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1 Uma viagem no escuro Danieli Haloten A autora Danieli Haloten é atriz e jornalista. Tornou-se a primeira atriz cega do mundo a atuar em uma novela, interpretando Anita em “Caras & Bocas”da Globo, de Walcyr Carrasco, dirigida por Jorge Fernando. Entre outros trabalhos, foi repórter ao lado de Caco Barcellos, no “profissão Repórter” da Globo. Desde 1998, ministra palestras de inclusão, sucesso e superação. Já escreveu muitas músicas, um roteiro para cinema, duas peças de teatro ainda inéditas e desde 2009, escreve no seu blog na Globo.com www.danielihaloten.com.br ©Danieli Haloten, 2013 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei.

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Uma viagem no escuro

Danieli Haloten

A autora

Danieli Haloten é atriz e jornalista. Tornou-se a primeira atriz cega do mundo a atuar em uma novela, interpretando

Anita em “Caras & Bocas”da Globo, de Walcyr Carrasco, dirigida por Jorge Fernando. Entre outros trabalhos, foi repórter ao lado de Caco Barcellos, no “profissão

Repórter” da Globo. Desde 1998, ministra palestras de inclusão, sucesso e superação.

Já escreveu muitas músicas, um roteiro para cinema, duas peças de teatro ainda inéditas e desde 2009, escreve no seu blog na Globo.com

www.danielihaloten.com.br

©Danieli Haloten, 2013

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial.

Os infratores serão processados na forma da lei.

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Dedicatória. Agradeço a Deus por ter me inspirado em um tema para escrever esse livro. Agradeço a meu amigo, o ator Ary Fontoura, com quem tive o prazer de trabalhar na Rede

Globo, que escreveu um prefácio tão lindo que até eu fiquei com vontade de ler meu livro. Dedico esse livro a todos que gostam de viajar, aventurar-se em novas experiências e a

todos que gostam de sonhar.

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Prefácio

“Pare de se lamentar! As pessoas se queixam demais! É preciso não esquecer que enquanto caminhamos sem qualquer espécie de privação, outros nos seguem tentando superar dificuldades!” Foram conceitos a mim dirigidos por minha querida e saudosa mãe, já há muito falecida.

Tive o prazer de conhecer Danieli Haloten na TV Globo, onde fizemos juntos a novela de Walcyr Carrasco Caras & Bocas.

E agora, ao escrever este livro, ela se lembrou de mim. E agradeço por, de certa forma, participar de seu trabalho. Dizer que sempre a admirei me parece o óbvio. Mas me lembro da primeira vez que a vi. Chegava para trabalhar no Projac e fazia o trajeto que a conduzia ao estúdio de gravação. Ao lado de sua irmã Hilana e do inseparável fiel escudeiro – um lindo labrador de quem eu errava de propósito o nome, que era Higgans, e trocava por Eisbein.

Enfim, nos tornamos amigos. Do cão e da dona. Eram horas e horas de gravação que ela superava com muita alegria e profissionalismo, sem esconder que amava seu trabalho de atriz!

Blanche du Bois, personagem de Tennesse Willians, da peça de sua autoria, “Um bonde chamado desejo”, na cena final, diz: “Eu sempre dependi da bondade alheia!”. Não é o modelo de Dani utilizar na vida real as palavras de Blanche. Ao contrário. Batalha por sobreviver por conta própria, com dignidade. Não admite ser rejeitada por uma sociedade que insiste em tratá-la como diferente dos outros. Quer ser considerada deficiente visual, mas quer ser igual aos que não são! E quer trabalhar, quer exercer sua cidadania, quer direitos iguais e, para isso, é dona de uma vontade inquebrantável.

O que retrata em seu livro, tudo o que passou de desagradável (e passa) por causa do terrível preconceito daqueles que querem taxá-la de diferente, mostra sua personalidade forte. E também revela o quanto o ser humano pode ser mesquinho e intolerante.

Neste livro, demonstra como sabe lidar com o sonho e a realidade. Não através do olhar, mas sim da incrível percepção que tem dos espaços, Danieli consegue conhecer o seu próximo! Abomina a piedade, conhece muito bem os seus limites, tem a sensibilidade à flor da pele e consegue enxergar longe! Por isso, esperneia, se manifesta, se posiciona com uma coragem extraordinária, exercitando a cada segundo sua fé inabalável de que as coisas não são imutáveis. Enfrenta os revezes de que sua vida está cheia com destemor. E nos dá um belo exemplo de vida!

Sobretudo quando, com sabedoria, devolve para o seu próximo tudo aquilo que ele insiste em lhe negar.

Seu otimismo particularmente me envergonha, a mim e a muitos, porque nos torna tão mesquinhos. Ao mesmo tempo é um estímulo para eu ir em busca de transformações e me tornar, se possível, melhor! O que acho – e desejo – é que as pessoas se aprofundem cada vez mais no universo da deficiência visual após a leitura desta viagem – viagem que só os fortes conseguem atingir da partida ao objetivo e à volta!

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Danieli fez (e continua fazendo) uma viagem no escuro enxergando mais do que nós que, podendo ver, tocar, ouvir, sentir, diante dos apelos que constantemente recebemos de ajudar ao próximo em se tornar igual ou melhor que nós, permanecemos cegos!

Mas sejamos otimistas. Este livro é modificador! A vida de sua autora é modificadora! E, afinal, querendo ou não, somos todos iguais!

Ary Fontoura

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Nota : As histórias contadas nesse livro são reais. Alguns personagens desta obra tiveram os nomes alterados em nome do respeito à privacidade.

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Capítulo 1

Primavera Em Nova York

Quando as pessoas dizem “vai tentar a vida nos Estados Unidos, na Europa... Lá, o deficiente tem toda a estrutura. Lá, você vai ter mais oportunidade...”, pode ter certeza: essas pessoas não têm deficiência aparente. Já estive sozinha nos Estados Unidos e sei que a coisa não é exatamente como essas pessoas pensam. Elas veem prédios com rampas, cães guiando seus donos no metrô e acham que isso é o suficiente para tornar o lugar inclusivo.

Tive a mesma ilusão, em maio de 2005, quando fiquei um mês treinando meu segundo cachorro na escola de cão-guia de Smithtown, no estado de Nova York. Todo o prédio da escola era sinalizado em Braille, não tínhamos problemas para entrar com os cães em nenhum lugar. As pessoas estavam habituadas a lidar com deficientes visuais e seus cães. Mas quando cheguei à Nova York, acompanhada apenas por Higgans, meu cão-guia da raça labrador, percebi que aquelas condições eram próprias de uma instituição para cegos e em uma cidadezinha em que as pessoas estavam acostumadas a conviver com animais em treinamento.

O período de treinamento sempre terminava na quarta-feira, e a quinta era destinada a despachar os alunos para seus lugares de origem. Quem era dos Estados Unidos tinha o transporte bancado pela escola. Não era o meu caso.

Eu trabalhava em um banco e só teria que reassumir meu posto na terça-feira da semana seguinte. Queria conhecer Nova York, antes de retornar ao Brasil. Mas os treinadores achavam a decisão precipitada porque o cão-guia e o dono precisam dos primeiros três meses de convivência para adaptação.

Como a escola era responsável por meu transporte dentro dos Estados Unidos, Kim, uma das treinadoras, dirigiu cerca de uma hora e meia para me deixar no hotel em Nova York. Smithtown fica em Long Island, a cerca de 80 quilômetros de Manhattan. Chegamos por volta das 11 da manhã. De cara, senti algumas das dificuldades enfrentadas por um cego fora do reduto protegido de Smithtown. Ao estacionar o carro em frente ao hotel, Kim pediu que me apressasse porque era proibido parar ali.

– Mas sou cega. Não há uma tolerância para com os deficientes?

– Não –, respondeu, enquanto tirava as malas do carro.

Kim deixou a bagagem na porta do hotel, despediu-se e foi embora. Logo apareceu um mensageiro para me ajudar com as malas, me registrar, pegar a chave e me conduzir até o quarto.

O hotel ocupava uma quadra inteira da 7ạ Avenida, entre as ruas 32 e 33. Era enorme. Eu me perdia no saguão. Os quartos eram tão apertadinhos, que eu sempre batia em alguma coisa. Quando dava água para o Higgans no banheiro, só cabia a cabeça dele lá dentro.

A diária era de 150 dólares. Foi o mais barato que a agência de turismo conseguiu. Bem diferente de quando, aos 15 anos, havia ido à Califórnia com minha família. Ficávamos em hotéis simples e com preços acessíveis, e os quartos eram espaçosos e confortáveis.

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Depois de me instalar, peguei o cartão telefônico e desci ao saguão para procurar um telefone público e ligar para a guia que a agência de turismo havia indicado. O saguão estava lotado. Parecia um centro de convenções. E as pessoas me empurravam ou me ignoravam, em vez de me ajudar. Depois de rodopiar pelo saguão, encontrei um telefone. Quem me atendeu foi Meridiana, brasileira que coordenava um grupo de guias de origem latina. Combinamos que ela me enviaria alguém para me guiar e me fazer sentir bem a Big Apple. E já foi me explicando como funcionavam as ruas da cidade:

– As quadras são retangulares, divididas em avenidas em número ordinal: terceira, quarta, quinta... As ruas, em números cardinais: 10, 11, 12...

Sabendo que eu estava na Sétima, entre a 32 e a 33, eu poderia ir sozinha a qualquer lugar, desde que soubesse em que rua ou avenida deveria ir. Assim, por telefone mesmo, Meridiana me explicou como ir ao Empire State, a uma quadra do hotel, assim como à loja mais próxima da Starbucks, entre outros locais.

Era final de maio, meio da primavera do Hemisfério Norte. Para minha sorte, já não estava tão frio. No mês que passei fazendo o treinamento com meu cão-guia, precisei usar roupas mais pesadas de inverno para suportar as baixas temperaturas da primavera de Smithtown. Sofri muito. Dentro do prédio da escola era tão quentinho que dava para ficar de camiseta. Mas era só sair, quando levava Higgans para fazer as necessidades, por exemplo, que quase congelava.

Como uso as mãos para tudo, não costumo pôr luvas com dedos. Mas não imaginava que a primavera de lá fosse tão gelada. Meus dedos e rosto queimaram de frio. Por mais que os ambientes fossem climatizados, não havia como escapar: o verdadeiro treinamento com cão-guia é feito na rua. Em Manhattan, podia usar roupas do outono brasileiro, o que me fazia sentir no céu perto do que havia passado antes.

Saí do hotel, virei à direita, cruzei a rua e dobrei à direita novamente, em direção ao Empire State. Higgans, entretanto, parou e não queria seguir de jeito nenhum. Perguntei às pessoas que circulavam por ali porque ele não queria andar. Bem na nossa frente havia uma enorme escada que descia para o metrô. Isso é a chamada “obediência inteligente”: o animal ignora uma ordem em nome da segurança. Ponto para Higgans. Logo em sua primeira saída oficial depois do treinamento, ele salvou minha vida – como faria muitas outras vezes. Após ser bastante agradado, ele me tirou da frente da perigosa escada e me guiou até o edifício.

Higgans é um cão tão especial, que nos demos muito bem desde o primeiro dia. Era praxe os treinadores levarem os cães até nossos quartos e nos deixarem sozinhos para nos conhecermos. Eu estava muito cansada, porque durante o treinamento tínhamos que acordar todos os dias às seis da manhã, com atividades até nove da noite.

Assim, quando os treinadores abriram a porta do quarto para conferir como a dupla estava se relacionando, encontraram-me deitada na cama e Higgans estirado no chão. Daquele instante em diante, eu sabia que seríamos grandes companheiros. Companheiros de cama, inclusive.

O Empire State é um edifício comercial. No térreo, encontrei um simpático senhor que me guiou até a sacada de um dos andares. Ventava muito naquele dia, por isso não pudemos ir ao terraço. Mas da sacada do andar em que estávamos, o 84ọ, acho, já dava para sentir o chão tremer e a construção balançar. Gentil, meu guia improvisado tirou fotos da vista para mim e me explicou que dali era possível avistar os prédios da Craft e, se ainda existissem, as torres gêmeas do World

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Trade Center. Ele me presenteou com um retângulo de vidro com a representação da cidade de Nova York dentro.

Morrendo de fome, fui procurar um lugar para comer. Eu sentia o cheiro. Sabia que por ali o que não faltava era comida. Era só parar e perguntar. Quase na esquina do hotel encontrei uma pizzaria. Pedi um pedaço de peperone, minha preferida.

No tumulto de Nova York, difícil era a hora de o cachorro fazer as necessidades. Eu andava com Higgans até ele se aliviar. Depois, como todo bom dono, eu mesma recolhia. Mas ainda tinha um pouco de dificuldade para encontrar e apanhar as fezes. Enquanto procurava com o saquinho na mão, em vez de me ajudarem, as pessoas passavam xingando:

– Porca!

– Você tem que limpar isso!

– É o que eu estou tentando fazer! Alguém pode me dizer onde está?

Ninguém respondia. Quem passava continuava xingando, até eu finalmente conseguir.

À noite, como havia combinado com Meridiana, encontrei-me no hotel com a guia Selma. Ela me entregou o ingresso para o “Fantasma da Ópera” e me levou à Broadway, que era perto do hotel. Além disso, levou algum dinheiro trocado para substituir por minhas notas de cem dólares. Meridiana havia me explicado que em Nova York, paga-se gorjeta para tudo. Como dar gorjeta com notas de cem? Além do mais, as lojas ficam meio desconfiadas quando recebem uma cédula de valor elevado. Sabendo disso, por que só enviam notas de cem aos bancos brasileiros? Deveriam disponibilizar cédulas de todos os valores.

Selma me deixou na recepção do teatro, certificou-se de que um funcionário de lá chamaria um táxi para mim no final da apresentação e foi embora.

Foi um espetáculo maravilhoso. Não vou dizer que entendi 100%. Se houvesse alguém do meu lado para narrar as cenas, teria sido bem melhor. De toda forma, um espetáculo da Broadway não pode faltar na lista de um turista em Nova York.

Não sou do tipo que viaja para torrar dinheiro em compras. Gosto de sentir, curtir o lugar, experimentar a comida. Assim, preferi usar meu dinheiro para pagar uma guia que me permitisse aproveitar melhor a cidade. E eu já havia comprado casacos na liquidação de inverno, numa das tardes de folga do treinamento.

No final do show, um funcionário parou um táxi para mim com um aceno, como nos filmes. Em Nova York, não existe ponto de táxi, porque é proibido estacionar em quase todas as ruas. E quem não é rico anda de trem, metrô ou táxi, porque os estacionamentos cobram preços salgados. Embora a Broadway fique bem pertinho do hotel, Meridiana me aconselhara a voltar de táxi porque a avenida tem uma bifurcação. Ela tinha receio de que eu me perdesse à noite. Além do mais, táxi na Big Apple não é caro.

De volta ao hotel, Higgans teve um longo percurso para encontrar o elevador. Como havíamos atravessado um mar de gente no saguão, escadas e quebradas, tivemos dificuldade em memorizar o caminho. Pedi a alguém que apertasse o botão do meu andar e subi sozinha com Higgans. Saí na primeira parada, torcendo para que ninguém tivesse chamado o elevador. Como

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não havia ascensorista nem indicação sonora do andar, não sabia se havia parado no andar certo. Tateei perto do botão de chamada e não encontrei nenhum sinal em Braille para ter certeza de que estava no meu andar. Também não ouvi ninguém em volta. Como Higgans já mostrava eficiência, chegou à porta do quarto certinho, só que no andar errado. Eu havia colocado um esparadrapo na maçaneta – e ele não estava lá. As cidades americanas não são tão acessíveis assim. Nas portas dos quartos não havia indicação em relevo – ou estavam muito bem escondidas; ou nem os funcionários sabiam sobre elas ou nem estavam preparados para dar esse tipo de informação. Ninguém me orientou a esse respeito, quando me registrei no hotel.

No dia seguinte, ventava e chuviscava em plena primavera. Como os hotéis americanos não servem café da manhã, precisava ir para a rua. Descobri que, ao lado do hotel, havia uma portinha do Dunkin’ Donuts. As pessoas compravam seu café e saíam comendo pela rua, o que seria impraticável para alguém com deficiência visual. Então, comprei um café, um donut e um bagel e pedi para o mensageiro do hotel levar até o meu quarto. Sem me esquecer da gorjeta, claro.

Depois de me deliciar com as bobagens americanas – adoro –, recebi um telefonema de Meridiana. Disse-me que enviaria um mexicano chamado José para me acompanhar até a Estátua da Liberdade. José era um bom guia, mas leigo quanto às leis sobre cães de serviço. Pegou no meu pé porque Higgans fez as necessidades na calçada:

- No puede hacer eso! Nosotros seremos multados!

Expliquei para ele que, nos Estados Unidos, o cão-guia poderia fazer as necessidades onde quisesse. Além do mais, eu iria limpar. Onde ele queria que meu cachorro fizesse as necessidades? No banheiro? Apesar do estresse inicial, o passeio foi muito bom. Ele me descreveu tudo quanto foi possível.

Fiquei frustrada porque, depois dos atentados de 11 de setembro, não era mais permitido entrar na Estátua da Liberdade. José perguntou se eu queria subir os degraus até os pés dela. Não subi. Estava frio e chuviscando. Como em todas as viagens, comprei réplicas dos pontos turísticos. Para quem enxerga, bastam fotos e postais para guardar de lembrança. Esculturas e miniaturas são as fotografias do cego. Minha casa é cheia de réplicas de lugares que visitei: monumentos de Washington e Estátua da Liberdade nos Estados Unidos; Pão de Açúcar, e Corcovado, do Rio, o Forte dos Reis Magos e Maria Bonita e Lampião, de Natal (RN).

Na volta ao hotel, José me deixou em um McDonald’s. A tortinha de maçã deles era menos crocante e parecia ter mais gordura hidrogenada que a vendida no Mc do Brasil. Já era minha terceira vez nos Estados Unidos e eu ainda não havia provado o McDonald’s “original”. Tem gente que gosta de comer no Mc quando viaja por considerar que tem um padrão de comida praticamente igual em todos os países. Eu não atravessaria o mundo para comer só em McDonald’s ou em restaurantes que servissem comida brasileira. Gosto de experimentar a culinária local, mesmo que sejam os carboidratos americanos. Tudo bem, eu não teria condições para viver a vida toda com o que os americanos comem, porque é tudo muito artificial. Todavia, a junkie food, bobagens que eles comem, é muito gostosa. Adoro a variedade de salgadinhos apimentados, principalmente da Califórnia. Adoro muffins, bagels, donuts, aqueles bolos pesados e artificiais, o brownie e o cinnamon bun, o meu preferido. Mas tem que ser da famosa loja Cinnabon, com glacê derretido. Procurei a receita na internet para fazer, mas não ficou nem parecido.

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No dia seguinte, o sábado se abriu com sol para eu conhecer o Central Park. Fui com a Selma, a guia brasileira do primeiro dia. Ela parava diante das esculturas e de outras coisas que considerava interessantes para me apresentar. Lembro-me das esculturas de um cogumelo e de um cachorro – segundo a placa lida por Selma, era uma homenagem a um animal que havia realizado um ato heroico.

O Central Park ficava perto do hotel, mas era tão grande que, se quiséssemos voltar, precisaríamos pegar o metrô. Pegamos o metrô, sim, mas para ir à Lighthouse, uma loja de artigos para deficientes visuais. Além do relógio Braille que eu já sabia que poderia encontrar lá, estava empolgada para conhecer outros artigos que facilitassem a minha vida. Entretanto, a vendedora da loja não estava nem um pouco interessada em me mostrar os produtos à venda. Atendeu com tanta hostilidade e má vontade, que até Selma ficou indignada. Uma pessoa que trabalha em uma instituição mundialmente conhecida por atender deficientes visuais deveria estar ciente de que precisa descrever o que tem na loja aos clientes que não enxergam, explicar como funcionam os produtos e até dá-los nas mãos para eles sentirem.

Se tivesse alternativa, sairia de lá sem comprar nada. Mas não é fácil encontrar esses relógios. Em São Paulo, há lugares que vendem produtos para deficientes visuais, contudo, por serem importados, acabam saindo muito mais caro. Comprando direto nos Estados Unidos, eles já custam em torno de 60 dólares cada.

As fábricas deveriam fazer relógios Braille não só pensando nos deficientes, mas como opção para o público em geral. Assim, teríamos mais alternativas e preços competitivos. Aliás, nem sei por que se chamam relógio Braille. Não têm nada de Braille, até porque teria que ser um relógio de parede para caber os numerais nesse sistema. Esses relógios só têm bolinhas marcando cada hora, com diferenciação nos múltiplos de três, como ocorre com alguns relógios visuais estilosos. A diferença é que o vidro pode ser aberto para se verificar as horas pelo tato.

Depois de comprar o relógio, Selma me levou para almoçar num restaurante mexicano. Em seguida, voltamos para a região do hotel, onde fomos para a Macys, uma das maiores lojas de departamento do país. Era um prédio com uma seção por andar. Eu precisava comprar malas para levar para casa o que havia comprado nas liquidações de Smithtown, a ração e os brinquedos que adquiri para Higgans. No Brasil é difícil encontrar brinquedos para cães de grande porte. Não sei se a cultura popular brasileira ainda não trata o cachorro grande como bicho de estimação ou se a indústria ainda não atentou para esse mercado.

Selma e eu conversamos sobre o jeito de ser dos brasileiros e dos americanos. Ela comentou:

– Ai, eu morro de vergonha, quando vejo um brasileiro pechinchando aqui.

– Ah, é? – perguntei interessada.

– É. Aqui não se pechincha. Não é que nem no Brasil que a gente pergunta se tem desconto.

Se aquele era um aviso para mim, não sei. Na dúvida, nem pensei em pechinchar. Comprei as malas e uns colares para mim, para minha mãe e minha irmã. Nada mais me interessou. Selma achava absurda a compra dos colares:

– No Brasil você vai encontrar isso muito mais barato!

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Comprei assim mesmo. Entendo de pedras. Sabia que aquelas não eram pedras brasileiras e que eu não encontraria igual por aqui.

Selma me ajudou a levar as malas para o hotel. Eu a remunerei e nos despedimos.

Em minha última noite em Nova York, queria ir a uma balada, conhecer a noite americana. Mas como iria sozinha? Queria pelo menos jantar em um lugar bacana. Uma das treinadoras da escola de cão-guia, Valery, telefonou para o hotel. Queria saber como eu estava. Contei meus planos e ela me disse que havia um restaurante interessante. Prometeu olhar o cardápio na internet para eu não correr o risco de comer algum bicho estranho e fez uma reserva para mim. Mais tarde, ligou sugerindo um prato com camarão, passou o endereço e disse que a reserva era para as 22 horas.

O restaurante era mesmo agradável. Tocava uma música gostosa. Uma delas foi de uma brasileira que cantava MPB. Nunca a ouvi no Brasil. Depois que terminei o jantar, um rapaz perguntou se podia se sentar à minha mesa. Deixei. Ele morava no Queens, do outro lado da ponte de Manhattan. Estava na região para fazer algumas entregas. Papo vai, papo vem, já era meia-noite, e eu precisava ir. Ele se ofereceu para pegar um táxi comigo – o que não recusei. Eu ia mesmo precisar de ajuda para parar um táxi.

Quando dizem que Nova York não dorme, não é figura de linguagem. A circulação de carros e pessoas nas ruas era parecida com o movimento durante o dia em São Paulo. Fomos de táxi até o hotel. Achei que iríamos dividir a conta, mas acabei pagando a corrida sozinha. Ele perguntou se eu queria dar uma esticada na noite. Declinei e ele foi embora.

Ao redor do hotel havia uma grande movimentação. Nem parecia meia-noite e meia. Descobri depois que havia um show do U2 no Madison Square Garden, bem em frente ao local em que me hospedara.

No meio daquela gente toda, tinha que encontrar um cantinho para o Higgans fazer as últimas necessidades do dia. Apareceu uma policial muito gentil que se ofereceu para me ajudar. Fiquei aliviada, pois já era muito tarde.

Terminei de fazer as malas lá pelas duas da manhã e caí nos braços de Morfeu.

No dia seguinte, fui acordada por batidas na porta. Era a camareira, avisando que eu deveria deixar o quarto. O horário limite para o check-out era meio-dia. Só restavam 15 minutos. Levantei correndo, troquei de roupa, fiz minha higiene matutina, alimentei e dei água para meu cão guia, fechei as malas e revisei o quarto para ver se não havia esquecido nada... Tudo vapt-vupt.

Muito simpática, a camareira, de sotaque francês, entregou um brinquedo do Higgans que eu havia esquecido. Perguntei:

– Eu só tenho que ir para o aeroporto às seis da tarde. Você acha que eles me deixariam ficar mais tempo?

– Neste quarto, talvez não. Mas você pode perguntar se tem outro disponível. Tenho certeza que eles deixam – respondeu.

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Não permitiram usar as acomodações do hotel, mas me ofereceram um lugar para guardar as malas, pagando gorjeta, claro.

Fui tomar meu brunch na Starbucks. Em Nova York, há uma em cada esquina. Algumas têm ambiente agradável, com sofá confortável. Não era o caso da que eu fui. A Starbucks, dizem, é famosa pelo café. Acho, porém, que pela marca, pelo lugar, porque o café é a mesma água suja que todo americano faz. Eu não entendo. Em toda birosca tem café nos Estados Unidos. Mas nenhum é bom.

Ainda voltei à loja Macys para trocar um dos colares que havia comprado, porque arrebentara. As calçadas estavam tão cheias, que Higgans perdeu a paciência e me levou para a rua. Parecia a 25 de Março em véspera de Natal.

Antes de ir para o aeroporto, descobri um restaurante no térreo do hotel e fui jantar. Um rapaz veio até minha mesa e, mesmo depois de eu explicar várias vezes que não poderia mexer com o cão-guia para não atrapalhar o treinamento, ele insistia em fazê-lo, achando-se o máximo por me desafiar. Era o gerente do restaurante e também, brasileiro. Nesse ponto os americanos respeitam não só o trabalho do cão-guia, mas também a individualidade alheia. Uma das maiores dificuldades de se ter um cão-guia no Brasil é manter a disciplina do treinamento com tanta gente querendo brincar com o cachorro. Canso de ouvir:

– Mas ele é lindo! Eu não resisto!

Eu também achava lindos os meninos de “Barrados no baile”, mas nunca poderia agarrá-los, caso os encontrasse, com a desculpa de que não resisto. Pior é ser retida inúmeras vezes no trajeto até o ponto de ônibus ou dando uma volta no shopping, só para ficar explicando isso. Sem falar no interminável interrogatório a respeito do cachorro. As pessoas deveriam entender que os deficientes não são serviço de utilidade pública. Nós temos uma vida para seguir, temos que trabalhar, pegar o ônibus... Não podemos parar para todo mundo na rua só porque confundem nossos olhos caninos com bichinhos de estimação públicos.

Tem gente tão mal educada que fica escutando conversa alheia, enquanto acaricia o cachorro sem pedir permissão ao dono. É muito desagradável. A gente está conversando com uma amiga, namorando... E tem pessoas que se acham no direito de invadir nossa privacidade. E se chamo a atenção de alguém por mexer com meu cão-guia sem minha permissão, ainda passo por mal educada.

Outro dia, quando tentava almoçar e conversar com uma amiga, as pessoas não paravam de interromper. Enquanto minha amiga tentava ler o cardápio para mim, vieram umas cinco pessoas. Quando o garçom veio tirar os pedidos, ainda não sabíamos o que havia no cardápio. Ao me dirigir ao garçom, uma mulher se interpôs entre mim e ele, jogando-se em cima do cachorro.

– Qual é seu nome? – perguntei.

A mulher respondeu.

– Eu estou falando com o garçom – devolvi.

– Meu nome é Bianco.

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– Por favor, se você perceber alguém vindo mexer com meu cachorro, explica que não pode. Ele é um cão de trabalho e isso atrapalha o treinamento. Agora, ele precisa descansar. E eu quero almoçar à vontade com minha amiga.

Deu certo. O garçom se sentiu importante com a tarefa. Consegui finalmente papear sem nenhuma interrupção.

O gerente do restaurante do hotel me fez lembrar sobre o que voltaria a enfrentar quando chegasse ao Brasil. Mas não parou por aí. Eu havia contratado traslado até o aeroporto. Meridiana enviou-me uma motorista brasileira. Mal entrei no carro, e o interrogatório começou: “Por que ficou cega? Desde quando? Tem cura? Como você faz para fazer isso? Como você faz para fazer aquilo?” Tudo devidamente arrematado com a história de um conhecido que perdeu a visão, as pernas, a audição... Tive vontade de chorar.

Por essas e outras que, de tempos em tempos, preciso tirar férias dessa invasão de privacidade e viajar para o exterior. Tem gente que acha que minha vida mudou muito, depois de ter participado da novela, porque fiquei mais conhecida. Para mim não mudou quase nada. Desde que me conheço por gente, pessoas estranhas invadem minha privacidade, como se eu fosse serviço de utilidade pública, porque tenho uma deficiência. Se houve mudanças, foi para melhor, porque hoje recebo o carinho e o respeito das pessoas pelo meu trabalho e o velho interrogatório tornou-se mais raro. Agora todo mundo está mais interessado em saber sobre o meu trabalho e a pergunta da vez é se não foi uma tortura trabalhar com o bonitão do Malvino Salvador e fazer papel de irmãzinha.

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Capítulo 2

Uma Odisseia No Ciberespaço

Quando a novela acabou, em janeiro de 2010, era um desses momentos em que precisava de férias. Convite não faltava. Tinha amigos na Califórnia, na Flórida e em Washington querendo que fosse visitá-los. Mas eu havia fraturado o cóccix três meses antes, enquanto fazia esteira. A queda, como quase todos os acidentes, se deu pelo que minha avó chamava de “o minuto da bobeira”. Ela dizia que todos nós temos um minuto desses por dia. É o momento em que podem ocorrer os acidentes mais graves, por puro descuido. E foi exatamente o que aconteceu comigo. Estava fazendo esteira na academia do hotel em que morei durante a novela, no Rio, enquanto ouvia música no MP3. Tirei as mãos do apoio para mexer no aparelho e acabei andando para trás. Não deu tempo de segurar. Fui atirada contra uma barra de ferro do aparelho de musculação. Foi um impacto certeiro sobre o cóccix e uma dor daquelas.

O minuto da bobeira me marcou para sempre. Mais de dois anos depois, ainda sinto as consequências. É para eu aprender a não fazer tudo ao mesmo tempo. Não preciso explicar porque nunca atendo o celular, se estiver andando na rua ou descendo do ônibus. É muito mais difícil para um cego falar ao celular quando se está com uma das mãos ocupadas com um cão-guia ou uma bengala e a outra com a bolsa ou tendo que abrir portas, segurar um apoio no ônibus.

O fato é que o incidente me deixou um ano mais deitada do que sentada, por causa da dor. Não iria aguentar uma viagem muito longa de imediato. Como sempre quis fazer intercâmbio, aproveitei esse tempo para planejar a viagem, procurar escola e tudo mais.

Comecei a pesquisar. Por causa das minhas experiências no exterior, sabia que encontrar um bom programa não seria tão fácil para alguém com deficiência visual. Só não esperava que fosse tão difícil. A busca em si já foi uma odisseia.

Minha intenção era fazer um intercâmbio em que a gente fica em uma casa de família, fala inglês 24 horas por dia, vivencia a cultura local e tem o apoio dessa família. Caso contrário, estaria completamente sozinha em um país estranho.

Meu objetivo era buscar fluência em inglês. Já falava o suficiente para uma reportagem ou entrevista, já me virava em viagens internacionais, mas não poderia trabalhar como jornalista ou atriz com a mesma desenvoltura do português. Até a sinopse de um filme baseado em minha história já tinha. Pesquisei na internet e, ao que tudo indica, sou mesmo a primeira atriz cega a atuar numa novela em todo o mundo. E Hollywood gosta tanto de histórias de superação que eu poderia ter uma chance.

Sei que esse sonho é muito, mas muito distante, para não dizer impossível. E essa história do filme não é um plano nem uma meta. É só um sonho. Como ganhar na loteria ou casar com o príncipe encantado. Tenho noção até demais da realidade e meus pés bem fincados no chão. Só quero dividir esse meu devaneio porque acho que ele ajuda a sentir e a entender minha história.

Um dos lugares que cogitei para o intercâmbio era Los Angeles, não sei se influenciada por essa coisa de Hollywood ou porque me apaixonara pela cidade, ao visitá-la com minha família na adolescência. Mas não sabia ao certo para onde queria ir. Estava aberta a sugestões. Só não queria

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ir para o frio. Apesar de ter nascido e morado em Curitiba toda a minha vida, tenho alergia ao inverno. Não queria repetir o sofrimento gelado da primavera de Nova York.

Também gostaria de ir para uma cidade em que quase não houvesse estrangeiros, para falar inglês em tempo integral, e que fosse financeiramente viável. Sabia que um intercâmbio de um ou dois meses não seria suficiente para obter fluência. Os custos de um programa assim são muito elevados. Ainda mais porque seria praticamente impossível encontrar um programa de trabalho-estudo que aceitasse deficientes visuais.

Comecei procurando agências de intercâmbio indicadas por amigos e nem perdi tempo com as que eles não tinham sido bem atendidos.

O primeiro contato era sempre receptivo. Depois, os agentes me enrolavam tanto para enviar as informações, que acabava partindo para outra. Quando falava da minha deficiência então, a coisa mudava totalmente de figura. E o fato de ser uma pessoa relativamente conhecida não me ajudou em nada.

Comecei pelas agências de Curitiba. Quando falei de minha deficiência para a primeira agência, recebi um e-mail dizendo que a empresa não tinha programas que atendessem deficientes visuais.

Parti para a segunda tentativa:

“Quero fazer um intercâmbio no exterior. Ainda não tenho certeza onde. Mas estou inclinada a ir para Los Angeles porque sou atriz e jornalista. Além do curso de inglês, quero fazer também um curso na minha área de formação. Estou aberta a sugestões, se tiver diferença de preço. Busco escolas que tenham material em Braille ou formato digital porque tenho deficiência visual. ” Era mais ou menos isso o que pedia para todas as agências.

A segunda agência até me atendeu bem, contudo, estava me oferecendo cursos tão caros que não valia a pena. Eu não pago 3 mil reais por um mês de aulas de inglês sabendo que encontro cursos por bem menos. Não pode haver tanta diferença assim entre as escolas com a mesma carga horária e planos de aula parecidos. Não tem mistério em aprender inglês. Não existe nenhum método miraculoso. O desempenho depende do aluno.

A Kaplan, uma das escolas sugeridas pela segunda agência, enviou por e-mail um questionário perguntando das minhas necessidades. Perguntou até se eu usava Braille por extenso ou abreviado; se precisaria de alguém para ensinar o trajeto da moradia à escola. Pensei: “Puxa! Como eles são detalhistas! Que bacana! Eu sabia que haveria uma escola que atendesse às minhas necessidades nos Estados Unidos”.

Depois de todo esse interrogatório, a agente informou que a escola não oferecia material em Braille nem em formato digital. Se eu quisesse fazer as aulas, seria só como ouvinte.

Se a escola não oferecia condições para deficientes visuais, qual a lógica de tantas perguntas?

– Pelo menos há um desconto no valor para eu providenciar todo o material por conta própria? – indaguei ao telefone.

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Não. Não havia. Queriam que eu pagasse o mesmo valor dos outros estudantes sem oferecer condições para que tivesse o mesmo aproveitamento. Eis o país da oportunidade, da igualdade e da inclusão que tanto se fala. Todas as outras escolas de inglês que procurei nos Estados Unidos tiveram a mesma conduta ou pior.

Para estudar algo relativo à minha área, a agência indicou a NYFA, New York Film Academy, cujo programa de um mês de interpretação ou broadcasting custava 3,6 mil dólares e poderia ser feito em Nova York ou em Los Angeles. O curso de jornalismo era só em Nova York. Meu receio era fazer um curso tão caro e não conseguir entender cem por cento do inglês.

Estava até empolgada com o programa dessa escola, mas estranhei a ausência de informações sobre os professores. Em todas as escolas do gênero, a primeira informação do site era justamente os integrantes do corpo docente e seus currículos. Pedi, por e-mail, a lista dos professores da NYFA. A resposta: “Não precisamos passar o nome dos nossos professores porque confiamos nos profissionais que trabalham conosco”.

Retruquei: “Se vocês confiassem mesmo nos profissionais que trabalham na escola, teriam orgulho em divulgar seus nomes e currículos. Mas se nem a escola confia nos profissionais com quem trabalha a ponto de não querer divulgar seus nomes aos futuros estudantes, não sou eu quem vai confiar”.

Encafifada, perguntei a um roteirista que conheço, que trabalha em Los Angeles. Ele confirmou que a NYFA não passava de um caça-níquel e que não faria bons contatos por lá.

E o intercâmbio em Los Angeles também estava ameaçado de não se concretizar por uma constatação unânime das pessoas que moraram na cidade, das agências e das próprias escolas: não dá para viver em Los Angeles sem carro. O transporte público é ruim e andar a pé é complicado. Quem não dirige está praticamente excluído. Quando fui com a família para lá, alugamos um carro. Se andávamos a pé, não tinha que me preocupar se era acessível, fácil ou seguro, porque estava acompanhada.

Perguntei aos meus pais como era a cidade e eles confirmaram que havia largas avenidas e quase não se via pessoas a pé ou esperando ônibus.

Pedi alternativas à agência, que nunca mais respondeu.

Procurei uma terceira agência, situada no Rio de Janeiro e indicada por uma colega da novela. A primeira sugestão que me deram foi a Inglaterra. Achei a ideia interessante. Ainda não havia ido à Europa. Da Inglaterra, poderia conhecer outros países e diferentes culturas. Dois fatores favoreciam: o Velho Mundo sempre me fascinou e todos que vão para a Europa dizem que lá o deficiente tem vez, tudo é acessível. Nenhum deles com deficiência, claro. Mas como eu não conhecia, estava disposta a pagar para ver. Quem está à margem da sociedade sempre tem esperança de encontrar condições melhores e lugares mais acolhedores. Seria uma oportunidade de aprender inglês e experimentar uma cultura diferente.

Estava tudo praticamente encaminhado. Só faltava decidir a cidade, a escola, a moradia. Na minha cabeça, já estava acertado: iria fechar com aquela agência. Um dia, numa de nossas reuniões via Skype:

– OK. Aguardo seu retorno com as opções.

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Desliguei e fiquei esperando. Isso foi em janeiro de 2011. Continuo esperando até hoje. Mandei e-mails cobrando, telefonava pedindo para falar com o agente, entretanto, ele simplesmente ignorou. Mais uma agência havia me abandonado.

Já que estava sozinha, decidi continuar minha busca por conta própria. Como eu queria uma cidade quentinha, concentrei a pesquisa na Califórnia. Tentei Santa Mônica, porque me apaixonei por ela. É uma cidade litorânea grudada em Los Angeles e, com certeza, foi cenário de muitas cenas de um dos meus seriados favoritos, “Barrados no baile”. Porém, não havia muitas opções de escolas de inglês. E o que tinha era mais caro que em outras cidades. Qualquer lugar próximo a Los Angeles tem um custo de vida elevado. Também não sei se contaria com a opção de transporte público.

Continuei procurando na Califórnia. Descobri muitas escolas em San Diego com programas e valores acessíveis. Pesquisei na internet e descobri que San Diego era uma cidade litorânea com boa estrutura para estudantes, transporte público funcional, opções variadas de lazer e clima agradável o ano todo. “Minha busca terminou”, pensei.

Encontrei cursos de inglês nos sites de Universidades de San Diego e comecei a mandar e-mail, já com o intuito de me inscrever. Quando mencionei que era cega, tudo parou. O responsável pelas admissões, um brasileiro, me enviou um link de uma instituição para cegos.

Eu não queria um curso separado para cegos. Segregação é uma forma de discriminação. O conceito de inclusão prega que todos os lugares devem estar adaptados para pessoas com deficiência para que elas possam interagir no meio social. Colocar deficientes em escolas exclusivas ou em grupos separados é, portanto, uma forma de discriminação. Que isso não se confunda com os centros de apoio que ensinam e providenciam material Braille e treinam deficientes visuais a usar bengala ou cão-guia. Estou me referindo a cursos de inglês, natação, a clubes, bares...

É muito cômodo para a sociedade colocar pessoas com deficiência em lugares separados. Assim, os demais não precisam sair da sua zona de conforto para se adaptar. Ninguém, contudo, está livre de adquirir uma deficiência, mesmo que temporária. Uma perna quebrada, por exemplo. Só porque uma pessoa ficou deficiente tem que ser banida para um mundo paralelo do tipo “deficientecity”?

Por curiosidade, entrei no site da instituição para cegos de San Diego. Como eu suspeitava, ela não oferecia cursos de inglês. Conforme toda a instituição do gênero ensinava deficientes visuais a usar bengala e a realizar atividades cotidianas como cozinhar e lavar roupa. E o atendimento era exclusivo para americanos.

A única coisa que poderia me interessar em uma instituição para cegos era o material em Braille e aulas de orientação e mobilidade para me locomover sozinha na cidade. Serviços que, provavelmente, não ofereceriam a estrangeiros. Os americanos são bastante fechados quando se trata de prestar assistência a pessoas de outras nacionalidades. Quando procurei treinamento para cão-guia, pesquisei instituições no país inteiro. A única que atendia estrangeiros, desde que se tivesse inglês fluente, era a de Smithtown, onde treinei meus dois cães – Higgans e sua antecessora, Tyra.

Voltei a procurar o contato da escola de San Diego, dizendo que a instituição que ele me indicara não oferecia curso de línguas. Queria estudar inglês e não coisas que já sabia. Ele insistia

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que a instituição oferecia sim curso de inglês. Achei melhor encerrar o assunto. Não iria pagar por uma escola que não queria me atender.

Parti em busca de outras escolas, em outras cidades. Mas a deficiência visual era uma barreira maior para as escolas que para mim mesma. Fui enfrentando rejeição após rejeição. Ou as escolas nem queriam me aceitar, ou não ofereciam material adequado para o estudo ou mandavam procurar instituições para cegos. Até um amigo que mora em Washington propôs que eu procurasse instituições para cegos. Por desencargo de consciência, procurei. Não encontrei nenhuma que ensinasse inglês.

Tentei me aconselhar com uma dessas instituições sobre escolas que incluíssem deficientes visuais e sobre a legislação. Recebi um e-mail dizendo que dificilmente iria encontrar as condições necessárias nos Estados Unidos, que as escolas iriam sempre se esquivar de receber um estudante com deficiência; por mais que existisse a lei, um processo poderia durar anos e por não ser americana, garantir meus direitos por vias legais seria inviável.

Contei para um amigo cego sobre a rejeição das agências e escolas. Ele me recomendou não mencionar a deficiência visual. Pelos direitos do consumidor, aqui ou nos Estados Unidos, as escolas seriam obrigadas a atender minhas necessidades e providenciar o material. Concordo com ele e é o que faço normalmente, sobretudo em relação ao cão-guia. Nós, usuários de cão-guia, aprendemos na prática que a pior coisa que podemos fazer é avisar com antecedência que vamos a algum lugar com ele. A pessoa não escuta o termo “cão-guia”. Só ouve a palavra “cão”. Mencioná-lo de antemão é criar um problema que não existe. A lei nos garante o direito de ir e vir com nossos cães-guia. Portanto, não precisamos pedir uma permissão que já temos.

No caso de um intercâmbio, entretanto, a situação é diferente. Como eu iria atravessar o mundo sem ter a certeza de que teria as condições necessárias para viver e estudar? E a terra do Tio Sam não é como no Brasil, onde as pessoas ajudam. Lá, é cada um por si. Além do mais, para as agências brasileiras, eu não poderia nem pensar em esconder minha deficiência, porque a maioria das pessoas com quem falava me conhecia da televisão.

Conversei com uma amiga que mora em Santa Bárbara, Califórnia. Ela disse que eu não precisava procurar mais, pois havia um curso de inglês gratuito para estrangeiros na universidade local.

Mais uma vez, encantei-me só com o que encontrei na internet e com os relatos de minha amiga. Santa Bárbara tinha as belezas naturais e a tranquilidade de uma cidade do interior, mas com infraestrutura de cidade grande. Tudo que eu precisava para relaxar. Tratava-se de uma cidade de ricos empreendedores e, portanto, cara. Só valeria a pena ir para lá caso o curso fosse realmente gratuito. Na página da universidade na internet não havia informação sobre o curso de inglês. Em resposta ao e-mail que enviei, informaram que só havia um curso de inglês: o universitário, para formar professores. E não era de graça. Provavelmente, havia um curso gratuito só para estrangeiros residentes nos Estados Unidos. Pessoas que não sabiam o idioma, mas que haviam imigrado em situação legal.

Em visita ao Brasil, minha amiga garantiu que o curso existia. Ela mesma havia feito. Prometeu que pesquisaria quando estivesse de volta a Santa Bárbara. Como ela estava passando por uma série de problemas pessoais, não cobrei.

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Continuei minha busca por outros meios e acabei me deparando com um convite para ir ao Salão do Estudante. O salão nada mais é do que uma feira onde as agências de turismo e intercâmbio vendem seu peixe. Tentei conversar com algumas, mas a concentração de estudantes por estande era tamanha que só me permitiu pegar os contatos. Foi impossível conversar com alguma agência durante o evento.

Para não dizer que não falei com ninguém, travei contato com uma representante da Universidade de Nebraska (EUA). Ela só falava em inglês e, por isso, era menos assediada. Foi receptiva, porém, não tinha certeza se a universidade atendia às necessidades de pessoas com deficiência. Saí de lá muito animada. Enviei e-mails para ela e para outros contatos que encontrei no site. Nenhuma resposta.

Minha mãe insistia que eu não podia fazer essa busca sozinha. Mais seguro e menos trabalhoso seria procurar uma agência.

– Acontece que as agências não querem me atender. Você está vendo como as agências fogem quando digo que tenho uma deficiência.

– Mas aquela mulher da agência parecia tão boazinha. Eu senti firmeza quando ela disse que encontraria um lugar bacana para você.

Minha mãe referia-se a uma moça que encontrei no Salão do Estudante.

– Tá bom, mãe. Eu vou procurar. Mas é só por desencargo de consciência, porque aposto que ela vai fazer o mesmo que as outras agências.

Não deu outra. Perdi umas três horas na agência. A dona me atendeu muito bem. Saí animada. Era só decidir para onde ir. Além da Inglaterra e dos Estados Unidos, ela havia me apresentado alternativas em Vancouver, no Canadá. Mas me abandonou na primeira dificuldade que a agência encontrou com a escola.

Voltei à pesquisa, agora focando na Inglaterra. Pelos e-mails que comecei a trocar com escolas de atores, parecia que os britânicos eram mais receptivos que os americanos. Os cursos de interpretação também eram mais acessíveis. Não havia falado sobre a cegueira com nenhuma escola de inglês porque ainda não havia decidido com qual ficar, mas nas de interpretação não encontrei obstáculo.

Até li uma reportagem sobre um canal de tv britânico, que, atendendo reivindicações do público, contratou uma atriz cega para um de seus seriados. Coincidentemente, sua participação começou dias depois que estreei em “Caras e bocas”. Isso me motivou. Quem sabe lá meu trabalho seria valorizado? Além disso, a Europa tinha fama de ser mais avançada em relação às deficiências, principalmente por causa das vítimas de guerra.

Na minha festa de aniversário em um bar de Curitiba, em fevereiro de 2011, minha amiga Sandra me apresentou Renata, que estava prestes a se mudar para Londres. Renata demonstrou interesse em dividir moradia comigo. Parecia que nos conhecíamos há muito tempo e nos demos muito bem. Afinamos no papo. Só podia ser um sinal para ir à Inglaterra. Só não tinha certeza se queria ir a Londres. Escutara que havia muito estrangeiro por lá e poderia não ser o melhor lugar para alcançar a fluência no inglês. A descrição de pequenas cidades do interior da Inglaterra, sem o estresse da cidade grande, já havia me deixado com água na boca. O problema é que seria mais difícil encontrar um curso de teatro nas cidades menores.

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O fator Renata me empurrava ainda mais para Londres, já que os custos, divididos, seriam mais baixos. Até porque o namorado dela já morava lá. Repartiríamos as despesas por três. Parecia que o universo estava conspirando a favor de Londres. E nunca gostei de contrariar os sinais que o universo me mandava.

Renata iria em abril. Eu só pretendia ir em junho, quando tinha uma palestra para dar em Portugal, e aproveitaria a mesma passagem para ficar na Europa. Sandra também estava se programando para se transferir para Londres. Aguardava apenas a abertura de uma vaga no banco em que trabalhava. Sentíamo-nos mais seguras sabendo que teríamos com quem contar.

A palestra em Portugal não deu certo. A organização do evento deixou de me informar corretamente sobre a documentação necessária para que eu entrasse no país com o cão-guia. Se não fosse por Marta, assessora da TV Globo em Portugal, que resolveu checar a burocracia, correria o risco de desembarcar em Lisboa e ter que voltar ao Brasil. Sem um exame específico, feito três meses antes, Higgans não seria admitido no país.

A experiência com Portugal ligou o alerta: era preciso correr atrás da documentação para entrar na Inglaterra. Nenhuma agência soube informar. Aliás, não sei por que existem agências, se elas só fazem o feijão com arroz. Pesquisando por conta, não teria nenhuma garantia de que iria para uma boa escola. Mas quem me garantiria que alguma agência iria resolver qualquer coisa a quilômetros de distância?

Eu achava que, para ir à Inglaterra com meu cão-guia, os procedimentos eram os mesmos de Portugal. Eram bem piores. Um amigo que conhecia muitos usuários de cão-guia da Europa havia dito que a Inglaterra tinha algumas exigências absurdas. Eu não estava acreditando. Afinal, a ideia do cão-guia nasceu na Europa.

Por intermédio da instituição americana que treinou meus cães, consegui contato com o Defra, departamento britânico responsável pela importação de animais. As exigências eram tantas e tão absurdas que achei que eu não estava entendendo o inglês. Consultei o Defra por e-mail. Resumindo a ópera, pelo nível de exigência, não dá para ir à Inglaterra com um cão-guia oriundo do Brasil.

Entre uma série de absurdos, o cão-guia deve fazer um teste de sangue para raiva com pelo menos seis meses de antecedência da entrada no território britânico. Mesmo assim, o cão não poderia entrar na Inglaterra sem ficar seis meses em quarentena em um canil de lá ou passar o mesmo período em um país que está relacionado numa lista de origens que podem exportar animais para a Inglaterra, do qual o Brasil não faz parte. E o usuário ainda deve pesquisar que linhas de transporte aéreo, terrestre, ferroviário e aquático aceitam levar o cão-guia.

Mas isso não é nada! Até 2004, os cães de serviço que viajavam de avião para ou pela Inglaterra tinham que ficar no porão. No Brasil, desde 2000, quando passei a andar com cão-guia, mesmo sem uma lei, nunca tive problemas para viajar com ele nas cabines dos aviões.

Quando descobri que não poderia mais estudar na Inglaterra, meu mundo caiu. Se meu cão-guia não pode entrar na Inglaterra, eu também não. Nem entrar nem me locomover. O que iria fazer? Estava sendo rejeitada nos Estados Unidos. Na Inglaterra, onde havia encontrado receptividade maior, a porta estava fechada.

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Capítulo 3

Que Tal Vancouver?

Minha irmã sempre falava que queria estudar em Vancouver porque era uma das melhores cidades do mundo, e o Canadá era receptivo a estrangeiros. Nem sequer havia sonhado com o Canadá. Só pensava em morar na Califórnia. No meu devaneio, andava pelo calçadão de Santa Monica e, de repente, um homem me parava para perguntar sobre o cachorro.

– Você é de onde?

– Do Brasil.

– Ah! E você trabalha aqui?

– Não. Estou estudando inglês.

– Mas o seu inglês é muito bom.

– Obrigada. Mas não é o suficiente para a minha profissão.

– Em que você trabalha?

– Sou atriz e jornalista.

– Que legal! Você já chegou a fazer alguma peça?

– Sim. E também me tornei a primeira atriz cega do mundo a atuar numa novela.

– Que maravilha!

– E você, trabalha em quê?

– Também sou ator.

– É? De teatro ou televisão?

– Sabe aquela série 24 horas?

– Claro que sei. Sou apaixonada por Jack Bauer.

Silêncio. Ele dá uma risadinha e diz meio sem jeito:

– Pois é. Eu sou Kiefer Sutherland, que faz Jack Bauer.

Reconheço a voz rouca. Meu coração dispara...

Hora de acordar. Eu não iria para a Califórnia. Precisava procurar outro lugar. Se tinha que ser o Canadá, então que fosse uma cidade de clima mais agradável. Não estava a fim de ficar doente no frio de Toronto ou Montreal. Além da alergia, minha rinite ataca e tenho muita dor nos

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olhos. Também não dava para escolher uma cidade que falasse francês. Vancouver atendia a todos esses requisitos. Comecei a pesquisar escolas por lá.

Na busca por informações, esbarrei em uma agência de brasileiros que residiam em Vancouver. Meu contato com a agência era Geraldo. Pareceu-me bastante confiável. Ele me contou que estava em Vancouver com o irmão, Cássio, havia cinco anos. Começaram com um diário de viagem a Vancouver na internet. Depois, passaram a dar dicas aos visitantes brasileiros. A coisa deu tão certo que as empresas começaram a procurar o site para anunciar, e os irmãos o transformaram num negócio. Com o tempo, foram fazendo parceria com escolas de inglês e passaram a levar brasileiros para a cidade. Seus pais se mudaram para lá e foram ajudar na empresa.

– Como passamos por todas as dificuldades de um estudante estrangeiro, já sabemos o caminho das pedras e podemos prestar um serviço personalizado ao aluno, dando a ele todo o suporte necessário –, explicava Geraldo, transmitindo confiança.

Falei de minha deficiência visual e sobre minhas necessidades, principalmente quanto ao material de estudo. Ele se mostrou tão receptivo e com tanta boa vontade que senti confiança. Se a Inglaterra não aceitava meu cão-guia e as escolas americanas não faziam questão de me atender, eu iria para Vancouver.

Geraldo sugeriu uma escola onde ele estudou com o irmão, pois eu poderia ter um atendimento mais personalizado, por se tratar de uma escola pequena. Pesquisei no site e acatei a sugestão.

Ele garantiu que, além do material em formato digital, dar-me-ia todo o suporte de que precisasse. Cada vez que reclamava de alguma coisa, ele procurava corrigir. Quando a escola quis cobrar taxa extra pelo material, contestei. Geraldo conseguiu fazê-los mudar de ideia. Também me garantiu que encontraria uma moradia que ficasse na Zona 1, o mais próximo possível do centro e perto da escola. Zona 1 nada mais é do que a própria cidade de Vancouver. Zonas 2 e 3 são as cidades em torno.

Até setembro Vancouver tem um clima agradável de verão, com temperaturas que variam de 14 a 24 graus Celsius. Eu queria estudar três meses sem precisar me preocupar com o inverno rigoroso do Hemisfério Norte. Tinha que me decidir logo. Já estávamos em maio.

Precisava aproveitar minha licença do emprego no Banco do Brasil. Se as regras não mudassem, poderia continuar de licença por tempo indeterminado. Mas elas poderiam mudar a qualquer momento.

Minha irmã vivia dizendo que o Canadá incentivava a imigração por falta de mão de obra. Na época, o “Bom Dia, Brasil”, da Globo, exibiu o ministro canadense oferecendo pessoalmente no Brasil incentivos educacionais para quem quisesse trabalhar no Canadá. O programa, contudo, não previa empregos para atrizes e jornalistas. Apesar disso, talvez Vancouver finalmente me desse a oportunidade que vinha buscando.

Não havia bolsas de estudo na minha área em Vancouver. Encontrei em Montreal um programa de trabalho de desenvolvimento social com ajuda de custo, que buscava pessoas empreendedoras e com histórias de vida interessantes, entretanto, era restrito a quem tivesse menos de 30 anos. Eu estava com 31. Procurei o governo canadense para ver se tinha algum

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programa de trabalho ou bolsa de estudo para pessoas com deficiência. Nada. Entrei em contato com o consulado e a embaixada canadenses no Brasil. Só me passaram uma lista de escolas de inglês recomendadas. A escola que Geraldo me indicou estava na lista, deixando-me mais segura.

Mesmo sem ter me ajudado do jeito que queria, o governo canadense, a embaixada e o consulado foram solícitos. Bem diferente da hostilidade americana. Isso me animou. Passei a pesquisar o mercado artístico e as escolas de atores. Li que Vancouver era considerada a segunda Hollywood. Muitas produtoras iam para lá gravar filmes e seriados como “Crepúsculo” e “Sobrenatural”. Também encontrei algumas escolas de interpretação bem mais em conta que nos Estados Unidos. Todas muito receptivas.

Mandei currículo para uma Faculdade de cinema, a Vancouver Film Academy. A assistente de um dos diretores ficou tão impressionada com minha trajetória que, quando perguntei se haveria possibilidade de alguma bolsa de estudo, ela respondeu que sim e que eu poderia conversar sobre isso com um dos diretores por telefone. Fiquei ansiosa. Mas na entrevista o diretor disse que a escola não oferecia bolsas.

O curso de inglês ia das nove da manhã às duas e vinte da tarde. Alguns dos cursos de interpretação que encontrei eram à noite. Queria fazer um mês de curso de inglês para desenferrujar em paralelo ao curso de interpretação. Depois queria ficar só no de interpretação e procurar algum trabalho voluntário ou um estágio não remunerado em um veículo de comunicação para assimilar a linguagem jornalística em inglês.

Apesar de animada, estava em dúvida se deveria ou não ir para lá. Ainda sonhava com os Estados Unidos. Mas de que adianta eu querer ir para um país que não me quer? Pensava, divagava, ponderava, conversava com minha mãe e minha irmã.

Minha mãe não queria opinar. Sabia que era meu sonho tentar a vida no exterior e queria que ele se realizasse. Ela só receava uma eventual falta de idoneidade da agência. Coisa de mãe. Eu concordava. Claro que seria melhor viajar por intermédio de uma agência que já tivesse atendido algum conhecido – se alguma delas quisesse me atender.

O clima também me afligia. Geraldo e a internet me diziam que a temperatura em pleno verão estava na casa de 15 graus durante o dia. Que verão é esse? Com 15 graus em Curitiba eu já uso casaco de lã. Tinha medo de trocar minha cidade por uma Curitiba canadense. Não queria pagar para sofrer. Telefonei para uma amiga, que já havia morado em Vancouver, e ela me garantiu que a sensação do clima é diferente da de Curitiba. Segundo ela, com 15 graus a cidade é agradável.

– O clima não vai ser problema, Dani! Eu sou de Maringá, que é mais quente que Curitiba, e não tive problema com clima. Os lugares são todos climatizados e você está indo no verão. Ai, Dani! Estou com inveja de você ir para Vancouver. Amei aquela cidade!

Depois de pensar e repensar, no início de junho fechei com a agência dos brasileiros para estudar, em princípio, um mês de inglês, ficando em uma casa de família. Tanto Geraldo quanto a despachante que ele indicou informaram que era preciso fazer a matrícula na escola antes de mandar a papelada para pedir o visto. Na ansiedade de viajar, paguei logo a matrícula e mandei a carta de aceitação da escola junto com a documentação para o visto.

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Há duas formas de se obter o visto canadense: indo pessoalmente ao consulado, em São Paulo, ou pagando um despachante. Ao contrário do consulado americano, o visto não é enviado pelo correio. Para fazer pessoalmente precisaria viajar duas vezes a São Paulo. Via despachante eu só teria que pagar, preencher os formulários, enviar a papelada pelo correio e aguardar.

O estranho é que, para o visto de estudante, é preciso ter carta de aceitação de universidade comprovando que a pessoa vai estudar por mais de seis meses. De qualquer forma, eu não teria visto de estudante. Meu visto seria de turista, que dura seis meses. Ou seja, essa história de ter que fazer a matrícula para depois pedir o visto é uma forma de as escolas/agências garantirem alunos ou pelo menos seu dinheiro. A taxa de matrícula não é reembolsável. Quem desiste do curso, perde o dinheiro.

Duas semanas antes da viagem, Geraldo me informou que a escola estava com dificuldade para encontrar uma moradia que aceitasse meu cão-guia. Aí pensei: “a escola deve estar falando para as famílias que uma estudante quer se hospedar na casa deles com um cachorro, sem explicar direito a situação”. Se os canadenses tem uma cultura semelhante à dos americanos, devem estar habituados com cão-guia e sabem que eles não dão trabalho. Além disso, cão e estudante nem iriam ficar muito tempo em casa.

Você pode pensar: os estabelecimentos públicos, o dono do prédio onde moro são obrigados por lei a aceitar cães de serviço. Mas nenhuma casa é obrigada a fazê-lo. Você está certo, tomando sua casa ou apartamento como propriedade particular. Entretanto, a partir do momento em que alguém aluga quartos em sua propriedade como um negócio, está sujeito a cumprir a lei, tal como qualquer estabelecimento comercial.

Para ter certeza mais do que absoluta de meus direitos, procurei a lei do cão-guia na província da Colúmbia Britânica, onde fica Vancouver. Era exatamente o que eu pensava.

Nesse meio tempo, Geraldo avisou que haviam encontrado uma casa para mim, mas ela ficava na zona 3, em Surrey, e que eu levaria 45 minutos da casa até a escola. Contestei. Ele me prometera uma casa na zona 1. Geraldo então me disse para conferir no site da agência que as moradias ficavam em média a 30 minutos da escola. Logo, 45 minutos não era tão distante. Argumentou que a casa era boa e o acesso, por trem e ônibus, era fácil. A família estava ansiosa em me receber e não havia motivo para não me adaptar.

O problema é que, quando as pessoas dizem que chegam a um lugar em 45 minutos, a pessoa com deficiência vai demorar pelo menos uma hora. Nós tomamos muito mais cuidado ao atravessar a rua, não podemos correr se o ônibus está vindo, não encontramos facilmente um lugar para nos abrigarmos da chuva. A agência começava a descumprir o prometido. Eu não estava gostando, porém, a vontade de viajar era muito grande.

– E se eu não me adaptar? – perguntei a Geraldo ao telefone.

– Não tem por que você não se adaptar. A casa é boa, a família é receptiva. Tem tudo para dar certo.

– Mas sempre há uma possibilidade de eu não me adaptar. E daí, o que acontece?

– Aí, a escola tem três dias úteis para encontrar outra moradia. Se você quiser um lugar na frente da escola, pode ficar num flat por 1.500 dólares canadenses por mês.

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– Mas estou pagando 750 por mês. E agora você me oferece uma alternativa que custa o dobro? Fica fora do orçamento.

Outra coisa que estava me preocupando era a presença de um gato e um cachorro de grande porte que ficavam dentro de casa. Poderia ser um problema. Se o cão da casa não fosse bem educado e se as pessoas dessem comida de gente para ele, meu cachorro poderia adquirir maus hábitos, que seria praticamente impossível de tirar depois. Antes de comprar a passagem, entrei em contato com Mônica, a dona da casa. Era uma mulher de cerca de 40 anos, que vivia com o marido. Uma estudante canadense de 22 anos também alugava um quarto na casa.

Expus para ela todos os meus receios. Ela me tranquilizou. Disse que seu cão era bem educado, que não davam comida de gente para ele nem deixavam ração à vontade. Além do mais, a casa era dividida em dois andares. Os estudantes ficavam com a parte de cima. O casal, com a de baixo. Perguntei também sobre o clima.

– Agora é verão aqui.

– Mas vi que as temperaturas no verão variam de 15 a 20 graus. Vocês chegam a usar shorts e camiseta no verão?

– Sim. Claro. Você só precisará de um casaquinho, pois de manhã e à noite pode esfriar um pouco. E você também vai precisar de botas a prova d’água e capa de chuva, porque chove muito.

– Bem. Vou levar as botas que tenho aqui. Mas não sei se são apropriadas.

– Não se preocupe. Tudo que precisar a gente compra aqui quando você chegar – ofereceu-se, solícita.

– E o transporte para a escola como é?

– Você só tem que pegar um ônibus perto da nossa casa, descer na estação, pegar o trem e, em 25 minutos, você está no centro. Mas provavelmente, eu vou te levar à estação, porque tenho que trabalhar todos os dias.

A última coisa que queria era ir para o outro lado do mundo para depender dos outros.

– É claro que toda carona é bem-vinda. Mas não quero que se sinta obrigada a me levar para lá e para cá. Quero aprender o caminho de ir e voltar para casa, pois não gosto de depender de ninguém – expliquei.

Desliguei o telefone com uma excelente impressão de Mônica. Sentia que estava sendo esperada e que seria bem recebida.

Uma semana antes da data prevista da viagem, ainda tinha pontos de interrogação dentro de mim e não sabia se tinha feito a escolha certa. Isso me incomodava. Sempre tomei minhas decisões sabendo exatamente o que queria. Desde o fim da novela, no entanto, meu barco estava à deriva no meio do oceano. Cada hora o vento me levava para um lado, sem chegar a lugar nenhum. Pela primeira vez, não sabia que caminho tomar. Estava assim havia um ano e meio. Implorava, nas minhas orações, por um sinal. Precisava fazer alguma coisa. Precisava direcionar meu barco para alguma direção. Depois de tanta procura, fui levada a Vancouver. Talvez esse fosse o sinal que esperava. Por isso, mesmo cheia de dúvidas, decidi ir.

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Capítulo 4

Preparativos Para A Viagem

É tanta coisa para se fazer numa viagem internacional que a gente se estressa logo nos preparativos. Ainda mais por não saber se iria ficar um, três ou seis meses. Para obter a fluência em inglês da forma como queria, precisaria de uns seis meses. Não sabia, contudo, se o dinheiro seria suficiente. Como nunca tinha ido ao Canadá e não conhecia nada sobre sua cultura, estava com receio de não me adaptar, principalmente ao clima. Se as coisas não saíssem como esperava, ficaria apenas um mês.

Fiz uma planilha de custos para ver quanto gastaria por mês aproximadamente:

1.600 dólares canadenses de escola de inglês e casa de família;

150 de transporte público;

200 de alimentação fora de casa;

100 para ração e cuidados com o cão;

250 para um dos cursos de teatro.

Total de 2.300 dólares canadenses por mês.

Cerca de 4 mil reais na época. Em espécie ou cartão de crédito a diferença é pequena. Para mim, o cartão é a melhor alternativa, pois as cédulas são difíceis de identificar. Mas é sempre bom ter dinheiro em espécie, em qualquer lugar do mundo.

O problema do cartão de crédito é a variação cambial, que pode trazer más surpresas depois da viagem. Há o Visa Travel Money (VTM), que você carrega com quantos dólares quiser, no entanto, só estava disponível em dólar americano, então era difícil saber como iria funcionar.

Resolvi comprar 500 dólares canadenses em espécie; 500 dólares americanos no Visa Travel Money e o restante pagaria com o cartão de crédito. Se precisasse de mais dinheiro em espécie, era só fazer um saque pagando uma taxa pequena e 2,5% de IOF.

Pesquisei a passagem com várias agências. Como não precisava viajar em um dia específico, pedi que verificassem a diferença de valor de um dia para outro. Ninguém me respondeu, a não ser a agência de uma amiga. Paguei 2.700 reais pela passagem. Iria de Continental e voltaria de United Air lines.

Como a grande maioria dos medicamentos tem venda controlada no exterior, era necessário comprar os meus remédios para o olho e para a dor no cóccix. Ainda tive que pensar em todas as dores que poderia ter, principalmente, dor no olho, que sempre me incomoda. Na dúvida, comprei um estoque para seis meses. Lá se foram 500 reais na farmácia.

Mas não havia pensado em como levar todos esses remédios. Em cima da hora, a agente de turismo informou que não poderia levar tantos medicamentos na bagagem de mão sem receita. Um dos remédios tinha mais de 100 ml. Portanto, não poderia ser levado para a cabine do

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avião. Não havia mais tempo para pedir receita médica. Também ouvira o boato de que o raio-X poderia alterar as propriedades de alguns deles. Precisaria colocar minha farmácia particular nas malas despachadas. Tremi só de pensar que poderiam se extraviar. Peguei uma caixa de cada um, abri, coloquei o quanto coube de cartela de medicamento, lacrei, coloquei na bagagem de mão e pensei: seja o que Deus quiser. Com medo do raio-X, embrulhei cada frasco e cada caixa em papel alumínio, que ouvira dizer que protegeria o conteúdo da radiação.

Como não sou do tipo consumista, precisava levar tudo que fosse usar no dia a dia: roupa, perfumaria, calçado. Tem gente que vai com a mala vazia e compra tudo no exterior. Se encontro algo diferente ou mais em conta, tudo bem. Mas sair daqui já com o objetivo de consumir? Prefiro deixar meu dinheiro para possíveis emergências, imprevistos, para pagar algum conforto, divertir-me, visitar lugares diferentes e comer em bons lugares.

Conforme o contrato da casa de família, a lavanderia estava incluída e não precisaria de muita roupa. O problema era que eu não conhecia o clima nem sabia quanto tempo iria ficar. Tive que levar o suficiente para cada estação, pois não estava acreditando que iria usar roupas de verão com 15 graus.

Como sempre faço para viajar, fiz minha bagagem o mais básica possível: calçados que combinassem com tudo, jaquetas, casacos, calças, bermudas e saias de cores neutras ou jeans. O que mais me doía era não poder levar muita roupa colorida para não ter que levar mais e mais para combinar. Tudo em nome da praticidade. Então, abusei um pouquinho nas joias e bijuterias. Levei meus quartzos rosa, minha ametista e o resto era tudo cristal e ou prata, pra combinar com tudo.

Como iria voltar à vida de estudante, comprei uma mochila pink para o netbook e uma bolsinha tiracolo para documentos, cartões e dinheiro.

Falando em computador, não sei o que havia com meu Outlook, o programa de e-mails que usava. Os contatos não apareciam. Como iria me comunicar com o Brasil sem os contatos dos amigos? Duas semanas antes de viajar, mandei o netbook para o técnico, que não descobria o problema de jeito nenhum. Mandei formatar. Para quê? Acabei tendo problemas ainda maiores. O som parou de funcionar. Ficava tremendo e travando. Sem som, não uso meu programa de voz e o netbook se torna inútil. Precisaria dele para as aulas de inglês e para me comunicar com o Brasil. Sempre que viajo falo com minha família via Skype e posso ligar para qualquer telefone por valores mais acessíveis.

Dois dias antes de viajar, apelei para o meu amigo Marcelo, que, além de trabalhar com informática, também tem deficiência visual e entende muito sobre programas de voz. Ele havia enfrentado o mesmo problema e a única solução que encontrou foi trocar o sistema Windows XP pelo Windows 7.

O técnico fez isso e resolveu o problema do som, mas surgiu outro: se para quem enxerga já é difícil lidar com um sistema operacional diferente, imagine para nós, que, além de aprender a lidar com um novo sistema ou programa, temos que descobrir como o leitor de tela funciona com ele. E esses leitores nem sempre funcionam com todos os programas. Chegando ao Canadá, precisaria aprender a mexer com um novo ambiente de computador, fora todas as outras adaptações.

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Todo profissional que ainda não encontrou seu espaço deve ter seu currículo atualizado e sempre debaixo do braço, certo? O currículo de quem trabalha com teatro e televisão é o videobook. O meu estava desatualizado. Um mês antes da viagem, havia estreado um stand-up e precisava incluí-lo no DVDbook, junto com as cenas da novela. Lá foi mais um tempo procurando produtora para editar meu material de trabalho.

Viajar ao exterior com cão-guia dá trabalho. É preciso estar com as vacinas em dia e apresentar o CZI, Certificado Internacional de Zoonoses. O CZI é emitido pelo veterinário do Vigiagro (sistema de vigilância agropecuária) que estiver de plantão no aeroporto. No site do Ministério da Agricultura está escrito que para tirar o documento é preciso um atestado de saúde emitido por um veterinário com no máximo três dias de antecedência da entrada de sua papelada. Este documento é válido entre cinco e dez dias, contando a data de chegada ao país de destino. Como iria chegar ao Canadá numa sexta-feira, poderia pegar o atestado com o veterinário na sexta anterior e dar entrada no CZI na segunda.

Telefonei para o Vigiagro do aeroporto a fim de marcar hora para emitir o CZI. O veterinário de plantão disse que, pela data da minha viagem, eu deveria dar entrada no documento na terça-feira com um atestado emitido no mesmo dia pelo veterinário do meu cão. Falei das orientações do Ministério, mas o plantonista insistiu que estava errada. Não discuti. Preferi fazer tudo na correria a provar que tinha razão.

Na terça-feira fui ao veterinário, no outro extremo da cidade, apanhei o atestado e segui para o aeroporto, em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba.

Em Vancouver, iria precisar de ração para Higgans, por isso precisaria encontrar uma loja que vendesse a ração que ele estava acostumado a comer. Mudar a alimentação do cachorro pode causar problemas de saúde. Quem conseguiu a informação foi um amigo americano, que alimenta seus cães com a mesma ração. O pet shop em que ele comprava tinha uma filial em Vancouver. Porém, ao contrário do que ocorria nos Estados Unidos, a unidade canadense não vendia pela internet nem fazia entregas. Teria que pedir à minha host mother[1] para ir comprar comigo. A bagagem de Higgans incluía remédios contra pulga, escova, pasta de dente, produto para limpar as orelhas, xampu, algum brinquedo, uma capa para o frio, capa de chuva, protetor de ouvido– para o caso de irmos a um show – e toalhas para banho. Mesmo tendo encontrado lugar em Vancouver que vendesse a ração que meu cão-guia usava, precisava levar um pouco para misturar nos primeiros dias. Por mais que tenham a mesma formulação, produtos de fábricas diferentes podem apresentar variações. E o cão é suficientemente sensível para percebê-las e ter algum desarranjo intestinal. Como as malas já estavam estourando de coisas, coloquei o máximo de ração que pude nos bolsos laterais de cada mala. Assim, se a alfândega quisesse apreender, não seria preciso abrir a bagagem.

A vida prática também tem suas exigências. Uma delas foi pedir ao banco para habilitar o cartão para uso no exterior. Outra foi fazer uma procuração para que alguém cuidasse da minha conta no Brasil. Se precisasse resolver alguma coisa, não teria como fazer de lá pelo telefone nem pela internet.

Por fim, a aparência. Antes de viajar fui fazer depilação, manicure e cortei o cabelo para não precisar fazer com algum profissional desconhecido no exterior. Imagine a correria para deixar tudo em ordem em um mês.

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Levei uma tarde toda só arrumando as malas, ainda que com a ajuda de minha mãe. É outra coisa que dá trabalho. Tem que organizar, separar em nécessaire, dobrar as roupas com cuidado. Você coloca os remédios numa nécessaire, não cabe. Muda para outra. E sempre fica faltando uma nécessaire para por alguma coisa, que vai num pacote plástico mesmo. Para ganhar espaço, deve-se colocar cada pé de sapato em um plástico. Se você coloca o par no mesmo plástico, fica mais difícil encaixar na mala. Arrumar bagagem é um jogo de quebra-cabeça. A gente precisa pensar em tudo que vai levar para poder otimizar ao máximo o espaço na mala. Se comprasse um alfinete em Vancouver, precisaria comprar outra mala. E lá queria comprar um notebook, perfume, roupas e sapatos de inverno para usar em Curitiba, já que no Brasil quase não temos oferta de vestuário e calçado adequados para o frio da região Sul. Havia pensado em levar uma mala menor, vazia, para trazer essas coisas, mas esbarrei no limite de dois volumes para despachar. A agência de turismo não sabia informar quanto a empresa aérea cobraria pelo volume extra. Para que comprar passagens por intermédio de agências, se temos que correr atrás das informações por conta própria?

Nota 1: Host mother: dona da casa que hospeda o estudante

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Capítulo 5

O Dia D

Da porta da minha casa até a da família canadense seriam 30 horas de viagem. Detalhe para o qual só fui me tocar, quando já estava no meio da minha viagem interminável.

Havia reservado um voo para São Paulo às 16 horas. Chegaria uma hora depois e iria esperar até as 21 horas para embarcar para Houston, no Texas (EUA). Ao confirmar o voo, fui informada de que não havia mais lugar no voo reservado para São Paulo. precisaria pegar o avião das 15 horas.

Se a agente tivesse me falado que não conseguiria segurar a reserva sem pagamento prévio, eu teria pago a passagem na hora da reserva.

Pode parecer um detalhe, mas para quem viaja com cão-guia, o tempo é precioso. Para não ter vontade de ir ao banheiro durante o voo, o cão não pode comer 12 horas nem beber água seis horas antes. Além disso, depois da sala de embarque, os aeroportos não têm nenhuma área onde os cães-guia possam se aliviar. Higgans come duas vezes por dia, de manhã e à tarde. Naquele dia, dei toda a ração do dia por volta das nove da manhã, conforme orientou o veterinário. Deixei água à vontade, até a hora de sair de casa e ofereci mais um pouco no aeroporto de Curitiba.

Chegando a Guarulhos, fui muito bem atendida. A fim de me deixar mais protegida, a TAM encaminhou-me à sala VIP. Pensei em usar a internet, mas era preciso pagar pelo acesso e estava tão cansada que não tinha nem vontade para isso. Fiquei quietinha “assistindo” televisão até as seis e meia da tarde, quando fomos para o check-in da Continental Airlines.

Nas companhias brasileiras era praxe reservar os primeiros bancos para idosos, gestantes, mães com crianças e pessoas com deficiência, bem como reservar um assento para o cão-guia, caso a aeronave não estivesse lotada. Além de mais espaçosa, essa fileira conta com uma máscara de oxigênio a mais. Serve tanto para o cão-guia quanto para crianças de colo. Quando as companhias não conseguem colocar um usuário de cão-guia na primeira fileira, ele deve ficar com uma poltrona vazia ao lado, para ter espaço e uma máscara em caso de necessidade. Expliquei tudo isso para a minha agente de turismo, que me garantiu que todos os procedimentos seriam observados. No check-in, contudo...

– As primeiras fileiras não são reservadas para esses casos, pois esses assentos são vendidos por um valor mais alto. De qualquer forma, eu não poderia colocar a senhora nelas, porque todas as fileiras localizadas na frente desta aeronave não poderão ser usadas, por problemas na porta de emergência. – informou-me o atendente da Continental Air Lines.

– Onde você vai me colocar?

– Na primeira fileira vaga.

– Mas você vai bloquear a poltrona do lado para o meu cão-guia?

– No momento, a poltrona ao seu lado está vaga. Mas eu não consigo bloqueá-la.

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Resumindo: Se aparecesse outro passageiro, viajaríamos os três apertados, durante dez horas, porque Higgans ocupa o espaço dos meus pés e da poltrona ao lado. Em caso de despressurização da cabine, um de nós dois ficaria sem máscara de oxigênio.

Enrolei ao máximo para levar meu cão lá fora para fazer as necessidades o mais perto do horário de partida. Lá pelas 19h30, tive que ir para a sala de embarque. Quase oito horas depois de sair de casa, minha viagem estava apenas começando. E os problemas também.

A poltrona reservada para mim ficava no meio do avião. O espaço em relação ao assento da frente era mínimo. Muito desconfortável para viajar por mais de dez horas. E havia outro passageiro ao lado. Os próprios tripulantes discutiam em português, inglês e espanhol. Um comissário argentino estava irritadíssimo. Em espanhol, esbravejava que era impossível duas pessoas viajarem com um cão daquele tamanho em duas poltronas. Depois de muito discutirem, decidiram transferir o passageiro vizinho para outra poltrona. Foi um alívio. Para aquela viagem, eu comprara um cinto de segurança para cachorro que só dava para prender no próprio cinto da poltrona. Com ele, passei a viajar menos preocupada, porque eu já não precisava segurar o cão a viagem inteira.

Com cachorro ou sem cachorro, é muita ganância de uma companhia aérea disponibilizar uma aeronave com espaço tão apertado entre as fileiras para um voo internacional. De ônibus a viagem é mais confortável.

As aeromoças americanas eram bem atenciosas. Agora aquele argentino havia entrado umas dez vezes na fila para ser mal educado. Foi ele quem me atendeu na hora do jantar. Nem disse quais eram as opções. Ouvi quando as comissárias informaram os outros passageiros. Pedi:

– Quero frango com batata.

– O frango vem acompanhado de arroz, meu bem! – disse ele rispidamente.

“Meu bem”? Quem ele pensava que era para chamar uma passageira de meu bem? Bem que queria ter dado uma boa resposta. Mas na hora as palavras certas não saem. Era um voo de dez horas e começara mal.

Acho que a companhia aérea decidiu economizar. Passaram um único filme. Depois que acabou, não havia alternativa para quem não consegue dormir a bordo. Porém, fui preparada com dois aparelhos de MP3: um com músicas e outro com o audiolivro Anjos e demônios, de Dan Brown.

Sentia meu corpo pesado, pedindo por algumas horas de sono, mas nada de dormir. O tempo não passava. Ao chegar a Houston, teria que enfrentar quatro horas de conexão e mais quatro horas de viagem até Vancouver.

Depois de uma longa noite, o café da manhã do avião não dava nem para o cheiro. Um iogurte pequeno e uns pedacinhos de fruta. Nada salgado para começar o dia é difícil. Não via a hora de aterrissar e comprar algo mais para comer.

No aeroporto de Houston, estava ansiosa para passar por todos os procedimentos o mais rápido possível para meu cachorro poder se aliviar. Pedi uma área para ele fazer as necessidades e fui informada de que só seria possível fora do aeroporto. Um absurdo não haver um local para cães de serviço fazerem suas necessidades. Só lá pelas sete da manhã, consegui levar Higgans para

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fora. Em seguida, fui ao check-in. Enquanto a atendente verificava meus documentos, pedi que reservasse a poltrona do cachorro, antes que não houvesse mais lugar. Rispidamente ela respondeu:

– Uma coisa de cada vez. Não se preocupe, que tomaremos conta de você.

Depois de algum tempo, me entregou o bilhete.

– Onde vou sentar?

– Por enquanto, as primeiras fileiras não foram vendidas. Você vai ficar lá. Mas se essas poltronas forem vendidas, será realocada, porque as pessoas pagam mais caro para sentar ali.

– E você bloqueou uma poltrona para o meu cão-guia?

– Não posso bloquear. Mas por enquanto, a poltrona ao seu lado está vaga.

A história se repetia. Talvez eu passasse pelo mesmo estresse que enfrentei ao sair do Brasil e com o adicional da típica aspereza americana. Antes de embarcar, fui a um café comer.

Para meu alívio, não havia ninguém sentado ao meu lado no voo. Estava tão cansada que acabei adormecendo antes mesmo de decolar. Acordei assustada. A comissária dizia algo no alto-falante. Eu achava que estávamos em turbulência. Perguntei assustada às pessoas do outro lado do corredor o que estava ocorrendo.

– Não há nada. – respondeu uma passageira.

Ainda desnorteada, perguntei:

– Onde estamos?

– Em solo. – respondeu ela.

Demorei a me dar conta de que nem havíamos decolado. Eram tantas horas sem dormir, tanta mudança de fuso que havia perdido a noção de tempo e de espaço.

A comissária me explicou que não costumavam servir lanche nos trechos entre os Estados Unidos e o Canadá, por não serem considerados voos intercontinentais. Se quisesse comer algo, precisaria pagar. Pedi umas rosquinhas de canela. O bolinho que comprara no aeroporto não estava bom e queria passar o tempo. Tenho sempre que me distrair para esquecer que estou voando e não entrar em pânico. Liguei o MP3 para ouvir música. Não cheguei a ouvir duas. O cansaço era tanto que caí no sono novamente. Já acordada, antes de chegar ao meu destino, comecei a praguejar em pensamento por ter escolhido um lugar tão longe para estudar. Nunca havia feito uma viagem tão cansativa. Era bom que valesse a pena.

Aterrissando em Vancouver, mais um susto: ninguém encontrava minha bagagem. Era só o que me faltava. A ração do Higgans, meus remédios... Comecei a rezar. Depois de uma hora procurando, a atendente da companhia me deixou perto do balcão da Continental e disse que iria verificar onde as malas poderiam estar. A espera foi longa. Até que me dirigi ao balcão e expliquei o que estava acontecendo. Disse que minha bagagem estava com etiqueta de prioridade. Outra atendente concluiu que elas poderiam estar em um lugar específico para essas bagagens. Levou-me até o local e lá estavam elas, solitárias.

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Os chaveiros que havia colocado para melhor identificá-las haviam sido arrancados. Quase duas horas depois de desembarcar, fui encontrar Geraldo, que estava à minha espera com o motorista, dois estudantes japoneses e uma mulher que coordenava a van. Antes de partir, a própria coordenadora me ajudou a levar Higgans ao “banheiro”. Mais meia hora de viagem, e chegamos ao meu novo lar temporário. Geraldo desceu comigo.

Logo ao descer da van, percebi que o verão de Vancouver era parecido com o que Geraldo me descrevera. Era como a primavera de Curitiba: calor para vestir camiseta, mas não tão quente para dispensar uma calça jeans e um casaquinho leve. O sol do verão era cortado por uma brisa gelada, como os frescos ventos de beira-mar do Rio de Janeiro.

Eu estava tão esquisita por causa da viagem que nem notei que, para entrar na casa, desci um barranco e uma escada de pedra, com um dos degraus quebrados. Se pudesse enxergar, mesmo cansada, teria visto a fria em que me metera.

Abrindo a porta da casa, havia uma entradinha minúscula, com uma escada que dava para baixo, onde o casal dormia, outra para cima, onde os estudantes ficavam. Logo na entrada, precisei lutar com pares de tênis espalhados no chão diante da escada.

Mônica me recebeu muito bem. Meu quarto era relativamente espaçoso, porém, quase todo tomado pela mobília e por uma cama de casal improvisada. Na verdade, era um estrado de madeira com um colchão por cima, sem cabeceira. Por conta de uma tomada mal posicionada, a cama não ficava encostada na parede. Não sei por que também não ficava retinha. Talvez porque Mônica quisesse deixar um espacinho entre a lateral da cama e a parede para poder abrir a janela. O que não adiantava nada, pois tudo estava disposto de um jeito que para abrir as cortinas era necessário subir na cama, já que a haste usada para isso ficava no canto em que a cama estava encostada.

O colchão era menor que o estrado. Eu vivia tropeçando e batendo no que sobrava da base de madeira. Também trombava a todo instante com uma cômoda que ficava próxima demais da cama. O quarto tinha ainda um guarda-roupa com espaço para cabides e dois armários com gavetas e prateleiras.

Depois de deixar minhas malas no quarto, Geraldo combinou com Mônica como fariam para me ensinar o caminho da escola. Mônica disse que me deixaria na estação, e Geraldo que me esperaria no desembarque do trem. Não gostei da ideia. Era muito diferente do que havíamos combinado antes.

O próprio Geraldo havia me pedido para chegar na sexta-feira, a fim de descansar no sábado. Assim, ele teria o domingo para me ensinar o trajeto. Como iria saber onde pegar o trem depois de sair do ônibus? Como me viraria sozinha na estação? Como pegaria um trem se não fazia a mínima ideia de como funcionava? Em uma estação de trem existem perigos para os quais um cego precisa ser alertado. Precisamos ter o mínimo de orientação de como andar nas plataformas para não correr o risco de cair na via.

Não sei por que não tive coragem de falar sobre isso com Geraldo na frente de Mônica. Ele foi embora e conversei um pouco com ela sobre as regras da casa. Perguntei se havia alguma parte da casa onde meu cachorro não deveria ir. Ela disse que o único lugar que os estudantes não poderiam ir era no andar de baixo, onde ficavam ela e o marido, San. Mônica disse para não me

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preocupar com o horário de refeição. San não costumava fazer as refeições regularmente. A outra estudante que vivia na casa, July, também tinha horários indefinidos.

Perguntei sobre a lavanderia, que estava inclusa no contrato. Mônica disse que não tinha dia certo para lavar a roupa e que só ela poderia lavá-la, pois a máquina ficava no andar de baixo.

– Vou deixar uma cesta no seu quarto. Quando encher, você coloca para fora, que eu lavo sua roupa – explicou.

Ainda com todo o quarto bagunçado, Mônica trouxe a criatura mais agradável da casa: Bandit. Era um cachorro grande, de uma raça que eu desconhecia. Muito dócil e educado.

Depois de me dar um sanduíche, Mônica foi se arrumar. Ela e o marido, que ainda não conhecera, tinham um compromisso por volta das seis da tarde.

– Não se preocupe que, enquanto estivermos fora, Bandit vai ficar no andar de baixo. July vai ficar em casa, no quarto ao lado. Se precisar de alguma coisa, pode pedir para ela.

July vinha de Ontário, também no Canadá. Tinha 22 anos. Estava em Vancouver para estudar algo relacionado a pessoas com deficiência. Como o curso só começaria no ano seguinte, estava trabalhando como vendedora. July também era cantora e volta e meia se apresentava com uma banda da cidade. Foi solícita comigo no início, orientando-me enquanto não me acostumava com os cômodos. Mas não se mostrou muito sociável. Em um mês que fiquei na casa, nunca me convidou para sair nem topou participar de algum programa comigo. Na nossa cultura seria o contrário. Os brasileiros fariam questão de levá-la para conhecer a cidade e fazer amigos.

Depois que Mônica saiu, liguei o Skype e telefonei para Geraldo. Queria que ele fizesse o combinado. Antes, todavia, pensei e repensei. Não sei por que é tão difícil dizer o que é preciso em situações conflitantes como aquela. Era simples. Eu tinha uma necessidade. Geraldo sabia dela. Comprometera-se a atendê-la e agora estava se esquivando. O difícil é expor isso com diplomacia, sem criar um conflito maior. Liguei para minha irmã, e agi como ela me aconselhou. Em vez de cobrar Geraldo, repeti a ele minhas necessidades, como se nunca tivéssemos tratado do assunto.

– Fiquei tão nervosa quando você disse que não me ensinaria mais o trajeto até a escola que se não resolvesse isso com você, não conseguiria dormir. Nós cegos não somos como vocês, que pegam um mapa e vão andando pela cidade. Eu preciso que você faça o caminho comigo pela primeira vez e vá me explicando tudo certinho. Como entrar e sair do trem, como andar na plataforma, onde pegar o trem, onde fica a escola... Preciso que explique todos os detalhes e faça o caminho certinho para que meu cachorro possa memorizar e me levar nas outras vezes.

Geraldo ainda tentou sair pela tangente. Só depois de muita conversa, convenceu-se em fazer o combinado e me encontrar no domingo. Mais aliviada, fui desfazer as malas. Não consigo pensar em descansar no meio da bagunça e com obrigações por fazer. Eram tantos detalhes que eu não sabia por onde começar. E pior: sem ajuda. Para meu alívio, toda a minha bagagem chegara a salvo. Arrumei tudo e fui tomar um merecido banho antes de finalmente me deitar.

No dia seguinte, na cozinha, fiquei chocada com o café que Mônica me serviu. Era horrível. Fraco. Nem gosto de café tinha.

– Como está o café? – ela perguntou. – Eu coloquei canela.

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– Está bom – menti. – Mas muito fraco para mim. Talvez seja por causa da canela – tentei justificar, não querendo ser desagradável.

– Tudo bem. Da próxima vez vou tentar não por canela.

Mônica havia prometido que iria logo cedo comprar a ração do Higgans comigo. Sorte que tinha levado uma pequena reserva, porque esse logo cedo foi lá pela uma da tarde. Na hora de pagar a ração, o Visa Travel Money, que, segundo a agência de câmbio, era aceito em todos os lugares, não funcionou na máquina do petshop. Nem o cartão de crédito. Tive que pagar em dinheiro.

Mônica quis almoçar fora, pois, tem diabetes e não pode ficar muito tempo sem comer. Mais uma vez, o cartão VTM não funcionou. O de crédito sim. Mônica me “estimulou” a pagar a conta toda. Alegou que era uma boa oportunidade para testar meu cartão. Tudo bem. Não me custava fazer essa gentileza, mesmo que não tenha sido, como preferiria que fosse, por livre e espontânea vontade.

Fomos a um lugar que tinha comida bem picante. Até hoje não sei se queimei a boca por causa da pimenta ou da temperatura da comida. Comemos batatas fritas cortadas em tiras grossas e frango. Estava uma delícia. Adoro comida picante. O que eu não sabia é que eu iria comer comida picante em todas as refeições em Vancouver. Principalmente na casa de Mônica. Pelo menos o passeio serviu para nos conhecermos um pouco melhor.

– Antes de falar com você por telefone, pelo que Geraldo me mandara no relatório da família, pensei que você fosse a estudante de 22 anos, não July.

– Eu tenho bem mais que 22. E há muito que não sou mais estudante – brincou Mônica.

– Você é enfermeira. Não é?

– Não. San é enfermeiro. Eu trabalho cuidando de pessoas com Alzheimer, promovendo lazer e entretenimento para elas.

Depois de algum tempo, entendi que ela era cuidadora de idosos.

Após o almoço, Mônica ainda foi até uma loja de lingerie. Chegamos em casa no fim da tarde. Eu ainda estava cansada da viagem. Andei tanto nos aeroportos que não havia uma parte das minhas pernas e pés que não doesse. Mal sabia que a maratona estava apenas começando.

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Capítulo 6

Aonde Eu Fui Parar!

No dia seguinte, precisaria estar bem disposta para aprender o caminho da casa até a escola. Quando ainda estava no Brasil, recebi de Geraldo esta “brilhante” explicação por e-mail:

“Saia da casa, ande cinco minutos, pegue o ônibus, ande uns oito minutos, desça na estação de trem; pegue o trem, ande meia hora e desça em frente à escola.”

Nem quem enxerga seria capaz de encontrar a escola com essa orientação. A estação de trem não ficava diante da escola como o e-mail permitia supor.

Antes de Geraldo chegar, Mônica disse que não me daria a chave da porta de trás, porque achava perigoso que eu entrasse por lá. Alegou que havia uma escada em construção, sem corrimão. Acabei descobrindo depois que, para entrar pelos fundos, teria que chegar à casa por uma ruazinha que nem sabia qual era.

– Se você acha perigoso entrar pela porta de trás, por que não me dá a chave da porta da frente?

– Porque não consigo encontrar a cópia da chave. Preciso procurar, mas ainda não tive tempo.

– É só você fazer uma cópia.

– O problema é que não encontro a chave para fazer a cópia. A porta só abre por dentro.

Eu não estava acreditando. Para ela, o problema não era tão grande. As portas da maioria das casas do Hemisfério Norte são como as de hotel: podem ser abertas por dentro, mas é preciso uma chave para abri-las por fora.

– E como a gente vai fazer, quando não tiver ninguém em casa? Você vai procurar a chave, né?

– Eu estou sem tempo para procurar. Mas não se preocupe. Sempre haverá alguém em casa para abrir a porta da frente para você – disse Mônica, com tom de voz impaciente e imperativo.

Eu ainda estava atônita por causa da viagem. Nem me tocara de que para sair pela porta da frente teria que enfrentar um barranco. Apesar do perigo, não era só isso que me preocuparia.

A caminho do ponto de ônibus, depois de subir o barranco, foi me batendo um desespero. Não havia calçada, meio-fio nem qualquer ponto de referência para facilitar minha localização. Só mato, mato, mato e uma ladeira íngreme e interminável até o ponto de ônibus. Era praticamente impossível perceber quando estávamos atravessando uma rua. Sem isso, não teria como contar quantas seria preciso atravessar para chegar ao ponto de ônibus. E pior: não passava ninguém a quem pudesse perguntar.

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Você deve estar se perguntando: e o cão-guia, serve para quê? Ele não leva o dono para todos os lugares? Sim, leva. A chácara dos meus pais fica numa área rural, com estradas de terra, sem meio-fio, muito mato e poucas residências. Mesmo assim, meu cachorro sabe direitinho o trajeto do ponto de ônibus até em casa. Detalhe que nasci e cresci nessa chácara. Conheço cada pedrinha em que tropeço, cada cheiro. Se eu me perder, posso bater em qualquer casa que todo mundo me conhece. Antes de percorrer esse trajeto sozinha com o cão, minha família fez o percurso conosco algumas vezes. Além disso, a casa dos meus pais é a última de uma ruela sem saída. Não tem erro. Já a casa de Mônica ficava numa imensidão de mato que eu não conhecia. Nem poderia usar as portas da vizinhança como ponto de referência, pois as casas ficavam afastadas da rua. Não era impossível para o cão-guia aprender o caminho, mas seria necessário um treinador especializado para ensiná-lo. Não havia tempo para isso. E vamos combinar que não atravessei meio planeta para aproveitar as facilidades de uma cidade de primeiro mundo e acabar me estressando com dificuldades de uma área rural.

Depois de dez minutos de caminhada, chegamos ao ponto. Ônibus, só de meia em meia hora, fato que só descobri mais tarde, por intermédio de outra passageira. Mônica havia dito que o intervalo era de 20 minutos, o que já era ruim.

Pegamos o ônibus. Geraldo me orientou a pedir para desembarcar na estação de trem Scott Road. Até aí, tudo bem. Ainda havia, contudo, um caminhozinho a percorrer do ponto de ônibus até a plataforma. Higgans e eu não iríamos memorizar indo só uma vez.

Na plataforma, minha preocupação era aprender onde estavam os extremos, onde passava a linha do trem, para nem chegar perto. Geraldo me mostrou que perto das linhas do trem o piso ficava mais áspero. A diferença era bem sutil. Só dava para notar se a gente andasse arrastando o pé. Quando se fazem essas diferenciações de piso, dizem que é para orientar os cegos. Acho que pensam que cego anda descalço ou tem algum tipo de supertato no pé.

De qualquer forma, não precisaria me preocupar muito com segurança. Higgans, como os outros cães treinados em Smithtown, foi preparado para me puxar para o lado esquerdo. Como ele sempre anda a minha esquerda, não havia o risco de eu ficar do lado da linha do trem.

Outra dificuldade era entender o que dizia a gravação dos trens ao anunciar as estações. No começo foi difícil. Além do mais, ao contrário dos ônibus de Curitiba, nos quais a gravação anuncia o próximo ponto logo depois de sair do anterior, nos trens de Vancouver, o aviso só é dado quando ele já está parando na estação. O problema maior é para quem não está habituado ou se distrai. Em Vancouver, a situação não chega a ser tão grave. As estações são muito próximas umas das outras. Para uma pessoa cega, entretanto, basta um passo errado para ficar totalmente sem rumo.

Depois de exatos 31 minutos, chegamos à estação Burard. No trajeto entre a estação e a escola, concluí que Geraldo me fizera andar desnecessariamente. Saindo da estação, bastava virar à esquerda, chegar à esquina, cruzar a rua, virar à direita, cruzar mais uma rua, seguir até a próxima esquina, cruzar a rua novamente, virar à esquerda e chegar à escola, que ficava bem no meio da quadra. Em vez disso, ele me levou até a esquina da rua da estação. Andamos até a outra quadra para depois voltar na direção da escola.

Quando Geraldo informou que eu demoraria 45 minutos para ir da casa à escola, ele só estava contando com o tempo de ônibus e trem. Com o trajeto a pé, a troca do ônibus pelo trem e as esperas, o percurso demorava perto de uma hora e quinze minutos, se eu não perdesse o

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horário do ônibus. O que estava me preocupando, todavia, não era o tempo nem a distância, era a minha autonomia para sair da casa e voltar.

No caminho de volta, expus a situação para Geraldo, que me garantiu que iria conversar com a escola para encontrar outra casa, mais próxima. Explicamos a Mônica sobre as dificuldades técnicas, e ela se propôs a me levar e me buscar na estação de trem ou no ponto de ônibus todos os dias. Não era o que eu queria. Não pretendia ficar presa nem dependendo dos outros.

Naquele momento, só conseguia culpar minha deficiência. “Se eu não fosse cega”, pensava, “não teria problema algum em ficar nessa casa.” Estava tão incomodada pelo fato de incomodar Mônica que acabei adotando uma postura submissa em relação a ela, que, por sua vez, valeu-se disso para tentar me controlar, tornando a situação ainda mais difícil.

Para chegar a tempo na escola, teria que acordar às seis, tomar café às sete e sair às 7h45. Na segunda-feira, Mônica levantou-se às sete. Lá pelas sete e meia, foi à cozinha perguntar se queria que ela preparasse meu café. Conforme já havia notado que Mônica fazia tudo em um ritmo demasiado lento, não daria tempo. Ou tomava café e chegava atrasada na escola ou saía no horário. Escolhi a segunda opção.

Eu não deveria preparar meu próprio café. Segundo o contrato, era obrigação da host mother preparar café e jantar durante a semana e todas as refeições no fim de semana. Além do mais, eu não sabia onde ficavam as coisas. Até tentei encontrar alguma comida. O máximo que consegui foi um cereal. Peguei um punhado com a mão e joguei na boca, para não sair totalmente em jejum. Não sei como não desmaiei de fome e por falta de cafeína. Eu havia colocado no formulário que o café preto de manhã era indispensável. E a

host mother tem por obrigação atender ao formulário.

No primeiro dia de aula, Mônica foi comigo à escola para reforçar o caminho, pois tinha compromisso no centro da cidade. Ela não era boa na condição de guia, mas não havia opção. Na primeira semana, tínhamos que perder tempo comprando bilhete nas máquinas do trem. Como estava no final do mês, só poderia comprar o passe mensal na semana seguinte. O passe para a zona 3 era o mais caro. Custava 5 dólares canadenses a viagem, 9 por dia e 150 por mês. Ônibus e trens não tinham catracas. Ao entrar no ônibus era preciso apresentar o cartão ao motorista. No trem havia fiscais para verificar os passes, embora nunca tivesse ocorrido comigo. Perguntei a Mônica se pessoas com deficiência pagavam passagem. A resposta foi sim.

Quando entrei no trem, logo alguém se ofereceu para ceder o lugar. Nunca viajei em pé enquanto estive em Vancouver. Fiquei curiosa para saber se havia algum assento destinado a pessoas com deficiência, como no Brasil. Mônica disse que não.

Ela me deixou na porta do prédio da escola. Geraldo já estava lá, junto com outros alunos. Um deles era Caio, um DJ de Sorocaba, de 22 anos, formado em marketing e que estava ali para aprimorar o inglês. Eu havia jurado que não iria me misturar com brasileiros e só falaria inglês. A situação me fez mudar de planos. Na presença de Caio, era como se tivesse encontrado um porto seguro. Ainda mais que ele tinha a voz e um jeitão do meu colega Alexandre Slaviero, com quem me dava muito bem nas gravações de “Caras e Bocas”.

– Você parece muito maduro para sua idade.

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– É que meu irmão e eu fomos morar sozinhos quando éramos muito jovens para estudar e assumimos responsabilidades muito cedo. – contava-me Caio, enquanto subíamos de elevador para o quarto andar, onde seriam nossas aulas.

A escola ficava em um edifício comercial de cinco andares, ocupando o segundo e o quarto. No térreo e no primeiro piso havia restaurantes. Nos demais, escritórios de outras empresas. A conversa foi interrompida pela secretária Choi, que conduziu os novos alunos para uma sala a fim de passar algumas orientações. Choi era uma coreana com um inglês sofrível. Não era muito esperta nem muito querida. Não fazia sucesso nem mesmo com os alunos coreanos. Trocava o “r” pelo “l” e falava “bibikiu” quando queria dizer “barbecue”, por exemplo. E ainda falava conosco como uma professora do maternal, repetindo e frisando as sentenças.

Basicamente, falou dos horários, que quem chegasse atrasado não assistiria à aula e que era terminantemente proibido falar outro idioma que não o inglês dentro da escola. As aulas iam das 9h às 14h20, com um intervalo de 20 minutos de manhã e uma pausa de uma hora para o almoço. Nas sextas-feiras, o curso acabava ao meio-dia. Havia um programa de aula mais extenso para alunos coreanos e japoneses que tinham aulas específicas, devido à dificuldade na pronúncia. Depois das maçantes explicações, Choi nos orientou a ir ao segundo andar para fazer o teste de nivelamento. Era o que iria definir o nível de inglês de cada um e qual seria a sequência de aulas.

Fiquei esperando o documento digital numa sala com Geraldo. Confessei a ele que estava tão nervosa com a situação da moradia que não teria cabeça para nada antes de resolver o problema com a escola. Depois expliquei o caso a Choi. Meu queixo caiu quando a ouvi dizer que ela mesma visitou pessoalmente a casa de Mônica para aprovar minha estada por lá. Perguntei a ela como ela pensava que um cego poderia se locomover sozinho morando naquela área. Nem respondeu.

Mais tarde, convivendo com coreanos, descobri que provavelmente ela não entendera uma palavra do que eu disse. Muitos coreanos que conheci em Vancouver tinham o hábito de dizer “ihim”, “ihim” para tudo, mas ao final da conversa, era possível descobrir que o nível de entendimento não chegava a um décimo do que haviam escutado.

Mencionei antes que Geraldo havia comentado por e-mail que estavam com dificuldade para encontrar minha moradia por causa do cão-guia. No meio da conversa, Choi começou a falar sobre a dificuldade em encontrar uma casa para mim, quando Geraldo a interrompeu:

– Foi difícil porque estamos em alta temporada. Não é, Choi?

Ela confirmou. Até hoje, contudo, não engoli essa. Fiquei com a sensação de que procuraram uma casa para uma estudante com cachorro, não para uma estudante com deficiência visual e um cão-guia. Já era tarde. Estava em Vancouver e precisava de uma solução para o meu problema. Choi prometeu encontrar uma saída.

Quando ela saiu, Geraldo voltou a mencionar o flat próximo à escola. Mas o preço já era outro. Os 1.500 dólares que ele disse da primeira vez haviam se transformado em 1.800. Mas nem adiantaria discutir valores, porque depois, descobri que o flat não tinha mais vaga.

A avaliação para nivelamento do Inglês consistia de um teste escrito, que fiz no computador, e de uma entrevista com o diretor da escola, chamado Martim. Aproveitei a conversa para falar da minha moradia e pedir providências.

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No primeiro dia não haveria aula. Caio e eu fomos almoçar juntos no térreo. Não caímos na mesma classe, entretanto, acabamos nos tornando companhia frequente nos almoços. Na minha turma só havia japoneses e coreanos. Não entendia quase nada do que falavam. Muitas vezes tinha que pedir aos professores que traduzissem o inglês deles para mim.

Notei também que, ao apresentar os alunos japoneses e principalmente coreanos, os professores perguntavam se tinham outro nome. Quando os orientais tinham nomes complicados para os ocidentais falarem, era usual adotarem outro. Como o coreano Adam, gerente de Marketing da escola.

Ele se mostrava muito preocupado comigo e pediu que eu subisse depois do almoço para ele me mostrar o material da aula do dia seguinte.

No prédio havia restaurante chinês, japonês, mexicano, italiano, grego, vietnamita e uma lanchonete. Como adoro experimentar coisas novas, cada dia provava um restaurante diferente. Comecei pelo grego e, pasmem!, na hora de pagar, descobri que um restaurante que ficava no prédio de uma escola para estudantes estrangeiros não aceitava cartões de fora do Canadá. Não pude usar nem o VTM. Pelo menos a comida era boa. A grega era a mais parecida com a brasileira. Bem menos apimentada que o gosto médio canadense. Apesar de gostar, já havia recebido uma superdose de tempero picante no fim de semana.

Depois de almoçar com Caio, ele foi embora, e subi à sala de Adam para conhecer o material da aula. Não havia nenhum conteúdo explicativo, só exercícios. Sugeri alguns pontos que poderiam ser aprimorados, e ele prometeu acatar.

No fim da aula, San foi me apanhar na escola. Mônica havia sugerido isso, sabendo que ele estaria no centro da cidade. No horário marcado, ele estava lá me esperando. Eu me sentia importante por ter alguém para me levar para casa. Era como se eu fizesse parte da família.

San era de poucas palavras e não muito sociável. Mas parecia ter um bom coração. Ele levava muito jeito para me explicar as coisas. Orientou-me muito bem no caminho de volta. Durante o trajeto de trem, explicava-me em que estação terminava Vancouver, quando começava a cidade de Burnaby e então Surrey, onde ficava sua casa. Só então descobri que nem em Vancouver eu estava, mas sim algumas cidades depois. San me disse que Surrey ficava na divisa com os Estados Unidos, próximo da cidade de Seattle. Já no Brasil, pesquisei na internet e descobri que Surrey é o maior subúrbio da Colúmbia Britânica e, segundo o google maps, fica cerca de 40 km do centro de Vancouver e 183 KM de Seattle, no estado americano de Washington. Aos poucos ia descobrindo onde havia ido parar. Sei que deveria ter pesquisado antes de viajar, mas como iria adivinhar que Surrey era outra cidade e que ficava tão longe de Vancouver? Afinal, contratei a agência para ir a Vancouver e esperava que fosse para lá que ela me levasse.

Ao chegar à homestay, mais um problema: a internet não estava funcionando. Eu havia pedido uma moradia com internet sem fio porque, além de me comunicar com o Brasil por e-mail, usaria o Skype para fazer ligações telefônicas. Também precisava da internet para continuar em contato com as escolas de interpretação.

Mônica ligou para empresa de internet, mas nada. E ainda botou a culpa no meu netbook. Eu usava a internet sem fio no Brasil e nunca tivera problema. Como eu queria comprar um computador novo mesmo, achei melhor procurar um do jeito que queria. Se o problema fosse a máquina, estaria resolvido.

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Saí de Curitiba jurando que não compraria um chip de celular no Canadá porque não queria ter o incômodo do telefone móvel em Vancouver. Sem Skype e tendo que me comunicar com Mônica para combinarmos de ela ir me buscar na estação, o celular tornara-se necessário. Pedi indicação de operadora e de loja em Vancouver. Ela insistiu que me ajudaria a comprar um, ali mesmo em Surrey. Só que as lojas fechavam mais cedo na cidadezinha às segundas e terças. Tivemos que deixar para o dia seguinte.

Na terça-feira, novamente, Mônica levantou tarde, e o café ficou pronto quase na hora de sair. Eu estava começando a achar que aquilo não daria certo.

Apesar de eu ter falado das minhas necessidades, e Geraldo ter garantido que a escola havia se preparado para me receber, a prática mostrou o contrário.

Para começar, havia alertado Geraldo do meu problema no cóccix e de que precisava de cadeiras anatômicas. As cadeiras da sala de aula eram duras e nada anatômicas. Tentei me acostumar com elas, porém, depois de 20 minutos, já não suportava mais de dor. A estrutura física da escola inteira não era lá muito boa. Nas apertadas salas de aula, para fechar a porta era preciso que o aluno de trás se movesse. Os ambientes de convivência, de estudo e de lanche dos estudantes ficavam numa única sala com três computadores numa parede, um micro-ondas, uma pia sem toalhas, um bebedouro, máquinas de refrigerante e salgadinhos. No meio da sala, mesas como as de sala de aula, com cadeiras tão desconfortáveis quanto. Se alguém precisasse estudar ou entrar na internet, teria que competir com barulho e migalhas de comida. Não havia sala apropriada para estudar nem um local confortável com televisão para relaxar.

Os banheiros eram mal cuidados e exalavam um cheiro desagradável logo pela manhã. Nunca soube da presença de uma faxineira por lá. Os canadenses não usam lixeira para o papel higiênico, que é descartado diretamente no vaso sanitário. As pequenas lixeiras existentes são para jogar absorventes.

Nem tudo era ruim. Alguns professores eram excelentes. Já o método deixava a desejar, principalmente, para uma aluna cega. O professor da primeira aula, Kevin, de writing[1], era considerado um mestre na língua inglesa. No entanto, ia fazendo os exercícios sem ao menos me situar onde encontrá-los, sem nem ler os enunciados, o que tornou quase impossível acompanhar a aula. Para ler textos no netbook, uso um leitor de tela que corre o texto linha a linha. Ainda tinha que ouvir os exercícios do netbook e o professor ao mesmo tempo. Até então, achava que dava para acompanhar aulas de inglês sem Braille. A experiência mostrou que o uso do computador era impraticável, e o Braille fundamental nesse caso.

Havia mais um porém com o método. Se o aluno entendeu a matéria, ótimo. Se não, vamos para o próximo tópico, porque temos que seguir o cronograma. Era o contrário do que a escola prometia na internet. Nos sites de quase todas as escolas de inglês está escrito que os estudantes evoluem juntos, de acordo com o aproveitamento da turma.

No intervalo, Adam veio falar comigo para me mostrar onde seria a próxima aula. Cada professor tinha uma sala fixa e eram as turmas que deviam se deslocar para a aula. Um complicador para Higgans e para mim. Cada vez que tínhamos que sair da sala para ir a qualquer lugar, o ponto de partida era outro.

Aproveitei a presença de Adam para lhe falar sobre o meu problema no cóccix. Consegui uma cadeira melhor, mas ganhei um trabalho braçal extra: a cada aula, portanto, a cada troca de

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sala, tinha que carregar o netbook, a mochila e a cadeira. A segunda aula, de speaking[2], com o professor Nial, foi tranquila. Minha dificuldade era entender o que meus colegas coreanos e japoneses falavam nos exercícios práticos. Assim mesmo era uma boa oportunidade para conhecê-los e descobrir um pouco de sua cultura. A maioria estava lá para aprimorar o inglês e trabalhar em Vancouver. Não sei se pela escola ser dirigida por coreanos ou se o governo canadense tinha algum programa especial para os asiáticos, mas todos com quem conversei já tinham trabalho em vista. Diziam ter um visto especial só para eles, que até hoje, não entendi.

Depois da aula, Nial se ofereceu para almoçar comigo. E foi assim até o fim do curso: almoçava sempre com Nial, Caio ou os dois. Raramente, comi sozinha. Caio estava morando em um apartamento com amigos. Quase sempre levava comida de casa e esquentava no micro-ondas da escola. A última aula, de listening[3], com o professor Greg, foi o cúmulo do desrespeito. Mesmo sabendo que teria uma aluna cega, ele fez exercícios baseados em figuras. Perdi uma hora e vinte minutos de uma aula que não pude acompanhar. O mais paradoxal é que o próprio Greg tinha visão subnormal. Não enxergava, por exemplo, a tela do meu netbook. Ele usava recursos variados. As figuras se repetiram em outras ocasiões, mas normalmente ouvíamos uma notícia ou um seriado de TV e tínhamos que responder a perguntas sobre o que havia sido passado.

É mais difícil do que quando estamos estudando sozinhos em casa e podemos voltar os trechos que não entendemos. O professor colocava o áudio uma vez só. Mesmo quando repetia, era difícil pegar os detalhes, principalmente das notícias, nas quais os repórteres falavam muito depressa e, na sua maioria, de assuntos policiais sempre narrados em voz passiva. Isso porque a minha irmã havia pesquisado e dito que em Vancouver não tinha violência. Eram todas notícias reais, a maioria de Surrey. Eu costumava dizer que Greg era muito dramático e gostava de desgraça. Os seriados eu entendia melhor. Era bom porque o professor mal humorado mostrava seu outro lado, contando histórias de quando ele assistia esse ou aquele seriado.

Geralmente, Greg nos mandava responder às perguntas em dupla. Logo percebi que eu era quem melhor entendia os áudios. O mais bizarro é que os áudios de notícias e comerciais eram em fitas cassete. Para lição de casa, nos fins de semana, Greg dava um arquivo em MP3, normalmente de um comercial, para fazermos um ditado. Depois entregava o texto com a transcrição para conferirmos em casa. Ele não pegava lição para corrigir.

Depois do primeiro dia de aula, fui reclamar com Suni, outra diretora da escola, também coreana. Prometeu conversar com os professores de writing e listening. Como a sala dela ficava no mesmo andar das nossas aulas, era com ela quem eu falava mais.

Precisei pedir para a secretária da escola telefonar para Mônica a fim de combinarmos um horário para ela me pegar na estação. Como ela trabalhava até três e meia, nunca poderia me buscar antes de quinze para as quatro.

Adam não me deixou ir embora desacompanhada. Na primeira semana, não me deixava dar um passo sozinha dentro da escola. Esperava-me até quando eu ia ao banheiro. Às vezes, eu tentava me desvencilhar dele, dizendo algo do tipo:

– Tchau, Adam! Te vejo amanhã!

Mas acho que ele não entendia. Estava sempre ali. Expliquei que não havia necessidade de ir comigo à estação, porque sabia o caminho. Ele disse ter entendido, contudo, me acompanhou. Adam realmente parecia preocupado. O problema é que, quando alguém tenta me guiar em um

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caminho que Higgans já conhece, acaba atrapalhando. Nesse dia, passamos direto pelo elevador que dava acesso à estação.

Como Mônica era enrolada, mais uma vez, não deu tempo de ir comigo comprar o chip de celular. Percebi que ela era muito desorganizada e não iria nunca acordar a tempo de fazer meu café. Pedi então que me orientasse para me virar na cozinha. Como não tinha cafeteira, a maneira mais fácil era comprar café instantâneo e esquentar a água no micro-ondas. O micro-ondas do casal não tinha teclas em relevo. Precisaria colar uma fita adesiva ou algo que me ajudasse a identificar os “botões”. Mônica só conseguiu fazer isso no fim de semana, quando eu mesma peguei uma fita adesiva e perguntei a ela onde colar. Aí ela se mexeu: pegou um adesivo melhor e fez o trabalho.

Outra dificuldade é que ela mantinha tudo no freezer: pães, waffel, bagel... Tudo congelado. Por isso, era quase impossível distinguir um pão de um pedaço de frango. Pedi que sempre deixasse uma quantidade de pão fora do freezer para eu saber o que era e também deixar a comida sempre no mesmo lugar, de modo que eu pudesse achar sozinha.

Na quarta-feira quando fui me vestir, notei que eu havia levado tudo muito básico. Tudo bem levar calças e casacos de cores neutras. O problema era que havia levado poucas blusinhas coloridas para por por baixo. E às vezes, saía com calça e casaco preto ou cinza, e a blusa de baixo branca, ficando muito sóbria. Aí, pensava: Precisava ser tão prática, Danieli?

Avisei Mônica que não teria horário para voltar. Iria comprar meu chip de celular em downtown – a região central de Vancouver. Ela insistiu em ir junto:

– Você não pode ir sozinha. As pessoas podem te enganar.

– Não se preocupe, ninguém vai me enganar.

Já conhecia Mônica o suficiente para saber que, enrolada como era, sabe Deus até quando ficaria sem celular. Sem internet, precisava de um canal para falar com minha mãe.

Eu até poderia usar a estrutura da escola para acessar a internet, mas a sala de convivência era desconfortável e bagunçada. Também não poderia me comunicar com o Brasil, já que era proibido falar em outro idioma nas dependências da escola. Naquele dia, até liguei para minha mãe do Skype, e os funcionários pegaram no meu pé. Respondi que se eles tivessem cumprido com o contrato e me mandado para uma casa onde a internet funcionasse, não teria que falar em outra língua na escola.

Ficava cada vez mais claro que a questão da moradia estava diretamente ligada a todos os meus problemas: Eu não tinha autonomia de ir e vir; tudo era muito distante da casa, sem internet e com uma host mother que não cumpria com o contrato – com o agravante de ter sido escolhida pela própria escola. Tudo isso, junto com o método de ensino precário, dificultava a criação do clima ideal para estudar.

Todos os dias, tinha que pedir a Choi que providenciasse outra cadeira para mim. E a cada troca de aula, solicitava a um colega que a levasse para a nova sala.

Adam me pedira para chegar sempre uns 15 minutos antes para a secretária colocar os arquivos no meu netbook, o que eu já fazia por hábito. As secretárias, todavia, frequentemente faziam isso durante a aula, atrapalhando a mim e aos outros. Um dia, o professor Greg se irritou

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com a situação e ainda me deu uma bronca. Disse que eu deveria chegar no horário para pegar os arquivos antes e não atrapalhar.

Durante o almoço, o professor Nial contou que havia um plano de celular com uso ilimitado dentro da região de Vancouver. Combinei com Caio que ele iria comigo depois da aula comprar o chip. Na saída, Adam me abordou:

– Você está indo para casa?

– Não. Vou sair com Caio.

– Para onde vocês vão?

Minha vontade era dizer que estávamos indo a um motel. Afinal, ele não tinha nada com isso. Disse apenas:

– Estamos indo comprar um celular. Não se preocupe.

– Você avisou sua host mother?

– Sim. Obrigada, Adam. Até amanhã!

Saí da loja falando ao celular. Poderia fazer ligações ilimitadas para qualquer telefone, fixo ou móvel, desde que fosse da província da Colúmbia Britânica, mandar mensagens a qualquer celular do mundo e receber ligações de quem eu quisesse por um valor de 25 dólares canadenses por mês mais o chip, que custava 15 dólares canadenses. Eu não poderia ligar para minha mãe. Ela, contudo, poderia me ligar do Skype, que é mais barato, e poderíamos nos falar todos os dias.

Na loja, um grupo de brasileiros viu a placa do meu cão-guia escrita em português (“Cuidado! Cão-guia”). Reconheceram-me por causa da novela e vieram falar conosco.

A operadora de celular ficava dentro de um supermercado. Caio e eu aproveitamos para comprar algumas coisinhas como biscoitos e um par de óculos de sol.

No caixa, notei que Caio pagou a conta com dólar americano e recebeu o troco em dólar canadense. Perguntei:

– Você trouxe dólar americano?

– Sim. Não comprei dólar canadense.

– Mas aí, você sai perdendo porque o dólar canadense vale mais que o americano.

– Saio perdendo nada! Foi o melhor negócio que fiz. Em muitos estabelecimentos, eles consideram o dólar um por um e ainda dão troco em dólar

canadense – disse, orgulhoso.

– Não acredito! Você deve ter se enganado!

– É sim! Quer ver? Minha conta deu 39 dólares canadenses. Eu dei uma nota de 50 dólares americanos. Ela me devolveu troco de 11 dólares canadenses, sem descontar a diferença cambial.

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– Que legal! Então, você saiu ganhando com esse negócio de não comprar dólar canadense! Mas todos os estabelecimentos aceitam dólar americano?

– Sim.

– E todos consideram um por um?

– Nem todos. Em alguns, fazem a conversão. Mas sempre devolvem troco em dólar canadense.

Se eu soubesse dessa, teria comprado dólar americano. Além de ser mais barato, poderia guardar o que sobrasse para outras viagens, já que vou aos Estados Unidos com frequência.

Chegando em casa, como sempre faço quando compro algo novo, pedi para Mônica dar uma olhadinha no papel que eu recebera explicando como era meu plano, só para conferir. Eram muitas informações e queria ter certeza. Uma coisa normal, certo? Acabei ouvindo um sermão, como se fosse uma adolescente impulsiva:

– Eu te avisei para não ir sozinha, que eles poderiam te enganar! Agora, você não sabe se comprou o plano certo!

A discussão durou uma hora. Sei que deveria ter dado um basta. Eu havia decidido fazer a compra e iria me responsabilizar por ela. Se algo desse errado, era problema meu. Só estava pedindo um par de olhos emprestado para ler um papel. Todavia, mais uma vez, me senti acuada pelo gênio imperativo de Mônica. Também não queria criar caso com a dona da casa. Até porque, imaginava eu, minha estadia seria provisória, até que a escola e Geraldo encontrassem outro lugar para mim.

No dia seguinte, quando me deixou no trem, Mônica disse:

– Me ligue quando chegar!

A porta se fechou antes de eu dizer que não ligaria. Já não queria ter comprado celular para não ter incômodo. Agora precisaria me preocupar em telefonar a cada instante? Não faço isso nem com minha mãe. Só ligo em caso de necessidade. Eu tinha tantas coisas para me preocupar quando chegava à escola: levar Higgans para fazer as necessidades, dar água para ele, ir ao banheiro, pegar minha água, solicitar os arquivos para as aulas, pedir uma cadeira... Também queria interagir com meus colegas. A última coisa que queria era me lembrar de Mônica e de sua casa quando estivesse em Vancouver.

Notas:

1: writing: escrita

2: speaking: conversação

3: listening: escuta

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Capítulo 7

O Conto De Rapunzel

Todos os dias, tinha vontade de chorar. Comecei a perceber que ninguém procurava outra moradia para mim. Nada saíra como o planejado. Além do inglês e dos cursos de interpretação, viajara para me distrair, andar livre, leve e solta por uma cidade acessível. Nessas alturas, já deveria estar visitando as escolas de interpretação, mas ainda perdia tempo procurando lugar para ficar.

O que foi me deixando mais furiosa era que todos os meus colegas estavam em downtown ou, pelo menos, na cidade de Vancouver. Por que eu, cega, tinha que ficar em um lugar tão distante e de acesso difícil? Colegas e professores achavam um absurdo que eu estivesse morando em Surrey. Consideravam muito longe e perigoso. Era fora de propósito o que a escola e a agência estavam fazendo comigo. Só que ninguém me ajudava a encontrar outro lugar.

Quinta-feira, no intervalo, encontrei Lúcia no banheiro. Já havia cruzado com ela outras vezes. Era uma brasileira aposentada que também estava estudando.

– Oi, Dani!

Respondi em inglês.

– Vou falar em português que meu inglês não é muito bom – disse Lúcia.

–Como estão as coisas para você, Dani?

– Nada bem. Está tudo muito difícil! Nada está saindo como o planejado – respondi, chorando nos braços dela.

– Oh, Dani! Você me lembra tanto minha filha! Pode contar comigo para o que precisar! Eles ainda não arrumaram outro lugar para você ficar?

– Não.

– Eu não entendo por que te colocaram em Surrey. Não tem cabimento. Seria difícil para qualquer um, ainda mais para você. Eu não ouvi falar de ninguém que eles tenham colocado tão longe. Você já falou com Geraldo, com a escola?

– Falei com todo mundo, Lúcia!

– Eu ia para Montreal pela agência do Geraldo. Mas fiquei com tanta raiva do que ele fez com você que decidi procurar outra agência. Fica aqui pertinho.

Nossa conversa foi interrompida por Choi. Lúcia queria falar alguma coisa para ela sobre minha moradia. Fiz sinal que não. Sabia que seria inútil.

– Algum problema? – perguntou Choi.

– Não, não – disfarcei.

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– Só estávamos matando saudades de mãe e filha. Eu disse à Dani que ela lembra muito minha filha – completou Lúcia.

– Deixa eu pegar seu telefone, Dani?

– Claro.

Passei meu número. Ela ligou para que eu tivesse o dela no meu celular.

Depois da aula, a diretora Suni me chamou para conversar. Ela tinha encontrado um flat em downtown, por 1.500 dólares canadenses. Estaria vago em uma semana.

– E como a gente faz? Quando posso visitar o flat?

– Vou passar os dados por e-mail para você agendar uma visita.

– Você não quer me passar agora?

– Depois passo por e-mail.

– Tudo bem. Só peço para você passar com cópia para Mônica, que estou com problemas para acessar a internet da casa dela.

Já eram seis da tarde e o e-mail ainda não havia chegado. Estava na sala de TV de Mônica, fazendo minha lição de casa, quando San subiu falando:

– Dani, nós estamos saindo para jantar, e você vai conosco.

– Já?

– Sim. Daqui a cinco minutos.

Detesto sair de qualquer jeito. Nem tinha tomado banho ainda. Estava suada. Só troquei de roupa rapidinho e aproveitei que iríamos de carro para pôr uma botinha com salto. Só havia me esquecido do barranco e subir de salto não foi muito fácil.

O restaurante era em Surrey mesmo. Quando chegamos, o garçom afirmou:

– Aqui não é permitido cachorro.

– É um cão-guia – eu disse.

– Eu sei. Mas os outros clientes podem se incomodar – insistiu.

Pior que a atitude do garçom foi a de San e Mônica. Em vez de fazerem valer meus direitos, deram meia-volta e estavam indo embora. Já estávamos fora do restaurante quando discutimos.

– Eles não podem fazer isso comigo. Se quiser, chamo a polícia. Por que vocês acataram a decisão do garçom?

– Não sabemos como agir – disse Mônica.

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– Estou acostumada com esse tipo de situação. Nunca deixei de fazer nada por causa dos outros e não é aqui que vou agir diferente. Vamos chamar o gerente! Se eles querem me tirar do restaurante, vão ter que chamar a polícia!

Mas quando eu sair com vocês, preciso saber se ficarão ou não do meu lado.

– Claro que estamos do seu lado. – afirmou Mônica.

– Então por que vocês vieram aqui fora?

–Só viemos aqui fora para conversar sobre como agiríamos para você não se expor – explicou ela.

Nesse meio tempo, o garçom chamou-nos de volta, pedindo desculpa e dizendo que poderíamos entrar, desde que o cachorro ficasse debaixo da mesa. Não gostei. A lei diz que ninguém pode determinar onde meu cachorro deve ficar. Eu até gostaria que ele coubesse embaixo das mesas. Assim ninguém mexeria com ele. Na maioria dos lugares, todavia, isso é impossível. Queria ter falado ao garçom que ele não poderia impor nada e que estava no meu direito. O casal, contudo, deu-se por satisfeito. Não me senti segura para falar. No fim das contas, Higgans não coube sob a mesa, mas ninguém disse nada. Mesmo assim, o mal-estar já havia sido causado. Tentei falar como me sentia, mas o casal pediu para encerrar o assunto.

Fiquei indignada em passar por esse tipo de constrangimento num país dito desenvolvido. Depois, pensei: eu não estava em Vancouver. Estava em Surrey. Vancouver que era considerada uma das melhores cidades do mundo para viver, não Surrey. Foi a única vez que passei por isso no período em que fiquei no Canadá. Confesso, porém, que fiquei com medo de voltar a viver esse pesadelo estando sozinha ou com pessoas que não me apoiassem cem por cento.

Outra coisa que notei é que nem na cidade modelo de Vancouver encontrei um restaurante que tivesse cardápio em braille, o que os restaurantes no Brasil já começaram a fazer. Em uma viagem a Natal, fiquei surpresa com o atendimento. Quase todos os restaurantes tinham cardápio em braille e sabiam como receber os clientes com deficiência.

Depois do jantar, uma comida mexicana que estava maravilhosa, antes que eu pudesse tirar a carteira da bolsa, Mônica disse que era por conta dela e se levantou. Enquanto ela não voltava, San teve a coragem de dizer:

– Dani, Mônica pagou o jantar. Lembre-se de agradecer a ela quando voltar.

Não estava acreditando que a essa altura da vida, eu, que fui muito bem educada por meus pais, estava ouvindo aquilo.

Na sexta-feira não haveria aula porque a escola levaria os alunos à praia. Na segunda, era feriado. Até queria conhecer a praia de Vancouver, mas não havia acomodações adequadas para mim. Teria que sentar na areia, ao sol, enquanto os outros alunos praticavam esportes. Não dava. Minha coluna não suportaria. Além disso, já estava cansada de acordar cedo e viajar todos os dias. Decidi ficar em casa.

Ainda não havia recebido o e-mail de Suni. Telefonei para o celular dela, entretanto, não atendeu.

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Fiquei em casa sexta, sábado e domingo. Às vezes conseguia usar a internet. Às vezes, não. Tentava falar com jeitinho para Mônica. Argumentava que estava com meu trabalho atrasado porque não conseguia ver meus e-mails; que não podia falar com minha mãe quando quisesse, que precisava da internet para continuar pesquisando as escolas de interpretação... Certa vez, San comentou irônico:

– Nós sabemos que você precisa da internet. Você não nos deixa esquecer.

Mais uma vez, perdi a oportunidade de dizer que estava pagando por aquilo, mas de novo, abaixei a cabeça e fiquei quieta. Em outra ocasião, San disse:

– Mônica ficou desgastada, porque ficou horas falando com o provedor da internet sem fio e não conseguiu resolver o problema.

Quem estava desgastada era eu, por contratar um serviço e não dispor dele, sem internet para me comunicar e enfiada em um buraco perto do polo norte. Sentia-me como a Rapunzel presa na torre da bruxa. Só faltava o príncipe encantado para me resgatar.

Queria ter saído no fim de semana, porém, nem a escola nem a agência de Geraldo ofereciam algum tipo de passeio. E sem internet não podia pesquisar aonde ir.

Tanto no sábado quanto no domingo, Mônica saiu para trabalhar sem me avisar, deixando-me presa em casa. Pois até fornecer o número de um serviço de táxi era demais para ela. Sempre ficava de providenciar, e ai de mim se eu cobrasse. Convidei July para ir a algum lugar. Em vão. Ela já tinha seu grupo de amigos para sair e conversar. Às vezes, ficava no Skype conversando, falando alto até tarde da noite. Dava para ouvir do meu quarto. Ligar para Caio não podia, porque ele não tinha telefone, só um serviço de rádio Nextel. Até pedi para o professor Nial me incluir em algum passeio, se pudesse, mas não me sentia à vontade para lhe telefonar reforçando o pedido.

Meu programa foi procurar algo na televisão, que ficava na sala de estar. Desde a minha chegada, a sala estava ocupada por algumas caixas. Mais de uma semana depois, elas continuavam lá. O controle da TV ficava na mesa de centro, sempre tão cheia de coisas – livros, agenda, caneta, baralho, cesta de esmalte, pote de comida – que era difícil encontrar algo.

Queria conhecer a programação da TV canadense. No entanto, o Canadá é quase um satélite cultural dos Estados Unidos. Os programas de TV mais assistidos eram americanos, como as séries “Dois homens e meio” e “Friends”. Deparei-me com desenhos dos Flintstones. Até os professores, quando citavam ou exibiam algum programa, era da TV americana. Pensei: que futuro teria como atriz ou jornalista naquela cidade? Comecei a me arrepender da escolha.

Estava me alimentando mal. Mônica não era uma grande cozinheira. Em uma ocasião, comi pão com queijo de manhã, no almoço e no jantar. A comida “natural” que ela oferecia era hambúrguer com pão seco, sem nenhum suco ou refrigerante para engolir. Também havia uma sopa pronta tão apimentada que me obrigava a comer montanhas de pão para quebrar um pouco do tempero. Às vezes, a refeição era macarrão instantâneo de copinho. Se a comida ainda não estivesse pronta, e eu beliscasse o pão que estava no meu prato, ela brigava. Mesmo sem gostar da comida, comia sem reclamar. Mas como todo mundo, tenho aversão a alguns alimentos. Disse a Mônica que não podia comer pimentão. Ela não aceitava isso muito bem. Em uma das refeições, San perguntou:

– Ela não vai comer pimentão?

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– Não. Não gosta. É outra July – comentou Mônica, com tom de reprovação.

Não sei o que ela queria dizer com aquilo. Mônica agia como se as pessoas que hospedava fossem folhas em branco, as quais poderia moldar do jeito dela. Não entendia que eram pessoas com passado, gostos e manias. Se já é difícil se adaptar a um novo país, a uma nova cultura, a uma nova língua e a uma nova família, sua postura intolerante tornava as coisas ainda mais complicadas. Outra vez, Mônica disse, com tom provocativo:

– Sei que você não gosta de misturar frutas na salada, mas é o que temos hoje, Dani!

Não aceitei a provocação. Até porque o único alimento que não era fruta naquela salada era alface, e estava tudo sem tempero. Então, não era grande problema para mim e comi quieta.

Depois de um fim de semana complicado, percebi que não conseguiria ficar na casa no feriado da segunda-feira. Ainda mais porque fez um dia lindo. Um dos poucos dias de verão de verdade que passei em Vancouver. Com direito a usar short e tudo. Pedi a Mônica que me levasse ao ponto de ônibus. Queria ir ao shopping procurar um laptop.

– Espere! Você não precisa ir ao shopping – disse ela. – Vou pedir ao técnico de informática para vir aqui resolver o problema da internet, e ele te ajuda a escolher um bom laptop.

– Quando ele vem?

– Até o fim da semana.

Enquanto estive na casa, esse técnico não apareceu. Além do mais, eu sabia exatamente qual laptop queria. Marca, modelo, tudo. Não precisava de ajuda para escolher. Só precisava sair de casa. O marido entrou no quarto e na conversa:

– Dani, Mônica só está querendo ajudar.

– Eu sei. Mas fiquei presa dentro de casa todo o fim de semana! Não aguento mais ficar sem fazer nada nessa casa. Preciso sair.

– Mas nós temos muito que fazer hoje, Dani –, disse San em tom de reprovação.

Além de ter que depender dos outros para sair daquela casa, também tinha que fazer o que o casal queria? Mônica insistia para não sair. Eu deveria ter dito alguma coisa, mas essa minha dependência em relação a eles para sair da casa me deixava acuada. Tentei com jeitinho:

– Por favor, Mônica! Eu preciso respirar! Me deixa ir ao shopping!

Ridículo uma mulher de 31 anos pedindo permissão para fazer algo tão banal.

– OK. Não posso te levar porque estou atrasada para o trabalho. San te leva ao ponto de ônibus quando você estiver pronta.

Mônica saiu. San perguntou que shopping iria.

– Ao de downtown, respondi.

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Ele argumentou que em Surrey havia um shopping grande, com duas lojas de eletrônicos. Explicou-me como chegar lá e me levou ao ponto de ônibus.

Seria melhor se tivesse ido a Downtown. As ruas de Surrey eram diferentes das de Vancouver. Mais desertas. Quando saí da estação de trem, não havia uma viva alma. Teria que atravessar um grande estacionamento. Áreas abertas não são nada boas para cegos se localizarem. Mesmo assim, graças a meu excepcional cão guia, cheguei ao shopping.

Já passava da hora de almoçar. Perguntei a alguém onde ficava a praça de alimentação e ouvia explicações como:

– Ande uns metros e vire à direita.

Após outras explicações esdrúxulas para se dar a uma cega, parei uma mulher que passava e pedi que me guiasse até a praça de alimentação. Ela foi muito gentil. Até me contou o que havia para comer. Escolhi um pedaço de pizza para experimentar. Não era lá essas coisas nem me alimentou o suficiente. Mas precisava andar depressa. No feriado, o shopping fechava mais cedo, às seis ou às sete. E já eram quase três.

Fui às duas lojas procurar o computador, todavia, achei melhor não adquiri-lo assim de primeira. Queria tirar umas dúvidas com algum vendedor brasileiro. Segundo Geraldo, nas lojas de downtown havia vendedores brasileiros. Assim, acabei comprando só um radinho para ouvir o noticiário no meu quarto.

Minha intenção era continuar passeando pelo shopping e descobrir o que tinha nas lojas – tarefa um tanto difícil para uma garota cega sozinha, em um shopping desconhecido. Quem tem deficiência visual se localiza e anda mais facilmente em lojas de rua, em vez de shoppings. Aquele, então, era cheio de voltas. Consegui achar uma loja que vendia moletons bacanas. Gostei do produto, mas não consegui pagar com cartão de crédito nem com o VTM. Fiquei com raiva e preferi não comprar a pagar com dinheiro.

Já havia percebido que o Visa Travel Money era uma furada. Tentei gastar de todo jeito, para não perder o que carregara, mas ele tinha baixíssima aceitação, inclusive em lojas grandes. Saí do Brasil com 500 dólares carregados nele e não consegui gastar tudo. Não sei se é porque o VTM não funciona bem no Canadá ou se o problema estava com o banco onde eu adquirira o cartão. Pois, sempre que a máquina não passava o cartão, dava uma mensagem de incompatibilidade com o banco.

Com o cartão de crédito não tive problemas em Vancouver. Só em Surrey, cujas lojas não deveriam estar preparadas para cartões internacionais.

Cheguei à conclusão de que, ao viajar para o exterior, o que vale a pena é comprar em espécie o valor da moeda do país que você tem certeza que vai gastar na viagem e levar o cartão de crédito só para extras. No exterior não é perigoso como no Brasil. Esse negócio de dizer que cartão traz segurança é argumento de venda dos bancos. Só não aconselho levar dinheiro a mais, porque na hora de reconverter, o turista sempre sai perdendo. A não ser que pretenda viajar de novo e guarde o dinheiro para usar depois.

Ainda voltei à praça de alimentação para comer uma salada. No Canadá, só conseguia comer bem fora de casa.

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Na terça-feira, na escola, Suni me deu o telefone do flat. Já estava alugado.

Quando finalmente consegui acessar a internet, mandei um e-mail explicando a situação e pedindo ajuda para a embaixada canadense do Brasil, que já me conhecia. Também descrevi a situação por alto no meu twitter, pedindo ajuda a quem fosse possível. Aproveitei para pegar alguns telefones que minha irmã enviara por e-mail e comecei a ligar.

Eram telefones de hotéis e hostels (albergues para estudantes). Mesmo estes custavam mais de 100 dólares canadenses a diária. Inviável. Os hotéis eram perto de 200 dólares. Nada que valesse a pena para ficar um mês ou mais. Também liguei para um desses apartamentos com quartos para alugar. Custava 600 dólares. Quem me atendeu foi uma brasileira, que me informou que o quarto disponível não tinha janela. Fiquei imaginando a situação.

Mesmo sem poder ligar para casa à vontade, falava com minha mãe diariamente, depois que a ensinei a comprar créditos pelo Skype. Falávamos todos os dias enquanto viajava no trem pela manhã, por volta das 8h30 – o que seria meio-dia e meia no Brasil. Em um mês, não chegou a usar 25 reais de crédito.

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Capítulo 8

Só Precisava De Um Par De Olhos Emprestado

Avisara a Mônica que sempre ficaria em downtown depois da aula e que ligaria quando terminasse. Voltar para casa era tão longe e trabalhoso que tornava inviável sair novamente no mesmo dia.

Meu cão-guia aprendera direitinho o caminho do trem para a escola e vice-versa. E eu não tinha dificuldade em andar em downtown, mesmo em lugares que não conhecia.

Os canadenses eram muito gentis. Sempre tinha alguém me oferecendo ajuda. Como não enxergava quem estava ao meu redor, muitas vezes pedia auxílio e acabava falando com coreanos ou japoneses, que apesar de solícitos, não me entendiam nem eu a eles. Também era comum esbarrar em brasileiros com mapas nas mãos.

Acompanhar as aulas sem o braille não era mesmo fácil. Depois de explicar como trabalhava no netbook para o professor Kevin, ele passou a ter mais cuidado ao fazer os exercícios conosco. Em uma ocasião, ele achou mais fácil ler a prova para mim do que eu ter que ficar catando os espaços no netbook para completar as sentenças. Passei a respeitá-lo mais e a me dar bem com ele.

Kevin era considerado um gênio na escola. Tinha conhecimento bastante profundo da língua inglesa e era bem detalhista na gramática. Procurava nos passar a gramática usada no dia a dia, não a aprendida nos livros. Seu jeito agitado me lembrava aquele cientista do filme “De volta para o futuro”. Mas provavelmente, no aspecto físico, não tinha nada a ver, já que Kevin tinha apenas 29 anos. A partir de suas aulas, passei a prestar mais atenção nos filmes em inglês, para ver como era a fraseologia cotidiana.

Nas aulas de writing, o professor dava a gramática e depois mandava fazer exercícios de completar sentenças, fazer frases usando a gramática que havia explicado e diálogos em grupos. Para casa, ele sempre mandava fazer uma redação, que corrigia depois.

Na quarta-feira após a aula, comentei com Caio e Lúcia que queria comprar um laptop. Disseram que havia uma loja ali perto e que iriam comigo. E não é que tinha mesmo um vendedor brasileiro? E era disputado, tamanho o número de compatriotas em downtown. Ainda fiquei com algumas dúvidas e queria tirar com meus técnicos do Brasil. Liguei para eles pelo Skype, mas ninguém atendeu. Na dúvida, achei melhor adiar um pouco mais a compra.

Caio nos deixou. Tinha uma entrevista de emprego. Lúcia lembrou-se da existência de uma loja da Sony – marca do computador que eu queria comprar – ali pertinho. Fomos lá. Quem nos atendeu foi um português, que me deixou mais em dúvida ainda. Disse que não poderia comprar o notebook que queria, porque o teclado não era brasileiro. Ele contou que o vendedor brasileiro da loja estava de folga, contudo, estaria lá no dia seguinte. Resolvi esperar.

No banheiro do shopping, uma garota brasileira nos ouviu reclamando da minha situação e veio conversar:

– Em que escola vocês estão?

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– Na PPC. E você? – perguntou Lúcia.

– Na ILSC.

– E você está gostando? – perguntei, interessada. Era uma das escolas que as agências haviam me indicado e parecia ser muito boa.

– Odiando! É horrível! Se quiserem mudar de escola, esqueçam a ILSC!

– Mas por que você odiou tanto? – perguntou Lúcia.

– Os professores são péssimos, não explicam direito. É como vocês estavam comentando aí: se entendeu, muito bem, se não, problema seu.

– Pois é... Você acredita que a escola que a gente está colocou a Dani, que não enxerga, no fim do mundo! Prometeram mundos e fundos. Quando ela chegou, foi completamente abandonada.

– Minha agência também me enganou. Disseram que para tirar o visto eu teria que me matricular e pagar seis meses de curso antecipado.

– E você pagou? – perguntei incrédula.

– Paguei, né! Antes de vir para cá, a gente não sabe como é e acredita no que eles falam. Eu sou do interior. Nunca tinha feito uma viagem dessas.

Depois que nos despedimos, comentei com Lúcia como havia ficado com pena da menina.

– Viu como eles iludem as pessoas, Dani?

– Pois é. Ela está pior que eu.

– Ah, Dani! Sem comparação! O que eles fizeram com você foi muita sacanagem. Aquela menina que foi boba de ter pago tanto com antecedência sem conhecer a escola. E você pagou quanto tempo de curso?

– Só um mês. E você?

– Também. Ainda bem. Porque eu não gostei desse Geraldo – comentou

Lúcia.

– Ah, Lúcia! Coitada da menina! Se eu já estou com raiva de pensar que gastei uma grana para ficar um mês nessa presepada, imagina se tivesse gasto seis vezes mais?

– Mas eu acho que a escola tem que devolver, pelo menos, uns oitenta por cento do dinheiro. Ela que deve ser muito inexperiente e não sabe dos direitos dela.

– E se eles se recusarem a devolver o dinheiro, como vai processar se é uma empresa canadense? Sai mais barato deixar quieto.

– Pois é, Dani. Acho que você deveria processar esse Geraldo!

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– Até pensei nisso. Mas se já é difícil e caro processar alguém no Brasil, imagina no exterior? E, por mais que eu tenha sido enganada, eles podem alegar que cumpriram com o contrato. Afinal, eles me colocaram numa escola e providenciaram uma moradia. Por mais que tenham sido sacanas, acho que, juridicamente falando, não infringiram a lei.

– É, Dani... Depende também de como o juiz vai interpretar o caso.

– Acho que o melhor que tenho a fazer é denunciar o que houve através do meu blog ou escrever um livro para que outras pessoas tomem certos cuidados antes de fazer uma viagem. Veja aquela menina, não foi enganada pelo Geraldo nem pela PPC. Pelo que estou percebendo, esse mercado é um

caça-níquel que não está preocupado no aprendizado e no bem-estar dos clientes. Eles se deram bem aqui em Vancouver porque os coreanos e japoneses não são de reclamar e ainda acabam se tornando mão de obra barata. O professor Nial estava falando isso comigo, outro dia – comentei.

Perto daquela menina, até que eu havia sido esperta e cautelosa. A situação dela e de outros estudantes que conheci mostrava que eu tinha razão quando achava que não valia a pena pagar muito por uma escola de inglês. Era possível ouvir o mesmo tipo de reclamação tanto de estudantes das escolas mais baratas quanto das mais caras.

Lúcia e eu passamos em mais algumas lojas de roupas do shopping e depois de não achar nada interessante para comprar, fomos comer e relaxar no sofá de um café. Aproveitei que tinha internet sem fio para conectar meu netbook.

– Ai, que delícia a tarde de hoje! Obrigada por me proporcionar esse momento, Lúcia!

– Que nada. Hoje tirei a tarde para passar com você. Também está sendo agradável para mim. Dani, definitivamente, você não pode continuar em Surrey. Você precisa ficar em downtown para poder sair a hora que quiser, vir a um café, ver gente diferente, passear...

– Eu sei disso. Por que você acha que estou tão revoltada?

– Eu não entendo o que esse povo fez com você. Deixar uma pessoa numa situação de dependência, num país estranho. Fazer isso com uma pessoa independente como você, que já conquistou tanta coisa, já viajou o mundo sozinha... Eles estão violentando teu ser ao colocá-la nessa situação. Eu não consigo me conformar. Esse Geraldo é um irresponsável.

– É exatamente assim que me sinto. Violentada. E o pior é a Mônica, que se acha no direito de me controlar, só porque dependo dela.

– Não. Aí, não dá – continuava Lúcia, ainda mais indignada. – Essa mulher não tem nada que se meter na sua vida. Você está alugando um quarto na casa dela. Nada mais do que isso.

– Eu sei. Parece que ela é que não sabe.

– Fiquei tão indignada com esse Geraldo que vou continuar meus estudos em Montreal com outra agência que encontrei aqui. Já falei sobre você e eles disseram que vão te ajudar.

– Você vai para Montreal?

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– Meu sonho sempre foi conhecer Montreal. Minha ideia inicial era ir para lá, estudar inglês e francês. Mas esse Geraldo acabou me convencendo a vir para Vancouver.

– Quando você vai para lá?

– Daqui a duas semanas.

Estava passando uma tarde tão agradável com Lúcia. Era tão bom andar pelo centro de Vancouver. Ainda mais com uma pessoa para me mostrar as coisas.

Já passava das sete e meia da noite, e o sol ainda estava alto. No verão, o sol se punha por volta das 21 horas. Por mim, ficava mais tempo andando em downtown, mas ainda tinha uma hora e meia de viagem de volta para casa. Lúcia me levou até a estação Granville. Estávamos mais perto dela que da estação que costumava usar. É a maior estação de trem de Vancouver. Até Lúcia se perdeu. Tivemos que pedir ajuda a um funcionário para descobrir em que plataforma deveria embarcar. Ele informou que, sempre que uma pessoa com deficiência precisasse de ajuda, bastaria chamar um fiscal como ele, conhecido como skytrainer.

– Mas como vou achar um de vocês?

– No trem há um botão onde você pode nos chamar. E nas estações há telefones. É só pegar o telefone que um atendente responde.

– E onde fica esse botão no trem? – perguntei.

– Você tem celular?

– Tenho – respondi.

– Então espere aí que vou te dar um número – disse, enquanto procurava em seus papéis.

Ele me passou dois números de telefone, cada um correspondia a uma linha de trem de Vancouver. Sempre que precisasse de ajuda em alguma estação, era só telefonar, dizer onde estava e para onde iria que um fiscal iria me esperar. Se apertasse o botão do trem, seria melhor ainda. O atendente saberia o número do trem e a hora exata que iria chegar.

Esse serviço foi uma mão na roda para mim. Sempre que tinha que subir ou descer em uma estação que não conhecia, chamava um fiscal. Ele me colocava no trem certo ou me acompanhava até a rua.

Lúcia não pegava o mesmo trem que eu. Porém, andou comigo no meu trem por uma estação a fim de me mostrar onde ficava o botão para chamar o fiscal.

– Aqui, Dani. O botão fica bem aqui, em cima da cadeira para deficiente – falou Lúcia, pegando minha mão e levando até o botão, do lado oposto ao da porta de entrada.

– É só apertar e falar.

– Será que funciona mesmo, Lúcia?

– Claro que sim. Faz o teste.

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Um atendente prontamente respondeu ao chamado. Eu nunca entendia o que eles falavam ao atender, talvez, pelo barulho do trem.

– Sou cega, vou desembarcar na Scott Road e preciso de auxílio.

Ele disse qualquer coisa. Agradeci e ele desligou.

– Você disse que o botão fica em cima da cadeira para deficiente?

– Sim – confirmou Lúcia. – Pode se sentar aí.

– Perguntei a Mônica se tinha assento para deficiente, e ela me garantiu que não.

– Então, essa mulher deve ser cega ou muito tapada. O banco está muito bem sinalizado.

Estava achando muito estranho que não houvesse banco para deficientes numa cidade como Vancouver. Eu só não sabia onde ficava. Tirando o detalhe do botão de ajuda, isso nem importava, pois sempre me davam lugar para sentar, o que é importante para poder cuidar do meu cão-guia e de meus pertences. Em pé no trem, torna-se inviável segurar o cão-guia, a bolsa e ainda manter o equilíbrio. Só consegui ligar para Mônica depois que entrei no trem. A plataforma ficava no subsolo e não tinha sinal de celular. Avisei-a que já estava a caminho e que em menos de meia hora estaria na estação.

– OK. Daqui a uns 40 minutos te pego.

– Eu chego em menos de meia hora – repeti.

Tive que esperar por ela na estação. Chegou com uma cara tão amarrada que até eu enxerguei.

– Faz tempo que você está aí?

– Faz uns dez minutos.

– Pensei que você ia demorar mais.

– Eu falei para você que estava dentro do trem e que chegaria em menos de meia hora.

Pela bronca que levei depois e pelo tom, estava na cara que ela me deixara esperando de propósito. No caminho, me cobrou, como se fosse adolescente:

– Por que você não ligou?

– Eu liguei quando terminei meus compromissos, como combinamos.

Além do mais você sabia que ficaria em downtown.

– Eu liguei para você, e seu celular estava desligado.

– Sim. Percebi que a bateria estava acabando. Achei por bem desligar para uma emergência e também ter como ligar para você.

Ela praguejou. Já não aguentava mais ouvir aquilo. A situação ia me deixando acuada.

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– Desculpe, Mônica. Usei meu cérebro – ironizei, mas ainda explicando de forma submissa. – Não podia ficar sem celular numa hora de necessidade.

Quanto mais agia assim, mais ela montava em mim. Hoje, percebo que agi errado. Aliás, meu comportamento foi o oposto de minha própria natureza. Não sei, contudo, se o que me fazia agir daquele jeito era a situação de fragilidade em que me encontrava, o medo de que meu estado de estresse me fizesse falar grosseiramente e provocar ainda mais conflito ou o jeito dela, que me assustava. O fato é que temia voltar para casa de Mônica. Tinha medo do que ela faria. Chegou a um ponto em que inventava coisas para fazer em downtown para ficar menos tempo lá. Ao voltar, me recolhia ao quarto para evitar contato com ela.

– Você já jantou? – indagou, ainda no caminho.

– Sim. Terminei tarde o que tinha para fazer e não aguentei de fome.

– Você poderia ter me avisado que não vinha para o jantar!

– Eu já falei que meu celular estava sem bateria. Você preparou algo?

– Não. July também não veio para o jantar.

Quando saí do carro, fiz algo que até eu não acredito. Abracei-a e pedi desculpas, chorando, como uma menininha que fizera algo errado.

Quem me conhece sabe que essa não sou eu. Estava em uma situação de estresse tão grande que acho que aquele choro foi pra descarregar.

No dia seguinte, durante a viagem até Vancouver, telefonei para o serviço de trem para perguntar sobre um ônibus especial para pessoas com deficiência. Queria saber se ele poderia me pegar em casa e me levar até a estação de trem ou até a escola. Expliquei onde estava morando. A atendente disse que possivelmente meu caso seria atendido. Só precisava preencher um formulário para análise, que estava disponível na internet. Se desse tudo certo, não dependeria mais de Mônica para me locomover.

Depois da aula, queria buscar meu notebook, mas Lúcia insistiu para que fosse com ela à agência, conversar com um dos donos, Edmundo. Lúcia estava tão ansiosa que quase não deixou o Higgans fazer xixi.

Edmundo era o típico carioca: falante, com aquele jeito malandro. Nem quis ouvir muito minha história, mas comentou:

– Já vi um monte de gente que foi sacaneada por eles. Esses meninos são uns irresponsáveis! Nem escritório têm. Eles trabalham em casa.

O comentário fazia sentido. Geraldo nunca atendia o telefone. Era preciso deixar recado para ele retornar.

– Esses caras dessa agência ferram com o meu negócio! Eles trazem pessoas como você para cá, prometem mundos e fundos e depois chegam aqui e largam vocês na mão. Aí, o povo sai falando mal de Vancouver e faz uma propaganda ruim da cidade. Por causa desses moleques! E

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pior que as pessoas confundem o nome das nossas agências, que é parecido! – continuou, indignado.

– É. Eu estou odiando essa cidade. Com certeza, só tenho coisa ruim para contar – confirmei.

– Está vendo? Te colocar em Surrey? Nunca vi um negócio desses! Minha agência não tem nenhuma moradia em Surrey. É muito longe! Eu não sei onde esses caras estavam com a cabeça, quando te colocaram em Surrey. Isso é um absurdo! Em que escola você está?

– Na PPC.

– Esses coreanos estiveram aqui essa semana, querendo que minha agência fechasse com eles. Botei eles para correr.

– Por quê?

– Porque esses caras só pensam em ganhar dinheiro, sem oferecer estrutura nenhuma. Haja vista o que fizeram com você. Te trazer assim, de qualquer jeito, para te jogar em Surrey! É muita falta de responsabilidade. Eu vou arrumar outro lugar para você ficar! Vem aqui, Tamara! – chamou, pelo interfone.

Entrou na sala uma moça que deveria ter uns vinte anos.

– Por que demorou tanto? – implicou Edmundo. Ela não respondeu.

– Eu quero saber se temos alguma home stay disponível.

– Eu posso até ver. Mas agora, estamos em alta temporada, está tudo ocupado. Acho difícil encontrar alguma coisa.

– Tá vendo? – comentou Edmundo, chateado. – Ainda isso. O problema é a alta temporada. Como aqui é muito frio, no verão todo o mundo quer aproveitar e vir para cá.

– E um flat, Edmundo, não tem?

– Ter até tem. Mas nessa época, você não vai achar nada por menos de dois ou três mil dólares. Aí, não vale a pena.

– E agora? – perguntei.

– Calma, calma! A gente vai encontrar um lugar para você.

– Como, se está tudo lotado!

– Calma! A gente vai dar um jeito. Me dá um tempo. Me liga amanhã que eu já devo ter alguma coisa.

Eu não botava fé que ele encontraria outro lugar para mim. Pelo jeito, a cidade estava mesmo lotada. Lúcia ainda precisava resolver algumas coisas da sua viagem na agência. Então, desci para levar o Higgans para fazer as necessidades e esperei por ela para irmos juntas à loja da Sony.

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Ela me acompanhou até lá e foi para outro compromisso. Encontrei o vendedor brasileiro e também outros clientes brasileiros, que me reconheceram e quiseram tirar foto comigo. Quando o vendedor ouviu o burburinho, perguntou entusiasmado:

– Você é famosa, é?

– Ela fez uma novela na Globo – respondeu uma moça.

– Ah! Eu não te conheço, porque eu não tenho TV brasileira aqui na minha casa. Mas eu sempre tiro foto com pessoas famosas. Você tira uma foto comigo?

– Claro! Depois que você me atender.

O vendedor tirou todas as minhas dúvidas e confirmou que o português fizera mesmo confusão sobre o teclado. Estava preocupada com a configuração, que viria toda em inglês, inclusive o teclado. O vendedor, porém, garantiu que configuraria para mim em português. Também estava preocupada em como levaria o equipamento para casa de trem. Poderia bater a caixa ou ser roubada. Sei lá. Quem não enxerga não sabe se tem alguém à espreita. A loja tinha um serviço de entrega por 15 dólares canadenses. Achei mais seguro.

Na volta, ao meu lado no trem, sentou uma canadense que também morava em Surrey. Contei a ela minha história.

– E agora tive que ligar para a dona da casa ir me pegar na estação. Mas não gosto de incomodar os outros. Me sinto mal – comentei.

– Mas quando eles te convidaram para ficar na casa deles sabiam que você era cega e que não poderia andar nos arredores da casa sozinha. Então, eles têm obrigação de te pegar e buscar todos os dias – ponderou a canadense.

– Na verdade, estou estudando aqui e contratei uma casa de família para ficar – expliquei.

– E você está pagando para ficar nessa casa? Não é favor nenhum eles te levarem e buscarem na estação. Eles sabiam que você era cega e se não quisessem ter esse trabalho deveriam ter te falado das condições antes de você vir. Ou eles te falaram?

– Não. E eu liguei para família antes de vir para saber tudo.

– Então, você não deve se sentir incomodada por isso – concluiu, indignada.

Depois daquela conversa, passei a considerar as coisas por outro ângulo. Ela tinha razão. Eu fora totalmente honesta. Se eles tivessem me falado a verdade sobre onde moravam quando eu ainda estava no Brasil, teriam evitado todo o transtorno. Eu nem teria ido ao Canadá nessas condições.

Ao chegarmos em casa, disse a Mônica sobre o serviço de ônibus especial, bastando para isso baixar o formulário na internet e preencher. Para meu espanto, a resposta foi:

– Eu sei. Só não tive tempo de baixar o formulário.

– Se você baixar para mim, coloco no meu netbook e preencho sozinha.

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– Quando eu tiver tempo faço isso. – respondeu ela, como se fosse algo supérfluo a se fazer.

O notebook chegaria no dia seguinte, uma sexta-feira, por volta das três. Eu só teria aula até o meio-dia. Como Mônica trabalhava até três e meia, pediu que eu almoçasse fora. Antes de eu sair para almoçar com Nial, a diretora Suni pediu que eu voltasse à escola para falar com ela.

Eu havia comentado com Nial que precisava comprar algumas coisas na farmácia. Depois da aula ele andou comigo pelas redondezas da escola me dizendo o que havia: farmácia, casa de câmbio, alguns restaurantes...

– A farmácia fica aqui. Você não quer comprar o que precisa agora? –

sugeriu Nial.

– Mas você não precisa almoçar rápido para voltar à escola?

– Nós temos tempo.

– Tem certeza? Agora que me ensinou o caminho posso ir sozinha.

– Não. Vamos comprar logo o que você precisa.

Nial entrou comigo na farmácia e me ajudou nas compras. Depois me levou até um restaurante italiano, mas não almoçou. Disse que não daria tempo. Comi sozinha. Fui muito bem atendida e a comida estava deliciosa.

Como Nial perdeu o almoço para me ajudar, comprei um pedaço de pizza para levar para ele. Sua aula já havia começado. Pedi a Suni que entregasse a ele. Ela queria falar comigo sobre o flat do diretor de marketing Adam, que estava viajando e só voltaria dali a duas semanas, e um apartamento que poderia dividir com outras meninas. Combinamos que visitaríamos esses lugares juntas na segunda-feira. Não me interessava o flat. Não queria ir para um lugar provisório e ter que me mudar depois de ter aprendido um trajeto e me adaptado. Suni, entretanto, insistiu que o visitasse.

Precisava voltar para casa antes das três para receber meu notebook. Já passava de uma e meia. Não sei se era pelo horário ou porque era sexta-feira, mas as calçadas estavam tão lotadas de gente que Higgans não conseguia chegar ao elevador da estação. No meio da confusão, uma menina ainda veio pedir para brincar com meu cachorro. Deparei-me com uma escada e tive que pedir ajuda a duas moças.

– Para que lado está o elevador?

– Atrás de você – disse uma delas.

– Então, se eu descer esses degraus vou chegar ao elevador?

– Talvez.

Talvez? Como talvez? Ou aquela direção dava ou não dava no elevador. Fiquei tão irritada que desci os degraus e pedi que Higgans encontrasse o elevador. Ele encontrou.

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Quando estava no trem, recebi um telefonema:

– Danieli?

– Quem deseja?

– É a Nelbi, do consulado brasileiro do Canadá. Estou ligando porque a embaixada canadense entrou em contato com a gente e contou que você está passando por dificuldades aqui.

Expliquei toda a situação para ela e perguntei o que o consulado poderia fazer por mim.

– Olha, Danieli, na verdade o consulado não pode se intrometer nas ações de empresas particulares. A menos, que você estivesse em uma situação de risco.

– Mas estou em uma situação de risco. Fui colocada numa casa onde meu direito de ir e vir com independência foi tolhido. Sem falar que corro o risco de cair de um barranco cada vez que chego e saio de casa.

– Sim. Mas quando falo em situação de risco, me refiro a situações extremas, como cárcere privado, por exemplo. Aí, o consulado pode interferir. Entende?

Resumindo: estava sozinha. Ao menos ganhei apoio moral. Nelbi afirmou que poderia ligar para ela a qualquer hora que precisasse e foi muito gentil comigo.

– Nessas alturas do campeonato nem sei se vale a pena continuar no Canadá. Estou pensando em ir embora depois deste mês de curso – desabafei.

– Mas e o seu curso de interpretação?

– Com essa folia de ter que procurar um lugar para morar, com o problema da internet, acabei nem tendo tempo de ir atrás disso.

– Se você precisar que procure alguma coisa na internet, é só me avisar. Eu não tenho celular, mas fique com o telefone da minha casa e do consulado.

Anotei os números no gravador.

– Acho que você pode fazer algo por mim. Pode me arrumar os telefones de algumas rádios e TVs de Vancouver para eu visitar?

– Claro! Vou pesquisar para você.

Na mesma hora ela foi passando alguns números de telefone.

Não sei o que houve com o trem, que ficou parado uns minutos. Com isso, perdi o horário do ônibus e fiquei esperando quase meia hora. Nesse meio tempo, o rapaz da entrega ligou no meu celular dizendo que estava chegando. Eu sabia que San estava em casa, mas não queria dar nenhum tipo de trabalho. Liguei pedindo que fosse me buscar no ponto, onde esperei por cerca de dez minutos.

– Seu notebook está no seu quarto – disse San.

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– Obrigada.

San foi até meu quarto, mostrar onde estava.

Enquanto abria a caixa, pedi:

– San, você pode ler aqui para ver se veio o produ... – eu iria dizer o produto certo, mas ele me interrompeu:

– Dani, não entendo nada de computador. Não adianta perguntar para mim.

– Mas só preciso que você leia o...

– Dani, já disse que não entendo nada de computador. Depois, você pede ajuda para July ou Mônica.

E saiu. Mais uma vez só queria um par de olhos emprestados para ler as especificações do produto. Estava ansiosa para testar o bichinho. Liguei o aparelho e pensei: é só instalar o leitor de tela. O vendedor me garantiu que deixaria a máquina pronta para usar. Quando tentei ligar, desconfiei que ele não havia feito o prometido porque não ouvi nenhum sinal de inicialização. Fui correndo até a sala pedir a San que lesse o que estava na tela.

– Dani, não entendo de computador.

Decididamente, eu não havia aprendido a lição de alguns minutos antes.

Telefonei para o vendedor, que confirmou não ter tido tempo de configurar o notebook, como havia prometido. July e Mônica chegaram por volta das cinco. Notei que July não estava ocupada e pedi para ela me ajudar a ligar o notebook. Disse que só me ajudaria no dia seguinte. Como estava ansiosa para usar o equipamento, pedi a Mônica. Ela disse que July me ajudaria. Ou seja, só restava esperar o que para mim pareciam ser horas infinitas até o dia seguinte. Com um detalhe: July nunca acordava antes do meio-dia.

Como não tinha nenhum plano para o fim de semana além de mexer no notebook, telefonei para Lúcia. Afinal, ela disse que poderia ligar se precisasse de algo. Eu estava precisando de companhia para sair.

– O que você vai fazer nesse fim de semana, Lúcia?

– Não sei. Não fiz nenhum plano. De repente, vou para o Brazilian Day em downtown, ou então, vou a um museu. Ainda não sei.

– Eu também quero visitar uns museus. Por que não vamos amanhã

então?

– Não sei. Eu não gosto de me prender a nenhum compromisso. Eu vim aqui para ficar livre, leve e solta. Sem horário, sem compromisso.

– Mesmo para passear?

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– É. Não quero me comprometer com ninguém. Quero sair a hora que der vontade e ir aonde me der na telha.

– Tudo bem. Se você mudar de ideia e quiser fazer alguma coisa, me ligue. Ou se tiver alguma dica de algum lugar, alguma coisa que eu possa fazer, me ligue dizendo que dou um jeito de ir sozinha. Faz duas semanas que estou aqui e ainda não aproveitei nada – comentei sem jeito.

No dia seguinte, lá pelas três da tarde, July foi ao meu quarto para me ajudar a ligar o notebook. A instalação do leitor de tela que eu tinha não deu certo. Ela procurou na internet e encontrou outra versão do mesmo leitor. Funcionou, mas era um pouco diferente do anterior, o que me obrigava a aprender a usá-lo.

Quando comecei a usar computador, já tinha curso de datilografia. Para mim, nunca foi problema usar o teclado. Até porque podemos conferir o que foi digitado com o leitor de tela. Mesmo assim, preciso de alguém que enxergue para me mostrar, na primeira vez, algumas teclas, como abrir e fechar a gaveta do CD, teclas de atalho para aumentar e diminuir volume, alguns detalhezinhos simples, no entanto, necessários para que eu possa usar o computador com independência. Ainda mais naquele caso, uma nova versão do sistema operacional – ainda em inglês – e um leitor de tela que não conhecia direito. Por isso, pedi a July que me mostrasse as teclas da máquina que não sabia o que era e navegasse um pouco no Windows em inglês para me familiarizar.

– Não. Não. Não. Não. Não. Chega de computador por hoje – disse.

– É rapidinho. Eu só preciso que você me mostre algumas teclas para que eu possa usar o notebook sozinha – insisti.

Ela se negou e saiu do quarto. Fui tentando usar a máquina, mas sem conseguir, por exemplo, encontrar o atalho para o volume. Fora o medo de fazer algo errado e comprometer o uso. Também não estava achando o botão para abrir a gaveta do CD. Pedi ajuda para Mônica.

– Eu falei para você esperar meu técnico para comprar o computador – ralhou. – Agora você comprou uma máquina e não pode usar! Você tem que devolver essa máquina e comprar uma em braille.

Tentei explicar que só precisava de um par de olhos para me mostrar algumas teclas, uma ajuda que precisaria com qualquer equipamento novo. Não consegui nem argumentar.

O que iria fazer com aquele possante na mão sem poder usar direito? Mais uma vez recorri a Marcelo, meu amigo com deficiência visual, técnico de informática, que sempre me ajudava nos apuros. A internet, por milagre, estava funcionando. Conectei meu velho netbook e o chamei pelo Skype.

– Fala, Dani!

A chamada estava tão boa que parecia que ele estava ao meu lado.

– Então, Marcelo. Para variar, preciso de você.

– Que que foi dessa vez? – perguntou, sempre solícito.

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– Comprei meu Sony.

– Oh! Que legal!

– Então, os programas de tela que você me deu não funcionaram nele. Por que será?

– Não funcionaram? Como assim?

– O notebook simplesmente não me deixou instalar.

– Mas que mensagem que deu?

– Esse programa não é compatível com essa plataforma. Alguma coisa do tipo.

Marcelo pensou um pouco e falou num instalo:

– Ah! O Windows desse notebook é de 64 bits?

– Sei lá.

– Eu acho que é.

– E tem isso também?

– Os leitores de tela que você tem são para 32 bits. E você deve ter comprado uma máquina com Windows de 64. Marcelo deu uma pausa e continuou:

– Puxa, Dani! Eu não lembrei de te falar desse detalhe! Desculpe!

– Imagina! Como é que você iria lembrar de tudo?

– E agora, Dani, o que você vai fazer?

– Bem. A menina que mora aqui achou a versão 12 do programa na internet e eu to usando o demonstrativo dele. Aí, quando voltar para o Brasil, a gente vê o que faz. O problema é que tenho que reiniciar o notebook de quarenta em quarenta minutos. E nesse tempo, não dá para fazer muita coisa.

– É verdade. Mas e aí, como estão as coisas? Está feliz com a máquina nova?

– Muito feliz. O problema é que preciso de uns olhos para me dar aquelas orientações básicas de máquina nova, sabe? Mas pedir ajuda para esse povo daqui é um martírio.

– Poxa! Mas o povo aí é tão difícil assim? Porque você não precisa de muita coisa, só de uns “zóio” emprestados.

– Você não imagina como eles são complicados. Eu só pedi para o San, marido da mulher aqui, para ler as especificações do note para ver se veio o produto certo, sabe? E ele se recusou, dizendo que não entende nada de computador.

– Meu Deus! Não precisa entender de computador! É só ler a etiqueta que está colada na máquina. Você não falou isso para ele?

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– Tentei.

– Poxa! Agora dá para entender por que você está sofrendo tanto aí. Você pegou um povinho difícil!

– Para você ter ideia do que passo aqui.

– É! Agora, estou com pena de você, Dani.

– Fui perguntar a eles onde fica o volume e queria conferir algumas teclas, sabe?

– Sim, normal.

– Aí, a mulher brigou comigo, dizendo que eu deveria ter comprado um notebook com teclado em braille.

Marcelo caiu na gargalhada.

– Teclado braille! Para você? Só pode ser piada! Você digita como ninguém!

– Pois é, Marcelo. A gente não precisa disso. Mas existe teclado em braille?

– Até existe. Mas você precisa encomendar direto da fábrica, correndo o risco de voltar para o Brasil sem a máquina. Além do mais, não acho legal que os deficientes comprem teclado em braille, porque eles podem se acomodar e não vão encontrar esse tipo de teclado nas empresas onde forem trabalhar. Já pensou? Mais esse ônus para as empresas?

– Sem falar que a gente iria demorar mais para digitar se fosse ler as letras, antes de teclar.

– Pois é.

– Voltando à vaca fria, porque essa internet pode cair a qualquer momento, preciso que você me dê algumas orientações. Você vai ter que se lembrar como é um Sony Vaio, Marcelo.

– Vamos lá. O que você quer saber?

– Bom, primeiro, acho que as teclas de cima são F1, F2...

– É. Normalmente, é isso mesmo.

– A tecla função deve ser essa aqui do lado do iniciar, né?

– Isso mesmo.

– E eu já descobri que o Page up e o Page down é feito com função flechinha, porque não é volume. Então, onde está o volume dessa máquina?

– Deixa ver se encontro os atalhos do Sony Vaio na internet. – disse Marcelo, enquanto procurava.

– Se a gente não achar como diminuir esse volume, azar o deles. Ninguém mandou não quererem me ajudar. Vão ter que ouvir esse computador falando alto mesmo, porque eu não vou pôr o fone de ouvido com esse volume.

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– É isso aí, Dani!

Marcelo deu uma pausa e prosseguiu:

– Tenta função F3 e F4 para o volume.

– Ai! Ta dando uns bipes aqui. To com medo de fazer alguma coisa errada.

– Então, não mexe, porque do jeito que você ta falando que o povo é aí, se der pau no computador você não vai poder contar com nenhum par de olhos para olhar.

Nossa conversa foi interrompida por Mônica, que veio me perguntar se a internet estava funcionando.

– Está sim. Meu amigo cego está me ajudando lá do Brasil como usar meu notebook.

– É porque July não está conseguindo se conectar. E achamos que é porque minha internet não suporta mais que um computador. Então, quando você terminar, pode nos avisar para que ela possa se conectar?

– Sim. Claro.

Mônica saiu do quarto e Marcelo não se aguentou:

– Então quer dizer que agora a sua internet está funcionando e a da outra, não? – comentou irônico.

– Pois é. Estou há duas semanas sem conseguir usar a internet direito, e ninguém está nem aí.

– Mas com qual computador você está conectada?

– Com o velho. O novo nem Skype tem.

– E nós estamos aqui falando todo esse tempo sem cair? Então, significa que o problema não era mesmo o computador. É a rede que não suporta mais de uma máquina. E agora que você entrou na internet primeiro, seu computador não deixa o outro conectar. Ô dó! – concluiu Marcelo, sarcástico.

– É bom! Vamos ver se agora a Mônica se mexe. Mas e se ela vier aqui me mandar desconectar, o que faço?

– Diga que eu só posso ajudar no fim de semana e que nós estamos no meio das instalações de uns programas.

– Está bem. Agora, uma coisa que achei estranho é que não encontro o botão de abrir a gaveta do CD.

– Não está do lado da gaveta?

– Não. Não tem nada aqui.

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– Estranho!

Tateei o computador para tentar encontrar um botão e achei uns botões em cima das teclas F1, F2... Apertei o da esquerda, e a gaveta abriu. Vibrei:

– Achei! Achei! “Nóis semo bom mesmo!” Dois cegos, sozinhos, conseguiram se achar numa máquina nova!

– E os videntes que estão com você não viram o que você viu. Por isso tenho orgulho de ter sido seu professor! – ria Marcelo.

– Um dia, vamos ter que ir no “Programa do Jô” para contar essa história – brinquei.

– Essa merece mesmo. Você tem que escrever um livro dessa viagem, Dani.

– Sabe que todo o mundo com quem falo me diz isso?

– Assino embaixo.

Continuei conversando com Marcelo até meia-noite e aproveitei que estava com ele para instalar e configurar alguns programas no meu notebook novo. Nessas horas, sentia-me privilegiada por ter amigos com quem contar. E ele estava lá, a qualquer hora do dia, pronto para me atender. E olha que no Brasil já eram quatro da manhã do domingo.

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Capítulo 9

“Você Não Está Vendo, Mas...”

A segunda-feira começou com o pé esquerdo. Na estação perto da escola, o elevador não estava funcionando. Higgans e eu não conhecíamos outro caminho. Pessoas estavam tentando nos ajudar a encontrar à escada rolante, quando chegou um skytrainer, com um tom de voz autoritário:

– Pode deixar! Pode deixar que eu a ajudo – já nos puxando para o elevador.

Um senhor que tentava me ajudar disse que o elevador não estava funcionando. Do alto da sua “autoridade”, o funcionário ignorou.

– Pode deixar. Eu sou skytrainer e estou aqui para ajudá-la.

Até eu me senti intimidada. Nem parecia um canadense. Pelo menos não os canadenses com quem cruzei nas ruas, que eram gentis e prestativos.

Enquanto ele me puxava para não sei onde, uma senhora o abordou

pedindo informação. Ele disse que não havia entendido. Ela tentou repetir, mas foi rudemente interrompida:

– Olha! Eu não consigo entender o que a senhora diz. Agora estou ajudando esta senhorita – e saiu me puxando.

Também tentei alertá-lo de que o elevador não estava funcionando. Ele seguiu me puxando em direção ao elevador, onde outro passageiro confirmou:

– O elevador não está funcionando.

O skytrainer, no entanto, parecia não ouvir ninguém, ou não acreditar. Precisou conferir pessoalmente. Quando constatou que o elevador não funcionava, puxou-me novamente para outro lado. Como não havia nenhum degrau, só notei que estava dentro de um ônibus, quando, incrédula, senti o movimento.

– A gente está num ônibus?

– Sim. Esse ônibus vai nos levar a um ponto. Nós vamos pegar outro ônibus que vai deixar você na mesma rua que o elevador da estação deixa.

– Mas vou acabar chegando atrasada à escola.

– Sinto muito. Estou fazendo o melhor que posso.

– Mas não precisava de tudo isso. Era só me levar até a saída pela escada rolante e me dizer em que rua estava.

– O seu cão-guia não sobe escada rolante.

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– Claro que sobe.

– Não sobe. Quando cheguei, ele não queria subir.

Quando o skytrainer chegou, havíamos acabado de chegar à escada rolante. Havia pessoas na nossa frente e por isso Higgans não subia. Naquela altura do campeonato, não adiantava falar nada. Afinal, a confusão já estava feita e eu teria que descer daquele ônibus e pegar outro. Depois que desembarquei do segundo ônibus, segui para a escola soltando fogo pelas ventas. Eu não estava acreditando que alguém seria tão tapado a ponto de me fazer pegar dois ônibus, em vez de simplesmente me conduzir até a escada rolante ou qualquer outra saída. Na estação mais próxima da casa de Mônica, o elevador ainda estava em construção, e o único acesso era por escada, o que não tinha nenhum problema para Higgans e eu.

Toda segunda-feira havia aluno novo começando um curso ou algum coreano ou japonês voltando das férias. Aquele dia marcou o retorno das férias do coreano Teg e a chegada de Fátima. Os professores falavam Fatíma. Pelo nome, suspeitei que ela viesse de algum país de origem árabe. Por ser a única aluna de nacionalidade diferente, interessei-me logo em conhecê-la.

Para minha sorte, ela caiu no meu grupo no exercício de speaking. Até que enfim, alguém cujo inglês podia entender. Falava muito bem. Com certeza deveria estar em um nível mais avançado e fora colocada naquela turma por engano. Vinha do Marrocos e não tinha nada do estereótipo da mulher árabe.

Nas aulas de speaking, o professor colocava-nos em situações reais como as de empresa, família, viagens. E Fátima era bastante falante. Demonstrava ser uma mulher de personalidade forte, defendia sua opinião como uma executiva, o que ela me confirmou depois que era mesmo. Ocupava um cargo importante de uma empresa e estava ali para aprimorar o inglês.

Teg também trocava letras de vez em quando, todavia, sua pronúncia era mais fácil de entender do que a dos outros coreanos. Talvez por ele ser mais desinibido.

Como de costume, almocei com o professor Nial. Fomos a um bar australiano perto da escola. Pedi um prato típico da Austrália, e a garçonete me indicou uma torta, uma espécie de empadão de carne moída. Comi aquilo com algo que nunca pode faltar no meu cardápio: salada.

– Professor, quando lhe peço para ler o exercício para mim é porque meus colegas já leram e eu não entendi a pronúncia deles. Estou explicando isso porque não vou falar na frente deles. Não quero magoá-los.

– OK. Os estudantes japoneses e coreanos têm mais dificuldade na pronúncia. Eles têm mais dificuldade nas aulas de speaking. Além do mais, são muito tímidos, têm vergonha de falar. Por isso é bom ter uma aluna falante como você nas minhas aulas.

– Prometo que vou tentar falar menos, para deixar os outros falarem.

– Não! Por favor! Você não fala demais! Você acaba obrigando os outros a falarem mais. Você me ajuda muito nas aulas!

– Como já tinha notado essa timidez da parte dos outros, muitas vezes, quando você pergunta alguma coisa, espero para saber se alguém vai responder. Quando estamos em grupo, como já sei que tenho tendência a falar bastante, fico instigando os outros a falarem.

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– Você é muito perspicaz. E aproveito para dizer que suas palestras são as melhores da turma. Você é espontânea. Todo mundo presta atenção quando você fala.

– Tanto é que você não me interrompeu quando estourei o tempo.

Rimos, porque na minha primeira palestra era para falar por três minutos e, como não havia ensaiado em casa, acabei falando por quase dez minutos.

– Mas foi bom! Foi tão bom que nem vimos o tempo passar – elogiou.

Conversamos também sobre minha estadia. E ele disse que entrou em contato com o Instituto Canadense para cegos (Canadian National Institute for the Blind CNIB), com o objetivo de ver em que eles poderiam me ajudar:

– De repente, eles te ajudam a encontrar uma moradia.

Não sei por que tem gente que pensa que instituto de cego pode fazer tudo pelo cego, como se eles tivessem salão de beleza, academia e até imobiliária para cego. Seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, muitas pessoas tendem a achar que esses institutos são mágicos. “Diga o que quer que providenciaremos para você.” Tais instituições servem para providenciar serviços e produtos que venham a facilitar nossa vida: aula para aprender a andar sozinho, para ler braille, relógios que falam... Se preciso aprender inglês, tenho que procurar uma escola de inglês. Se quero viajar, procuro uma agência de turismo, se quero trocar de moradia, quem tem que trocar são os que contratei para tanto. Achei melhor que o professor descobrisse isso sozinho.

Disse a Nial que se permanecesse em Vancouver, iria querer aulas particulares de inglês, em vez de continuar na escola. Nial cobraria em torno de 20 dólares canadenses a hora. Por isso, valia a pena ter aulas particulares.

Recomendo a quem quer estudar inglês no exterior para contratar um mês de curso em uma escola, com carga horária mínima, apenas para fazer contatos e conhecer pessoas. Nesse tempo é possível conhecer os professores e escolher um que dê aulas particulares. Então, a pessoa tem tempo de procurar um emprego ou um curso do seu interesse e aproveitar o professor só para tirar suas dúvidas e aprimorar o inglês que vai aprendendo no dia a dia.

Nial também se dispôs a me ajudar a andar pelos arredores da minha nova moradia, assim que a encontrasse, mediante um pagamento acessível.

Ao voltar à aula, duas surpresas: uma agradável e outra nem tanto. O professor Greg, de listening, não daria aula naquela semana porque a esposa dera à luz. Em seu lugar assumiu um professor jovenzinho e meio atrapalhado, mas muito bacana, o Patrick.

– O professor Greg me passou umas atividades para fazer com vocês, mas ele já me adiantou que você não poderia participar, Danieli, porque é totalmente visual. Você tem que ouvir as orientações e desenhar no papel.

Essa era a parte desagradável. Patrick, coitado, acabou ouvindo meu desabafo, mesmo sem ter nada a ver com a questão. Eu já andava enlouquecida com a escola e aquela segunda-feira já não tinha começado muito bem.

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– Eu acho um desrespeito fazer uma atividade totalmente visual, sabendo que tem uma estudante cega – comentei.

– Eu me sinto muito mal com isso e sinto muito. Vou falar com o diretor da escola depois – explicou-se Patrick incomodado.

Depois da aula, ele me procurou. Acabamos nos dando muito bem. Pedi desculpa pelo jeito como havia falado e expliquei que não era só isso que estava me deixando nervosa com a escola. Ele ouviu, interessado e indignado. Pela milésima vez, ouvi a mesma pergunta, entre a incredulidade e a indignação:

– Te colocaram em Surrey?!!!

E o mesmo blábláblá.

– É por essas e outras que me desanima dar aulas nessa escola – desabafou. – Entendo você perfeitamente. Não há clima para você estudar em harmonia nessa situação. Longe de casa, num lugar sem estrutura e sem apoio. Você é muito corajosa! Acho o máximo você estar aqui! Você deveria escrever um livro sobre isso.

À tarde, Suni disse que não poderia ir comigo visitar os imóveis. Choi iria em seu lugar.

Nas portas dos apartamentos estava escrito: “Favor retirar o sapato antes de entrar”. O quarto que estava para alugar era tão pequeno que não caberiam minhas coisas e as do Higgans. E como eles alugam a sala também como quarto, eu teria que ficar confinada naquele cubículo o tempo todo. Impossível. Além disso, mil dólares canadenses era um preço alto demais por apenas um quarto. O apartamento de Adam era bacana, mas não tinha televisão e estaria vago somente até o fim do mês. Não valia a pena.

Passava das cinco quando fui à agência de Edmundo, que me mostrou o apartamento que estaria livre em setembro. Fomos a pé da agência dele. Um apartamento todo equipado por mil e setecentos dólares por mês. Só faltava ventilador. Como as janelas abriam quase nada, era muito abafado. Nem eu que sou friorenta aguentaria ficar lá sem ventilador. Tirando esse detalhezinho, era perfeito. Por se tratar de um apartamento de um amigo de Edmundo, não seria necessário fazer contrato por seis meses, como se exigiria normalmente. Só tinha dúvidas sobre a localização, se por perto havia supermercado e lugares para comer.

– Isso não sei te dizer porque não conheço essa região. Pego o carro e venho direto para o trabalho – explicou.

Precisava dessas informações. Para morar sozinha tinha que pensar em todos os detalhes práticos da vida diária: alimentação, transporte, farmácia, segurança.

Depois de Edmundo me mostrar todo o apartamento, sentamos no sofá e ficamos conversando um tempão. Ele pegou um uísque do proprietário e bebeu sozinho. Perguntava sobre mim, contudo, não me deixava falar. Interrompia a todo instante, contando as próprias histórias. Quando comecei a contar porque estava ali:

– Quando terminei a novela...

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– Você é famosa? – espantou-se. – Lúcia não tinha me falado que você era famosa! Se eu soubesse, não iria te atender!

Pegou o celular e se fechou na sacada para falar não sei o que com não sei quem. Disse que precisava falar com a namorada. Achei muito estranho. Ele havia ligado para outras pessoas na minha frente, inclusive, usando viva-voz.

Voltou à sala, comentando:

– Então, quer dizer que você é famosa?

– E daí? O que que isso tem a ver?

– É que eu não gosto de gente famosa. Gente famosa é complicada, é metida. Mas esse Geraldo é mesmo uma besta – falou rindo consigo mesmo.

– Do que você ta falando?

– Nada. Nada. – respondeu, movimentando-se pela sala, como se tivesse mil pensamentos passando pela cabeça.

– Se você é famosa, então, vamos fazer um comercial da minha agência, usando você de lingerie – brincou Edmundo.

Eu só ria, sem entender nada. Não entendia se ele havia se espantado porque teve problema com pessoas famosas ou porque achava que Geraldo tinha mexido em vespeiro. Não sei o que se passava pela cabeça de Edmundo, que, entre uma bobagem e outra, soltava uma frase do tipo:

– Eu tenho tatuagem. Você gosta de cara tatuado? Você namoraria com um cara mais velho? Não. Você jamais se interessaria por um cara como eu.

Dizia essas frases soltas, do nada, e ficava por isso mesmo. Ainda bem. Porque ele não fazia meu tipo.

Já passava das sete da noite, e estava morrendo de fome. Precisava ir embora.

– Bom, já é tarde.

– Você está com fome? – perguntou Edmundo.

– Morrendo. Vou sair daqui e procurar algum lugar para comer.

– Então, já que você disse que não conhece nada aqui em Vancouver, vou te levar num restaurante bem legal. Topa?

– Opa! Vamos! Em algum lugar vou ter que comer.

Edmundo me levou a um restaurante grego muito famoso em Vancouver. Em plena segunda-feira, tinha fila para entrar. Também porque o lugar era pequeno.

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Depois de uma hora esperando em pé, meu celular tocou, e Edmundo foi para dentro do restaurante falar com a atendente que o havia chamado. Por isso, não ouvi o que conversaram. Era Suni no celular. Queria saber o que achei dos lugares, sem saber que havia visitado mais um apartamento com Edmundo. Enquanto falava ao celular, Edmundo me puxava para dentro. Notei que estava passando pelas mesas e estávamos indo para uma mesa externa do restaurante.

– Mas está um vento frio aqui fora. – comentei.

Mesmo no verão, eram raras as manhãs e noites sem vento gelado em Vancouver. Naquela noite, o vento cortava meu rosto. Edmundo, todavia, explicou:

– A atendente disse que não dava para ficarmos lá dentro porque iria ficar muito apertado para o cachorro e os garçons poderiam pisar nele.

– Meu cachorro está acostumado com lugares apertados. Além do mais, sou eu quem sabe se ele pode ou não ficar em algum espaço. Não gosto quando as pessoas determinam onde meu cachorro pode ou não ficar sem antes falar comigo.

– É que você não está vendo. O lugar é mesmo apertado e está lotado.

– Eu passei pelas mesas e... – Edmundo me interrompeu.

Queria explicar que, como havia passado entre as mesas, percebi que o espaço não era tão apertado a ponto de o Higgans não poder se acomodar. É muito desagradável quando as pessoas ficam falando “Você não está vendo!”. É uma crueldade. Sei que sou cega. Ninguém precisa ficar me jogando na cara. Parece que a pessoa acha que percebe melhor o mundo e pode avaliar melhor as situações só porque tem um par de olhos. Nós cegos percebemos muito bem o mundo com audição, olfato, tato, paladar e principalmente com o cérebro, que não adianta ter e não usar.

Naquele caso, percebi que não era falta de espaço, mas excesso de autoritarismo alheio. Parte da culpa de as pessoas agirem assim, porém, é dos próprios deficientes visuais. Muitas vezes com medo de errar, nós mesmos deixamos de dizer o que estamos percebendo. E daí se eu me enganar? As pessoas que enxergam vivem errando por excesso de confiança, por que eu não posso errar por falta de visão?

Edmundo era um cara muito gente boa, batalhador, que fez a vida ralando com a agência em Vancouver. Entretanto, aquela não era a primeira vez do dia que ele falava a famigerada frase: “Você não está vendo, mas...”. Até tentei me impor. Estava com frio. Mas ele não me deu ouvidos. Deixei de lado. Não queria criar caso e estava morrendo de fome.

A comida estava uma delícia. Ele escolheu arroz, batata, frango tipo a passarinho e pão. Fomos embora logo depois de comer. O restaurante era disputado demais. Os garçons faziam uma ligeira pressão para que os clientes se levantassem assim que terminassem a refeição.

– Aqui o jantar não é um prazer como no Brasil, onde as pessoas se sentam, ficam um tempão, comem sobremesa. Aqui é tudo muito rápido – comentou Edmundo, enquanto nos dirigíamos para o carro.

Ele ficou com pena de me deixar ir de trem para tão longe e acabou me levando de carro. Não queria, de jeito nenhum, que eu telefonasse para Mônica lhe explicar o caminho. Ligou para

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alguns amigos e pediu que olhassem o endereço no Google. No caminho, liguei para ela avisando que estava indo embora de carona. Já havia ligado antes, dizendo que iria jantar fora.

– Por que você não ligou antes avisando que viria de carona?

– Porque eu não sabia que o rapaz iria me levar. Estou sabendo agora e estou te avisando.

A sensação de pavor voltou. Ficava com medo do que me esperaria quando chegasse. Não aguentava mais.

Quando chegamos, Edmundo ficou muito espantado com o lugar:

– Puta merda! Onde foram te enfiar! Tem um barranco aqui!

– Eu falei que tinha.

– Cuidado! Cuidado para não cair! – falava, enquanto segurava minha mão para eu descer do barranco.

As mãos dele tremiam, de tanta força que fez para eu não cair.

– Muito obrigada pelo jantar e pela noite agradável! – agradeci.

– Que é isso, foi um prazer! Sábado, vou fazer um churrasco no prédio onde moro e quero que você vá.

– OK. Aguardo você me ligar pra dar os detalhes.

Edmundo me deixou na porta e foi embora. Nunca mais soube dele.

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Capítulo 10

Ir Ou Ficar, Eis A Questão...

À essa altura, já estava em dúvida se ficaria mais que um mês em Vancouver. A viagem estava saindo muito do orçamento. Viajei prevendo gastar 750 dólares canadenses em moradia. Se fosse ficar naquele apartamento, gastaria mil dólares a mais. Fora as outras despesas. Comecei a pesar e a pensar seriamente em voltar ao Brasil depois que terminasse o mês de curso já contratado. Meu principal objetivo era aprimorar meu inglês até adquirir fluência. Com todas aquelas situações adversas, nem tinha cabeça para aproveitar o curso. Nas ruas, que era onde deveria treinar meu ouvido, não adiantava muita coisa. Só ouvia coreanos e japoneses conversando. Cansei de tentar comprar em lojas e ser atendida por vendedoras dessas nacionalidades, com o Inglês sofrível. Senti que o meu havia estacionado. Percebi que, para a finalidade a que me propunha, melhorar o inglês, Vancouver não era a cidade ideal. Para piorar, só conseguia sair com brasileiros, os únicos que me estendiam a mão.

Na terça-feira durante o jantar, meu celular tocou. Quando desliguei, Mônica disparou mais uma das suas:

– Eu gostaria que deixasse seu celular no quarto durante as refeições.

– Enquanto a internet não estiver funcionando direito, terei que ter meu celular sempre comigo. Pode ser minha mãe. Sem poder usar o Skype quando preciso, não posso retornar para ela.

– OK. Abro uma exceção, enquanto não resolvemos o problema da internet.

No mesmo instante, o telefone da casa começou a tocar. Mônica atendeu:

– July, é sua mãe – disse Mônica, com tom de reprovação.

A moça conversou com a mãe rapidamente.

– Você não falou para sua mãe da regra do telefone? – cobrou Mônica

assim que July desligou.

– Sim. Como não temos horário certo para as refeições, ela não sabia que estávamos jantando agora.

– Eu sei que é difícil seguir essa regra, porque não temos horários nessa casa. Mas não gosto de nenhum aparelho eletrônico durante as refeições – afirmou Mônica.

Naquela noite, a dona da casa me contou que recebera poucos adultos. Que seus estudantes, na sua grande maioria, eram crianças e adolescentes que deveria levar e buscar na escola todos os dias.

– Então, me levar na estação é o de menos para você.

– Sim. Estou acostumada a ter que fazer tudo pros meus estudantes.

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Passei a entendê-la melhor. O que não quer dizer que suas atitudes fossem justificáveis. Antes de nos receber, ela sabia que July e eu éramos adultas.

Pedia a Deus que me mandasse um sinal, algo que me dissesse se era para eu ficar ou ir embora. No dia seguinte, no trem para escola, uma carioca puxou papo:

– Você fez uma novela, não fez?

– Sim. Fiz.

– Como era mesmo o nome da novela?

– “Caras e Bocas”.

– É. Eu me lembro de ter visto você com seu cachorro em algum programa de TV.

– Você está aqui há quanto tempo? – indaguei.

– Um mês. E não vejo hora de ir embora. Não tem nada para fazer nesta cidade. Já conheci tudo o que tinha para conhecer.

– Você veio para ficar mais tempo?

– Não. Vim aqui para estudar um mês de inglês. E já está mais do que suficiente para mim. Chega dessa cidade – respondeu, enfastiada.

– Eu vim para ficar alguns meses. Cheguei aqui há duas semanas e já estou pensando em ir embora. Não gostei da cidade! Só tem estrangeiro aqui!

– É verdade! Onde quer que a gente vá, só tem coreano, japonês e brasileiro. Não tem como aprender inglês desse jeito – constatou.

– Por isso, estou pensando em ir embora depois de completar um mês de curso de Inglês.

– Eu também acho. Ficar aqui é jogar dinheiro fora.

Quando ela desembarcou, pensei: será que aquele era o sinal que Deus me enviou para ir embora? Porque um dos meus receios era ficar com sensação de fracasso, como se tivesse desistido dos meus sonhos. O professor Nial também tinha esse receio. Mas às vezes, saber a hora de parar não é uma derrota. É um sinal de maturidade e sabedoria. E eu não tinha fracassado não. Em princípio, tinha planos de ficar só um mês para ver se me adaptaria à cidade. E iria cumprir um mês de estudo. Talvez ficar fosse uma perda. Perda de tempo, perda de uma grande quantia em dinheiro sem o retorno esperado.

Naquela quarta-feira, almocei com Caio em um dos restaurantes do prédio da escola.

– Estou morto! Não aguento mais lavar prato!

– É o seu novo hobby – brinquei, tentando animá-lo. – Pelo menos você está ganhando uma graninha.

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– É. Mas são só algumas vezes por semana. E não dá nem para pagar minhas despesas. É muito trabalho escravo para pouco retorno.

– É complicado. Tudo aqui é muito caro. Estou pensando em ir embora depois de completar um mês de curso.

– Eu também não sei se vou continuar na escola depois de um mês. Não sei nem se vou continuar aqui em Vancouver.

– Você não está dividindo apartamento com seu amigo? Não está valendo a pena?

– É. Se não fosse pelo meu amigo, acho que não valeria mesmo a pena ficar aqui. Eu acho você muito corajosa em vir sozinha. Ainda mais nas condições em que te colocaram. Admiro muito. Você é um exemplo. Eu não teria essa coragem se estivesse na sua situação.

– Você diz isso porque pensa que não pode viver sem a visão. Mas quando a água bate na bunda, você tem que aprender a nadar. Você iria ter coragem, sim. Caso contrário, nem viveria. Ou vai me dizer que você deixaria seus sonhos se ficasse cego?

– É. Pois é – balbuciou, sem saber o que responder.

Antes de decidir se ficaria em Vancouver por mais tempo, queria visitar as escolas de interpretação, para ver se valia a pena. Depois da aula, fiquei na Starbucks localizada ao lado da escola para usar a internet e telefonar para as escolas. Pedi um bolo para comer com café e fiquei trabalhando no netbook. Liguei para a Methodica, escola pela qual eu mais havia me interessado.

– Quem fala?

– Ashen.

– Aqui é Danieli, atriz do Brasil. Eu falei com vocês por e-mail!

– Ah! Sim!

– Queria conhecer a escola.

– Ótimo! Quando você pode?

– Posso ir hoje, porque estou em downtown.

– Estou com um aluno agora, mas termino às cinco e meia. Você pode vir aqui nesse horário.

– Ótimo! Estou aqui na Starbucks da Hornby, entre a Pender e a Dunsmuir. A escola fica perto daqui? Dá para ir a pé?

– Dá sim.

A pessoa me explicou onde ficava a escola, mas eu não conhecia as ruas. Expliquei que era cega e perguntei se deveria seguir para a direita ou para a esquerda. Muito atenciosa, a pessoa ofereceu-se para me encontrar no café.

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– Desculpe perguntar, mas esses nomes estrangeiros... e a ligação também está ruim... Mas você é homem ou mulher?

Entendi que a pessoa disse “mulher”. Era muito atenciosa.

Terminei a ligação por volta de quatro horas. Enquanto esperava, fiz mais alguns telefonemas e fiquei navegando na internet. Aquela loja Starbucks não era confortável como as que eu costumava frequentar nos Estados Unidos. As cadeiras eram duras. Meu cóccix estava doendo muito. Com preguiça de levantar acampamento com netbook e tudo para procurar outro estabelecimento, preferi aguentar a dor. Liguei para a Vanarts. Janine, responsável pelos cursos, só poderia me receber no dia seguinte. Combinei de visitar a escola depois da minha aula.

Pontualmente, no horário combinado, Ashen chegou. E eu ainda tinha dúvida se era homem ou mulher. Nessas horas, fico em desvantagem por não enxergar. Fomos caminhando em direção à escola.

– Por que você resolveu me buscar? Era só me explicar o caminho.

– Quando você falou que era cega, pensei: não custa vir até aqui. É pertinho. Ficaria mais fácil para você que não conhece a cidade.

– Isso é verdade. Agradeço muito pela atenção. Mas não queria incomodar.

– Sem problemas. Eu sempre ajudo meus alunos. E eu gosto de andar.

– Você é canadense?

– Não. Sou da Bulgária.

Quando chegamos ao local da escola, Ashen abriu a porta. Entramos num prédio velho e vazio. Não tinha porteiro nem movimento. Talvez fosse pelo horário, perto das seis. Não sei por que os escritórios fecham cedo em Vancouver, se começa a escurecer lá pelas nove. Talvez, por causa do inverno, quando o sol se põe por volta das cinco.

Subimos três andares de escada de madeira. O prédio não tinha nenhuma estrutura. Naquele instante me bateu um medo. Pensava: “Onde fui me meter? Por que não chamei Caio para vir comigo? Como me meti a besta de vir sozinha?” Quando se ouve a palavra escola, imagina-se um lugar com recepcionista, alunos e professores andando para lá e para cá. Não havia me tocado que no Brasil, normalmente, os cursos de teatro eram em salas improvisadas. Pelos cursos que as escolas ofereciam na internet, imaginava que estava indo para escolas mais bem estruturadas, maiores. Não imaginava que iria ficar com uma pessoa estranha, sozinha, num prédio vazio. Era tarde demais para voltar atrás. E não sou nada boa para inventar desculpas convincentes do tipo: esqueci que tinha outro compromisso e estou atrasadíssima. Ashen já havia trancado a saída. Se estivesse com más intenções, já era. Mas ainda tinha a esperança de encontrar mais alguém dentro da escola. Chegando à porta da sala, Ashen destrancou a porta com a chave e entramos. Era uma sala ampla. Estávamos sós. Quando Ashen me contou sua história, os trabalhos que já havia feito no teatro, constatei que era ele, não ela. Então, gelei. Pronto: uma garota cega, estrangeira, sozinha no país, trancada sozinha numa sala com um homem estranho num prédio completamente vazio, numa quadra em que não se ouvia ninguém circular pela calçada. Não posso negar que me senti incomodada, jurando que nunca mais faria uma loucura daquelas. E ao mesmo tempo pensando no que fazer. Ninguém da minha host family viria do fim

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do mundo a Vancouver; Caio estava trabalhando, Lúcia tinha a liberdade dela. Eu realmente estava sozinha. Teria que enfrentar todos os riscos sozinha. Não tinha alternativa. Era hora de desencanar.

Ashen parecia sério no seu trabalho.

– As escolas por aqui só querem saber de ganhar dinheiro. Eu quero ensinar algo a meus alunos. Eu trabalho com o método de Stanislaviski.

É um método bastante conhecido entre os atores. Trabalha muito com a chamada memória emotiva. Trabalhei com ele em todos os cursos de teatro que fiz.

Ashen era diretor e professor de teatro na Bulgária. Mudou-se para Vancouver em 1998, fundando a Methodica dois anos depois. As aulas eram diárias, das nove às quatro da tarde. No período da tarde, ele trabalhava mais individualmente com os alunos.

– Eu faço tudo por aqui: ensino, produzo, atendo telefone...

– Então, você é o único professor?

– Tem uma professora de voz, uma atriz canadense.

– E os alunos são, na maioria, canadenses ou estrangeiros? – assuntei.

– Normalmente é meio a meio. Neste mês, por exemplo, tenho quatro alunos canadenses, uma brasileira, uma alemã, uma mexicana e uma dinamarquesa.

Ficamos conversando sobre as técnicas dele e sobre nossas experiências até por volta de sete da noite. Comentei que ainda tinha dúvidas sobre ficar em Vancouver, expliquei sobre as condições de moradia em que eu estava. Era mais um que se espantava.

– Não tem condições de ficar em Surrey. Você deve se mudar para Vancouver.

– Pois é. Um cara até arrumou um apartamento para mim aqui em downtown, mas ele não soube me dizer se é próximo de comércio. Preciso de um lugar onde possa fazer tudo sozinha. Não posso me mudar de onde estou para arrumar outras dificuldades, não é?

– Claro. Mas onde fica esse apartamento?

– Na Citadel Parade.

– É aqui ao lado da escola. Tem uma rua aqui perto com vários lugares onde você pode comer. E eu posso te buscar e levar para escola até você aprender o caminho.

– Puxa! Muito obrigada. E mercado?

– Tem um mercado chinês bem na rua. E uma estação de metrô.

– E esse mercado chinês é normal ou só vende produtos específicos da culinária chinesa?

– É um mercado normal. Tem de tudo.

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– Leite, sabão em pó...

– Sim.

– Puxa! Que legal! Bom saber que posso contar com você. Mas sabe, acho que não vou encontrar em Vancouver o que vim procurar. Estou percebendo que aqui não tem muita oportunidade na minha área, não é?

– O que você esperava encontrar aqui?

– Sei lá. Oportunidades para atuar como atriz no cinema ou na televisão, no teatro. Ou como jornalista de rádio ou TV. Mas pelo que percebo, não tem grandes emissoras de rádio e TV aqui.

– É. Em Vancouver não tem muita oportunidade.

– E acho que no cinema também não, não é?

– Vancouver não tem uma produção local forte. Alguns anos atrás, os americanos vinham gravar seus filmes aqui porque, como o dólar canadense estava mais baixo que o americano, era mais barato. E também tinha mão de obra e locações baratas. Mas agora que o dólar canadense está mais forte...

– Então, você acha que vale a pena continuar aqui, pensando nos meus objetivos?

– Eu acho que você deveria ir para Los Angeles ou Nova York. Eu acho sim que você deve tentar o mercado internacional. Mas não aqui.

– É. Eu também estou chegando a essa conclusão. E Vancouver é um lugar muito caro. Acho que não vale a pena o investimento. Se ficar aqui, vou gastar muito dinheiro, sem ter o retorno que espero. A minha ideia inicial era ir para os Estados Unidos. Mas acho que sem o inglês fluente, enfrentaria muito preconceito. Então, achei melhor me aprimorar aqui primeiro.

– Mas seu inglês é excelente! Nem parece que é brasileira!

– Engraçado. É o que todos dizem aqui no Canadá, mas todos os americanos com quem falo dizem que meu inglês é muito básico.

Ashen fez algum som, desaprovando a opinião dos americanos.

– E você que está aqui há 13 anos, se acha fluente no inglês?

– Não. Ainda me pego com algumas coisas.

Conversamos mais um pouco sobre a exigência exagerada dos americanos com o inglês, sobre o mercado canadense e as aulas da escola de Ashen. E fiquei de avisá-lo, caso decidisse ficar para turma de setembro. As aulas até que não eram caras pela carga horária: novecentos dólares por mês. Era o valor que eu pagava só pelo curso de inglês, com menor carga horária e menos personalização. O problema era o custo para ficar em Vancouver. Ashen estava tão animado para me receber em sua escola que até se propôs a procurar textos em Braille para trabalhar comigo.

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Antes de eu ir, Ashen quis me levar até a rua do apartamento que Edmundo me mostrara, que na verdade era uma travessa de uma quadra só.

– Quero te mostrar como fica próximo do trem e da área comercial.

Realmente, além de um bom apartamento, ficava muito bem localizado. Agora, precisaria pesar os prós e os contras. Ashen me deixou na estação em frente ao apartamento, duas estações antes da escola. Mais tarde, ligou para saber se eu tinha chegado bem em casa. Se ficasse na Methodica, teria alguém para me apoiar. O tamanho do investimento e o pouco retorno é que estavam pesando. Nas ruas era difícil treinar um bom inglês. No curso de interpretação, onde eu esperava encontrar mais nativos, havia muitos estrangeiros. Nem o professor com quem teria aulas intensivas de interpretação era nativo. Estava mais propensa a voltar ao Brasil do que ficar.

Na quinta-feira, Fátima não participou de nenhuma aula comigo. Havia sido transferida para uma turma mais avançada, como eu previra. Depois da aula de inglês, encontrei Lúcia no elevador da escola.

– Você está indo embora? – perguntou.

– Não. Vou conhecer uma escola de interpretação aqui perto. E você?

– Eu vou para a aula de artesanato que estou fazendo numa comunidade brasileira que conheci no dia do Brasilian Day.

– Que legal! É aqui em downtown?

– Não. É mais perto da minha homestay. Onde fica essa escola que você vai?

– Fica a umas duas quadras daqui, na Dunsmuir, na esquina com a St. Seymour.

– É caminho para minha estação de trem. Eu te acompanho até lá.

Conversamos sobre eu continuar ou não em Vancouver. Ou melhor, em Surrey. E Lúcia soltou o famigerado comentário:

– Você não está vendo, mas, quando a gente anda pelas ruas de Vancouver, parece que a gente está na Ásia. Só se vê coreano e japonês. Realmente, aqui não é um bom lugar para quem quer aprimorar o inglês.

– Não preciso enxergar para saber disso. Eu escuto cada vez que ando pelas ruas.

– Você disse que era um prédio com vidro azul? – perguntou Lúcia, depois de cruzarmos a Seymour.

– É.

– Pelo número, deve ser aqui. É um prédio bonito! Você sabe o número da sala?

– Não. A mulher só mandou subir até o quinto andar.

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– Mas tem um monte de números aqui no interfone. A gente precisa saber o número certo para apertar aqui para poder abrir a porta – afirmou Lúcia, referindo-se aos botões na parede, que deveriam ser do interfone.

– Bom. Vou apertar aqui os números que começam com cinco para ver no que dá.

Lúcia começou a apertar os botões. Ninguém atendia. De repente, começou a soar um alarme.

– Vamos nos afastar daqui. Não é comigo! – disse Lúcia, tomando distância da porta. – Liga lá para ver.

Telefonei para Janine.

– Janine, estou no prédio que você me falou. Que número eu aperto para abrir a porta?

– Você não tem que apertar número nenhum. É só abrir a porta e entrar – respondeu, como quem considerasse a pergunta idiota.

– Peguei no puxador da porta e abri. Não sei por que Lúcia achava que tinha que apertar algum botão. Ela me acompanhou até o elevador e foi embora.

Além de Lúcia ter dito que era um prédio bacana, podia perceber, pela porta, o cheiro, os sons, que se tratava de um prédio comercial e mais ajeitado que o do dia anterior. No quinto andar havia uma recepcionista, uma sala de espera, sofás confortáveis, pessoas circulando. Janine me recebeu em sua sala e se mostrou admirada quando viu que eu era cega, mostrando-se ainda mais interessada quando lhe contei minha história.

– Você é a primeira atriz cega a atuar numa novela? Você veio para cá sozinha? Isso é fantástico!

Ela me falou dos cursos que a Vanarts oferecia. Havia cursos com duração de um ano e cursos mais curtos, com aulas semanais, em vários segmentos como interpretação para vídeo, designer visual e jornalismo para rádio e TV. Eu estava interessada nos cursos mais curtos de preparação vocal e redução de sotaque que havia pesquisado no site da escola.

– Quanto aos professores?

– São todos profissionais das áreas de atuação: atores, diretores, jornalistas...

– De onde eles são? – investigava eu.

– Daqui do Canadá e dos Estados Unidos.

– E os alunos? São na maioria nativos ou estrangeiros?

– Temos alunos de toda parte do mundo.

– Mas a maioria é daqui ou de fora?

– De um modo geral é meio a meio.

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Janine me levou para falar com o coordenador de um dos cursos, no sexto andar. A Vanarts ocupava do quinto ao oitavo andar. O coordenador queria saber questões práticas: como eu trabalhava no computador, como eles passariam os textos para mim, pois, o teleprompter[1] usava um programa de computador específico.

Ao contrário de Ashen, o coordenador da Vanarts mostrou-se otimista em relação ao mercado para jornalistas em Vancouver. Mas não me convenceu. Conforme Ashen havia alertado sobre as escolas, a Vanarts parecia ser mais uma com interesse comercial. Meu curso de jornalismo no Brasil abrangia todo o conteúdo do curso de broadcasting. Com a diferença que o curso da Vanarts era mais prático. E em inglês. E o curso nem era tão caro. O problema era me manter em Vancouver por um ano, sem nenhuma renda.

Dali a dois sábados, a Vanarts promoveria um workshop gratuito de broadcasting. Janine me convidou para participar. Se voltasse para o Brasil depois de completar um mês, o workshop seria um ou dois dias antes de partir. Não custava nada assistir. Sabe-se lá. Poderia ser uma escola super-ultra-megainteressante e mudar de ideia em cima da hora.

Depois de conhecer a estrutura da escola, pedi para ficar na recepção para fazer alguns telefonemas pelo celular. Liguei para o Instituto Canadense para cegos a fim de saber algumas informações e se eles tinham também produtos para cegos. Eles tinham uma loja que só ficava aberta até as quatro. Nas sextas-feiras, até as três. A sexta, quando a aula de inglês terminava ao meio-dia, era a melhor ocasião para ir ao instituto. Já por telefone a atendente do instituto disse que Nial havia ligado para ela e pegado algumas informações, que ela me repassou. Ela me disse que, para ter o apoio do instituto para me ensinar a andar pela cidade, eu deveria apresentar um laudo médico, comprovando minha deficiência. Eles eram tão flexíveis que não se incomodavam em receber o documento por e-mail do meu próprio médico do Brasil. Com o atestado, o instituto me daria um cartão com o qual poderia utilizar o transporte público gratuitamente, coisa que já desconfiava, mas que Mônica insistia em dizer que eu não teria direito, obrigando-me a comprar meu passe mensal. Ela nem havia baixado o formulário para solicitar o ônibus especial que pega as pessoas com deficiência em casa.

Se antes de ir a Vancouver, eu tivesse pesquisado sobre instituições para cegos, já chegaria à cidade com toda a estrutura e, talvez, teria até um profissional especializado para me ensinar como andar da casa da Mônica até o ponto de ônibus com meu cão-guia. Como as instituições dos Estados Unidos que atendem pessoas com deficiência não costumam dar assistência a estrangeiros, nem perdi tempo procurando assistência no Canadá. Nem me preocupei. Geraldo havia me garantido todo o suporte. E eu também jamais imaginaria que iriam me enfiar num lugar distante e de acesso tão difícil. Nem supunha que o “desenvolvido e avançado” Canadá tivesse regiões com a falta de estrutura de Surrey. As áreas chamadas rurais dos Estados Unidos contavam com ruas asfaltadas e meio-fio. Eram bem mais estruturadas do que o lugar onde estava hospedada no Canadá.

O tratamento diferenciado dos canadenses aos estrangeiros é um ponto positivo a ser destacado. Procurando os lugares certos, teria direito de usufruir da mesma estrutura que os deficientes visuais canadenses. Talvez eu até tivesse alguma oportunidade de trabalho, se achasse que valeria a pena continuar no Canadá. Ao contrário dos Estados Unidos, não enfrentaria preconceito por causa do sotaque ou por ser estrangeira. Os canadenses têm que tratar bem os estrangeiros, que são, afinal, quem sustenta a economia, pelo menos na região de Vancouver. Não me lembro de um restaurante onde comi que não pertencesse a estrangeiros; não me lembro de uma loja onde não houvesse vendedor estrangeiro; não me lembro de um dia na rua e no trem em

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que eu não ouvisse estrangeiros falando. Na hora de procurar emprego, porém, tinha medo de enfrentar preconceito por ter deficiência.

Se por um lado o Canadá é mais receptivo com os estrangeiros do que os Estados Unidos, por outro, parece que não se tem a mesma consciência em relação às pessoas com deficiência. Os americanos podem ser meio xenófobos e não muito solidários, mas pelo menos têm consciência dos direitos alheios. Nos Estados Unidos, os banheiros adaptados estavam sempre disponíveis para pessoas com deficiência. Ninguém tinha coragem de usá-los, porque já tem a consciência de que um cadeirante não pode usar outro banheiro e que os deficientes visuais podem entrar nesses banheiros com seus cães-guia, sem ficar no meio do caminho nem correr o risco de mexerem com o cachorro ou roubá-lo. Já na escola de inglês onde estudava no Canadá, mesmo se todos os banheiros estivessem livres, as próprias funcionárias usavam o banheiro maior, destinado às pessoas com deficiência. Detalhe que havia uma cadeirante e uma usuária de cão-guia estudando no mesmo período, e o banheiro era muito pequeno para o Higgans ficar no meio do caminho, enquanto eu usava o sanitário. Como a região onde estava era povoada por pessoas de diferentes partes do mundo, não sei dizer se o canadense não tem essa consciência em relação aos deficientes ou se a falta dessa cultura é por causa da heterogeneidade da população. Quando conversei com Nial sobre isso, ele também não soube dizer. Só comentou que concordava que os americanos parecem ter mais consciência sobre as pessoas com deficiência.

Ainda na sala da Vanarts, liguei para a agência de Edmundo e perguntei para uma das atendentes se a agência fazia algum tipo de programa turístico. E ela me mandou procurar uma instituição para cegos. Perdeu a cliente. Ninguém procura uma empresa pedindo um serviço e ouve procure uma associação para gordos ou para negros. Nem no Brasil costumava ouvir uma bobagem dessas. Detalhe: na agência de Edmundo só trabalhavam brasileiros.

Tanto no Canadá quanto nos Estados Unidos, salvo algumas exceções, notei que os brasileiros que encontrei eram um tanto ignorantes e só tinham conhecimento das coisas relativas ao seu mundinho, como se não enxergassem nada mais ao seu redor. Não sei se isso ocorre porque a maioria dos emigrantes brasileiros têm baixa escolaridade ou porque ficam tão bitolados em trabalhar para juntar dinheiro que acabam não tendo vida.

Também telefonei para Nel para saber se o consulado tinha algum programa ou alguém para indicar para fazer turismo. Nada. Por último, liguei para uma escola de cão-guia que havia encontrado na internet para saber se eles poderiam me ajudar a treinar meu cão no trajeto da casa até o ponto de ônibus. Responderam que não fazem esse tipo de atendimento.

Nota 1: Teleprompter é uma tela que fica na direção da câmera e projeta os textos lidos pelos apresentadores de telejornais

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Capítulo 11

A Maldição De Surrey

Na sexta-feira, ao chegar à escola, encontrei Tatiana, que conhecera outro dia no elevador do prédio.

– Oi, Dani! É a Tatiana do elevador! Lembra?

– Claro! Oi!

– Não vamos entrar já não. Vamos ficar aqui para gente conversar em português.

Como tínhamos uns minutinhos, ficamos do lado de fora.

– Então, Dani! Como eu disse naquele dia no elevador, a escola toda está comentando seu caso. E todo mundo está indignado com o que fizeram com você. Eu consegui o telefone de uma host mother e você pode ligar para ela.

Anotei o contato no meu gravador.

– Muito obrigada por tentar me ajudar, Tatiana!

– Imagina! Mas ligue para ela. O nome dela é Mary. Estou indo embora, mas quero que fique com meu e-mail.

Fomos entrando. Tatiana me acompanhou até a sala já falando em inglês.

– Quero também que fique com o contato de uma amiga minha, a Camila. Ela é muito gente boa. Já falei de você para ela.

Gravei o telefone de Camila também. O professor Kevin já havia entrado em sala, e Tatiana foi saindo apressada.

– Ligue para ela ainda hoje, viu? Tchau, Dani!

– Boa viagem! Vamos nos falar por e-mail!

Fiquei feliz em saber que tinha alguém preocupado comigo, mas já estava praticamente decidida a ir embora dali a uma semana e, portanto, não fazia sentido procurar outro lugar para ficar.

Depois da aula, almocei depressa para dar tempo de ir ao instituto de cegos. A loja ficava dentro do prédio da instituição. A recepcionista não se levantou do seu posto para me acompanhar, apenas me informou em que direção seguir. Fui adentrando a construção, até que outra pessoa veio e me conduziu até a loja. Havia outra cliente cega sendo atendida. Era uma mulher casada, acompanhada do marido, que enxergava. Ela procurava utilidades domésticas. Aproveitei para ouvir se tinha algo do meu interesse. Depois que o casal saiu, a vendedora, muito solícita, passou a me atender. Seu nome era Fran e tinha uma leve deficiência visual. Não precisava da bengala para se locomover, por exemplo. Pedi que me mostrasse tudo que tivesse

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para me auxiliar no meu dia a dia. Apesar de atenciosa, ela não sabia muito o que me mostrar. Mesmo assim fui muito bem atendida, ao contrário do que ocorreu em Nova York. Pedi então que me mostrasse os relógios de pulso falantes. Ela me mostrou um relógio lindo, em nada parecido com aqueles modelos grosseiros que a gente compra do Paraguai.

– Quanto custa?

– Quarenta dólares.

– Você não tem esses relógios mais baratinhos para usar no dia a dia?

– Não. Os cegos daqui, normalmente, tem um poder aquisitivo elevado e nem compram essas coisas mais em conta... Espera aí! Tem esse chaveiro que diz as horas.

– Diz a temperatura também?

– Não. Só as horas.

– Ah! É que vi um chaveiro igualzinho no Brasil que dizia também a temperatura. Só não comprei porque imaginei que fosse encontrar mais opções aqui.

– Tenho um relógio aqui que diz a temperatura.

Era um modelo de cabeceira.

– Você só tem esse que diz a temperatura?

Fran pensou, procurou um pouco e respondeu:

– Só esse.

Ela apertou. O relógio disse as horas e a temperatura em graus fahrenheit.

– Só diz a temperatura em fahrenheit?

– Deixa eu ver...

Após uma rápida investigação no manual, constatou que era possível mudar a informação para graus Celsius.

–– OK. Eu vou levar este. Mas quero que me ensine a usar.

– Claro!

– Também vou querer aquele de pulso que fala.

Ela não sabia como mexer nos relógios, mas se esforçou para aprender e me ensinar. Erroneamente chamados de relógios para cegos, os modelos vendidos no Brasil são simplesmente relógios que falam, normalmente produzidos para crianças e utilizados pelos cegos por falta de alternativa. Muitas vezes só falam as horas, mas quase nunca permitem que quem não enxerga acerte as horas e programe o relógio sem auxílio. Alguns modelos possuem bipes de alerta acionados por botões. A quantidade de bipes indica a função – acerto de hora ou programação de

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alarme, por exemplo. Já comprei, contudo, relógios que nem essa diferenciação havia. Os relógios daquela loja sim eram apropriados para a utilização por cegos. E ainda avançavam na questão dos comandos. Em vez de contar os bipes, bastava ouvir para descobrir a função. Conforme o botão, o relógio falava: “acertar hora” ou “acertar alarme”. Totalmente acessível para deficientes visuais. Nem nos Estados Unidos havia encontrado produtos tão específicos.

– E você tem algum aparelho que diz as cores e se a luz está acesa ou não?

– Não tenho agora. Mas se quiser, posso encomendar da loja de Toronto.

– Demora muito tempo para chegar?

– Duas semanas.

– Até lá, possivelmente, já terei ido embora.

– Mas vou ser sincera, esses equipamentos custam muito caro e ainda não funcionam direito. Não acertam muito as cores. Para dizer a verdade, não sei se vale a pena comprar. – aconselhou ela.

Não me lembro se custava 200 ou 400 dólares canadenses. Realmente, não valia a pena.

– Tenho um aparelhinho que diz se a luz está acesa ou não. Mas não acho que funcione muito bem – comentou Fran, retirando algo da bolsa e ligando. O objeto começou a fazer um ruído estranho.

– Isso é com a luz acesa. Agora vou apagar a luz. Percebe a diferença do ruído?

A diferença era muito sutil. Com a luz apagada o som era mais agudo. E o aparelho era tão barulhento e demorado para funcionar que iria acordar a casa inteira até descobrir se a luz estava acesa ou não. Invenções para facilitar a vida do deficiente existem aos montes, mas nem todas funcionam bem na prática.

Enquanto Fran me atendia, chegou Marcela, outra vendedora da loja. Também era cega e usava bengala.

– Marcela, estou aqui com Danieli, do Brasil. Me ajuda aqui. Você que tem a necessidade sabe de algum produto que possa ajudá-la na vida diária?

– Deixa eu pensar. Aquele negócio para lavar as meias? Você já mostrou?

Marcela pegou o produto e me explicou para que serve. É um artigo de plástico, onde se prende cada par de meia para não perder uma da outra na máquina de lavar.

– Vou levar. Tem mais alguma coisa que você use no seu dia a dia?

– Tem essa guia aqui para fazer assinatura.

– Puxa! Você é uma ótima vendedora, Marcela!

– Claro! Ela usa esses produtos! Fica mais fácil para ela te aconselhar – comentou Fran.

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– Você também é ótima. Só comentei porque acho muito bom que uma instituição para cegos dê oportunidade de emprego aos próprios cegos. Afinal, quem melhor do que um deficiente visual para saber da necessidade do outro? Mas independente disso, você é ótima com vendas, Marcela. É dinâmica, ágil, pensa rápido, sabe vender.

– Obrigada. Faz três meses que estou aqui.

– Puxa! Você domina tudo tão bem que parece que sempre trabalhou aqui. Faz tempo que você é cega?

– Não. Faz poucos anos. Ainda estou me adaptando.

– Notei que você usa bengala. – comentei.

– Ainda estou aprendendo.

– Mesmo assim fico muito feliz que você esteja se adaptando tão rápido e que esteja buscando mecanismos para se adaptar à nova realidade. Digo isso porque, principalmente no Brasil, onde há muito preconceito, quando uma pessoa adquire uma deficiência, ela demora um tempo para começar a procurar se adaptar. Principalmente com a bengala, que muitos têm até vergonha de usar. Meus parabéns! Estou muito orgulhosa de você.

– Obrigada, Danieli. Estou aprendendo a usar a bengala para depois treinar um cão-guia.

– Muito bem! É isso aí! Você está no caminho certo. E você vai amar ter um cão-guia. Eu tenho o meu e me ajuda muito.

– É, Marcela! Ele está ali, deitadinho, quietinho, um amor – comentou Fran ternamente. Marcela foi até Higgans para conhecê-lo.

– Quando cheguei, percebi que você estava mostrando à cliente algumas facilidades para a cozinha. O que era? – perguntei a Fran.

Ela me mostrou um retângulo de madeira, com botões de fogão. A peça é colada na frente do fogão para ajudar a identificar os botões. Eu não ia precisar daquilo. Tenho uma máquina rotuladora para eletrodomésticos. Trata-se de um aparelhinho com todas as letras em braille. Escreve-se sobre uma fita rotuladora e se cola onde for necessário, como uma etiqueta em alto relevo. Antes de fechar a compra, Marcela lembrou:

– Você gosta de baralho?

– Adoro.

– Ah! Então, você não quer cartas em braille?

– Quero sim, Marcela. Só deixa eu ver como é a simbologia para ver se me acostumo.

Marcela abriu um baralho para me explicar os naipes e as cartas. Naquela loja, os vendedores já estavam acostumados com o fato de que todos os produtos tinham que ser abertos para poderem ser tocados pelos clientes. Visualmente, o baralho era igual aos comprados aqui, entretanto, as marcações em braille eram diferentes, porque eram em inglês. Normalmente, eu

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mesma marcava as cartas em braille com a minha máquina. Com o tempo, contudo, o braille vai se apagando. Naquele baralho, de plástico, demoraria mais para apagar.

– E você costura? – perguntou Marcela.

– Só fazia vestidos para as minhas bonecas quando criança. Por quê? O que você tem aí? De repente, um dia, eu posso usar.

– Tem esse negocinho aqui. Facilita na hora de colocar o fio na agulha

para você pregar botões.

– Que legal! Vou querer também.

Essas coisas custavam barato. Comprei também pilhas para o meu relógio.

– Quando você chegou, Danieli? – perguntou Fran, enquanto arrumava minhas compras.

– Hoje completa três semanas.

– E você vai ficar até quando?

– Vim para ficar uns seis meses, mas as coisas estão tão difíceis que estou pensando em voltar daqui uma semana.

– Mas por quê? – indagou Marcela.

– Me colocaram para morar em Surrey.

Nem precisei completar a história. As duas entenderam o drama. Parecia até a maldição de Surrey. Todo o mundo que ficava sabendo que eu morava lá se espantava.

– Entendo – comentou Fran.

– E também essa cidade é muito cara. Muitos estrangeiros vêm aqui para arrumar emprego. Eu não sei se dariam oportunidade para uma pessoa com deficiência – comentei.

– Aqui tem programas de trabalho para pessoas com deficiência, mas acho que não se estende a estrangeiros. Também eu não acharia justo que os estrangeiros pudessem se beneficiar. Nós pagamos impostos durante anos e os estrangeiros vêm aqui para usufruir dos benefícios? – disse Fran.

Fran esquecia-se, porém, que o Canadá dependia dos estrangeiros. Era notória a carência de mão de obra. Se eles incentivavam estrangeiros a irem para lá para trabalhar, por que não dar oportunidade para pessoas com deficiência também? Depois que parei para pensar, concluí que ela estava sendo preconceituosa. Na hora não falei nada e preferi desviar do assunto.

– E aqui na instituição vocês têm algum programa de turismo ou passeio?

– Não. Não temos. Mas o John, que trabalha com esportes, está aqui hoje. De repente, ele pode te dar alguma dica – respondeu Marcela.

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Perguntei só para desfazer minhas dúvidas. Tinha certeza de que a instituição não teria nenhum programa de turismo ou passeio para cegos. Quem deveria ter esse serviço eram as agências, mas sempre que tocava no assunto me mandavam procurar uma instituição para cegos.

– Estou aqui há quase um mês e não visitei quase nada. Fui ao shopping de Surrey, mas é tão difícil para uma pessoa cega andar sozinha lá.

– Aquele shopping é difícil para qualquer pessoa – respondeu Fran.

– E para nós é difícil andar sozinha no shopping sem conhecer – completou Marcela.

– Pois é. Mas ficar trancada dentro de casa é pior – respondi.

Saí da loja e fui falar com John, que estava na recepção. E como eu já imaginava...

– Não. Não temos nenhum grupo de turismo. O que tenho são equipes que jogam futebol.

Conforme minha irmã havia pesquisado na internet, o Canadá parecia ser o país das oportunidades para os estrangeiros. Se eu continuasse morando ali, certamente poderia contar com o auxílio daquela instituição e com o apoio do professor Nial. Se ficasse para estudar na Methodica, também contaria com a ajuda de Ashen. Se não tivesse sido lograda pela agência que me levou para lá, se não tivessem me enfiado para morar em um local ermo e distante, se tivesse encontrado uma família bacana...

Se a vida em Vancouver não fosse tão cara; se Vancouver não estivesse tomada por estrangeiros, se valesse a pena ficar ali para aprimorar o inglês, se não estivesse tão esgotada com todas as situações adversas, se tivesse encontrado um emprego para me manter... Se, se, se...

A vida não é feita de “se”. Por tudo que me acontecera, o universo estava me dizendo que Vancouver não era para mim. Eu já havia torrado muito dinheiro, já tinha quebrado a cara. Só me restava ter maturidade para saber a hora de ir embora e começar tudo de novo. Como sempre foi minha vida: um eterno recomeço, uma luta constante. A única coisa que me animava era poder contar minha história. E quando eu perguntava o porquê daquele infortúnio, a única resposta que me vinha era a oportunidade de contá-la, escrevendo um livro que impedisse que mais pessoas passassem pelo que passei. Era a única explicação que encontrava para Deus ter permitido que eu fosse parar naquela situação. Era o sinal que tanto pedia sobre o rumo da minha vida.

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Capítulo 12

Tem Gente Que Não Sabe A Sorte Que Tem

Mônica me pegou na estação por volta das três e meia e disse que antes de ir para casa, teria que parar rapidinho em alguns lugares. Chegamos em casa perto das seis. E olha que a casa ficava pertinho da estação.

Enquanto esperava no carro, aproveitei para fazer umas ligações. Liguei para Camila, amiga de Tatiana, que se mostrou muito animada em me conhecer.

– Vamos nos encontrar amanhã – propôs, com seu leve sotaque nordestino, vindo de São Luiz do Maranhão.

– Amanhã, às duas da tarde, vou me encontrar em frente a minha escola de inglês com colegas japonesas para ir ao Stanley Park. Você não quer vir conosco?

– Claro! Mas não sei onde é sua escola.

– É próxima da estação Burrard. Você sabe onde fica?

– Sei. Meu ônibus para ali na frente.

– Então, você vai até a St. Dunsmuir, anda até a Hornby, cruza as duas ruas. Minha escola fica bem no meio da quadra.

– Espera aí! Não adianta me falar que vou me perder!

– É só seguir essa explicação que não tem erro. E a Tatiana me disse que você está aqui há quatro meses!

– É verdade. Mas me perco muito fácil.

– Tudo bem. Marcamos um pouco antes das duas, na estação, porque as japonesas são pontuais e não tem celular. Confesso que me sinto mais segura, agora que você vai com a gente, porque tenho muita dificuldade em entender o que elas dizem. – concluí, aliviada por ela ter aceito o passeio.

Quem acabou chegando atrasada fui eu. Mônica se enrolou para me levar até a estação. Sorte que Camila chegou no horário e avisou as japonesas.

Antes de sairmos, Mônica fez mais um de seus pedidos estapafúrdios:

– Me ligue quando for quatro horas, para eu saber que horas você volta para casa.

– Olha, Mônica, um dos motivos pelos quais eu vim para cá foi para sair da rotina, não ter horário. E quando eu saio para me divertir, não tenho como saber que horas vou voltar. Um passeio no parque pode durar meia hora ou a tarde toda.

– Mesmo assim, quando for quatro horas, me ligue – ordenou.

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Chegando na frente da escola, finalmente conheci Camila. Ainda ficamos esperando mais um pouco por duas amigas das japonesas, que se atrasaram mais que eu. Uma delas era tão ”mão-fechada” que queria ir a pé ao parque. Camila espantou-se:

– Não! Você está louca? É muito longe daqui para ir a pé.

Fomos de ônibus. Mesmo assim, achei meio longe. Chegamos ao parque quase três da tarde. Já estava com fome. Queria almoçar. Uma parte das meninas sugeriu andar pelo parque naqueles ônibus para turista. Camila e a japonesa “mão-fechada” preferiram ficar a pé. Combinamos de nos encontrar depois do passeio. Nós três fomos almoçar. Quer dizer: eu pedi um salmão com batata frita, a japonesa, um sorvete e Camila não queria comer, porque estava enjoada e com cólica.

Eu estava doida para provar o salmão de Vancouver, que era a especialidade da região. Decepção. Nunca havia comido um salmão tão ruim. Era frito. Tinha mais casquinha de farinha de trigo do que carne de peixe. Estava cheio de gordura. Fui tirando a casquinha e comendo só a carne para não passar tão mal. Mesmo assim, fiquei enjoada. A japonesa nem conseguiu terminar o sorvete, de tão ruim. Quando me dei conta, já passava das quatro. Achei por bem ligar para Mônica para avisar que não sabia a que horas voltaria para casa.

Andando pelo parque, as meninas avistaram um casamento e quiseram ver a noiva, que estava para entrar. Depois do casamento, pedi que fôssemos andar. Pretendia conhecer o parque, mas Camila não estava muito animada. Mostrou-me umas flores e disse que não havia muito mais o que conhecer.

Ficamos paradas um tempo, porque elas não decidiam o que queriam fazer.

Sempre gosto de andar em parques, principalmente para conhecer um novo. Mas não insisti para continuar andando pois, além de as meninas não quererem, estava tão cansada de andar por mato e ladeira diariamente em Vancouver que até um passeio no parque me deixava com preguiça só de pensar. Tanto que por um bom tempo depois que voltei ao Brasil, não sentia prazer ao caminhar.

Uma das meninas telefonou para a japonesa que estava conosco dizendo que iriam à praia. Como não queríamos ir nem estávamos dispostas a fazer mais nada, voltamos para downtown. No ônibus, comentei que na Granville estava tendo o car free e perguntei se alguma delas queria ir.

– O que é esse car free? – perguntou Camila.

– Não sei direito. Um dos professores comentou sobre o evento. Parece que é um dia em que fecham a rua aos carros e tem algumas atividades. Não sei. Estava a fim de saber, mas acho melhor a gente ir embora, porque você está com cólica.

– Não, Dani. Vamos lá ver! A gente tá aqui mesmo – falou Camila, com uma voz meio lerda.

– Tem certeza?

– Sim. Vamos lá. Só vamos pegar o trem porque não quero andar.

– A gente vai caminhar uma quadra para andar uma estação de trem? A Granville fica a duas quadras daqui! – comentei.

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– Eu sei, mas prefiro ir de trem – insistiu Camila.

Mesmo sem entender a lógica de Camila, fiz a vontade dela. A estação de Granville é tão grande que, certamente andamos mais para sair dela do que se tivéssemos ido a pé.

A rua estava fechada para tráfego de veículos. Havia mesas e cadeiras na calçada, onde as pessoas bebiam e conversavam. Em algum ponto havia alguém tocando música. Esse era o jeito de os canadenses se divertirem. Sem graça. Fomos até umas lojas para ver se valia a pena comprar roupas de inverno. Tudo muito caro e nada que me chamasse a atenção. Não encontrei meu perfume. Decidimos ir embora.

– Vamos nos encontrar amanhã? – perguntei a Camila.

– Não sei. Tenho culto da igreja até umas duas da tarde.

– É em inglês ou português?

– Em inglês.

– E depois?

– Depois, minha host mother pediu que eu ensinasse o caminho da escola para duas meninas que chegaram hoje na casa.

– E não dá para você ensiná-las na segunda-feira?

– Não. Na segunda, vou ver um trabalho.

Despedi-me de Camila e da japonesa, e cada uma pegou seu caminho para casa.

No dia seguinte, convidei July para ir ao shopping. Mais uma vez, recusou e saiu com sua turma. Passei o domingo sozinha.

Na segunda-feira, meio-dia, quando eu esperava o elevador para descer aos restaurantes, minha agente de turismo do Brasil ligou para me dizer sobre minha passagem de volta que eu havia pedido para antecipar. Os funcionários da escola ficaram pegando no meu pé porque estava falando em português. Eu não poderia entrar no elevador porque a ligação poderia cair, nem retorná-la, porque meu celular só fazia chamadas locais. Estava tentando uma passagem para sair de Vancouver na segunda-feira seguinte.

Também precisava me certificar se era necessário algum documento específico para Higgans. Segundo o site brasileiro do Ministério da Agricultura, para entrar no Brasil, precisaria tirar outro CZI emitido pelo governo do país de onde estivesse, mas nunca havia tirado esse documento em outras viagens internacionais nem jamais me fora exigido ao chegar ao Brasil. Acho que os veterinários brasileiros já têm a consciência de que os cães-guia são rigorosamente vacinados e cuidados pelo dono. Por isso, não estava preocupada com a chegada ao Brasil, mas com a conexão que teria que fazer nos Estados Unidos. Telefonei para Nel do consulado para perguntar se ela sabia de algum documento específico. Mais tarde, ela me ligou dizendo que eu só precisaria do CZI, expedido pelo governo canadense. Ela já havia marcado com um veterinário na quarta-feira. Iria comigo, com carro e motorista do consulado, sob ordem do cônsul do Brasil.

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Depois da aula, fiquei na escola, telefonando para TVs e rádios cujos telefones Nel havia me passado. Queria visitar algumas emissoras. Explicava que era jornalista, cega, procedente do Brasil e falava do meu interesse em visitar algumas emissoras. Nenhuma das que falei estava aberta à visitação. Talvez se os jornalistas locais soubessem da minha história, até quisessem me entrevistar. Mas para isso teria que enviar informações prévias aos editores, o que seria difícil conseguir, já que não conhecia ninguém da área.

Na terça-feira após a aula, Camila me ligou pedindo que a esperasse por cerca de uma hora, até que ela saísse da entrevista de trabalho.

–– OK. Me ligue quando terminar, que te espero lá embaixo.

– Mas vê se me atende quando eu ligar! – cobrou.

– Claro que vou atender.

– É que hoje liguei e você não atendeu.

– Eu deveria estar com o celular desligado, porque estava em aula.

Não suporto cobrança. A gente mal se conhecia e Camila já vinha com cobrança? Eu estava tão farta das cobranças indevidas de Mônica que qualquer cobrança me irritava. Tudo que eu não havia sido cobrada pelos meus pais na adolescência estava sendo cobrada depois de adulta.

Eram quase quatro horas quando Camila me pegou na escola, com cara de poucos amigos.

– Para onde vamos?

– Vamos para o Metrotown? – respondi, tentando animá-la.

O Metrotown é o maior shopping da região de Vancouver. Queria ir lá para comer o cinnabon, espécie de pão doce com recheio de canela e coberto com glassê. Camila estava mais perdida que eu. Depois de perguntarmos em várias lojas, chegamos ao local onde tinha para vender meu doce americano favorito. Sentamos ao lado do balcão do caixa. Quando veio me servir, a atendente disse que tinha que pagar antecipadamente. Camila não quis comer nada. Estava com o mesmo jeito de sábado.

– Qual é o problema, Camila? Você quer ir embora?

– Não. Quero ficar com você. Semana que vem você vai embora, e quero passar um tempinho com você.

– O que aconteceu? Você não gostou do trabalho?

– Não. É um trabalho muito braçal. Tenho que carregar uma bacia pesada de amendoim. Não é trabalho para mulher fazer.

– Quem é que arrumou esse trabalho para você?

– A escola de inglês. Fiz um programa de oito meses. Fiquei estudando quatro e agora vou trabalhar mais quatro.

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– Então pede para eles outro trabalho.

– Mas estou vendo que os trabalhos que eles arrumam são todos roubada. Eu me arrependi de ter escolhido esse programa. Deveria ter escolhido o programa para trabalhar na minha área.

– E por que não escolheu?

– Porque não era remunerado. O meu avô falou para eu escolher o outro programa, que ele pagava, mas fui teimosa. Quis esse remunerado – lamentava Camila, chorando.

– Eu não acredito que você está chorando por causa disso! Você tem tudo, Camila, e está aí se lamentando? Mesmo sabendo da minha situação você ainda fica assim, só porque não gostou do trabalho? Olha a sorte que você tem. Você está aqui há quatro meses e tudo está dando certo para você. Você adora a casa que te arrumaram, o local onde está morando, passeou um monte, tem um avô que está bancando tudo para você. Na primeira dificuldade, você desanima? Olha pra mim! Planejei essa viagem a minha vida toda, juntei dinheiro para ficar aqui uns três meses e desde que cheguei é um problema atrás do outro! Tenho vontade de te bater por você não enxergar a sorte que tem!

Falei tudo isso com a voz mais terna que pude. Não funcionou. Naquela altura da vida, já havia aprendido que o que não era nada para uns, poderia significar uma tragédia para outros. Procurei ouvi-la e consolá-la, tentando mostrar-lhe a realidade, mesmo que inutilmente.

– E o que você quer fazer agora, Camila?

– Eu queria ir lá na escola para resolver isso agora!

– Onde fica a escola?

– Em downtown.

Todas as escolas de inglês ficavam em downtown.

– Já são quase seis horas. Até você chegar lá, eles já terão ido embora.

– Mas eu quero trocar meu programa! Quero fazer um estágio na minha área!

– Liga para eles então!

– Eu não tenho o telefone da escola aqui comigo.

– Então, hoje você não vai conseguir resolver mais nada. Você quer ir para casa?

– Não. Quero passear no shopping com você.

– Também estou muito a fim de curtir o shopping com você. Mas se você vai ficar desse jeito, a gente não vai curtir nada.

– Mas e se eles não quiserem mudar o programa?

– Seu avô já pagou tudo?

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– Não.

– Então você diz que vai embora e não paga mais nada. Esse povo é movido a dinheiro. Se eles encrencarem, é só você falar mais grosso que eles fazem o que você quiser.

– Eu estava pensando em oferecer até mais dinheiro, se eles não quiserem trocar de programa.

– Sim. Mas primeiro você tenta sem oferecer mais nada. Só faz isso, se sentir necessidade. E tem que falar com segurança! – aconselhava eu, enquanto Camila continuava chorando.

– Você já tentou outros trabalhos com eles?

– Já. São todos braçais. Eles só botam a gente em furada nesses programas de emprego. E eu não vou aprimorar meu inglês nesses lugares que estão me arrumando.

– Camila, até eu, que nem procurei, sei que esses trabalhos que eles arrumam para estrangeiros são todos roubada. É trabalho braçal, de peão. Até por isso que nem procurei. Você nem imaginava que fosse assim?

– Já tinham me falado que era assim. Mas achei que poderia encontrar alguma coisa melhor. Hoje estou arrependida por não ter ouvido meu avô. Ele tinha falado que seria melhor para minha carreira se eu procurasse um estágio na minha área.

– No que você se formou? – perguntei interessada, tentando mudar o rumo da conversa.

– Em administração.

– Quantos anos você tem?

– Vinte e três.

– Olha só que legal! Acabou de se formar e já teve a oportunidade de estudar no exterior! Vamos lá, Camila! Tudo vai se resolver. Até eu encontrei uma solução para o meu problema: vou voltar para o Brasil.

– Vamos orar comigo, Dani?

– Tudo bem. Como você costuma orar?

– Assim, converso com Deus.

– Tudo bem. Vou rezar do meu jeito.

Demos as mãos.

– Senhor, agradeço pela oportunidade de ter conhecido Camila e estar aqui com ela. Agradeço, Senhor, pela família que ela tem; por tudo de bom que lhe aconteceu até aqui em Vancouver. Eu peço que abençoe Camila! Peço que acalme seu coração, Senhor! Que a ajude a encontrar a melhor solução para o seu problema! Senhor, faça com que ela veja a sorte que tem. Que ela consiga ver as bênçãos que o Senhor lhe tem dado! Senhor, obrigada por ter colocado

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Camila na minha vida. Eu te peço, Senhor, que eu possa ajudá-la de alguma maneira. Mesmo que seja ouvindo-a. Amém!

– Que lindo o que você disse, Dani!

– Imagina. Foi de coração.

– Senhor, eu te agradeço por ter conhecido a Dani – Camila começou. – Essa pessoa linda, forte e corajosa. Senhor, obrigada por ela ser quem é. Eu agradeço, pai, por tudo que a Dani já conquistou na vida dela. Que ela também consiga, Senhor, ver que Jesus a ama e que ela é uma filha especial de Deus. Eu te peço, pai, que o Senhor ilumine o caminho dela! Se for melhor para ela voltar para o Brasil, que ela volte e que tudo dê certo para ela.

Quando Camila terminou a oração, eu estava com os olhos cheios d’água.

– E aí? O que você quer fazer? Quer ir embora? Quer conversar mais?

– Não, Dani. Agora que a gente orou estou me sentindo melhor.

– Você não quer comer nada?

– Não.

– Eu pago.

– Não estou com fome. E a minha host mother sempre deixa o prato pronto para eu esquentar.

– A minha mal faz o jantar.

– Minha host mother está acostumada a receber brasileiros. Já sabe a comida que a gente gosta.

– E ela não fica te enchendo com horários?

– Claro que não. Eu volto para casa a hora que quero e é só esquentar o jantar que ela deixou preparado.

– A minha fica me controlando. Estou tão estressada, Camila, que ontem coloquei a xícara vazia no micro-ondas quando estava fazendo meu café.

Quando voltei para casa, Mônica reclamou porque esqueci o queijo na mesa e não guardei na geladeira.

– O quê? Você tem que fazer o seu café? O que diz no seu contrato?

– Que ela deveria preparar café e jantar durante a semana e as três refeições nos fins de semana.

– E por que você prepara seu café?

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– Porque ela não levanta a tempo de preparar e eu perco a aula. Para não brigar, achei melhor fazer assim.

– E você ainda tem que limpar a mesa?

– Sim.

– Eu não acredito! Ontem, quando ela brigou, você tinha que ter dito que não era sua obrigação nem fazer o café, muito menos limpar – indignou-se Camila.

– Sabe que você tem razão? Eu tinha que ter dito isso mesmo.

– Tinha sim! Essa mulher é uma abusada! Você está pagando!

– É. Na hora não pensei nisso. Depois é difícil. A gente tem medo de criar problema na casa dos outros. Ainda mais eu que dependo dela para sair e voltar.

– É. Eu entendo. Como sempre fico fora até tarde, acabo não jantando e levo o jantar para esquentar no almoço da escola. Só que agora que chegaram mais estudantes na casa, a mulher pediu para eu não fazer mais isso, porque as outras vão querer fazer também. É o meu jantar. Eu tenho o direito. Se eu quero comer a minha parte na hora do almoço, é problema meu! Mas também achei melhor ficar quieta para não criar caso.

– E na hora de lavar roupa? Como é? – perguntei.

– Ela lava uma vez por semana. Mas um dia eu estava com a roupa suja e precisava lavar. Lavei eu mesma.

– E ela não reclamou?

– Reclamou. Mas eu disse que estava sem roupa para usar, que precisava lavar, e ela não falou mais nada. Eu também não dou liberdade não, Dani. A gente tem que impor os limites desde o começo, senão elas montam.

– É verdade. A minha host mother é tão enrolada que esses dias, quase dormi sem roupa de cama.

– Como assim?

– Ela só me disponibilizou um jogo de lençóis. Nesse dia, ela pegou a roupa de cama para lavar pela manhã. Eram mais de dez da noite, e não tinha secado ainda.

– Mas ela não tem secadora?

– Tem. Mas eu nunca vi uma dona de casa tão enrolada quanto ela. Quando eu estava na escola de cão-guia, tinha treinamento diariamente, das oito da manhã às nove da noite. Nós tínhamos que fazer nossa lavanderia, e eu nunca fiquei sem roupa. E olha que eu levava pouca, já que havia máquina pra lavar.

Camila ainda estava com ar de má vontade. Como não a conhecia direito, não sabia se ainda estava encucada com o problema do trabalho ou se tinha aquele jeito mole mesmo. Como

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Camila insistiu em passear pelo shopping, e eu estava doida para fazer isso mesmo, fomos andando.

– Como está seu inglês, Camila? Você sentiu melhora nesses quatro meses aqui?

– Ah, sim!

– Mas você se considera fluente?

– Ah, não! Às vezes, lá na igreja, quando o povo começa a falar nos grupinhos, eu não consigo acompanhar as conversas.

– Pelo menos, os canadenses não são como os americanos que ficam dificultando as coisas. Eles são mais sociáveis e não ficam fingindo que não entendem, quando a gente não pronuncia corretamente.

– Eu não acho isso não! Lá na igreja, se eu não pronuncio alguma palavra correta, eles não entendem. Esses dias, estava tentando falar sobre missão, sabe? Tava dentro do contexto. Era impossível que eles não soubessem do que eu estava falando. Só porque não pronunciei corretamente, eles não entendiam. Depois de muito tempo me disseram a pronúncia correta, que para mim não fez diferença nenhuma.

– Pois é. Até hoje não descobri se eles fazem isso por má vontade ou não. Porque eu tenho um casal de amigos americanos e quando fiquei na casa deles, muitas vezes, o marido tinha que traduzir o meu inglês para a esposa. Como ele me entendia perfeitamente e ela não? Não sei se é porque ele morou um tempo na Argentina e talvez seja mais sociável por isso. Mas eu tinha um treinador na fundação do cão-guia que não morou na América do Sul e me entendia melhor que os outros. Agora, aqui no Canadá, não tenho sentido essa hostilidade.

– É que o seu inglês é muito bom, Dani.

– É. Mas toda essa situação que venho passando tem me deixado tão estressada que acho que acabei regredindo no inglês. Acho que evoluí mais na língua em uma semana me divertindo na casa dos meus amigos em Washington do que em um mês aqui em Vancouver. A gente aprende mais quando se diverte.

– Acho que não é isso não. Esses seus amigos só falavam em inglês?

– Sim. É esse casal de americanos que me referi.

– Você falou em inglês 24 horas por dia a semana inteira?

– Sim.

– Então, é isso, Dani! Aqui, a gente não consegue falar inglês o tempo todo. Eu mesma só me enturmei com brasileiros. Saía da escola e passeava com meus amigos brasileiros até à noite. Só agora que meus amigos foram embora, que estou saindo mais com coreanos e japoneses e estou me obrigando a falar inglês. Agora mesmo, nós duas, só estamos falando em português!

– Jurei, antes de sair do Brasil, que não iria ficar com brasileiros. E que, se ficasse, iria falar só em inglês, por mais antipática que parecesse.

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– Todo mundo promete isso antes de vir, Dani.

– Estou tão estressada com essa língua que acho que fiquei traumatizada! Quando escuto Mônica falar, parece que meu ouvido trava para o inglês. Não entendo coisas simples. As palavras me fogem da boca!

– Mas isso ocorre só com essa Mônica?

– Sim – respondi, depois de pensar um pouco.

– Então, Dani! Você está estressada por causa dessa mulher, da situação. Seu inglês é ótimo. Eu vejo quando você fala com os outros!

Estávamos na escada rolante. Ao chegar ao topo, Higgans saiu correndo, soltando a guia da minha mão, parando alguns passos à frente. Camila ria.

– Ele sempre faz isso – expliquei. – Acho que tem medo de prender a pata no vão da escada.

– Escuta, Dani, a gente está passando pela Mac. Você não queria ir lá?

– Quero sim.

Entramos na Mac e fomos muito bem atendidas por uma vendedora com um inglês perfeito. Eu queria base e corretivo. Minha pele é muito sensível e tenho alergia a muitos produtos. A Mac é uma das melhores marcas de maquiagem, mas custa caro no Brasil.

A vendedora passou dois tons de base no meu rosto. Junto com Camila, decidiu qual se aproximava mais da minha pele. Depois, escolhemos o corretivo. Eu queria comprar para minha mãe e irmã também, mas não sabia o tom. Como minha irmã é louca por pincéis, comprei um jogo de pincéis para ela. Acho que paguei 30 dólares canadenses em uma base. Já os pincéis custavam cerca de 40 dólares cada um, e era preciso um para o corretivo, um para a base, um para o pó e um para o blush.

– Por que esses pincéis custam tanto? – perguntei.

– São importados da França. O material é realmente muito bom. Duram bastante. Ainda mais se você limpar com o produto próprio. Mas se você levar esse pincel aqui, você pode usar tanto para o pó quanto para o blush. – sugeriu a vendedora, girando o mostrador.

– Então, levo o conjunto para minha irmã.

– E vai levar o produto para limpar os pincéis? – perguntou a vendedora.

Muito solícita, ela explicou como limpar os pincéis. Já que iria dar de presente, era melhor dar completo.

– Você tem um estojo, uma embalagem legal para guardar? – perguntei.

– Não. Mas faço um pacote bem legal para você.

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Nos Estados Unidos, as lojas não costumam fazer pacotes de presente. E não é como aqui no Brasil, onde você compra um kit com estojo próprio. Pelo jeito, no Canadá, o costume era semelhante ao dos vizinhos americanos. Mesmo assim, a vendedora arrumou tudo numa caixa ajeitadinha.

– Eu vou colocar amostras de produtos para você – comentou a vendedora.

– Você é daqui mesmo? – perguntei a ela.

– Sim.

– Você é a vendedora mais atenciosa com quem me deparei por aqui!

– Obrigada!

– Dani, ela tem uma tatuagem do Brasil – comentou Camila.

– Você já esteve no Brasil? – perguntei.

– Não. Mas meu sonho é conhecer – respondeu a vendedora, entusiasmada.

Mesmo tendo mais de 200 dólares no Visa Travel Money, ele não funcionou naquela loja. Mais uma vez, precisei recorrer ao cartão de crédito.

A vendedora nos tratou tão bem que me senti uma rainha. Ganhei meu dia. E ela não ficava se dirigindo a Camila como se eu não estivesse ali. Ela falava diretamente comigo. É comum pessoas falarem de mim, na minha presença, como se eu não estivesse ali, como se não tivesse vontade própria. “Que tamanho ela usa?” Até na hora de pedir favor, tem gente que não me respeita: “Ela pode tirar uma foto comigo?” Vivo essas situações desde que me conheço por gente.

– E se me der alergia? – perguntei.

– Você volta e devolvemos seu dinheiro.

Uma coisa bacana no Canadá: é praxe você devolver uma mercadoria, normalmente, num prazo de sete dias, e receber o dinheiro de volta. Basta apresentar a nota da compra. Saímos da loja e notei que até Camila estava mais desanuviada.

Eu queria ver umas roupas e botas para enfrentar o frio pesado do inverno curitibano. Camila me disse que as vitrines estavam cheias de roupas de meia-estação, porque era verão no Canadá. Disse também que não havia gostado da moda canadense.

– Então, vamos andar, e se vir alguma coisa de inverno nas vitrines, você me mostra.

Andamos, andamos e nada. Até que entramos numa loja de sapato. Camila ficou me mostrando algumas botas e nada de vir uma vendedora. Não tinha nenhuma com solado grosso para o frio de Curitiba, porém, algumas botinhas eram interessantes. Depois de provar um par, que ficou grande, e perceber que não eram tão confortáveis, desisti.

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Fomos a uma loja procurar perfume. Não havia vendedora naquela seção. A que apareceu, uma coreana, veio de outro departamento. Seu inglês era sofrível. E a loja não tinha o produto que eu queria.

Senti que Higgans estava andando meio estranho e resolvi ir para fora para ver se ele queria fazer alguma coisa. Dito e feito. Foi só cruzarmos a porta de saída do Shopping, que ele se aliviou.

– O que ele fez, Camila?

– Cocô.

– Me diz onde está para eu limpar.

– Não, Dani! É muita água! Você não vai conseguir juntar!

– Tem certeza que é água? Uma diarreia bem líquida? Você não está acostumada com essas coisas. Não está exagerando?

– Não, Dani. Isso aí é água pura! A gente vai ter que pedir para faxineira limpar.

Camila me deixou preocupada. Se o Higgans estava com uma diarreia tão mole a ponto de não conseguir juntar, era porque ele poderia estar doente ou alguém deu comida a ele sem que eu tivesse percebido. Queria ir embora. Queria deixar o Higgans descansar. Fomos até um segurança pedir que alguém fosse limpar o acidente, pois poderia levar uma multa por deixar a sujeira na calçada.

– Meu cachorro teve uma diarreia e não consegui limpar com a sacolinha. Desculpe, moço. Ele não deve estar se sentindo bem. Você pode pedir para faxineira limpar lá fora? – falava, atropelando-me toda.

– Não tem problema. Está tudo bem – disse o segurança, totalmente compreensivo, tentando me acalmar, demonstrando que aquilo era algo normal.

Para mim, contudo, diarreia não era nada normal. Ainda mais que tinha dado chance para ele ir ao banheiro logo antes de entrarmos no shopping. Diarreia líquida assim era sinal de coisa errada.

A mãe de Mônica morava quase em frente ao shopping. Como Mônica estava lá, combinamos que quem terminasse primeiro ligaria para outra. Ela me pegou na estação do shopping. Era quase nove da noite. Eu a informara que não havia jantado. No carro ela me deu uma espécie de salsicha de peperone. Era um troço duro, parecia plastificado. Deu até enjoo.

– Coma esse peperone que não precisa nem fazer o jantar.

Perguntei à Mônica se ela havia dado alguma comida diferente para Higgans, sem que eu soubesse.

– Não, Dani! Eu jamais faria isso.

– Eu sei disso. Não estou desconfiando de você. É que hoje logo ao sair do shopping, ele teve uma diarreia tão líquida que não consegui limpar. Fiquei preocupada. Ele deve ter comido

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alguma coisa diferente. Eu só queria me certificar, porque, se ninguém deu nada pra ele, acho que o que fez mal foram aqueles biscoitos diferentes de cachorro que você comprou. Estou rezando para que seja isso, porque eu comecei a dar para ele no sábado.

– E hoje é terça... Pode ser.

– Tomara que seja isso! Vou parar de dar os biscoitos para ele e ver como se comporta.

– Pobre Higgans! Não está se sentindo bem! – comentou Mônica afagando Higgans, que estava no chão, atrás do banco do passageiro.

Eu estava preocupada porque, exceto por uma alergia de pele, Higgans nunca ficou doente em seis anos comigo. E as duas vezes que ele pegou a alergia de pele foi em situações de mudança, em que eu ou ele estávamos sob estresse. Alguns dias antes eu percebera a face dele arranhada perto da orelha esquerda, devido à alergia. Estava com medo que a diarreia tivesse a ver com a alergia de pele. Tinha receio de ele estar doente por estar estressado com a rotina, por andar demais.

Temia que ele estivesse tomando para si meu estresse e ficado doente. Senti-me culpada. Se ele não melhorasse, não aguentaria a viagem de volta. Já pensou o coitado com diarreia no avião? Mesmo que comprasse fraldas para ele, seria ruim. Quando o Higgans entra num carro ou avião comigo, ele não sabe se a viagem vai durar cinco minutos ou 20 horas. Por isso, e também antes de pegar o atestado do veterinário de Vancouver, ainda não poderia comprar a passagem de volta.

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Capítulo 13

O Dramalhão

No intervalo do almoço de quarta-feira, estava sem fome e comi qualquer besteira no shopping. Ao terminar, levantei da mesa e fui ao caixa comprar um sanduiche para mais tarde. Já na rua, estava me sentindo muito leve e notei que minha mochila não estava nas costas. Assustada, aprecei-me para voltar à praça de alimentação e perguntei por uma mochila pink. Ela estava no encosto da cadeira que deixei, intacta, com o netbook e tudo no lugar.

Depois da aula, fui ao consulado encontrar Nel para levarmos Higgans ao veterinário. Dirigi-me até a sala que ela havia me indicado, mas a porta estava trancada e ninguém atendia a campainha. As pessoas dos outros escritórios que passavam por ali me alertavam que o consulado só funcionava até as 11 horas. Eu explicava que tinha horário marcado com alguém.

– Não tem ninguém lá dentro! As luzes estão apagadas – explicavam as pessoas, tentando me ajudar.

– Eu sei, mas vou esperar. Obrigada.

Eu ligava para o consulado e ninguém atendia. Era estranho. Sempre ligava depois das onze e Nel atendia. Pior que ela não tinha celular. Mas sabia que ela não me deixaria na mão. Como já era quase três da tarde, sentei no chão e comecei a comer meu sanduíche e beber uma garrafinha de suco. A Lei de Murphy, entretanto, é implacável. Depois que já estava meio lambuzada com o sanduíche, comendo bem à vontade, algumas pessoas saíram do elevador e caminharam em minha direção. Falavam Português. Deveriam ser do consulado, mas eu não ouvia a voz de Nel.

– Você deve ser Danieli – disse uma mulher.

– Sim. – respondi sem jeito, levantando com suco e sanduíche.

– A Nel já está vindo – disse. Entrou, acompanhada de mais alguém, fechou a porta e me largou do lado de fora. Depois de uns instantes, voltou.

– Ah! Você quer esperar pela Nel aqui dentro?

“Não! Prefiro esperar sentada no chão gelado”, pensei.

– Ah, sim! Obrigada.

Entrei e sentei numa cadeira na sala ou recepção. Estava acabando de comer, quando Nel chegou com mais algumas pessoas.

– Oi, Danieli!

– Oi, Nel!

– Desculpe o atraso! Nós estávamos em uma reunião de almoço fora.

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“Já que haviam se atrasado, não poderiam demorar mais cinco minutos para eu acabar de comer e me limpar?”, pensei.

– Este aqui é o cônsul – apresentou-me Nel a um senhor simpático.

– Desculpem. Não tive tempo de almoçar e estava morrendo de fome.

– Não tem problema! Termine seu sanduíche tranquila – disse o cônsul.

– Essa é a esposa do cônsul – disse Nel.

– Prazer – cumprimentei, sem estender a mão lambuzada.

– Vou resolver umas coisas para o cônsul e já vamos, Danieli – disse Nel, entrando junto com os demais.

Eu estava preocupada com o horário porque a Nel havia marcado veterinário para as três e meia e já passava das três. Não podia falar nada, pois estava dependendo de favor. Enquanto aguardava, um senhor com leve sotaque espanhol ficou falando comigo. Era Santiago, que, entre outras funções, trabalhava como motorista do consulado.

– A Nel já vem, viu?

– Tudo bem.

Santiago era colombiano, porém, cresceu no Brasil e estava em Vancouver há mais de vinte anos. Teve filhos no Canadá mesmo, que foram morar no Brasil depois da maioridade. Tanta gente querendo fugir da violência e da desigualdade social no Brasil, e os filhos de Santiago, que eram cidadãos canadenses, abriram mão da qualidade de vida de Vancouver para morar no Brasil.

– Mas por que eles não ficaram aqui com você?

– Não se adaptaram à vida no Canadá. Preferem morar no Brasil. Eles não gostavam do clima daqui. No Canadá o inverno é muito rigoroso. Vancouver é a cidade da chuva. Você viu como é o verão daqui – explicava Santiago.

– Sim. O verão daqui é como outono no Brasil – comentei.

– Sim. A cidade é muito cinzenta. Dá depressão ficar por muito tempo. Meus filhos não aguentaram.

Santiago tinha uma educação, um jeito polido de falar e uma gentileza admiráveis. Nel vivia brincando que, se ambos não fossem casados, ela casava com ele, porque era um cavalheiro.

Depois de um tempo, fomos ao veterinário: Nel, eu e Santiago dirigindo. No balcão da clínica havia dois gatos tão imóveis que pareciam de pelúcia.

– São de pelúcia? – perguntei à recepcionista.

– Não. São de verdade.

– São de vocês?

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– Não. São gatos perdidos procurando um lar.

Até eu que tenho receio de gato me apaixonei por aqueles dois. Eram lindos e pareciam ser dóceis.

Segundo a descrição de Nel, a clínica era de indianos ou com os funcionários predominantemente indianos.

– Este é um bairro de indianos – explicou. – Em Surrey, onde você está morando também tem muito indiano. Até me admirei quando você disse que sua família não era indiana.

Como queríamos o atestado para sair do país com Higgans, ela achou melhor não mencionar a diarreia para o veterinário.

– Não deve ser nada. Deve ser como a gente, quando come algo que não fez bem – comentava Nel, ainda na recepção da clínica.

– O problema é que ele nunca come nada de diferente. A não ser uns biscoitos diferentes que Mônica comprou para o cachorro dela e me deu para dar também ao Higgans.

– Hoje, como estavam as fezes dele?

– Ele ainda não fez. O que também me preocupa porque ele sempre faz de manhã.

– Mas se ele fez aquilo tudo ontem é normal que não tenha nada para fazer hoje – concluiu Nel.

– É. Pode ser.

– Você faz o que achar melhor. Mas eu não falaria nada para esse veterinário, pegava meu atestado e me mandava para o Brasil.

– Mas se Higgans continuar com diarreia, não poderei viajar, Nel – ponderei.

– Hoje é quarta-feira. Você pretende viajar na segunda. Até lá, ele vai melhorar – insistia Nel.

Você deve estar enojado em ler sobre esse tema indigesto. Quando se é mãe, seja de cachorro ou de ser humano, essas questões preocupam. Ambos os bebês não podem dizer o que sentem nem decidir por si. Somos nós quem escolhemos por eles. Temos que prestar muita atenção em cada detalhe, cada comportamento, cada movimento, cada rotina, para podermos nos inteirar da sua saúde, do seu estado. Lembrando que as pessoas são muito mais tolerantes com um bebê que borre as calças do que com um cão que tenha um “acidente” no avião, por exemplo.

Em 2000 quando cheguei ao Brasil com meu primeiro cão-guia, Tyra, e enfrentava muita dificuldade para circular, pois ainda não havia lei para isso, a imprensa me ajudou muito. Em uma das reportagens de uma competente jornalista, ela perguntou a uma mulher na lanchonete:

– E se um cão-guia fizer as necessidades aqui na lanchonete?

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– Acidente acontece com qualquer um. Eu posso passar mal; meu filho pode vomitar aqui na mesa... O cachorro também pode passar mal e fazer alguma coisa! É normal! E melhor, não vai correr o risco de estar no colo de alguém e sujá-lo, nem na mesa. Vai sujar o chão.

Aquela mulher estava certa. Acidentes acontecem. Infelizmente, nem todo mundo pensa assim. Eu nem estava pensando nisso na clínica veterinária. Estava preocupada com o bem-estar do cachorro. Como Nel, eu também não via a hora de pegar o atestado e ir embora. Mesmo assim, ainda entrei na sala do veterinário em dúvida se deveria ou não mencionar o fato.

O veterinário era indiano. Tivemos dificuldade em entender seu Inglês. Quando perguntou o motivo da consulta, expliquei que era só para pegar um atestado a fim de viajar de volta ao Brasil. Ele passou a examinar Higgans.

– O que é isso aqui? – perguntou, referindo-se à face do cão.

– É uma alergia que ele tem quando se coça demais – expliquei.

Aí, ele falou umas coisas, que nem Nel nem eu entendemos direito. Algo como cortar a região... Fiquei apavorada e disse não. Ele então pediu a Nel que me explicasse que queria apenas raspar a região e aplicar um remédio.

– Mas aí, vai ficar exposto! Aí sim que não vou poder viajar – disse para Nel, em português.

– Então manda deixar como está. – sugeriu Nel.

Higgans não estava confortável com o veterinário mexendo no machucado. Eu não podia ver o que ele estava fazendo, Nel não entendia nada de cachorro e nenhuma das duas compreendia o que aquele veterinário dizia. Pedi que ele deixasse o ferimento como estava. Ele respondeu que iria receitar um remédio, fez o atestado médico e nos dispensou.

– Mas e o remédio? – perguntei a Nel, enquanto saíamos do consultório.

– Aqui no Canadá o próprio veterinário dá o remédio. Você já sai da consulta com ele. Não precisa de receita.

– E cadê o remédio?

– Eles vão dar na recepção.

A recepcionista deu a conta e um frasco de comprimidos para tomar duas vezes ao dia.

– Mas o veterinário disse que iria dar um remédio para passar na região.

– Sim, mas ele deu esse comprimido para tomar – disse Nel.

– Estou em dúvida em relação ao remédio. Eu quero falar com o veterinário – pedi à recepcionista.

– Ele está com outro paciente.

– Sim, mas não posso sair daqui com dúvida. Pensei que ele iria me explicar sobre o remédio. Estou em dúvida. Quero falar com ele.

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– Tudo bem. Vou falar com ele – respondeu a recepcionista, entrando no consultório.

– O veterinário disse que é esse mesmo o remédio para tomar, porque não adianta passar nada no local – respondeu a recepcionista, ao retornar.

– Ele não vai falar comigo? – insisti.

– Não. Está com outro paciente.

– Aqui é assim, Danieli – explicou Nel. – O tratamento não é pessoal como no Brasil.

Mesmo com dúvidas, paguei a conta. Enquanto Nel, Santiago e eu nos dirigíamos à saída, ela ia me contando pelo que passara:

– Quando cheguei aqui, Danieli, estranhei muito. A primeira vez que levei minha filha ao pediatra, ele a examinou, pediu que eu aguardasse na recepção, onde recebi um remédio com as orientações para tomar. Fui embora cheia de dúvidas, sem ter a quem perguntar.

Antes de entrar no carro, levei Higgans para fazer as necessidades. Quando juntei, notei que estava bem mole, mas nada aguado como Camila descrevera no dia anterior.

– Só está um pouco mole. Mas não é diarreia, não – tranquilizou-me Nel.

Ele já deve estar melhorando. Acho que foi mesmo aquele biscoito. Tem certeza, Nel? Senão, volto no veterinário e falo da diarreia.

– Tenho. Está bem normal, né, Santiago?

– Está sim.

– Você é quem sabe. Nós estamos em frente à clínica. Podemos voltar lá e falar com o veterinário. Mas acho que você vai procurar sarna para se coçar. Eu não tenho cachorro, mas já tive criança e acho que seu cachorro não tem nada – dizia Nel.

Fomos embora para o consulado e de lá segui para a estação, onde tomei o trem para Surrey. Conforme Mônica ficaria até tarde na casa da mãe, voltei de táxi da estação para casa, com um motorista indiano. Aproveitei para pegar seu número de telefone, caso eu precisasse. A corrida da estação até a casa de Mônica dava quinze dólares. Inviável para pegar táxi diariamente.

Cheguei por volta de seis e meia. July e uma amiga assistiam TV na sala.

– Boa tarde! – cumprimentei.

– Boa tarde! Tem lasanha para o jantar – informou July.

– Vocês já comeram?

– Já. Mas posso esquentar para você.

– Então, eu vou querer mais tarde. Primeiro, vou cuidar do meu cachorro e tomar um banho. – e fui ao meu quarto.

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Mal deu tempo de tirar o tênis, dar comida para o cachorro e levá-lo para fazer as necessidades, que July me chamou para comer.

Comecei a desconfiar que ela me irritava deliberadamente. Simplesmente ignorou quando disse que jantaria mais tarde. Não era a primeira vez que fazia isso. Certa vez perguntei a Mônica onde estava a geleia, porque não a encontrei no lugar de sempre. Ela respondeu que July havia comentado que eu não gostava de geleia. Dias antes, quando eu preparava meu café da manhã, perguntei onde estava a geleia. July respondeu que não havia geleia.

Eu nem estava com fome, entretanto, resolvi comer mais cedo para evitar problemas.

Esperei o jantar assentar no estômago. Por volta de oito e meia fui tomar banho. Minha toalha não estava no lugar. Mônica ainda não havia voltado. Ela só me dera uma toalha de banho. Quando lavava, não tinha outra para usar. Fui perguntar a July se havia alguma sobrando.

– Na cozinha há umas toalhas lavadas. Alguma deve ser sua.

E me deu a toalha, que, pela textura, não era minha.

– Esta toalha está usada?

– Não. Está limpa – garantiu July.

Eu estava tranquila quanto à alergia de Higgans, porque ele tivera isso antes, e seu veterinário disse que não era para me preocupar. Mesmo assim receava que ele coçasse mais a região e abrisse o local, dando motivo para que as pessoas reclamassem de sua aparência. Se ele coça demais, o pelo cai e fica com aspecto ruim. Quem vê pensa que é um grande machucado.

Pensei em fazer uma proteção com gaze e esparadrapo para impedir que ele coçasse o local. Havia esquecido de colocar o esparadrapo no meu kit de primeiros socorros. Fui perguntar para July se ela sabia onde tinha esparadrapo naquela casa e ouvi sua resposta padrão – “não faço a mínima ideia” – pela enésima vez. Isso porque já iria fazer um ano que ela morava na casa. Bati à porta de San para saber se ele tinha esparadrapo. Afinal, ele era enfermeiro.

– Não tenho esparadrapo. Mas para que você quer?

– Nada. Só para tentar impedir que Higgans coce uma região do rosto.

– Deixa eu ver!

– Não precisa. Fui ao veterinário e ele disse que está tudo OK. Inclusive, deu um antibiótico para ele.

Minha relutância de nada adiantou. San foi até meu quarto ver Higgans e o drama começou:

– Dani! Higgans está muito mal – exagerou.

Tentei explicar que ele sempre tinha isso, que não era nada para se preocupar, que era normal cair o pelo. Porém achavam que a ceguinha brasileira aqui estava sempre errada.

– Dani! Você precisa passar algo nesse machucado!

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– Já disse que fui ao veterinário e ele deu um remédio para tomar.

– E não deu nada para passar?

– Não.

– Dani! Esse veterinário te enganou! É um incompetente! Vê um machucado desse e não faz um curativo!

– Higgans já teve isso outras vezes. Não se preocupe. É só uma alergia.

– Dani! Isso não é só uma alergia. Seu cachorro está muito machucado.

– Você acha que um veterinário iria dar a sua assinatura para o meu cachorro viajar, se ele não estivesse bem?

– Não me fale desse veterinário! Quando Mônica chegar, vamos levá-lo a outro veterinário.

– Mas já são quase dez horas da noite!

– A gente encontra um hospital de plantão.

Quando Mônica chegou, o drama aumentou. Os dois insistiam que eu deveria ir a outro veterinário.

– O Higgans está medicado. E daqui uns dias eu já estou no Brasil!

– Acontece que do jeito que ele está não vão te deixar embarcar – afirmava San.

– Claro que vão. Tenho o documento do veterinário, vou pegar o carimbo do governo. Ninguém mais pode me impedir de viajar!

– Papel nenhum vai adiantar se eles virem esse machucado – insistia San.

Respondi algo do tipo “isso é problema meu”. Não aguentava mais aquilo.

– Eu não quero saber de ninguém voltando para casa se não conseguir embarcar – ordenou Mônica.

Eu poderia ter dito: “Não se preocupe! Que se eu não conseguir embarcar, vou a um hotel!”, mas novamente fiquei travada, sem saber o que dizer. A possibilidade de ter que ficar mais tempo naquela casa me apavorava.

– Tá vendo? Você faz tudo errado quando se mete a fazer as coisas sozinha – brigou Mônica.

– O que você quer dizer? Está me chamando de irresponsável? – estourei.

– Não! É que as pessoas se aproveitam de você porque você não enxerga.

– Ninguém se aproveitou de mim!

– Ah, não? E o telefone que você comprou errado? E o computador que não funciona?

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Meu telefone funcionava muito bem, obrigada. Mais barato que meu celular no Brasil. E tive mais dificuldade para usar o laptop no início, porque as pessoas daquela casa se recusaram a me ajudar. Novamente, não consegui dizer essas coisas. Estava nervosa. Nem conseguia argumentar. Mônica seguia me tratando como idiota:

– Esse veterinário se aproveitou de você porque você não enxerga! Ele deveria ter te dado uma medicação para passar no local!

Além de mandona, preconceituosa e dramática, ela também queria saber mais que o veterinário? Como estava acostumada a viajar com cão-guia, sabia que, tendo os documentos em dia, ninguém poderia me impedir nem dizer que o Higgans não estava em condições de viajar. Até porque quem nos atende no aeroporto são funcionários das companhias aéreas, não veterinários.

Apesar de ter certeza de que era a mesma alergia que ele sempre tinha, que não era nada para me preocupar, que o veterinário atestara que estava bem, o fato de não poder ver o machucado me deixou insegura. Aproveitei que o casal foi para a sala e liguei para minha casa via Skype.

– Oi! – atendeu minha irmã.

– Desculpe, Hilana! Sei que já passa das duas da manhã aí! Mas o casal está me enchendo o saco aqui por causa do machucado do Higgans! Estão dizendo que o Higgans tá muito machucado, que não vão me deixar embarcar com ele do jeito que está. Estou com medo de que seja mais grave que das outras vezes.

– É que quando ele coça arranca o pelo e quem vê se assusta mesmo.

– Eu sei! Expliquei isso para eles! Mas eles não acreditam em mim!

– E por que você nos chamou?

– Como não posso ver o machucado, tenho medo de que não seja a mesma alergia. E eu queria que você visse o machucado.

– Como que vou ver, Dani?

– Teu laptop não tem câmera?

– Tem. Mas estou usando o Skype no seu computador, não no meu. E o seu não tem câmera! Pede para Mônica tirar uma foto para gente ver se é o mesmo problema de sempre.

Mônica tirou a foto, porém, não conseguia passar para o computador. Eu estava nervosa com toda a situação.

– O que eu faço? – perguntei para minha irmã.

– Deixa isso aí quieto e volta para o Brasil o mais rápido possível! Está com casquinha?

– Está.

– Então deixa quieto. Você sabe que se a casquinha cair, vai demorar um mês para voltar ao normal! Vai ficar um aspecto horrível! Aí Sim eles não te deixam embarcar – profetizou.

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– Nada a ver, Hilana! Se eu tenho todos os documentos para viajar, ninguém vai falar nada.

– A gente nunca sabe, Dani. E já imaginou se você tiver que ficar aí mais um mês?

A ideia de ficar mais tempo em Vancouver me apavorava. E não havia muita coisa que minha família pudesse fazer à distância. Pude constatar que, seja no Brasil, no Canadá ou em qualquer parte do mundo, sempre iria encontrar pessoas que me julgariam inferior só porque tenho deficiência. Aquele dramalhão todo só ocorreu porque tive a infeliz ideia de perguntar onde estava o esparadrapo. A confusão toda me fez dormir mais de uma hora da manhã de quinta-feira e com forte dor de cabeça. Para aquele dia, estavam marcadas duas das provas finais do curso de inglês – as de listening e speaking.

Apesar do agito da noite anterior, tive aproveitamento de 90% em cada uma das provas. Os professores disseram que tive o melhor desempenho da minha turma. Às 11 horas, estávamos liberados. Preocupada com o cachorro e minha viagem de volta, liguei para Nel. Fui para o consulado e contei a ela a “novela” da noite anterior.

– Esse casal está fazendo terrorismo com você, Danieli! Seu cachorro está ótimo.

– Você viu o machucado dele direito? Está tão feio assim quanto eles dizem?

– Não! Claro que não! Está arranhado de tanto ele coçar, como você sabe. Se tivesse tão mal quanto eles dizem, você acha que o veterinário daria um atestado para você viajar?

– Foi o que eu disse para eles. Mas eles disseram que esse veterinário é um picareta! Disseram que se aproveitou de mim porque eu sou cega!

– O quê? Você não disse para eles que eu estava com você? – perguntou Nel brava, mas sem perder a calma. Ela tinha o jeito calmo e doce de falar dos nordestinos. Dava para notar quando ela se exaltava. Mesmo assim, não perdia o jeito meigo de se expressar.

– Sim, Nel! Eles sabiam que fui ao veterinário com você!

– O que essa mulher pensa? Que eu sou uma irresponsável? Que só porque ela te enganou, todo o mundo vai te enganar?

Poderia parecer cruel o que Nel estava dizendo, mas fazia sentido: tem aquele ditado que diz que homem que pula a cerca morre de ciúme. Teme que a mulher faça com ele o mesmo que ele faz com ela. Essa desconfiança exagerada de Mônica, talvez, fosse porque ela mesma não fora honesta comigo, ao não me falar das condições reais de sua moradia antes de eu sair do Brasil. Talvez por isso mesmo ela defendesse Geraldo quando eu o criticava. Quanto mais eu falava com as pessoas, mais as peças iam se encaixando e mais enganada me sentia.

– E você acha então que eu posso viajar tranquila com ele, Nel?

– Como está a diarreia dele?

– Melhorou. Está normal.

– Então só falta pegar o carimbo da vigilância sanitária daqui que você pode viajar.

– Eles falaram que, como ele está, não vão me deixar viajar!

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– Não tem o que não deixar! Depois de pegar o carimbo você vai ter um documento oficial do governo deles!

– Foi o que expliquei a eles. Mas a Mônica disse que, se não me deixarem embarcar, ela não quer ver ninguém de volta para casa chorando!

– Você não vai precisar voltar! Os funcionários do aeroporto não podem nem tocar no seu cachorro!

– E se eles estiverem certos, e eu tiver que voltar do aeroporto?

– Isso não vai acontecer! Mas se acontecer, a gente dá um jeito. Não se preocupe, que para casa dela você não volta – revoltou-se.

Uma colega de Nel passou pela sala.

– Vem cá! Você está vendo alguma coisa de errado com esse cachorro? – perguntou Nel.

– Não. Ele está ótimo.

– Olha aqui esse machucado embaixo da orelha! – pedi.

– Está só arranhado – constatou a mulher.

– Não é? – comentou Nel. – A dona da casa onde a Danieli está morando é uma louca! Fica fazendo terrorismo, dizendo que o cachorro está muito doente, que não vai poder viajar.

– Mas que exagero! – comentou a mulher.

Pedi a Nel para me deixar usar o telefone do consulado para ligar para o veterinário do Higgans para esclarecer algumas dúvidas.

– Não se preocupe, Danieli. Seu cachorro pode viajar tranquilo. E o veterinário fez muito bem em dar medicação via oral para tratar de dentro para fora – tranquilizou-me o doutor Wagner Bueno, veterinário no Brasil.

– Ai, que alívio, doutor! O marido da mulher da casa é assistente de enfermagem e ele ficou me enchendo o saco porque disse que o veterinário deveria ter costurado a região.

– Não! De jeito nenhum! Quem disse para você que tem que suturar não sabe o que está dizendo! Não se sutura tecido inflamado.

– E o senhor acha que preciso colocar uma gaze com esparadrapo para proteger?

– Não! Você não deve pôr nada! Deve deixar respirar!

– Mas não tem perigo de ele pegar alguma infecção durante a viagem?

– Não. Além do mais, ele está tomando antibiótico. Fique tranquila, Danieli. Você pode viajar com ele tranquila.

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Depois de falar com doutor Wagner, fiquei mais calma. Pedi a Nel para irmos pegar o carimbo da vigilância sanitária ainda naquele dia.

– O cônsul me autorizou a ir com você. O problema é que hoje o carro do consulado está sendo usado para atender autoridades.

– Não tem problema. Eu pago o táxi.

– Então, vamos!

Tal como no Brasil, a veterinária da vigilância sanitária canadense nem examinou o animal. Só leu o atestado do veterinário e carimbou. Enquanto a veterinária estava em outra sala providenciando alguma coisa, conjecturei se deveria explicar a situação a ela. Nel era totalmente contra.

– Você faz o que quiser. Mas eu não falaria nada. Você já tem o carimbo para viajar. Não tem nada mais que a impeça!

– E se encrencarem no aeroporto?

– Não vão encrencar! Esse povo da casa em que você está morando é louco! Você viu! A veterinária ficou acariciando o Higgans na carinha dele, bem perto do machucado e não disse nada! Vamos pegar esse papel e ir embora!

Quando a veterinária voltou, Nel perguntou onde era o ponto de táxi mais próximo.

– No aeroporto, do outro lado da rua. Mas vocês também podem pegar o trem lá!

– Falei aquilo para ver se ela chamava um táxi para gente, mas... – comentou Nel, já a caminho do aeroporto.

Fomos de trem. Já eram quatro da tarde e eu ainda não havia almoçado. Estava caindo de fome. Não costumo ficar mais de três horas sem comer. Então, Nel e eu fomos almoçar no shopping perto da escola de inglês. Nel queria que eu experimentasse um famoso cachorro-quente do Canadá. Nada mais era que um pão seco com salsicha, acompanhado por batata frita. E eles costumavam colocar bastante ketchup. Como não gosto muito de ketchup, coloquei um pouco de maionese para dar um gostinho. Estava com tanta fome que devorei tudo, mas o hot dog brasileiro é bem melhor.

Mesmo assim, eu estava tendo bons momentos com Nel. Era muito agradável a companhia dela. Ela me contou um pouco da sua história, de como ela havia parado ali. Vinha do nordeste, morava em Vancouver com o marido e dois filhos. Os dois trabalhavam num banco no Brasil e tinham uma vida confortável. A ideia de morar fora surgiu quando viveram por dois anos na Inglaterra, enquanto o marido fazia mestrado.

Ao contrário da grande maioria das pessoas, o casal juntou dinheiro para poder se manter por dois anos em Vancouver. Enquanto isso, trabalhavam no que dava. Na época, era mais fácil conseguir cidadania canadense. Deram entrada nos papéis e conseguiram. Em um desses concursos locais, ela foi contratada pelo consulado brasileiro – onde já estava há sete anos. Era muito querida pelos cônsules, talvez porque se dedicasse bastante.

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– Eu não entendi, Nel. Se vocês tinham uma boa vida no Brasil, por que decidiram vir para cá?

– Por causa da segurança, da educação, da qualidade de vida. Aqui não me preocupo com a violência. Você anda tranquila de trem. É que, infelizmente, você caiu nas mãos de uns safados e está morando num lugar ruim. Mas se tivesse vindo em outras condições, com certeza teria outra visão de Vancouver.

– É. Eu sei. Adoro o centro de Vancouver. Mas agora que estou indo embora, estou tentando aproveitar as coisas boas, como esse momento aqui com você.

– Eu também estou adorando passar essa tarde aqui com você. Pena que eu não tenho tempo nem carro para te levar para passear mais. Além do trabalho, estou correndo com o casamento da minha filha que é daqui a um mês. Mas quem sabe a gente não se encontra novamente em uma situação melhor?

Saímos dali e fomos comprar malas no shopping para a viagem de volta. Não cabia mais nada na minha bagagem e eu andara fazendo umas comprinhas. Acostumada aos preços dos Estados Unidos, achava tudo caro em Vancouver. Em Nova York, tempos antes, paguei cem dólares por um jogo bom com quatro malas. Ali, uma mala mais ou menos não saía por menos de 80 dólares canadenses.

– Não tem nada mais em conta, Nel?

– Não, Danieli. A melhorzinha é essa aqui por cem. Eu te falei que não valia a pena fazer compras no Canadá. O povo daqui atravessa a fronteira para comprar em Seattle.

– Eu sei. Mas é que eu realmente estou precisando comprar uma mala.

Comprei uma mala verde, que, segundo Nel, era a menos feia. Levei também algumas etiquetas cor-de-rosa para identificá-la. O vendedor, cuja voz denotava certa idade e a falta de sotaque indicava ser canadense, teve a gentileza de abrir a embalagem das etiquetas – um plástico rígido, que precisou ser cortado – para que eu pudesse manuseá-las e saber se era o que eu queria. Por fim, perguntou se eu era turista. Quando confirmei, disse que se eu apresentasse o passaporte, ganharia 10% de desconto. Enquanto eu pegava meu passaporte, Nel comentou:

– Algumas lojas devem fazer isso para os turistas pra compensar o imposto de 12% cobrado no valor total de toda compra.

Em outro departamento daquela mesma loja, encontrei meu perfume. Contudo, não comprei, pois o frasco de 25 ml custava muito mais caro do que eu costumava pagar por 75 ml. A loja não tinha a marca usada por minha mãe. Ganhamos uma amostra de um perfume novo. Dei para minha mãe e ela adorou.

– Ai, Danieli – disse Nel, após a tentativa de comprar o perfume –, se você não se incomodar, eu gostaria de ir embora, que esse salto está me matando! Você quer ver mais alguma coisa?

– Ai! Coitada! Andando de salto! Não tem problema. Eu não quero ver mais nada.

– Então, vamos passar no consulado que eu tenho que pegar minhas coisas.

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Nel subiu até o seu andar, enquanto a esperava na calçada. Tomávamos o trem na mesma estação, mas ela desembarcava antes.

– Eu vou ajudar você com a mala até a minha estação, mas depois como você vai fazer? – perguntou Nel, já no trem.

– Eu liguei para Mônica. Ela vai me pegar na estação. Mas se ela não pegasse, eu iria de táxi. Ficaria difícil andar sozinha com essa mala.

Mudei o tom ao trocar de assunto:

– Nel! E se eles me encherem o saco por causa do cachorro?

– Eles não têm que falar nada! Nós fomos à veterinária do governo deles, e ela disse que está tudo OK. Você muda até a sua expressão quando fala nessa família. Eles realmente estão te deixando estressada!

– Pois é. Passei um dia maravilhoso com você e não quero nem imaginar o que será quando chegar em casa.

– Vai para o seu quarto e fala com eles o mínimo possível. Está acabando!

– É o que eu tenho feito. Mas e se eles me encherem o saco?

– Sabe o que você faz? Diz para ela ligar para mim que eu explico direitinho tudo que foi feito. E se ela vier cheia de coisa para cima de mim, eu corto as asinhas dela!

– Ai! Obrigada, Nel! Eu sei que nada disso é sua obrigação. Mas agradeço muito o seu cuidado comigo! Eu me sinto tão bem com você – recostei em seu ombro.

– Imagina! Não tem o que agradecer. Queria poder fazer mais. Também gosto muito de ficar com você.

Para minha sorte, ninguém se atreveu a tocar no assunto ferimento do Higgans.

Jantei uma fruta e fui dormir.

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Capítulo 14

Troca-letras

Agora que eu poderia viajar tranquila com o Higgans, tinha que remarcar a passagem. Originalmente, a volta estava prevista para dali a dois meses. Pelo fuso horário, a agência estaria fechada no Brasil e lá em casa, já estariam dormindo. Então, precisaria falar por Skype com minha mãe no dia seguinte, antes de ir para o último dia de aula. Minha mãe já havia visto com a agência de viagem que havia vaga para voltar na segunda e na quarta-feira. Para mudar para quarta, eu pagaria uma taxa de remarcação de 300 reais e, para segunda, de quase 800 reais. É um absurdo comprar passagem válida por seis meses e ter que pagar para remarcar a data.

– Tá muito caro para voltar na segunda, mãe!

– Mas acho melhor você voltar na segunda, antes que o machucadinho do Higgans piore – ponderou.

– Ele não vai piorar em dois dias. Está medicado. O veterinário aí do Brasil disse para eu não me preocupar.

– Então, tire esses dias aí para visitar algum lugar!

– Ai, mãe, não sei se vale a pena. Se eu ficar aqui na casa mais uns dias, vou ter que pagar mais 50 dólares de estadia, o que não é caro. Mas aí tem aquele transtorno para sair, depender da Mônica para ir até o trem, enfrentar uma viagem para chegar a qualquer lugar. Não sei se aguento ficar aqui mais um dia.

– Mas se você for ficar aí na casa, pega um táxi para ir passear. Não tem que ficar se estressando, dependendo de favor da Mônica nem viajando de trem!

– Valeria a pena ficar em downtown, mas precisaria gastar 400 dólares canadenses só de hotel, o que daria praticamente o mesmo valor que pagaria na passagem. E, sinceramente, nem sei se tem mais o que ver nessa cidade. E também estou tão cansada e estressada que nem sei se conseguiria aproveitar algum passeio.

– Se é para gastar dinheiro à toa, é melhor vir embora logo, filha. Essa viagem já deu o que tinha que dar!

– Pois é. Ainda acho que vou gastar menos com essa passagem mais cara na segunda-feira. Aqui, a gente paga para respirar.

– Então, vou ligar para a agência para marcarem a passagem para segunda!

– Faz isso então, mãe. Um beijo.

Desliguei o notebook e fui para a aula. Primeiro fiz o teste de writing. Kevin pegou os testes para corrigir na hora. Depois de todos terminarem, saímos da sala e o professor foi chamando um a um para dar o feedback do teste e do desempenho de cada um no curso. Fui a primeira. Não lembro se ele me deu nove ou dez, mas disse que a minha foi a melhor nota da sala.

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– Claro que descontei alguns errinhos de ortografia, porque isso você pode conferir em qualquer dicionário quando estiver escrevendo. Sei que para você, que mais ouve do que lê, é mais difícil trabalhar com ortografia. Até para os nativos é difícil. Acredito que seja a mesma dificuldade em Português – considerou Kevin.

– Sim.

– Então, não tem o que se preocupar. Tem uma ou outra construção gramatical que você só vai pegar o jeito mesmo na prática, lendo jornais e escrevendo textos. Não vai aprender de uma hora para outra. Seu inglês é excelente! Você tem um ótimo conhecimento da gramática. Você teve um excelente aproveitamento nas minhas aulas.

– E o que falta para eu obter a fluência?

– Praticar, praticar e praticar sempre. Não deixe de estudar por mais de uma semana. Assista filmes em inglês. Nunca deixe de praticar para não perder o que você conquistou.

– E quantas horas por semana você acha que é recomendável estudar?

– Três ou quatro horas está bom.

– Não consegui ver muita evolução aqui, professor. A impressão que tenho é que aprender inglês é fácil. Agora para alguém que está no meu nível, obter a fluência é mais difícil.

– Exatamente. Aprimorar o inglês é mais difícil que aprender. Quem está no nível que você está tem mais dificuldade, porque, agora, você tem que praticar, aprimorar os detalhes, lapidar a escrita, a leitura, a fala e a audição. Você pode não ter notado, mas desde o primeiro dia de aula eu vi sim sua evolução e lhe dou os parabéns!

– Obrigada, professor. Mas eu não acredito na fluência só com cursos de inglês. Acredito que precisaria trabalhar ou fazer algum curso universitário.

– Você está certa.

– E eu vi uns cursos que custam uns dez mil dólares o ano. Nem é tão caro.

– Não! Você está louca! Tem cursos bem mais baratos! Procure nas universidades do governo que você vai encontrar cursos mais baratos.

– É bom saber. Mesmo assim, eu teria que ter algum trabalho para me manter. Pois, o custo de vida em Vancouver é muito elevado.

– Deve ter algum benefício para as pessoas com deficiência. Agora precisaria ver se isso se estende a estrangeiros.

– É. De qualquer forma, obrigada pelas dicas e foi um prazer tê-lo como professor.

– Também foi um prazer tê-la como aluna.

Depois de o professor conversar em particular com todos os estudantes, voltamos à sala para esperar a entrega do diploma. Enquanto isso, conversávamos sobre o que fazer depois da aula.

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– Professor, ouvi dizer que em Vancouver tem uma variedade enorme de salmão. Mas até agora, não experimentei nenhum bom. Você sabe onde tem um bom lugar para comer salmão? – perguntei.

Kevin pensou, procurou na internet e respondeu:

– Aqui perto da estação Burrard tem o Cactos Club.

– Então, vamos lá? – perguntei aos demais estudantes.

– Nós queremos um lugar barato. Quanto custa nesse Cactos? – perguntou o coreano Teg.

– Vocês vão gastar, em média, uns 30 dólares por pessoa. – respondeu o professor.

– Muito caro – disse o coreano.

– Aonde vocês vão? – perguntei.

– Num restaurante japonês – respondeuTeg.

– É que hoje é meu último dia! Eu queria tanto experimentar o salmão daqui.

– Lá também tem salmão.

– Tem salmão cozido?

– Tem sim. Lá não tem só comida crua. E lá a gente vai gastar em média uns 10 dólares. É bem mais barato que o Cactos Club – insistiu o coreano.

Terminados os compromissos com a escola, cada grupo foi para um canto. Perguntei pelos professores Patrik e Nial, que não se encontravam na escola. Telefonei para os dois. Nial não atendeu. Patrik atendeu, mas estava gripado e não iria sair. Quis dizer adeus a Lúcia, mas não a encontrei. Troquei contatos com Caio, e ele foi comigo sacar dinheiro para eu pagar Mônica. Pois ela sempre ficava de ir a um caixa para sacar comigo e nada.

– Onde tem caixa eletrônico aqui perto, Dani? – perguntou Caio, saindo do prédio da escola.

– Na esquina tem uma porta com vários caixas Visa Plus.

– Eu nunca vi, mas vamos lá.

Ao chegar, ele confirmou:

– É mesmo! Tem um banco com caixa eletrônico aqui. Nunca tinha visto. Se você não me falasse, nunca saberia! Você enxerga mais do que eu – comentou, surpreso.

– Nas minhas saídas com o professor Nial, ele sempre ia me falando o que tinha e eu memorizava.

– Mesmo assim, você me indicou direitinho o lugar! Eu acho incrível como você consegue memorizar os lugares e se virar sozinha!

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Despedi-me de Caio, que já havia assumido outro compromisso, e fomos para o restaurante: eu, duas japonesas e dois coreanos: Teg e um rapaz que eu imaginei que fosse seu amigo. O ambiente era agradável, com sofás para sentar. Como não tinha cardápio em braille, pedi que o lessem para mim. O duro era entender o inglês deles. Resolvi pedir que sugerissem um prato com salmão, desde que não fosse cru. E eles escolheram para mim um salmão com molho teriyaki com batata doce frita. O molho era levemente agridoce. Só não gostei do arroz. Parecia uma papa sem tempero e vinha em uma cumbuca bem cheia.

Uma das coisas que gostava em estudar com pessoas do mundo todo era aprender a cultura de diferentes países. Naquele mês de convivência, aprendera que, apesar de tímidos, coreanos e japoneses são muito solícitos e educados. Sempre havia um colega para levar minha cadeira de uma sala para outra, e ninguém sentava nela. Respeitavam o treinamento do cão-guia, não desviando a atenção dele, por mais que quisessem agradá-lo. Naquele almoço, pude entender um pouco mais da cultura deles.

– Quem é seu amigo, Teg?

– É meu irmão mais novo.

– Ele veio te visitar?

– Não. Nós viemos juntos para estudar inglês.

– Você está em outra turma?

– Na verdade, estudo em outra escola – respondeu o irmão.

– Por quê? Você não gosta da PPC?

– Não é isso. Decidimos ficar em escolas diferentes para não correr o risco de ficar falando coreano um com o outro. Assim, nos forçamos a falar em inglês com os outros.

– Por isso preferimos sair com quem não é coreano para treinar o sotaque – complementou Teg.

– Interessante. Está dando certo. Seu inglês é o que consigo entender melhor na turma – disse a ele.

Teg e o irmão riram como se não acreditassem.

– É sério! Vocês têm um bom inglês! Quer dizer: vocês falam bem o inglês. Porque japoneses e coreanos têm um conhecimento muito bom de gramática e vocabulário – comentei.

– O problema é que no nosso alfabeto não existe diferença entre o “l” e o “r”. Nem entre o “f” e “p” – explicou Teg.

Agora estava entendendo porque era tão difícil compreender o que eles falavam e porque era uma tarefa árdua me fazer entender por eles.

– Então, quando você não entender alguma coisa, é só tentar trocar as letras – falou Teg.

– No Japão, é assim também? – perguntei às meninas, que confirmaram.

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– E no Brasil, como é o alfabeto?

– É o mesmo que o inglês, Teg, só que com som diferente. Por exemplo: em vez de ser “ei, bi, ci, di, i” é “a, b, c, d, e”...

Depois da refeição, fomos para um bar ali perto. Meus colegas queriam beber, e o restaurante não servia álcool. Nem todos os estabelecimentos do Canadá eram autorizados a vender bebidas alcoólicas. Enquanto fazíamos o trajeto, uma mulher nos parou do nada, em plena calçada:

– Posso brincar com seu cachorro?

– Não. Ele é um cão-guia e está trabalhando.

Ela ficou tão inconformada com minha negativa que parecia que a havia insultado. Ficou insistindo, mas pedimos licença e seguimos em frente.

Como estava quente, eles decidiram ficar nas mesas do lado de fora. Eram quase três da tarde. Todos, exceto eu, pediram cerveja. Não sei se era hábito canadense beber em qualquer dia e horário ou se eles estavam bebendo porque acabaram as atividades do dia. Pelo jeito que falavam, meus colegas coreanos e japoneses eram loucos por cerveja. Nesse meio tempo, Nel me telefonou perguntando se estava tudo bem e para saber detalhes do voo. O cônsul havia dado ordem para o carro do consulado me levar até o aeroporto. Ela iria me acompanhar.

– Então, Nel. Eu estou com uns colegas num bar e não tenho previsão de que horas volto para casa. Você pode, por favor, ligar para minha mãe e pegar os dados com ela? Ela que fez a reserva para mim.

– Ah, ligo sim.

– E será que você não quer me encontrar para gente fazer alguma coisa hoje?

– Então, Dani! Hoje, não dá. Estou cheia de coisa para fazer aqui no Consulado! Meu horário é até as duas, mas nunca consigo sair daqui no horário.

– Tudo bem. E no fim de semana?

– Tenho que resolver umas coisas do casamento da minha filha. Mas se der para gente fazer alguma coisa, eu te ligo.

– Tá bom.

Já era quase quatro da tarde. Não tinha mais assunto com os outros estudantes e não estava a fim de beber. Queria dar um giro para ver se encontrava algo que prestasse para comprar. Não queria voltar muito tarde para casa, porque no dia seguinte haveria aquele workshop cedo. Fiquei mais um pouco e me levantei para ir embora. Teg ofereceu-se para ir comigo.

– Não precisa. Eu sei ir até a estação. E você veio aqui para beber!

– Imagina. Eu já estava indo embora.

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Despedi-me dos demais e fomos seguindo andando.

– E o seu irmão?

– Ele conhece o caminho.

– Teg, eu não quero te incomodar. É que, antes de ir para casa, quero dar uma volta nas lojas. Então, não é melhor você voltar para o bar?

– Não. Eu vou com você.

– Tem certeza? – perguntei. – Mulher, quando entra em lojas, não mede o tempo. Eu queria andar sem compromisso.

– Tudo bem. Eu vou com você. O que você quer ver?

– Eu gostaria de ver alguma roupa de inverno.

Teg ia me falando os nomes das lojas. Entramos em algumas, mas a coleção toda era de meia-estação. Nada para o inverno de Curitiba. Estávamos vendo umas calças, quando os colegas ligaram para Teg para saber por que ele não havia voltado ao bar. Acabaram indo ao nosso encontro.

Na loja da Planet Girl havia uma jaqueta de moletom do tipo que eu queria: tecido grosso e quentinho por 70 dólares canadenses. Do meu tamanho, só na cor cinza. Comprei uma. Roupa para mim é para proteger do frio. Deve ser confortável. Se for bonita, melhor. Mas não sou o tipo de mulher que machuca os pés por causa de um sapato ou passa frio para usar uma roupa bonita.

Quando terminei as compras, já eram quase seis horas. Uma das japonesas havia ido embora da loja sem se despedir. Não queria sair do centro sem comer uma sobremesa indicada pela garçonete do bar australiano que eu tinha ido com Nial, porque o bar só abria durante a semana. Quando viajo, quero aproveitar tudo que posso. Ainda mais naquela viagem, em que quase tudo fora infortúnio. Eu merecia, pelo menos, curtir a gastronomia.

– E agora gente, estou a fim de ir a um bar australiano, perto da escola. Vocês vão para casa?

– Tem cerveja lá? – perguntaram os meninos.

– Deve ter! Bem, no Brasil, todo bar tem cerveja.

– Mas não sei onde é esse bar – disse Teg.

– Pode deixar que eu sei. Eu levo vocês até lá.

Fui guiando Teg, o irmão e a japonesa. Quando passamos pela escola, Higgans parou e queria entrar de qualquer jeito. Todos riram, achando incrível e falando para o Higgans:

– No, Higgans! No school today! (Não Higgans! Não tem escola hoje!)

Fomos ao bar. Ao chegar, a colega japonesa soltou um “no beer”.

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Entendi que ela havia lido na placa do bar que não havia cerveja. Cheguei a ficar indignada. Como assim um bar que não tem cerveja? Então, ela veio se despedir. Disse que ia embora sozinha porque não queria mais beber. Fiquei confusa, até que me explicaram que, sim, havia cerveja. É que já havia chegado a cota dela, por isso estava satisfeita e não queria mais. Os meninos resolveram ficar. Ela se foi e nós descemos a escadaria. O bar funcionava em um porão, estava cheio e tocando música boa. Muito agradável. Dava para ouvir mulheres conversando, casais... Perguntei aos meninos qual era o público, e eles confirmaram que havia grupo de mulheres, de homens e casais.

– Algum homem bonito? – perguntei.

– Isso não é nossa especialidade – responderam rindo.

A mesma garçonete que me atendera quando estive lá da primeira vez se aproximou. Pedi a sobremesa australiana com café, e os irmãos coreanos, cerveja.

Quando a garçonete se afastou, os meninos ficaram tentando falar: “Copp, copp”. Tentando falar coffee. Rimos muito das tentativas frustradas deles de melhorarem a pronúncia. Tentei ajudá-los, falando também, mas eles riram, intimidaram-se e acabaram desistindo.

– Melhor pedir um americano mesmo – comentou Teg, referindo-se ao café.

Adorei a sobremesa de nome estranho. Era feita com morango e suspiro. Quem vai a Vancouver, não deve deixar de visitar esse bar australiano, na Pender, quase esquina com a Hornbye, perto da estação St. Burrard. A região possui vários bares e restaurantes bacanas.

Aquela sexta-feira estava sendo muito agradável. Eu não tinha vontade de ir embora. Principalmente, ao me lembrar da viagem que teria que fazer para voltar. Mas sabia que precisava ir. No dia seguinte, deveria acordar cedo para participar do workshop. Já eram sete horas. Se fosse embora naquele instante, chegaria mais de oito e meia.

– Tá bom aqui, né? – comentei.

Os meninos concordaram.

– Eu não sei vocês, mas preciso fazer uma viagem para voltar para casa e amanhã tenho um curso logo cedo. Eu adoraria ficar aqui um tempão, mas preciso ir embora.

– Nós também temos um monte de coisa para fazer. – disse Teg.

– Então, vamos pedir a conta? – sugeri.

Teg pediu a conta. Como havia muito barulho, não ouvi quando ele pediu. Minutos depois, a garçonete apareceu na mesa com duas cervejas.

– Não pedimos cerveja. Pedimos a conta – explicou Teg.

– A conta – reiterei.

– Eu entendi cerveja – disse a garçonete.

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Mais uma trapalhada causada pela dificuldade dos orientais em reconhecer a diferença entre “r” e “l”. Conta, em inglês, é bill. Teg deve ter dito algo como “bir”, causando a confusão. Muito gentil, a garçonete retirou a cerveja e voltou com a conta.

– Isso sempre acontece – comentou Teg, enquanto esperávamos.

Estávamos nos divertindo com a situação. Fomos para a estação juntos e embarcamos no mesmo trem. Eles, contudo, moravam em downtown e logo desembarcaram. Parece que só eu havia sido mandada para os confins de Surrey. Trocamos os números de celular de Vancouver e e-mail.

– Muito obrigada por terem passado a tarde comigo.

– Imagine. A gente também gostou. Muito bom aquele bar que você nos levou – comentou Teg.

Agradeci o cuidado que tiveram comigo. Teg contou que tem um parente com deficiência visual que também anda sozinho, e que gosta de ajudá-lo sempre que pode.

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Capítulo 15

No Olho Da Rua

No meu último sábado em Vancouver, acordei às seis da manhã para estar no workshop de broadcasting às nove. Mônica também tinha uma conferência de sei-lá-o-que no centro da cidade. Foi de carro até a estação e de lá tomou o trem comigo.

Tanto meu workshop quanto a conferência dela estavam previstos para acabar às 16 horas. Mônica não sabia se iria ou não ficar para um jantar do evento. Como ela também não sabia quem estaria em casa para me pegar no ponto e abrir a porta para mim, ficamos de telefonar uma para a outra.

Ao contrário do usual verão de Vancouver, aquele dia estava quente como o verão do Brasil. Em um mês no Canadá, era o segundo dia de verão verdadeiro. Usei uma roupa bem fresquinha, só com um casaquinho, caso o ar-condicionado estivesse muito forte. Realmente, o ar da sala de aula estava bem frio. Tão frio que o casaquinho foi insuficiente. Eu estava com tanto frio que mal conseguia prestar atenção na exposição. Quando sinto frio, acabo me encolhendo para me proteger e, invariavelmente, durmo. Mesmo que eu estivesse o tempo todo acordada, o que os expositores diziam não era muita novidade para quem se formou em jornalismo: como se portar diante de um microfone, como preservar a voz...

Cada professor falou dos cursos que a escola oferecia. Na verdade, o workshop era mais para fazer propaganda da escola. A única novidade foi sobre o mercado de comunicação em Vancouver, a qual os expositores pintaram um pouco mais colorido do que a realidade apresentava. Minha vontade era de ir embora no intervalo do almoço. Ali, só iria me cansar, perder tempo e passar frio. Além do mais, ninguém era sociável. Na hora do almoço, perguntei se algum dos poucos espectadores do worshop queria me acompanhar. Almocei sozinha. Como não conhecia direito a região, pedi a um professor que me indicasse um lugar. Ele me indicou um café.

Meu plano era ir embora logo depois de comer. Liguei para Mônica. Ela informou que ficaria em downtown até a noite e que não havia ninguém em casa para abrir a porta.

Lembra da história da chave? Pois é. Até aquele dia, Mônica não havia encontrado a chave da porta da frente para fazer uma cópia. Eu estava na rua, sem chave, sem ninguém para abrir a porta para mim e sem nenhum amigo para me fazer companhia. O jeito era matar tempo no workshop até às quatro.

Para o período da tarde estava prevista uma prática de rádio e TV. Quando fui à escola pela primeira vez, fiquei bem animada com a possibilidade dessa prática. O diretor do curso disse que iria providenciar condições para eu participar. Afinal, se me adaptasse ao curso, poderia ser mais uma aluna, portanto, mais uma pagante.

No workshop a realidade era outra. Não houve adaptação. Nenhum professor fez questão de me incluir na turma. O condutor de uma das práticas até perguntou como se eu fosse um ser à parte do grupo:

– Você também quer fazer o exercício prático?

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– Claro que sim! Eu vim aqui para isso!

A primeira prática até que deu para fazer. O professor selecionou uma frase de um comercial para cada um e montou um comercial de 30 segundos com todos. Já na de telejornalismo, em que era preciso ler as notícias no teleprompter, fiquei de fora. Se fosse em outra situação, até improvisaria uma notícia, como fiz certa vez no museu da comunicação, em Washington. A frieza e o pouco caso dos professores, entretanto, deixaram-me sem vontade. Apenas acompanhei a apresentação dos colegas. Já era mais de duas da tarde, quando o professor propôs outra prática, onde tínhamos que procurar notícias na internet e montar um telejornal. Não havia leitor de tela. Ninguém se propôs a me ajudar. Resolvi ir embora.

Fui ao banheiro dar água para o Higgans e aproveitei para telefonar.

– Oi, Camila!

– Oi, Dani!

– Ai, Camila, me ajuda! Estou num apuro. Estou na rua, sem chave para entrar em casa!

– Como assim, Dani?

Expliquei detalhadamente a situação. Camila pareceu não se abalar.

– E o que você quer que eu faça, Dani?

– Sei lá! Eu não posso ir até sua homestay? Você não pode vir aqui para gente ir para algum lugar em downtown?

– Não, Dani! É que eu to indo à praia com minhas amigas.

– Poxa, Camila! Estou na rua. Esse centro está deserto. Eu nem sei para onde ir. Vem para cá, por favor!

Depois de insistir muito, Camila disse que passaria no centro antes de ir para a praia. Telefonei para Mônica para ver se poderia pegar a chave com ela, pois ela estava a uma estação de trem dali. E ela disse que eu poderia encontrá-la só às cinco e meia, no intervalo do evento.

– Onde é esse evento? – perguntei.

– No hotel, em frente a estação da Waterfront.

Perguntei se ela não poderia deixar a chave na portaria para eu ir lá pegar antes. Ela disse um sonoro não. Complicar as coisas era com ela mesma.

– Talvez você possa pegar a chave de July. Acho que ela está num estúdio aí pertinho de você – comentou.

Liguei para July e perguntei onde ela estava. Realmente era perto. Dava para ir a pé. Disse que ia encontrá-la para pegar a chave.

– A chave não está comigo.

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– Como não?

– Está dentro do carro do meu amigo.

– Sim. Mas ele não está com o carro aí perto?

– Não.

Achei estranha a resposta dela , pois eu sabia que os amigos que a levavam para lá e para cá eram os mesmos da banda em que ensaiava.

– A que horas você pretende voltar para casa? – perguntei desanimada.

– Lá pelas sete.

Peguei o elevador, desci e, ainda dentro do prédio, liguei para Nel para saber se eu poderia ir à casa dela ou se ela poderia me encontrar em algum lugar. Ela ficou indignada com o que lhe contei:

– O quê? Essa mulher te deixou na rua, sem a chave de casa? Essa mulher é mesmo doida! É uma irresponsável! Ela tinha que ter dado uma cópia quando você chegou aqui!

– Pois é. Ela está para me dar a cópia da porta da frente desde que cheguei. Mas ela disse que não sabe onde botou a chave da frente. E ela não quis me dar a cópia que ela tem da porta de trás, porque diz que é perigoso para eu entrar sozinha por ali, porque tem um deck e uma escada em construção, sem proteção nem corrimão.

– E como é que você tem entrado em casa?

– Por sorte, até agora sempre teve gente em casa para abrir a porta para mim. Mas hoje ela não se programou e fiquei na mão. E para piorar, antes de sair de casa, a água tinha acabado. E como ela não voltou para casa, óbvio que ainda não deve ter água. Então, antes de ir para casa, ainda preciso passar no mercado para comprar água.

– Eu nunca vi um estudante ficar numa casa como a sua! Quando penso que já ouvi de tudo dessa mulher, ela vem com mais uma! Um dia, te deixa sem toalha de banho, não prepara seu café da manhã... Mas te deixar na rua sem chave já é demais! E agora?

– Liguei para uma amiga brasileira, mas ela vai à praia. Disse que antes passa por aqui. Estou esperando.

– E como é que você vai entrar em casa?

– Liguei para Mônica, e ela disse para eu ir lá na estação Waterfront para pegar a chave com ela, mas ela só vai me entregar às 17h30, no intervalo do evento.

– Além de tudo, ela vai fazer você se deslocar para te dar a chave? A falha foi dela! Ela é responsável por você! Era ela quem deveria ir até você!

– Sabe que você tem razão?

– E eu não entendi por que ela não pode te entregar a chave antes!

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– Eu também não entendi. Sugeri a ela que deixasse a chave na portaria do hotel do evento para eu pegar o quanto antes, nem que fosse de táxi até lá. Mas ela disse que não dava.

– Que mulher mais complicada! Que evento será esse que ela não pode sair um minutinho para deixar a chave para você?

– Pois é. Quando penso que meu pesadelo em Vancouver está acabando, acontece mais essa. Mas me diz uma coisa, Nel: caso eu precise ficar em algum lugar até alguém voltar em casa, posso ir para a sua?

– Claro que pode, meu amor! Só não dá para vir agora, porque preciso sair para resolver algumas coisinhas. Mas daqui a uma ou duas horas, estou de volta. Eu só não vou te buscar porque não tenho carro e teria que pegar um ônibus e um trem para chegar até aí.

– Se você for me buscar na estação perto da sua casa, eu me viro até lá.

– Então, depois, você me liga para me dizer o que aconteceu.

Telefonei para Lúcia, os professores Patrick e Nial. Ninguém atendeu. Se Caio tivesse telefone, possivelmente me socorreria. Camila ligou:

– Oi, Dani! Acabei de chegar em downtown!

– Que ótimo! Você já está chegando aqui?

– Não. As minhas amigas quiseram comprar biquíni. Estou aqui numas lojas com elas.

– Eu não acredito, Camila! Estou aqui passando o maior sufoco, peço sua ajuda e, em vez de vir me socorrer, você vai comprar biquíni? Poxa! Você poderia ter vindo me buscar e a gente fazia isso juntas! Me diz onde vocês estão, que eu vou até aí.

– Eu não sei que rua que é. Mas eu te ligo quando a gente terminar as compras.

– Ta bom. Eu vou procurar um mercado, que preciso comprar água. – respondi desapontada.

No fim de semana, era mais complicado para um deficiente visual andar sozinho pelo centro de Vancouver, em locais que não conhecia. Havia poucos transeuntes para dar informação. Os estabelecimentos tinham pouco movimento. Muitos estavam fechados, Não me dando referências de sons nem cheiros para me ajudar a saber por que tipo de comércio eu estava passando. Só sentia paredes e portas fechadas na calçada, que não me diziam nada. Ficando difícil encontrar um supermercado, por exemplo.

Outra coisa que me confundia: no meio das quadras havia uma ruela por onde entravam os caminhões de lixo em que o piso tinha um declive e eu sentia um vão ao meu lado, como se fosse uma esquina. Como não havia aprendido a andar na cidade com um especialista de orientação e mobilidade, às vezes, tinha dúvida se estava à beira de uma dessas ruelas ou em uma esquina com sinal fechado. Eu estava sozinha e precisava comprar água e comida. Queria adquirir um maple syrup para levar para Curitiba. Alguém do workshop havia me falado que tinha um supermercado ali perto. Segui as instruções, perguntei aos transeuntes e cheguei lá.

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Um atendente me ajudou com as compras. Comprei o maple syrup, mix de panqueca, chocolates e biscoitos diferentes. Para consumir na casa de Mônica, comprei um suco e dois litros d’água. Mais que isso eu não aguentaria carregar. Estava andando em direção à estação com aquelas sacolas pesadas, quando ouvi movimentação. Chamei por uma mulher que andava pela calçada e perguntei onde era a estação de trem mais próxima.

– A Granville é a que fica mais perto. Estou indo até lá. Se quiser, posso te acompanhar.

Ainda bem. Não estava mais aguentando carregar as sacolas. Andamos mais uma quadra até a Granville. Desci do trem na estação e no horário que combinei com Mônica. Telefonei, e logo ela apareceu com a chave.

Como eu só tinha uma nota de cem dólares, perguntei se havia algum lugar onde eu pudesse trocá-la. Disse que não e questionou:

– Você tem notas menores em casa?

– Tenho.

– Então não dê essa nota para o taxista. Entre em casa e pegue notas menores, porque ele pode te enganar.

Para Mônica, todo mundo poderia me enganar. Até parece que iria correr o risco de deixar um estranho me esperando na porta, enquanto entrava numa casa sozinha no meio do nada. Se fosse o caso, preferiria que me enganasse no troco. Fiz que concordei e fui. No trajeto de trem para casa, Camila telefonou dizendo que havia terminado as compras.

– Onde é que você está, Dani?

– No trem para casa!

– E você não me esperou!

– Camila, eu precisava pegar a chave para ir para casa!

– Então, a gente não vai se ver?

Deveria ter dito “você quem marcou comigo e furou, indo comprar biquínis, em vez de me encontrar”. Porém, não valia a pena criar uma situação naquele momento.

– Pois é. – comentei.

– Eu te liguei antes. Por que você não atendeu esse telefone?

– Eu ouvi quando tocou, mas estava com as mãos ocupadas com sacolas pesadas, andando na estação. Não tinha como atender.

Ainda bem que eu não havia esperado. No tempo que ela demorou, encontrei um mercado, fiz minhas compras, fui até a estação, peguei a chave com Mônica e já estava a caminho de casa. Chegando à estação de Surrey, peguei o mesmo taxista que sempre me levava para casa, um senhor indiano muito gente boa.

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– Só que o senhor vai ter que me deixar na porta de trás – expliquei.

Ele ficou um pouco confuso.

– É a mesma casa, só que agora, o senhor vai me deixar nos fundos.

Ele chegou na frente da casa, virou com o carro em uma rua à esquerda, entrou à esquerda novamente e, supostamente, parou diante da porta de trás e perguntou:

– Você sabe dizer se tem um furgão na frente?

– Ninguém me falou de furgão nenhum. Só sei que tem uma escada em construção, sem proteção nem corrimão.

– Então, deve ser esta – disse o indiano, ainda inseguro.

Antes de descer do carro, ele passou meu cartão de crédito.

– Deixa que eu te ajudo na escada – disse, dando-me a mão.

Subimos a escada. Graças a Deus a chave abriu a porta. Para ter certeza de que eu estava na casa certa, tateei os móveis, que deveriam ser da cozinha, e os reconheci. Agradeci ao taxista, ele foi embora. Fechei a porta, deixando a chave sobre o balcão da cozinha.

Era uma tarde quente. A casa estava vazia, numa paz. Liguei a TV num canal qualquer, deixei com volume alto para ouvir de onde estivesse e fui cuidar do Higgans. Depois, liguei para Nel avisando que estava tudo bem e fui tomar um banho merecido de banheira com o sal grosso que Mônica esquecera no banheiro dos estudantes.

O chuveiro da casa era diferente do que eu conhecia. Não tinha uma mangueirinha separada. A mangueirinha era o próprio chuveiro e para usá-lo era só desencaixá-lo no lugar e direcionar para a parte do corpo que quisesse lavar.

Após o banho, preparei um sanduíche. Comi e tomei o suco que havia comprado, enquanto ouvia a TV da cozinha, que não tinha parede separando da sala. Mais tarde, peguei meu salgadinho mexicano para me acompanhar na televisão. O soninho foi batendo, deitei no sofá e caí nos braços de Morfeu.

Eram quase dez da noite, quando o celular me acordou. Era o professor Nial.

– Você estava dormindo?

– Não. Estava relaxando. Estou sozinha em casa, curtindo a TV.

– Liguei porque quero passear com você em seu último dia em Vancouver.

– Ah! Legal! Aonde pretende ir?

– Está tendo uma feira na cidade, com muitas atrações. Gostaria de ir lá. Tem diferentes comidas, músicas e brinquedos.

– Ah! Legal! Que horas você tá pensando em ir?

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– Pela manhã, minha namorada tem plantão. Então, pensei em te encontrar na estação do instituto dos cegos ao meio-dia. O que você acha?

– Ainda preciso arrumar minhas malas e acredito que vou dormir tarde. Então, acho mais garantido nos encontrarmos a uma hora.

– Tudo bem. Até amanhã então.

Que legal! Eu tinha um programa para o meu último dia em Vancouver. Ainda bem que o telefone me acordara, porque precisava começar a arrumar as malas. Dez da noite e ninguém havia chegado. Se não tivesse buscado a chave, sabe Deus até que horas teria que ficar na rua. Lá pelas onze, Mônica bateu no meu quarto, que estava todo revirado, pois estava arrumando as malas.

– Oi, Dani. Acabei de chegar. Que bagunça é essa?

– Estou arrumando as malas. Mas quando terminar, deixo o quarto em ordem.

– Arrumando as malas a essas horas?

– Sim. Saquei o dinheiro para pagar minha estadia.

– Amanhã, a gente acerta isso, Dani. Hoje, estou muito cansada.

– Tudo bem. Só que amanhã vou passar o dia fora com meu professor.

– OK. Mas deixemos para amanhã. Também precisamos ver um valor pela carona até a estação.

O quê? Ela me engana sobre a moradia, tinha de aguentar seus chiliques cada vez que saía ou voltava, viajar uma hora e meia até a escola porque me enfiaram em um lugar longe de tudo e ainda deveria pagar a mais por isso? E sem combinar nada antes. Eu não estava acreditando que Mônica ainda queria me cobrar a mais. Ela deveria dar um desconto pela localização da casa, pelo transtorno, pelo café que ela não preparava e pelo jantar nunca garantido. Para variar, estava tão cansada que não tinha forças para mais essa discussão.

– Que horas você pretende sair?

– Combinei de me encontrar com o professor a uma, na estação do instituto dos cegos.

– Então, eu te deixo na estação do Metrotown porque vou passar o dia na casa da minha mãe e depois vou jantar lá.

– OK. Obrigada. Mas se não puder me levar, me avise, que chamo um táxi.

– Tudo bem. Eu vou dormir. Hoje o dia foi cansativo.

Terminei de arrumar tudo por volta de duas da manhã, deixando só as mudas de roupa dos próximos dois dias, pijama, roupa íntima, meu travesseiro e meu ursinho.

Levei Higgans para fazer as necessidades, porque no dia seguinte acordaria tarde. San estava na sala assistindo TV. Alarmou-se ao me ver sair. Disse para ter cuidado, porque à noite

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havia um bicho – “racunas” – que até hoje não sei do que se trata. Perguntei se era perigoso. Ele hesitou e não respondeu. Pelo menos ficou vigiando enquanto levava Higgans. Estava havia um mês ali, e ninguém me falara nada sobre a tal criatura.

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Capítulo 16

Domingo No Parque

No domingo, havia colocado o relógio para despertar às 10h30. Levantei, cuidei do Higgans, preparei meu café e fui tomar banho para sair. Notei que estava bem quente e precisei tirar da mala uma saia, porque se essa feira fosse num pavilhão igual no Brasil, não aguentaria de calor.

– Vou passar o dia na casa da minha mãe e não sei a que horas volto – disse Mônica, ao me deixar na estação.

– Também não tenho hora para voltar.

– Então, quem terminar o compromisso antes liga para outra para gente ver como faz – propôs.

– Sim, claro.

Encontrei Nial e Yumi, a namorada, na estação como combinado. Yumi era muito simpática, pequenina e magrinha, como a maioria das japonesas, e muito atenciosa. De cara, demo-nos muito bem, como se nos conhecêssemos há anos. Nial havia se enganado. O ônibus para a feira partia de outra estação. Tivemos que pegar o trem novamente e desembarcar na parada seguinte.

A feira ficava numa área cercada, mas descoberta. Havia cobertura somente nas mesas e nos estandes. Fazia muito calor como ainda não tinha sentido em Vancouver. Dava até moleza, mas estava bem tranquilo para andar. Ainda mais porque as pessoas não ficavam me interrompendo por causa do cão-guia, como fazem no Brasil. Já para o casal, a feira estava lotada.

– Isso aqui para vocês é lotado? Em feiras aos domingos, no Brasil, a gente tropeça nas pessoas para andar. Dá até claustrofobia – comentei. – E o que vamos fazer agora?

– Você está com fome, Danieli? – perguntou Nial.

– Com fome e sede.

– Eu também – emendou Yumi.

– Também estou com fome. O que vocês gostariam de comer? – indagou

Nial.

– Não sei. Você disse que tinha uma variedade de comida aqui. O que tem?

– Basicamente, junk food: comida mexicana, batata frita, petiscos...

– Tem camarão? – perguntei.

– Acho que tem. Vou ver ali e vou comprar para nós.

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– Eu também quero aqueles donuts famosos – pediu Yumi.

Nial foi buscar a comida, Yumi e eu nos sentamos à mesa.

Na feira havia palcos com apresentações musicais diversas, karaokê e teatro infantil. Uma das cantoras cantava “Bad Romance”, de Lady Gaga.

– Adoro essa música!

– Eu também – comentou Yumi.

– Adoro a Lady Gaga!

– Eu também.

– Que coincidência! Também adoro a Lean Rimes.

– Eu também! – disse Yumi.

Nunca imaginei que me daria tão bem com a namorada de Nial. Ele nunca falava dela. Antes de conhecê-la, só sabia que era veterinária e que vinha do Japão. Nial voltou com camarões fritos, sem casca, deliciosos. Devoramos rapidinho. Os famosos donuts que Yumi queria experimentar eram pequenininhos e sem recheio. Bem sem graça.

– O que achou dos donuts, Yumi? – perguntou Nial. – Ela deve ter feito uma careta como resposta. Tanto que ele comentou: – A propaganda é melhor que os donuts?

Yumi riu e concordou.

–Também achei sem graça.

Para entrar na feira era necessário pagar 20 dólares canadenses por pessoa mais 5 dólares para ir em cada brinquedo. Nial e a namorada queriam ir na montanha-russa. Como não sou muito chegada a brinquedos desse tipo e não entendia direito como era aquela, achei melhor esperar por eles.

Yumi me falou de um brinquedo que ela achava que eu iria gostar. Não entendia direito do que eles falavam. Certos termos e expressões não usuais são difíceis de entender em outra língua. Quando não se enxerga um brinquedo, até mesmo em português torna-se difícil compreender seu funcionamento. Só havia entendido que era uma barca gigante, que não virava de ponta-cabeça. Ótimo, porque não gosto da sensação de looping. Meu receio era que girasse muito rápido. O medo do desconhecido. Mas algum risco tinha que correr. Caso contrário, nunca experimentaria brinquedo nenhum. E esse era do tipo que eu gostava: uma barca enorme que fazia o movimento de pêndulo para a frente e para trás. Todo o mundo gritava. Gritei também. Yumi se conteve. Nial ficou esperando com Higgans porque enjoava nesse tipo de brinquedo.

Desci, e ele perguntou se eu havia gostado.

– Adorei!

– Deve ter gostado mesmo, porque nunca havia visto um sorriso tão grande em seu rosto! Que bom que está se divertindo. – comentou Nial, com um tom de satisfação.

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Ele ainda me levou à casa do terror. Yumi, que não gostava, ficou com Higgans. Na bilheteria, a funcionária explicou que não poderíamos tocar em nada nem nada tocaria em nós. Atrás, na fila, havia dois garotinhos morrendo de medo. Um deles se agarrava tão forte na minha mochila que até me machucava. A casa tinha muitos barulhos e Nial ia narrando o que via: contava que tinha muitos bonecos de cadáveres, caveiras e monstros. À medida que íamos passando pelos cômodos, esbarrávamos em corpos pendurados na parede e tínhamos que desviar dos corpos do chão. Nial disse que, para quem vê, é realmente assustador. Portas e janelas que abriam e fechavam sozinhas; objetos que batiam, fazendo barulho... Na cozinha, tinha um frízer com corpos, e uma zumbi aterrorizando:

– Carne fresca! A carne de vocês deve ser muito gostosa!

Num outro cômodo, um doutor maluco fazia experimentos. As coisas que batiam para fazer barulho, batiam bem perto da nossa cara. Em um dado momento, enquanto Nial me explicava o que via, ele se assustou com um dos barulhos na cara dele, e rimos muito. Os meninos permaneciam agarrados em nós, morrendo de medo. Tinha também aquela sala de espelhos, que deixa a gente de tamanhos e formas diferentes.

Quando saímos, Yumi disse que Higgans ficou me procurando e só pareceu feliz quando me viu chegar.

Tomamos sorvete. O meu, delicioso, era de frutas vermelhas. Dava para sentir os pedaços da fruta. Pena que não sou de comer muito, porque não cabia mais nada no meu estômago. Por mim, teria experimentado todos os sabores. Em seguida, fomos a um local com armações de bichos. Havia o desenho de uma porca e uma galinha com um orifício na cara. O visitante colocava o rosto ali para tirar fotos. O tempo ia passando, batemos papo, comemos bobagem, brincamos. Foi muito bom. Mais à tarde, sentamos para comer uma fatia de pizza. Nial bebeu cerveja. Eles não tinham pressa de ir embora. Tiraram o dia para me levar para passear.

– Fico muito feliz que esteja gostando do seu último dia em Vancouver. Eu não queria que você levasse uma impressão ruim daqui – comentou Nial.

Já era umas sete horas, quando ele perguntou se eu topava ir a um barzinho na praia:

– Assim, você não sai daqui sem conhecer a água e a areia de Vancouver.

Eles estavam mesmo dispostos a me proporcionar momentos prazerosos. E eu queria curtir aquele dia ao máximo. Um casal de amigos deles ligou para Nial e combinaram de se encontrar nesse bar. Pegamos um táxi para ir mais rápido. Antes de ir ao bar, Nial perguntou:

– Quer pisar na areia de Vancouver, Danieli?

– Claro! – entusiasmei-me.

Ele tirou seu sapato e as meias, tirei minhas sandálias, desprendi a guia de Higgans e fomos andar na areia. Higgans corria em círculo como um louco ao nosso redor, levantando areia para todo lado. Nós três nos divertíamos com a alegria dele. Pedi para experimentar a água do mar.

– Vamos lá! Mas já vou avisando que é gelada – advertiu Nial.

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As águas do Pacífico não são frias, são congelantes. Apesar do calor que fazia, não consegui ficar um minuto com os pés na água porque logo ficaram congelados! Eu, porém, não poderia ir embora sem passar por essa experiência, que acabou de uma forma muito engraçada: fomos lavar os pés em uma torneira, também gelada. Nial sugeriu que limpássemos os pés com as meias dele. Pegou uma para mim e outra para ele. Era só risada, nós nos apoiando um no outro para limpar os pés, e Yumi batendo fotos dos dois malucos.

– Eu não acredito que você usou essa meia fedorenta, Dani! – divertia-se Yumi.

Depois da molecagem na praia, fomos ao bar encontrar os amigos de Nial e Yumi: Charles e a esposa Lily. Eles estavam morrendo de fome e pediram um jantar. Nós, que passamos o dia comendo besteira, queríamos mais besteira para beliscar. Quando perguntei o que havia de típico do cotidiano canadense para comer, Nial explicou que aquele era um bar bem tradicional do Canadá e que era muito comum o consumo de mini-hambúrgueres. Eu não estava com fome, mas cada porção vinha com três mini-hambúrgueres. Acabamos dividindo uma.

Para beber, Charles sugeriu uma bebida de frutas bem gostosa. Não lembro se era alcoólica, mas se fosse, não era forte. Os mini-hambúrgueres não eram como salgadinhos de festa. Eram hambúrguer de sanduíche mesmo, só que em miniatura, feitos com minipães. Eram bem recheados e temperados. Uma delícia. Nial ainda pediu nachos com diferentes molhos; dei uma beliscada.

Estava tudo tão bom que eu não queria ir embora. Mas era preciso atenção com o horário do último trem. Lá pelas nove e meia, liguei para Mônica para saber se ela me pegaria na estação ou se teria que voltar de táxi. Ali terminou o meu dia maravilhoso. Ela começou a ralhar comigo, como se eu fosse uma criança:

– Você não tinha que ter me ligado antes?

Com a voz embargada, típica de quando fico nervosa, pela primeira vez, mesmo que tardiamente, coloquei Mônica no lugar dela e respondi como deveria ter respondido desde o início:

– Não. Eu não tinha que ter te ligado antes não. Nós combinamos que, aquela que terminasse primeiro seu compromisso ligaria para a outra, e estou te ligando agora.

Na hora, o tom de voz dela mudou, e ela falou de forma bem mais mansa.

– Eu ainda estou na minha mãe. Se você não demorar muito para chegar na estação, posso te dar uma carona para casa.

– Eu estou num bar na praia, indo embora. Meus amigos vão me deixar na estação de sempre.

– Então, você desce na estação de trem da casa da minha mãe. Me ligue quando estiver pegando o trem.

Desliguei o telefone e minha cara deve ter mudado junto com meu humor, porque Yumi perguntou, preocupada:

– Aconteceu alguma coisa?

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Não aguentei e desatei a chorar nos braços dela, desabafando tudo que Mônica me fizera passar naquele mês. Sorte minha que tinha ido ao banheiro para telefonar, porque no bar estava muito barulhento. Yumi não deveria estar entendendo nada, no entanto, eu sabia que Nial entenderia. Fomos para fora, porque todos já estavam nos esperando. Quando encontrei Nial, abracei-o, continuando a chorar.

– O que aconteceu? Você estava tão bem? – ele perguntou, meio que se esquivando, porque americanos não gostam desse tipo de proximidade física.

Expliquei a situação.

– Não ligue! Está acabando! Você vai para casa, dorme e amanhã, volta para o Brasil!

Nial foi me conduzindo até o carro do amigo. Yumi se despediu de mim com um forte abraço:

– Eu vou ficar por aqui, porque não cabe todo o mundo.

– E como você vai embora? – perguntei ainda chorosa.

– A pé.

– E não é perigoso?

– Não, Dani. Nós moramos aqui perto – respondeu Yumi.

– Mas já é noite! Não é melhor o Nial ir a pé e você vir conosco?

– Não precisa. Nial te deixa dentro da estação, que é melhor. Não se preocupe comigo – afirmou Yumi, ternamente.

– Desculpe. É que se fosse no Brasil, seria perigoso uma moça andar sozinha a essa hora. Adorei te conhecer! Você é muito especial! Adorei passar esse dia com vocês! Eu te adoro, Yumi! – disse, chorando.

– Você que é especial. Adorei te conhecer! Eu também te adoro, Dani! –

disse Yumi, segurando as lágrimas.

Abraçamo-nos como amigas de anos e entrei no carro. Contei, meio por cima, porque ainda estava chorando, o que havia acontecido na moradia em Surrey. O casal achou um absurdo.

– Infelizmente escutamos muitas histórias de estudantes que tiveram problemas com suas casas de família – comentou Charles.

– E você acredita que, ontem quando fomos acertar a moradia, ela disse que tinha que cobrar um valor por me levar até a estação?

Uma indignação geral invadiu o carro. Os três estavam incrédulos:

– Ela não pode fazer isso – comentou Nial.

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– Ela aluga quartos para estudantes. Cobrar por te levar à estação é outro negócio – afirmou Charles. – E o negócio dela não é serviço de transporte. Ela não tem nada que cobrar por isso.

– Até porque tem serviços que fazem esse tipo de transporte para deficientes de graça ou pelo valor do transporte público – comentou Lily.

– Eu sei. A Mônica ficou me enrolando esse tempo todo para me ajudar a preencher o formulário para pedir esse serviço e não fez.

– Então, ela que não venha cobrar agora. Você já pagou para ela? –

Perguntou Charles.

– Ainda não.

– Então, se ela quiser cobrar a mais por isso, você deve pagar somente a moradia! – afirmou ele categoricamente.

– Você acha? – perguntei a Charles.

– Antes de vir para cá ela não falou que morava num lugar onde você dependeria de alguém para ir até o trem, certo?

– Não, Charles. Não falou.

– E, mesmo depois que você viu que o lugar era inacessível, ela não combinou nenhum valor com você, não é? – continuava ele.

Não. Só falou agora, depois de um mês.

– Então, ela não pode cobrar nada a mais de você. Ninguém pode cobrar nada sem ter acertado previamente. – dizia Charles.

– Era obrigação dela te levar até a estação – completou a esposa. – Até porque, se você soubesse as condições da moradia antes, você não ficaria na casa dela, não é?

– Realmente, não ficaria.

– Aposto que os quartos da casa não estão todos tomados, não é? – chutou Lily.

– Não. Tem três quartos. Um está ocupado desde o início do ano por uma estudante canadense que quer estudar na universidade lá mesmo em Surrey. Antes de mim, tinha um estudante japonês, Parece que agora virá outro estudante japonês – respondi, refletindo e finalmente deixando cair a ficha.

– Tá vendo? O normal nessa época é as casas de família estarem lotadas. E ninguém quer ficar na casa dessa mulher por causa da localização – disse a moça.

– Por isso ela te enganou! Porque precisava de estudantes para preencher as vagas! E nenhuma agência e escola séria vai querer deixar um aluno que estude em downtown, morando em Surrey – concluiu o amigo de Nial.

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– Essa é uma das razões que me desmotivam a dar aula na escola. Como posso dar aulas para alunos que sei que não estão recebendo a devida assistência? – desabafou Nial.

Quanto mais conversava com as pessoas sobre minha moradia, mais me sentia enganada. Acho que era isso também que foi desgastando meu relacionamento com Mônica e San. Eu deveria estar muito desgastada e fragilizada, pois não era para as coisas que eles faziam para mim me abalarem tanto. Contudo, estar num país distante e desconhecido, com uma língua diferente, com pessoas completamente estranhas, num lugar inacessível, onde dependia dos outros, deixou-me em situação total de vulnerabilidade. Acho, porém, que o que me tirou o chão foi chegar ao Canadá e descobrir que Geraldo, pessoa na qual havia me apoiado na decisão de ir para Vancouver, havia se comportado de maneira irresponsável e demonstrado nenhum comprometimento com o trabalho. Descobrir que quem deveria me apoiar na minha estadia, tendo sido pago por isso, não iria me dar suporte nenhum.

O casal nos deixou na minha estação de sempre. Nial foi comigo até a plataforma esperar pelo trem.

– Você não sabe como é ruim ter que voltar para aquela casa!

– Calma, calma! Amanhã, esse pesadelo vai acabar!

– Você não conhece aquela mulher! Ela faz de tudo para me deixar mal!

– Vai para casa, dorme no seu quarto e nem fala com ela.

– É isso que faço sempre. Mas você esqueceu que é ela quem vai me buscar na estação?

– Tá acabando! Pense no dia maravilhoso que tivemos hoje e lembre-se de que está acabando!

– E se ela me aborrecer?

– Você liga para mim.

Era bom ter esse apoio. Mas não adiantaria muito ligar para ele. O trem chegou e fui embora. Eram dez da noite e até que havia bastante gente no trem.

No carro, Mônica estava mansinha. Talvez por conta do corte que finalmente dei nela por telefone. Passou o trajeto ouvindo, no último volume, uma música gospel da Shania Twain. Cheguei em casa, agradeci, dei boa noite, levei o Higgans para fazer as necessidades, tomei banho e fui dormir.

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Capítulo 17

Mais Algum Problema para resolver?

Amanheceu chovendo no dia da partida. Estava me arrumando, quando Mônica foi ao meu quarto se despedir:

– Estou indo trabalhar e vim te desejar boa viagem!

– Obrigada. Deixa eu pegar o dinheiro da moradia.

Abri a gaveta e dei para ela o valor combinado pelo aluguel do quarto, sem um centavo a mais. Ela contou as notas e não falou nada. Ou ficou sem jeito ou tomou jeito.

– Mônica, não tem nenhum lugar coberto onde eu possa levar o Higgans fazer as necessidades sem que nos molhemos?

– Sim. Lá atrás. Pede ajuda para o San te levar no lugar coberto.

Qualquer coisa que precisar, ele está em casa.

E foi embora. San estava na sala, assistindo televisão. Pedi a ele que me

levasse ao local. Ele se negou.

– Não tem lugar coberto para levar o Higgans.

– Mas Mônica falou que tem um espaço lá atrás e que você poderia me levar.

– Sinto muito, Dani! Não tem nenhum lugar coberto onde você possa levar o Higgans!

Realmente não dava para entender. Seria um plano maléfico para me enlouquecer? Para não molhar o cabelo, coloquei uma touca de banho e levei Higgans para fora. O coitado do cachorro não tinha como não se molhar. Como sempre, tive que preparar meu café e limpar a cozinha. Só quando eu já havia terminado, San perguntou se precisava de ajuda.

Voltou a me oferecer ajuda, no momento em que estava concluindo a arrumação da bagagem. Mostrei as etiquetas que havia comprado. Ele se ofereceu para escrever. Após ter identificado as etiquetas, colocou-as nas malas, todavia, do jeito errado. A etiqueta vinha com uma capa rosa para chamar atenção. Da forma como colocou, a capinha iria cair facilmente. Como já conhecia San, fiquei quieta, agradeci e, quando ele saiu do quarto, arrumei as etiquetas. Minutos depois, ele apareceu perguntando se poderia levar as malas para baixo.

– Você vai levar para porta da frente?

– Sim.

– Não é melhor carregar as malas por trás, por causa do barranco?

– Não, Dani. É melhor ir pela frente. Acredite em mim. Em dia de chuva é melhor.

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– Você quem sabe.

San carregou as malas. Depois, olhou o quarto para ver se eu não esquecera nada. Nel chegou com Santiago para me buscar. Desci e San conduziu Higgans e a mim até o carro. Pedi a Nel que fosse ao meu quarto para se certificar de que San e eu não havíamos deixado passar nada. Ela pediu a ele autorização para subir.

– Não precisa. Eu já chequei – afirmou.

Ela não teve coragem de insistir.

– Você ouviu o que ele falou? – resmungou Nel.

– Mas tenho o direito de querer que alguém da minha confiança confira para ver se eu esqueci alguma coisa.

– Bom. Não sei. Você vê o que quer fazer – disse Nel, indiferente.

Decidi ir embora. Havia conferido gaveta por gaveta, prateleira por prateleira. Esperava não ter esquecido nada de importante. Não estava duvidando de San nem da minha percepção, mas é comum fazer múltiplas checagens nessas situações. Sabia que San faria uma tempestade em copo d’água, se eu insistisse numa coisa comum como Nel ver o quarto.

A chuva intermitente e o friozinho mais parecia outono. Eu ficava pensando como seria ir para a escola diariamente com chuva.

– Você teve sorte, Danieli! Porque, no mês que você passou aqui, quase não choveu! – comentou Nel.

– Até então, só havia chovido de madrugada. – comentei.

– Teve sorte mesmo! Vancouver é a cidade da chuva. Aqui chove 300 dias por ano – comentou Santiago.

No aeroporto, os atendentes foram gentis comigo. Quanto ao espaço para o cão-guia, não houve jeito. Parece que só mesmo no Brasil se tinha o bom senso de bloquear uma poltrona para o cachorro.

Meu avião partiria às 13h15min. Poderia embarcar até meio-dia e meia. Nel e eu fomos procurar alguma coisa para comer. Eu, que só comera carboidrato, queria ingerir alguma proteína.

Fomos ao Burger King do aeroporto.

Enquanto esperávamos chamar a senha dos nossos lanches, fomos procurar uma mesa. Nel, tentando disfarçar a preocupação, perguntou:

– Cadê suas malas?

– Não estavam com você?

– Calma, não se preocupe. Eu acho que o Santiago pegou.

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– E cadê o Santiago?

Ele saíra para fazer alguma coisa e não estava por perto. Fiquei desesperada. Pedi a Nel que usasse meu celular para telefonar para ele.

– Não se preocupe – ela respondeu, enquanto digitava o número do telefone. – Eu tenho certeza que pedi para o Santiago cuidar da bagagem.

Ele não atendeu. Nel avisou que pegaria os lanches. Estavam chamando nossa senha. Ao voltar, ela avistou Santiago com as malas.

– Ai, Santiago, que susto que eu levei! Não lembrava se as bagagens tinham ou não ficado com você – comentou Nel, aliviada.

– O importante é que as malas estão aqui – comentei. – Mas você só vai tomar esse refrigerante, Nel? – perguntei.

– Sim.

Santiago sentou-se conosco.

– Podem pegar as batatas. Eu não vou conseguir comer tudo sozinha.

Tem certeza que não quer, Nel?

– Tenho, Danieli. Sabe o que é: estou evitando carboidrato. Na verdade, acho que nem vou almoçar hoje.

– O quê? – perguntei.

– Lembra que te falei que estou correndo atrás do casamento da minha filha? A gente foi comprar o vestido de noiva e o meu nos Estados Unidos, porque aqui tudo é muito caro. Aí, comprei um vestido um pouquinho menor que o meu tamanho, porque o maior ficava muito grande.

– Era só mandar ajustar, Nel.

– Pois é, Danieli. Até a vendedora insistiu que eu levasse o número maior. Mas pensei: “estou mesmo precisando fazer um regime. Se emagrecer uns quilinhos, entro direitinho no vestido”. Desde então, estou fazendo regime para caber no vestido – explicou, com sua calma habitual.

– Você é louca, Nel. Comprar um vestido tendo que emagrecer para poder usar é tortura!

– Eu sei, Danieli.

– Você é louca, mas te desejo boa sorte – comentei.

– Obrigada. Você conseguiu trocar sua passagem fácil? – perguntou Nel, enquanto mexia com o canudinho no refrigerante.

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– Se eu quisesse ir amanhã, por exemplo, não tinha mais lugar. Para quarta-feira, eu teria que pagar 300 reais de diferença na tarifa. Para viajar hoje, paguei mais de 800.

– Mas se você chegar aqui no aeroporto e disser que precisa viajar hoje eles são obrigados a arrumar uma passagem para você – comentou Santiago.

– Mas vão cobrar tarifa do mesmo jeito.

– Ah! Isso eu não sei, Nel. Só sei que um amigo precisou viajar de última hora, chegou aqui com o passaporte, e arrumaram um lugar num voo para ele.

Contei a eles que ainda paguei 150 dólares canadenses por excesso de bagagem, mesmo não excedendo o peso limite, por conta da mala a mais que comprei no Canadá. Eu e Santiago achávamos que o excesso se dava pelo peso total. Nel explicou que, na verdade, a bagagem era limitada a dois volumes e o peso de um não poderia compensar o de outro. Se o limite é 25 kg, não poderia levar uma mala com 26 kg e outra com 20 kg. Pagaria excesso de peso por uma delas. Se a bagagem é constituída por mais de dois volumes, mesmo que abaixo do limite de peso total, é cobrada a taxa de excesso.

– Foi esse Geraldo que providenciou a passagem?

– Não, Nel. Foi uma agência lá do Brasil.

– Você tá bem servida de agências nessa viagem. – ironizou ela.

Antes de Nel me deixar na sala de embarque, demos mais uma chance para o Higgans fazer as necessidades, tiramos fotos, trocamos e-mail, até que cada um seguiu seu caminho.

As companhias aéreas normalmente disponibilizam um funcionário para nos acompanhar. Foi um rapaz quem fez meu acompanhamento. Como ficavam pedindo os documentos a toda hora, para facilitar, já os deixei todos em um porta-documentos de plástico que a agência de turismo havia me dado. Mesmo assim, era uma sessão tirar a mochila das costas, cada vez que me pediam os documentos. Já na região de embarque, perguntei ao meu acompanhante se ainda iriam me pedir os documentos, e ele disse que sim. Então, resolvi deixar o porta-documentos no bolso do meu sobretudo.

Pedi para ir ao Duty Free para ver se tinha os perfumes que queria. Estavam em falta. Antes de embarcar, fui ao banheiro e pedi para meu acompanhante encontrar um bebedouro para encher minha garrafinha d’água, que fora esvaziada para passar pelo raio-X. O rapaz não encontrava o bebedouro. Um homem ouviu nossa conversa e me deu uma garrafa de água fechada que acabara de comprar. Antes de embarcar, ainda comprei chocolates em uma banquinha.

A fileira onde me sentaria no avião estava toda ocupada. Não havia espaço para Higgans. Era uma fileira com três poltronas. Meu assento era no corredor. O senhor que estava na janela começou a discutir com a aeromoça. Pelo que entendi, ele estava me defendendo e achava absurdo que a companhia colocasse um passageiro já na poltrona ao lado de um usuário de cão-guia.

– Você não está vendo que o cão ocupa o espaço dessa poltrona? Não tem como alguém sentar ao lado dela – argumentava o senhor, exaltado.

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A comissária ainda quis argumentar, mas o senhor e outros passageiros insistiam no óbvio: não cabiam três passageiros e um cachorro Labrador na mesma fileira. Uma poltrona precisaria ficar desocupada. Eu procurava manter a calma. Como não tinha certeza se os passageiros estavam bravos comigo ou com a companhia, falei o mínimo possível.

Depois de muita discussão, ficou resolvido que ninguém sentaria na poltrona do meio daquela fileira. Ouvi o senhor da janela resmungar:

– É um absurdo! A companhia tem que ter bom senso.

– Ainda mais que são quatro horas de viagem – comentei, voltando o rosto em sua direção.

– Não! Não tem como – comentou.

– Fiquei quieta porque fiquei em dúvida se o senhor estava me defendendo ou não – confessei.

– Eu estava lhe defendendo! Eles têm que providenciar condições para que você possa viajar com seu cão-guia! Nesse espaço não tem como ficar um cão-guia e as pernas de uma pessoa – afirmou, já mais calmo.

– Agradeço sua ajuda e compreensão. E se meu cachorro invadir seu espaço ou lhe incomodar, me avise, por favor. Essas poltronas são bem apertadas.

– Não se preocupe. Eu adoro cachorro. Sou veterinário.

– O senhor é do Canadá ou dos Estados Unidos?

– Sou de Chicago. Eu vim aqui a trabalho, dar palestras. E você?

– Sou brasileira. Estou voltando para casa.

– Uau! É uma longa viagem!

– E como eles resolveram o problema do lugar? Trocaram o passageiro de poltrona?

– Não. A aeronave está lotada. Um funcionário que iria viajar nessa aeronave foi realocado.

– Puxa! Que pena!

– É um funcionário da companhia! Provavelmente, iria viajar de graça. Nem se preocupe! Afinal de contas, a companhia aérea tem obrigação de providenciar condições para os passageiros com cão-guia viajarem.

– No Brasil, as companhias bloqueiam a poltrona ao lado para o cão-guia. E isso é seguro não só para a dupla cão/usuário, mas também evita que outros passageiros fiquem incomodados. Afinal, ninguém é obrigado a viajar com um cachorro a seus pés.

– É... Mas aqui, eles só pensam em dinheiro – criticou o veterinário.

– E eu que pensava que os países mais desenvolvidos estavam mais bem preparados para atender às pessoas com deficiência.

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Ele resmungou qualquer coisa que não entendi, mas o tom de voz denotava o mesmo desprezo pelo capitalismo americano exagerado.

O que eu não sabia era que dali algum tempo, as companhias brasileiras começariam a proceder da mesma forma que as demais em relação à prioridade nas primeiras poltronas. O que dificulta a vida de muita gente. No caso do cão guia, ele não tem espaço suficiente, se não fica na primeira fileira ou com o espaço de uma poltrona para ele; no caso de deficientes físicos, idosos com dificuldade de locomoção e grávidas, é complicado se contorcer como nós para entrar nas poltronas que não são preferenciais.

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Capítulo 18

Sem Lenço, Sem Documento

Os procedimentos de voo iniciaram, e a aeronave decolou. Na manhã seguinte, eu estaria em casa. “Meu pesadelo havia terminado”, pensei.

Minutos depois, não sei por que, comecei a dar falta de algo. Meus documentos me vieram à mente. Tateei o bolso do sobretudo. Não havia nada. Pensei se já os havia guardado na mochila. Não me lembrava de tê-lo feito e achei melhor confirmar. Abri a mochila. Procurei uma, duas vezes antes de começar a entrar em pânico. Meu coração começou a disparar. Não era possível. Não estava acreditando, mas as evidências me diziam que eu havia perdido meus documentos. Agarrei-me às alternativas. Eles deveriam estar no chão da aeronave. Tentei acreditar que poderia ter ocorrido aquela situação tão comum em que a gente procura algo em algum lugar, não encontra, depois volta ao mesmo lugar e o objeto procurado está lá, inexplicavelmente! Fucei novamente a mochila, e o duende safado ainda não havia me devolvido os documentos. Tentando manter a calma, afinal aquilo não estava acontecendo comigo, chamei por um comissário.

– Pois não!

– O senhor pode ver se tem alguma bolsinha de plástico com meus documentos no chão da aeronave?

O comissário foi dar uma olhada e voltou com a negativa.

– Será que não está na sua mochila?

– Eu já procurei. Mas você pode olhar também?

Ele olhou e nada.

– Um instantinho que vou ver o que posso fazer.

Minutos depois, o comissário voltou.

– Tenho boas e más notícias. O comandante recebeu uma mensagem de terra dizendo que seus documentos foram encontrados na sala de embarque do aeroporto.

Meu coração gelou.

– Meu passaporte está lá. E agora?

– Bem. A aeronave não vai voltar. Então, agora, fique calma, que tudo será resolvido.

– Mas vou ter que voltar a Vancouver?

– Não. A companhia coloca seus documentos no próximo voo.

– Então, posso voltar para o Brasil e eles mandam meu passaporte depois? – perguntei, mesmo sabendo que não seria possível.

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– Não. Você não pode voltar para o Brasil sem seu passaporte – ele respondeu rindo.

– Ah! Eu não me importo de voltar para casa sem meus documentos – brinquei.

– Mas os governos sim.

– Que é isso? Eu não preciso de documentos. Sou uma atriz famosa no Brasil – continuei brincando. – Todo mundo me conhece e sabe que não sou nenhuma criminosa.

Eu precisava brincar para não entrar em desespero. O comissário divertia-se com meu jeito. Tentei me acalmar perguntando:

– Quando é o próximo voo?

– Amanhã, nesse mesmo horário.

– Vou ter que dormir no aeroporto?

– Provavelmente não. Mas não se preocupe, já estão se comunicando com nosso pessoal de terra. Eles resolverão tudo.

– Fique tranquila. Quando descermos, eu te ajudo no que você precisar – disse o veterinário ao meu lado direito.

Se por um lado eu sabia que tudo se resolveria, por outro, não sabia como iria me virar em Chicago: se todos os documentos seriam enviados, se eu poderia pegar minha mala para me trocar e dar comida para o Higgans. Ele tinha comido pela manhã e não poderia ficar sem comer até chegar ao Brasil. Por precaução, havia colocado um pouco de ração na bagagem de mão. O voo para o Brasil, contudo, ocorreria só na noite seguinte. Eu não estava a fim de passar o dia todo com a mesma roupa. E se não me deixassem sair do aeroporto sem passaporte? Se me obrigassem a passar a noite e o dia todo confinada no aeroporto, como Tom Hanks no filme “O terminal”?

Mil coisas passavam pela minha cabeça. Estava tão nervosa que em poucos minutos devorei todos os chocolates que havia comprado no aeroporto. Nos meus dias normais, demoraria pelo menos uma semana para comê-los. Para ajudar, a pilha do meu MP3, que havia colocado para recarregar, estava zerada. Sem ter o que fazer no avião, peguei meu netbook e comecei a escrever as histórias dessa viagem maluca. Ou seja, comecei a escrever este livro.

Aterrissamos às 19 horas de Chicago, que está duas horas à frente de Vancouver. Nem sinal do veterinário “prestativo” que se oferecera para me ajudar. A equipe da United Airlines, no entanto, me deu ótima assistência. Quando pedi por minhas malas, porém, disseram que só poderia reavê-las quando chegasse ao Brasil. Não havia justificativa plausível. Se eu não seguiria naquele avião, não fazia sentido minha bagagem ir com ele. Fiquei no aeroporto até resolver a questão das malas.

O supervisor da companhia, Guil, veio falar comigo. Expliquei a ele que precisava da bagagem para dar comida a Higgans. Ele prometeu que daria um jeito. Quis saber em que mala estava a ração.

– Não lembro onde coloquei.

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Eu sabia exatamente onde estavam as coisas do cachorro, mas não queria confiar o manuseio de minha bagagem à companhia aérea. Se malas são abertas e extraviadas só no tempo em que seguem para o avião e voltam na esteira, imagine o que poderia acontecer em 24 horas com elas dando sopa no aeroporto?

Guil sugeriu que eu fosse para o hotel, porque as malas demorariam a chegar. Deu-me um voucher para pernoitar no Hilton, um vale de 20 dólares para alimentação e chamou uma funcionária para me levar ao hotel, que ficava ao lado do aeroporto.

– E como saberei quando minha bagagem chega?

– Quando chegar, mando levar no hotel – respondeu Guil.

– Tem algum telefone que eu possa ligar, caso as malas não cheguem?

– Vou te dar meu celular.

Ao contrário de Vancouver, Chicago, no verão, é bem quente. A noite estava agradável. No hotel, a recepcionista já sabia da minha situação. Enquanto ela fazia o check-in, telefonei para Nel e relatei o ocorrido. Sorte que ela sempre sai tarde do consulado. Falei rápido com medo de não concluir a ligação. De acordo com o plano que havia contratado, só poderia usar o celular na área de Vancouver. Na verdade fiz uma tentativa que deu certo. A pedido de Nel, uma funcionária do consulado brasileiro de Chicago ligou para mim. Eu queria falar rápido, porque ainda queria aproveitar o celular para avisar minha mãe no Brasil e temia que não fosse mais possível, mas a funcionária não parava de falar, e eu precisava ser gentil com ela. Se acontecesse alguma coisa, era bom ter o respaldo do governo brasileiro. O episódio me fez entender a importância de contatar o consulado brasileiro ao chegar a outro país. Se eu não tivesse a Nel, jamais conseguiria encontrar alguém do serviço diplomático fora do horário de atendimento.

A funcionária do consulado brasileiro de Chicago foi muito atenciosa e quis falar diretamente com alguém da United. Além de ela conversar com a funcionária que havia me acompanhado até o hotel, passei o telefone de Guil para garantir e peguei o celular de plantão do consulado americano. Percebendo que estava assistida pela equipe do hotel, a funcionária da United foi embora.

– Vocês têm acesso à internet? – perguntei à recepcionista.

– Sim.

– Quanto tenho que pagar?

Ela falou que precisava pagar vinte dólares para ter acesso no quarto e que no lobby do hotel o uso era livre. Eu não queria ficar me deslocando. Pretendia ir para o quarto e só sair no dia seguinte para levar o cachorro para a toalete matinal.

– Não tem problema. Eu tenho dólares canadenses – e mostrei uma nota de 20.

Ela pegou minha nota, falou com não sei quem e voltou me devolvendo o dinheiro:

– Não precisa pagar. Vou dar o acesso para você.

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Não entendi se ela não quis cobrar porque os Estados Unidos não aceitam dólares canadenses ou porque eu estava sem documentos. Só tinha comigo o que eu guardara na minha bolsinha a tiracolo e na pochete segunda pele, que eu colocara por baixo da roupa: meus cartões de créditos, 80 dólares canadenses e a carteirinha de cão-guia com a foto do Higgans ao meu lado. Nem me lembrei de mencionar que estava com cartão de crédito, porque queria gastar o cash que restara. Não tinha nenhuma intenção de voltar ao Canadá.

Tentei enviar mensagem de texto do celular para minha família, todavia, não consegui. Acho que tinha levado sorte antes. Passava das 9 em Chicago, 11 da noite no Brasil. Minha mãe e irmã já deveriam estar dormindo. Então, nem tentei telefonar para casa, pois só as deixaria preocupadas. Achei melhor deixá-las dormir tranquilas e só dar a notícia no dia seguinte.

Desde que soube da perda dos documentos, o que me preocupava era como daria a notícia para minha mãe. Ficava ensaiando em pensamento formas de dizer isso a ela sem assustá-la:

-– Mãe, fique tranquila. Eu tô bem. Eu tô em Chicago, eu perdi meus documentos, mas já acharam. Só que eu vou me atrasar um pouquinho...

-– Oi, mãe! Então, eu não vou mais chegar no horário previsto. Na verdade, vou atrasar um dia...

Depois de estar mais calma do susto que eu mesma havia tomado, queria relaxar um pouco. Fui ao restaurante do hotel fazer uma refeição gostosa. O garçom que me atendeu era árabe e muito prestativo. Aliás, ao contrário do hotel de Nova York, todos eram muito prestativos, assim como todos que me assistiram em Chicago. Não sei se era porque fazia parte da cultura do hotel e, no caso da companhia aérea, por causa da intervenção do consulado brasileiro, ou porque as pessoas de Chicago eram mais sociáveis ou porque estavam comovidos com minha situação. Tanto em Nova York quanto na Califórnia e no Texas, que passei na ida, as pessoas foram hostis. Só sei que, depois da minha viagem assombrada a Vancouver, fechada com “chave de ouro” pela perda dos documentos, era bom ser bem tratada e me sentir assistida.

– Acho que vou querer uma salada. Vocês têm salada de quê?

– A senhorita pode pedir os ingredientes que eu faço a salada que quiser – respondeu o árabe, muito solícito.

Refestelei-me com uma salada com alface, tomate, cogumelo e camarão sem casca. Estava deliciosa. Bem servida. Nada daquelas saladinhas ralas que servem em alguns restaurantes chiques do Brasil. Nunca havia comido um camarão tão gostoso. Preparados de uma forma especial, parecia feito na grelha da churrasqueira. Pelas explicações do garçom, era mais ou menos isso mesmo. Tive uma conversa muito agradável com ele. Contou um pouco da sua vida nos Estados Unidos. Nasceu no Marrocos e emigrara para os Estados Unidos para trabalhar. Conversamos um pouco sobre a cultura árabe. No Brasil, estava passando a reprise de “O Clone”, novela da Globo. Eu adoro estudar diferentes culturas e não me furtei a trocar ideias.

– Sou muito feliz trabalhando aqui. Mas também tenho saudades do Marrocos. É um país muito bonito. Você tem que visitar.

– Eu tenho mesmo muita vontade de conhecer o Marrocos. No Brasil tem uma novela que mostra a cultura árabe e muitas cenas foram gravadas em Fenz. E parece ser uma cidade encantadora.

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– E é mesmo.

– Mas tenho medo de ir para o Marrocos e eles não me deixarem voltar porque sou mulher. Vai que encontro um árabe louco que queira que eu fique por lá?

– Isso não vai acontecer.

– Na novela, as mulheres não podiam deixar o país sem a autorização de um homem da família.

– Mas isso não vai acontecer com você.

– Quer dizer que na realidade não acontece como na novela?

– Acontece. Mas você tem o passaporte brasileiro, certo? Então essa lei não vale para você.

Era até irônico falar de passaporte na situação pela qual estava passando. Já pensou se eu estivesse no Marrocos?

– Novela nunca mostra a realidade como ela é – comentei. – Nessa novela, a mocinha foi obrigada a se casar com um cara de quem ela não gostava. A família não permitiu que ela se casasse com o brasileiro a quem amava.

– Eu sei de que novela você está falando. Passou aqui numa emissora. Vi alguns trechos. Mas hoje em dia, não é mais assim. Ainda existem algumas famílias tradicionais que são radicais. Mas a minha irmã, por exemplo, casou-se com um americano.

– Mas ele é muçulmano. Não é?

– Não.

– E ela foi rejeitada pela família?

– Não. Hoje em dia, as coisas mudaram muito. A mulher não é mais tratada como mostra na novela.

– Bom saber. Porque depois da novela, fiquei morrendo de medo de ir para países árabes.

– Agora, não precisa mais ficar com medo.

Depois de o árabe ter me dado um banho de sua cultura, eu também fiquei com vontade de compartilhar a minha. Dei um chocolate Baton para ele. Havia levado uma caixa para mim porque havia me lembrado de que os chocolates americanos eram horríveis. Os deliciosos chocolates canadenses foram uma grata surpresa da viagem.

– Esse é um chocolate de uma das marcas mais gostosas do Brasil. É chocolate puro. Espero que goste.

Pedi um café para tomar com o meu Baton. Paguei a refeição com o voucher de 20 dólares e segui para o quarto.

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Como de praxe quando estou sozinha num quarto de hotel, pedi para deixarem somente água no frigobar para eu não abrir nada que não quisesse tomar. A recepcionista informou que para receber a chave da geladeira do quarto precisaria autorizar um valor de 400 dólares no cartão de crédito. Antes que eu pudesse pegar meu cartão ou dizer qualquer coisa, avisou:

– Eu te dou umas garrafas de água.

– E não dá para esvaziar a geladeira para eu por a água?

– Não precisa. A água está gelada.

– É que preciso deixar meu colírio na geladeira, se não estraga.

– Então, vou mandar colocar outra geladeira no seu quarto.

– Tudo bem, então.

Não entendia por que não poderia esvaziar o próprio frigobar do quarto. Mas fazer o quê?

No quarto, tentei, sem êxito acertar a temperatura do ar condicionado, gelada demais. Quando a camareira chegou com o frigobar, perguntei a ela como fazer, e respondeu que não havia regulagem. Ou eu deixava o ar ligado ou desligado. Não sei se ela disse aquilo porque não sabia mexer no ar ou porque estava com preguiça de me ensinar, o que é muito comum. Algumas pessoas, quando acham que algo vai lhes dar muito trabalho, preferem dizer que não tem como fazer ou fingir que não sabem.

Tentei usar meu celular mais uma vez. Aquele plano realmente havia encerrado seu expediente comigo depois da hora extra que fez em Chicago. Liguei o computador para poder telefonar do Skype para Guil. Ele disse que as malas estavam a caminho do hotel. Não entendia por que a bagagem demorava tanto tempo para chegar, pois, se não fora o contra-tempo, aquela hora, eu já estaria voando ao Brasil e portanto, já teria pegado as malas na esteira.

Mandei um e-mail explicando tudo para minha irmã Hilana, na esperança de que ela abrisse pela manhã, no trabalho. A campainha do quarto finalmente tocou. Era o mensageiro com minha bagagem, junto com a segurança do hotel, que me ajudaram a tirar os lacres da companhia aérea. Os lacres eram tão frágeis, que eles nem precisaram de tesoura. Um deles saiu intacto e até dava para reutilizar, o que não me deixava nada tranquila em relação à segurança da bagagem. Aproveitei e pedi para me explicarem como controlar a temperatura. Conforme já suspeitava, bastava me ensinarem quais eram os botões certos.

Enfim sós: Higgans e eu. Aí, pensei: agora, vou curtir um bom descanso, num bom hotel. Não que eu só me hospedasse em hotel cinco estrelas. Mas em alguns eventos em que trabalhei, hospedaram-me em hotéis maravilhosos como o Blue Tree e o Sheraton. Este o melhor que já fiquei. Eu ouvia tanto falar no Hilton, que confesso que esperava mais. O Blue Tree, que também é quatro estrelas, ganha dele. O Sheraton então, de cinco estrelas, é covardia, pois, quando fiquei lá, colocaram-me num quarto de princesa. Era tão luxuoso que cada quarto tinha um tema de decoração, com materiais e formatos diferentes dos móveis e texturas das paredes. Coisa que tocando já dava para sentir o requinte. Imagine vendo!

Já aquele Hilton não fazia jus ao alarde de sua herdeira Paris. Acho que os cachorrinhos dela ficam em lugares melhores que seus hóspedes. Não tinha nem touca de banho no banheiro,

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nem um hidratante personalizado como no Hotel Everest, do Rio de Janeiro. E a TV nem deveria ser a cabo, porque só tinha alguns canais, sendo a maioria de propaganda. E olha que nos Estados Unidos, é muito comum ter TV a cabo, porque eles dizem que não tem nada para ver na TV aberta.

Não pense que estou reclamando não. Todavia, quando eu estava lá, eu pensava que tinha que compartilhar essas impressões no meu livro porque, muitas vezes, nos iludimos com nomes, achamos que o que tem no estrangeiro é melhor que no nosso país, e minhas experiências no exterior desmitificam um pouco a imagem errônea que muitos têm.

Agora com as malas, peguei o aparelho para carregar as pilhas do meu MP3 para a viagem de volta. Depois de um banho demorado, era quase uma hora da manhã, quando pude cair na cama.

No dia seguinte, acordei com barulho de vento e chuva. Eram mais de 10h30, meio-dia e meia no Brasil. Eu precisava avisar minha família para evitar uma pequena confusão, caso Hilana não tivesse recebido o e-mail. Meu avião estava previsto para pousar às 13h30 em Curitiba. Quando liguei o Skype, notei que minha mãe estava on line e pensei: “Ufa! Vou poder avisá-la a tempo!” Para minha surpresa, minha irmã, que deveria estar no trabalho, atendeu.

– O que você tá fazendo em casa?

– Não fui trabalhar. Estou muito mal do estômago.

– E a mãe?

– Foi te buscar no aeroporto com o tio Neco. Você está em São Paulo? O voo vai atrasar?

– Você não leu meu e-mail?

– Não.

– Não vou voltar para casa hoje. Estou em Chicago. Perdi meus documentos no aeroporto de Vancouver, mas eles já estão a caminho. Tive que ficar aqui esperando. Mas está tudo bem. Estou num hotel – e segui explicando por que não ligara antes.

– E quando você volta?

– Amanhã, no mesmo horário. Mas por favor, avise a mãe e diga para ela não ficar preocupada, pois está tudo resolvido.

– Tá bom. Vou desligar para telefonar para ela. Vou deixar o Skype ligado. Quando a mãe chegar, você fala com ela.

Agora que já havia me comunicado com o Brasil, troquei de roupa para levar o Higgans para fora e tomar meu café da manhã. O tempo estava friozinho, ventando e chovendo. Prometia ficar assim o dia todo.

Liguei para a recepção e perguntei que botão do elevador deveria apertar para sair no térreo. Informaram que havia Braille nos botões e me orientaram a apertar o L. Saí do elevador com Higgans no tal do L. Começamos a andar por um corredor sem fim e nada de eu ouvir o barulho da recepção ou da rua. Uma voz feminina disse:

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– Você precisa de ajuda?

– Estou procurando a saída para levar meu cachorro para o banheiro.

– Aqui você vai sair no aeroporto – respondeu a voz.

– Mas a recepcionista me disse que eu deveria apertar o L para sair na recepção!

– Não. Para sair na recepção, você tem que apertar zero. Venha aqui que eu aperto o botão para você – ofereceu-se a moça, conduzindo-me ao elevador.

Como hotéis no exterior não costumam incluir na diária o valor do café da manhã, e eu precisaria pagar mesmo, depois de Higgans se aliviar lá fora, fui ao restaurante e pedi tudo que eu gostava na culinária americana: panquecas, sirope, salsicha, muffin e english muffin. Para minha tristeza, não tinha bagel. No Canadá não preparam essas guloseimas tão bem quanto nos Estados Unidos. Na hora de pagar, tentei usar meus dólares canadenses, que, mais uma vez, não foram aceitos.

– Fica por conta da casa! Por esse cachorro lindo – disse a garçonete, que me atendeu muito bem.

– Tem certeza?

– Sim. Sim!

Botei minha nota de vinte dólares na carteira e voltei para o quarto.

Higgans e eu fomos dormir, porque a viagem para casa seria longa. Teríamos que sair do hotel lá pelas sete da noite. Pus o celular para despertar às quatro e meia. Quando acordei, chamei minha mãe no Skype. Pensei que ela estaria brava por eu não ter ligado antes. Ela, porém, entendeu. Mesmo assim, sentia-me na obrigação de explicar os motivos pelos quais não havia conseguido ligar antes.

– Fiquei assustada quando vi que você não vinha lá no aeroporto! Ainda bem que seu tio estava comigo! Mas fico feliz que esteja tudo bem e que esteja tudo resolvido! E os documentos?

– Estão vindo no mesmo horário do voo que peguei ontem. Daqui a pouco, já devem estar aqui.

– E você ligou para o Jorge? – minha mãe referia-se aos amigos que temos em Chicago.

– Não. Nem sei se vou ligar. Acabei aproveitando esse tempo para descansar. Nem iria dar tempo para sair daqui. Além do mais, normalmente, os aeroportos ficam longe da cidade. E eles têm uma vida corrida. Dificilmente poderiam me encontrar ligando assim, em cima da hora.

– É verdade. Mas seria bom você avisar que está aí.

– Também acho, mãe. Mas agora está tudo resolvido. O consulado está ciente da minha situação. Eu só iria incomodar e preocupá-los à toa. Olha só! Já são quase cinco horas! Tenho que tomar banho, trocar de roupa, fechar as malas e já vai estar na hora de sair.

– Então tá. Vou deixar o Skype ligado. Se precisar, pode chamar.

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– Acho que já vou guardar o computador para não esquecer nada.

Eram seis horas quando desci para jantar. O mesmo árabe da noite anterior veio me atender. Pedi uma salada com frango que deu quase 20 dólares americanos. Entreguei a nota canadense de vinte que eu tinha.

– Vai ser difícil dar troco. – explicou o garçom.

– Não precisa de troco.

– Tudo bem – respondeu o garçom, finalmente aceitando meus dólares canadenses.

Em seguida, ele voltou, devolveu-me a nota e disse que eu não precisava pagar.

– Vocês não aceitam Visa Travel Money? – perguntei, mostrando aquele cartão.

– Ah! Sim – pegou o cartão e pediu que eu assinasse um papel.

Quando fui à recepção fechar minha conta, meus documentos perdidos em Vancouver já haviam chegado. Estava tudo lá. Peguei minhas malas e uma segurança, não me lembro se do hotel ou da United Airlines, acompanhou-me ao aeroporto. Ela era muito simpática e me atendeu muito bem. Até elogiou meu inglês, quando disse que era brasileira. Chegando ao aeroporto, deixou-me com outro funcionário que tinha uma deficiência visual mínima. Seu nome era Cliff e também foi muito atencioso comigo. Antes de ir à sala de embarque, levamos Higgans fazer as necessidades pela última vez.

Meu amigo de Washington que socializara Higgans até um ano de idade havia dito que dentro da área de embarque os aeroportos tinham um lugar onde os cães guia podiam se aliviar. Cliff perguntou sobre essa área. Ninguém sabia de nada.

Depois de Higgans ter se aliviado, fomos ao check-in. Guil estava lá.

– Então, Guil, caso a aeronave não esteja lotada, seria bom se pudesse bloquear a poltrona ao meu lado para ele ter espaço. Ainda mais num voo longo desses – pedi.

– Fique tranquila. Já mandei bloquear.

Dois milagres. Primeiro alguém ter tomado essa iniciativa. Segundo, ter lugar. Na sexta-feira, quando falei com minha agência de viagem, não havia lugar no voo de terça. Agora não só tinha lugar para mim mas também um sobrando para Higgans. Era a primeira vez num voo internacional que tinha certeza de que não teria problemas de espaço com meu cão-guia. Isso porque um dos supervisores da companhia estava à frente de tudo. Estava admirada, pois nunca havia sido tão bem atendida por uma companhia aérea americana.

Na hora de passar pelo raio X, o constrangimento habitual dos aeroportos americanos. Tirei os sapatos e coloquei as bolsas de mão na caixa para passar no raio X. Quando eu já estava calçando os sapatos, ouvi a moça perguntando:

– Você tem dois notebooks na sua mala de mão?

– Sim.

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– Deveria ter retirado da bolsa para passar no raio X.

– OK. Me dá aqui que eu retiro.

– Não precisa. Já retiramos – respondeu ela, como se tivesse o direito de abrir a bolsa alheia.

Fiquei furiosa. Se já é ruim ter que tirar objetos da mala quando solicitam, pior é mexerem sem a permissão do dono. Acho imprescindível os procedimentos de segurança, mas não precisam esculhambar com a privacidade de ninguém. Minha vontade era reclamar. Limitei-me a desabafar com Cliff, metros depois de passar por ali.

– Abriram minha bagagem de mão! Isso é um desrespeito! É um absurdo o que os americanos fazem, depois do 11 de setembro.

– É! A gente vê cada absurdo aqui, que nem nós que somos americanos concordamos com esse exagero.

– Isso acontece até com vocês?

– Sim. Eles fazem o mesmo com qualquer um. Até em voos curtos. Cada vez que a gente embarca em qualquer aeroporto americano é assim. Você usa o Jaws? – perguntou ele, referindo-se ao leitor de tela de computador.

– Sim, uso.

– Para mim é o melhor.

– Para mim também. Só que acho muito caro. Para nós brasileiros são mil dólares.

– Para nós também custa isso. Só que nós sempre damos um jeitinho – comentou, rindo.

– Ah! Então, quer dizer que vocês pirateiam?

– Não tem condições de um cego pagar mil dólares por um leitor de tela! É mais caro que um computador! – comentou.

– Ainda mais que, para poder acompanhar a evolução dos programas, a gente sempre precisa pegar uma nova atualização.

É uma pena que eu não tenha pegado o contato de Clif. Eu iria gostar de conversar com ele. A deficiência visual dele deveria ser mínima. Ele enxergava o suficiente para fazer o acompanhamento de passageiros sem o uso da bengala.

Nos Estados Unidos é comum, mesmo com deficiências ínfimas, as pessoas se utilizarem de recursos como leitores de tela, bengala ou cão-guia, para facilitar a vida. Os americanos não gostam de depender de ninguém. E não é vergonha usar bengala ou cadeira de rodas. Não é como no Brasil, onde há pessoas que insistem em não nos deixar usar a bengala ou o cão-guia porque acham que devem fazer as coisas por nós.

Conheço muitos brasileiros cegos que preferem sofrer acidentes a usar a bengala, por vergonha. Em contra-partida, quando estava treinando meu primeiro cão-guia, em Nova York,

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tinha um colega americano na minha turma que enxergava muito bem durante o dia, contudo, queria um cão para guiá-lo à noite.

Ainda hoje sofro com a falta de compreensão de pessoas sobre a importância desses instrumentos. Claro que nem uma cadeira de rodas substituirá as pernas de uma pessoa nem o cão-guia vai tomar o lugar dos olhos. Porém, são mecanismos que minimizam bastante os efeitos da falta dos sentidos. Com meu cão-guia posso ir sozinha e com segurança a qualquer lugar, sem depender de ninguém. Quando estou sem ele, é como se tivesse perdido a visão pela segunda vez, pois fico completamente vulnerável e dependente.

É comum ouvir: “Você está comigo! Não precisa da bengala/cão-guia”. Aí, digo: “Não é só porque estou com você que tenho que arrancar meus olhos. Você não anda com seus próprios olhos? Então, por que está exigindo que eu arranque os meus para andar com você? Uma coisa não precisa excluir a outra.

Embarcamos. Prendi o colete de Higgans ao cinto de segurança da poltrona. Agora era esperar dez horas para chegar a São Paulo mais quatro horas de conexão e outra horinha de voo para chegar à minha casa, em Curitiba.

Como nunca consigo dormir em avião, aproveitei para terminar o livro que vinha ouvindo durante minha estada no Canadá, Anjos e demônios, de Dan Brown. O clima de tensão do livro me fez suar durante a viagem. Até hoje penso se algo semelhante havia ocorrido no Vaticano, de tanto que o livro me impressionou.

Às 8h20 da manhã, finalmente aterrissamos no aeroporto de Guarulhos. Apesar de as companhias aéreas desembarcarem as pessoas com deficiência por último, pedi para descer primeiro, pois Higgans deveria estar apertado. Falei da necessidade do cachorro ao funcionário que me acompanhava ao descer da aeronave e perguntei se havia alguma área onde os cães guia pudessem se aliviar, antes de passar por todo o procedimento de imigração.

– Não conheço, mas vou perguntar para a Infraero.

Prestativo, o funcionário acabou nos levando a uma área utilizada pelos cães policiais com a mesma finalidade. Higgans realmente estava necessitado. Foi só eu dar o comando, que ele fez um xixizão.

Como eu já suspeitava, não me pediram nenhum daqueles documentos que havia feito com Nel. Os aeroportos internacionais já estavam acostumados com cão-guia.

Consegui um lugar num voo da TAM para Curitiba que partiria uma hora e meia antes do que estava reservado para mim. Mesmo o voo tendo atrasado quase uma hora, acabei voltando mais cedo para casa. Meu pesadelo de Vancouver chegava ao fim.

Você deve estar se perguntando o que aconteceu com as pessoas que eu conhecera em Vancouver:

Mandei vários e-mails para Nel, mas todos voltaram. Ou anotei errado ou ela abre tão pouco a caixa de entrada que vive lotada. Como a diferença de fuso horário entre mim e ela é

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muito grande, o tempo foi passando sem que nunca telefonasse. Mas lembro com muito carinho dela e sei que um dia vamos nos falar.

Dos professores de inglês, o único com quem conversei por telefone e por e-mail foi Nial. Até combinamos que iria ver uns alunos no Brasil para ele dar aulas por Skype, no entanto, ele não manda notícias há alguns meses.

Com Kevin, falo esporadicamente por e-mail. Foi ele quem me informou que Nial fora ao Japão com a namorada Yumi.

Mandei e-mails para Teg e Tatiana. Nenhum dos dois respondeu. Não fiquei com os contatos de Camila. Ela ficou com meu e-mail, mas nunca deu notícias. Nos últimos telefonemas, ainda em Vancouver, ela me contou que havia encontrado, por conta própria, emprego de recepcionista em uma escola de Inglês.

Troco e-mails com Caio até hoje. Ele ficou em Vancouver até dezembro. Saiu da escola de inglês no mesmo dia que eu. Depois de lavar pratos nos restaurantes indianos, trabalhou como servente de construção e aproveitou o tempo para se divertir. Gostava de andar de bicicleta, jogar futebol e, quando chegou a neve, foi esquiar. Ao voltar para o Brasil, retomou o trabalho em sua empresa de vendas e voltou a agitar as noites de Sorocaba como DJ.

Quanto a mim... Apesar de todos os meus sonhos terem ido por água abaixo e se transformado num pesadelo, agora que passou, percebo que não foi tão ruim assim. Tudo que tirei de lição nessa viagem, unindo a outras que já fiz, tentei passar nas linhas desse livro. Escrevê-lo, aliás, foi a melhor parte da viagem. Espero que minha experiência sirva para as outras pessoas. Foi um prazer compartilhá-la.

A palavra que resume essa experiência é superação. Passei por esse sufoco todo e sobrevivi. Sobrevivi, sacudi a poeira e dei a volta por cima. É mais uma experiência de superação para contar nas rodas de amigos e nas palestras de motivação. O que fazer quando você planeja uma coisa e a vida te apresenta caminhos completamente diferentes?

Como usar pedras do caminho como degraus para subir?

Não gosto de admitir, mas minha vida é composta de uma coleção de superações. Seja em qualquer parte do mundo, sempre tive que lutar para sobreviver às situações adversas. Será que é só para mim que as coisas funcionam desse modo?

©Danieli Haloten, 2013

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