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Uma Teoria da Globalização Avant la Lettre. Tecnologias da Comunicação, Espaço e Tempo em Harold Innis * Filipa Subtil Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa Índice 1 Introdução 1 2 Meios, comunicação e monopólios de conhecimento em Innis 3 3 Meios-que-ligam-o-espaço e meios- que-ligam-o-tempo 8 4 Comunicação e Império 12 5 De Innis a McLuhan: da Globalização à Hipersensorialidade e ao Trans- Hu- manismo 18 6 Bibliografia 22 * O presente texto é uma versão reduzida de um es- tudo mais longo que põe em relação o pensamento de Harold Adams Innis e Marshall McLuhan. Agradeço ao José Bragança de Miranda ter-me sugerido a pista da escola de Toronto e pelos seus inúmeros consel- hos eruditos e amigos. Esta reflexão é muito deve- dora das propostas teóricas, ideias e discussões que tenho vindo a manter com José Luis Garcia e Her- mínio Martins, para quem todos os agradecimentos me surgem como insuficientes. Contei, ainda, com a ajuda dos comentários de Joan Martinez-Alier que tiveram a virtude de me confirmar a intuição que fui tendo da importância de Harold Innis para o pensa- mento, a teoria da comunicação e a problemática da globalização. in Hermínio Martins e José Luís Garcia (org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003 (no prelo). 1 Introdução Na Europa e até no Continente Americano, as ciências da comunicação têm persistido em negligenciar um conjunto notável de pen- sadores canadianos que manifestaram um grande interesse pela comunicação. A in- vestigação das relações entre comunicação, tecnologia e civilização, apresentada por au- tores como Graham Spry, George Grant, Northrop Frye, mas sobretudo por Harold In- nis e Marshall McLuhan, entre outros, é um dos aspectos originais que talvez autorizem a referência a uma “escola canadiana” da co- municação. O relevo adquirido pelo último autor no mundo da cultura, da arte e dos media só episodicamente despertou curiosi- dade no universo académico sobre as ori- gens e fontes da sua reflexão. Mas a cor- rente canadiana da comunicação não se re- sume, de forma alguma, a quem escreveu The Galaxy of Gutenberg (1997 [1962]). Pelo contrário, McLuhan prossegue várias das preocupações temáticas e das intuições desta tradição, embora as tenha desenvolvido de modo vincadamente próprio. Um modo tão característico e com tanto impacto que, porventura, terá contribuído, se bem que in-

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Uma Teoria da GlobalizaçãoAvant la Lettre.Tecnologias da Comunicação, Espaço e Tempo em

Harold Innis∗

Filipa SubtilEscola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa

Índice

1 Introdução 1

2 Meios, comunicação e monopólios deconhecimento em Innis 3

3 Meios-que-ligam-o-espaço e meios-que-ligam-o-tempo 8

4 Comunicação e Império 12

5 De Innis a McLuhan: da Globalizaçãoà Hipersensorialidade e ao Trans- Hu-manismo 18

6 Bibliografia 22

∗O presente texto é uma versão reduzida de um es-tudo mais longo que põe em relação o pensamento deHarold Adams Innis e Marshall McLuhan. Agradeçoao José Bragança de Miranda ter-me sugerido a pistada escola de Toronto e pelos seus inúmeros consel-hos eruditos e amigos. Esta reflexão é muito deve-dora das propostas teóricas, ideias e discussões quetenho vindo a manter com José Luis Garcia e Her-mínio Martins, para quem todos os agradecimentosme surgem como insuficientes. Contei, ainda, coma ajuda dos comentários de Joan Martinez-Alier quetiveram a virtude de me confirmar a intuição que fuitendo da importância de Harold Innis para o pensa-mento, a teoria da comunicação e a problemática daglobalização.in Hermínio Martins e José Luís Garcia(org.), Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa:Imprensa de Ciências Sociais, 2003 (no prelo).

1 Introdução

Na Europa e até no Continente Americano,as ciências da comunicação têm persistidoem negligenciar um conjunto notável de pen-sadores canadianos que manifestaram umgrande interesse pela comunicação. A in-vestigação das relações entre comunicação,tecnologia e civilização, apresentada por au-tores como Graham Spry, George Grant,Northrop Frye, mas sobretudo por Harold In-nis e Marshall McLuhan, entre outros, é umdos aspectos originais que talvez autorizema referência a uma “escola canadiana” da co-municação. O relevo adquirido pelo últimoautor no mundo da cultura, da arte e dosmediasó episodicamente despertou curiosi-dade no universo académico sobre as ori-gens e fontes da sua reflexão. Mas a cor-rente canadiana da comunicação não se re-sume, de forma alguma, a quem escreveuThe Galaxy of Gutenberg(1997 [1962]).Pelo contrário, McLuhan prossegue váriasdas preocupações temáticas e das intuiçõesdesta tradição, embora as tenha desenvolvidode modo vincadamente próprio. Um modotão característico e com tanto impacto que,porventura, terá contribuído, se bem que in-

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voluntariamente, para que permanecesse napenumbra uma das suas maiores influências– Harold Adams Innis (1864-1952), talvezo mais original autor norte-americano dasua geração, intelectual íntegro, precursor daanálise crítica da comunicação, da sua re-lação com a tecnologia, o tempo e o espaço,assim como um teórico pioneiro dos proces-sos que hoje são designados pela noção deglobalização.

Ao enunciar, em 1964, o axioma “o meioé a mensagem”, que constitui o sustentáculoda sua teoria dos meios oumedia,McLuhanrecuperou uma das mais incisivas reflexõesde Innis, elaborada 41 anos antes, que tinhacolocado os modos de comunicação, na suavertente tecnológica, no centro do desen-volvimento das civilizações e da evoluçãohistórica. EmThe Galaxy of Gutenberg, oensaísta canadiano não esconde a sua dívida:“Harold Innis foi o primeiro a perceber queo processode mudança estava implícito nasformas da tecnologia dosmeios de comu-nicação. Este meu livro representa apenasnotas de pé de página à sua obra, visandoexplicá-la”1 (1997 [1962]: 50). Em 1972,McLuhan volta a reconhecer a importânciada obra de Innis no prefácio que propositada-mente escreve ao estudo que aquele tinhapublicado em 1950,Empire and Communi-cations: “Harold Innis, no espírito da novaera da informação, procurou modelos na pro-fundidade da história e da existência. Viutanto os novos como os velhosmedia nãocomo meros vértices (ou pontos) para osquais devia dirigir o seu ponto de vista, mascomo vórtices de poder que criam ambientes

1 “In short, Harold Innis was the first person to hitupon theprocessof change as implicit in theformsofmediatechnology. The present book is a footnote ofexplanation to his work.”

imperceptíveis que agem corrosiva e destru-tivamente nas mais antigas formas de cul-tura”2 (1972 [1950]: v).

Harold Innis, economista e historiador daUniversidade de Toronto, é um dos fun-dadores dessa tradição que marcou a geraçãoseguinte. Em 1920, doutorou-se em Econo-mia Política, na Universidade de Chicago,com uma tese sobre a história dos caminhos-de-ferro do Canadá, intituladaHistory ofthe Canadian Pacific Railway(1971 [1923]).Logo neste estudo, em algumas passagens,encontram-se enunciadas muitas das intu-ições e hipóteses teóricas originais que viriaa investigar e a desenvolver nos últimos anosda sua vida, no âmbito de uma análise ex-tensiva da comunicação humana. Nos anos40, depois de uma vida de estudo dedi-cada à indústria canadiana (fábricas de cur-tumes, pesca do bacalhau, produtos flo-restais e caminhos-de-ferro), numa aparentedeslocação do campo de estudo, na medidaem que o interesse pelas comunicações nãopode ser dissociado da preocupação com ahistória económica do Canadá, formula aideia que servirá de fundamento à sua teo-ria dos meios. Segundo esta, a mudança nomodo de comunicação é um elemento-chavedo processo histórico com implicações pro-fundas na organização social e cultural dascivilizações. O seguinte excerto de Innissintetiza bem o seu projecto: “Tenho ten-tado sugerir que a civilização ocidental temsido profundamente influenciada pela comu-

2 “Harold Innis, in the spirit of the new age of in-formation, sought for patterns in the very ground ofhistory and existence. He sawmedia,old and new,not as mere vertices at which to direct his point ofview, but as living vortices of power creating hiddenenvironments that act abrasively and destructively onolder forms of culture.”

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nicação e que essas mudanças marcantes dacomunicação têm tido implicações impor-tantes”3 (1999 [1951]: 3).

Muita da originalidade e da profundidadedo seu pensamento advém do facto de terprolongado a análise dos modos de comuni-cação muito para além do que omainstreamdos estudos da comunicação promovia naépoca, integrando poderosamente na sua re-flexão as implicações no espaço e tempo edemonstrando a indissociabilidade entre es-tas categorias e as tecnologias da comuni-cação. A orientação para o tempo desen-volvida por Innis merece uma consideraçãoà parte, devido ao facto de – a par de Nor-bert Elias – ser um dos poucos expoentes dasciências sociais que não seguiram a tendên-cia atemporal diagnosticada no mais con-hecido ensaio de Hermínio Martins, “Tempoe Teoria na Sociologia” (1996: 87-164).Por sua vez, em trabalhos mais recentes,são vários os autores que estão unidos pelaatenção temática à reestruturação tecnológ-ica promovida pela informatização e suasimplicações na transformação do espaço, dotempo e do futuro humano.

2 Meios, comunicação emonopólios de conhecimentoem Innis

A tese de que as alterações nos modose nas técnicas da comunicação dinamizamprocessos sociais de profundas repercussõeshistóricas, embora ainda não formulada con-ceptualmente de forma explícita, encontrava-

3 “I have attempted to suggest that Western civ-ilization has been profoundly influenced by commu-nication and that marked changes in communicationshave had important implications.”

se já presente no primeiro livro de Innisdedicado ao caminho-de-ferro no Canadá.Ela foi uma fonte inspiradora do conceitode meios de comunicação que irá proporposteriormente e acabará por se transfor-mar no aforismo central do pensamentomcluhaniano de que o conteúdo das men-sagens se encontra nosmedia. Na verdade,através do estudo histórico do caminho-de-ferro canadiano, Innis desenvolve uma argu-mentação fértil e peculiar sobre a relevânciados equipamentos tecnológicos para o estudodas civilizações.

A tecnologia foi também um tópico im-portante em Thorstein Veblen, uma das in-fluências mais manifestas de Innis para oqual o Estado e a economia deveriam serorganizados de acordo com princípios tec-nológicos, em Oswald Spengler, primeiroteorizador da técnica como mera manifes-tação da “vontade de poder”, e em PatrickGeddes, um sociólogo que se tornou ac-tivista das supostas virtudes descentralizado-ras da electricidade, entre outros do mesmoperíodo, que se destacaram por ver natecnologia algum tipo de especificidade epotência para os processos de transformaçãosocial e civilizacional.

Innis defende duas ideias principais so-bre a relação entre tecnologia e civiliza-ções. A primeira afirma que as tecnolo-gias, produto das civilizações, desvendamos modelos relacionais e de pensamentode um dado período e, por terem impactona organização social, permitem fornecer achave para compreender a evolução civiliza-cional. A segunda postula que as civiliza-ções se expandem e estabelecem contactosentre si através de meios artefactuais e outrosnão produzidos pelo homem, devendo todosser compreendidos como meios de comuni-

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cação. Nesta segunda linha de raciocínio, In-nis propõe as bases de uma concepção orig-inal desses meios que não se confina ao dis-curso, à escrita, ao telégrafo, ao telefone, àrádio ou à televisão. Desenvolve uma noçãomuito mais abrangente, que engloba querformas de transporte não construídas pelohomem, como rios, lagos, oceanos e cavalos,quer meios com origem na actividade hu-mana, como canais, estradas, caminhos-de-ferro, navios a vapor ou, ainda, a extracçãode recursos naturais. Na sua óptica, estestrês meios afectam, por um lado, a organi-zação social, porque são promotores de am-bientes ou ecossistemas que medeiam as re-lações humanas e implicam o pensamento e aacção dos indivíduos, por outro, o comérciode tais recursos, ao permitir o contacto entrepessoas e civilizações até então isoladas4.

O caminho-de-ferro como meio de comu-nicação é um dos melhores exemplos destaintuição original de Innis. Na sua perspec-tiva, o carácter e o vigor da civilização eu-ropeia ocidental devem-se, em grande me-dida, à sua possibilidade de expansão noContinente Americano proporcionada peladirecção do comboio para norte. Este trans-portou consigo a industrialização, através dofornecimento de energia como o carvão ouconstruindo materiais como o ferro para amanufactura. Simultaneamente, o equipa-mento técnico daCanadian Pacific Railwaycontribuiu para a propagação da civilizaçãoeuropeia na América do Norte. Tê-lo-á feito,pelo menos, de duas formas. Desde logo,foi um mediumque transportou por todo oContinente Norte-Americano pessoas e mer-

4 No destaque do pensamento de Innis para umateorização dos meios, sigo em alguns passos a recenteinterpretação de Babe (2000: 72-76).

cadorias oriundas da Europa, dando origem amensageiros, como os emigrantes europeuscom as suas culturas, línguas, prioridades emensagens (tais como artefactos produzidosna Europa), para trocar entre os nativos e osemigrantes colonos. Depois, e mais decisivo,a companhia de caminhos-de-ferro canadi-ana foi a própria mensagem, na medida emque o potencial do seu equipamento se apre-sentou como uma manifestação técnica de talmodo poderosa de consumo massivo de en-ergia, movimento rápido e capital intensivo,que irrompeu abruptamente no seio das cul-turas indígenas e provocou a disrupção e adestruição das suas formas de vida.

O extraordinário potencial heurístico destaconceptualização de Innis permite entenderas viagens dos descobridores Portuguesese Espanhóis nos finais do século XV, noquadro de uma conjugação de forças queliga inovações tecnológicas, formas de en-ergia, extensão do mercado e contracção es-pacial globalizante. As caravelas de Vascoda Gama e Colombo movidas pela ener-gia eólica, neste tipo de visão, podem sercompreendidas como um meio de comu-nicação que introduziu a “mensagem” dacivilização ocidental dos inícios da mod-ernidade e inaugurou a colonização do Hem-isfério sul e oriental do planeta (cf. Cipolla,1976: 240-247). Na mesma linha deraciocínio, Wolfgang Schivelbush ilustra, deforma admirável, como o comboio e poste-riormente o processo de electrificação, mo-mentos cruciais da história da tecnologia,tiveram uma influência extraordinária nasnossas percepções de distância, tempo, au-tonomia, velocidade, risco, dia e noite. Oensaísta alemão mostra igualmente comoaquele meio de transporte e aquela fonte deenergia contribuíram para forjar a consciên-

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cia moderna e industrializada (1986 [1977];1995 [1983]).

O significado do comboio como meiode comunicação surgirá completamenteteorizado mais tarde emEmpire and Com-munications(1972 [1950]). Nesta obra, In-nis apresenta a teoria inovadora de que a na-tureza da tecnologia predominante dos meiosde comunicação numa dada sociedade influ-encia o modo de pensar e agir dos seus mem-bros, dando origem ao que o autor denomina“monopólios de conhecimento” tecnologica-mente determinados. Admitindo a existên-cia de diferentes tecnologias com distintosefeitos e estatuto ontológico, Innis consid-era que os meios tecnológicos da comuni-cação devem ser incluídos nos factores de-terminantes do processo de mudança social.Duas ordens de razões, uma lógica e outrahistórica, estão inscritas no modelo inter-pretativo e crítico innisiano. O argumentológico radica no princípio de que o homemestabelece uma relação simbiótica singularcom a tecnologia. A razão histórica assentano eixo estabelecido entre os avanços his-toricamente fundamentais da tecnologia e asua aplicação primordial aos processos decomunicação – neste entendimento, a eramecânica surge com a imprensa, e a elec-trónica com o telégrafo.

O elemento central que permite com-preender como as diversas etapas do desen-volvimento civilizacional estão implicadasna influência de um determinado meio decomunicação encontra-se no significado queosmediaadquirem como modos de difundiro raio de acção cognitiva do homem, tantono sentido espacial como temporal. Naspalavras de Innis: “Um meio de comu-nicação tem uma influência importante nadisseminação do conhecimento através do

tempo e do espaço e torna-se necessário es-tudar as suas características com o objec-tivo de avaliar a sua influência na consoli-dação cultural. De acordo com as suas pro-priedades, pode ajustar-se melhor à dissem-inação através do tempo do que através doespaço, particularmente se omediumé pe-sado e durável e difícil de transportar. Aênfase relativa no tempo ou no espaço sug-ere uma influência de significação na cul-tura na qual está incrustado. (...) O nossoconhecimento de outras civilizações dependeem larga medida do carácter dosmediauti-lizados por cada civilização ao ponto de sercapaz de ser preservada ou estar acessívelà descoberta, como no caso dos resulta-dos das expedições arqueológicas”5 (1999[1951]: 33). A emergência e a queda dascivilizações, assim como as transformaçõesculturais no interior de uma dada civilização,devem ser entendidas na sua relação primor-dial com os meios de comunicação prevale-centes.

Innis, no entanto, não apresenta uma visãode mudança histórica exclusivamente depen-

5 “A medium of communication has an impor-tant influence on the dissemination of knowledge overspace and over time and it becomes necessary to studyits characteristics in order to appraise its influencein its cultural setting. According to its characteris-tics it may be better suited to the dissemination ofknowledge over time than over space, particularly ifthe medium is heavy and durable and not suited totransportation, or to the dissemination of knowledgeover space than over time, particularly if the mediumis light and easily transported. The relative emphasison time or space will imply a bias of significance tothe culture in which it is imbedded. (. . . ) Our knowl-edge of other civilizations depends in large part on thecharacter of the media used by each civilization in sofar as it is capable of being preserved or of being madeaccessible by discovery as in the case of the results ofarchaeological expeditions.”

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dente de um único factor, já que assinalapor diversas vezes o papel dos elementoseconómicos, políticos, jurídicos, religiosose ecológicos, para além das próprias alter-ações técnicas. O que é salientado na suavisão é a variável que terá sido negligenci-ada por outros teóricos: o papel dos meios decomunicação no controlo das áreas espaciaise nos intervalos de tempo. Os meios de co-municação devem ser analisados de acordocom o seu desempenho ao nível da terri-torialidade e da temporalidade. Neste sen-tido, os desafios que os diferentes ambientescolocam aos seres humanos obtêm destesuma resposta superadora da dependência danatureza que requer, segundo Innis, o cul-tivo do espaço e do tempo, numa acepçãoque tem afinidades com o conceito de “col-onização externa” já proposto pelo primeirogrande filósofo da técnica, Ernst Kapp6. Nateoria innisiana, o nexo entre comunicação,espaço e tempo destaca-se como base teóricacrucial e inextrincável.

A teoria dos meios desenvolvida por In-nis postula que o factor central que distingueas sociedades é serem limitadas pelo tempoou pelo espaço, e tal facto encontra-se in-timamente ligado ao meio de comunicaçãopredominante e à sua influência na estru-tura cognitiva da mente humana. A contra-posição entre os meios oraisversusmeiosescritos proporciona um modelo para todos

6 Para Kapp (1808-1896), hegeliano de esquerda,tal como Marx, a história não é o desenvolvimentonecessário da Ideia Absoluta, mas o registo das in-tenções humanas para enfrentar os desafios dos váriosambientes – para superar a dependência da natureza.É autor do primeiro tratado sobre filosofia da tecnolo-gia, publicado em 1877 -Grundlinien einer Philoso-phie der Technik(cf. Mitcham, 1994: 21-23; Martins,1996: 167-175).

os mediaposteriores e uma base tipológicadas sociedades. O avanço e o declínio dascivilizações, em particular no caso dos im-périos, são analisados como função da com-petição entre diferentes formas de monopo-lização do conhecimento que tem como basedesvios espaciais e temporais. Como bemsalienta Czitrom, os monopólios de conhec-imento expandem-se e declinam, em parte,em relação aomediuma partir do qual foramerguidos. Implicam a nossa limitação a umdeterminado meio tecnológico de comuni-cação e a certas formas de conhecimento, as-sim como o domínio restrito por parte de umpequeno sector. Do ponto de vista cultural,o tempo está associado à história, à tradição,ao elemento religioso e a entidades hierar-quizadas. O espaço enfatiza o crescimentodo império, a expansão, a ligação ao pre-sente e a regulação política secular. A fé,a cerimónia e a ordem moral caracterizam acultura temporal. A secularização, a cientifi-cidade, o materialismo e a ausência de lim-ites definem a cultura espacial. Como é evi-dente, toda esta série de valores está presenteem cada uma destas culturas, embora uns deforma dominante e outros de forma subordi-nada. Innis concebe o desenvolvimento e aqueda das civilizações, em particular os im-périos, no quadro de uma tensão competitivaentre monopólios de conhecimento baseadosem desvios temporais ou espaciais (1982:156).

Nesta visão, as sociedades pré-letradase orais terão sido limitadas pelo tempoe baseadas em princípios de continuidade,adaptadas aos limites impostos pela capaci-dade mnemónica humana, único repositórioda informação e do conhecimento dessesgrupos. Sendo necessário muito tempo e es-forço de recitação e memorização para con-

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servar o conhecimento que tende a ser fun-damentalmente prático e direccionado paraas questões quotidianas (estações do ano,sementeiras, colheitas, catástrofes naturais,etc.), a religião e a magia, fica invalidada oupelo menos reduzida a capacidade culturalde produzir um novo conhecimento de carizmais abstracto. O individualismo é quaseinexistente, na medida em que é dado umgrande valor à comunidade e à repartiçãodo conhecimento. O discurso é partilhado,logo tendencialmente consensual. O tempoé, assim, algo que corre. A vida humana éum enorme fluxo onde o presente é apenasum momento. Os acontecimentos são umasucessão de recorrências, um ciclo da vida,mesmo que cada instante possua um valorou significado específico. O espaço é conce-bido como forma única e limitada destinadaa proteger a comunidade e a cultura. Para es-tas culturas, o espaço é o local onde a comu-nidade vive, conserva as suas relações com opassado e o seu futuro revelado.

As sociedades limitadas pelo espaço são,por definição, já penetradas pelo sistemade preços e onde as instituições militaresdesempenham um papel fundamental namanutenção da ordem. São seculares nasrelações entre si, materialistas nas inter-pretações e impessoais nas relações soci-ais. Concedem grande relevância ao con-hecimento abstracto e exercem um grandecontrolo sobre o espaço, embora ao lugarse atribua relativamente pouco valor, mesmoque estejam em causa a tradição e a con-tinuidade com o passado. O modo de pen-sar, comparativamente com as sociedadesorais, é mais linear, racional e fragmentado,menos íntimo ou pessoal e pouco conformecom a tradição. Na visão de Innis, nes-tas culturas verifica-se uma tendência para

‘espacializar’ o tempo, isto é, dividi-lo empedaços discretos, uniformes e mensuráveisa que posteriormente pode ser atribuído umvalor monetário7. Os conceitos de tempo eespaço tornam-se meras mercadorias onde oprincipal objectivo é conquistar novos ter-ritórios, criar e aumentar os mercados e or-ganizar a terra sob configurações mais efi-cientes, através de fábricas, linhas de mon-tagem, divisões territoriais do trabalho, etc.

Esta tipologia de sociedades orais e le-tradas foi posteriormente retomada e desen-volvida, embora de forma ampla e peculiar,por McLuhan, emThe Galaxy of Gutenberg,onde se descreve a passagem do mundo acús-tico “pré-gutenberguiano” para o novo am-biente tecnológico decorrente da invençãoda imprensa e dos princípios estruturantesde uniformidade e repetibilidade e que lhesão geralmente associados. O novo am-biente terá alterado profundamente as con-cepções de tempo e espaço, que deixamde estar associadas à experiência quotidi-ana pessoal e passam a ser concebidas comounidades uniformes e abstractas. Estas cate-gorias, que antes se caracterizavam pelo seucarácter mítico e simultâneo, são, na “eragutenberguiana”, sequências lineares, con-tínuas e uniformes onde as coisas se moveme acontecem em planos distintos e em or-dens cronológicas sucessivas. O tempo e oespaço passam a ser pensados como “recep-táculos a serempreenchidoscom objectos ouactividades”8 (1997 [1962]: 107), e a ex-periência imediata a estar condicionada pe-

7 Innis, inspirado em Lewis Mumford, reconheceque o relógio mecânico foi essencial para alcançaresse tipo de visão. Através dos relógios, os trabal-hadores são chamados para a fábrica e são recompen-sados pelo ‘tempo’ que lá passam.

8 “containers to befilled with objects or activities.”

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los horários, as tarefas para cumprir, os pe-sos e as medidas e os cálculos9. O próprioprocesso histórico só tem sentido num tempohomogéneo, numa sequência ininterrupta deacontecimentos onde cada elemento ocupaum lugar específico. A percepção destas di-mensões como meras quantidades contínuase mensuráveis terá tido como efeito imedi-ato, segundo McLuhan, a dessacralização domundo da Natureza e do poder.

3 Meios-que-ligam-o-espaço emeios-que-ligam-o-tempo

Muito mais do que a caracterização tipológ-ica de cada civilização, o interesse singu-lar da teoria innisiana dos meios radica natese de que o modo tecnológico de comuni-cação predominante exerce um condiciona-mento central na limitação espacio-temporaldas sociedades. Categorizados como orais,escritos, impressos ou electrónicos, osme-dia podem também ser descritos num con-

9 No caso específico das formas espaciais,McLuhan contrapõe a concepção de espaço, que car-acteriza a era Gutenberg, à que era vigente na erapré-Gutenberg, onde aquela não era ainda consid-erada um receptáculo visual graças à relação próx-ima entre a visão e o audiotáctil. Exemplifica comSiegfried Giedion que, emMechanization Takes Com-mand,afirma: “And yet there was a medieval com-fort. But it must be sought in another dimension, forit cannot be measured on the material scale. The sat-isfaction and delight that were medieval comfort havetheir source in the configuration of space. Comfortis the atmosphere with which man surrounds himselfand in which he lives. Like the medieval Kingdom ofGod, it is something that eludes the grasp of hands.Medieval comfort is the comfort of space. / A me-dieval room seems finished even when it contains nofurniture. It is never bare. Whether a cathedral, refec-tory, or a burgher chamber, it lives in its proportions,its materials, its form” (1997 [1962]: 107).

tínuo de espaço e tempo. Na medida emque a oralidade destaca o sentido de con-tinuidade e comunidade, a comunicação oral“liga” o tempo. Esta implica a construçãolocal da organização social, ao promover acooperação e desvalorizando a competição,direccionando a actividade para os interessesda comunidade. Nesta linha de raciocínio,as primeiras formas de escrita permanece-ram ainda como modos de comunicação deligação do tempo, tendo-se mesmo reveladofundamentais para a memória. Mas a suacrescente capacidade de alargar o universodo espaço e do tempo, para além do que épossível recordar e dos lugares conhecidos,implicou a substituição da memória colec-tiva, fazendo com que a palavra escrita sesubvertesse enquanto autoridade de ligaçãode tempo.

As sucessivas inovações no domínio daescrita aumentaram as suas propriedades deligação do espaço. Osmediaque ligam oespaço são relativamente flexíveis de trabal-har, mais fáceis de transportar e abundantesna capacidade de armazenar informação.Porém, são menos duráveis do que osmediaque ligam o tempo. Innis exemplifica atravésda comparação entre as propriedades do pa-piro ou do papel com a gravura na pedra. De-vido às propriedades próprias dos meios queligam o tempo, como a indestrutibilidade e adurabilidade, as mensagens codificadas sãoquase sempre de grande importância para acultura em causa. Daí engendrarem um sen-tido de continuidade. A maior flexibilidadee capacidade de armazenamento fazem comque os que ligam o espaço não necessitemde carregar as mensagens que são duráveis.São comummente utilizados para transportarmensagens correntes, administrativas e demercado, como que opondo-se aos assuntos

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da moral, da metafísica, da religião ou co-munitários. As suas mensagens dirigem-se apopulações dispersas geograficamente, parafins de administração ou para tirar vantagensdas economias de escala.

Osmediaque ligam o espaço tendem, porconsequência, a corroer as culturas locais ea alimentar a homogeneização cultural. Aofavorecerem a comunicação a longa distân-cia e o controlo centralizado, contribuem,segundo Innis, para a privatização da co-municação e para o declínio da democraciacomo regime participativo. A este propósito,veja-se o que escreve Innis: “Tenho ten-tado mostrar noutras publicações que, na civ-ilização ocidental, a estabilidade de uma so-ciedade depende de um equilíbrio efectivoentre os conceitos de tempo e espaço. Esta-mos relacionados com o controlo não só emtermos de vastas áreas de espaço, como tam-bém de vastos períodos de tempo. Devemosavaliar as civilizações levando em consider-ação a sua relação com o território e a du-ração. O carácter de um meio de comuni-cação tende a criar desvios nas civilizaçõesfavoráveis a uma sobreenfatização na cate-goria de tempo ou na de espaço, e só em in-tervalos muito raros os desvios são neutral-izados pela influência de um outromedium,alcançando-se assim a estabilidade”10 (1999[1951]: 64).

10 “I have attempted to show elsewhere that inWestern civilization a stable society is dependent onan appreciation of a proper balance between the con-cepts of space and time. We are concerned with con-trol not only over vast areas of space but also overvast stretches of time. We must appraise civilizationin relation to its territory and in relation to its dura-tion. The character of the medium of communica-tion tends to create a bias in civilization favourable toan overemphasis on the time concept or on the spaceconcept and only at rare intervals are the biases off-

Escassos terão sido os períodos históricosque lograram atingir um equilíbrio entre osmediaenviesados pelo tempo e pelo espaço.A Grécia clássica, a Itália renascentista e aInglaterra de Isabel I surgem como exemp-los dessas épocas excepcionais. Devido à suaincapacidade de enfrentar os problemas datemporalização, a civilização ocidental correo perigo do aniquilamento. ”A flexibilidadeda tradição oral permitiu aos gregos alcançarum equilíbrio entre a procura de categoriasde tempo e espaço nas cidades-estado. (...)Os resultados de uma sociedade equilibradaforam evidentes na derrota dos persas e noflorescimento da cultura grega do século V.Esse balanço, porém, não se manteve pormuito tempo”11 (ibid.: 68).

Quem primeiro chamou a atenção paraa extraordinária importância e originalidadedo pensamento de Innis, no que diz respeitoao processo de invasão e colonização do es-paço e do tempo por parte dosmedia, foiJames W. Carey que, além de figura proem-inente dos estudos norte-americanos da co-municação, é também um dos mais atentoscomentadores de McLuhan. Fê-lo atravésde artigos publicados a partir de 1968 e aolongo das quatro décadas seguintes, muitoantes, portanto, da recente revalorização quetanto Innis como McLuhan têm merecidopor parte de estudiosos como Elihu Katz eSerge Proulx. Em “Culture, Geography and

set by the influence of another medium and stabilityachieved.”

11 “The flexibility of an oral tradition enabled theGreeks to work out a balance between the demandsof concepts of space and time in a city state. (. . . )The results of a balanced society were evident in thedefeat of the Persians and the flowering of Greek cul-ture in the fifth century. But such balance was notlong maintained.”

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Communications: The Work of Harold In-nis in an American Context” (1981: 73-91),Carey debruça-se sobre o efeito que o cresci-mento da comunicação, no século XIX, tevena diminuição do espaço como critério difer-enciador da actividade humana, a partir doargumento innisiano do sistema de preços,como estrutura que dá conta do consenso ac-erca do valor relativo dos bens e serviços.O desenvolvimento significativo das formasde comunicação terá sido crucial para o es-tabelecimento e expansão de um sistema depreços uniforme através do espaço. Paraefeitos de comércio, todos os produtos pas-savam a estar no mesmo lugar, o que signifi-cou a descontextualização dos mercados atéum limite tal que os preços praticados local-mente deixaram de ter relação com factoresde natureza local de oferta e procura, pas-sando a corresponder a tendências nacionaise internacionais. Neste sentido, a expansãodo sistema de preços foi parte de uma tenta-tiva para colonizar o espaço. O correlativoà penetração do sistema de preços foi o queo compositor Stravinsky chamou “mente es-tatística”: a transformação completa do uni-verso mental em quantidade e o concomi-tante problema da sua distribuição, de talmodo que a relação entre coisas e pessoas setornou só num problema de números. A es-tatística permite estender e tornar o mercadode todos os produtos mais uniforme e inter-dependente.

Naquele que é considerado o seu primeirotrabalho sobre a importância estratégica dacomunicação e do jornalismo, “The Newspa-per in Economic Development”, publicadonoJournal of Economic History, em Dezem-bro de 1942, Innis avalia o papel decisivoque a imprensa escrita teve para o aumentoda velocidade na comunicação e no trans-

porte no século XIX12. A velocidade teve ex-pressão na acumulação, produção e difusãoda informação, constituindo o aspecto ful-cral da expansão do jornal. O telégrafo,através do incremento do fornecimento denotícias e da racionalização da sua compi-lação, reunia todas as condições para trans-formar a imprensa nummediumde public-itação muito mais eficiente. Por sua vez, aimpressão maquínica promoveu duas trans-formações de vulto: ampliou a capacidadeespacial dos jornais e, em associação com atentativa de atrair mais anunciantes, forçou aintrodução nas máquinas impressoras de umnovo material, a pasta de madeira para o fab-rico de papel. Esta conversão forçada tevecomo principal consequência a corrida de-senfreada por parte da indústria de papel e daimprensa americana à pasta de papel canadi-ana, bem como às respectivas fábricas, con-duzindo à queda dos custos de produção (cf.Czitrom, 1982: 147-182,maxime153).

A imprensa escrita passou a explorar umcerto tipo de notícias e a estar dependenteda publicidade, facto que contribuiu signi-ficativamente para a difusão do sistema depreços. Enquanto modelo de técnicas da pro-dução de massa, distribuição emarketing, ojornal provou ser um precursor dos depar-tamentos de vendas e da economia de con-sumo moderna. Num intervalo de tempo demeio século, entre 1875 e 1925, constata-se o aumento significativo do espaço dedi-

12 Um excelente esclarecimento da visão globalde Innis a este respeito encontra-se noutro atento es-tudioso da sua obra, David Czitrom, autor já refer-enciado anteriormente, que publicouMedia and theAmerican Mind. From Morse to McLuhan, em 1982,apenas um ano após o ensaio de James Carey “Cul-ture, Geography and Communications; The Work ofHarold Innis in an American Context” (1981).

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cado à publicidade e a concomitante reduçãodas notícias e da opinião. A publicidade naimprensa revela-se cada vez mais uma exce-lente forma de angariação de clientela paraas grandes empresas, o que fará dos jornaisum forte aliado do mundo dos negócios. Asorganizações em larga escala aliciaram osseus clientes através da publicidade na im-prensa e a posição oligopolista desempen-hada pelo jornal foi uma grande aliada dasempresas comerciais.

Quando a colonização do espaço se efec-tivou nos mais diversos domínios do comér-cio e controlo, a atenção deslocou-se parao preenchimento do tempo, agora definidocomo um aspecto de espaço, uma continu-ação deste noutra dimensão. O tempo pas-sou a ser a nova fronteira a conquistar. Umavez mais, o exemplo do comércio facilitaa compreensão do fenómeno. Quando ospreços das mercadorias se tornaram equiva-lentes no espaço, em grande medida devidoao telégrafo, a especulação mudou-se da di-mensão espacial para a temporal. Isto é, oesgotamento do espaço como arena de arbi-tragem deu origem a “mercados de futuro”:a mudança da actividade do mercado de cer-tos espaços para o tempo incerto. Mas estaterá sido provavelmente apenas a primeiratentativa prática para fazer do tempo umanova fronteira, uma nova área definida de in-certeza, e penetrá-la através do sistema depreços.

A segunda dimensão de tempo a ser pene-trada, a partir do momento em que o espaçoficou esgotado, foi o tempo sagrado, em par-ticular osabbath(utilizado em sentido secu-lar). O sabbath, inventado pelos antigos he-breus, tinha como principal objectivo criaruma esfera livre do controlo do Estado edo comércio onde outras dimensões da vida

pudessem ser experienciadas e onde outrasformas de relação social pudessem ter lu-gar. Assim se constituiu uma das maiores re-sistências ao poder de Estado e de mercado.No entanto, e mais uma vez para “melhorar”e “aumentar” a comunicação, a penetraçãoefectiva dosabbathveio a ocorrer, em 1880,com a invenção do jornal de domingo. FoiHearst, com o seuNew York Sunday World,que popularizou a ideia da leitura de um jor-nal de domingo e criou, de facto, um mer-cado onde até então ainda nada tinha existido– um mercado desabbath.

Finalmente, quando a fronteira do espaçoficou oficialmente encerrada em 1893, a“nova fronteira” tornou-se a noite, e a par-tir desse momento passou a assistir-se a umaumento constante da actividade comercialneste período. Carey apoia-se num artigo deMurray Melbin, “Night as Frontier”, publi-cado naAmerican Sociological Review, em1978, onde este procura caracterizar a “noitecomo uma fronteira”. Em termos de comu-nicação, a expansão regular da rádio e datelevisão comerciais durante a noite são doisbons exemplos. Melbin mostrara que, entre1918 e 1954, não existiam, em Boston, es-tações de rádio que emitissem durante 24 ho-ras. No início dos anos 80 do século XX,metade das estações e canais operavam aolongo de todo o período nocturno. Tam-bém as emissões de televisão passaram a terinício cada vez mais cedo e a expandir-selentamente pela noite até ocuparem as 24 ho-ras do dia, situação que caracteriza hodier-namente o mercado dosmedia. A noçãoda noite como fronteira, uma nova fronteirade tempo que se abre quando a do espaçoestá completa, é mais do que uma simplesmetáfora. Melbin ilustrará também, comdetalhe, algumas das características comuns

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às fronteiras temporais e espaciais. Ambasavançam em estádios, a população está dis-persamente fixada e homogénea, há mais iso-lamento, uma ausência de constrangimen-tos sociais e menos perseguição, as decisõessão isoladas, o governo está descentralizado,a ausência de lei e violência, tal como aamizade e a entreajuda/utilidade, aumentame novos estilos comportamentais emergem.Ou seja, a mesma dialéctica entre centraliza-ção e descentralização ocorre tanto na fron-teira temporal como na espacial. Por umlado, a comunicação é ainda mais privatizadaà noite, por outro, as pessoas estão menoscontroladas pela comunicação por causa daausência de autoridade.

4 Comunicação e Império

Afirmámos, anteriormente, que a coloniza-ção do espaço e o controlo centralizado im-plicam para Innis o declínio das formas par-ticipativas de democracia. O seu interessepela natureza da tradição oral e pela vida daGrécia antiga encontra-se relacionado com orelevo da oralidade e da esfera pública paraa vida democrática13. Innis pugnou pelopluralismo cívico em termos de discursocontraposto à constituição de “monopóliosde conhecimento”. Sublinhou, inclusiva-mente, o importante papel dos novosme-dia na II Guerra Mundial: “Os efeitos ev-identes dos novosmedia na eclosão da IIGuerra Mundial foram intensificados du-rante o prosseguimento da guerra. Foram us-ados pelas forças armadas na imediata per-secução da guerra e na propaganda dentro

13 Trata-se de um tópico que também mereceu aatenção de Hannah Arendt, emA Condição Humana(2001 [1958]).

de portas e contra o inimigo. Na Alemanha,as fotografias das batalhas eram tiradas emostradas nos teatros quase imediatamentea seguir. Aos alemães foi dada uma im-pressão de realismo que os levou a acreditarna superioridade das suas armas; o realismotornou-se não só mais convincente mas tam-bém, com o colapso da frente alemã, maisdesastroso. No mesmo sentido, o problemados alemães é o problema da civilização oci-dental. Tal como os modernos desenvolvi-mentos na comunicação fizeram muito pelorealismo, também têm feito muito para au-mentar as possibilidades de ilusão”14 (1999[1951]: 81-82).

Neste domínio, a influência do “or-ganicismo” e do projecto reformistademocrático, associado à escola de Chicagoe a John Dewey, revela-se de grande im-portância no seu pensamento. No quadrodesta tradição, o desenvolvimento de laçosde proximidade exerce um condicionamentoformativo da experiência democrática.Dewey e a escola de Chicago depositaramgrande esperança no papel dos novos meiosde comunicação para transformar aGreat

14 “The effects of new media of communication ev-ident in the outbreak of the Second World War wereintensified during the progress of the war. They wereused by the armed forces in the immediate prosecu-tion of the war and in propaganda both at home andagainst the enemy. In Germany moving pictures ofbattles were taken and shown in theatres almost im-mediately afterwards. The German people were givenan impression of realism which compelled them tobelieve in the superiority of German arms; realismbecame not only most convincing but also with thecollapse of the German front most disastrous. In thesome sense the problem of the German people is theproblem of Western civilization. As modern develop-ments in communication have made for greater real-ism they have made for greater possibilities of delu-sion.”

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Society, criada pelos meios de transporte epela comunicação, numaGreat Community(expressões utilizadas por Dewey). Deweyacreditava que os jornais e as revistaspoderiam potenciar o discurso e a discussão,trazendo à vida local maior intensidade.

Num outro texto publicado mais recente-mente numa colectânea de homenagem a In-nis, “Innis ‘in’ Chicago: Hope as the Sireof Discovery” (1999), Carey apresenta umquadro das circunstâncias que permite com-preender a génese do pensamento de Innis, asua relação com o mundo académico norte-americano e ênfase nos problemas do espaçoe do tempo. Na segunda metade do séculoXIX, dois importantes acontecimentos denatureza distinta marcam decisivamente aconsciência dos habitantes de Chicago deque, mais do que numa cidade, viviam numarede. A notícia da deflagração do grande in-cêndio de 1871, que devastou a cidade, irra-diou de forma imperceptível pelas linhas dotelégrafo e pelo caminho-de-ferro para toda acomunidade nacional e internacional, que re-spondeu com expressões de solidariedade esimpatia. O mesmo ocorreu com a depressãoeconómica de 1893, em que a populaçãose deu conta de que Chicago se tinha inte-grado silenciosamente num sistema nacionale internacional de mercado cujo crescimentoe queda estavam dependentes da distânciae de forças invisíveis e desconhecidas. Otempo e o espaço, sem que ninguém tivessedado conta, tinham-se eclipsado, tal comoera vaticinado pelos românticos, provocandoconsequências imprevisíveis.

Os novos factos descritos foram dificil-mente compreendidos quer pelos meios in-telectuais, quer pela população. Mas o seuimpacto foi de tal forma grande e com con-sequências para o próprio sistema político

que a comunicação e o papel dosmediaacabaram por se tornar um tema de reflexãoimportante para os teóricos de Chicago edo “interaccionismo simbólico”. Para estes,a comunicação jogou um verdadeiro papelfundacional de criação de um sentido decomunidade e sua preservação. Num paísnovo, carecido de uma memória cultural co-mum, coube à comunicação o papel de pro-mover a criação social e a integração, pro-cessos que em qualquer outra nação decor-riam da tradição. Na ausência de um senti-mento cultural partilhado, a unidade destascomunidades foi sendo alcançada paulatina-mente através da discussão, do debate e danegociação. Nos Estados Unidos da América(EUA), a comunicação substitui a tradição.O estabelecimento de uma ordem social foialcançado através da reunião das pessoas queassim iam construindo uma cultura partil-hada comum, processo que simultaneamentese tentava incorporar na elaboração das aindaincipientes instituições sociais fundamentaispara o republicanismo cívico. O caráctersimbólico das coisas, das relações sociais edas instituições, mais do que resultado damemória cognitiva e cultural (do passado),estava a cada momento a ser activamente cri-ado. É neste sentido que o conceito de co-municação de Dewey se refere à actividadede criação e imaginação e não meramente àtransmissão e ao controlo do conhecimento eda cultura. Para este autor, o crucial da ex-periência norte-americana foi a capacidadede pessoas desconhecidas entre si criarema partir do nada comunidades, instituiçõese formas sociais. Innis distanciou-se destaexpectativa através da concepção que tinhadas implicações dos monopólios de conhec-imento e enfatizou a necessidade de mantera tradição oral como contraponto aos meios

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de comunicação impressos. No seu pontode vista, o sistema de comunicação e trans-porte norte-americano tinha como único eprincipal imperativo que o processo comu-nicacional produzido nacionalmente, assimcomo o comércio que promovia, ocupasseou colonizasse todo o tempo e espaço social.Desta forma, ninguém escaparia do alcancedo ouvido ou do alcance da visão dosme-dia nacionais. O imperialismo das imagensdaqui decorrente teria a capacidade de espal-har a representação nacional para todos ostempos e espaços geográficos e culturais.

A função fundamental do tremendo in-vestimento realizado em infra-estruturasde transporte e comunicação nos EUA(caminhos-de-ferro, canais, diques, barra-gens, estradas e auto-estradas) foi conquis-tar grandes mercados aos mais baixos cus-tos operativos. Ao ser possível operar, pelaprimeira vez, independentemente do clima,estes meios tecnológicos acabaram por ho-mogeneizar as condições naturais (como atemperatura atmosférica, a exposição solar ea precipitação) que controlavam, até então, ocrescimento e a queda dos ciclos económi-cos. A regularidade do tempo mecânico sub-stituiu a incerteza do tempo sazonal, fundiua noite e o dia, o Inverno e o Verão, as tem-peraturas. O acesso ao transporte ferroviárioe ao sistema telegráfico foi a entrada numnovo ambiente separado do mundo exteriorcom uma concepção de tempo própria. Àmedida que estes meios se estenderam cadavez mais, a fronteira deslocou-se para ohin-terland, levando a que os indivíduos queprosperaram no interior se tornassem cadavez mais dependentes de instituições anón-imas e invisíveis a quem cabia a tarefa dedistribuir e vender os seus produtos. Asfronteiras, mas também as relações entre o

campo e a cidade, tornam-se cada vez maisténues, extinguindo-se as diferenças funda-mentais que as caracterizavam. Esta invis-ibilidade foi, segundo Innis, perpetrada porum intenso trabalho ideológico que difundiaa necessidade imperiosa de a paisagem nat-ural se transformar numa economia espacial(cf.ibid.: 95).

Devido a esta visão, Innis deu grande im-portância à reacção conflitual das regiõese localidades perante a influência uni-formizadora da política da comunicação tec-nológica e do poder penetrante do sistemade preços, baseados na colonização do es-paço, através da resistência à estandardiza-ção do tempo, do correio e do serviço de en-comendas postais. A disseminação do sis-tema de comunicação espacialmente influen-ciado foi o resultado de um complexo jogode resistência e aceitação que se reproduziuem cada cidade e condado. Segundo Innis,a força do sistema de preços, e não a exten-são da democracia, foi o factor de expansãonacional dos EUA.

Neste tópico, é importante sublinhar queInnis se afastou igualmente da atitude deDewey sobre a tecnologia, para quem estarepresentava essencialmente um valor a serintegrado com outros valores na cultura, porvia de um planeamento pluralista que dev-eria ter como objectivo a transformação so-cial em prol da justiça. A oposição en-tre tecnologia e valores, característica dacrítica cultural “antitecnológica” (a tecnolo-gia opõe-se à democracia, à ética, etc.), ea concepção instrumental e neutral da tec-nologia, tal como é vista pelos cientistas epela tecnocracia, foi contrariada por Dewey(cf. Mitcham, 1994). A este respeito, é im-portante também realçar que, quanto à re-lação entre modos de comunicação, tecnolo-

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gia e democracia, McLuhan, apesar de in-fluenciado pela pista de Innis sobre a im-portância dos meios e das tecnologias da co-municação para as culturas e civilizações,não prosseguiu a visão deste último de queos modernos modos de comunicação tec-nológicos, que ligam o espaço privatizando-o, tornam a comunicação muito mais prob-lemática. O autor deUnderstanding Me-dia. The Extensions of Man(1997 [1964]),pelo contrário, como veremos seguidamente,a defesa da tradição democrática e liberal é-lhe completamente alheia, fazendo-se sen-tir sobretudo a insistência num projecto es-catológico e transcendentalista que, aliás,se encontrava já no cientista religioso Teil-hard de Chardin e que hoje tem ressonân-cia directa no filósofo cristão Pierre Lévy (eigualmente no sacerdote e teórico dosmediaPierre Babin). Na revolução electrónica, e nasuposta multiplicação infinita das possibili-dades abertas por esta no domínio sensoriale espiritual, estes autores vislumbram sinaisde uma transformação radical do homem,ligando-o ao cosmos e rumo a uma consciên-cia universal.

Em “Culture, Geography and Commu-nications: The Work of Harold Innis inan American Context” (1981), Carey tinhasalientado que o processo de colonização doespaço pela comunicação, tal como Innis oconcebeu, é definidor de uma “política dealta comunicação” dos EUA. Desenvolvidaa todos os níveis da estrutura social, Innisfoi o primeiro a analisá-la como um fenó-meno encerrado numa estrita lógica de es-paço, enquanto expansão de mercado e depoder. Ao conceder-se um relevo exclusivoà associação entre difusão a longa distân-cia dos conteúdos e procura do preço maisreduzido, o que se desvalorizou foi toda a

orientação favorável à interacção humana ecultural. O conceito de Innis para este pro-cesso, em que a comunicação está comple-tamente fechada no invólucro do espaço edo poder, é o de exploração da influênciaespacial da comunicação moderna. As in-stituições modernas, a economia, a ciênciapolítica, o planeamento urbano, a sociolo-gia, as próprias ciências físicas e até a uni-versidade terão sido meticulosamente con-taminadas pela ideia de espaço. Os indiví-duos passaram a estar directamente ligadosàs grandes estruturas da organização social,deixando de ter necessidade de recorrer àsestruturas intermédias, locais e próximas (eque, como assinalou Tocqueville, constituiaa força da acção cívica dos EUA).

Exemplificativo da perspectiva de Innise da ousadia da sua atitude política é aanálise extremamente heterodoxa que fez àprimeira emenda da Constituição americana.Mais do que garantir a liberdade de ex-pressão e de imprensa, a primeira emendaoferece protecção constitucional à tecnolo-gia e, mais do que expandir, restringe aliberdade. A cláusula da livre imprensacontribuiu para a consolidação da imprensaescrita comercial enquanto “monopólio deconhecimento”, que desapossou do direitode as pessoas se informarem através do diál-ogo oral. Desta forma, a constituição sub-stituiu o direito mais abstracto da conver-sação em co-presença por outros direitos es-pecializados tecnicamente, profissionaliza-dos e mercantilizados. Na sua perspectiva, aprimeira emenda não assegurou a permanên-cia da vida pública, antes pelo contrário, ac-tuou contra ela ao colocar a responsabilidadeda educação nestas formas de escrita, de-struindo sistematicamente a actividade cul-tural. Os meios de comunicação modernos,

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reféns dos propósitos comerciais, criaramum sistema de comunicação essencialmenteprivado. A leitura em privado e a audiên-cia dos que lêem substituiu o público leitor,a discussão e a argumentação pública. Osistema de comunicação americano, atravésdo enviesamento influente que as tecnolo-gias lhe introduzem, passou a basear-se nosdesvios espaciais de descentralização e re-centralização privatizada. O estabelecimentoconstitucional da liberdade de imprensa foium enorme contributo para o reforço domonopólio de conhecimento dos jornais, domundo especializado da tecnologia da co-municação impressa, dos anunciantes e docomércio: “Ao garantir a liberdade de im-prensa, a constituição sacrificou (...) o di-reito das pessoas a falarem umas com asoutras e a informarem-se mutuamente. Aconstituição substitui estes direitos pelo dire-ito mais abstracto de ser falado e informadopor outros, especialmente por especialistas eclasses profissionais”15 (Carey, 1989: 163).As mudanças sociotecnológicas do mundoocidental, entre os finais do século XV e oséculo XIX, operaram-se através do desen-volvimento simultâneo do comércio, da in-dustrialização e da informação. O consumoda informação passou a ser semelhante aoconsumo de outras mercadorias, tal como setornaram semelhantes a industrialização dosbens materiais e culturais16.

15 “In granting freedom of press, the Constitutionsacrificed (...) the right of people to speak to one an-other and to inform themselves. For such rights theConstitution substituted the more abstract right to bespoken to and to be informed by others, especiallyspecialist, profissional classes.”

16 Na verdade, associada na primeira emenda à daimprensa, a liberdade de expressão limita-se à im-prensa escrita nos primeiros anos da républica ameri-cana. Também é correcto afirmar que a protecção con-

O próprio declínio da censura ter-se-á fi-cado a dever mais à privatização do sistemade comunicação do que àBill of Rights. Foidesta forma que o público se tornou um sim-ples artefacto estatístico, e o gosto públicouma medida de opinião privada. Tanto umcomo outro têm sido desenvolvidos e objec-tivados mas não concretizados ou realizadosno discurso, provocando o ocaso da esferapública. O público foi oprimido na sua di-mensão de acto de fala e discurso racional.Innis terá sido um dos poucos autores a com-preender o alcance e a dificuldade de man-ter esses hábitos, bem como de estar côn-scio de como a existência privada inibe odesenvolvimento desse tipo de discurso17.O tipo de esclarecimento precoce sobre atecnologia, enquanto indutora de mediaçõesque abrem novas direcções e reformulam osvalores e o mundo social, avançado por In-nis e corroborado por Carey no artigo cujaleitura agora encerramos, encontrou-o tam-bém José Luís Garcia no pensamento pio-neiro de Georg Simmel, um autor que teveuma influência decisiva no período forma-tivo da sociologia americana e da escolade Chicago: “essencial, (...), é ultrapas-sar a visão ingénua da tese da neutralidadedos instrumentos e perceber que parte dos

stitucional da liberdade de expressão tem seguido osprogresso técnicos, tendo sido alargada aos meios au-diovisuais e, desde Junho de 1997, através de uma de-cisão do Supremo Tribunal, à internet. A regulamen-tação do jornalismo é inexistente, não necessitando osjornalistas de carteira profissional e os proprietáriosde licença de exploração, ao contrário do que ocorreem muitos países europeus. Desde que possua capi-tal para publicar um jornal, qualquer pessoa nos EUApode fazê-lo.

17 O desenvolvimento empresarial dosmass mediaé concomitante à expansão do comércio e da industri-alização, como muito bem assinala Sorlin (1997).

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efeitos das técnicas escapam às intençõesdo homem, devido à sua capacidade decriação de habitats e de conformação. Ébem conhecida a história de John Donne deque estava convencido que, com a invençãodas armas de fogo, devido à sua efectivi-dade mortífera, se encurtaria a duração dasguerras. Como mostrou Simmel sobre opoder dos instrumentos, na sua obra magis-tral Filosofia do Dinheiro, a introdução destenão apenas acelerou o comércio, como al-terou profundamente o aspecto da civiliza-ção” (2002: 137).

O resgate da tradição da comunicação deproximidade na América ressurge, na décadade 90 do século XX, através da emergên-cia de um novo e controverso movimento.Este foi lançado simultaneamente na uni-versidade e na imprensa norte-americanaque defende um “novo jornalismo”, cujadesignação não é ainda consensual: “jor-nalismo público” (public journalism), “jor-nalismo dos cidadãos” (citizen journalism),“jornalismo da comunidade” ou “comu-nitário” (community or communitarian jour-nalism) e “jornalismo cívico”. A teoriza-ção em redor desta tendência que, paraalém de um programa doutrinário (de inter-venção pública/política de apelo à partici-pação cívica), envolve também uma críticareformista às práticas e rotinas profissionais,tem como objectivo principal revitalizar e in-tensificar a ligação entre o jornalismo e oscidadãos no sentido de desenvolver um diál-ogo profícuo com o público. Deste modo,as práticas desta nova forma de fazer jornal-ismo devem responder ao objectivo principalque é a dinamização da participação e da cul-tura cívicas18.

18 Para Jay Rosen, professor na Universidade de

Merece a pena também recordar que a im-portância concedida à tríade meios de comu-nicação, espaço e tempo, desenvolvida pelopensamento de Innis, tivera já uma aprox-imação pioneira no criminologista, mag-istrado, psicólogo social, sociólogo, novel-ista e um dos principais investigadores so-bre a opinião pública e comunicação no deal-bar do século XX, Gabriel Tarde (1843-1904). Evidentemente, este tipo de ques-tionamento surge num período que começaa ser marcado pela proliferação de proces-sos de comunicação à distância. O cernedo argumento de Tarde é o de que nas so-ciedades contemporâneas, atravessadas pormeios tecnológicos de comunicação de mas-sas, a variável da proximidade física deixade ser condiçãosine qua nonpara o “con-tacto espiritual” e consequente formação decorrentes de opinião. Perante as novascondições dos processos de comunicação,as correntes de opinião, o público, forma-se através da crença, paixão ou consciên-cia que cada indivíduo possui de que umaideia ou vontade é partilhada em simultâneopor um grande número de outros homens.Na proposta de Tarde, a “impressão à dis-tância” é viável na medida em que é pos-sível o contágio sem contacto. Esse contá-

Nova Iorque e um dos precursores do movimento, ojornalismo pode e deve ter como função contribuirpara o reforço da cidadania (citizenship), através damelhoria do debate público, fundamental para a re-vitalização da democracia. Como o próprio afirma,“o ‘jornalismo cívico’ [é] uma teoria e uma práticaque reconhece a suprema importância que tem mel-horar a vida pública” (2000 [1993]: 149). Seja comofor, esta corrente de pensamento recupera claramentea memória organicista da filosofia dos assuntos públi-cos no âmbito da política da comunicação nos EUA,num período profundamente marcado pelo descréditoda política e do jornalismo na sociedade.

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gio invisível do público não se cinge ape-nas ao que acaba de acontecer (e que, poressa razão, tem actualidade), mas a tudo oque no tempo presente suscita a sensação deque partilhamos o interesse por algo, mesmoque seja um assunto antigo. Nesta acepção,a paixão pela actualidade progride com a so-ciabilidade, sendo osmedia produtores deprocessos de solidariedade mecânica (fenó-menos de imitação).

Aparentemente, estas ideias de Tardeparecem contrariar as hipóteses de Innis. Noentanto, uma leitura mais atenta mostra quea constatação das possibilidades de conver-sação impelidas pelosmediaà distância nãofaz com que Tarde desvalorize a importân-cia da “impressão na proximidade” (1981[1901]: 9-14). Sem a experiência prévia da“impressão na proximidade” não é possívelque a impressão à distância possa consti-tuir um público. Radica precisamente nessaexperiência directa e no que ela implica deelaboração mental, a diferença entre públicoe multidão. Segundo Tarde, depois de afir-mar que a impressão à distância dos indi-víduos que compõem o mesmo público sóé possível desde que tenham praticado pormuito tempo (graças aos hábitos da vida so-cial intensa e da vida urbana) a impressãona proximidade, “a formação de um públicosupõe (...) uma evolução mental e social bas-tante mais elaborada do que a formação deuma multidão” (ibid.: 14).

É de notar ainda que a perspectiva deTarde é também extremamente útil comoaproximação ao problema das relações en-tre as alterações no modo de comunicaçãoe as mudanças em certos domínios da sen-sibilidade humana, que já ocupara Innis, deforma marginal, e que se tornará central emMcLuhan. O contágio sem contacto, impli-

cado na passagem do livro para a imprensaescrita de massas, é o conceito que definedois tipos de implicações de tipo sensorial:por um lado, a sensação de uma ligação feitaà distância, por outro, o sentimento de par-tilha de uma opinião, ao invés da afirmaçãode uma razão (cf.ibid. 14, 15).

5 De Innis a McLuhan: daGlobalização àHipersensorialidade e aoTrans- Humanismo

Innis foi, quase seguramente, o primeiroteórico e estudioso responsável para que setornasse visível a acção exercida pelas tec-nologias da comunicação, como parte dosmeios tecnológicos mais vastos utilizadospelo homem na história. O conjunto da suainvestigação deve ser considerado como pre-cursor e formulador de uma série de con-ceitos de grande alcance do papel das tec-nologias da comunicação no processo glob-alizante que marca a mudança verificadacom a deslocalização das formas de pro-dução, a tendência para a oligopolização domercado, a subordinação da comunicaçãopolítica aos imperativos de expansão tec-nológica e bélica, para além da sua insistên-cia na construção de um tempo comercialcomo resultado de um processo de colo-nização temporal. Fê-lo precisamente numperíodo em que, com as representações vin-das da cibernética e com a incapacidade dequestionamento revelada a este nível pela so-ciologia empírica dos “efeitos da comuni-cação”, a acção daquelas tecnologias da co-municação na civilização começou a tornar-se tanto mais pregnante quanto sintomatica-mente invisível.

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Onde Innis refere as implicações do telé-grafo e do comboio, temos hoje decerto quecitar a aviação, os sistemas informáticos, ainternet. Onde alude às metrópoles, comoChicago, devemos agora destacar as cidadesglobais, como Nova Iorque, Londres, Frank-furt. Onde se refere as ligações à escala na-cional, temos agora de distinguir as ligaçõesplanetárias. Neste sentido, os aviões são osherdeiros das caravelas e, tal como estas iamem busca de novos produtos e contribuírampara o estabelecimento de uma rede com-ercial, também o telégrafo, o comboio, emconjugação com a imprensa, e depois com arádio, a televisão e a Internet, contribuírampoderosamente para a expansão comercial eo processo globalizante. Este tipo de inter-pretação salienta que as modificações no es-paço e no tempo, e até o mundo comercial eglobal em que se vive hoje, são largamentetributários do ponto de vista causal das im-plicações dos meios de comunicação tec-nológicos (no seu sentido mais abrangente).Ao mesmo tempo, só quem acreditasse queestes meios são pura e simplesmente inven-tados com o propósito explícito de construireste mundo interconectado e comercial emque vivemos é que poderia postular (erronea-mente) que todas as consequências das tec-nologias são previsíveis. Parece evidente quena base da inovação dos meios de comuni-cação existe a vontade de obter novas lig-ações no espaço e no tempo, mas tal não sig-nifica que as repercussões desses meios pos-sam ser prévia e completamente calculadasem toda a sua dimensão. Antes pelo con-trário, quanto mais interconexão do mundo,maior complexidade tecnológica é requeridapara a sua gestão. Do mesmo modo, a sofisti-cação e ampliação dos recursos tecnológi-cos se resolve situações, acaba por origi-

nar problemas cada vez mais complicados eimprevisíveis, dado também lugar a fontesde poder invisíveis e impessoais, num con-ceito, burocráticas. A ambivalência posta emmarcha pelo desenvolvimento dos meios tec-nológicos de comunicação, por um lado, pro-movendo o contacto intercultural, por outro,dando lugar ao surgimento de ‘jaulas deferro’, fica patente na teoria innisiana.

Manuel Castells segue este tipo deraciocínio na conhecida trilogiaThe Infor-mation Age: Economy, Society and Cul-ture (1996), provavelmente sem tirar todasas consequências que poderia, aplicando-oàs novas tecnologias da informação e da in-formatização sem as quais, segundo a sua ar-gumentação, não teria ocorrido o conjunto detransformações económicas, sociais e cultur-ais que acompanham o suposto surgimentode uma “sociedade em rede”. Mas, ao con-trário de Innis, que tinha um pensamentoatento e complexo sobre as consequênciasmúltiplas e ambivalentes das tecnologias,Castells apresenta uma visão da sociedadetecno-globalizada desligada da problemati-zação de questões chave para o futuro comoa biotecnologia industrial e a biomedicina.No mesmo sentido, Castells esquece a im-portância da emergência dos poderes buro-cráticos e das inúmeras fronteiras que provo-cam, partilhando também da irreversibili-dade histórica do modelo tecnológico vi-gente.

Foi a partir da tradição innisiana de estudoda tecnologia, fixada nos meios de comuni-cação e nas implicações culturais e sociaisque impelem persuasiva e estruturalmente,que McLuhan construiu o célebre aforismode que o significado principal da mensagemse encontra no meio. O seu impacto na in-vestigação da comunicação abalou as ori-

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entações dominantes até aos anos 60, cen-tradas na análise dos conteúdos e dos pro-cessos de comunicação e recepção. De In-nis a McLuhan, e deste à aceitação, por partedas correntes de investigação recentes, darelevância do “impacto da forma” e da per-tinência cognitiva ou epistémica dosmediana sua qualidade de suportes técnicos quecondicionam as formas sensoriais da per-cepção, decorreram mais de três quartos deséculo. É, em parte, devido a este novo en-tendimento que é possível retirar da obscuri-dade a reflexão de Innis e colocar as pro-postas de McLuhan no debate académico,tarefa que tem sido conduzida por autores tãodiferentes como Arthur Kroker (1984), nodomínio das novas sensibilidades associadasà expansão tecnológica actual, Elihu Katz(1998; 2002) e Serge Proulx (1999), no âm-bito sociológico da comunicação, algo que,como vimos, só James W. Carey tinha feitonos EUA, desde finais dos anos 60, seguido– é justo não o esquecer – por Francis Balleem França, nos começos da década de 70, eDavid Czyrom, nos inícios de 80.

Elihu Katz numa conferência intitulada“One Hundred Years of CommunicationResearch” (2002)19, após prestar tributo aGabriel Tarde, que considerou o antepassadoda investigação sobre opinião pública e co-municação, e de mencionar a importânciade Innis e McLuhan para a visão dosmedia“mais como tecnologias do que como men-sagens”, teve a virtude de cruzar a visão doautor francês com a de Innis e de prestartributo à tradição canadiana: “Os macropro-cessos da escola de Toronto e a sua ênfase

19 Conferência proferida na abertura do primeirocongresso da SOPCOM – Associação Portuguesa deCiências da Comunicação, em Março de 1999.

nas tecnologias dosmediacomo ‘locus’ dosefeitos teriam parecido familiares a Tarde.Notaria o paralelo entre as análises de Innisde como ‘osmediado espaço’, como o pa-piro e os barcos de rio, consolidaram o podercentralizado dos antigos reis do Egipto, damesma forma como o seu própriomediumdoespaço, o jornal, enfraqueceu pouco a poucoo poder do rei francês”20 (2002: 26).

De modo similar, também Serge Proulx,que escreveuA Explosão da Comunicaçãoem co-autoria com Philippe Breton, um dosmais argutos investigadores contemporâneosdas relações entre comunicação, cibernéticae informática, num número recente da revistafrancesaQuaderni – La Revue de la Com-munication(1998-1999: 133-142) dedicadoa McLuhan, se inseriu neste movimento derevalorização do legado das ciências da co-municação do Canadá: “A difusão do seupensamento [de McLuhan] provocou umareconstrução relativa da agenda dos investi-gadores da comunicação ao colocar em cenaa problemática doimpacto da forma, que sesubstituiu, em parte, à análise dos conteú-dos que era uma perspectiva até então dom-inante entre os investigadores universitários.(...) Tornou-se assim muito frutuoso com-parar entre os modos de comunicação comoa oralidade, a escrita, o audiovisual e a infor-mática, do ponto de vista do que estes difer-entes meios permitem enquanto meios técni-cos abrindo possibilidades novas para pensar

20 “The macro-processes of the Toronto School,and its emphasis onmediatechnologies as the locusof effect, would also have seemed familiar to Tarde.He would note the parallel between Innis’s analysis ofhow ‘media of space’ like papyrus and riverboats con-solidated the centralized power of the ancient kings ofEgypt, just as his own medium of space, the newspa-per, undermined the power of the French king.”

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de outra forma”21 (ibid.: 136). A importân-cia destes testemunhos evidencia a vontadede destacar a obra de Harold Innis e a tendên-cia para retirar McLuhan das extravagânciasdo pensamento por parte da academia.

É correcto afirmar que McLuhan adoptae desenvolve duas das linhas de raciocíniode Innis: por um lado, as revoluções nosmeios de comunicação implicam mudançasinvisíveis nos sistemas de conhecimento ena cultura e, por outro, a compreensão civ-ilizacional do significado da perda da cul-tura oral na sociedade ocidental enquantoprocesso de literacia, erosão da consciênciapoética e triunfo da palavra escrita. A esterespeito, Arthur Kroker, na década de 80,e Judith Stamps, onze anos depois, emUn-thinking Modernity. Innis, McLuhan and theFrankfurt School(1995), defendem a tesede que Innis e McLuhan se situam ambosde forma muito próxima na análise da criseda sociedade moderna, em conjunto com osteóricos críticos da escola de Frankfurt, numperíodo em que realmente as contradições daracionalização moderna se encontravam emdebate e se enfrentavam com os primeirossinais de afastamento das expectativas daideologia do progresso do século XIX. Emrigor, porém, no que diz respeito a Innis,

21 “La diffusion de sa pensée a provoqué une re-construction relative de l’agenda des chercheurs encommunication, en mettant au devant de la scèneune problématique del’impact de la forme, qui s’estsubstituée en partie à l’analyse des contenus quiétait une perspective jusque là dominante chez leschercheurs universitaires. (...) Il devient ainsi trèsfructueux de comparer entre eux des modes de com-munication comme l’oralité, l’écriture, l’audiovisuelet l’informatique, du point de vue de ce que ces dif-férents moyens permettent en tant que moyen tech-nique ouvrant des possibilities nouvelles pour penserautrement.”

diferentemente dos teóricos de Frankfurt ede outros críticos fáusticos da tecnologia,nunca a aversão aos valores, à tradição e àsinstituições liberais e democráticas foi bran-dida, antes pelo contrário.

De forma distinta à interpretação de Kro-ker e Stamps, existem evidências suficientesde que McLuhan, sendo certo que a partirde algumas intuições pioneiras de Harold In-nis, traçou directrizes muito próprias e es-pecíficas que se inscrevem numa correntede pensadores e cientistas que tornaram otema antropogenético da tecnologia numadas referências do pensamento contemporâ-neo. Para McLuhan, as tecnologias da co-municação estão não só no fulcro de umarevolução na cultura e na organização social,como sobretudo dosensoriume no sistemanervoso, entendendo a importância destesdois aspectos do humano numa perspectivaque lembra as teses do tradicionalismo sen-sualista e espiritualista – que foram umareacção violenta contra o Iluminismo francês– de Destut de Tracy e Pierre Cabanis, re-dutoras do poder espiritual à sensibilidade edesta ao sistema nervoso22. De acordo com avisão mcluhaniana, uma visão distanciada doque concebia ser o pensamento “geométrico”e “sequencial” da racionalidade moderna, arevolução computacional tende a aniquilar anatureza tal como era conhecida e a máquinae a biologia começam a fundir-se. A eraGutenberg teria sido um período da exper-iência humana conduzida pela razão tipográ-

22 Francis Balle terá sido, porventura, o primeiro aestabelecer relações de proximidade entre os esque-mas de explicação sensualistas de McLuhan e as teo-rias de Étienne de Condillac e de Stuart Mill (1972:44-46). Destut de Tracy e Pierre Cabanis foram, comoé referido, extremamente influenciados pelo sensual-ismo de Condillac.

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fica, uma razão homogénea e uniforme, ea era electrónica será a época de uma ex-periência colectiva e unificada, baseada narestauração das sinergias entre todos os sen-tidos, toda a humanidade e rumo à nooesferasonhada pelo teólogo Teilhard de Chardin, aparitr da noção de bioesfera de um seu pro-fessor e também visionário, o geoquímicoVladimir Vernadski. Quando colocado per-ante a herança innisiana, McLuhan só podeser considerado herético. Diferentemente doque Kroker e Stamps tendem a negligenciar,nem Innis encontra em McLuhan um ver-dadeiro discípulo, nem a este último podeser recusado o papel de uma das principaisfontes – de temas e problemas fundamentais– da reflexão sobre as tecnologias da comu-nicação na segunda metade do século XX.Edmund Carpenter, multifacetado antropól-ogo, um dos amigos mais próximos deMcLuhan e com quem fundou os semináriosinterdisciplinares sobre Cultura e Comuni-cação23 que tiveram lugar na Universidade

23 O projecto destes seminários foi financiado pelaFundação Ford e os resultados foram publicados apartir de Dezembro do mesmo ano no jornalExplo-rations, do qual Carpenter foi editor fundador comMcLuhan, assim como co-editor deExplorations inCommunication(1960). Na biografia de McLuhan daautoria de W. Terence Gordon, este relata que o grupodo seminário reuniu-se pela primeira vez em Junhode 1953. Para além dos impulsionadores, McLuhan eCarpenter, estiveram ainda presentes o psicólogo CarlWilliams, o economista Tom Easterbrook e a urban-ista Jacqueline Tyrwhitt. Durante esse Verão, as dis-cussões versaram as conexões entre os seus camposde saber e interesses, nomeadamente no que respeita amétodos e pontos de vista. Este tipo de diálogo inter-disciplinar encorajou o grupo a procurar uma perspec-tiva unificada sobre o impacto cultural dosmedia. EmDezembro do mesmo ano, a publicaçãoExplorationsveio dar ao seminário um perfil mais elevado. Estapublicação era transversal às ciências sociais e às hu-

de Toronto a partir de 1953, corrobora cabal-mente, em “That Not-So-Silent Sea”, textoeditado como apêndice por Donald Theall,o primeiro estudante de doutoramento deMcLuhan, a perspectiva que aqui se avança:“Innis nunca foi mentor de Marshall. Mar-shall não seguiu ninguém. A distância entreeles era enorme...”24 (in Theall, 2001: 249).

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24 “Innis was never Marshall’s mentor, not really.Marshall followed no one. (. . . ) The gap betweenthem was wide, . . . ”

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