidemias

    1 Maraon. Gregorio, La Regulacin Hormonal del Hambre, in Estudios de Endocrinologa, 1938.

  • verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas

    causas e efeitos, exatamente a fome. Para cada mil publicaes referentes aos

    problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto,

    os estragos produzidos por esta ltima calamidade so maiores do que os das guerras

    e das epidemias juntas, conforme possvel apurar, mesmo contando com as poucas

    referncias existentes sobre o assunto.2 E h mais, a favor deste triste primado da

    fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela

    constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatria do

    terreno, quase que obrigatria, para a ecloso das grandes epidemias.

    Quais so os fatores ocultos desta verdadeira conspirao de silncio em torno

    da fome? Ser por simples obra do acaso que o tema no tem atrado devidamente o

    interesse dos espritos especulativos e criadores dos nossos tempos? No cremos. O

    fenmeno to marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir

    obra do acaso, parece condicionado s mesmas leis gerais que regulam as outras

    manifestaes sociais de nossa cultura. Trata-se de um silncio premeditado pela

    prpria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de

    ordem poltica e econmica de nossa chamada civilizao ocidental que tornaram a

    fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhvel de ser abordado

    publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espcie de interdio

    baseia-se no fato de que o fenmeno da fome, tanto a fome de alimentos como a

    fome sexual, um instinto primrio e por isso um tanto chocante pura uma cultura

    racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomnio da

    razo sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o

    animal e s a razo [pg. 30] como o social, a nossa civilizao, em sua fase

    decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos,

    tidos como foras desprezveis. A encontramos uma das imposies da alma

    coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus impuros e

    escabrosos e por isto indignos de serem tocados. Sobre o problema do sexo, foi

    mantido um silncio opressor, at o dia em que um homem de gnio, num gesto

    inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da cincia e da

    moral oficiais, que o instinto sexual uma fora invencvel, to intensa que atinge a

    2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878.

  • conscincia e a domina inteiramente. Freud demonstrou com tal genialidade o

    primado do instinto, que essencial, sobre o racional, que acessrio, no

    desempenho do comportamento humano, que no houve remdio seno aceitar-se,

    mesmo a contragosto, a sua teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava

    ingenuamente afogar as razes da prpria vida. Desde ento foi possvel debater-se

    em altas vozes o problema do sexo.

    Quanto fome, foram necessrias duas terrveis guerras mundiais e uma

    tremenda revoluo social a revoluo russa nas quais pereceram dezessete

    milhes de criaturas, dos quais doze milhes de fome, para que a civilizao

    ocidental acordasse do seu cmodo sonho e se apercebesse de que a fome uma

    realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos

    do mundo.

    Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econmicos das minorias

    dominantes tambm trabalhavam para escamotear o fenmeno da fome do panorama

    espiritual moderno. que ao imperialismo econmico e ao comrcio internacional a

    servio do mesmo interessava que a produo, a distribuio e o consumo dos

    produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenmenos

    exclusivamente econmicos dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses

    econmicos e no como fatos intimamente ligados aos interesses da sade

    pblica. E a dura verdade que as mais das vezes esses interesses eram antagnicos.

    Veja-se o caso da ndia, por exemplo. Segundo nos conta Rclus,3 nos ltimos trinta

    anos do sculo passado morreram de inanio naquele pas mais de vinte milhes de

    habitantes; s no ano de 1877 pereceram de [pg. 31] fome cerca de quatro milhes.

    E, no entanto, de acordo com a sugestiva observao de Richard Temple

    enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcut continuava a

    exportar para o estrangeiro quantidades considerveis de cereais. Os famintos eram

    demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida. lgico que os

    grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praas

    europias, que tiravam grandes proventos de suas importaes da ndia, faziam o

    possvel para abafar na Europa os rumores longnquos desta fome longnqua, a qual,

    se tomada na devida considerao, poderia atrapalhar os seus lucrativos negcios.

    3 Rclus. Elise, Nouvelle Gographie Universelle, 1875-94.

  • Tambm os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vrios

    pases e de cuja poltica fazia parte obrigatria a propaganda intempestiva de

    prosperidades inexistentes, no podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que

    viessem mostrar, s claras, aos outros pases, em que extenso a fome participava

    dos destinos de seus povos. A prpria cincia e a tcnica ocidentais, envaidecidas

    por suas brilhantes conquistas materiais, no domnio das foras da natureza, se

    sentiram humilhadas, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em

    melhorar as condies de vida humana no nosso planeta, e com o seu reticente

    silncio sobre o assunto faziam-se, consciente ou inconscientemente, cmplices dos

    interesses polticos que procuravam ocultar a verdadeira situao de enormes massas

    humanas envolvidas em carter permanente no crculo de ferro da fome.

    2. Hoje, tendo sido possvel realizar com a aquiescncia oficial4 uma srie de

    pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regies da terra acerca das condies

    de nutrio dos povos, e tendo-se evidenciado, dentro de um critrio rigorosamente

    cientfico, o fato de que cerca de dois teros da humanidade vivem num estado

    permanente de fome, comea a mudar a atitude do mundo. claro que para essa

    mudana de atitude muito tem contribudo a presso de fatos inexorveis. H a

    conscincia universal de que atravessamos uma hora decisiva, [pg. 32] na qual s

    reconhecendo os grandes erros de nossa civilizao podemos reencontrar o caminho

    certo e faz-la sobreviver catstrofe. Desses erros, um dos mais graves , sem

    nenhuma dvida, este de termos deixado centenas de milhes de indivduos

    morrendo fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua

    produo e que dispe de recursos tcnicos adequados realizao desse aumento.

    Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhes de homens, segundo

    os clculos de East, oito bilhes, segundo os de Penk, e onze bilhes, segundo os de

    Kucszinski; portanto, pelo menos para o dobro da populao atual.5

    A demonstrao mais efetiva da mudana radical da atitude universal, em face

    do problema, encontra-se na realizao da Conferncia de Alimentao de Hot

    4 Desde 1928 a Liga das Naes inscreveu o problema da alimentao no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocnio de sua Organizao de Higiene, estudos detalhados em diferentes pases e dando publicidade a uma srie de valiosos relatrios sobre o assunto. 5 Ferenczi, Imre, LOptimum Synthtique du Peuplement, 1938.

  • Springs, a primeira das conferncias convocadas peias Naes Unidas para tratar de

    problemas fundamentais reconstruo do mundo de aps-guerra. Nesta conferncia

    reunida em 1943, e que deu origem atual Organizao de Alimentao e

    Agricultura das Naes Unidas a FAO quarenta e quatro naes, atravs dos

    depoimentos de eminentes tcnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento,

    quais as condies reais de alimentao dos seus respectivos povos e planejaram as

    medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos

    clareadas, nos mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que

    representam ncleos de populaes subnutridas e famintas, populaes que

    exteriorizam, em suas caractersticas de inferioridade antropolgica, em seus

    alarmantes ndices de mortalidade e em seus quadros nosolgicos de carncias

    alimentares beribri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalcia,

    bcios endmicos, anemias, etc. a penria orgnica, a fome global ou especfica

    de um, de vrios e, s vezes, de todos os elementos indispensveis nutrio

    humana.

    Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo, faz-se

    necessrio, no entanto, intensificar e ampliar, cada vez mais, os estudos sobre a

    alimentao no mundo inteiro; donde a obrigao, em que se encontram os

    estudiosos deste [pg. 33] problema, de apresentarem os resultados de suas

    observaes pessoais, como contribuies parciais pura o levantamento do plano

    universal de combate fome, de extermnio mais aviltante das calamidades, uma

    vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que

    as organizaes sociais vigentes se encontram incapazes de satisfazer a mais

    fundamental das necessidades humanas a necessidade de alimentos.

    Um dos grandes obstculos ao planejamento de solues adequadas ao

    problema da alimentao dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que

    se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestaes

    simultaneamente biolgicas, econmicas e sociais. A maior parte dos estudos

    cientficos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma

    viso unilateral do problema. So quase sempre trabalhos de fisilogos, de qumicos

    ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingncia profissional ao

    quadro de suas especializaes.

    Foi diante desta situao que resolvemos encarar o problema sob uma nova

  • perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma viso panormica

    de conjunto, viso em que alguns pequenos detalhes certamente se apagaro, mas na

    qual se destacaro de maneira compreensiva as ligaes, as influncias e as

    conexes dos mltiplos fatores que interferem nas manifestaes do fenmeno. Para

    tal fim pretendemos lanar mo do mtodo geogrfico, no estudo do fenmeno da

    fome. nico mtodo que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade

    total, sem arrebentar-lhe as razes que o ligam subterraneamente a inmeras outras

    manifestaes econmicas e sociais da vida dos povos. No o mtodo descritivo d

    antiga geografia, mas o mtodo interpretativo da moderna cincia geogrfica, que se

    corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes,

    Vidal de La Blanche, Criffith Taylor e tantos outros.

    No queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma

    monografia geogrfica da fome, em seu sentido mais restrito, deixando margem os

    aspectos biolgicos, mdicos e higinicos do problema: mas, que, encarando esses

    diferentes aspectos, sempre o faremos orientados pelos princpios fundamentais da

    cincia geogrfica, cujo objetivo bsico localizar com preciso, delimitar e

    correlacionar os fenmenos [pg. 34] naturais e culturais que ocorrem superfcie a

    terra. dentro desses princpios geogrficos, da localizao, da extenso, da

    causalidade, da correlao e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o

    fenmeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de

    natureza ecolgica, dentro deste conceito to fecundo de Ecologia, ou seja, do

    estudo das aes e reaes dos seres vivos diante das influncias do meio. Nenhum

    fenmeno se presta mais para ponto de referncia no estudo ecolgico destas

    correlaes entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do

    que o fenmeno da alimentao o estudo dos recursos naturais que o meio

    fornece para subsistncia das populaes locais e o estudo dos processos atravs dos

    quais essas populaes se organizam para satisfazer as suas necessidades

    fundamentais em alimentos. J Vidal de La Blanche havia afirmado h muito tempo

    que entre as foras que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais

    tenazes a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares

    regionais.6

    6 Blanche, Vidal de La, Prncipes de Gographie Humaine, 1922.

  • Neste ensaio de natureza ecolgica tentaremos, pois, analisar os hbitos

    alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas reas

    geogrficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais

    que condicionaram o seu tipo de alimentao, com suas falhas e defeitos

    caractersticos, e, de outro lado, procurando verificar at onde esses defeitos

    influenciam a estrutura econmico-social dos diferentes grupos estudados. Assim

    fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inmeros fenmenos de

    natureza social at hoje mal compreendidos por no terem sido levados na devida

    conta os seus fundamentos biolgicos.

    No se deduza da que, num exagero descabido de especialista obcecado pela

    importncia de seus problemas, iremos tentar a criao de qualquer nova teoria

    alimentar das civilizaes, num novo broto desta escola bissocial de inesgotvel

    fecundidade. Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso

    escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do sculo passado, um

    tanto influenciado pelas idias das hierarquias sociais, procurou explicar todas as

    diferenas entre os grupos culturais por seus tipos de alimentao: [pg. 35] A

    humanidade, de acordo com uma severa classificao econmica, deve ser dividida

    em trs grandes raas a raa do trigo, a raa do milho, e a raa do arroz. Qual

    delas indiscutivelmente superior? Com esta pergunta iniciava Bulnes o

    desenvolvimento do seu raciocnio para demonstrar que s a raa do trigo capaz de

    atingir as etapas da alta civilizao. No seu livro extraordinariamente interessante, se

    anotarmos a poca do seu aparecimento no sculo passado El Porvenir de las

    Naciones Hispano-Americanas ante las Conquistas de Europa y Estados Unidos

    (1889) Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do

    panorama mental americano, mas tambm um apaixonado de suas prprias idias,

    capaz de forar os argumentos para demonstrar a mais absurda das teses. No nosso

    ensaio no pretendemos provar nada de parecido. No queremos convencer ningum

    de que a fome seja a mola nica da evoluo social, nem que sejam os alimentos a

    nica matria-prima para fabricao das tintas com que so coloridos os diferentes

    quadros culturais do mundo, mas to-somente destacar desses quadros os traos

    negros da fome e da misria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou

    menos acentuado.

  • 3. Acreditamos que j tempo de precisar bem o nosso conceito demasiado

    extenso e, portanto, suscetvel de grandes confuses. No constitui objeto deste

    ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiolgico, j hoje bem

    conhecido graas aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turr, Cannon e

    outros fisilogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensao interna, aspecto este que

    tem servido de material psicolgico para as magnficas criaes dos chamados

    romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos

    legaram pginas geniais e hericas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance

    Fome verdadeiro relatrio minucioso e exato das diferentes, contraditrias e

    confusar sensaes que a fome produziu no esprito do autor; como as de um Panait

    Istrati, vagando esfomeado nas luminosas plancies da Romnia; como as de um

    Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramtica intensidade a fome

    negra da Rssia em convulso social; como as de um George Fink, sofrendo fome

    nos subrbios cinzentos e srdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck,

    contando, em Vinhas da Ira, a epopia de fome da famlia Joad, atravs das mais

    ricas [pg. 36] regies do pas mais rico do mundo os Estados Unidos da Amrica.

    No esse tipo excepcional de fome, simples trao melodramtico no

    emaranhado desenho da fome universal, que interessa ao nosso estudo.7 O nosso

    objetivo analisar o fenmeno da fome coletiva da fome atingindo endmica ou

    epidemicamente as grandes massas humanas. No s a fome total, a verdadeira

    inanio que os povos de lngua inglesa chamam de starvation, fenmeno, em geral,

    limitado a reas de extrema misria e a contingncias excepcionais, como o

    fenmeno muito mais freqente e mais grave, em suas conseqncias numricas, da

    fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de

    determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de

    populaes se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.

    principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes especficas,

    em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho.

    Nos ltimos dez anos aps a publicao deste nosso livro, este conceito j

    ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se reconhece a existncia desses

    vrios tipos de fome, e se fala sem maior constrangimento na luta universal contra a

    fome, na batalha da fome etc. Deve-se, em grande parte, a implantao destes 7 Sobre os aspectos fisiolgicos da fome. consulte-se a obra recente de Masseyeff. Ren. La Faim, 1956.

  • conceitos, at bem pouco considerados como revolucionrios e heterodoxos,

    prpria FAO, que, a princpio discreta e reticente em falar em fome, preferindo em

    seus relatrios referir-se subnutrio dos povos, acabou por aceitar a nomenclatura

    de fome, e a us-la largamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente cientficos.

    Visamos com a publicao deste ensaio contribuir com uma parcela

    infinitesimal para a construo do plano de ressurgimento de nossa civilizao,

    atravs da revalorizao fisiolgica do homem. Poder, primeira vista, parecer

    uma desmedida pretenso que o autor de um estudo de categoria to modesta como

    este, lhe atribua qualquer interferncia por mnima que seja nos destinos

    universais da humanidade. Encontramos, porm, uma explicao e uma justificativa

    para nossa atitude, [pg. 37] na afirmativa recente do filsofo ingls Bertrand Russell

    de que nunca houve momento histrico no qual o concurso do pensamento e da

    conscincia individuais fosse to necessrio e importante para o mundo como em

    nossos dias. E mais ainda que todo homem, qualquer homem comum, poder

    contribuir para a melhoria do mundo.8 com esta mesma crena na obra de

    cooperao de cada um, de coparticipaco ativa na busca de um mundo melhor, que

    planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua expresso universal,

    mostrando com que intensidade e em que extenso o fenmeno se manifesta nas

    diferentes coletividades humanas.

    4. De fato, o conhecimento exato da situao alimentar dos povos, dos recursos

    de que podero dispor para satisfazer suas necessidades de nutrio, absolutamente

    indispensvel para que se leve a bom termo a revoluo social que se processa com

    incrvel velocidade nos dias em que vivemos. Revoluo que, segundo se vislumbra

    pelas transformaes j processadas, est criando universalmente um novo sistema

    de vida poltica, que poderemos chamar, como sugere Julian Huxley,9 a era do

    homem social, em contraposio a essa outra era que terminou com a Segunda

    Guerra Mundial, a era do homem econmico. O que caracteriza fundamentalmente

    esta nova era uma focalizao muito mais intensa do homem biolgico como

    entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os

    problemas de categoria estritamente econmica no sentido da clssica economia do

    8 Russell, Bertrand, Essais Sceptiques, Paris. 9 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.

  • lucro. Realmente, enquanto at a ltima guerra a nossa civilizao ocidental, em seu

    exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-

    se morbidamente em conquistar pela tcnica todas as foras naturais, pondo todo o

    seu interesse nos problemas de explorao econmica e de produo de riqueza,

    vislumbra-se hoje o estabelecimento de formas polticas dispostas a sacrificar os

    interesses do lucro pelos interesses reais das coletividades. a tentativa cada vez

    mais promissora de pr o dinheiro a servio do homem e no o homem escravo do

    dinheiro. De dirigir a produo de forma a satisfazer as necessidades dos grupos

    humanos [pg. 38] e no deixar o homem matando-se estupidamente para satisfazer

    os insaciveis lucros da produo.

    Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do

    fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentrio

    cientfico desta tragdia biolgica, na qual inmeros grupos humanos morreram e

    continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem

    econmico.

    Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em

    certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, bom que o leitor se lembre

    de que esta obra, documentrio de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob

    a influncia psicolgica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos

    ltimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhes,

    pela presso das censuras polticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos

    oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o

    socilogo Sorokin pinta com as seguintes palavras: vivemos e agimos numa era de

    grandes calamidades. A guerra, a revoluo, a fome e a peste cavalgam novamente

    em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortfero tributo humanidade

    sofredora. Novamente elas influenciam cada momento da nossa existncia: nossa

    mentalidade e nossa conduta, nossa vida social e nossos processos culturais.10

    Devemos confessar honestamente que no nos foi possvel fugir na elaborao do

    nosso trabalho a to dominadora influncia.

    5. Vrias foram as razes que nos levaram a planejar a realizao desta obra

    10 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942.

  • em mais de um volume. A primeira delas a desmedida extenso do seu campo de

    observao, abrangendo todos os continentes, investigando as condies de vida nos

    mais variados recantos da superfcie da terra. Por mais impressionista que seja o

    retrato que tentamos pintar de cada uma das regies estudadas, no possvel

    sintetizar os seus traos caractersticos atm de certos limites. A segunda razo se

    fundamenta na evidncia de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as

    condies so as mais favorveis sua execuo, leva vrios anos para ser

    completado e a paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria

    um tanto antiquadas [pg. 39] certas indicaes bibliogrficas e certos aspectos de

    atualidade do problema em suas manifestaes regionais.

    Considerando que o Brasil constituiu o nosso laboratrio natural de observao

    sobre o problema a cujo estudo nos dedicamos h mais de vinte e cinco anos,

    achamos de toda a convenincia concentrarmo-nos de incio na anlise do fenmeno

    da fome no nosso pas, de sua influncia como fator biolgico na formao e

    evoluo dos nossos grupos humanos. Estudando o fenmeno da fome no nosso

    meio, daremos um balano geral das influncias de categoria biolgica que tm

    interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa civilizao.

    Buscando essa valorizao dos fatores de categoria biolgica, no quer dizer

    que desprezemos a importncia dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria

    do latifundismo agrrio-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade

    brasileira. Isto inegvel. O que tentaremos mostrar que, mesmo quando se trata

    da presso modeladora de foras econmicas ou culturais, elas se fazem sentir sobre

    homem e sobre o grupo humano, em ltima anlise, atravs de um mecanismo

    biolgico: atravs da deficincia alimentar que a monocultura impe, atravs da

    fome que o latifndio gera, e assim por diante. No defenderemos, pois, nenhuma

    primazia na interpretao da evoluo social brasileira. Nem o primado do biolgico

    sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biolgico. O que pretendemos pr ao

    alcance da anlise sociolgica certos elementos do mecanismo biolgico de

    ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do pas.11

    11 Sobre a participao do biolgico no mecanismo social consulte-se a srie de interessantes estudos reunidos pelo eminente antroplogo R. Redfield, no livro Leveis of Integracion in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para uma orientao firme nesse campo cientifico tambm a obra de G. F. Gause The Struggle for Exis-tence (1934). Alexander Lipschtz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Amricas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicao bem orientada dos mais modernos

  • No temos a pretenso de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a

    influencia de todos os fatores dessa categoria: raa, clima, meio bitico, etc., que

    constituem a base orgnica da estrutura social dos nossos grupos humanos.

    Estudando, porm, [pg. 40] os recursos e os hbitos alimentares de vrias regies,

    teremos forosamente que levar em considerao todos esses fatores ecolgicos que

    participam ativamente na interao do elemento humano e dos quadros geogrficos

    brasileiros. Caracterizando o tipo de alimentao e os variados tipos de fome que

    tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir nessas

    caractersticas biolgicas, com maior exatido do que atravs do estudo de quaisquer

    outras manifestaes de natureza ecolgica, o grau de adaptao e ajustamento dos

    diferentes grupos regionais de nossas populaes s variadas zonas geogrficas do

    pas. E so exatamente as expresses dessas variadas formas de adaptao que do

    relevo fisionomia cultural de uma nao. por isso que julgamos ser este volume,

    at certo ponto, uma tentativa de interpretao biolgica de determinados aspectos

    da formao e da evoluo histrico-sociais brasileiras.

    O nosso projeto inicial era escrever vrios volumes sobre o fenmeno da fome

    universal um volume sobre cada continente assolado por este flagelo social.

    A marcha dos trabalhos, a repercusso internacional que provocou o primeiro

    volume acerca do Brasil e a necessidade um tanto urgente de apresentar um

    panorama universal da matria nesta hora grave do mundo, em que a humanidade se

    confronta com dois trgicos problemas o da guerra e do medo da guerra e o da

    fome e do medo da fome todos estes fatores em conjunto alteraram o nosso plano

    inicial. Chegamos, pois, concluso de que, aps apreciar regionalmente o problema

    da fome no Brasil, seria til apresentar o panorama do mundo em conjunto, dentro

    do mesmo mtodo de estudo, embora sem a mesma riqueza de detalhes que um

    trabalho de categoria universal no poderia comportar. Assim, escrevemos e

    publicamos a nossa Geopoltica da Fome, que dentro do nosso esquema geral

    constituiu a segunda parte do nosso estudo do problema da fome em sua significao

    biolgica, econmica e social.

    conceitos de sociologia, na anlise do biolgico e do social na organizao dos diferentes grupos de populao deste continente.

  • A generosa acolhida que recebeu a Geopoltica da Fome no mundo inteiro,

    sendo traduzida em dezenove lnguas e agraciada com o Prmio Roosevelt,

    concedido nos Estados Unidos ao melhor livro publicado durante o ano sobre

  • assuntos sociais e de bem-estar humano, e com o Prmio Internacional da Paz, pelo

    Conselho Mundial da Paz, d-nos a impresso de que fizemos [pg. 41] bem em

    tomar esta deciso de concentrar nossa ateno no estudo do problema em sua

    expresso universal correlacionando a crise biolgica da fome mundial com a

    crise poltica em que o mundo se debate atualmente. E procurando demonstrar que o

    caminho da paz e da felicidade humana est numa economia de abundncia, na luta

    contra a fome e a misria e na vitria integral contra o medo tanto da fome como da

    guerra. Medo que ameaa paralisar a capacidade criadora do homem e. portanto,

    provocar o desmoronamento de toda a civilizao.*

    * Estes esclarecimentos, escritos para o prefcio 9. edio da Geografia da Fome, foram mantidos nesta edio para que o leitor possa situar-se dentro do nosso plano de estudo e colocar-se a par das razes que determinaram nossa conduta diante do problema em equao.

    6. Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma

    explicao e uma ltima advertncia. A explicao visa a esclarecer as razes que

    levaram o autor a dedicar dois volumes de sua obra ao estudo de um s pas, o

    Brasil, concentrando em dois outros volumes o estudo do mundo inteiro. No foram

    razes de ordem sentimental, nem de supervalorizao patritica que nos ditaram

    essa conduta: foram razes de ordem didtica. O Brasil constituiu o nosso campo de

    observao e de experimentao diretas do problema. De comprovao de inmeros

    aspectos doutrinrios da questo e de ensaio e verificao de muitas hipteses que

    formulamos sob aspectos particulares nesse setor cientfico. O seu vasto territrio

    com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial supermido da

    Amaznia at o tropical seco e semi-rido do serto do Nordeste e o subtropical com

    seus variados tipos de organizao econmica, apresenta condies excepcionais

    para uma larga investigao do problema da alimentao nos trpicos. Nenhum pas

    do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro

    laboratrio de pesquisa social deste problema.

    Os resultados das observaes e investigaes que aqui procedemos durante

    vinte e tantos anos, e que so apresentados neste ensaio, podero permitir, pela

    aplicao do mtodo comparativo, generalizaes at certo ponto vlidas para

    inmeras outras regies tropicais do mundo. Acentuar, pois, certos detalhes do caso

    brasileiro, nesse estudo da geografia da fome, significa [pg. 42] procurar ilustrar

  • com exemplos concreto o estudo do fenmeno em diferentes reas geogrficas que

    apresentem condies naturais ou culturais mais ou menos semelhantes s deste

    pas. Ademais, desenvolvendo neste estudo certos aspectos doutrinrios da questo

    para sua melhor compreenso por parte dos no iniciados na matria, fomos

    poupados de voltar ao assunto na Geopoltica da Fome, em que apresentamos em

    forma mais densa traos e fatos objetivos que caracterizam as inmeras reas

    geogrficas analisadas.

    H, no entanto, um perigo em publicar separadamente esse estudo das reas de

    fome no Brasil, destacado das outras reas de fome do continente. Perigo de que, por

    desconhecimento ou por m f, possa algum julgar serem as condies de vida no

    nosso pas, na hora atual, mais graves e mais difceis do que no resto da Amrica.

    Afirmativa que est longe de ser verdadeira.

    Na maioria dos pases da Amrica Latina, conforme pudemos verificar em

    visitas locais e atravs de documentos estatsticos e informes cientficos obtidos, as

    condies de vida so ou idnticas ou ainda mais precrias do que as do Brasil.

    Temos uma confirmao destas palavras no resumo que, acerca das condies

    de vida na Amrica Latina, apresentaram George Soule, David Efron e Norman T.

    Ness, no seu livro Latin America in The Future World (1945).

    Como se trata de uma publicao que resume os resultados de minucioso

    inqurito levado a efeito atravs do continente por notveis investigadores e peritos,

    supervisionados pela National Planning Association, cuja idoneidade tcnica est

    acima de qualquer suspeita, parece-nos recomendvel transcrever na ntegra os 13

    itens em que os autores registram os aspectos mais significativos da vida

    econmico-social desta larga poro do continente americano:

    A necessidade de encarar realisticamente os problemas da Amrica Latina

    tornou-se urgente depois da guerra. A participao desses povos, na reconstruo do

    novo mundo, imprescindvel e valiosa. Como, porm, tornar possvel essa

    participao? Quais so as condies existentes entre esses povos? O que se segue

    ajuda a compreender a situao desses pases:

    1.) Dois teros, talvez mais, das populaes da Amrica Latina so de

    subnutridos, apresentando-se mesmo as populaes [pg. 43] de certas regies em

  • estado de fome absoluta. A maioria mal nutrida, mal vestida e mal alojada.

    2.) Trs quartos da populao da maior parte dos pases da Amrica Latina

    so de analfabetos; nos pases restantes a proporo de analfabetos varia de 20 a

    60%.

    3.) A metade da populao da Amrica Latina sofre de doenas infecciosas ou

    carenciais.

    4.) Dois teros da populao da Amrica Latina no gozam dos benefcios da

    assistncia social.

    5.) Cerca de um tero das populaes trabalhadoras (especialmente milhes

    de trabalhadores ndios) continua sem participao alguma na vida econmica,

    social e cultural da comunidade latino-americana. O poder aquisitivo do ndio , em

    muitas reas, igual a zero. Com exceo do Mxico, ele politicamente um cidado

    de segunda classe.

    6.) Dois teros da populao latino-americana vivem em condies

    semifeudais de trabalho.

    7.) Uma surpreendente maioria da populao rural no possui terra. Dois

    teros, se no mais, dos recursos agrcolas, florestais e o gado pertencem ou so

    controlados por uma minoria de senhores de terra nacionais e por organizaes

    estrangeiras.

    8.) A maior parte das indstrias extrativas da Amrica Latina pertence ou

    controlada por organizaes estrangeiras, sendo considervel parte dos lucros

    desviada dos vrios pases. Da mesma forma muitas das instituies de produo e

    distribuio so controladas pelo capital estrangeiro ausente.

    9.) As condies de vida da massa da populao latino-americana so

  • particularmente instveis, dependendo das flutuaes do mercado estrangeiro. A

    concentrao numa espcie de indstria extrativa ou a monocultura de produtos de

    sobremesa (caf, acar, cacau, banana, etc.) para o consumo externo mais que

    para o consumo interno, arrastaram vrias regies latino-americanas beira da runa

    econmica. [pg. 44]

    10.) O comrcio interno e o intercmbio comercial dos pases latino-

    americanos so essencialmente rudimentares. Existe grande desequilbrio econmico

    entre diferentes zonas de um mesmo pas, como tambm entre os vrios pases. As

    limitadas oportunidades de intercmbio comercial nos pases latino-americanos so

    semelhantes s do sculo XVI, quando a Espanha, por intermdio da Cmara de

    Contratos de Sevilha, proibia as colnias latino-americanas de negociar entre si. O

    intercmbio latino-americano representa apenas 7% do comrcio total da Amrica

    Latina.

    11.) A estrutura semicolonial da economia latino-americana reflete-se nos

    meios de transporte: as estradas de ferro e a navegao martima destinam-se, na

    maior parte, ao transporte de matrias-primas do interior para os pontos de embarque

    para o estrangeiro e ocasionalmente para o desenvolvimento do mercado interno.

    Essa deficincia de transportes fator importante do limitado intercmbio latino-

    americano.

    12.) Com exceo da Colmbia, Argentina, Brasil e Uruguai, a percentagem

    de indivduos produtivos ou dos bem remunerados muito mais baixa do que nos

    Estados Unidos ou na Europa (cerca de 31% enquanto a dos Estados Unidos, no

    tempo do desemprego, era de 30,8%). Essa alta proporo de populao no

    aproveitada constitui um grande peso para a parte economicamente produtiva.

    13.) A capacidade produtiva do trabalhador latino-americano muito inferior

    do americano ou do europeu, pelas razes acima expostas subnutrio,

    ignorncia e falta de aparelhagem adequada.

  • Pela leitura da Geopoltica da Fome, em que so apresentadas as manchas de

    fome da Amrica Espanhola, o assunto ficar bem compreendido e afastado o perigo

    das interpretaes errneas. No se pode, pois, tirar concluses de qualquer paralelo

    entre a situao do Brasil e a de outros pases da Amrica, seno tomando por base

    de comparao trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses

    pases, destacando os seus traos mais significativos, com o mesmo realismo isento

    de preconceitos, com que estudamos a situao alimentar no Brasil. [pg. 45]

    Se no so muito abundantes os estudos sobre as condies alimentares na

    Amrica Latina, h, no entanto, alguns trabalhos que nos permitem ajuizar bem

    delas, podendo ser considerados documentos absolutamente idneos. Veja-se, assim,

    para uma viso de conjunto, o trabalho de Woodbury Food Consumption and

    Dietary Surveys in The Americas (1942); E o notvel livro de George Soule, David

    Efron e Norman T. Ness Latin America in the Future World (1945). Para estudo

    em separado dos diversos pases, consulte-se, entre outros, os seguintes trabalhos:

    Alfredo Ramos Espinosa La Alimentacin en Mxico, Mxico, 1939; Arturo

    Guevara El Poliedro de la Nutricin Aspectos econmico y Social del

    Problema de la Alimentacin en Venezuela, Caracas, 1944; E. Quintana El

    Problema Diettico del Caribe in Amrica Indgena Mxico, abril, 1942;

    Jorge Bejarano Alimentacin y Nutricin en Colombia Bogot. 1941; Pablo A.

    Suarez La Situacin Real del ndio en Equador in Amrica Indgena

    Mxico, janeiro, 1942; Salvador Allende La Realidad Mdico-Social Chilena

    Santiago, 1939; J. Maudones e R. Cox La Alimentacin en Chile, Estudios del

    Consejo Nacional de Alimentacin Santiago, 1942; e Francisco A. Montalto

    La Nutricin en el Paraguay 1956. Que a situao alimentar da Amrica Latina

    pouco mudou nos ltimos anos, apesar dos esforos empreendidos por governos e

    instituies internacionais, pode deduzir-se atravs dos relatrios das trs

    Conferncias Latino-Americanas de Nutrio, convocadas sob o patrocnio da FAO

    por proposta pessoal nossa, quando delegado do Brasil, em 1947, e que se reuniram,

    com a colaborao da Organizao Mundial de Sade, respectivamente em julho de

    1948 em Montevidu, em junho de 1950 no Rio de Janeiro, em outubro de 1953 em

    Caracas. Essa situao se confirma ainda atravs do bem elaborado relatrio da

    CEPAL (Comisso econmica para a America Latina), publicado em agosto de 1955

  • sob o ttulo: A Expanso Seletiva da Produo Agropecuria na Amrica Latina e

    suas Relaes com o Desenvolvimento econmico. De uma simples referncia ali

    encontrada pode deduzir-se da falta de recursos alimentares para sanar o estado de

    fome reinante em nosso Continente: A produo agrcola entre o perodo de antes

    da guerra e 1954-1955 cresceu de 35% mas a mdia de produo per capita caiu de

    8%, no mesmo lapso de tempo. [pg. 46]

    A verdade que a Amrica Latina uma das poucas regies do mundo onde a

    produo agrcola no tem acompanhado o aumento da populao, quando a

    produo total do mundo nos ltimos anos sobrepujou sensivelmente o aumento

    populacional.

    7. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor

    esboar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrs. Do Brasil que era ento

    um pas tipicamente subdesenvolvido, com sua caracterstica economia de tipo

    colonial, na exclusiva dependncia de uns poucos produtos primrios de exportao,

    entre os quais se destacava o caf. Ao retratarmos a fome no Brasil estvamos a

    evidenciar o seu subdesenvolvimento econmico, porque fome e

    subdesenvolvimento so uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econmico-social

    com todas suas trgicas conseqncias que inspirou este ensaio. Que nos levou a

    tentar o levantamento cientfico de uma geografia da fome. Em sucessivas edies

    que ocorreram desde ento, procuramos sempre reajustar o nosso trabalho

    realidade vigente, o que no constituiu tarefa difcil porque o pas no mudara muito

    nestes aspectos de sua estrutura social. Bastaram algumas atualizaes dos dados

    estatsticos e pequenos retoques para que o retrato permanecesse vlido e vlida,

    pois, a interpretao apresentada da realidade social brasileira.

    Nos ltimos anos vem entretanto o Brasil sofrendo uma profunda

    transformao em sua economia, a qual embora nem sempre traduza um autntico

    progresso social, capaz de melhorar as condies de vida do seu povo, tem de

    qualquer forma provocado substancial alterao no quadro da realidade social

    brasileira. O Brasil inicia com vigor a sua emancipao econmica e fugindo ao

    crculo de ferro do subdesenvolvimento se projeta na fase construtiva de seu

    desenvolvimento autnomo.

  • J no somos um pas simplesmente agrcola e de pura economia colonial. A

    industrializao se vem processando nos ltimos anos em ritmo acelerado,

    deslocando sensivelmente o eixo da nossa economia.

    Esta transformao substancial da vida econmica brasileira inspirou ao autor

    deste livro uma reviso mais acurada de alguns dos seus traos mais significativos,

    das principais tendncias de sua dinmica social para que este ensaio no viesse a

    perder o seu sentido de um documento interpretativo [pg. 47] desta realidade. E foi o

    que resolvemos fazer ao prepararmos esta 9.a edio da Geografia da Fome: trazer

    para o quadro de nossas investigaes as incgnitas que se levantam neste momento

    de transio por que atravessa o Brasil. Principalmente perplexidade que at certo

    ponto se cria diante da experincia indita do nosso desenvolvimento econmico, o

    qual foge, sob vrios aspectos, s regras tericas da economia clssica. Neste ponto

    o livro que ora apresentamos representa uma verdadeira inovao sobre as suas

    edies anteriores. um livro revitalizado por novas indagaes de semiologia

    econmica para reajustar o primitivo diagnstico formulado. quase que um novo

    livro, utilizando o mesmo mtodo de investigao, a mesma perspectiva de anlise

    dos problemas e muitos dos materiais de base j expostos, mas tudo completado por

    uma nova formulao da realidade do Brasil atual e da atual conjuntura econmica e

    social do mundo, bem diferentes das de 1946.

    Neste sentido nos detivemos principalmente em analisar os efeitos atuais e

    futuros deste tipo de desenvolvimento econmico que se processa no Brasil de hoje

    e na necessidade de reajust-lo em certos pontos para corrigir os desvios, os

    desequilbrios e as distores que podero criar que j esto criando srios

    impactos ao verdadeiro progresso e ao bem-estar social a que aspiram as populaes

    nacionais.

    A experincia brasileira por sua originalidade e por sua extenso constitui

    mesmo um exemplo significativo para orientao de outros pases que se esforam

    no momento por vencer o estgio de subdesenvolvimento. Os nossos erros e os

    nossos acertos merecem, pois, uma anlise mais profunda e se possvel algumas

    dedues genricas que possam conduzir formulao de uma nova teoria do

    desenvolvimento das regies subdesenvolvidas. Uma teoria mais emancipada das

    formulaes livrescas, de uma economia clssica de gabinete e das utopias de

  • exportao forjadas nos grandes centros de estudo dos pases ricos e bem

    desenvolvidos para serem impostas artificialmente aos pases de economia

    dependente.

    O drama atual do Brasil, que . promover o seu desenvolvimento, com suas

    escassas disponibilidades, em ritmo acelerado e sem sacrificar as aspiraes de

    melhoria social de seu povo, constitui a pedra de toque da acuidade poltica dos

    nossos dirigentes. A conscincia nacional despertada acompanha alerta [pg. 48] o

    desenrolar da odissia de nossa emancipao econmica, com os seus avanos e

    recuos, e dela participa de corpo e alma.

    Nenhum problema se sobrepe no equacionamento, planificao e na execuo

    de um programa desenvolvimentista, ao da prioridade dos investimentos, de forma a

    evitar os desequilbrios graves que depressa se constituem como fatores de

    estrangulamento de toda a economia.

    O dilema de apoiar-se mais a economia no setor agrcola ou no setor industrial

    o dilema do po ou do ao para atender s verdadeiras necessidades do pas, se

    apresenta como o fio da navalha que pode pr em perigo todos os sacrifcios e

    esforos despendidos pela coletividade.

    nesta contingncia que o nosso mtodo de estudo talvez possa trazer alguma

    luz a este angustiante problema, mostrando at que ponto o progresso econmico

    realizado tem sido favorvel e at que ponto tem ele fracassado no sentido de

    melhorar as condies de alimentao do nosso povo alargando as negras

    manchas de misria de nossa geografia da fome. E servindo desta forma este nosso

    ensaio como uma modesta contribuio na reformulao de nossa poltica

    econmica ainda bem incipiente em seus mtodos de ao.

    8. Ao publicar esta. 9.a edio da Geografia da Fome, em forma que julgo de

    uma edio definitiva, atualizada e ampliada em dois volumes, desejo aproveitar a

    oportunidade para formular os meus agradecimentos a todos aqueles que prestaram

    na realizao deste projeto sua valiosa cooperao, sem a qual dificilmente seria

    possvel ao autor se aventurar a empreend-lo. Abrange este agradecimento a toda

    espcie de ajuda e colaborao, desde os servios prestados por um Tom Spies,

    quando atendendo a nosso pedido envia-nos com toda presteza uma srie de

  • interessantes subsdios sobre a situao alimentar no sul dos Estados Unidos, at a

    espontnea colaborao dum simples sertanejo de So Joo do Cariri, que nos

    manda amostras de mel de abelha e de farinha de macambira para verificao do seu

    valor nutritivo.

    Considerando no entanto que foram inmeras essas colaboraes, limitaremos

    as referncias nominais no momento queles que ajudaram a elaborao dos dois

    volumes sobre o Brasil. Sobre os outros, sobre o envio de valiosos materiais,

    informes e conselhos referentes ao problema em outras regies do mundo, [pg. 49]

    nos reservaremos para apresentar nossos agradecimentos com o aparecimento dos

    volumes que cuidem diretamente do estudo dessas reas.

    Fica aqui consignada a nossa gratido a todos os nossos colaboradores no

    extinto Servio Tcnico de Alimentao Nacional, e no atual Instituto de Nutrio

    da Universidade do Brasil, em cujos laboratrios foram realizadas algumas das pes-

    quisas referidas neste trabalho. Desses colaboradores destacamos os nomes de

    Slvio de Azevedo e Pedro Borges pela coleta de dados estatsticos que levaram a

    efeito com o fim de fornecer ao autor uma documentao mais objetiva de certos

    aspectos do problema; de talo Mattoso, Emlia Pechnik, Isnard Teixeira e Jos

    Maria Chaves pelas anlises que realizaram acerca do valor nutritivo de vrios

    alimentos brasileiros e a cujos resultados nos reportamos neste ensaio; de

    Clementino Fraga Filho pela constante colaborao no esclarecer certos aspectos

    mdicos e higinicos das carncias alimentares em nosso pas, e de Firmina Santana

    pelas tbuas de composio de alimentos que organizou e que nos foram de grande

    ajuda neste trabalho.

    Agradecemos nossa assistente na cadeira de Geografia Humana na Faculdade

    Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, Professora Lucy de Abreu, pela

    dedicao e pelo interesse com que realizou buscas bibliogrficas de alta valia na

    execuo deste trabalho. Ao nosso prezado amigo, o ilustre antroplogo baiano

    Thales de Azevedo, e ao eminente nutrlogo Orlando Parahym, pelos valiosos

    informes que nos prestaram, respectivamente acerca das condies alimentares no

    recncavo baiano e nos sertes de Pernambuco, e a este ltimo ainda pelos envios de

    materiais alimentos sertanejos que nos fez vrias vezes para anlises no

    Instituto de Nutrio da Universidade do Brasil.

  • Ao saudoso Professor Jorge Zarur pela prestimosidade com que ajudou a

    seleo e a incluso nestes volumes do material ilustrativo retirado dos arquivos do

    Conselho Nacional de Geografia. Ao higienista Oswaldo Costa, nosso colaborador

    de h muito, pelas sugestes e dados fornecidos sobre aspectos epidemiolgicos do

    Brasil.

    Ao nosso estimado colega Dr. Cludio Arajo Lima por nos ter confiado os

    originais inditos de um estudo da autoria de seu saudoso pai, o mdico e socilogo

    Arajo Lima, acerca da Alimentao da Amaznia trabalho apresentado ao

    Congresso [pg. 50] Mdico Amaznico, reunido em 1939, em Belm, do qual

    tambm participamos, e no qual este grande estudioso de problemas brasileiros fixa

    interessantes aspectos da dieta do homem que habita esta extensa rea do pas.

    A Luiz da Cmara Cascudo pelas sugestes que dele recebemos em saborosas

    conversas ou atravs de cartas mandadas do Nordeste, tratando principalmente de

    um projeto que os acasos da vida no nos permitiram realizar, o de escrevermos em

    colaborao uma histria da cozinha brasileira. A Edson Carneiro, srio estudioso

    dos problemas negros no Brasil, pela amabilidade que teve de nos emprestar os

    originais do seu livro ainda indito sobre os Palmares, pondo ao nosso alcance

    informaes de primeira ordem sobre a agricultura dos negros fugidos dos engenhos

    do Nordeste e acantonados nos Quilombos. Ao meu saudoso amigo Joo Alberto

    Lins de Barros, conhecedor profundo dos problemas rurais do Brasil, atravs da

    experincia viva e direta de suas realidades singulares, p