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I Meu coração tomado em suas mãos Poemas 1955-1963

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I

Meu coração tomado em suas mãos

Poemas 1955-1963

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deite-sedeite-se e espere como

um animal

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a tragédia das folhas

despertei para a aridez e as samambaias estavam mortas,

as plantas nos vasos, amarelas como milho;minha mulher partirae as garrafas vazias como cadáveres exanguescercavam-me com sua inutilidade;o sol seguia bem, no entanto,e o bilhete da minha senhoria se quebrava num belo eresignado tom de amarelo; o que se precisava agoraera de um bom comediante, ao velho estilo, um bobo da

cortecom piadas sobre a dor absurda; a dor é absurdaporque ela existe, quando nada mais;cuidadosamente faço a barba com uma velha navalhao homem que uma vez tinha sido jovem edizia ter gênio; masessa é a tragédia das folhas,as samambaias mortas, as plantas mortas;e eu caminho por um corredor negroonde a senhoria se mantémexecrável e decisiva,mandando-me para o inferno,balançando seus braços gordos e sudorentose gritandogritando pelo aluguelporque o mundo falhou conoscoduplamente.

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para a puta que levou meus poemas

alguns dizem que deveríamos evitar remorsos particulares no

poema,manter-nos abstratos, e há certa razão nisso,mas jezus;lá se vão doze poemas e eu não tenho cópias deles em

carbono e você está comminhaspinturas também, as melhores; é sufocante;quer me destruir como fez com todos os outros?por que não leva meu dinheiro? é o que normalmente

fazem comos bêbados desacordados na esquina de quem batem

os bolsos das calças.da próxima vez leve meu braço esquerdo ou cinquenta

contosmas não meus poemas:eu não sou Shakespearemas vai chegar um tempo em que simplesmentenão haverá mais nenhum, abstrato ou como quer que

seja;sempre haverá dinheiro e putas e bêbadosaté a última bomba cair,mas como Deus disse,cruzando as pernas,sei muito bem onde coloquei um bocado de poetasmas não muitapoesia.

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o estado das coisas do mundo vistas a partir da janela de um 3o andar

olho para uma garota vestindo umsuéter verde-claro, shorts azuis, longas meias negras;usa algum tipo de colarmas seus seios são pequenos, pobrezinha,e ela confere as unhasenquanto seu cachorro branco e encardido fareja a

gramaem erráticos círculos;um pombo também está por ali, circulando,semimorto com seu cérebro de ervilhae eu estou andares acima em minha roupa de baixo,barba de 3 dias, servindo uma cerveja e esperandoque alguma coisa literária ou simbólica aconteça;mas eles seguem circulando, circulando, e um homem

velho e magroem seu último inverno desliza puxado por uma garotacom um uniforme de escola católica;para algum lugar além há os Alpes, e navioscruzam agora mesmo o mar;há pilhas e mais pilhas de bombas-H e -A,suficientes para explodir cinquenta vezes o mundo e

Marte junto,mas eles seguem circulando,a garota movimentando o traseiro,e as colinas de Hollywood mantêm-se lá, mantêm-se lácheias de bêbados e pessoas insanas emuitos beijos nos automóveis,mas isso nada resolve: che sera, sera:seu cachorro branco e encardido não cagará,e com um último olhar para as unhas

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ela, fazendo rebolar ao máximo o traseirodesce em direção ao pátioseguida por seu cachorro constipado (simplesmente sem

se importar),deixando-me a ver o pombo mais antissinfônico.bem, quanto ao balanço das coisas, relaxe:as bombas nunca vão ser detonadas.

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para marilyn m.

deslizando intensamente sobre luminosas cinzas,alvo de lágrimas de baunilhaseu corpo certeiro acende velas para os homensem noites escuras,e agora sua noite é mais escurado que podem as velase nós vamos esquecer você, de alguma maneira,e isso não é justomas os corpos reais estão mais pertoe enquanto os vermes resfolegam por seus ossos,de modo que eu gostaria de lhe dizerque isso acontece a ursos e a elefantesa tiranos e a heróis e a formigase aos sapos,ainda assim, você nos trouxe alguma coisaum tipo de pequena vitória,e para isso eu digo: bome deixe que larguemos mão do pesar;como uma flor seca e jogada fora,esquecemos, relembramos,esperamos. criança, criança, criança,ergo minha bebida um minuto inteiroe sorrio.

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a vida de borodin

na próxima vez em que você ouvir Borodinlembre-se de que ele era apenas um químicoque escrevia música para relaxar;sua casa vivia cheia de pessoas:estudantes, artistas, bêbados, vadios,e ele nunca soube como dizer: não.na próxima vez em que você ouvir Borodinlembre-se de que sua esposa usou suas composiçõespara forrar a caixa de areia do gatoou para embrulhar as garrafas de leite azedo;ela sofria de asma e insôniae o alimentava com ovos molese quando ele queria cobrir a cabeçapara se afastar dos sons da casaela permitia que ele usasse apenas o lençol;além disso, geralmente havia alguémna cama dele(os dois dormiam em camas separadas quandodormiam)e como todas as cadeirasnormalmente estavam ocupadascostumava dormir nos degrausenvolto em um velho xale;ela lhe dizia quando cortar as unhas,para não cantar ou assobiarnem colocar muito limão no chánem espremê-lo com uma colher;Sinfonia no 2 em Si MenorPríncipe IgorNas estepes da Ásia Centralele só conseguia dormir colocando um pedaço

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de pano negro sobre os olhos;em 1887 ele compareceu a um bailena Academia de Medicinavestido com um festivo traje nacional;parecia, ao fim, excepcionalmente animadoe quando ele se foi ao chão,pensaram que ele estava fazendo alguma palhaçada.na próxima vez em que você ouvir Borodin,lembre-se disso...

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de graça

esta garota na arquibancadacom os cabelos de um ruivo esmaecidoficava apoiando seus peitos contra mime falando sobre Gardenamesas de pôquermas joguei fumaça emseu rostoe falei a ela sobre uma exposiçãode Van Goghque eu havia visto lá na colinae naquela noitequando a levei para casaela disse queVermelhão era o melhor cavaloque ela já tinha visto –até que eu fiquei sem nada. Emboraeu pensasse naquele negócio do Van Goghem que haviam cobrado50 centavos.

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um romance literário

conheci-a de algum jeito por meio de correspondência ou poesia ou revistas

e ela começou a me mandar poemas bem sensuais sobre estupro e luxúria,

e isso misturado a um pouco de intelectualismome deixou confuso e peguei o carro e segui para o Nortepor montanhas e vales e autoestradassem dormir, saído de um porre, recém-divorciado,sem emprego, envelhecendo, acabado, ansiando dormirpor cinco ou dez anos, finalmente encontrei um quartoem uma cidade pequena e ensolarada junto a uma

estrada suja,e fiquei sentado ali fumando um cigarropensando, você deve estar totalmente louco,e então saí dali uma hora depoispara o encontro; ela era mais do que passada,quase tão velha quanto eu, bem pouco atraentee ela me deu uma maçã muito dura e ácidaque mastiguei com meus dentes remanescentes;ela estava morrendo de uma doença desconhecidaalgo como asma, e ela disse,quero lhe contar um segredo, e eu disse,eu sei: você é virgem, 35 anos.e ela puxou um caderninho, dez ou doze poemas:o trabalho de uma vida e eu tinha que lê-lose tentei ser gentilmas eles eram muito ruins.e eu a levei a algum lugar, às lutas de boxe,e ela tossia em meio à fumaçae ficava olhando ao redorpara todas aquelas pessoas

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e depois para os lutadoresfechando seus punhos.você nunca fica excitado, não é? ela perguntou.mas eu fiquei bastante excitado naquela noite nas colinas,e voltei a encontrá-la mais três ou quatro vezesajudei-a com alguns de seus poemase ela enfiou a língua quase até a metade da minha

gargantamas ao deixá-laela ainda era uma virgeme uma péssima poeta.acho que quando uma mulher manteve suas pernas

fechadaspor 35 anosé tarde demaistanto para o amorquanto para apoesia.