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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Caio Vieira Reis de Camargo T T I I P P O O L L O O G G I I A A E E U U S S O O D D A A V V O O Z Z M M É É D D I I A A E E M M A A P P O O L L O O D D O O R R O O : : E E S S T T U U D D O O S S E E M M Â Â N N T T I I C C O O B B A A S S E E A A D D O O E E M M C C O O R R P P U U S S ARARAQUARA SP. 2011

UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE … · dos verbos gregos na voz média estabelecidas por Allan (2003), a partir de critérios semântico-cognitivos, os quais buscam

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UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO

Faculdade de Cincias e Letras

Campus de Araraquara - SP

Caio Vieira Reis de Camargo

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EEESSSTTTUUUDDDOOO SSSEEEMMMNNNTTTIIICCCOOO BBBAAASSSEEEAAADDDOOO EEEMMM CCCOOORRRPPPUUUSSS

ARARAQUARA SP.

2011

CAIO VIEIRA REIS DE CAMARGO

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Dissertao de Mestrado apresentada ao

Programa de Ps-Graduao da Faculdade de

Cincias e Letras Unesp/Araraquara, como

requisito para obteno do ttulo de Mestre

em Lingustica e Lngua Portuguesa.

Linha de pesquisa: Ensino-aprendizagem

de lnguas

Orientadora: Profa. Dra. Anise de Abreu

Gonalves D'Orange Ferreira

Bolsa: CNPQ

ARARAQUARA SP.

2011

Camargo, Caio Vieira Reis de

Tipologia e uso da voz mdia em Apolodoro : estudo semntico

baseado em corpus / Caio Vieira Reis de Camargo 2012

147 f. ; 30 cm

Dissertao (Mestrado em Lingstica e Lngua Portuguesa)

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Cincias e Letras, Campus

de Araraquara

ORIENTADOR: ANISE DE ABREU GONALVES DORANGE FERREIRA

l. Voz mdia grega . 2. Abordagem semntica baseada em corpus.

3. Apolodoro. I. Ttulo

CAIO VIEIRA REIS DE CAMARGO

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EEESSSTTTUUUDDDOOO SSSEEEMMMNNNTTTIIICCCOOO BBBAAASSSEEEAAADDDOOO EEEMMM CCCOOORRRPPPUUUSSS

Dissertao de Mestrado, apresentada ao

Programa de Ps-Graduao em Lingustica

e Lngua Portuguesa da Faculdade de

Cincias e Letras UNESP/Araraquara,

como requisito para obteno do ttulo de

Mestre em Lingustica.

Linha de pesquisa: Ensino-aprendizagem

de lnguas

Orientadora: Profa. Dra. Anise de Abreu

Gonalves D'Orange Ferreira

Bolsa: CNPQ

Data da defesa: 05/01/2011

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

PROFa. Dra. Anise de Abreu Gonalves D'Orange Ferreira

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/ ARARAQUARA

Presidente e Orientador

PROFa. Edvanda Bonavina da Rosa

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP/ ARARAQUARA

Membro Titular

PROFa. Dra. Maria Aparecida de Oliveira Silva

UNIVERSIDADE DE SO PAULO - USP/SO PAULO

Membro Titular

Local: Universidade Estadual Paulista

Faculdade de Cincias e Letras - UNESP Campus de Araraquara

Esta dissertao dedicada a minha av Zoraide Vieira dos Reis, que, por anos, cantou-

me histrias, dedicando sua aposentadoria ao crescer de seu neto e, agora, sempre que

me encontra, ansiosamente, pede por ouvir as histrias que passei a escrever.

Agradecimentos

Primeiramente, gostaria de agradecer minha orientadora, Anise de Abreu

Gonalves D'Orange Ferreira, pelo minucioso acompanhamento de meu trabalho de

pesquisa, que tornou possvel o resultado que encontramos nesta dissertao. Seu

conhecimento , sem dvida, uma inspirao para a sequncia de meu caminho

acadmico, e a pessoa maravilhosa que , repleta de to belas virtudes, sempre ser alvo

de minha admirao.

Agradeo a meus pais, Alberto Jos de Camargo e Regina Ester Vieira Reis de

Camargo que, hoje, enxergam nesta dissertao, o resultado de anos, desde o pequeno

menino, galgando os degraus de uma criao base da sinceridade, do dilogo e do

amor.

Ao meu querido irmo, Marcelo Vieira Reis de Camargo, "mestre das energias

renovveis", que, como um refinado maestro, sempre me ajudou a encontrar, da forma

mais harmnica e bela, as notas que faltavam para concluir esta melodia que, hoje, toca,

alegremente.

Aos meus queridos amigos, Raoni Exaltao Masson e Pedro Marcussi de

Carvalho, cujos laos fraternos sempre recarregaram minhas energias nos momentos em

que ela se encontrava beira do esgotamento.

Edvanda Bonavina da Rosa, fica meu eterno agradecimento por seus

ensinamentos que, desde o incio de minha vida universitria, comearam a lapidar as

palavras que se espalham neste trabalho.

minha av Zoraide Vieira Reis, princesa de minhas fbulas, que, ao lado de

meu av Antnio Reis, sempre presente, fez com que essa criana conseguisse criar as

prprias histrias.

Aos meus alunos da Universidade Estadual de Maring, que me deram a certeza

quanto ao acerto em minha escolha profissional como professor.

CNPQ, pela bolsa fornecida pela realizao da pesquisa.

Por fim, meu agradecimento aos professores da Faculdade de Cincias e Letras

de Araraquara, responsveis pela construo de todos os passos de minha formao que

culminam, agora, na concluso deste mestrado.

Caio Vieira Reis de Camargo

"O assunto mais importante do mundo pode ser simplificado at ao ponto em

que todos possam apreci-lo e compreend-lo. Isso - ou deveria ser - a mais elevada

forma de arte." Charles Chaplin

Resumo

Este trabalho de pesquisa foi elaborado em continuao quele realizado em

Iniciao Cientfica, financiado pela FAPESP, sob a orientao da Profa. Dra. Edvanda

Bonavina da Rosa, em que foram analisados exemplos de verbos gregos na voz mdia,

extrados das narrativas mitolgicas da figura heroica de Hracles, presentes na obra

Biblioteca, de Apolodoro. Nessa pesquisa, optamos por fazer uma pequena reviso

terica sobre trabalhos que tratassem sobre a medialidade, no somente do grego, mas

tambm em outras lnguas, como o portugus, a fim de traar anlises comparadas entre

elas. Coletados os exemplos, a escolha terica para analis-los foram as classificaes

dos verbos gregos na voz mdia estabelecidas por Allan (2003), a partir de critrios

semntico-cognitivos, os quais buscam definir o escopo do emprego da medial nos

textos helnicos, definindo as nuances de seu uso, as formas mais e menos recorrentes,

levantando as hipteses que tratassem das dificuldades de delimitar, diante de seu

variado leque de emprego, as principais caractersticas dessa forma verbal.

Neste trabalho de mestrado, sob a orientao da Profa. Dra. Anise Abreu

Gonalves D'Orange Ferreira e financiado pelo CNPQ, aprofundamos no estudo sobre a

voz mdia do grego antigo, elaborando um captulo terico dedicado a esse tema, em

que buscamos encontrar as interseces existentes nos diferentes estudos sobre a

medial, estabelecendo seus principais traos, sistematizando as variaes possveis de

sua ocorrncia, alm de tentar tornar mais claras as fronteiras que a separam das outras

vozes: ativa e passiva. Para tanto, tomamos por base a teoria funcional-cognitivista,

afim de expandir as abordagens lingusticas que tangem os estudos clssicos. Ademais,

ampliamos nosso corpus de anlise, selecionando os Livros I, II e III de Biblioteca, de

Apolodoro, que rene as narrativas mitolgicas gregas, desde o surgimento do universo,

at o retorno de Media cidade de Atenas. Nessas passagens, foram extradas formas

verbais mdias contextualizadas, a fim de empregar os critrios de anlise selecionados.

Sobre essa seleo, fazemos uma abordagem baseada em corpus, isto , utilizamo-nos

de ferramentas computacionais que otimizam os trabalhos de pesquisa e nos auxiliam na

agilidade do andamento das tarefas, oferecendo recursos que permitem o

aprofundamento nas anlises e na consequente extrao de resultados mais plausveis.

Com essa ampliao, continuamos com os critrios estipulados por Allan (2003), a fim

de verificar se as categorias por ele estabelecidas abarcam os diferentes exemplos

encontrados de voz mdia. Com efeito, apresentamos neste trabalho uma conceituao

mais ampla para o tema, de modo que ela seja uma formulao a partir do que outros

autores escreveram.

Palavras-chaves: voz mdia grega; lingustica cognitiva; abordagem baseada em

corpus

Abstract

This research was elaborated as a sequence of my undergraduate research,

supported by FAPESP, under the orientation of Profa. Dra. Edvanda Bonavina da Rosa,

in which we analyzed examples from Greek middle verbs from the mythological

narratives of Library, written by Apolodoro. On this former work, we decided to make a

small theoretical review about the works on ancient Greek middle voice, as well as on

other languages, like Portuguese, in order to establish comparative analysis between

them. once collected the examples, we have chosen Allan's (2003) groups of middle

verbs to classify the occurrences we found, to define its scope, the most used forms and

to formulate hypothesis to make reflections upon the attempt to delimitate Greek's

middle voice within its all variable uses.

On this master degree's dissertation, under Profa. Dra. Anise Abreu Gonalves

D'Orange Ferreira's orientation, supported by CNPQ, we went deep on our studies about

Greek's middle voice, elaborating a theoretical chapter to this subject, trying to find the

intersections among middle voice's works, defining its primary aspects, organizing its

different uses and furthermore making clearer the boundaries that separate the middle

voice from the active and the passive. To do so, we chose cognitive linguistics as our

theoretical basis, in order to expand linguistic works on classical studies. Besides, we

have amplified our corpus, selecting Books I, II and III from Apolodoro Library, which

gathers Greek mythological passages, since the beginning of the universe, until Medea's

return to Athens.

On this passages, we extracted middle verbs to utilize our selected criteria.

About this selection, we make a corpus approach, in other words, we use softwares to

improve our research, in both efficiency and speed, as well as to become possible more

plausible conclusions. Amplifying the corpus, we still use Allan's classifications to

classify the middle verbs. Therefore, we present on this work one large study about the

issue, so it can be a reformulation from what other authors have written.

Key-words: Middle voice; ancient Greek; cognitive linguistics; corpus approach

Sumrio da Dissertao

INTRODUO...........................................................................................................p.13

1. As vozes verbais e a voz mdia do grego antigo: reviso da literatura...................p.23

1.1 O conceito de voz e a teoria funcional-cognitiva.................................................. p.26

1.1.1 O Modelo "Bola de Bilhar" de Langacker...........................................................p.28

1.2 A voz ativa.............................................................................................................p.31

1.3 A voz passiva..........................................................................................................p.39

1.4 A voz mdia............................................................................................................p.45

1.4.1 Verbos Depoentes................................................................................................p.60

2. Classificao preliminar dos usos da voz mdia no corpus de estudo: uma abordagem

semntica.....................................................................................................................p.66

2.1 Mdia - passiva......................................................................................................p.67

2.2 Mdia como processo espontneo..........................................................................p.69

2.3 Mdia como processo mental ................................................................................p.74

2.4 Mdia como movimento corporal.........................................................................p.78

2.5 Mdia como ao coletiva....................................................................................p.81

2.6 Mdia recproca....................................................................................................p.83

2.7 Mdia reflexiva direta...........................................................................................p.85

2.8 Mdia perceptiva..................................................................................................p.88

2.9 Mdia como atividade mental...............................................................................p.91

2.10 Mdia como ato de fala......................................................................................p.93

2.11 Mdia Reflexiva Indireta....................................................................................p.95

2.12 Anlise dos traos semnticos............................................................................p.97

2.13 O mapa semntico da voz mdia........................................................................p.98

3. Re-classificao do uso da voz mdia em Apolodoro: uma abordagem baseada em

corpus........................................................................................................................p.101

3.1 O corpus selecionado e a aplicao dos softwares de pesquisa..........................p.101

3.2 A categoria prototpica anlise das ocorrncias encontradas...........................p.108

3.3 Uma nova categorizao.......................................................................................p.117

3.3.1 Atividade Mental x Processo Mental.................................................................p.118

3.3.2 Reflexiva (Direta e Indireta) .............................................................................p.118

3.3.3 Movimentao Corporal x Ao Coletiva.........................................................p.118

3.3.4 Mdia-Passiva x Processo Espontneo..............................................................p.118

4. Implicaes para as sinonmias entre vozes ativa e mdia....................................p.121

4.1 Ativa vs Mdia......................................................................................................p.121

4.2 Verbos ativos e mdios sinnimos.......................................................................p.126

4.2.1 e .......................................................................................p.130

4.2.2 e .....................................................................................p.131

4.2.3 e .............................................................................p.132

4.2.4 e .........................................................................................p.132

4.2.5 e ........................................................................................p.134

CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................p.137

REFERNCIAS........................................................................................................p.140

13

Introduo

A Lingustica, como cincia recente, vem sendo impulsionada pelas diversas e

importantes teorias que a compem ao longo dos anos. Vrias so as reas do

conhecimento ligadas a ela que permitem aprofundamentos nos estudos de uma dada

lngua. Dessa forma, os trabalhos voltados para as lnguas clssicas ganharam fora, j

que com as novas correntes de pensamento lingustico, novas propostas e abordagens

surgiram, as quais, embora tenham uma lngua no falada como objeto de estudo,

permitem a maximizao de suas reflexes, podendo ser aplicadas como parmetros

para qualquer outro estudo lingustico, como, por exemplo, para o de uma lngua

moderna.

Historicamente, a categoria de voz tem suscitado muita dificuldade, tanto no que

se refere a questes conceituais quanto no que respeita a sua tipologia. Na Antiguidade,

o estudo da gramtica inicia-se com Dionsio Trcio, que escreveu um tratado breve e

metdico, intitulado Tchne grammatik. No pargrafo 13, Do verbo, esse autor se

refere j s trs vozes verbais, que ele denomina dithesis1: a ativa (enrgeia), a passiva

(pthos) e a mdia (mestes). A voz mdia por ele definida como a que indica ora

atividade, ora passividade. Conforme Boehm (1998), o termo dithesis tem sentidos

variados para os gramticos gregos, podendo variar entre dispor, organizar e pr

em tal ou tal disposio o esprito ou o corpo. Para essa autora, na Tchne grammatik,

dithesis corresponde relao entre os agentes com o processo e sublinha a

coincidncia entre a oposio das formas e a oposio semntico-sinttica. Tambm

merece meno a obra de Apolnio Dscolo, que deixou uma obra vasta, mas cuja maior

parte no chegou at ns. Esse autor tambm se refere s trs vozes, em sua obra Da

sintaxe III, 54. Segundo Moura Neves (1987, p. 197), para essa autora, a voz mdia

representa uma convergncia do sentido passivo e do ativo, embora algumas formas

mdias s tenham significao ativa e outras s tenham significao passiva.

Os gramticos latinos, herdeiros da teoria gramatical grega, no empregam,

entretanto, a designao dithesis, mas forjam vrios termos para expressar essa

noo. Varro, por exemplo, emprega trs termos, significatio, genus e modus, mas o

termo que se estabelece vox, voz, correspondente ao grego phon, que pode ter tido

1A questo da ditesis verbal ser abordada no decorrer deste trabalho.

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o sentido de significante. Na tradio gramatical latina, a classificao do verbo segue

o princpio morfolgico e a tradio europia segue esse mesmo procedimento. A

Frana segue a terminologia latina, empregando o termo voz. Assim so os estudos de

Humbert e de Chantraine, por exemplo. Em sua obra Syntaxe Grecque, Humbert (1963,

p.100) refere-se s dificuldades para o ensino e para a compreenso da voz mdia. Esse

autor afirma que essa dificuldade est diretamente ligada aos antigos gramticos, tendo

em mente os gramticos de Alexandria. Afirma Humbert (1963):

Na realidade, enganados pela importncia lgica da oposio entre agente e

paciente, os gramticos antigos consideraram como essencial a distino da

ativa e da passiva: conseqentemente, eles deixaram num plano secundrio e

equivocado a mdia. No entanto, se considerarmos conjuntamente o

desenvolvimento das vozes nas lnguas indo-europias e sua histria no

prprio grego, constata-se que h apenas duas vozes fundamentais: a ativa e a

mdia; a passiva constituiu-se, lentamente, apenas s custas da mdia, da qual

ela tomou emprestada a maior parte de suas formas e qual ela permanece

profundamente associada2. (p.65)

Outros estudiosos retomam as reflexes gregas, e propem um retorno

nomenclatura grega, referindo-se assim, ditese. Entre esses estudiosos podem ser

citados Benveniste (1966) e Vendryes (1948). Lima (2008) refora essa dificuldade na

categorizao verbal constante nos estudos lingusticos:

Os estudos lingsticos em bases estruturais e gerativistas no tm

conseguido at o momento dar conta da categoria de voz. Camara Jr. (1977,

s.v.voz), por exemplo, amparado num critrio formal, considera como vozes

a ativa, a passiva e a reflexivo-medial, mas define mal a voz medial que ora

considerada como um tipo de voz, ao lado da passiva e da ativa, ora tida

como subtipo da passiva (mdio-passiva).

Lima (2008) ainda aponta para a falta de uma equivalncia da voz mdia nas

lnguas modernas. Para ela, a medial possui relaes bem estreitas com a passiva e a

reflexiva, o que acaba por confundi-la com estas. Essa dificuldade em distingui-las

aparece na prpria descrio confusa apresentada pelas gramticas tradicionais, uma vez

que os autores oscilam nas classificaes de algumas formas como exemplos de voz

2 Traduo nossa.

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mdia, passiva ou reflexiva. Em portugus3, a voz mdia foi abordada por autores pr e

ps NGB e, na maioria das vezes, os gramticos a definem como um subtipo da

reflexiva, cujo trao mais geral seria a presena do pronome se. Said Ali (1963)

aprofundou os estudos sobre voz verbal e atribui mdia a maior parte de seus

comentrios. Considera-a como forma intermediria entre a ativa e a passiva, com um

pronome reflexivo sempre presente, porm com funes abrangentes. Para o fillogo, a

voz mdia capaz de expressar reflexividade, reciprocidade e outras noes, tal como

indica que uma ao no parte de um sujeito, mas que este foi afetado: a ao se

executa por si mesma no objeto de que se fala. (1964, p.179). Nesses casos, a medial

denota atos espontneos, sem agente ou causa aparente. A escassez de estudos

comparados da medial grega para com o portugus significativa, o que torna sua

compreenso mais complicada. Poucas so as abordagens comparativas da voz mdia.

Embora haja, conforme observamos, autores que se preocupem em buscar a

equivalncia dela em portugus, poucos so os trabalhos desenvolvidos nessa rea e

necessitam, ainda, de um maior aprofundamento. Diante disso, necessrio um trabalho

descritivo que no se limite a um estudo comparativo.

A voz mdia perdurou, at recentemente, como alvo de pesquisa de estudos de

lnguas clssicas e indo-europeias. Nas ltimas dcadas, contudo, esse tema passou a ser

objeto de estudo de pesquisas tipolgicas, diante do fato de que os sistemas mdios so

muito similares entre as lnguas, mesmo entre aquelas que no compartilham uma raiz

em comum. Dos trabalhos mais recentes, tais como os de Kemmer (1993), Klaiman

(1992), Maldonado (1999), dentre outros, notamos, por exemplo, uma enorme

semelhana entre o sistema reflexivo das lnguas europeias modernas e o sistema de voz

mdia conforme encontrado no grego antigo e no snscrito. Cabe ressaltar que o termo

"voz mdia" aplicado de forma ampla nas pesquisas lingusticas do sculo XX.

Valfells (1970), por exemplo, define-a como uma categoria formal, uma categoria

flexional do verbo do grego clssico. Lyons (1969), por sua vez, adota a ideia de voz

mdia como algo puramente semntico, como indicador de uma ao ou estado que

afeta o sujeito do verbo em seu interesse. No h, de fato, uma definio aceita de forma

generalizada, a qual consiga relacionar seus diferentes empregos nas mais diversas

lnguas de forma satisfatria, reunindo as ocorrncias em que esse termo utilizado

como classificao.

3 Para maiores detalhes sobre a medialidade no portugus, cf. Lima(2008).

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Conforme salienta Kemmer (1993), as frases abaixo, extradas de quatro lnguas

distintas, foram construdas em voz mdia:

1) Grego antigo

"Lavo minhas mos"

"Eu me atiro"

"Eu desejo"

2) Islands Moderno

kann klddi-st "Ele se vestiu"

bkin fann-st "O livro foi encontrado"

g vona-st til ad fara "Espero ir"

3) Francs

ce papier se recycle "Esse papel reciclvel"

le ciel se fait sombre "O cu est escurecendo"

le riz se cultive en Chine "Cultiva-se arroz na China"

4) Ingls

the book that sells well "O livro que se vende bem"

the door opened "A porta se abriu"

the soup that eats like a meal "A sopa que se come como refeio".4

Para a autora, com base nesses levantamentos, no h uma generalizao

semntica capaz de abarcar esses diferentes empregos, alm de no haver diferenas

naquilo que define um verbo como mdio, se pensarmos que nos exemplos 1 e 2 o

indicador da construo o afixo, em 3, o pronome se, e em 4, no parece haver

qualquer indicador morfossinttico que diferencie de construes intransitivas ativas.

H autores que empregam a terminologia de mdio-passiva, quase-reflexiva, pseudo-

reflexiva, neutra, construo sujeito-paciente e depoente. Dessa forma, embora o

trabalho de Kemmer (1993) rena a anlise da voz mdia em vrios sistemas

lingusticos5, em grego antigo, embora haja a marcao morfolgica em relao ativa,

no ficam claras, frequentemente, as reais diferenas que dividem essas duas categorias

e, nesse caso, necessrio compreender e identificar um padro semntico que, ao

mesmo tempo em que rene e classifica os diversos exemplos das variaes do emprego

4 Exemplos extrados de KEMMER (1993, p.2). Vale lembrar que, para lnguas modernas, como francs e

ingls, a autora afirma que, embora no seja uma categoria formal da lngua, a voz mdia se constri

semanticamente. 5 No captulo aprofundaremos mais na anlise lingustica de Kemmer sobre a voz mdia.

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das vozes, possa estabelecer, ou ao menos inferir, as fronteiras que separam as trs

vozes verbais da lngua.

Especificamente sobre a voz mdia grega, enfoque desta dissertao, a

quantidade de trabalhos, frequentemente publicados em lngua inglesa, que tratam dessa

questo no to ampla, ao passo que na maioria das vezes, muitas das abordagens se

restringem a um carter normativo, que limita e dificulta a compreenso das diferentes

formas de emprego dessa forma verbal. Nos estudos lingusticos acerca das vozes

verbais, autores, como o gramtico francs Humbert (1963), apresentam a formao da

voz mdia como anterior da passiva, configurando-se, ao lado da ativa, como as

possibilidades de construo do sentido verbal6. Ainda nas gramticas tradicionais,

defende-se a ideia de um sujeito que possui um interesse na ao que realiza.

Conforme ressalta Goodwin (1930, p.35), na voz mdia, o sujeito apresentado como

agente sobre si mesmo ou, de alguma maneira, sobre algo que lhe concerne. No grego

antigo, embora no seja to prolfica quanto a ativa, compreender a voz mdia no se

limita a entender sua morfologia, uma vez que seu campo semntico bastante amplo e

encontrar um padro para seu emprego no uma tarefa simples. Consoante

mencionado acima, as gramticas do grego antigo enumeram alguns empregos da voz

mdia, entretanto mesmo em meio a essas definies, surgem dvidas como: a) existe

algum elemento semntico que una esses diferentes tipos de uso? Se sim, como

identific-lo? e b) compreendidos os vrios usos da voz mdia como uma estrutura

polissmica, de que forma esses empregos esto relacionados uns aos outros? Uma vez

comuns as abordagens normativas que pouco aprofundam no estudo desse aspecto

verbal, que, exclusivo a algumas lnguas, especialmente s clssicas, desapareceu na

maioria das lnguas modernas, pelo menos do ponto de vista morfolgico, contribuindo

para a escassez de estudos comparados, abordagens semnticas tm se mostrado

bastante eficientes no que diz respeito interpretao e compreenso dos verbos gregos

empregados na voz mdia. Existem interessantes trabalhos que tratam da medialidade

em lnguas como o portugus, o grego moderno, o francs, dentre outras, os quais

servem de baluarte terico para nosso trabalho voltado para o grego clssico.

Diante, ento, de pesquisas que visam tentativa de definio da voz mdia, ora

divergentes, ora convergentes, buscamos, nesta dissertao, reuni-las diacronicamente, a

partir do que surgiram questes, tais como: a) quais so essas definies de voz mdia

6Acerca da origem histria da voz mdia, no captulo 1 de nossa dissertao, trataremos com maior nfase

essa questo, de modo a entender a interferncia desse fator na compreenso da medial.

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nos estudos realizados at o presente?; b) quais os traos semnticos e como estabelecer

a diferena entre as demais vozes?; c) como os papis semnticos contribuem para essa

distino?; d) qual o envolvimento do sujeito (tal qual expresso por Manney (2001) nos

verbos mdios de nosso corpus?. A realizao de um trabalho descritivo, por meio do

uso de ocorrncias contextualizadas e da lngua em uso permite um maior trabalho de

investigao e esclarecimento da categoria de voz, em especial, da medial. Conforme

ressaltamos, embora tenha suas particularidades morfolgicas, estabelecer os traos

semnticos da voz mdia torna-se um problema, visto que nem sempre so claras as

fronteiras que a separam da ativa e da passiva. H, por exemplo, sinonmias entre

formas ativas e mdias, cuja diferenciao requer uma anlise detalhada e comparada

dessas ocorrncias nos textos, questo esta que ser abordada no decorrer deste trabalho.

Uma das ferramentas essenciais para a compreenso desse domnio verbal est ligada

aos papis semnticos dos sujeitos e aos esquemas de imagens construdos nas frases,

contribuindo, assim, para a compreenso das particularidades da medial. Nesta

dissertao, a ideia central defendida em relao ao emprego da voz mdia grega gira

em torno da noo de afetividade do sujeito, elemento este presente nos exemplos

levantados e analisados e diretamente ligado aos papis semnticos dos sujeitos

oracionais. Desse modo, selecionamos as onze categorias semnticas da voz mdia

estabelecidas por Allan (2003), no intuito de englobar nelas os exemplos colhidos no

corpus, ao mesmo tempo em que analisamos a necessidade de um aumento no nmero

de classificaes, ou mesmo na diminuio destas. Para alcanar nossos objetivos,

propusemo-nos a: a) identificar e mapear as ocorrncias de voz mdia (i.e. de

morfologia mdio-passiva) no corpus proposto, selecionadas por programas

computacionais especficos; b) efetuar as concordncias, analisar o cotexto, as

colocaes e clusters das formas encontradas e comparar com as classificaes

teoricamente definidas como voz media, observando o campo semntico da voz mdia

no corpus e c) levantar os padres frasais, ou unidades sintagmticas com emprego dos

verbos na forma e no sentido da voz mdia, com base na frequncia de sua ocorrncia.

Ao longo de nossa exposio acerca da voz mdia no grego clssico,

apresentaremos aspectos da teoria cognitiva que fundamentam nossas inferncias. A

lingustica cognitiva define a gramtica de uma lngua como uma descrio

compreensvel da estrutura daquela lngua, e sustenta o conceito de que formas

lingusticas so essencialmente baseadas em estruturas semnticas. Alm disso, para

essa vertente do pensamento lingustico, o saber lingustico englobado por um

19

conhecimento geral, de modo que o conhecimento da lngua de um indivduo

informado e influenciado por outros tipos de conhecimento no lingustico altamente

estruturado. Com efeito, a distino entre o sentido semntico e pragmtico passa por

nveis, ao invs de ser absoluta, e o conhecimento lingustico dito como enciclopdico

por natureza. Em outra grande rea da pesquisa da lingustica cognitiva, argumenta-se

que comumente oraes recorrentes construdas em nvel prototpico designam eventos

que so centrais experincia humana e o significado lingustico em geral

corporificado e experimental por natureza. A Lingustica cognitiva mantm que o

significado lingustico baseado no falante. Os usurios da lngua, quando expressam

uma dada ideia por meio de um sentindo lingustico, fazem escolhas de codificao

especfica a partir de inmeras opes disponveis; nesse sentido, eles impem uma das

muitas perspectivas subjetivas possveis, ou interpretaes, numa situao particular ou

evento. Diferentes interpretaes do mesmo evento objetivo tipicamente envolvem um

ajuste em a) relativa proeminncia dada a suas vrias partes, b) a perspectiva a partir da

qual vista e/ou c) o nvel de especificidade em que o evento caracterizado. Em outras

palavras, o significado de uma expresso inclui tanto seu contedo semntico geral bem

como as imagens especficas variveis que convergem a qualquer uma das estruturas

possveis que poderiam alternativamente codificar a mesma situao.

Embora nosso trabalho esteja voltado para o estudo da voz mdia no grego

antigo, o corpus selecionado envolve apenas um autor da poca. Enquanto a presena

ou ausncia de uma construo na voz mdia numa determinada raiz verbal no

absolutamente previsvel, pode ser sempre motivada, uma vez que seu sentido central

esteja estabilizado. Portanto, neste estudo, embora Manney no teorize sobre o grego

antigo, ns assumimos, para essa investigao, as suas hipteses nas anlises do grego

antigo, baseadas nas abordagens cognitivas da anlise lingustica de que a) a estrutura

morfossinttica tal como flexo verbal possui contedo semntico e b) a ocorrncia de

uma flexo mdia em contextos particulares pode ser quase sempre motivada. A autora

assim justifica essas possibilidades por meio dos seguintes exemplos transliterados do

grego moderno:

a) iperaspzete ta anrpina dikemata

defende: 3 p. sg; mdia os direitos humanos

Ela/ele defende/est defendendo os direitos humanos (acusativo)

(sujeito afetivamente envolvido ou est defendendo seus prprios direitos como um

caso de direitos humanos)

20

b) iperaspzi ta anrpina dikemata

defende 3p. sg.; ativa os direitos humanos (acusativo)

(sujeito menos envolvido com o que defende)7

Para Manney (2001), a construo mdia no item 4 implica que o sujeito

defende os direitos humanos com uma grande fama de paixo e zelo, e que ele/ela est

pessoalmente envolvido com a causa que ela/ele defende. A construo ativa em 4b, por

outro lado, neutra a respeito desse envolvimento pessoal, e comparada sentena 4a

sugere que o sujeito est, de algum modo, separado daquilo que defende. Verificamos

que na forma mdia, 4a, constri-se a noo de que o enunciador d ao actante no texto

uma qualidade semntica ao seu agir, "defender", que um comprometimento do

sujeito, tornando-o "ator" do agir ou implicado de alguma forma, enquanto que a forma

ativa em 4b apresenta distanciamento, e que esses significados esquemticos esto

relacionados aos sentidos propostos pela mdia e a ativa prototpicas. Ao longo de nossa

anlise dos exemplos de voz mdia, mostraremos se e como esse envolvimento do

sujeito passa a ser identificado e se ele fator determinante nessa oposio ativa/mdia.

Ademais, outro pressuposto da teoria cognitivista adotado neste estudo que no h

dicotomia estreita entre predicabilidade absoluta e arbitrariedade de uma dada

construo lingustica. Ao contrrio, linguistas cognitivos argumentam em favor de uma

posio alternativa entre esses dois extremos, que a motivao. Motivao uma

anlise semntica para a ocorrncia de uma estrutura lingustica particular. Mais

especificamente, uma conexo inferida entre uma dada forma em um contexto e um

sentido menos central da mesma forma em outro contexto. Sendo assim, por meio da

teoria funcional-cognitivista, buscaremos encontrar justificativas para os diferentes

empregos da voz mdia do grego antigo.

Estudar um dado aspecto lingustico requer o contato direto com determinada

lngua e, no caso do grego, uma lngua literria, ou seja, no utilizada para a

comunicao, o contato direto feito com os textos. Utilizando-nos da lingustica de

corpus, como ferramental metodolgica, torna-se possvel realizar um estudo lingustico

emprico e, para nosso trabalho, o corpus selecionado foi o Livro I de Biblioteca, de

Apolodoro, uma vez que se trata da reunio de vrias narrativas da mitologia grega,

alm de o texto no apresentar formas dialetais, j que est escrito na forma jnico-

tica, padro ateniense clssico. A Lingustica de Corpus opera com ferramentas que

7 Exemplos extrados de MANNEY (2001, p.7)

21

permitem a descrio de vrios aspectos lingusticos e, conforme salienta Sardinha

(2000);

A Lingustica de Corpus ocupa-se da coleta e explorao de corpora, ou

conjunto de dados lingusticos textuais que foram coletados criteriosamente

com o propsito de servirem para a pesquisa de uma lngua ou variedade

lingustica. Como tal, dedica-se explorao da linguagem atravs de

evidncias empricas, extradas por meio de computador(p.3)

Sardinha (2000) fundamenta, assim, seus estudos da linguagem por consider-la

um sistema probabilstico que deve ser estudada numa abordagem emprica. Sua

sustentao baseia-se na verificao de que apesar de a lngua permitir diversas

combinaes de usos nos eixos paradigmtico e sintagmtico, algumas formas e

combinaes ocorrem com muito mais frequencia que outras. Da mesma forma que o

autor, adotamos, nesta pesquisa, uma abordagem emprica, considerando o uso da

linguagem, em situaes autnticas de produo que, aqui vem a ser o contexto de

produo literria do gnero narrativo-mtico. No que tange questo de ensino-

aprendizagem, esta pesquisa foi planejada com a finalidade de preencher uma lacuna

didtica, ao tentar responder algumas questes sobre o uso da voz mdia. Uma vez que

as abordagens didticas da voz mdia tambm no se mostram capazes de abarcar toda

sua complexidade, buscamos, com o resultado de nosso trabalho, contribuir para a

elaborao futura de material instrucional baseado nos resultados desta pesquisa. Os

estudiosos de grego antigo, normalmente, buscam auxlio em gramticas normativas as

quais, muitas vezes, prejudicam a compreenso devido complexidade e falta de

clareza. Alm disso a maioria dos materiais so livros estrangeiros, exigindo o domnio

de outra lngua, e a necessidade de traduo e entender exemplos forjados em lngua

estrangeira. Estudar uma lngua sob perspectiva de outra que no seja a nativa acentua

os problemas para apropriao do contedo.

Nosso trabalho de Iniciao Cientfica8 nos assegurou quanto viabilidade

didtica de se trabalhar com Apolodoro, visto que sua obra est escrita no dialeto

jnico-tico e compila diversas passagens mitolgicas, uma vez que grande o interesse

por figuras heroicas gregas. Vale destacar que a obra Biblioteca, do autor em questo,

de grande riqueza cultural e literria, no possui traduo para o portugus. Alm disso,

os estudos lingusticos com base nesse corpus se voltaram para questes de traduo ou

8 Para maiores detalhes, cf. CAMARGO & ROSA (2009)

22

da cultura grega, sendo indita a abordagem que o utiliza a fim de tratar da voz mdia

grega. Permanecem, portanto, abertos os caminhos para um material de suporte didtico

voltado para o estudo da voz mdia do grego.

Esta dissertao composta por quatro sees, ao longo das quais apresentamos,

respectivamente, os estudos tericos sobre as vozes verbais do grego antigo, as

classificaes empregadas par a voz mdia, a abordagem baseada em corpus e a anlise

das sinonmias. No primeiro captulo, expor-se- um quadro terico que contemple as

trs vozes presentes nos verbos do grego clssico, passando pela ativa e pela passiva, de

tal modo a culminar na nfase voz mdia, a qual procuramos tratar do ponto de vista

semntico-cognitivo. Nessa seo, nosso objetivo relacionar a teoria funcional

cognitivista com o emprego das vozes verbais. No captulo dois, apresentaremos as

classificaes estabelecidas por Allan (2003), analisando-as com base nos exemplos

encontrados no crpus analisado, de forma a verificar a possibilidade de reduo do

nmero de categorias, ou mesmo a ampliao destas, alm de expor os traos e um

mapa semntico desses verbos na voz mdia. No terceiro captulo, apresentamos a

Lingustica de Crpus como ferramenta metodolgica para este trabalho, a partir da

qual, por meio dos softwares previamente selecionados, foi possvel otimizar os

mecanismos de levantamento e anlise de dados. Ademais, delimitaremos o emprego da

voz mdia nesse corpus, delimitando o escopo desses verbos no autor selecionado. No

ltimo captulo (4), finalmente, faremos uma anlise de alguns pares de verbos

ativos/mdios sinnimos, analisando as principais caractersticas que os aproximam e os

separam, com base em exemplos contextualizados. Com efeito, acreditamos que este

projeto de mestrado permite contribuir para o entendimento da voz mdia e fornecer

insumo para ensino-aprendizado de grego antigo, a partir da pesquisa lingustica,

reunindo num material de extenso todo o contedo terico pesquisado, alm de textos

complementares sobre mitologia grega, essenciais na formao de um estudioso do

grego clssico.

23

Captulo 1 - As vozes verbais e a voz mdia do grego antigo: reviso da

literatura

As gramticas do grego antigo deixam clara a existncia de trs vozes verbais

presentes na lngua, todas marcadas morfologicamente, sendo elas: ativa, passiva e

mdia. De modo comparado s lnguas modernas, principalmente em relao s lnguas

neolatinas, as duas primeiras operam por meio de mecanismos semelhantes, enquanto a

mdia, por sua vez, torna-se um trao restrito s lnguas clssicas9. comum um

iniciante nos estudos do grego antigo, ao primeiro contato com a terminologia "mdia",

associ-la voz reflexiva, presentes nas lnguas modernas, muitas vezes em decorrncia

das explicaes que encontra em materiais de apoio a esse assunto. Entretanto, medida

em que esse aluno se depara com os textos helnicos, nota que, por mais que exista,

ocasionalmente, alguma semelhana entre elas, h empregos da medial que no

condizem com a forma de operao de sua lngua nativa. Muitas dvidas, de fato,

surgem acerca do emprego da voz mdia, no s pela sua relativa distncia para com

uma equivalncia com uma lngua moderna, mas tambm pela versatilidade de seu

emprego, que, muitas vezes, dificulta criar uma interseco que possa ligar as vrias

formas de se empreg-la.

Um estudante de grego, ainda em estudos inicias da lngua, provavelmente

identificar as diferenas das construes das vozes verbais diante da presena de

diferentes desinncias assinaladas morfologicamente, em que dispomos a conjugao do

verbo 10 (tabelas 1 e 2) no presente do indicativo e no imperfeito do indicativo,

em suas formas ativa e mdia.

9 A fim de no irmos de encontro aos trabalhos mais recentes, pensamos na voz mdia como uma

categoria morfologicamente marcada nas lnguas clssicas, no nos referindo questo semntica,

abordada por muitos autores nos estudos de lnguas modernas, inclusive mencionados no decorrer deste

trabalho. 10 O verbo , uma vez polissmico, nas vozes ativa e mdia pode significar vestir (algo ou algum)

e vestir-se, respectivamente. Curioso ressaltar que, nesse caso, o emprego da mdia, em termos de

traduo, coincide com a construo reflexiva do portugus. Essa equivalncia, entretanto, conforme

ressaltamos, limita-se a uma parcela de exemplos da medial.

24

Tabela 1 - Presente e Imperfeitos ativos

Presente do indicativo ativo Presente do indicativo mdio

()

Tabela 2 - Presente e Imperfeitos mdios

Imperfeito do indicativo mdio Imperfeito do indicativo mdio

A partir do momento em que se identifica uma distino morfolgica entre elas,

qual, ento a diferena de significado entre ambas? Nesse sentido, as formas mdias,

ento, encontradas no texto no podem ser substitudas, sem prejuzo de sentido, por

uma construo ativa11

? Qual seria o motivo para o desaparecimento da voz mdia nos

sistemas lingusticos das lnguas modernas? Uma vez existente, em alguns casos, certa

proximidade entre voz mdia e reflexiva, quando no o h, como compreend-la? Em se

tratando de grego antigo, temos uma lngua literria, no utilizada para comunicao,

cuja manifestao se d por meio dos textos escritos que chegaram at ns e, por isso,

inferimos que as escolhas feitas pelo autor do texto so motivadas linguisticamente12

e

11

No ltimo captulo desta dissertao, haver uma seo destinada oposio ativa vs mdia, em que

trataremos com maior profundidade a questo de marcao, significado e recorrncia. 12

O conceito de motivao ser tratado na seo em que abordarmos a teoria cognitiva.

25

assinalam para uma distino que, a princpio, um falante nativo faria das construes

verbais, dada a coexistncia das trs possibilidades de construo da voz verbal grega.

Uma das principais dificuldades de se compreender a categoria "voz" se deve

enorme disparidade entre as categorizaes feitas pelos mais diversos estudos. Por

exemplo, comum os autores definirem as vozes verbais como ativa, passiva e reflexiva

e a mdia como um tipo de reflexiva, embora no seja seu nico emprego. Entretanto,

h estudiosos que incluem a depoente como um tipo de voz, enquanto outros a

entendem como aqueles verbos que s existem ou na forma mdia ou na ativa. O termo

ditesis, por exemplo, tal qual apresentamos, brevemente, na introduo desta

dissertao, ainda gera dvida quanto ao seu significado, principalmente diante do fato

de que h autores que o tratam como sinnimo de voz verbal, e outros que os

distinguem. Neste nosso estudo, entendemos ditesis tal qual afirmam Vasquez-Yamuza

(1999):

A relao entre ditesis e vozes verbais no tem porqu ser simtrica, pode

haver mais vozes do que ditesis ou ao contrrio. As ditesis se definem

umas frente a outras, so alternativas de apresentao de um predicado lxico

determinado e, portanto, do estado dos assuntos refletidos. Chamamos

conjunto de alternativas a diferenas semnticas do marco predicativo. Essas

diferenas permitem, por exemplo, que possamos apresentar a mesma

situao como uma ao ou como um processo, variaes que supem um

cmbio na configurao do marco predicativo. (p.215)

Num marco predicativo de ao na voz ativa, por exemplo, o sujeito possui a

funo semntica de agente. No caso de uma ao de manipulao, o segundo

argumento ser um objeto paciente, de acordo com a tabela 3.

Tabela 3 - Relao sujeitoxobjeto na voz ativa

Predicado Ativo Sujeito Nominativo Objeto Acusativo

ao agente paciente

No caso de um exemplo de um verbo na voz mdia, um sujeito oracional poder

exercer duas funes semnticas ao mesmo tempo, conforme mostrado na tabela 4.

Tabela 4 - Relao sujeitoxobjeto na voz mdia

Predicado Mdio Sujeito Nominativo

ao agente-paciente

26

nosso objetivo elucidar, ao longo deste trabalho, quais terminologias e

definies seguimos, a fim de deixar claro como elas atuam em nossas reflexes. Dessa

forma, nas sees em que tratamos especificamente de cada uma das vozes do grego

antigo, teceremos comentrios acerca da ditesis correspondente a cada uma delas,

como forma de nos auxiliar na compreenso das fronteiras que as separam. Cabe

ressaltar, contudo, que existe uma dificuldade em relao a expresso das ditesis, uma

vez que o grego antigo no dispe de morfemas prprio em todos os modos e tempos

para as trs vozes descritas na lngua. Conforme mencionamos anteriormente, a teoria

que fundamenta nossas anlises e interpretaes a funcional-cognitiva, cujos conceitos

devem ser mencionados antes de analisarmos cada uma das vozes verbais gregas.

1.1 O CONCEITO DE VOZ E A TEORIA FUNCIONAL-COGNITIVA

A Lingustica Cognitiva "um modelo bastante recente vinculado neurocincia

e sociolingustica", segundo Abreu (2010), baseado na percepo e na conceituao

humana acerca do mundo. A linguagem no uma faculdade autnoma, mas uma forma

de pensar o mundo e o conhecimento da linguagem emerge do uso da prpria

linguagem. Dentre os grandes temas da Lingustica Cognitiva esto a integrao

conceptual, a teoria dos espaos mentais, a categorizao e a teoria dos prottipos, com

os quais torna-se possvel criar novas abordagens nos estudos linguisticos, inclusive nos

de lnguas clssicas. Comumente, o conceito de voz est relacionado transitividade da

orao. Por exemplo, para os falantes de portugus, a rigor, s possvel identificar voz

ativa e passiva em construes com verbos transitivos, o que j no ocorre no grego

antigo. Para Langacker (1991), as alternaes de voz podem ser caracterizadas como

codificaes de diferentes escolhas de um sujeito oracional; dessa forma, uma

construo passiva pode ser tratada como uma expresso marcada por uma configurao

especial em que o sujeito esperado ignorado em favor de um sujeito menos

caracterstico. A noo de transitividade e sua importncia gramatical foi reconhecida,

primeiramente, por Hopper e Thompson, num artigo publicado em 198013

, para os quais

a categoria transitividade da gramtica possui uma estrutura construda sob um

prottipo, definido por um grupo de categorias semnticas. Eles esboam essas

caractersticas conforme explicitado na tabela 5:

13

Tabela extrada de HOPPER & THOMPSON (1980, p.7)

27

Tabela 5 - Caractersticas da transitividade

Com efeito, toda orao pode ser enquadrada dentro de um ranque de

transitividade, a partir dos traos semnticos que apresentam. Hopper & Thompson

(1980), os quais exemplificam a partir das seguintes frases.

a) Jerry likes beer (Jerry gosta de cerveja);

b) Jerry knocked Sam down (Jerry nocauteia Sam);

Quanto maior o nmero de caractersticas semnticas de alta transitividade

apresentadas pela orao, mais transitiva ela ser. Assim, o segundo exemplo apresenta

maior transitividade do que o primeiro, j que apresenta as seguintes propriedades.

a) Kinesis: ao;

b) Aspecto: tlico;

c) Pontualidade: pontual;

d) Afetao do objeto: total;

e) Individuao do objeto: alta, referencial, animado e caracterstico.

Dentre as caractersticas enumeradas por Hooper & Thompson (1980), Givn

(1984) elege duas de extrema importncia para ele: agncia e afetao e, nesse sentido,

uma orao transitiva prototpica14

passa a ser condicionada por dois motivos: a)

presena de um agente/causa visvel, volitiva e controladora e; b) presena de um

paciente/efeito claramente visvel no registro do resultado. Para ele, essas duas noes

esto fortemente condicionadas pela propriedade oracional de perfectividade e a

conexo entre elas pode ser descrita como:

14

Em termos gerais, categoria prototpica aquela que melhor exemplifica determinada categoria. No

captulo 3 desta dissertao, trataremos com mais detalhe essa questo, quando analisarmos os exemplos

de voz mdia coletados em nosso corpus de trabalho.

Alta Transitividade Baixa Transitividade

A. Participantes 2 ou mais participantes 1 participante

B. Kinesis Ao No-ao

C. Aspecto Tlico Atlico

D. Pontualidade Pontual No Pontual

E. Volitividade Volitivo No volitivo

F. Afirmao Afirmativo Negativo

G. Modo Real Irreal

H. Agncia Agente com alto potencial Agente com baixo potencial

I. Afetao do objeto Objeto totalmente afetado Objeto no afetado

J. individuao do objeto Objeto altamente individuado Objeto no individuado.

28

a) Afetao do paciente: "Quanto mais completo um evento, mais provavelmente o

paciente registra ao mximo o efeito da ao."

b) Eficcia do agente: "Quanto mais completo e bem sucedido o evento, mais provvel

que o agente seja a causa efetiva, direta e deliberada dessa realizao".

Portanto, para Givn, so exemplos de oraes prototpicas as seguintes

construes do ingls: a) Mary cuts the meat (Mary corta a carne); e b) John destroyed

the house (John destruiu a casa). Todavia, como a noo de transitividade prototpica

pode nos auxiliar no estudo da voz mdia? Essa pergunta nos remete diretamente ao

modelo cognitivo proposto por Langacker (1991), cujo esquema ser utilizado para

esclarecer as diferenas de sentido existentes entre as vozes verbais do grego a partir da

seo a seguir.

1.1.1 O Modelo "Bola de Bilhar" de Langacker

O modelo "Bola de Bilhar" consiste em um modelo cognitivo. Segundo a

gramtica cognitiva, os significados devem ser analisados em relao aos domnios

cognitivos, os quais podem ser definidos, consoante Langacker (1987), "como o

contexto de caracterizao de uma unidade semntica" e, dessa forma, eles podem ser

vistos como a base do conhecimento em relao ao qual o sentido de uma expresso

pode ser avaliado15

. Um modelo cognitivo pode se apresentar de uma forma mais

idealizada ou arquetpica, idealizao essa que nos conduz noo de modelo cognitivo,

exatamente o que constitui a "Bola de Bilhar", de Langacker, um modelo cognitivo

arquetpico que estrutura a concepo que temos acerca dos eventos e que concebe o

mundo como contendo objetos que esto em constante movimento, fazendo contato uns

com os outros, participando de interaes energticas. A figura 1 representa essa noo.

Figura 1 - O modelho Bola de Bilhar de Langacker

Conforme a figura, uma entidade (representada pela bola), carregada com

energia, entra em contato com a segunda entidade. O resultado a transmisso da

energia da primeira fonte para a segunda, cuja representao feita pela flecha. Essa

segunda entidade entra em contato com uma terceira e, ento, repete-se o processo de

15

Conforme ressalta Allan (2003), uma unidade lingustica invoca mltiplos domnios cognitivos, cujo nmero no pode ser muito bem delimitado. Essa seria a viso enciclopdica da semntica (em oposio viso dicionrio), na qual afirma-se que no h limite especfico entre o conhecimento lingustico e o no-lingustico.

29

transmisso de energia, que pode continuar de forma ininterrupta, at que uma entidade

absorva a energia e passe por uma mudana de estado, o que passa a ser representado na

figura 2:

Figura 2 - A transmisso de energia na orao transitiva prototpica

No caso do evento transitivo prototpico, o agente o incio da cadeia da ao e

a cauda, o paciente. Esse modelo representa o papel mais prototpico de

agente/paciente. E assim explica o autor:

O agente arquetpico uma pessoa que volitivamente inicia uma atividade

fsica, resultando, por meio de contato fsico, numa transferncia de energia a

um objeto externo. Seu oposto o paciente arquetpico, um objeto inanimado

que absorve a energia transmitida via contato fsico iniciado externamente e,

assim, passa por uma interna mudana de estado. (LANGACKER, 1991, p.

285).

O modelo "Bola de Bilhar" ser retomado mais adiante, a fim de explicitarmos

as particularidades de sentido presentes nos verbos gregos construdos na voz mdia.

Vale ressaltar que, diante da riqueza e da grande variedade da experincia humana, nem

toda orao se enquadra nesses arqutipos. Langacker (1991) descreve o paciente

arquetpico como o objeto afetado no evento, porm h uma classe de pacientes que so

os objetos criados, os quais no possuem existncia prvia, mas surgem a partir do

prprio evento, como na frase, Ela construiu uma casa. Esses objetos no costumam

ser distintos,16

porm a noo de uma orao transitiva prototpica importante para as

relaes gramaticais que envolvem sujeito e objeto, pois, a partir delas, os papis

semnticos podem ser estabelecidos, os quais so de extrema importncia na anlise da

diferena de sentido na variao de voz nas construes verbais do grego antigo. Em

sua lista de papis semnticos, Langacker (1991), estabeleceu os seguintes:

16

No nosso objetivo, contudo, aprofundar nessa questo dos diferentes tipos de objeto que podem no

se enquadrar no modelo cognitivo de Langacker (1991). Por hora, as noes apresentadas pela teoria do

autor se voltaro ao estudos das vozes verbais do grego antigo.

30

Agente e paciente

Instrumento: um objeto fsico manipulado pelo agente para afetar o paciente

e, portanto, servir como um intermedirio na transmisso de energia.

Experienciador: uma entidade animada engajada num evento mental.

Zero: uma entidade que meramente ocupa um lugar ou exibe uma

propriedade esttica.

O prprio autor admite ser essa uma lista inicial, dando margem incluso de

novos papis semnticos. Allan (2003) ao aprofundar nos estudos lingusticos do

verbo grego, amplia essa lista, acrescentando-lhe as seguintes categorias:

Beneficirio: uma entidade animada que recebe benefcio como resultado do

evento.

Recipiente: uma entidade animada para cuja posse algo transferido.

Causa: uma entidade inanimada que causa uma mudana fsica ou mental

em outra entidade.

Fonte: o local a partir do qual se move uma entidade ou, metaforicamente, o

estmulo de um processo mental.

Objetivo: o local para o qual uma entidade se move.

A fim de elucidarmos um pouco essas categorias, seguem trs frases extradas da

obra Biblioteca, de Apolodoro, em que identificamos alguns desses papis semnticos.

a) *...+ - [...] Hracles recebeu uma espada de

Hermes - Apol. Biblio. 2.4.11

Sujeito recipiente:

Hracles.

Verbo: receber, 3 singular, aoristo do

indicativo ativo - recebeu

Objeto direto:

espada.

31

b) *...+ , *...+ -

Hracles, aps ver Folo morto, enterrou-o [...] - Apol. Biblio. 2.5.4

Sujeito agente: Hracles. Verbo: enterrar, 3

singular, aoristo do

indicativo ativo. - enterrou

Objeto paciente: ele.

c) [...] *...+ - Hracles purificado por Tspio -

Apol. Biblio. 2.4.11

Sujeito paciente: Hracles. Verbo: purificar, 3

singular, aoristo do

indicativo passivo. - foi

purificado

Agente da passiva

animado: por Tspio.

Os papis semnticos, tal qual apresentados nos trs exemplos, sero abordados

com maior nfase nas sees sobre as vozes verbais gregas, analisando-os a partir de

exemplos contextualizados, com base na ditesis correspondente a cada uma delas. Na

seo a seguir, trataremos teoricamente das trs vozes verbais que contempla o grego

antigo, comeando pela ativa, seguida pela passiva e concluindo na mdia.

1.2 A VOZ ATIVA

Conforme mencionamos na seo anterior, uma importante ferramenta para o

auxlio dos estudos de vozes verbais a anlise dos papis semnticos dos sujeitos, os

quais nos ajudam a elucidar as diferenas de sentido existentes nas variedades de

construo verbal. Para os falantes de portugus, de maneira geral, uma construo ativa

gira em torno de um sujeito agente que executa uma ao sobre um objeto paciente,

sendo o verbo que expressa esse processo, transitivo direto tal como esboado em frases

como: Maria chutou a bola e Paulo devorou o bolo. Em grego, bastante semelhante ao

mecanismo do portugus, o sujeito da voz ativa configura-se como agente do processo,

no entanto o verbo no necessariamente deve ser transitivo direto, conforme apontam os

exemplos abaixo:

32

a) O menino est em casa

b) O menino corre

c) O menino come carne

Nas sentenas (a) e (b) acima, os verbos e so intransitivos, mas

empregam a forma padro para os verbos gregos que chamada ativa. Das trs

sentenas, contudo, apenas a terceira possui um verbo transitivo, (come). Nesse

caso, o termo ativa mais apropriado, porque o sujeito gramatical realiza a ao e o

verbo possui um objeto direto, (carne). Goodwin (1930) refora essa ideia ao

afirmar que na voz ativa, o sujeito representado como agente como nos exemplos:

, eu viro meus olhos; , o pai ama

seu filho; , o cavalo corre.

Segundo Conrad (2003), essa forma padro geralmente chamada de ativa,

embora essa categorizao no seja relevante, a menos que o verbo seja transitivo.

Retomando nossas reflexes sobre o conceito de transitividade prototpica, uma orao

ativa, tradicionalmente, conta com um verbo transitivo direto e, consequentemente um

objeto direto, com um sujeito que realiza a ao expressa por esse verbo. Assim, a

orao c. preencheria todos esses requisitos e, portanto, seria o exemplo que melhor

representaria uma construo ativa. O gramtico francs Humbert (1964) traz em sua

obra explicaes bastante pertinentes e aprofundadas acerca das vozes e, muitas vezes,

mais completas que muitos outros trabalhos lingusticos. O autor aponta para

importantes consideraes acerca da voz ativa.

Para a forma, fcil definir a ativa por suas desinncias que, com exceo do

perfeito, ope-na vigorosamente mdia: mas difcil precisar, do ponto de

vista da significao, os valores que lhe so prprios. Dizer somente que ela

exprime uma atividade ou ao no mais que indicar a mais aparente de

suas caractersticas: com efeito, se essa noo evidente numa construo

como (ter um cavalo), ela se atenua notavelmente numa

construo intransitiva, como (portar-se bem) e desaparece em

(receber os benefcios, ser bem tratado), que exprime muito bem

um estado devido atividade de um outro, o qual serve, frequentemente, de

passiva a (fazer o bem). Notemos que bastante improvvel que

33

esse mesmo verbo , que se liga palavra , a qual define a

passiva, seja de forma unicamente ativa.17

(p.130)

Por conseguinte, o autor afirma que a ativa exprime, ento, quer uma ao que se

aplica a um objeto (construo transitiva), quer uma ao que no comporta um objeto

(construo intransitiva), quer um estado. Quando um verbo ativo (intransitivo) exprime

um estado, aproxima-se, pelo sentido, a um passivo; certos empregos do intransitivo

podem parecer, primeira vista, como transitivos e semanticamente prximos a um

mdio; enfim, a (energia) da ativa, que parece mitigar quando o verbo exprime

um estado, refora-se quando a mesma voz assume um valor causativo. Mas se h

construes transitivas e intransitivas, nenhum verbo , por si prprio, transitivo ou

intransitivo: tudo o que possvel dizer que tal verbo comporta normalmente um

objeto direto, mas o verbo o mais constantemente transitivo pode sempre ser empregado

sem o objeto direto. No grego clssico, em se tratando dessa categoria, duas noes

devem ser ressaltadas: agentividade e transitividade. Esta, embora menos representada,

intervm de forma central em variaes entre ativa e passiva e ativa e mdia; aquela, por

sua vez, j se faz presente em todas as realizaes da ativa. Do ponto de vista da

transitividade, Givn (1984) define uma orao transitiva prototpica pela a) presena de

um agente/causa visvel, volitivo e controlador e; pela b) presena de um paciente/efeito

visvel, de forma clara, no registro do resultado. Com efeito, o autor afirma que "a

ditesis ativa apresenta uma ao, no sentido mais amplo da palavra, que se enuncia a

propsito de seu agente ou iniciador, que o tpico do discurso (GIVN, 1983, p.9); e

na ditesis ativa em que h a unio das funes agente e sujeito tpico, a qual passa a

ser uma exclusividade da construo ativa.

Se pensarmos no modelo cognitivo proposto por Langacker (1979) para resumir

os traos da voz ativa poderamos eleger esquema representativo da figura 3.

Figura 3 - A voz ativa no modelo cognitivo de Langacker

17

Traduo nossa.

A B

34

O sujeito, representado por A, tem funo de agente e incide sobre o objeto

paciente, representado por B, e o processo expresso pelo verbo fica representado na

flecha. Conforme vimos, as construes ativas do grego antigo nem sempre

contemplam verbos transitivos direto e, por isso, o esquema de representao acima

abarca a construo ativa prototpica. A transitividade envolve uma escala baseada

numa srie de traos do elemento sujeito, do elemento objeto e do predicado verbal.

Estruturas altamente transitivas so aquelas em que h um fluxo de energia

progressivo que se encaminha do agente da ao, o qual atua de forma voluntria,

at um objeto pr-existente, que no resultado da ao, individuado, isto ,

definido ou diferenciado, possvel de se perceber que foi afetado pelo fluxo de

energia. Em relao ao elemento verbal, os requerimentos com tendncia a ser

cumpridos so designar uma ao sem prolongamento indefinido, que tenha seus

limites e, alm disso, um modo factual, com uma referncia especfica, com

polaridade positiva. Sero menos transitivas, portanto, as estruturas em que falte

algum desses elementos como, por exemplo, no caso de uma m diferenciao entre

objeto e predicado verbal, ou em que o sujeito no seja conhecido ou humano e a

situao designada no seja um feito ou se plante com limites difusos.

Vasquez-Yamuza (1999) so autores da gramtica funcional-cognitiva do grego

antigo, em que utilizam as novas abordagens da Lingustica Cognitiva para tratar das

particularidades da categoria voz. Acerca da ao transitiva, a tabela 6 rene os

principais traos indicados pelos autores.

Tabela 6 - A ao transitiva do ponto de vista funcional-cognitivista

Predicado Ativo Sujeito Nominativo Objeto Acusativo

Ao manipuladora Agente Paciente

> fluxo de energia + controle - controle

+ dinamismo - afetao + afetao

+ tlica + definio + pr-existncia

+ perfectiva + humano + definio

+ positiva

+ factual

+ especfica

Os autores afirmam que a condio sine qua non para que haja uma ao a

apresentao agentiva da situao, isto , a apresentao do ponto de vista do agente ou

35

iniciador real ou suposto, j que os predicados de ao constituem como a zona

funcionalmente ativa dentro da categoria. A caracterstica bsica da ao transitiva

constar de dois participantes, com o que garanta a possibilidade de variaes ou

alteraes da perspectiva desde a que se represente a ao. Nesse sentido, tal como

afirmava Givon e mencionado acima, as duas principais noes presentes na

configurao dessa categoria so a agentividade e a transitividade. De maneira geral,

essa condio de um sujeito-agente um trao de fcil identificao na maioria das

ocorrncias de voz ativa, tais como nas frases abaixo:

a) . Hracles com as mos

aniquilou as serpentes. (Apol. Biblio. 2.4.8)

b) . Anfitrio o enviou,

novamente, aos rebanhos. (Apol. Biblio. 2.4.9)

c) Hracles perseguiu a cerva. (Apol. Biblio.

2.5.3)

d) O javali devastou a Psfida. (Apol. Biblio. 2.5.4)

Segundo Vasquez-Yamuza (1999), alm desse trao do trao agentividade, a voz

ativa pode ser analisada a partir do predicado, cuja construo, nessa categoria pode

envolver trs grupos: manipulao, transferncia e traslado. Em todas essas categorias

h traos fundamentais, porm, cabe ressaltar que elas, embora expressam perfeitamente

a ditesis ativa, no so uma exclusividade desta. Acerca dessas trs possibilidades de

sentido na ativa, temos:

a) Na manipulao, um agente que atua sobre uma outra entidade, com ou sem a ajuda

de um instrumento, e pode ser expressa em predicados como fazer; destruir, degolar,

matar, alterar, romper, cortar, dentre outros, exercidos materialmente. Vale lembrar

que no caso de verbos como destruir, matar, degolar e cortar, o paciente uma

entidade pr-existente; por exemplo:

36

Ex.1) *...+ . - [Hracles] degolou uma das vacas de

Hades. (Apol. Biblio. 2.5.12)

(verbo

) 3 p.sg

aoristo

Predicativo ativo (Sujeito nominativo) Objeto acusativo

Ao manipuladora agente paciente

degolou Hracles Uma das vacas

Ex.2) - Hracles matou Euritio. (Apol. Biblio.

2.5.5)

(verbo

) 3 p.sg

aoristo

Predicativo ativo (Sujeito nominativo) Objeto acusativo

Ao manipuladora agente paciente

Matou Hracles Euritio

Ex.3) *...+ * + - Hracles construiu um altar de

Cenaio Zeus - (Apol. Biblio. 2.7.7)

(verbo

) 3 p.sg aoristo

Predicativo ativo (Sujeito nominativo) Objeto acusativo

Ao manipuladora agente paciente

Construiu Hracles altar

No caso do terceiro exemplo, verbo construir, o paciente no pr-existente e,

por essa razo, Vasquez e Yamuza (1999) tambm afirmam que o grau de transitividade

em oraes desse tipo menor em relao quelas em que o paciente pr-existe.

b) Na transferncia, como um modelo mental bsico com uma transitividade alta, h

duas entidades, geralmente humanas, e um objeto paciente que se transfere de uma para

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=*dio%5Cs&la=greek&prior=a)krwthri/w%7Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=*khnai%2Fou&la=greek&prior=*dio%5Cshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=bwmo%5Cn&la=greek&prior=*khnai/ouhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=i%28dru%2Fsato&la=greek&prior=bwmo%5Cnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=i%28dru%2Fsato&la=greek&prior=bwmo%5Cnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=bwmo%5Cn&la=greek&prior=*khnai/ou

37

a outra. Segundo os autores, h esquemas semnticos bem diferenciados, o da

transferncia propriamente dita e o da recepo. O primeiro impe a perspectiva do

doador e supe a presena de um receptor e um paciente. Nesse prottipo, o doador

agente, caracterizado fortemente pelo trao + controle. Os predicados que mais

recorrem a esse prottipo so os de significado dar, ordenar, dizer, ensinar, recordar.

Ex.1) * +

- Euristeu ordenou a Hracles como nono trabalho capturar o cinturo de Hiplita -

(Apol. Biblio. 2.7.9)

- verbo

3 p.sg

aoristo

Predicado ativo Sujeito nominativo Objeto acusativo Objeto dativo

Ao de

transferncia

Agente Paciente Receptor

ordenou Euristeu trabalho A Hracles (a ele)

Conforme assinalado, na frase temos o agente doador Euristeu, o receptor,

Hracles, e o objeto paciente trabalho que transfere entre ambos. E como ltima

categoria temos:

c) Traslado18

: envolve predicados de movimento como trazer, transportar, mover,

conduzir com uma configurao em que juntamente com o agente aparece um paciente

com especificaes da trajetria (direo, rota, origem etc), podendo esses elementos

virem isolados ou juntos.

Ex.1) *+ *+

- Hracles, aps capturar as vacas, conduziu-as ao Helesponto. (Apol.

Biblio. 2.5.10)

18

interessante notar que a voz ativa contempla verbos que indicam traslado, ao mesmo tempo em que

inmeros so os verbos mdios que tambm so construdos nesse sentido. Voltaremos a abordar essa

questo no captulo 4 desta dissertao.

38

- verbo

3 p.sg

aoristo

*+

Predicado ativo Sujeito nominativo Objeto acusativo Objeto + acus.

Ao de traslado Agente Paciente direo

conduziu Hracles vacas Ao Helesponto

Ex.2) . -

Aps mostrar a Euristeu, Hracles levou o Crebro de volta ao Hades. - (Apol. Biblio. 2.5.10)

- verbo

3 p.sg

aoristo

Predicado ativo Sujeito nominativo Objeto acusativo Objeto + acus.

Ao de traslado Agente Paciente direo

levou Hracles Crebro Ao Hades

Assim se completam, do ponto de vista funcional-cognitivo, todas as

possibilidades de construo de sentido de um predicado ativo. Vale ressaltar que, de

maneira geral, todos eles envolvem uma ao com um sujeito agente e um objeto

paciente e a partir desse prottipo surgem as variaes de sentido. Vasquez e Yamuza

(1999) ainda fazem um comentrio sobre a modalidade experincia19

, tratando desse

trao da seguinte forma:

A experincia , em grego antigo, um trao a mais que diferencia as

atividades especficas do ser consciente: intelectuais e emotivas. No existem

traos especficos para expressar experincias. Pode tratar-se de aes,

processos ou existncias. O comportamento a respeito ditesis variar

segundo se trate de experincias de um tipo ou de outro. Assim, o jogo de

vozes se realizar notavelmente bem, sobretudo, no jogo ativa/passiva, se o

predicado supe uma experincia concebida como ao transitiva. (p.227)

19

Ao longo desta pesquisa, nossa ateno para os verbos cujo significado envolvia alguma experincia, geralmente sensorial, foi exclusiva queles construdos em voz mdia, uma vez que trabalhamos com dois grupos de classificao que envolvem essa categoria. Com efeito, no nosso propsito aprofundar no trao experincia em predicados ativos e passivos, para tanto cf. Vasquez e Yamuza (1999).

39

O trao experincia se apresenta, principalmente, no verbos sensitivos, o que

nos remete a outra questo: a maioria dos verbos sensitivos em grego podem ou so

construdos na forma mdia, portanto, quando construdos na ativa, h prejuzo de

sentido ou total equivalncia? Existem, de fato, afinidades semnticas entre a ativa e a

mdia, as quais, muitas vezes, tornam-se estreitas e dificultam uma distino mais

aparente entre elas. Esse fato pode, inclusive, ser precursor de inferncias com relao

existncia de verbos unicamente ativos ou mdios (depoentes). Cabe, contudo, trabalhar

essa hiptese a partir da comparao de verbos de mesmo radical. Trabalharemos nesta

dissertao com a ideia de que a voz ativa pode ser vista como neutra em relao aos

principais traos da voz mdia e toda essa discusso ser feita com mais

aprofundamento a partir da seo 1.4, na seo de voz mdia e se estender at o

captulo 4, em que criamos a oposio ativa vs mdia, por meio da comparao de

sinnimos e traos distintivos de significado. Na seo a seguir trataremos da voz

passiva no grego antigo, elegendo seus principais traos, as afinidades e as diferenas

em relao s outras vozes apresentando e analisando alguns exemplos de seu uso.

1.3 A VOZ PASSIVA

De maneira geral, a voz passiva do grego antigo, e tambm, se pensarmos, na

grande maioria das lnguas antigas e modernas, configura-se como um sujeito cujo

papel semntico o de paciente. Assim a define Goodwin (1930) com base em

exemplos apresentados em sua gramtica, tais como:

, o filho amado por seu pai. A passiva possui as mesmas desinncias que a

mdia no presente e pretritos perfeito, mais que perfeito e imperfeito, sendo essas

formas denominadas mdio-passivas, s quais cabe um olhar mais aprofundando em

relao ao seu significado. Os tempos futuro e aoristo possuem desinncias diferentes

para cada uma das vozes. O sujeito da ativa, agente, geralmente expresso, quando

transposto para uma construo passiva, pela preposio + genitivo e, no caso de

um agente inanimado, a construo pode ser feita com dativo. Ainda do ponto de vista

dos gramticos, Humbert (1964) aponta para o surgimento da voz passiva como uma

inovao do grego, cujo mecanismo se assemelha ao que encontramos, hoje, nas lnguas

modernas e afirma:

O verbo indo-europeu que se colocava no ponto de vista da ao (ativa) ou

do agente (mdia) sentia pouca necessidade sem dvida de ter uma formao

independente da passiva: somente algumas razes, em certos tempos como o

40

perfeito de forma mdia, podiam receber um sentido passivo, como em

snscrito Dad - ele (ou foi) dado. A criao de um passivo com o auxlio

das desinncias mdias uma criao do grego: a inovao respondia, alm

disso, s tendncias gerais, j que ela produzida noutras lnguas de modo

comparvel. De fato, a passiva no simplesmente, como tendemos a

acreditar, o contrrio da ativa: se essas duas frases Pierre ama Paulo e Paulo

amado por Pierre so logicamente equivalentes; a primeira corresponde a

um tipo fundamental, ao passo que podemos assistir, mesmo em grego, ao

desenvolvimento progressivo da segunda. Em particular, na expresso de

agente responsvel pelo estado sofrido no h nada de indispensvel, falta

normalmente a certos temas, como aquele do perfeito que desempenhou

precisamente um papel importante na constituio da passiva20

. (p. 135)

Consoante Conrad (2003), quando um verbo transitivo possui um objeto direto,

como na sentena O garoto come carne, a orao pode ser convertida numa forma

passiva, na qual o objeto direto da orao original torna-se o sujeito na nova orao e o

verbo da orao original reformulado, normalmente, com o auxiliar ser e o pretrito

do verbo. A sentena Carne comida ou Carne est sendo comida alterna o foco

entre a pessoa realizando a ao e a pessoa ou coisa que se submete ao. Isso, numa

orao passiva, o que costumamos chamar de um sujeito gramatical recipiente ou

experiente da ao ou do processo indicado pelo verbo. Quanto a esse aspecto, cabe

ressaltar que afirmar, simplesmente, que numa orao transitiva direta em voz ativa, a

passiva se constri a partir da inverso de papis entre sujeito e objeto se aproxima mais

de um recurso didtico e de mecanismo formal, desconsiderando todas as possveis

nuanas de significado capazes de surgir nessa mudana. importante lembrar que o

agente da passiva pode ou no ser expresso, algo de muito significado do ponto de vista

discursivo, uma vez que pode, por exemplo, representar uma omisso de

responsabilidade ou preservao da face por parte do enunciador. As alternncias de

sentido que acompanham a transposio ativa/passiva foi abordada em importantes

estudos lingusticos, como em Lyons (1979); Hillari (1978), Fiorin (2003), dentre

outros, de modo que esse assunto no ser abordado com maior nfase neste trabalho.

Se pensarmos no esquema de representao para o sentido da voz passiva,

baseado no modelo cognitivo de Langacker, teremos o que demonstrado pela figura 4.

20Traduo nossa, grifo do autor.

41

Figura 4 - A voz passiva no modelo cognitivo de Langacker

Nesse esquema, o sujeito A paciente e sofre a ao representada pela seta. A

entidade B pode ser considerada o agente/causa, nem sempre explcito na orao. Ao

longo de nossa pesquisa, exemplos de construes passivas, embora recorrentes, no se

mostraram muito frequentes nas narrativas de Apolodoro. No entanto, os exemplos

resumem bem o que chamamos de prottipo passivo, isto , aquele em que o sujeito, na

orao, configura-se como paciente, tal como em:

a) - Hracles foi

ensinado por Anfitrio a conduzir o arado.

b) - Hracles foi ensinado

por Autlico a lutar corpo a corpo.

c) - Hracles foi ensinado

por urito a atirar com o arco.

d) - Hracles foi

ensinado por Castor a combater.

e) - Hracles foi ensinado

por Lino a tocar lira.

f) - Hracles purificado por Tspio.

g) ,

- Hracles foi para Tirinto e realizou o que fora ordenado por Euristeu.

A B

42

Note que nas oraes acima, os verbos apresentam as desinncias passivas,

concordando com o sujeito que sofre a ao expressa por esses verbos, sendo, portanto,

um sujeito-paciente. Como em portugus, a exigncia para uma construo passiva

um verbo transitivo em que o foco passa a incidir nesse sujeito. Conforme salientamos,

h formas denominadas mdio-passivas, sobre as quais Conrad (2003) faz meno em

seu estudo, apontando expresses que ele denomina nem ativas nem totalmente

passivas, tais como:

a. .

O menino corta o cabelo (= tem seu cabelo cortado)

b. ` .

A cada dia, o menino acorda na primeira hora da manh.

c. .

O menino ser batizado amanh.

Em cada uma das trs sentenas, o verbo grego formulado numa forma de voz

que no exclusivamente nem ativa, nem passiva. Os verbos na sentena a e na

sentena b so tradicionalmente classificados como mdio-passivos, enquanto o verbo

da sentena c tradicionalmente classificado como passivo. Todos esses verbos, na

verdade, segundo o autor, pertencem a um morfoparadigma21

que possui flexibilidade

no sentido verbal e podem flutuar entre noes intransitivas de entrar num estado,

condio ou atividade e noes transitivas indicativas de aes sendo realizadas por um

sujeito gramatical. o que chamado no grego de mdia-passiva22

, uma categoria

gramatical que normalmente oferece dificuldade para sua compreenso. importante

lembrar que o morfoparadigma flexivo, nem passivo, nem mdio, mas mdio

passivo, e indicativo do fato de que um sujeito gramatical entra num novo estado,

condio ou ao, seja por vontade prpria ou devido a um estmulo externo ou causa

ou espontaneamente.

Do ponto de vista funcional-cognitivo, Vasquez-Yamuza (1999) tratam da

ditesis passiva da seguinte forma:

21Termo criado pelo prprio autor e que se refere a um paradigma conjugacional de um sistema verbal. consistentemente usado para retratar uma categoria distinta ou combinao de categorias de informao verbal. 22

Mdio-passiva uma das classificaes utilizadas por Allan (2003) que ser debatida e analisada, em especial, no captulo dois desta dissertao.

43

A ditesis passiva tem como trao central tratar-se de apresentaes no

agentivas, reduz-se ou elimina a importncia dos elementos dos quais

habitualmente parte o fluxo de energia e se potenciam elementos cuja funo

semntica genrica a meta do fluxo de energia. Tal como se percebe, h

uma proximidade importante com o esquema que apresentam os processos.

Mas o peculiar da ditesis que apresenta marcos alternativos de um mesmo

predicado lxico. Nesse caso, a alternncia mais relevante se produz entre

aes e processos. A apresentao desagentiva (no agentiva) leva acoplada

uma srie de traos que so mais dominantes em alguns prottipos que em

outros. Os traos so: ausncia de controle do elemento sujeito, afetao e

fluxo de energia ou dinamismo. Os prottipos so dinmicos, estticos,

facilitadores e impessoais23

. (p.255)

A gramtica funcional-cognitiva do grego antigo elege a possibilidade de quatro

prottipos para o emprego da passiva, dentre as quais temos:

a) A passiva como processo (prottipo dinmico), de carter menos esttico, em que

ocorre uma apresentao no agentiva de um evento, isto , um processo. Nesse marco

predicativo processado, comum a presena de um satlite que pode ser agente/causa.

Por exemplo:

Ex1) - Por outro lado, mais

uma razo para que voc seja condenado. (Demstenes, Discu. 23 99)

b) Prottipo esttico, em que, para o paciente, so importantes as noes de agente e

ao, presentes na ditesis ativa. O foco incide no efeitos da ao com apresentao

esttica, com predicados muito prximos ao sentido existencial. o prottipo de menor

transitividade, recorrente em construes de tempos verbais no cinticos, como

presente e perfeito; o sujeito pode ser pouco definido ou pouco individuado e a

tendncia no apresentar o satlite causa/agente. Ademais, segundo Vasquez-Yamuza

(1999), nesse prottipo, em termos de morfologia, as predicaes so construdas com

muita frequncia por meio de verbos no perfeito e no particpio, este ltimo, pelo carter

adjetivo nesses ocasies, acaba por diminuir a expresso de ao.

23

Traduo nossa.

44

Ex1) [...] - [...] Tendo sido enfurecido, o

deus tornou o touro selvagem. (Apol. Biblio. 2.5.7)

Ex2) *...+ , ,

, *...+ - [...] se, aps uma

relao sexual, dessem luz uma menina, criavam-na, e esmagavam o seio direito, para que no fossem

impedidas de usar a lana [...] (Apol. Bblio. 2.5.9)

c) Passiva Facilitadora: um emprego de passiva menos recorrente no grego antigo,

segundo Smyth (1920), porm com alguns exemplos na lngua. Do ponto de vista do

sentido,essa construo se aproxima das construes do portugus do tipo Ele se deixou

levar pela emoo; Deixou-se impressionar pela revelao. Ademais, outros exemplos

de passiva facilitadora envolvem construes com o verbo no imperativo, o que sugere a

presena de um agente e torna comum o uso de satlites agente/causa; de maneira geral,

os grupos de predicados facilitadores poderiam ser parafraseados por construes como:

aceito que, no tolere eu que etc.

Ex1) *...+ *...+ *...+ - David, que foi

declarado filho de Deus em poder [...] (Novo Testamento, Romanos 1)

d) Passiva Impessoal, cuja nfase est no prprio processo verbal, geralmente

formalizada em predicaes de ditesis e morfologia passivas em frases em que no h

a presena de um sujeito. nessa construo que ocorre toda a perda de transitividade

da frase, ou seja, torna-se difcil diferenciar a ao do resultado da ao ou processo e

processado. O predicado precisa estar na terceira pessoa, singular ou plural, algo pouco

comum no grego antigo.

Ex1) *...+ - A grande

Babilnia foi lembrada aos olhos de Deus [...] (Novo Testamento, Rev. 16)

Por fim, sobre a passiva impessoal, Vasquez e Yamuza (1999) alertam para a

predicao com sujeito correferente (zero), ao qual se aproxima o sujeito causal, um

tema de uma experincia verbal. Nesse caso, faltam participantes animados implicados

45

no evento, falante e receptor, sem insistncia na experincia. Nessas construes

passivas o tema da experincia promovido posio de tpico; so impessoais no

sentido que os participantes pessoais foram retirados da situao.

Ex2) , / , / , /

, / , / . - Deus24 foi

revelado em carne / justificado no esprito / contemplado por anjos / proclamado em naes / co