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1 UMA LEITURA PROPPIANA DE DOIS FASTOS DE OVÍDIO Por Murilo Vidotto Trabalho realizado segundo as exigências da disciplina Monografia em Literatura, do curso Letras Português licenciatura, 8 o período, ministrada pelo Prof. Ricardo Araújo. TEL Departamento de Teoria e Literaturas / UnB Brasília Dezembro / 2014

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UMA LEITURA PROPPIANA DE DOIS FASTOS DE OVÍDIO

Por

Murilo Vidotto

Trabalho realizado segundo as

exigências da disciplina

Monografia em Literatura, do curso

Letras Português licenciatura, 8o

período, ministrada pelo Prof.

Ricardo Araújo.

TEL – Departamento de Teoria e Literaturas / UnB

Brasília

Dezembro / 2014

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Resumo

As questões da estrutura de um conto e da gênese histórica de seus elementos

são objeto sobre o qual se debruça o formalista russo Vladímir Propp em suas obras

Morfologia do conto maravilhoso e As raízes históricas do conto maravilhoso. Suas

reflexões levam a compreender melhor o universo do conto de magia nesse sentido.

Apesar de o material base para a produção dessas obras ser predoinantemente russo, a

teoria de Propp se revela em contos das mais variadas culturas. Pretende-se demonstrar

que também é possível analisar nos termos do formalista duas narrativas do poeta

romano Ovídio, contidas em seus Fastos, tanto em sua estrutura quanto buscando na

etnografia justificativas para certos elementos. A análise é feita em caráter hipotético e

se tem em mente que a evolução cultural de Roma desempenha papel importante na

formação desses contos e mereceria estudos mais profundos. As analogias, porém,

parecem bastante cabíveis e configuram maneira de se prosseguir na tentativa de

compreender essas narrativas em sua totalidade.

Sumário

1. Introdução 3

2. Premissas 5

3. A respeito das funções 7

4. A respeito da etnografia em As raízes históricas do conto maravilhoso 10

5. Sobre a morfologia de O rapto de Prosérpina 11

6. Possíveis relações entre a gênese do conto e O rapto de Prosérpina 19

7. Sobre a morfologia de Paládio 24

8. Possíveis relações entre a gênese do conto e Paládio 27

9. Conclusões críticas 34

Bibliografia 36

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1. Introdução

O presente trabalho dedica-se a analizar de maneira preliminar dois contos de

Ovídio, ambos relacionados em seus Fastos. Para tanto, mostraram-se especialmente

esclarecedoras duas das principais obras do formalista russo Vladímir Propp:

Morfologia do conto maravilhoso e As raízes históricas do conto maravilhoso.

A leitura dessas duas últimas obras leva o leitor a compreender, de maneira

ampla, o universo dos contos de magia. Morfologia do conto maravilhoso é um estudo

estrutural de contos populares que, embora predominantemente russos, revelam bastante

sobre os contos de magia em geral, chegando a elencar aquilo que chama de funções do

conto, ações que se repetem sob vários aspectos diferentes e formam padrões,

possibilitando assim sugerir para os contos uma morfologia. Em As raízes históricas do

conto maravilhoso, Propp desenvolve os estudos estruturais anteriores buscando na

etnografia justificativas para essas funções, sugerindo no decorrer da obra que aspectos

da vida do homem primitivo podem justificar essa morfologia que se revela tão

recorrente. Os padrões definidos por Propp formam base tão sólida que podem ser

observados em contos das mais variadas origens.

Já Ovídio, com os Fastos, propõe justificativas para o calendário romano - isto é,

festas, feriados etc - baseadas na mitologia ou em contos populares da Roma da época.

A base que Ovídio busca para a obra torna estreitas as relações entre ela e os estudos de

Vladímir Propp.

O objetivo desta análise, portanto, é demonstrar as relações entre esses escritos

de Ovídio, os padrões morfológicos que Propp sugere e as bases históricas propostas

pelo russo. Esses padrões e essa gênese apresentados são frutos de extensos estudos

estruturalistas e etnológicos empreendidos por ele, ambos representando grande

interesse para os estudos literários, em especial no que diz respeito à narrativa.

Vale ressaltar que o background histórico romano da época em que foram

escritos Os Fastos, dentro da teoria adotada, elucidariam alguns pontos que carecem de

mais atenção. As raízes dos contos, entretanto, sugerem uma época mais remota do

desenvolvimento humano, portanto esta será mais citada como base para os estudos

desenvolvidos neste trabalho.

Por ser obra muito extensa e complexa, foram selecionados para compor o

corpus deste trabalho dois contos de Ovídio: Rapto de Prosérpina e Paládio. As

funções sugeridas por Propp em Morfologia do conto maravilhoso, ou seja, o

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movimento dos personagens e suas consequências dentro do conto, podem ser

observadas em profusão no primeiro; a simbologia envolvida no segundo permite

reflexões que o relacionam com as origens sugeridas pelo russo em As raízes históricas

do conto maravilhoso. Isso não significa que o primeiro não permita observações

etnológicas, nem que o segundo não revele pontos em comum com a morfologia

proposta: ambos podem ser visualizados sob as perspectivas de Propp. Para melhor

entendermos esse fator, cabe aqui breve descrição de ambos os contos.

Em Os Fastos figura uma versão do mito de Prosérpina ligeiramente diferente da

que figura em As Metamorfoses, do mesmo autor. Para nossos objetivos, interessa mais

a da primeira obra. Em suma, o mito tem por meta explicar a bonança da primavera e o

estio do outono. Quando a donzela Prosérpina, colhendo flores junto à sua comitiva de

moças, se vê sozinha, é avistada e raptada por Plutão, seu tio, que havia sido ferido por

uma flecha do Cupido (este fomento ao rapto só está evidente na versão de As

Metamorfoses). A mãe da donzela, Ceres, deusa das colheitas, dando-se conta de sua

falta, percorre o mundo a procurá-la. Ovídio nomeia vários lugares por onde passa,

dando atenção especial à choupana do rústico Celeu, mas quem lhe dá informações

sobre o paradeiro da filha é mesmo o Sol. Sabendo que a filha está presa em domínios

de Plutão, Ceres recorre ao pai de Prosérpina, Júpiter. Este, não podendo restituí-la

integralmente à mãe, uma vez que a donzela havia consumido alimento no Averno,

promove a partilha da companhia de Prosérpina, determinando que seis meses do ano

passaria com o marido, os outros seis com a mãe, em caráter cíclico.

O Paládio diz respeito à estátua da deusa Belona (correspondente à Enio grega,

mas também tomada por Magna Mater, que mais frequentemente figura como outra

divindade no panteão romano), que segundo a tradição teria caído dos céus como sinal

de Júpiter a Ilo, fundador de Tróia. O oráculo Esminiteu revela ao rei que enquanto a

estátua permanecesse em seu domínio, permaneceria o império. Ilo a guarda e a

transmite a seu filho, Laomedonte, que por sua vez a Príamo a lega. Quando da queda

de Tróia, a estátua é raptada e posta em Roma, no templo de Vesta. Em dado momento,

há um incêndio no templo,e as virgens vestais não são capazes de salvar o Paládio:

quem logrou tal feito foi Lúcio Metelo, pontífice, que, contra todas as proibições,

penetrou no templo de Vesta e salvou a imagem de Belona.

Os aspectos da morfologia desses contos e os detalhes que se relacionam às

reflexões de Propp são o foco deste trabalho.

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2. Premissas

A intenção do presente estudo é procurar pontos em comum entre a estrutura e a

gênese do conto maravilhoso, sobre as quais Propp escreveu duas de suas principais

obras, e hipóteses de estrutura e de gênese dos referidos contos de Ovídio. Hipóteses

porque quem as sugere é este mesmo estudo, baseado em observação mais atenta dos

textos e em obras teóricas que não dizem respeito especificamente a eles. São

conjecturas que, considera-se, se mostram plausíveis e carecem de estudos etnológicos

mais específicos para atingir o status de rigor científico formal. Entretanto, é inegável

que as origens dos contos russos a que Propp se dedica (mais especificamente) são

comuns às de contos de toda a Europa, portanto é cabida a comparação entre eles, o que

se extende à morfologia, uma vez ambas se revelam intrinsecamente ligadas. As

analogias serão feitas tendo-se em mente que analogia não é a mesma coisa que ligação

histórica.

É importante também lembrar que o estudo da gênese de um fenômeno não é

ainda o estudo histórico deste, mas antes uma parte dele. O estudo histórico demanda a

análise do fenômeno em diversos períodos de tempo e, por consequência, em diversos

contextos, e tal não é nosso objetivo.

Parte-se da premissa de que, no universo rico e diversificado do conto, existem

aqueles que podem ser classificados como maravilhosos ou de magia, que são aqueles

que Propp chama skázki e define ao longo de seu Morfológuia skázki, traduzido para o

Brasil como Morfologia do conto maravilhoso.

Diferentemente de Wundt, em Psicologia dos povos ou de Afanássiev, fecundo

compilador de contos populares, por exemplo, que procuram categorizar os contos

segundo o enredo, Propp considera mais adequado relacioná-los através de semelhanças

estruturais, que são percebidas e descritas por meio dos fragmentos mais curtos que os

constituem. Essa descrição deve enquadrar-se nos limites de uma classificação prévia, e

esta deve ser resultado do estudo da estrutura de todos os aspectos do conto sob a égide

do todo, que precede e se faz necessário ao estudo da gênese, porque é na morfologia

que se revelam as genuínas semelhanças entre os fenômenos.

Nesses termos, o conto maravilhoso é aquele que se apresenta sob determinada

estrutura, descrita em pormenores em Morfologia do conto maravilhoso, o que será

passado em vista no próximo capítulo. Resumidamente em As raízes históricas do conto

maravilhoso, Propp os define como

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o gênero de contos que começam por um dano ou um prejuízo causado a

alguém (rapto, exílio), ou então pelo desejo de possuir algo (o czar manda seu

filho buscar o pássaro de fogo), e cujo desenvolvimento é o seguinte: partida do

herói, encontro com o doador que lhe dá um recurso mágico ou um auxiliar

mágico munido do qual poderá encontra o objeto procurado. Seguem-se: o

duelo com o adversário (cuja forma mais importante é o combate com o

dragão), o retorno e a perseguição. Frequentemente essa composição torna-se

mais complexa. (PROPP, 2002, p. 4).

A isso podem somar-se mais complicações no retorno, cumprimento de tarefas

difíceis, o herói tornar-se rei ou se casar, etapas às quais este estudo não se dedica.

"Esse é um relato esquemático e suscinto do eixo de composição que serve de base a

numerosos e variados enredos."1. Tal não é rigorosamente (ou sempre) o caso de nossos

textos selecionados para análise, porém as possíveis analogias são latentes e serão

exploradas sob a mesma abordagem teórica.

"O modo de produção da vida material condiciona os processos sociais, políticos

e culturais da vida em geral"2. Podemos dizer sem precisar para isso de respaldo

bibliográfico que o modo de produção da vida material em que se inseriu Ovídio e por

conseguinte seus Fastos não é o mesmo em que foram concebidos os elementos

tomados como possível gênese para eles: os elementos são bem ateriores. Não é de

nosso interesse primordial e direto, portanto, o background histórico da Roma da época,

mas isso não quer dizer que ele não se reflita no texto. Confrontaremos, como Propp, os

contos com a realidade histórica do passado, isto é, instituições, ritos, mitos e o

pensamento primitivo, alguns dos quais restam apenas resquícios, a fim de levantar, no

nosso caso, observações preliminares a respeito de sua gênese, uma vez que o russo

parte da premissa de que essa correspondência procede.

Entende-se neste trabalho que conto, mito e rito se relacionam, com frequência,

diretamente.

1 PROPP, 2002, p. 4.

2 MARX, ENGELS apud PROPP, 2002, p. 6.

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3. A respeito das funções

Conforme dito anteriormente, Propp nos apresenta uma gama de elementos

recorrentes nos contos maravilhosos, os quais denominou funções, que são justificados

através de análise etnográfica mais cuidadosa. A respeito desta dedica-se o capítulo

seguinte.

As funções se realizam através de personagens. Esses personagens podem variar

em nomenclatura e atributos (o que confere o colorido especial de cada conto), mas as

suas funções repetem-se dentro de certa regularidade. A elas Propp atribui uma

descrição de sua essência, uma definição reduzida e um signo convencional, que serve

para comparar de modo esquemático a construção dos contos. Como essa comparação

não se faz necessária, o signo a que corresponde cada função não será citado, em seu

lugar figurará o número correspondente a ela, segundo a classificação do formalista.

Antes de começar a enumerar as partes do conto, Propp descreve uma situação inicial,

onde se enumeram os membros de uma família ou se apresenta o futuro herói pela

menção de seu nome ou de sua situação. Apesar de não ser uma função, inicia-se a

morfologia do conto com a situação inicial, elemento importante em sua estrutura3.

Seguem-se as funções:

I. Um dos membros da família sai de casa (afastamento): podendo ser de uma

pessoa mais velha (pais, mais frequentemente) ou de uma pessoa da geração mais nova,

ocorre o que é definido por Propp como afastamento. A morte dos pais também é

considerada um afastamento.

II. Impõe-se ao herói uma proibição (proibição): a proibição aparece de

diversas maneiras no conto, podendo assumir forma de pedido ou conselho, de ordem

ou proposta, etc. A situação inicial evidencia um bem-estar que prepara para a

adversidade que virá a seguir, e dela decorrem as proibições. Ordens às crianças de ir à

mata, por exemplo, terão as mesmas consequências que a transgreção da proibição.

III. A proibição é transgredida (transgressão): corresponde à função II,

dependendo da forma de interdito para tomar forma. A ordem executada tem as mesmas

consequências que a transgressão. Aqui entra em cena a figura do antagonista ou

agressor.

IV. O antagonista procura obter uma informação (interrogatório): o objetivo

3 PROPP, 2006, P. 26.

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do antagonista é saber onde se encontram as vítimas ou algum objeto que lhe interessa.

O interrogatório também aparece sendo a vítima quem pergunta ao agressor.

V. O antagonista recebe informações sobre sua vítima (informação): toma

forma de acordo com a manifestação da função IV. Propp a denomina informação.

Aparece também como um ato irresponsável: a mãe chama o filho em voz alta e revela

sua presença à bruxa, por exemplo. Muitas vezes o agressor precisa de identificação

sonora ou outra para encontrar a vítima.

VI. O antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de

seus bens (ardil): com ardil, o antagonista procura enganar a vítima. Pode ou não

utilizar meios mágicos para tanto.

VII. A vítima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu

inimigo (cumplicidade): essa cumplicidade traça paralelo com as proibições: estas

sempre transgredidas, aquelas sempre aceitas. O herói pode ser persuadido ou

enfeitiçado, ferido etc.

VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família

(dano): terminada a parte preparatória, o dano vem dar movimento ao conto. Essa

função se apresenta sob várias formas: rapto de uma vítima, roubo de algum objeto

mágico, ameaça de matrimônio à força etc. Propp lista dezenove maneiras diferentes da

manifestação de VIII, mas isso não faz parte de nossos objetivos.

VIII-A. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo

(carência): nem todos os contos têm em seu princípio a situação inicial descrita. Ocorre

também que os personagens, no início do conto, tenham alguma carência, o que

também figura como elemento desencadeador do enredo. Essa carência é, mais

frequentemente, de uma noiva ou de algum objeto mágico.

IX. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói

ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir (mediação):

acontece também de o centro da narrativa ser a própria vítima. Para nossos objetivos,

interessa a figura do buscador, herói que parte para reparar o dano ou suprir a carência.

É a função que Propp define como mediação, momento de conexão.

X. O herói-buscador aceita ou decide reagir (início da reação); XI. O herói

deixa a casa (partida): toma lugar o início da reação: a partida do herói buscador

decorre. O dano, a mediação, o início da reação e a partida representam o nó da intriga

do conto.

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XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque etc.,

que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico (primeira função do

doador); XIII. O herói reage diante das ações do futuro doador (reação do herói):

aparece aqui a figura do doador. Este frequentemente submete o herói a alguma prova

para só depois ajudá-lo. A reação do herói pode ser positiva ou negativa e tem forma de

acordo com a prova em que é submetido.

XIV. O meio mágico passa às mãos do herói (fornecimento): este pode

recebê-lo de várias maneiras, mas não nos cabe descrevê-las. Cabe-nos apenas dizer que

ele será de grande valia para que o herói cumpra seus objetivos. Propp chama essa

função de fornecimento - recepção do meio mágico.

XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra

o objeto que procura (deslocamento no espaço entre dois reinos): existem várias

formas sob as quais o herói é transportado, mas o transporte em si pode ser omitido. O

fato é que o herói chega ao lugar de seu destino, que geralmente é "outro" reino. Esse

deslocamento no espaço entre dois reinos figura como prolongamento natural de XI.

XVI. O herói e seu antagonista se defrontam em combate direto (combate):

acontece um combate. Quando não ocorre luta física entre herói e antagonista, um dos

lados vence pela esperteza.

XVII. O herói é marcado (marca, estigma); XVIII. O antagonista é vencido

(vitória): impõe-se ao herói alguma marca ou estigma, ou recebe anel ou toalha para

quas feridas sejam fechadas e prossiga o combate. À função XVIII Propp atribui a

definição vitória.

XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (reparação de dano ou

carência): aqui forma-se parelha com VIII, e é onde o conto atinge o ápice em primeiro

ciclo: é a reparação de dano ou carência, mediante força ou mediante astúcia.

XX. Regresso do herói (regresso): a volta ocorre frequentemente sob mesmos

aspectos da partida, pois o herói já tem domínio sobre o espaço percorrido.

Em seguida, Propp apresenta outras funções, decorrentes de eventual fuga,

perseguição etc., que também não dizem respeito aos objetivos de análise preliminar

deste estudo. Temos, portanto, nessas vinte funções primeiras, a estrutura morfológica

básica de diversos contos maravilhosos, aqui apenas passadas em vista.

Um olhar mais cuidadoso à estrutura apresentada por Propp nos dá base

necessária para então procurar compreender o estudo daquilo que, segundo o russo,

originou o conto maravilhoso e seus aspectos particulares.

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4. A respeito da etnografia em As raízes históricas do conto maravilhoso

Como já dito anteriormente, muito deste trabalho tomará por base dados da

etnografia. Esta abordagem é de especial interesse aos estudos literários por permitir

interpretação mais profunda do texto em seus aspectos simbólicos. A organização do

meio social em que foi escrito um texto pode dizer muito sobre ele. É isso que Propp

busca fazer em As raízes históricas do conto maravilhoso, e é á luz dessa obra que serão

feitas relações e conjecturas referentes aos contos dos quais se pretende tratar.

Esta obra de Propp é demasiada extensa para que seja feito um apanhado geral

aqui, aos moldes do que foi feito no capítulo anterior. Cabem, porém, algumas

observações a respeito dela, que complementarão as premissas deste estudo e evitarão

repetições desnecessárias.

Em primeiro lugar, existe a seguinte divisão para o estudo da gênese do conto

feito pelo russo: 1) O início do conto; 2) A floresta encantada; 3) A casa grande; 4) As

dádivas mágicas; 5) A travessia; 6) À beira do rio de fogo; 7) Além das terras dos

confins; 8) A noiva. Faz-se ainda considerações sobre o conto como um todo. Estes são

os capítulos efetivos da obra, que se dividem, cada um, em vários subtítulos, à sua

própria necessidade.

Propp se dedicou aqui a fazer uma obra que descrevesse muitas variações do

conto maravilhoso. Esse não é o nosso caso. Temos um corpus específico e ele será

observado, descrevendo-o com base nos elementos que se fizerem necessários. A não

constatação de determinado elemento não constituirá desacordo com a teoria do

formalista, posto que este deixa claro que os elementos são variáveis em forma e muitos

deles podem aparecer ou não no conto. As relações feitas, mesmo as mais plausíveis,

são de caráter hipotético e necessitam de mais estudos.

Nessa profunda obra são citados diversos etnógrafos a cujos escritos

infelizmente não fui capaz de obter acesso. É o caso, por exemplo, de J. G. Frazer e

Franz Boas. Não serão porém furtadas do texto que hora se apresenta eventuais citações

referentes a estes autores contidas no livro de Propp, por constituírem material

extremamente rico e elucidativo, além de pesquisas essenciais ao próprio russo.

Fica claro ao longo do livro que o conto não reflete exatamente o material

etnográfico. As relações feitas não serão via de regra diretas. Será tomado por base

também a constatação de Propp que o conto – e é preciso lembrar que as formas sob as

quais se dão os elementos dele são muito numerosas – muitas vezes retrata de maneira

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simbólica toda a trajetória do jovem tribal que, chegada a hora deixa seu lar e se

submete (ou é submetido) ao rito de iniciação, a fim de ter um encontro com a morte,

entrar em contato com o “outro reino”, purificar-se e renascer através dela e entrar em

exercício de seus direitos e deveres como cidadão da organização social em que se

insere. Os pormenores dessa trajetória que dizem respeito a este estudo irão se

revelando paulatinamente, em algumas ocasiões conforme a morfologia for sendo

descrita, uma vez que o processo de separação plena entre morfologia e gênese se

mostra complicada para os nossos propósitos.

Por isso é mais seguro principiar as análises de enfoques diferentes já sabendo

que uma permeará a outra: apesar da divisão dos capítulos, neste trabalho, o estudo da

provável gênese permeia o estudo da morfologia e vice-versa.

Uma consideração cabe ainda fazer aqui: quando o herói parte em sua busca,

frequentemente tem que vencer o obstáculo da floresta, que simboliza o local afastado

onde se inicia o processo iniciático, e no interior dela se depara com uma isbá ou

choupana. Nela se situa a figura do doador. A forma de doador mais tradicional do

conto russo é Baba-Yagá, a bruxa ou velha da floresta, que em formas mais arcaicas ou

arcaizantes é a senhora dos animais. Para Propp, essa figura pode representar o ser que

está já no outro reino, o mundo dos mortos, e, em decorrência, o morto. Yagá não é a

única figura que se encaixa em papel de doador: este pode ser um sábio, um feiticieiro

misterioso, um diabo etc. Esta questão irá sendo elucidada com as devidas referências,

assim como outros pormenores do processo de iniciação e suas relações com o conto, no

decorrer das análises.

5. Sobre a morfologia de Rapto de Prosérpina

Para o presente capítulo é preciso ter em mente que as traduções aqui expostas

têm, por vezes, caráter de tradução livre, e que nem todas as funções que Propp descreve

em Morfologia do conto maravilhoso aparecem evidentes em todos os contos.

Prosérpina ou Perséfone é a filha da deusa Ceres (ou Deméter) e de Júpiter.

Neste conto, Ovídio relata o rapto, a procura e o desfecho da procura de Prosérpina.

Temos, no início dele, aquilo que Propp nomeia situação inicial4: insere-se o leitor em

paisagem tranquila, regalada, em preparatório para o desenrolar da trama. Trata-se de

4 PROPP, 2006, p. 26.

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tranquilidade ilusória, pois não tardarão a desenrolar-se acontecimentos tensos e

vibrantes5. A situação inicial aqui apresenta em foco dois personagens, que são as

deusas mãe e filha. Mostra-se aqui confluência com a teoria do russo: descreve-se uma

família feliz6. Examinemos, pois, trecho do original em latim e respectiva tradução (de

Antônio Luís Seabra e Antônio Feliciano de Castilho):

terra tribus scopulis vastum procurrit in aequor

Trinacris, a positu nomen adepta loci, 420

grata domus Cereri: multas ea possidet urbes,

in quibus est culto fertilis Henna solo.

Com promontórios três boja ao mar largo

A que lhes deve o nome: a grã Trinácria;

Ali folga habitar, e ali tem Ceres

De cidades sem conto o senhorio,

Como Hena, em pingue solo regalada. (p. 246)

Temos aqui descrição de paisagem algo paradisíaca, onde habitam as deusas; o

solo, como não poderia deixar de ser, é fértil: assim o faz Ceres. Segue o relato sobre a

deusa filha, que colhe flores em vale orvalhado ali perto, junto de sua comitiva de

moças. Enfeitam-se elas com belas papoulas, suaves jacintos e, sobretudo, rosas. Nesse

desvario, procurando as mais raras flores, as moças se afastam e Prosérpina se encontra

sozinha no vale: trata-se de forma amenizada do que Propp nomeou afastamento, ou a

função I, para os limites deste estudo.

Aqui não há proibição especificada por Ovídio, e por conseguinte não há

também transgressão evidente, que corresponderiam às funções II e III de Propp7. A

expressão “carpendi studio”, traduzida livremente por “acesas no fervor da flórea caça”

(como veremos a diante, em mais completo contexto), contudo, deixa claro que

Perséfone não estava seguindo todas as regras que Ceres gostaria, e, portanto, poder-se-

ia atribuir a ela parcela da culpa do ocorrido: assim funcionam as funções II e III do

russo. Nestes termos, relaciona-se aqui essa expressão com as funções não especificadas

por Ovídio.

5 PROPP, 2002, p. 29.

6 idem.

7 PROPP, 2006, pp. 27 e 28.

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O fato de a deusa filha encontrar-se distanciada da mãe e da comitiva que a

acompanhava propicia ao personagem denominado antagonista do herói (agressor)

penetrar no conto. Aqui este é Plutão, irmão de Júpiter e, portanto, tio da deusa filha.

Ele aparece e a rapta de súbito, fora das vistas de quem quer que seja. Esta é a função

VIII, o dano, que pode assumir várias formas. Aqui ela assume uma das mais

recorrentes, em que o antagonista rapta uma pessoa8.

carpendi studio paulatim longius itur,

et dominam casu nulla secuta comes.

hanc videt et visam patruus velociter aufert 445

regnaque caeruleis in sua portat equis.

Acesas no fervor da flórea caça,

Para aqui, para ali, se vão, se alongam;

E eis sòzinha Prosérpina. Seu tio,

Que tão a ponto a vê, a toma, a furta,

Lança-a no coche, e a rápido galope

Dos frisões negros, lá se vão rodando,

Via do Averno. (p. 247)

Propp, naturalmente, entre as funções III e VIII lista outras: estas não nos

interessam, pois não dizem respeito a este conto. Cabe, porém, dizer da função VII,

denominada cumplicidade, que pode ser obtida à força. Nessas circunstâncias, o

agressor se aproveita de uma situação em que se encontra a vítima (

que pode ser dispersão do rebanho)9. Denominando nesses termos essa função

de desgraça prévia, cabe ela à situação de Prosérpina.

Essas funções (I a VII) são consideradas a parte preparatória, culminando no

dano ou função VIII, que irá então desencadear o nó da intriga do conto maravilhoso10.

Temos ainda a função VIII-A, denominada carência11. VIII e VIII-A aqui se relacionam

e complementam: o dano causado por Plutão gera em Ceres o desejo de obter algo,

carência. Ceres então exclama: “me miseram! filia' dixit 'ubi es?” (p. 456), na tradução:

8 PROPP, 2006, p. 31

9 idem

10 idem

11 PROPP, 2006, p. 35

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14

“Ai triste! ó filha! Filha! ó céus! onde estás?” (p. 247), corroborando as hipóteses de

que o afastamento da deusa filha de sua comitiva consiste em algo que poderia ser

censurado pela mãe (função III), de que o rapto logrado pelo tio constitui um dano

(função VIII) e de que estabelece-se neste momento do conto uma carência (função

VIII-A).

Porém, antes de tomar lugar a explicitação da carência, revela-se em Ovídio a

função IX, mediação: as moças companheiras de Perséfone, terminada a colheita, por

não obterem resposta mesmo sendo a deusa tão chamada, enlouquecem em gritos de

desespero, ao passo de que entra em cena Ceres. Esta, ouvindo a gritaria, então torna

patente a carência. Portanto, o desespero das moças divulgou à deusa mãe a notícia do

dano. Essa mediação acontece aqui de maneira comum, uma vez que Propp afirma que

essa mediação é feita mais frequentemente por personagens periféricos12.

Figura-se por conseguinte o início da reação (X): Ceres se lamenta, sofre e se

decide por buscar a filha. Na tradução existe a passagem “Tem que peregrinar!”

(OVÍDIO, 1956, p. 248), deixando muito claro esse momento. No texto latino, no

entanto, não fui capaz de localizar tal passagem, o que não impede que essa função se

insira nesta análise, uma vez que pode não ser mencionada em palavras mas ainda assim

constituir um fragmento importante para a morfologia do conto13.

A peregrinação de Ceres revela-se algo extensa. Ovídio cita os lugares pelos

quais passou: Leontinos, Amenano, Anapo, Camerina, Corinto, etc. Esses lugares são

percorridos porque houve aqui a partida, funçao XI. O herói deixa a casa para tentar

reparar o dano ou a carência, nesse caso, a que o próprio herói foi submetido. Com este

objetivo, Ceres vai a lugares inóspitos, inacessíveis a pés humanos, mas por algum

motivo Ovídio dá atenção especial a um lugar: a choupana de Celeu. Seria possível

compará-la à isbá da floresta encantada que Propp descreve em As raízes históricas do

conto maravilhoso? Este é assunto para o próximo capítulo, e uma relação mais clara

com a função seguinte, denominada primeira função do doador (personagem

responsável por preparar o herói para receber um meio ou axiliar mágico), ou XII, dele

poderá fazer uso.

Segundo Propp, o herói se depararia então com uma prova difícil, um

questionário, um ataque. Em nosso conto, Ceres está perambulando pelo descampado

12 PROPP, 2006, p. 37

13 PROPP, 2006, p. 38

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15

que pertencia a Celeu, à noite, quando escuta alguém chamá-la “mãe”: é a filha de

Celeu, pastorinha, com duas cabras. Logo aparece o velho, recurvado sobre o peso do

que carregava, e convida a deusa, desfarçada em velha, para ir à sua cabana. Ceres

recusa, mas o velho insiste, e a deusa lhe responde: “Alegria e fortuna te acompanhem; /

Que nunca percas filho; (...)” (OVÍDIO, 1956, p. 250). Corre-lhe uma lágrima ao falar

da filha perdida, o que comove o velho e a pastorinha. Ele então dirige à deusa palavras

nobres, rogando que consiga o que procura e que não despreze o conforto que sua

pequena choupana poderia proporcioná-la. Tocada pelas palavras do velho, Deméter

resolve segui-lo. Ele lhe conta como anda mal de saúde o filho em casa, e a deusa vai

colhendo pelo caminho papoulas que já se destinam a tratar do menino, sem que saiba o

velho.

Adentra a casa e depara-se com ambiente triste e desesperançoso: do menino já

não se espera nada. Une os lábios divinos aos lábios da criança, recuperando-lhe algum

rubor e à família alguma fé. Revigorada, a família oferece à deusa vários alimentos, dos

quais nenhum ela prova. Em vez disso, infunde as papoulas em leite e dá ao menino.

Como verificaremos, o questionário, a tarefa etc não são submetidos à deusa: esta já é

um ser mágico. A hipótese que proponho é que há aqui uma inversão das características

do que se desenrola na isbá do doador. A heroína de nosso conto, a deusa Deméter, não

haveria de receber um instrumento mágico porque este não se faria útil. Ao contrário,

Deméter assume o papel do doador: impõe de maneira passiva o questionário ao velho

quando lhe faz bons votos e aceita dele a resposta benévola, decidindo por ir à

choupana. Mas não é ainda o velho que assumirá o papel de receptor, e sim o filho.

Doente, em situação difícil que buscarei no próximo capítulo comparar a uma espécie

de prova, ele é tratado pela deusa e dela recebe alimento, que comparo ao alimento

espiritual a que Propp se refere14. Mas este é assunto para o próximo capítulo. A este

cabe apenas dizer que há comparação possível, dentro dessas pesquisas, entre a estadia

de Ceres em casa de Celeu e as funções que incluem a figura do doador, a saber, XII,

XIII e XIV (primeira função do doador, reação do herói e fornecimento – recepção do

meio mágico, respectivamente).

Após interação com a família de Celeu, a deusa continua sua peregrinação, e

sobe às manções etéreas à procura da filha. Febo é quem tem a resposta: já estava

Perséfone casada com Plutão e habita o terceiro império:

14 PROPP, 2002, pp. 67-70.

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16

Sol aditus 'quam quaeris', ait 'ne vana labores,

nupta Iovis fratri tertia regna tenet.' 583

Dali vai ter co’o Sol. – “A que procuras” –

Lhe diz o Sol – “escusas de cansar-te;

Casa está co’o grande potentado

Irmão de Jove, no terceiro império.” – (p. 253)

A desaventurada Ceres então vai ter com Jove. Roga-lhe que se lembre que

Prosérpina é também filha dele, e que lhe restitua a raptada donzela, uma vez que esta

mereceria por noivo melhor figura que um salteador. Júpiter responde que também a

tem por filha, mas que, porém, Plutão é noivo digno. Diante dos pedidos da deusa,

resolve que a restituirá à mãe com a condição de que não houvesse consumido nenhum

alimento no Hades, e envia Mercúrio, que, voando, desce ao reino dos mortos onde se

encontra Prosérpina, e constata que ela se alimentara de três bagos purpurinos, que em

As metamorfoses são sete gomas de romã15. Como afirma Propp, no conto, quem prova

do alimento espiritual do outro mundo se confirma de lá residente16, e portanto, estaria a

noiva de Plutão fadada a viver para sempre no Averno.

Para nossos estudos, como já vimos, o papel do doador aqui se confunde: no

conto, o herói encontra-se com ele na floresta (ou em túmulo de ancestrais, como

veremos a diante) e recebe um meio mágico para prosseguir com sua busca. Esse meio

mágico, às vezes, simplifica-se em informação, e a floresta pode ser vista como alegoria

para um lugar escondido, onde toma lugar o ciclo iniciático17. Examinemos portanto os

seguintes pormenores: 1) Em As metamorfoses, há um breve fragmento da narrativa que

não figura em Os Fastos: em sua busca, Ceres depara-se com Ciane, ninfa da Sicília,

que havia consumido-se entre as águas de que era rainha por ação de Plutão, que

fendera o fundo do seu lago em passagem para o Hades. Como está incapacitada de

falar, dá sinal à deusa: revela-lhe o cinto da donzela, reavivando assim sua busca18; 2)

De volta à versão contida em Os Fastos, antes de ter com Febo, Ceres recorre aos

astros, quando Helice, também ninfa, mas já metamorfoseada em estrela por Zeus, lhe

15 OVÍDIO, 1983, p. 97.

16 PROPP, 2002, pp. 67 - 70.

17 PROPP, 2002, pp. 55 e 56.

18 OVÍDIO, 1983, pp. 97 e 98.

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17

indica que o Sol saberia do paradeiro da jovem; 3) Sol o informa à deusa sem delongas;

4) Já sabendo da localização da filha, Deméter recorre a Jove. Cabe aqui a reflexão: não

estaríamos aqui diante da configuração não de um, mas de, ao todo, cinco doadores?

Além da própria Ceres, se encarada como desempenhando papel de doadora à família da

choupana que encontra no caminho, temos Ciane (presente apenas em As

metamorfoses), Helice, Febo e Júpiter. Ciane dá a Ceres reavivamento e a certeza de

que a filha passara por ali; Helice informa-a de onde ela poderia efetivamente sobre o

paradeiro de Prosérpina; Febo a viu de fato sendo carregada para o Hades e o participa a

Deméter; Ao falar com Júpiter, este primeiro parece que não cederá: alude às qualidades

do noivo. Como sua interlocutora não aceitasse a decisão, envia Mercúrio voando ao

Averno (que se assemelha a um auxiliar mágico), e constata que Prosérpina não poderia

voltar. Deméter toca Jove da maneira como foi tocada pelo velho: com de palavras que

lhe afetam os sentimentos. Figurar-se-ia aqui então não apenas a função do doador, mas

também a da reação do herói (XIII), nestes termos, a própria Deméter, superando uma

prova (função XII, primeira função do doador) que não lhe havia sido imposta. Nesse

âmbito, a comparação cabe entre a figura do doador de que nos fala Propp e as de

Ceres, Ciane, Helice, Febo e Júpiter, cada um a seu modo.

Vale ressaltar que o doador no conto relaciona-se à morte, ao mágico, ao

ancestral, ao divino: todos os que figuram aqui são deuses ou ninfas. Estas

desempenham a função com menos intensidade que aqueles. Não consideramos

anteriormente o personagem do velho da choupana ou de qualquer membro de sua

família como doador porque, na condição de mortal, ele se caracteriza inferior à deusa.

As ninfas, porém, algumas das quais também consideradas deusas (como Tétis), têm

posição de desempenhar este papel para Ceres, e o mesmo vale para o Sol e para Jove,

mas em maior intensidade. Seguindo esta linha de raciocínio, enquanto outros deuses

assumem a condição de doador, a Ceres se delega predominantemente a posição de

herói.

Veremos no capítulo seguinte justificativa para a função XVII, a marca ou

estigma. Por enquanto, basta dizer que esta se impõe a Perséfone. As funções XVII e

XVIII (esta última designada por vitória), bem como a XIX (reparação de dano ou

carência), podem ser notadas na seguinte passagem:

et factura fuit, pactus nisi Iuppiter esset 613

bis tribus ut caelo mensibus illa foret.

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18

Tê-lo-ia feito,

Como o chorava em seu delírio Ceres,

Se o Padre a bom concerto a não quietara,

Jurando que Prosérpina cada ano

Meses seis gozaria etéreas auras,

Da cara mãe na alegre companhia.

Teria a deusa mãe descido ao Hades para habitar com sua filha, como propora a

Júpiter, se este não decretasse o pacto. Este pacto constitui para nossos fins a função

XVIII, vitória sobre a tirania do raptor. A busca de Ceres, que se insere em condição de

heroína, como já vimos, e sua patente dor que comoveu Jove originaram essa vitória,

que, em momento anterior do conto, parecia já improvável. Vale ressaltar que em alguns

contos não há combate, este constituinte da função XVI, como por exemplo em Sivko-

Burko, conto várias vezes citado por Propp (c.f. PROPP, 2002, p. 367).

Júpiter, por sua vez, desempenharia o papel de doador em caráter derradeiro,

posto que, após o diálogo com a deusa mãe, compadecendo-se de sua dor, decreta que

Prosérpina poderia viver seis meses ao lado da mãe, mas, por ter desjejuado no Averno,

os outros seis deveriam ser ao lado do tio e marido. Esta é a forma em que aparece a

função XX, regresso do herói:

et factura fuit, pactus nisi Iuppiter esset

bis tribus ut caelo mensibus illa foret.

tum demum voltumque Ceres animumque recepit, 615

imposuitque suae spicea serta comae:

largaque provenit cessatis messis in arvis,

et vix congestas area cepit opes.

Com isto, de suas nuvens se despiram

O aspecto, o peito, o ânimo da deusa,

E na fronte gentil, nas tranças nuas,

Tornaram a brilhar as tremulantes

De espigas de ouro esplêndidas grinaldas;

Recobriram-se os chãos de messes pingues;

E transbordou das eiras a abundância.

“Com isto” refere-se ao pacto com Jove, em que consiste a reparação do dano e da

carência de Deméter; predominantemente, trata-se neste trecho do retorno de Ceres após a

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árdua busca: fez-se então a primavera e o solo era novamente fecundo. Este caráter

cíclico e de renovação, embora não refletido de maneira clara no conto maravilhoso

dentro da teoria proppiana, é próprio do mito de várias culturas, desconhecido apenas de

alguns sistemas monoteístas, como nos ilustra Karen Armstrong na seguinte passagem

de Breve história do mito: “Enquanto os deuses babilônicos estavam engajados na

eterna batalha contra as forças do caos e precisavam dos rituais do festival de Ano novo

para recobrar as forças, Javé pode simplesmente descansar no sétimo dia, tendo

completado sua tarefa.” (pp. 82 e 83).

Resta apenas esclarecer nosso ponto de vista a respeito a função XV:

deslocamento no espaço entre dois reinos ou viagem com um guia, viagem feita pelo

herói graças ao instrumento ou auxiliar mágico que obteve. Este “outro reino”, segundo

Propp, relaciona-se ao mundo dos mortos ou dos ancestrais. De acordo com seu

subcapítulo A morte temporária, em As raízes históricas do conto maravilhoso, assunto

mais interessante ao próximo capítulo deste trabalho, há a seguinte passagem: “(...) a

morte assumia formas de deslocamento no espaço.” (p. 102). A heroína de Rapto de

Prosérpina, Ceres, não desce nele ao Averno: faz súplicas a Júpiter que envia Mercúrio.

Quem faz a viagem ao outro reino é a mesma Prosérpina, em papel de vítima e não de

heroína, e o faz em poder de Plutão. Para fazer essa associação em termos mais

cabíveis, é preciso analisar o conto sob um outro ponto de vista: temos em Ceres o papel

de herói buscador e, se observarmos Perséfone como herói-vítima. Este tem

características particulares que não dizem respeito à vítima deste conto, sobremaneira a

de que as ações narradas em contos cujo protagonista é herói-vítima não são as de

personagens que ficam após o dano, mas dos mesmos que são raptados, aprisionados

etc. Mesmo com isso, observações de cunho mais etnográfico como em As raízes

históricas do conto maravilhoso poderão levantar reflexões interessantes.

6. Possíveis relações entre a gênese do conto e o Rapto de Prosérpina

Partimos da premissa de que, muito provavelmente, a gênese de muitos aspectos

deste conto não é romana e nem mesmo grega: deriva de tradições tribais, ritos e mitos

muito anteriores a Ovídio ou à teogonia grega.

Vimos que numerosos aspectos do conto maravilhoso têm por gênese o rito

antigo da iniciação. Neste havia o contato simbólico com a morte, apenas depois do

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qual o neófito poderia exercer suas funções de caça, por exemplo, porque havia

adquirido então as habilidades necessárias para tanto. Isso não se reflete ipsis literis no

conto, tendo por vezes conservado apenas consequências, o que permite apenas fazer

conjecturas. Tendo por base as extensas pesquisas de Propp nesta área, passemos à

nossa proposta.

A deusa Prosérpina foi raptada e levada ao Hades, o “outro reino”, o mundo dos

mortos, e de lá poderia ser resgatada, não fosse a atitude de provar de alimento nascido

no próprio Averno, uma romã. A esta questão há dedicado um substancial subcapítulo

em Propp, 7. Deu de comer e de beber19. Refere-se ao alimento que se consome na

pequena isbá da floresta, portal para o outro mundo: “O lado aberto da isbá é voltado

para o reino dos confins (...)”20. O mais importante aqui é que o herói não pode

prosseguir para seu destino, que é o outro mundo, sem comer de alimento próprio deste.

Esse alimento purificaria o herói de tudo que é terrestre, dando-lhe força para

prosseguir, como morto, nestes reinos. Os exemplos citados pelo russo são vários.

Segundo uma tradição maori, “pode-se voltar, mesmo após haver atravessado o rio que

separa os vivos dos mortos, mas quem provou o alimento dos espíritos nunca

voltará.”21; em tradição egípcia com réquiem,

O alimento era trazido sobre uma mesa para a sala (usekht) ou sepulcro. (...)

alguém, talvez um sacerdote, tomava seu lugar na condição de substituto

(vicariousty) e comia por ela. (...) No final da refeição (...) acreditava-se que o

morto, representado por sua múmia, transformava-se em khu ou espírito e

adquiria todas as capacidades dos espíritos do outro mundo. (BUDGE apud

PROPP, 2002, p. 69)

A característica do alimento espiritual do morto está presente em várias culturas

e não nos interessa elencar muitos exemplos. A questão é que Perséfone ingeriu esse

alimento e se tornou Koré, esposa de Plutão e, por conseguinte, rainha do Hades. Estaria

então ela justificando a inserção da função XVII neste mito, o estigma. Um rito antigo

lapão nos mostra que o herói se feria para poder se casar, uma vez que apenas da

mistura do sangue dos cônjuges proveria relação de parentesco adequada, como reflete

19 PROPP, 2002, pp. 67 - 70.

20 PROPP, 2002, p. 58.

21 FRAZER apud PROPP, 2002, p. 68

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um trecho de conto da região: “Misturemos nosso sangue, unamos nossos corações para

a alegria e a dor”22. A ferida, em nosso conto simbólica e involuntária, é a integração

definitiva de Prosérpina entre os seres do Hades, transformando sua aparência e

privando-a do convívio com sua mãe.

Ela está então iniciada e recebe poderes para interceder pelos mortais em

assuntos relacionados à sua passagem para o mundo dos mortos.

Passada em vista a questão de Prosérpina, cuidemos do tocante à deusa mãe.

Também ela participa de evento relacionável à iniciação, não como neófita, mas como

iniciada já detentora de poderes e habilidades. Entendemos que Prosérpina também já

tinha poderes antes do rito a que se submete, mas não no âmbito do Averno, o que dá

margem para que tal rito se dê. Ceres, no entanto, quando o rito em questão se dá, está

na terra, na pequena cabana de Celeu. Lá, ela dá de beber ao filho do velho, estende-o

na lareira e o cobre de brasas, tudo na calada da noite. Todos esses elementos possuem

gênese confluente à teoria de Propp. Em primeiro lugar, definamos o que é a iniciação

para os nossos propósitos:

O que é a iniciação? É uma instituição própria do regime tribal. Esse rito ocorria

no momento da puberdade. Ao cumpri-lo, o jovem era introduzido na sociedade

tribal, da qual se tornava membro investido de plenos direitos, ao mesmo tempo

que adquiria o direito de se casar. (...) O rito ocorria sempre na parte mais densa

da floresta ou de uma moita, e no maior sigilo. Era acompanhado de torturas e

cevícias físicas (dedos cortados, dentes arrancados, etc.) Outra forma de morte

momentânea expressava-se no fato de o rapaz ser simbolicamente queimado,

cozido, assado, cortado em pedaços e depois ressucitado. O ressucitado recebia

um novo nome; imprimiam-lhe marcas na pele ou outros sinais reveladores do

rito a que se submetera (...) Transmitiam-lhe técnicas de caça, segredos

religiosos, conhecimentos históricos (...). Ensinavam-lhe a caça e a vida em

sociedade, as danças, os cantos e tudo o que era considerado indispensável para

a existência. (PROPP, 2002, p. 54)

O caráter do sigilo em que Ceres opera o ritual no menino enfermo é evidente, à

excessão de quando lhe dá a bebida: “Em meio corre a noite; impera o sono; / O silêncio

é geral. (...)”23. A deusa o põe na fogueira e o cobre de brasas para queimar sua carne

22 KHARUZIN apud PROPP, 2002, p. 368.

23 OVÍDIO, 1956, p. 252.

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mortal. No rito tribal, o fogo rejuvenesce e purifica24, dá ao homem uma alma nova25 e

qualidades necessárias para um membro da sociedade tribal investido de plenos

direitos26. Em Ovídio, a intenção da deusa é tornar o menino imortal. Entretanto, a mãe

vê o rito e rapidamente retira o menino do fogo:

'quid facis?' exclamat, membraque ab igne rapit.

cui dea 'dum non es', dixit 'scelerata fuisti:

inrita materno sunt mea dona metu.

iste quidem mortalis erit: sed primus arabit

et seret et culta praemia tollet humo.'

(...) “Que fazes?” – grita

E arrebata do lume o seu tesouro.

– “Piedosa na intenção, no efeito és ímpia” –

Exclama a potestade – “o intempestivo

Do maternal pavor meus dons anula:

Queria eternizá-lo, e fica humano;

Por mercê todavia inda lhe outorgo

Que ele dentre os mortais seja o primeiro

Que lavre, que semeie, e que recolha, (...) (p. 252)

Esta criança, iniciada por Ceres, é Triptólemo, herói associado à agricultura, de

quem se dizia semear trigo diretamente do céu. Isto, porém, à excessão do nome, não se

revela neste conto em particular. O fato é que o menino ganhou poderes e habilidades

graças à bebida preparada pela deusa e à sua morte simbólica – ou quase morte – pelo

fogo. Existem muitas variações a respeito de Triptólemo: em alguns tem pais diferentes,

em outros chega efetivamente a ter o corpo consumido pelas chamas, etc., mas nenhuma

variação torna o rito que originou suas habilidades impossível de relacionar à iniciação

tribal.

Há ainda na cabana de Celeu outro elemento que aqui se considera digno de

atenção: assim que a deusa toca os lábios seus aos do menino, este imediatamente

24 PROPP, 2002, p. 108.

25 PROPP, 2002, p. 109.

26 PROPP, 2002, p. 110.

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aparenta convalescência. A família, agradecida, oferece a ceres diversos alimentos, que

são recusados sem cerimônias. Por que Ceres recusa esses alimentos?

Em Propp, encontramos um subcapítulo dedicado a tratar da questão do gigante,

ou da bruxa, que dento da teoria proppiana simbolizam o morto, que reconhece o herói

pelo cheiro27. Muitos exemplos buscados na etnografia são citados, e então encontramos

a seguinte passagem:

O odor dos seres vivos é totalmente insuportável para os mortos. Pelo visto,

aqui se transpõem para o mundo dos mortos as relações do mundo dos vivos

com signo invertido. O cheiro dos vivos é tão repugnante e horrível para os

mortos quanto o cheiro dos mortos é repugnante e horrível para os vivos

(PROPP, 2002, p. 66)

Como já vimos, a figura da bruxa – mais arcaicamente a matrona dos animais,

da natureza, da floresta – frequentemente está relacionada à figura do doador. Quem

desempenha este papel na choupana do velho Celeu é Ceres. Considera-se cabida a

reflexão: seria possível que essa restrição ao cheiro dos vivos, pelo simples fato de estar

relacionado à vida, ou seja, pertencer a outro plano,o pode se extender também ao

alimento dos vivos? Não ousaremos responder a esta questão neste estudo, ao que tudo

indica ela é mais profunda e necessita de pesquisas posteriores.

Este conto reflete também algo sobre os reis que Propp, citando Frazer, indica já

no segundo capítulo de As raízes históricas do conto maravilhoso, mas que só se nos

revela ao final da narrativa: “(...) do seu bem-estar depende o bem-estar do povo.”. Os

reis viviam em um complicado regime de restrições que, acreditava-se, protegia o rei e

por conseguinte todo o reino. Isso se relaciona com Rapto de Prosérpina. Ceres, a

heroína em nossos parâmetros, é a matrona da terra – enquanto meio de cultivo –, dos

grãos, cereais, etc. Na situação inicial, como já exposto, vive feliz sabendo que a filha

está segura e descrevem-se paisagens verdejantes e floridas na Sicília. Quando o rapto

ocorre, a deusa deixa de lado a terra e seus frutos e dedica-se apenas à busca. Está ferida

e infeliz, e não mais figuram nos contos tão belas paisagens. É em decorrência da

culminância de sua busca em achar Prosérpina e conseguir acordo com o agressor que

ela, finalmente, restaura a paz e o bem-estar, gerando assim novamente o bem-estar do

27 PROPP, 2002, pp. 65 - 67.

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povo. Quando a filha deve descer ao Hades, não mais a deusa se sente plena e, por este

motivo, plena também não é a colheita e nem o povo que depende dela.

Estas são as análises referentes ao Rapto de Prosérpina a que se dedica esse

trabalho. Passemos agora ao segundo conto, Paládio.

7. Sobre a morfologia de Paládio

As considerações sobre a morfologia deste conto são poucas por alguns motivos:

1) Trata-se de uma versão de uma narrativa, ao que tudo indica, diretamente factual.

Portanto, o imaginário popular aqui estaria presente em aspecto mais ameno, apenas na

medida da forma como essa narrativa chegou ao conhecimento de Ovídio e conforme as

crenças e tradições do próprio poeta; 2) Não se trata de uma narrativa fundada no que

Tzvetan Todorov nomeou a causalidade dos acontecimentos28, em que os eventos

narrados estão predominantemente ligados e a isso se dá ênfase. O objetivo de Ovídio

aqui é predominantemente dar um panorama da história do que seria o Paládio – que

muito se confunde com mito – e relatar de maneira lírica o ato heróico de Lúcio Metelo.

Nestes termos a causalidade dos acontecimentos não configura estrutura primordial do

conto e, portanto, torna arriscada uma análise morfológica dentro da teoria de Propp; 3)

O estudo da provável gênese de alguns elementos desse conto que se dará no próximo

capítulo não estará intrinsecamente ligado à estrutura em que se apresentam. Em Propp

temos um herói cumprindo trajetória que se explica em parte pela trajetória iniciática

dos antigos. Aqui esta totalidade não se apresenta, pelos motivos acima citados.

Feitas as ressalvas, passemos à análise morfológica.

Em primeiro lugar apresenta-se a situação inicial que não está em desacordo

com aquela do russo: quando Ilo recebe dos céus a estátua de Belona, não há no conto

conflito ou material que supra o nó da intriga. Consultando o oráculo, conhece que, se

guardar devidamente o objeto, guardaria devidamente também seu império, Illium

(Tróia). Assim o faz, e Tróia é próspera. Sob o zelo de Laomedonte, filho de Ilo, da

mesma maneira, a estátua permite que o império siga em paz. É só sob os cuidados de

Príamo, neto de Ilo e filho de Laomedonte, que não se cumpre a função de proteger o

Paládio, e este lhe é roubado.

Temos então na estátua da deusa, já presente na situação inicial, o esboço de um

meio mágico “generalizado, de acapacitação existencial e não de utilidade específica

28 TODOROV, 1976, p. 53.

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25

para o confronto com o antagonista”, como define Haroldo de Campos a respeito da

muiraquitã andradiana29. Porém, esse aspecto do meio mágico em Andrade se deve às

características específicas daquela narrativa. No nosso caso, o antagonista não existe, ou

antes é o inimigo em potencial, assunto que não é tratado no conto de Ovídio. O

máximo que foi possível extrair de elementos próprios do agressor de Propp aqui tem

como fonte Diomedes, Ulisses ou Enéias:

sub Priamo servata parum: sic ipsa volebat,

ex quo iudicio forma revicta sua est.

seu gener Adrasti, seu furtis aptus Ulixes,

seu fuit Aeneas, eripuisse ferunt;

auctor in incerto, res est Romana: tuetur 435

Vesta, quod assiduo lumine cuncta videt.

Príamo, herdeiro deste (a etérea virgem

O permitiu assim, pena da afronta

Que Páris lhe infringira), o velho Príamo

Transcurou-a, e roubaram-ma. Quer fosse

Diomedes o raptor, quer fosse Ulisses,

Herói a furtos apto, ou pio Eneias.

Quem sabe fosse o que a levou não se destrinça;

Sabe-se que esta prenda hoje é romana,

E tem por protetora a que vê tudo

A luz do eterno lume, a augusta Vesta. (p. 332)

Os motivos pelos quais não se assume aqui que estes possíveis raptores sejam de

fato caracterizáveis como agressor são: 1) Tratando-se de um autor romano com Ovídio,

de quem algumas obras, em certa medida, têm caráter nacionalista, considera-se

improvável a aparição de um herói nacional como possível antagonista sem desfecho

que prove o contrário; 2) Ainda que em decorrência da transgressão (III) de uma

proibição (II) – permitir que o Paládio se afastasse dos muros que o cercam em Tróia –

este acontecimento não é parte constituinte do nó da intriga, uma vez que a função VIII

ou dano se impõe a uma família ou a algum membro dela decorrente de uma parte

preparatória para o início da reação do herói (X), e este não é o caso desta narrativa.

Nele, não há neste momento partida (XI) ou herói.

29 CAMPOS, 1973, p. 166.

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26

Se Enéias é visto como um dos possíveis raptores, isso significa que parte dos

tempos áureos de Roma ainda estavam por vir. Neste caso, então, deparamo-nos

novamente com uma situação inicial, desta vez não apenas esboçada, mas implícita.

Não se faz referência direta a um eventual estado de tranquilidade em Roma em

Paládio, mas isso se infere dos versos seguintes:

heu quantum timuere patres, quo tempore Vesta 437

arsit et est tectis obruta paene suis!

Qual não foi o pavor de nossos padres,

Quando o templo lhe ardeu, e a própria deusa

Ia sendo esmagada entre as ruínas! (p. 332)

Há aqui margem para dizer, conhecendo os atributos divinos da estátua, que o

pavor que se tinha de permitir que ela fosse esmagada entre as ruínas do templo de

Vesta era o pavor de permitir que todo o império romano principiasse a perder seu

poderio. Portanto, sugere-se que este trecho corrobora a hipótese de que, antes dele, há

implícita uma situação inicial semelhante às que Propp descreve em Morfologia do

conto maravilhoso (p. 26) e em As raízes históricas do conto maravilhoso (p. 29).

Nesses termos, a família apresentada é o próprio povo romano. O dano não é

consumado, mas paira a ameaça de perder templo e Paládio, comparada anteriormente

ao objeto mágico. Aqui não há agressor senão o próprio incêndio.

As virgens vestais, encarregadas de cuidar do templo e manter sempre acesa a

chama sagrada (entre outras atribuições), desesperaram-se frente ao incêndio. Choravam

e lamentavam-se da tragédia em curso, quando a figura de Metelo penetra na história.

Ele brada súplicas às sacerdotisas, para que salvem do templo os objetos sagrados, não

ousando entrar nele porque o acesso a homens era proibido. Como as virgens se

mostrassem inertes, o herói então resolve-se por descumprir essa exigência do templo:

dubitare videbat

et pavidas posito procubuisse genu.

haurit aquas, tollensque manus 'ignoscite', dixit

'sacra: vir intrabo non adeunda viro. 450

si scelus est, in me commissi poena redundet:

sit capitis damno Roma soluta mei.'

dixit, et inrupit: factum dea rapta probavit,

pontificisque sui munere tuta fuit.

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27

Via-as a todas

De joelhos, prostradas, indecisas.

Abluiu-se, as mãos levanta, e – “Perdoai-me

Sacros objectos” – diz – “varão penetro

Onde entrarem varões é proibido!

Se é desacato em mim redunde a pena;

Pela vida de Roma of’reço a minha.”

Calou-se, e prorrompeu no santuário;

Rapta a deusa; a raptada aprova o feito;

Graças ao seu pontífice está salva. (p. 333)

Eis a atitude que o fez herói. É mais que arriscado, portanto, tentar tentar propor

uma busca, uma jornada com o objetivo de reparar algum dano: este é, em Paládio,

antes um dano potencial que não chega à culminância. Com efeito, porém, aquilo que

aqui é relacionado ao objeto maravilhoso de Propp é recuperado e mantém-se

harmoniosamente sob os cuidados de um César: tal é o conteúdo da penúltima estrofe

da narrativa. Como não há partida, também não há retorno. Para considerarmos a

entrada de Metelo no templo como partida e seu retorno portando o objeto sagrado

como respectivamente partida (XI) e regresso (XX), com suprimido combate (XVI)

entre o herói e o “ímpio fogo”30, seria necessário lançar mão de demasiada simbologia,

beirando a divagação, o que não parece certo considerando as fontes de pesquisa de que

dispomos. Além disso, ainda estariam de fora da análise outras funções do conto,

portanto, a conclusão parcial é que aqui só se pode relacionar de maneira

satisfatoriamente embasada algumas funções da morfologia de Propp.

O desfecho da narrativa nos dá interessante ponto de partida para a análise

seguinte:

8. Possíveis relações entre a gênese do conto e Paládio

sic incesta perit, quia, quam violavit, in illam

conditur: est Tellus Vestaque numen idem. 460

Terra e Vesta são uma; a ofensa a Vesta

30 OVÍDIO, 1956, p. 332.

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28

Nas entranhas da terra era punida. (p. 333)

A ofensa a que se refere este, que é o último parágrafo de Paládio, é a de causar

vergonha ao “virgíneo crinal”31, ou seja, deixar de ser virgem. Esta proibição é

interessante aos nossos propósitos, mas comecemos pela afirmação de que “Terra e

Vesta são uma”.

Como já vimos, os reis dos povos antigos eram submetidos a várias proibições,

porque a eles eram atribuídos poderes mágicos ou sobrenaturais. Citemos o que consta

em Propp:

O rei ou sacerdote era detentor de faculdades sobrenaturais e encarnava

a divindade; consequentemente, supunha-se que os fenômenos da natureza

estavam, em maior ou menor proporção, sob seu controle. Considerava-se o rei

ou sacerdote como responsáveis pelo mau tempo, pelas más colheitas e por

todas as calamidades do gênero. (FRAZER apud PROPP, 2002, p. 38)

Dizer que a deusa é uma com a terra suscita o mesmo tipo de temor que,

segundo Frazer e Propp, os antigos tinham: quando afligida por algum mal ou alguma

insatisfação, aquilo que ela rege será certamente afetado. Obviamente, por se tratar de

uma deusa, os humanos não lhe podem fazer restrições, portanto, apenas cuidam que

nada lhe aflija, e os mais comprometidos não medem esforços para isso. Cabe aqui

também a interpretação de que o fragmento “Terra e Vesta são uma” se deva ao fato de,

segundo Ovídio, as virgens que se tornassem infiéis seriam punidas e teriam de “descer

vivas ao lôbrego sepulcro”32, ou seja, padeceriam enterradas ou ao menos em algum

ambiente inóspito que se localizasse abaixo do solo. A posição aqui é pensar que ambas

as interpretações são possíveis.

Para melhor compreendermos o que representa Vesta, correspondente à deusa

Héstia dos gregos, examinemos a seguinte passagem:

Segundo Hesíodo, Héstia era a filha primogênita de Réia e Cronos. Foi

a primeira a ser engolida pelo pai e a última a ser salva pelo irmão Zeus.

Implorou a Zeus, depois do conflito com os titãs, para permanecer sempre

virgem. Ao chegar ao Olimpo, foi cortejada por Apolo e Poseidon, induzidos

31 OVÍDIO, 1956, p. 333.

32 idem.

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por Afrodite. Decidiu guardar firmemente a virgindade, evitando o confronto.

Zeus, agradecido pela paz no Olimpo, concede-lhe o privilégio de ter o seu

lugar no centro da casa e em todos os templos, recebendo as melhores ofertas:

em todos os rituais ela deveria ser a primeira e a última a ser invocada e receber

o primeiro e último sacrifício (...). (SILVA, 2012, p. 187)

A iconografia de vesta é mais frequentemente o próprio fogo. Sobre a

simbologia de Vesta: “O fogo sagrado mantido pelas vestais era responsável pelo

equilíbrio da cidade e da pax romana”33. Podemos dizer que entre os objetos de regência

dessa deusa estavam os lares, as famílias, a perenidade. A afirmação de que terra e

deusa são uma, nestes termos, relaciona-se com a teoria de Propp, que tem base na

etnografia: se seus lares deixassem de ser harmoniosos, as famílias não mais fossem

fecundas, ou com qualquer decorrência de instabilidade de Vesta, a terra, no sentido de

povo ou império, estaria fadada. No caso de Paládio, a intempestividade da deusa

decorreria de infidelidade de uma sua, uma sacerdotisa, que era proibida de deixar de

ser virgem, o que também nos levanta reflexões.

Antes de entrarmos efetivamente nessa questão, falemos brevemente sobre o

papel da mulher na Roma antiga.

Em geral, enquanto cidadã, a mulher aparecia na medida em que se relacionava

com homens. O papel predominante era apenas de mater familias34. Em crianças, não se

diferiam dos meninos: o poder paternal pesava da mesma maneira para filho e filha.

Quando da puberdade, porém, o filho se tornava independente, enquanto a filha ficava

em poder do pai até se casar, quando passava a viver sob o poder do marido35. A mulher

só podia atuar na vida civil através de seu tutor, ou seja, pai ou marido36. Muitas eram

as condições para que essa situação fosse diferente e a mulher tivesse alguma

independência37.

As sacerdotizas de Vesta, por outro lado, tinham situação política bem diferente:

33 SILVA, 2012, p. 196.

34 SILVA, 2012, p. 172.

35 SILVA, 2012, p. 173.

36 SILVA, 2012, p. 174.

37 SILVA, 2012, p. 195.

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30

As “candidatas” meninas deviam ter entre seis e dez anos de idade.

Quando era escolhida a criança, ela era conduzida ao Átrio de Vesta e entregue

aos pontífices. Nesse mesmo instante estava completamente livre da potestas do

pai, mas sem sofrer emancipação nem perda de seus direitos(...) (SILVA, 2012,

p. 199).

A idade dessas meninas suscita algumas questões. A tradição tribal, segundo

Propp, era de isolar as jovens durante a maturidade sexual ou simplesmente durante o

que chamou de “purificações menstruais”38. Segundo ele, o isolamento das jovens

baseia-se nas mesmas concepções e nos mesmos temores referentes ao aprisionamento

dos filhos de reis (que se relaciona intimamente com o aprisionamento dos próprios

reis)39. Como o caso das virgens vestais é um fenômeno mais tardio, é possível que a

idade seja diferente daquela que seria mais comum no sistema tribal, mas, como

sabemos, a idade de maturidade sexual é, pelo menos para o conhecimento hodierno,

algo às vezes extremamente variável. Propp não cita qual seria essa idade em suas

fontes, o que figura no texto do russo é apenas alusão à idade de Rapunzel quando foi

aprisionada40. Portanto, não é descabido considerar que a idade das elegíveis a

sacerdotisa de Vesta e a idade das jovens isoladas dos povos antigos possam se

relacionar.

A esta espécie de processo seletivo podemos também associar de Propp o

subcapítulo A venda antecipada41. Após passar em vista o que representa a iniciação

para a organização social antiga. Os iniciados constituíam uma parcela da população

que frequentemente detinha poder político – a ser tratado mais adiante. “Era ao mesmo

tempo um rito de admissão na sociedade.”42. Isso podia ser arranjado enquanto a criança

era recém-nascida, mas ela só seria de fato iniciada quando atingisse determinada idade.

“Os meninos são admitidos na sociedade ainda em tenra idade, mas apenas mais tarde

aprendem as danças e delas participam.”43. Este tempo de espera para aptidão do neófito

38 PROPP, 2002, p. 36.

39 idem.

40 PROPP, 2002, P. 37.

41 PROPP, 2002, pp. 92 - 95.

42 PROPP, 2002, p. 92.

43 PARKINSON apud PROPP, 2002, p. 92.

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31

– ligado à maturidade sexual – varia segundo os materiais etnográficos e folclóricos

fornecidos pelo russo.

Há fontes que afirmam que essas jovens passavam por um rito de iniciação para

então se tornarem sacerdotisas. Não fui capaz de encontrar, no entanto, pormenores

desse rito, o que pode tanto confirmar o caráter oculto a que esses costumes se

submetem quanto colocar em duvida a confiabilidade dessas fontes. Portanto, atentemos

apenas para o fato de que elas

(...) deveriam servir Roma no templo por trinta anos. Nos primeiros dez

anos, deveriam se dedicar a aprender as funções de uma vestal; nos dez anos

seguintes executavam as tarefas próprias à sua condição sacerdotal e nos dez

anos restantes se ocupavam em ensinar as novas sacerdotisas da ordem, nos

seus respectivos dez primeiros anos de aprendizagem. (SILVA, 2012, pp. 200 e

201)

. Além do tempo que deve ser esperado e que precede o aprendizado, temos

também o tempo em que o herói ou neófito é submetido a algum tipo de proibição. Há a

proibição de se lavar, por exemplo: “Não se lavar, não se barbear, não assoar o nariz,

não cortar as unhas, não limpar os olhos”44. Esse estado é característica própria do

processo iniciático do herói. Nos materiais de Parkinson, a proibição dura o tempo de

maturação do inhame, sendo concedida permissão para se lavar no momento da

colheita45. Havia a proibição de dizer o próprio nome46, de mostrar os cabelos47.

No caso das sacerdotisas vestais, há uma proibição muito clara tanto no conto

quanto na tradição: a de perder a virgindade. A seguinte passagem não apenas corrobora

a idéia de que elas, podendo ser alçadas à condição de filhas de Vesta, aqui a derradeira

rainha ou sacerdotisa, eram imbuídas de poderes, como confirma a já sabida proibição

essencial a que se submetiam: “The virginity of the Vestals seems to have been valued

more as a means of preserving their semi-magical potency as daughters of the State than

as a form of ascetic devotion.” (The Priestess in the Greco-Roman World, Edward R.

Hardy, p. 265). O tempo que duravam essas proibições varia muito entre as culturas,

44 GRIMM apud PROPP, 2002, p. 153.

45 PROPP, 2002, p. 154.

46 PROPP, 2002, p. 156.

47 PROPP, 2002, P. 157.

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32

podendo, por exemplo, se relacionar a algum aspecto da agricultura, como vimos em

Propp, citando Parkinson. Qualquer suposição feita a respeito da gênese dos trinta anos

de serviço das vestais neste momento configuraria hipótese própria sem referência

científica.

Note-se também que elas passavam dez anos aprendendo os ofícios, dez

praticando os aprendizados e os outros dez ensinando as novas sacerdotisas.

Lembramos que, invariavelmente, quem promove o aprendizado da iniciação do neófito

é o iniciado.

Finalmente, falemos dos privilégios das já efetivas sacerdotisas. “As vestais

tinham preferência de passagem sempre que saiam às ruas, nas vias públicas: até os

supremos magistrados civis e os militares lhes cediam à passagem.”48. Houve lei que

proibisse o uso de carruagens em dias que era próprio às vestais andar em carruagem

para celebrar algum rito público; em jogos públicos, ocupavam tribuna junto a

imperadores; podiam escolher o destino de gladiadores vencidos; administravam

livremente seus bens, ao contrário da maioria das mulheres, que precisavam consultar o

seu tutor ou curador; podiam testemunhar numa Corte de Justiça49. Há outros direitos

que citar, a questão já foi ilustrada o suficiente para se relacionar a situação política da

virgem vestal àquela que o iniciado adquiria na sociedade. Conforme já citado, ele era

incluído, investia-se de plenos direitos como membro dela. Naturalmente, também tinha

então deveres, assim como tinha deveres a sacerdotisa. Além de manter-se casta, como

principais deveres a vestal tinha que manter aceso o fogo sagrado dia e noite e zelar

pelos objetos caros a seus cultos, entre eles o Paládio50.

Tratemos agora de outro elemento suscetível à nossa análise: o fato de o templo

ser proibido para varões.

Em trecho já citado para outros fins, a entrada de Lúcio Metelo no templo de

Vesta é precedida por súplicas do pontífice: “Perdoai-se / Sacros objectos”, ele diz,

“varão penetro onde entrarem varões é proibido!”51. Só depois destas palavras ele age,

entrando no templo e salvando a imagem. Qual seria o motivo dessa proibição? Diz-nos

48 SILVA, 2012, p. 202.

49 SILVA, 2012, pp. 203 e 204.

50 SILVA, 2012, p. 206.

51 OVÍDIO, 1956, p. 333.

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33

Propp a respeito do rito iniciático: “o rito em si é apenas uma fase do rito”52. Após o

rito, decorrem formas diferentes de prosseguimento, dependendo do povo e do local. O

iniciado pode retornar imediatamente para casa, permanecer na floresta vivendo na isbá

ou trocar a isbá pela “casa dos homens”, onde permanece por variável período de

tempo53. Tomaremos como iniciadas as virgens que já têm estadia no templo de Vesta.

É importante conhecer que

Não há delimitação precisa entre o período de iniciação e a subsequente estada

na floresta ou na casa dos homens. (...) quando a volta para casa não é imediata,

podemos distinguir duas fases: a fase da iniciação propriamente dita e o período

que se segue a ela e dura até o casamento. (PROPP, 2002, pp. 127 e 128)

Não apenas dura até o casamento, mas também o iniciado que vive na casa dos

homens está já em seus direitos sociais: é lá que frequentemente acontecem as danças,

as cerimônias e inclusive se guardam as máscaras e os objetos sagrados da tribo. Via de

regra, os habitantes dessas casas eram apenas os solteiros, e nunca os casados54. Outra

característica da casa é frequentemente se viver nela entre companheiros55, semelhantes,

iniciados. Havia uma Virgo Vestalis Maxima, espécie de chefe das vestais que, ao que

tudo indica era eleita56, assim como a casa masculina também possuía um chefe, que

também era eleito57. Propp cita Lurie na seguinte passagem: “a principal obrigação dos

rapazolas que chegavam à casa da floresta era vigiar o fogo”58. No conto se reflete

dessas confrarias um cômodo especial, que muitas vezes contém instrumento ou auxiliar

mágico59. Além disso, as proibições a que se refere Propp citadas no argumento anterior

todas se situam no capítulo A casa grande60, que se refere a essa casa dos solteiros.

52 PROPP, 2002, p. 125.

53 idem.

54 PROPP, 2002, p. 126.

55 PROPP, 2002, p. 131.

56 SILVA, 2012, p. 206.

57 PROPP, 2002, p. 136.

58 PROPP, 2002, p. 137.

59 PROPP, 2002, p. 167.

60 PROPP, 2002, pp 125 - 194.

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34

As semelhanças entre a “casa dos homens” do russo e o templo de Vesta

parecem evidentes. Só há uma diferença fundamental: aqui a casa é exclusiva para

homens. É característica dela não se permitir a entrada de mulheres ou de não iniciados.

Já vimos inversão do convencional representado pelo conto neste trabalho, por

exemplo, quando a própria heroína de Rapto de Prosérpina desempenha papel de

doadora em determinado ponto. O desenvolvimento do imaginário e do social de um

povo pode provocar – e é frequente que provoque – anomalias deste tipo no conto

maravilhoso. Os pormenores de como essa característica foi se alterando, se este for o

caso, segundo a cultura e os costumes especificamente do âmbito romano é matéria para

pesquisas extensíssimas. Como não se dispõe delas, resta a reflexão: seria cabível

conjecturar que o caso se trata de uma inversão? Em caso positivo, é de se considerar o

fato de que os homens já em púberos – período, na maioria dos casos, pouco posterior

àquele em que se tornavam as meninas em candidatas a vestais – estavam emancipados.

As mulheres, entretanto, também na maioria dos casos, jamais teriam direitos políticos

ou cíveis que se lhes equiparassem. Para tanto haviam poucos caminhos, e o que talvez

fosse visto como digno de mais honrarias era servir a deusa Vesta como sacerdotisa.

Nesses termos temos então ponto de comparação plausível entre a gênese

apresentada por Propp e o que figura na narrativa ovidiana: mesmo tendo sido cônsul,

mesmo sendo pontífice, Metelo era proibido de penetrar no templo de Vesta por ser

homem; aliás, o Aedes Vestae era espaço exclusivo para as sacerdotisas, que, por nossas

analogias, seriam as iniciadas.

4. Conclusões críticas

Certamente há outras considerações a fazer a respeito do assunto, que não

saltaram aos olhos em primeiro momento. Os Fastos é uma obra extremamente rica, de

conceito fecundo em campos como história, crítica literária, filosofia etc.

É possível perceber de maneira preliminar que muitas das funções que

constituem a Morfologia do conto maravilhoso se fazem presentes nestes contos de

Ovídio. Em Rapto de Prosérpina há o afastamento, o que causa o dano e a carência,

chave primordial para o desenvolvimento do enredo. A partida do herói e a viagem de

destinação, frequentemente em direção ao mundo dos mortos, também são facilmente

notadas neste conto, bem como elementos relacionáveis às origens históricas que o

russo propõe em As raízes históricas do conto maravilhoso, como por exemplo a

ingestão do alimento espiritual, por parte da raptada, necessário porque fornece a

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energia do morto e por meio do qual é garantida a permanência de Prosérpina com

Plutão.

Em Paládio a trajetória imposta pelas funções se mostra menos evidente, o que

não demonstra a impossibilidade de ler a narrativa sob o escopo do russo. A simbologia

nela contida permite estabelecer algumas idéias de aspecto hipotético que relacionam

certos elementos dela às raízes sugeridas por Propp. Mostrou-se especialmente

interessante a questão das sacerdotisas vestais na Roma antiga, um sólido elemento de

ligação entre aquilo que se apresenta em Ovídio e o que a etnografia nos permite

conhecer a respeito dos costumes tribais de várias regiões. Esta pesquisa e essas

relações são exemplo do que por aqui se investiga preliminarmente e é digno de mais

profundos estudos. Para posteriores trabalhos é interessante também a verificação das

figuras da deusa Belona e da Magna Mater, que ao longo da história, ainda que

raramente, se confundem, e que elucidadas podem gerar outros pontos de comparação

entre o conto ovidiano e a teoria de As raízes históricas do conto maravilhoso.

Muitos aspectos da obra de Ovídio revelam estreita semelhança com os ritos dos

antigos e seus significados, que, bem sabemos, podem ter sido paulatinamente

introduzidos na cultura romana por diversos meios, inclusive sem mediação de outros

povos – dos gregos, por exemplo – e isso pode ser verificado mediante os estudos do

folclorista.

Portanto, as teorias estruturais e etnológicas de Vladímir Propp podem ser

utilizadas na leitura de muitos contos não apenas russos, como o presente estudo se

prorõe a demonstrar através da análise preliminar de dois Fastos de Ovídio.

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Bibliografia

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