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1 UNICURITIBA – CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDADANIA LUCIANE MARIA TRIPPIA A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO E AS COTAS RACIAIS CURITIBA 2014

UNICURITIBA – CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA … · E AS COTAS RACIAIS Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário

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UNICURITIBA – CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDAD ANIA

LUCIANE MARIA TRIPPIA

A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO E AS COTAS RACIAIS

CURITIBA 2014

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LUCIANE MARIA TRIPPIA

A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO E AS COTAS RACIAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Milléo Baracat

CURITIBA 2014

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LUCIANE MARIA TRIPPIA

A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABA LHO

E AS COTAS RACIAIS

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba,

pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

Presidente:

___________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo Milléo Baracat

Membros:

___________________________________________________________ Professor Doutor Luiz Eduardo Ghunter

___________________________________________________________ Professora Doutora Silvana Souza Netto Mandalozzo

Curitiba, 13 de junho de 2014.

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Dedico esse trabalho a todas as mulheres negras que sentiram (e sentem) na “pele” as dores da desigualdade ...

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AGRADECIMENTOS

Ao meu querido avô Antonio Firakowski (in memorian), homem de uma

simplicidade singular, religioso, paciente professor, íntegro magistrado, que em sua

conduta elegante, apresentou-me o caminho do Direito ...

Aos meus familiares, especialmente ao meu filhinho Gabriel (quem,

espero, leve consigo o senso de igualdade presente nesta pesquisa), pelo apoio e

compreensão nos momentos de ausência.

Às admiráveis pesquisadoras Nádia Regina de Carvalho Mikos (que me

incentivou a fazer o mestrado), Andréa Vieira Zanella (que me mostrou os caminhos

da pesquisa), e a profª Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr (que sempre muito

prestativa, me deu grande incentivo nesta jornada).

Ao meu orientador Prof. Dr. Eduardo Milléo Baracat (a quem tenho profunda

admiração) pela orientação e ensinamentos transmitidos.

Ao queridíssimo Prof. Luiz Eduardo Gunther, que muito me ajudou com as

dicas e sugestões de leitura no decorrer das aulas (e também após, nos corredores

da faculdade!).

Ao Prof. Dr. Daniel Ferreira e Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes

Bertoncini, pelas boas discussões acerca do tema.

Aos meus queridos professores, amigos e colegas, de ontem e hoje, que

muito contribuem para o meu desenvolvimento humano e profissional, e sem os

quais a minha vida não teria sentido.

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RESUMO

O princípio fundamental e universal da não discriminação tem previsão ampla, incidindo no campo trabalhista, onde é comum a ocorrência de práticas discriminatórias. Embora a sociedade brasileira, em geral, negue a existência de racismo, a discriminação existe, conforme apontam pesquisas, e, portanto, precisa ser combatida. De outro lado, a atividade empresarial, influenciada pelo fenômeno da globalização, além de ter papel fundamental na geração de empregos e impostos, capaz de colaborar no atendimento das demandas sociais pelo Estado, também pode atuar na inclusão de grupos vulneráveis, como as trabalhadoras negras, por exemplo. O presente artigo teve por objetivo, diante da ocorrência de discriminação de gênero e racial no mercado de trabalho, verificar a possibilidade de utilização de cotas para mulheres negras, como medida de inclusão social, problematizando a possibilidade de essas serem utilizadas como instrumentos no combate às práticas discriminatórias, especialmente se adotadas pelo setor privado. Releva-se que tais medidas afirmativas já são usadas, de diferentes formas, pelo ordenamento jurídico brasileiro (portadores de deficiências, nas universidades, no serviço público estadual, no âmbito eleitoral, entre outros). Para tanto, foi pesquisado a situação da mulher negra no mercado de trabalho no Brasil, sendo verificada a ocorrência de discriminação de gênero e raça simultaneamente. Constatou-se a existência de diversas legislações acerca do tema, tanto no âmbito nacional com internacional. Entretanto, diante da ocorrência de práticas discriminatórias em relação à trabalhadora negra, foi verificada a possibilidade de utilização de cotas raciais, como instrumento para combatê-las e eliminá-las, através da utilização pela atividade empresarial, por conduta voluntária (ética), em consonância com o Estatuto da Igualdade Racial. Concluindo-se, após pesquisa bibliográfica realizada, que atividade empresarial, agindo com ética, poderá implementar ações afirmativas (cotas), contribuindo, assim, no combate à discriminação das trabalhadoras negras, e, com isto, estará colaborando para a inclusão social, e dando suporte para a existência de uma sociedade sustentável.

Palavras-chave : Discriminação – gênero – raça – mercado de trabalho – ações afirmativas – cotas – ética empresarial – responsabilidade social.

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ABSTRACT

The fundamental and universal principle of non-discrimination has extensive forecasting, focusing on the labor field, where it is common the occurrence of discriminatory practices. Although the Brazilian society in general, deny the existence of racism, discrimination exists, as pointed searches, and therefore needs to be tackled. On the other hand , business activity , influenced by globalization , and play a critical role in generating jobs and taxes , able to collaborate in meeting the social demands by the state , can also act on the inclusion of vulnerable groups , such as black workers for example. This article aims, before the occurrence of racial and gender discrimination in the labor market, to verify the possibility of use of quotas for black women , as a measure of social inclusion, discussing the possibility of these being used as instruments to combat discriminatory practices , especially if adopted by the private sector . It is noted that such affirmative measures are already used in different ways, by Brazilian law disabled, universities, state public service, in the electoral context , among others) . To that end, we researched the situation of black women in the labor market in Brazil, and verified the occurrence of gender discrimination and race simultaneously. Found the existence of various laws on the subject, both at the national level Internacinal. However, due to the existence of discriminatory practices in relation to the black working, there was the possibility of using racial quotas as a tool to combat them and eliminate them through the use by business activity, by voluntary conduct (ethics) in accordance with the Statute of Racial Equality . Concluding, after literature search was undertaken which business activity, acting ethically, can implement affirmative action ( quotas) , thus contributing to the fight against discrimination against black workers , and, thus , will be collaborating for social inclusion , and supporting the existence of a sustainable society. Keywords: Discrimination - Gender - Race - Job Market - affirmative action - quotas - business ethics - social responsibility.

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LISTA DE SIGLAS

CF – Constituição Federal Brasileira

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos

DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

EEOC – Equal Employment Opportunity Commission

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INSPIR – Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

ODM - Objetivo de Desenvolvimento do Milênio

OIE

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PEA – População Economicamente Ativa

Sinapir – Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial

STF – Supremo Tribunal Federal

TRT – Tribunal Regional do Trabalho

TST – Tribunal Superior do Trabalho

UNIFEM – Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1 A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL ...................................... 18 1.1. DIMENSÕES DA IGUALDADE.. ........................................................................ 18 1.1.1 Dimensão formal ............................................................................................ 22 1.1.2 Dimensão material ........................................................................................... 26 1.2. A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL ................................................. 29 1.2.1 Diferenças e desigualdades de gênero ............................................................ 29 1.2.2 A discriminação de gênero no Brasil ................................................................ 36 1.3. A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA ....................................................... 43 1.3.1 Discriminação racial ....................................................................................... 43 1.3.2 A discriminação da mulher negra ... ................................................................. 53 2 A DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA NA RELAÇÃO DE EMPREGO ............................................................................................................ 64 2.1 TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO EM FACE DA MULHER NEGRA NA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA ............................................................................... 64 2.1.1 Discriminação na fase pré-contratual .. ........................................................... 69 2.1.2 Discriminação no curso do contrato ................................................................ 75 2.2. EVOLUÇÃO NORMATIVA RELACIONADA À DISCRIMINAÇÃO RACIAL ........ 85 2.2.1 No âmbito internacional .. ................................................................................. 86 2.2.2 No âmbito nacional .......................................................................................... 89 3 A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO ............................................ 96 3.1. AÇÕES AFIRMATIVAS DECORRENTES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E DE POLÍTICAS PRIVADAS ................................................................................... 96 3.2. A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL...... 108 3.3. DESAFIOS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA ATRAVÉS DAS COTAS ........................................................................... 118 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 133

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INTRODUÇÃO

“Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e

temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí

a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença

que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.1

A frase do sociólogo Boaventura Souza Santos é importante na compreensão

do tratamento específico e particular, direcionado a comunidade negra2 nas últimas

décadas no Brasil. O Estado, visando a garantir o direito à diferença e à diversidade,

notadamente nos âmbitos do ensino, da política, e do trabalho, vem adotando

medidas nestes setores, a fim de garantir o direito fundamental igualitário.

Há muito, no entanto, que a igualdade, na forma concebida pela Revolução

Francesa (meramente formal), e nos diplomas legais que a ela se seguiram, de

cunho universalista, vem sendo entendida como contrária à discriminação. Atos

discriminatórios reduzem as perspectivas de uns em benefícios de outros,

dificultando o acesso às oportunidades, e por isto não mais são tolerados na

sociedade contemporânea.

A determinação de não discriminar, pura e simplesmente, não elimina as

distâncias existentes entre as chamadas minorias e os grupos privilegiados,

fazendo-se necessária a mutação do princípio da igualdade, a fim de incorporar ao

seu conteúdo atitudes de natureza positiva, com vistas à eliminação das

desigualdades.

Ressalta-se que igualdade e diferença possuem relevâncias diversas,

conforme estejam em questão os direitos de liberdade ou os direitos sociais. Mas

para a sua realização prática, ou seja, para que deixem de ser mera declaração

verbal, e de fato se efetivem, se faz necessária à ampliação dos poderes estatais.

Assim, torna-se imperativo ao Estado a implementação do direito a igualdade.

1 SANTOS, Boaventura de Souza, NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In:__________ (org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 53. 2 A palavra “negro”, por questão semântica, será usada no texto como sinônimo de “afro-descendente”. Será empregada como categoria sociológica, e não categoria de cor. (palavras estas utilizadas como categoria de cor, pelo IBGE)

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Nesse cenário, a igualdade passa a ter conteúdo positivo, a fim de que cada

pessoa possa exercer, em sua plenitude, as suas potencialidades, sem violência ou

discriminação. É fundamental, no entanto, conjugar a vertente repressiva-punitiva

com a vertente promocional. Sob esta perspectiva, emergem as políticas sociais, o

que se convencionou chamar de “ação afirmativa” (da qual as cotas são espécies),

visando à concretização da igualdade substancial ou material.

A relevância e atualidade do tema decorrem do fato que no Brasil há cerca de

191 milhões de pessoas, sendo 47,7% de brancos, 7,6% de negros, 43,1% de

pardos (ou mestiços), 1,1 % de amarelos ou asiáticos e 0,4% de indígenas, segundo

aponta IBGE. De acordo com este resultado, portanto, a maioria da população

residente no país é composta por negros e pardos (ou mestiços) (50,7%).3 A

pesquisa aponta um aumento de pessoas que se declararam pretas e pardas.4

Segundo Marcelo Paixão e Flávio Gomes, entre 1995 a 2006, a população

economicamente ativa (PEA) brasileira, descontando a população residente nas

áreas rurais da região Norte, apresentou um saldo líquido de ingresso de 20,6

milhões de pessoas. Quando considera grupos de cor ou raça, é verificado que,

entre os brancos, esse saldo foi de 7,7 milhões de pessoas, ao passo que entre

pretos e pardos foi de 12,6 milhões de pessoas.5

Portanto, ao longo do período analisado, a presença de pessoas negras no

mercado de trabalho, em diversos segmentos, apresentou maior dinamismo diante

do que ocorreu entre os de cor ou raça branca. As mulheres negras representaram

cerca de 6,4 milhões de pessoas a mais para o mercado de trabalho. Os homens

negros responderam pelo incremento de 6,3 milhões de pessoas. Entre homens e

mulheres brancos, respectivamente, o acréscimo de ingresso no mercado de

trabalho, entre 1995 e 2006, foi de 2,6 e 5,1 milhões de pessoas.6

3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindic sociais2013/default.shtm>. Acesso em 04 maio 2014. 4 MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Da escravidão às cotas : a ação afirmativa e os negros no Brasil. Birigui, SP: Boreal, 2013, p. 13. 5 PAIXÃO, Marcelo; GOMES, Flavio. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 304. 6 Ibid, p. 304.

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Ressalta-se que a taxa de participação na PEA, no período de 1995 a 2009,

manteve-se relativamente estável em quase todos os grupos de idade, exceto para

os grupos mais novos, de 10 a 17 anos, levando a presunção de que estejam

frequentando o ensino fundamental. Ademais, a conclusão dos níveis educacionais,

e a busca por qualificação são de suma importância para o ingresso no trabalho.7

Ainda que tenha havido um elevado acesso de mulheres negras ao mercado

de trabalho, permanece a restrição ao acesso de mulheres em geral, a alguns

segmentos. Isto ocorre tanto no serviço público, como no setor privado, razão pela

qual poderia ter levado a inclusão da letra a, no art. 373, da CLT, pela lei 9.799/99,

que trata do impedimento de acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Esta lei

também vedou a adoção de critérios subjetivos para deferimento de inscrição ou

aprovação em concursos, em empresas privadas, por razão de sexo, entre outras

exigências.8

Além do mais, ainda em relação às diferenças de gênero, observa-se que a

estrutura ocupacional entre os sexos é heterogênea, ocorrendo uma segregação

horizontal. Tal fenômeno ocorre na maioria dos países, onde o maior percentual de

mulheres está concentrado em ocupações que guardam analogia com atividades

exercidas no ambiente doméstico. Ressalta-se que tais ocupações são, geralmente,

mal remuneradas e de pouco prestígio.9

Pesquisas comprovam que a participação masculina, geralmente, é maior que

a feminina, apesar de ter havido um crescimento de 48,1% para 52,6% da

participação das mulheres, e do fato de ter ocorrido uma redução de 75% para 72%

na participação masculina da população economicamente ativa (PEA). Tal fato, ao

se comparar com a análise educacional, demonstra uma inversão de hierarquia de

gênero.10

7 LIMA, Márcia; RIOS, Flavia; FRANÇA, Danilo. Articulando Gênero e Raça: a participação das Mulheres Negras no Mercado de Trabalho (1995-2009). In: MARCONDES, Mariana Mazzini (et al.). Dossiê Mulheres Negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013, p.63. 8 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no Emprego por Motivo de Sexo. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação . 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 71. 9 Ibid, p.71. 10 LIMA, 2013, p.65.

13

As mulheres tendem a permanecer mais nas escolas do que os homens.11

Mas, por outro lado, elas acabam participando menos no mercado de trabalho, o que

indica uma inflexão distinta na trajetória feminina e masculina no mercado de

trabalho. Acrescenta-se neste resultado, também, as atribuições familiares

incumbidas pela sociedade às mulheres em geral, o que, certamente, reflete nesta

trajetória.12

Em análise de dados fornecidos pelo IBGE, contendo microdados Pnad por

atividade no mercado de trabalho, no ano de 200613, em relação às cinco principais

ocupações das mulheres, verificou-se entre as mulheres brancas que: 33,0%

estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 13,5% empregadas

no mesmo setor (sem carteira); 13,3% exerciam atividade considerada por conta

própria (sem 3º grau), 9,9% empregada pública/estatutária/militar, e 9,0%

empregada doméstica (sem carteira).

Em relação ao trabalho das mulheres negras, a mesma pesquisa mostrou

que: 22,0% estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 16,6%

trabalhavam como empregada doméstica (sem carteira), 15,9% exercia atividade

considerada por conta própria (sem 3º grau), 14,2% empregadas no setor privado

(sem carteira assinada), e 7,5% empregada pública/estatutária/militar. E em relação

ao emprego doméstico (com carteira), o índice encontrado foi de 5,2%.

Verifica-se, desse modo, que embora tenha havido um expressivo aumento

no ingresso das mulheres negras no mercado de trabalho, houve restrições a alguns

segmentos, em ambos os setores (serviços públicos e privados). Também foi

verificada a ocorrência de diferenças em relação às ocupações (segregação

horizontal), tendo sido mantida a presença das mulheres, em geral, nas atividades

relacionadas ao serviço doméstico. Destaca-se que a trabalhadora negra, em

especial, é a que mais exerce a atividade de empregada doméstica no país.

11 LIMA, 2013, p.65. 12 Ibid, p. 65. 13INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2011microdados.shtm> Acesso em 03 maio 2014, p.15.

14

A atividade empresarial, de outro lado, influenciada pelo fenômeno da

globalização, além de assumir um papel fundamental na criação de empregos e

impostos, capaz de colaborar no atendimento das demandas sociais pelo Estado,

também pode (e deve) atuar na inclusão de grupos vulneráveis para atingir a sua

capacidade plena. E isto se torna imperioso em uma sociedade onde ocorrem

discriminações, notadamente no acesso das mulheres negras no mercado de

trabalho brasileiro.

Assim, a fim de contribuir no combate à discriminação da mulher negra no

mercado de trabalho, busca-se investigar a discriminação no tocante a dois aspectos

que possuem origens históricas e repercussões atuais. O primeiro é em relação à

mulher, seja em virtude de questões culturais e socioeconômicos (jornada doméstica

e cuidados com filhos, que a torna com menor disponibilidade de tempo para o

trabalho e para viagens e, em decorrência, menos produtiva na empresa), seja em

razão de características fisiológicas (gestação que a torna menos produtiva, e a

afasta do trabalho por determinados períodos; força física menor do que a do

homem, o que faz com que não possa realizar determinados trabalhos braçais).

O segundo aspecto, em relação à raça negra. Pretende-se investigar, a partir

de dados estatísticos porque as pessoas da raça negra, em especial as mulheres,

não conseguem ingressar em determinados nichos no mercado de trabalho, e nem

galgar cargos de maior complexidade, bem como obter mesma remuneração dos

demais trabalhadores no Brasil.

Por outro lado, necessário analisar se ações afirmativas, precipuamente as

cotas (públicas ou privadas), possuem papel relevante no tocante ao combate dessa

discriminação, assim como verificar a possibilidade e viabilidade de sua utilização no

direito brasileiro. Releva, em outra perspectiva, analisar a possibilidade da atividade

empresarial (responsável pelo desenvolvimento sustentável no país, com o advento

da Constituição de 1988), implementar cotas para mulheres negras, o que se

justificaria pela ética e vantagem econômica, analisando, sobretudo, os principais

desafios para a sua concretização.

Objetiva a presente dissertação, assim, verificar a possibilidade de utilização

de cotas, no setor privado (regime celetista), para auxiliar no combate a

discriminação da mulher no mercado de trabalho brasileiro.

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O tema justifica-se, principalmente, em razão de sua atualidade, em especial

diante da lei prevendo cotas raciais/socias nas universidades públicas

12.711/201214, e do projeto de lei da Câmara (PLC 29/12), aprovado pelo Senado

em 20 de maio de 2014, prevendo cotas para negros no serviço público federal (nos

órgãos da administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas

e sociedades de economia mista controladas pela União).15

A pertinência da temática também está relacionada com a previsão contida no

Estatuto da Igualdade Racial, instituído no ano de 2010, pela lei n.12.28816, que trás

em seu artigo 1º, como objetivo: “garantir à população negra a efetivação da

igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e

difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”.

Observa-se que este mesmo Estatuto previu, inclusive, especificamente em

relação à atividade laboral17, que as políticas voltadas para a inserção dos negros no

mercado de trabalho devem respeitar os compromissos assumidos pelo Brasil, ao

ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, e a Convenção n. 111, da OIT.

Recentemente o regulamento do Sistema Nacional de Promoção da

Igualdade Racial (Sinapir) foi aprovado como forma de organização e articulação

para a implementação de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades

étnicas existentes no Brasil. Ressalta-se que ao Poder Público Federal cabe

incentivar a sociedade civil, inclusive a iniciativa privada, a participar deste Sistema.

As empresas, portanto, através da adoção de políticas afirmativas,

especialmente as cotas, podem vir a propiciar a igualdade de oportunidades em prol

das trabalhadoras negras. Assim, a pesquisa se restringirá a analisar a possibilidade

de inclusão dessas mulheres, através dessas medidas, no setor privado. Não será

tratado, desta forma, da inclusão no setor público até porque está em trâmite,

conforme supramencionado, legislação a respeito, e nem no trabalho doméstico. 14 Esta lei “dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências”. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Disponível 05 maio 2014. 15 Disponível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/05/20/senado-aprova-cota-para-negros-em-concursos-publicos>. Acesso em 20 maio 2014. 16 Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 17 Art. 38 e seguintes, do Estatuto da Igualdade Racial.

16

Também a pesquisa se restringirá à questão das mulheres negras, e não dos

homens negros, haja vista que segundo apontam as pesquisas, há uma maior

discriminação em relação às elas, as quais, além do mais, ainda tem atribuições

relacionadas às atividades do lar e da família. Por isso o estudo em relação às

cotas, especificamente, direcionado às mulheres negras.

Desta forma, formula-se na presente pesquisa o seguinte problema: em que

medida as cotas, implementadas pelo setor privado, podem ser instrumentos aptos a

combater a discriminação da trabalhadora negra no mercado de trabalho brasileiro?

Primeiramente serão analisadas as dimensões da igualdade (formal e

material), partindo da evolução deste instituto no decorrer da história. Em seguida,

será analisada a ocorrência de discriminação de gênero no Brasil, onde se pretende

verificar também as diferenças e desigualdades havidas entre homens e mulheres,

e, em seguida, a situação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro.

A discriminação da trabalhadora negra, na relação empregatícia, será

estudada no segundo capítulo, o qual foi dividido em duas partes. Na primeira,

investigar-se-á a possibilidade de ocorrência de práticas discriminatórias em duas

fases do contrato de trabalho (pré-contratual e no curso do contrato). Em seguida,

pretende-se fazer uma evolução das normas relativas à discriminação racial, tanto

no âmbito internacional (especialmente as fontes norteadoras deste tema, como a

OIT e DUDH), como no interno (dispositivos constitucionais e infraconstitucionais,

incluindo o Estatuto da Igualdade racial e o recente regulamento do Sinapir.

Por fim, a investigação a ser delineada no terceiro e último capítulo, irá

investigar o instituto das ações afirmativas, limitando-se a tratar da fase histórica de

forma contextualizada, analisando, principalmente, a sua implantação enquanto

modalidade de políticas públicas. Na sequência, pretende-se verificar a utilização

das cotas na sociedade brasileira em geral (incluindo esferas política e de ensino)

como forma de combater as discriminações, inclusive as raciais. E, finalmente,

perquirir quais são os desafios no combate a discriminação da trabalhadora negra

através da utilização de cotas pelas empresas, procurando trazer opiniões

favoráveis e desfavoráveis, bem como os seus principais argumentos para tanto.

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Também procurar-se-á enfrentar a possibilidade da atividade empresarial,

enquanto responsável pelo desenvolvimento sustentável da economia no país,

implementar políticas afirmativas, em especial as cotas, no combate à discriminação

da trabalhadora negra, finalizando, assim, o raciocínio proposto neste capítulo.

Releva informar que serão utilizados, como marcos teórico, dentre os outros

igualmente importantes, as seguintes obras: “Democracia, liberdade e igualdade”, de

Pontes de Miranda; e “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, de Celso

Antonio Bandeira de Mello, no primeiro capítulo. No segundo: “O Direito à

Diferença”, de Álvaro Ricardo de Souza Cruz. E no terceiro capítulo: “Ação afirmativa

& princípio constitucional da igualdade”, de Joaquim Benedito Barbosa Gomes.

O tema da presente dissertação se harmoniza com a linha de pesquisa

número 2: “Atividade empresarial e Constituição: inclusão e sustentabilidade”, do

Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário

Curitiba – UNICURITIBA. O elo entre eles se observa ao verificar a normativa

jurídica acerca da discriminação e inclusão racial no mercado de trabalho,

recepcionados pela Constituição Federal ou criadas após (especialmente a

instituição do Estatuto da Igualdade Racial), atuando para a inclusão e

sustentabilidade do trabalho da mulher negra no país. Tais normativas refletem na

atividade empresarial, sendo determinante a sua atuação no processo inclusivo

destas trabalhadoras brasileiras.

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1. A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA NO BRASIL

1.1. DIMENSÕES DA IGUALDADE

A questão da igualdade, ou de sua falta, vem desde os tempos antigos.

Juntamente com a evolução da humanidade, houve, em certa medida, a busca pela

redução das desigualdades entre as pessoas. Esta tentativa de eliminação havida

entre senhores e escravos tinha o elemento humano como sujeito de direitos.

Segundo Pontes de Miranda, no início da história da humanidade, os homens

primitivos eram iguais, passando, após, a serem submetidos à figura de um chefe,

que se satisfazia com a função de “centro”. Os demais homens continuaram iguais

entre si, se diferenciando por determinadas características como: mística, política ou

econômica. Pontes de Miranda classifica essas como desigualdades por aumento.18

Outro tipo de desigualdade verificada pelo mesmo autor, no tocante a

evolução da igualdade do homem no decorrer da história, ocorre quando

posteriormente surgem a escravidão e a servidão, a qual classificou como

desigualdade por mutilação. Aponta como umas das causas principais para tal

ocorrência, as guerras e invasões havidas na época.19

A desigualdade também aparece sob outras perspectivas, além da posição

que o homem ocupa em uma estrutura social onde inserido, como a biológica e

psicológica. Tais diferenças, no entanto, não podem definir tratamentos desiguais

considerando a característica comum existente entre eles, qual seja, a condição de

humanidade.

Por outro lado, as diferenças verificadas entre os homens, segundo Denise

Pasello Novais, são uma imposição da natureza, que expõe as características tanto

psicológicas quanto físicas, bem como as habilidades e as aptidões de cada um. Por

isso, tais diferenças não devem ser confundidas com desigualdades.20

18 MIRANDA, Pontes. Democracia, liberdade e igualdade. São Paulo: Saraiva, 1979, p.415. 19 Ibid, p. 415. 20 NOVAIS, Denise Pasello Valente. Discriminação da mulher e o direito do trabalho: da proteção à promoção da igualdade. São Paulo: LTr, 2005, p. 28.

19

A desigualdade, a partir da característica que diferencia os seres humanos,

impõe a divisão entre inferioridade e superioridade. Superá-la pode gerar um estado

de igualdade, visando a atingir um grau de equilíbrio entre tais fatores. Assim, poder-

se-ia afirmar que o sentido oposto de igualdade significaria desigualdade, mas não

diferença, posicionando esta no âmbito de atuação da igualdade.

Desde a antiguidade, no período axial, os filósofos buscam conceituar o que é

a igualdade. O ponto de partida para tal abordagem é a constatação de que somente

é possível o seu questionamento dentro de um contexto de relações sociais, pois o

indivíduo considerado de forma isolada não é capaz de representar um parâmetro

de comparação, além da existência de um objeto de análise para que a comparação

possa ser realizada.21

Foi neste mesmo período, compreendido entre 600 a 480 a.C., que o homem

tornou-se o principal objeto de análise e reflexão, segundo afirma Fabio Konder

Comparato22, restando estabelecida uma grande linha divisória na história desde

então, onde grandes princípios e diretrizes de vida foram estabelecidos, vigorando

até os dias atuais.

O homem, o ser humano, desde então, “passou a ser considerado em sua

igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as

múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais”, conforme assevera

Comparato.23

No entanto, para indivíduos serem considerados iguais ou desiguais, a

despeito das diferenças, há que se identificar em critérios que possam efetivamente

ser usados sem que venham gerar tratamento desigual. Assim, condutas que visem

impor um padrão único, ou que gere discriminação, viola não apenas o direito a

diferença, mas, principalmente, o direito à igualdade em relação aos demais seres

humanos.

21 TABORDA, Maren Guimarães. O Princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: Conteúdo, Alcance e Direções. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, jan/mar, 1998, p. 245. 22 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 20. 23 Ibid, p. 24.

20

Segundo José d´Assunção Barros24, a noção de igualdade opõe-se a noção

de diferença: “uma coisa ou é igual à outra (pelo menos em um determinado

aspecto) ou então dela difere”. Por exemplo: em relação a certos indivíduos, é

possível considerá-los iguais ou diferentes quanto ao aspecto sexual, profissional,

religioso, ou étnico, entre outros.

Uma questão complexa, todavia, envolvendo as diferenças, segundo o

mesmo autor25, se refere às chamadas “diferenças raciais”, também denominadas

“diferenças de cor”, quando estabelecida a dicotomia “negros e brancos”, pois,

mesmo que construída culturalmente, gera um contraste entre estas duas essências.

Ademais, há que se observar que raças não existem enquanto realidade biológica.

Observa-se que a ciência moderna derrubou os conceitos de raça e etnia,

comprovando que não se justifica a divisão da humanidade em grupos raciais. Na

realidade, existem, percentualmente, mais diferenças entre duas pessoas de mesma

cor do que entre os representantes das etnias africanas. Portanto, raça só existe

uma: a raça humana.

A igualdade, portanto, pode significar diferenciação. Segundo Walter Claudius

Rothenburg26 o importante é que haja uma construção da identidade de forma

emancipada e autônoma a fim de que, a partir de seu reconhecimento, possa ser

estabelecida a igualdade. Assim, “pode-se opor a diferença como algo bom e digno

de promoção à desigualdade, como algo mau, a ser combatido”.

Igualdade e identidade, por outro lado, não se confundem, embora em sua

concepção possa vir a indicar uma semelhança de características, ou de elementos

componentes de duas pessoais ou coisas. Assim, duas pessoas, ainda que

consideradas iguais, não são idênticas, embora possam ter características

semelhantes nos mais variados aspectos.

24 BARROS, José d'Assunção. Igualdade, desigualdade e diferença: em torno de tr ês noções . Análise Social , Lisboa, n. 175, jul. 2005. Disponível em <http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000325732005000300005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 15 mar. 2014, p. 345. 25 Ibid, p. 352 26 ROTENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e a discriminação positiva: o pr incípio da isonomia. Disponível em:<http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/igualdade-material-e-discrimina%C3%A7%C3%A3o-positiva-o-princ%C3%ADpio-da-isonomia>. Acesso em 20 mar. 2014, p. 84.

21

Desta forma, os seres humanos, para serem considerados iguais ou

desiguais, necessitam de comparativos em relação a determinadas características

que devem ser especificadas, não fazendo sentido, portanto, afirmar que todos os

homens são iguais. O que lhes é comum, todavia, é a natureza humana, sendo a

norma jurídica quem lhes torna iguais perante a lei.

Uma grande questão que se impõe é, portanto, a necessidade de

compreensão desta variação de grau e contexto em relação à igualdade. Ademais, a

igualdade pode ser verificada também através dos planos filosóficos e jurídicos,

segundo Luciana de Oliveira Leal, ressaltando que a filosofia trouxe subsídios ao

Direito para o estudo do tema, lhe conferindo caráter obrigatório.27

A idéia jurídica de igualdade, na consciência ocidental, perpassa pela

evolução da própria idéia de igualdade, tendo em sua trajetória registros desde

Pensadores da Grécia Antiga (como Aristóteles), passando pela Roma Antiga,

seguindo-se pela doutrina de Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. O ponto de

chegada (e partida) se dá com o movimento constitucionalista moderno, nos séculos

XVIII e XIX, quando então passou a ser inserida nas Constituições modernas.

As revoluções liberais ocorridas nos séculos XVIII e XIX elevaram o elemento

humano a ocupar espaço, desaparecendo as distinções, ao menos, no plano

legislativo. Foi neste período que houve a consagração da igualdade formal e, por

derradeiro, a abolição de qualquer discriminação frente à lei.

A noção de igualdade, tanto no plano filosófico quanto no jurídico, apresenta

íntima relação com valores diversos como: justiça, liberdade, entre outros que

também vieram acompanhando o desenvolvimento da humanidade. Filosoficamente,

a igualdade estava associada à ideia de justiça na distribuição dos escassos bens

da vida, observando que para Aristóteles “o justo é a distribuição igual entre os

iguais, e desigual entre os desiguais, na medida do mérito de cada um”. Portanto,

segundo o pensamento aristotélico, a igualdade é uma proporção na distribuição.28

27 LEAL, Luciana de Oliveira. O sistema de cotas raciais como ação afirmativa no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-sistema-de-cotas-raciais-como-a%C3%A7%C3%A3o-afirmativa-no-direito-brasileiro>, acesso em 10 abril 2014, p. 5. 28 Ibid, p. 6.

22

O conceito de igualdade, no plano jurídico, foi fruto de evolução normativa e

doutrinária concomitantemente ao desenvolvimento dos direitos fundamentais, por

ocasião das primeiras declarações de direitos, época das revoluções liberais. Fabio

Konder Comparato observa que a Declaração de 1789 representou uma “referência

indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos”.29

Há, inclusive, quem atribua à desigualdade existente na sociedade francesa,

em especial, no século XVIII, como determinante para impulsionar a eclosão da

Revolução havida naquela época. Afinal, segundo assevera Estevão Mallet, “é

intuitivo que sociedades menos desiguais são mais estáveis, enquanto sociedades

mais desiguais são menos instáveis”.30

O alcance do princípio da igualdade, todavia, ampliou-se nas sociedades.

Atualmente, este princípio não se restringe apenas à igualdade formal, onde os

indivíduos são nivelados pela norma jurídica, mas também passou a orientar a

própria legislação, no sentido de que esta esteja de acordo com a isonomia. Assim,

o enunciado de que “todos são iguais perante a lei” guarda, portanto, duas

naturezas: uma formal, e outra material.31

1.1.1 Dimensão formal

A noção de igualdade, enquanto categoria jurídica, teve a sua emergência,

como princípio jurídico constitucional, por ocasião das Revoluções ocorridas no final

do século XVIII, notadamente nos EUA e na França. Foi neste último país, aliás,

onde a idéia jurídica de igualdade foi utilizada, no art. 1º da Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão, em 1789, tendo sido, posteriormente, inserida nas

Constituições modernas.32

29 COMPARATO, 2013, p. 163. 30 MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2013, p. 20. 31 MIRANDA, 1979, p.485. 32 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Nova ed. 13ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 118.

23

O reconhecimento da igualdade constitucional, assim, foi representado como

uma novidade fundamental da filosofia racionalista e individualista dos séculos XVII

e XVIII, sendo consagrada nas Declarações de Direitos do Homem, as quais

surgiram após as Revoluções Liberais, vindo a ser tornar um dogma jurídico-político

nos Estados Modernos.33

O conceito jurídico de igualdade é fruto da formação do Estado Liberal

burguês, onde tal conceito, no entanto, estava reduzido a uma concepção

puramente formal, restrita, basicamente, aos limites do ordenamento jurídico. A

igualdade, portanto, era vista como um ideal a ser alcançado pelo homem,

rompendo com as estruturas políticas através da abolição dos privilégios concedidos

à nobreza e ao clero.34

Naquela época, a burguesia em ascensão, desejava expandir seus mercados,

por isto tratou de consolidar a igualdade jurídica de todos os homens, não permitindo

que houvesse mais distinções por motivos de parentesco ou de linhagem. No fundo,

o que se pretendia, era mesmo acabar com os privilégios e regalias de classe, ou

seja, a intenção não era, pelo menos exclusivamente, abrir-se um debate sobre a

igualdade de condições de participação social.35

A igualdade formal, portanto, resulta de uma perspectiva política do Estado de

Direito, o qual é fundado na lei, no sentido de lei igual para todos, com a

preocupação e o comando legal do tratamento igualitário, desconsiderando-se,

contudo, qualidades e atributos pessoais do destinatário da norma. Assim, como

forma de garantir os direitos fundamentais, considera-se todos iguais, mas tão

somente perante a lei.

Esta dimensão formal em que se resumia a igualdade, segundo a concepção

liberal clássica é, no entanto, insuficiente para realizar a igualdade em todas as suas

potencialidades. E são as próprias desigualdades oriundas das relações tanto

políticas, quanto socioculturais, ocorridas nas comunidades da época, que acabam

denunciando a falência da visão liberal de sociedade.

33 Ibid, p. 118. 34 COMPARATO, 2013, p. 159. 35 Ibid, p. 163.

24

Eis que houve um avanço dos movimentos em prol da diminuição das

injustiças socias, ocasionando um conflito entre a noção de igualdade jurídica na

concepção liberal francesa (com a abolição de privilégios), e o desejo da igualdade

real, fática, entre os homens no meio social, o que gerou preocupações nos regimes

políticos da maioria dos Estados Sociais de Direito.

A regra de que “todos são iguais perante a lei”, segundo Pontes de Miranda,

se dirige, em especial, aos legisladores, sejam eles democráticos ou não. Contudo,

se não houver democracia, o princípio da igualdade sofre mutilação, visto que nem

todos são iguais quanto à participação na criação da ordem estatal. Este princípio,

ademais, é imperativo para legisladores e executores administrativos ou judiciais.36

Ressalta Celso Antonio Bandeira de Mello que a lei deve ser instrumento de

regulação da vida social, devendo tratar todos os cidadãos de forma equitativa, sem

dar origem a privilégios ou distinções. Ressalta, também, que as situações

equivalentes devem ser projetadas no ordenamento, a fim de amparar a

legitimidade.37

Perez Luno ensina que para uma melhor classificação da dimensão formal do

princípio da igualdade, a qual mais se opera nas relações jurídicas, há que ser

observada três características básicas: 1ª) pluralidade de pessoas, objetos ou

situações (de modo a não confundir com igualdade de identidade), 2ª) dimensão

relacional (ou seja, a existência de relações bilatérias ou multilaterais), 3ª)

comparação entre os entes. Ou seja: espera-se que haja a coincidência plural,

relacional e comparativa entre os entes.38

Ademais, este jurista espanhol ressalta que há exigências a serem

observadas quando da formulação legal, como a generalidade da lei, a qual deve ser

genérica a fim de evitar privilégios.39 Sendo assim, todos devem se sujeitar a ela,

não podendo o legislador ultrapassar os limites da discricionariedade, o que, na

prática, gera discussões a respeito.

36 MIRANDA, 1979, p. 485. 37 MELLO, Celso Antonio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 10. 38 LUNO, Antonio Perez Luno. Dimensões de La Igualdad. , 2 ed., editora Dykinson, Madri, 2007, p. 18. 39 Ibid, p. 22.

25

A segunda exigência a ser observada seria a equiparação, a qual supõe um

trato igual de circunstâncias, ou de situações não coincidentes, em busca de pontos

convergentes. E já a terceira seria a diferenciação, que permite um tratamento

diferenciado de circunstâncias e situações semelhantes, desde que de acordo com

pressupostos que excluem a discriminação ou a arbitrariedade. Destaca-se,

contudo, a possibilidade de desprezar determinadas diferenças naturais.40

Também há, ademais, a igualdade de procedimento, a qual implica em uma

garantia funcional de regularidade nos procedimentos de aplicação do Direito

(perante a lei processual, e não qualquer lei). Isto é o que ocorre, por exemplo, em

casos onde há a prioridade processual do idoso; nas situações de prazo

diferenciado para a Fazenda Pública, quando objetiva tutelar o interesse público;

entre outros.

Ressalta-se que o standard, o comportamento padrão, não precisa de

legislação para ser definido. Ele varia conforme a sociedade, a qual, sendo

dinâmica, acaba por contar, também, com a jurisprudência para obter uma melhor

definição, sendo estabelecido conforme o caso e a região envolvida. A igualdade

como procedimento, embora submeta todos a uma mesma lei, busca não apenas a

sua concretude, mas também superar as distorções.41

Os Estados tiveram que ocupar-se, então, em articular a igualdade jurídica

com a igualdade social, de modo a tentar propiciar a igualdade de chances e

oportunidades para a sociedade em geral, a qual, não mais se satisfazendo com a

previsão de igualdade formal, reclamou para si, a garantia de uma igualdade

material (substancial).

Portanto, o fato de elevar-se a igualdade a um princípio, revelou o seu caráter

norteador das relações sociais, reconhecendo que cada ser humano tem uma

condição essencial capaz de igualar aos demais, e que, qualquer disposição

contrária, deve, assim, ser interpretada sob a égide deste princípio. A igualdade

formal, desta forma, abriu espaço à igualdade material, quando se verificou que a

igualdade absoluta, nos estritos termos da lei, pode dar margem a desigualdades.

40 Ibid, p. 24. 41 Ibid, p. 32.

26

1.1.2 Dimensão material

Segundo a filosofia liberal, o mandato de igualdade dirigia-se somente ao juiz

e à Administração (enquanto na sua concretização, aplicação), restando ao

legislador (quando da formulação, elaboração),à liberdade para qualificar como igual

ou desigual nas mais diversas situações. Ao final, deveria servir a lei para perpetrar

e cristalizar as desigualdades substanciais existentes, de modo geral, entre os

homens à época. 42

Utilizando-se ainda da concepção liberal, seria possível distinguir a igualdade

formal e material, pois enquanto para esta a igualdade estava relacionada à

proibição de descriminações injustificadas, com a menor intervenção estatal

possível, na concepção social a igualdade estaria relacionada à exigência de

tratamento individualizado, contando com a participação do Estado para propiciar a

sua garantia.

Observa-se que a sociedade e o Estado foram passando por profundas

transformações, em especial na Europa a partir de 1800, quando ocorreram intensas

lutas sociais, decorrentes do extremo estado de penúria das classes trabalhadoras e

de sua consequente organização política. E, como consequência direta, surgem os

direitos sociais, valorizando-se os direitos humanos, perdendo o Estado então a sua

feição “liberal”. Observa Fabio Konder Comparato que “o reconhecimento dos

direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a

humanidade do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX.”43

A partir deste período, houve gradual integração do Estado com a sociedade

civil, alterando a sua forma jurídica, os processos de legitimação, e a sua própria

estrutura de Administração. Paralelamente, o capitalismo foi se desenvolvendo,

sendo adotadas novas tecnologias, e a mão-de-obra foi se concentrando nos

centros urbanos, colaborando para o surgimento do Estado Social.44

42 MELLO, 2011, p. 10. 43 COMPARATO, 2013, p. 66. 44 Ibid, 66.

27

A nova forma estatal, marcada também pela grande influência nas relações

privadas, tem como uma das principais características a busca pelo bem-estar social

e a distribuição mais equitativa da riqueza. A propriedade privada deixa de ser a

principal tutela, passando a valorizar a dignidade da pessoa humana, garantindo-se,

por outro lado, a autonomia individual, através da limitação jurídica do Estado.45

A fim de criar condições para o desenvolvimento da personalidade individual e

garantir a liberdade, o Estado passa a intervir de forma positiva, atento na

articulação de direitos, garantias e liberdades, com os direitos sociais, o

caracterizando como um Estado Social de Direito.46

A igualdade, com o advento do Estado Social, evoluiu em seu conceito,

ganhando então conteúdo material, vez que a igualdade perante a lei cedeu lugar à

busca pela igualdade fática. Ela tornou-se obrigatória não mais somente ao juiz, ao

legislador e ao administrador, pois a sua observância passou a ser exigência não

apenas para quem a aplicava, mas para a própria lei!

No contexto do reconhecimento dos direitos sociais, a igualdade material

passou a exigir atos concretos a fim de viabilizar a igualdade do plano fático, e não

apenas a vedação à discriminação e diferenciação. Mais que isto, a igualdade fática

acabou por desdobrar em igualdade de oportunidades, objetivando propiciar iguais

condições de competição pelos bens considerados essenciais.

A propagação da idéia de “igualdade de oportunidades” foi aparecendo,

então, em diversos ordenamentos jurídicos, norteada pela necessidade de extinguir,

ou ao menos mitigar as desigualdades econômicas e sociais, visando promover a

justiça social. Em especial, surgiram políticas sociais de apoio e promoção de

determinados grupos socialmente fragilizados, como, por exemplo, a inserção das

mulheres e negros no mercado de trabalho, discriminados em razão de gênero e

raça, respectivamente.

A igualdade material é, portanto, aquela capaz de assegurar o tratamento

uniforme de todos os homens, visando a alcançar a igualdade real e efetiva de

45 CAPLAN, Luciana. O Direito Humano à Igualdade, o Direito do Trabalho e o Princípio da Igualdade. In: PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz (coord). Direitos Humanos e Direito do Trabalho . São Paulo: Atlas, 2010, p.123. 46 Ibid, p. 123.

28

todos, perante os bens da vida. E, para tanto, é imperioso existir um nivelamento

das oportunidades, redistribuindo-se o acesso a várias posições na sociedade,

tornando-as, deste modo, igualmente acessíveis.

A mera igualdade de direitos não é, pois, suficiente, para “tornar acessível a

quem é socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozam os indivíduos

socialmente privilegiados”. Necessário se faz a distribuição desigual para colocar os

primeiros ao mesmo nível de partida, ou seja, a concessão de privilégios jurídicos e

benefícios materiais para os considerados privilegiados economicamente.

Frisa-se que o princípio da igualdade material está presente na maioria das

democracias ocidentais, com contornos de Estado social. Inserido nas respectivas

Cartas Constitucionais, assegura tal princípio, a sociedade em geral, o acesso a

determinados bens, como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a previdência e

a assistência social, inclusive no Brasil.

O ordenamento constitucional brasileiro também acolheu o princípio da

igualdade material, o que não significou o tratamento igualitário pela lei a todos os

indivíduos, mas, antes de tudo, identificar as desigualdades e tratar de modo

desigual os desiguais, conforme assevera Celso Antonio Bandeira de Mello.

No entanto, este autor traz critérios, que ora se transcreve, na medida em que

exata a lição:

“a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só

indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de

direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam

características, traços, nelas residentes, diferençados; c) que exista, em

abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a

distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma

jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja

pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é,

resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa –

ao lume do texto constitucional – para o bem público”47

47 MELLO, 2011, p. 10.

29

Portanto, há que se observar e definir critérios passíveis de indicar uma

desequiparação legítima na lei, vez que ao ordenamento jurídico-constitucional

brasileiro é vedada a discriminação em qualquer uma de suas formas, inclusive as

de origem, raça, sexo, idade ou cor, a fim de que a desigualdade não seja

aprofundada, mas sim combatida, conforme previsão no texto constitucional.48

Além das noções e distinções entre igualdade e diferença, importa verificar a

relação destas com a noção de discriminação, ocorrida comumente no vocabulário

histórico, político, e, em especial, no social. A discriminação, segundo assevera José

d´Assunção Barros49, pode ser considerada, de certo modo, como instrumento ou

até como etapa das desigualdades.

A noção de discriminação está relacionada a forma de condução social das

diferenças, objetivando o seu tratamento desigual, precisamente em relação a

grupos menos favorecidos. Ela ocorre através de um jogo de dominação e

estratificação social, e, em vários âmbitos, com menor ou maior frequência, como no

caso da discriminação ocorrida em relação às mulheres e aos negros.

1.2 A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL

1.2.1 Diferenças e desigualdades de gênero

A tentativa de compreensão acerca das diferenças e desigualdades entre

homens e mulheres não é recente, pelo contrário, desde os povos gregos, até

recentemente, acreditava-se que a mulher era um ser inferior na divisão entre os

seres humanos, e, com isso, eram os homens quem detinham o direito de exercer

uma vida pública.

48 Artigos 5º e 7º, CF. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil . Brasília, DF, 05 out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 04 maio 2014. 49 Ibid, p. 354.

30

Por outro lado, a vida privada, considerada um lugar de menor destaque, era

reservadas às mulheres, às quais eram destinados direitos e deveres voltados,

quase que exclusivamente, para a criação dos filhos, e aos cuidados domésticos e

familiares. Assim, ao homem era designado o espaço produtivo, e à mulher o

espaço reprodutivo, que se reflete também na esfera do trabalho.50

Segundo Thereza Cristina Gosdal, a atribuição de status secundário às

mulheres, em relação àquele atribuído aos homens é tendencialmente percebida por

antropólogos, sociólogos e historiadores em caráter universal. E, independente das

atividades masculinas realizadas, elas são reconhecidas como as mais importantes

e com maior valor, lhes propiciando, assim, um poder maior.51

A desigualdade, outrora combatida pela Revolução Francesa, não se

estendeu às mulheres. Foram necessários quase que dois séculos para que as

normas sociais conferissem igualdade de direitos entre homens e mulheres, não

tendo mais lugar o modelo do sexo único surgido na antiguidade greco-romana.

Porém, as desigualdades ainda permanecem, e não podem ser aceitas.

As diferenças, por outro lado, fazem parte da condição humana, e, por isso,

estão presentes na formulação e interpretação do ordenamento jurídico. Elas

representam características que podem particularizar uma situação, mas sem que

isto venha a gerar uma desvalorização do próprio ser humano, sob pena de incorrer

em uma desigualdade.

A expressão diferença, ainda que possa adquirir diferentes significados,

conforme contextos sociais, políticos ou culturais, pode definir, no tocante ao gênero,

peculiaridades tanto físicas quanto psíquicas, emotivas e comportamentais. A partir

destas, teorias foram construídas para indicar diferentes habilidades sociais, talentos

e aptidões, justificando os lugares e destinos de casa gênero. Observa Guacira

Lopes Louro que o movimento feminista, a partir desta perspectiva, passou a “se

ocupar centralmente desta diferença, e de suas consequências.”52

50 CORTIZO, Maria del Carmem; GOYENECHE, Priscila Larratea. Judiciarização do privado e violência contra a mulher . In: Revista Katálysis. V.13, nº 1. Florianópolis, jan./jun. 2010, p. 103. 51 GOSDAL, Thereza Cristina. Discriminação da mulher no emprego : relações de gênero no direito do trabalho Curitiba: Genesis, 2003, p. 74. 52 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação : Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: 2011, p. 49.

31

As concepções de gênero, ademais, segundo Guacira Lopes Louro, se

diferem não apenas na história ou nas sociedades, mas também no interior destas,

se constituindo com ou sobre corpos sexuados, nos mais diversos grupos que a

constituem, como, por exemplo, de classe, racial, étnico ou religioso.53

Gênero e sexo, por sua vez, não se confundem. O primeiro resulta de uma

construção cultural, e diz respeito às diferenças psicológicas, sociais e culturais. E já

o segundo advém da própria natureza do indivíduo, estando relacionado com

diferenças fisiológicas e anatômicas, classificando genética e anátomo-fisiológica os

seres humanos.54

Leda de Oliveira Pinho chama a atenção, ademais, para a diferença

semântica encontrada tanto do termo gênero como no termo sexo, nas línguas de

raiz anglo-saxônica (inglesa), e latina (espanhola, francesa e portuguesa),

sugerindo, para uma melhor compreensão dos seus conteúdos, a consideração dos

significados que eles comportam em razão de suas origens.55

Na dimensão semântica latina, a expressão gênero pode ser compreendida

como uma construção social, histórica e cultural, elaborada sobre as diferenças

sexuais, sendo necessário, porém, descolar o sexo do gênero para um melhor

entendimento das questões culturais que envolvem os comportamentos e

características femininas e masculinas, nas mais diferentes sociedades e culturas.56

Portanto, ser mulher ou homem é uma questão não tanto relacionada com o

nascimento do indivíduo, mas sim uma produção social formada por múltiplas

instâncias. As sociedades criam categorias femininas e masculinas para as

diferenças de sexo, e isto acontece de forma a tornar os indivíduos diferentes e, por

vezes, desiguais.

Historicamente, no desempenho dos “papéis”, o gênero feminino acaba sendo

sobreposto pelo gênero masculino, tendo as suas características que lhes são

53 Ibid., p.27. 54 OLINTO, Maria Teresa Anselmo. Reflexões sobre o uso do conceito de gênero e/ou sexo na epidemiologia. Revista Brasileira de Epidemiologia. Volume 01, nº 2, 1998, p. 162. 55 PINHO, Leda de Oliveira. Princípio da Igualdade : investigação da perspectiva de gênero. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 53. 56 CARVALHO, Marília Gomes, e TORTATO, Cintia Souza Batista. Gênero: considerações sobre o conceito. In: LUZ, Nanci Stancki et al (orgs.) Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola. Curitiba: UTFPR, 2009, p.24.

32

inerentes enfatizadas, e, por outro lado, as suas diferenças acentuadas. E como há

o predomínio dos ideais masculinos, acaba-se por formar um mundo com tais

características.57

Assim, as sociedades são formadas, comandadas e organizadas com visões

estereotipadas de papéis masculinos e femininos, concebidas com graus

hierárquicos desiguais, onde são impostos certos papéis para mulheres e homens,

vindos a determinar o modo como eles se vêem e como se relacionam entre si.58

A desigualdade de gênero, nesta perspectiva, não é uma questão de

diferença, visto que está interligada a um problema de relacionamento, de

hierarquia, e até mesmo de dominação, onde a categoria masculina é o padrão, e é

também a referência de medida na sociedade.

A lógica dicotômica, a qual supõe a polarização masculino-feminino, está

presente no pensamento das sociedades de uma forma geral, concebendo, assim,

homens e mulheres como polos opostos que se relacionam dentro de uma lógica

invariável de dominação-submissão. Segundo assevera Guacira Lopes Louro, a

dicotomia marca a superioridade masculina59.

Joan Scott redefiniu gênero como “uma maneira de se referir à organização

social da relação entre os sexos” com o objetivo de rejeitar o paradigma determinista

da condição social pelo sexo biológico. É no significado das relações de poder que

as pessoas primeiro experienciam as relações de gênero, influenciando na forma

como as percepções coletivas e pessoais se estabelecem, na dimensão pública e

privada, distribuindo de forma desigual tais relações.60

Na construção social, do que é ser mulher e do que é ser homem, há uma

relação com o sistema patriarcal, o qual, originariamente masculino, faz parte de um

sistema de dominação, com fundamentação e constituição histórica, em que o

homem é quem organiza e dirige, majoritariamente, a vida social, com reflexos tanto

na esfera privada como, principalmente, na pública.

57 Ibid, 40. 58 Ibid, 41. 59 LOURO, 2011, p.35. 60 SCOTT, Joan. Gênero uma categoria de análise histórica. Revista Educação e Realidade . Porto Alegre, nº 20, vol.2, jul/dez., 1995, p.71.

33

A sociedade, marcadamente masculina, gerou situações nem sempre

favoráveis às mulheres, ocasionando dificuldades de aceitação e gerando restrições

de características femininas. O tratamento diferenciado destinado a elas é verificado

nas mais diversas relações dentro do contexto social, a despeito das diferenças,

inclusive físicas, havidas entre mulheres e homens.

Muitos estudos sugerem que os traços diferenciadores entre os gêneros são

determinados mesmo pela cultura, não tendo tanta importância os fatores hormonais

pré-natais, como, por exemplo, aqueles que geram nas meninas uma maior

capacidade verbal, e para os meninos uma maior capacidade visual, espacial e

matemática, segundo assevera Luciana Parisotto et al.61

Mas há diferenças, como algumas de ordem física, que são inerentes a

determinado gênero, como, por exemplo, a possibilidade de gestação e de

amamentação. Somente as mulheres, pelo menos de modo natural, biologicamente

falando, são capazes de gerar seres, e, alimentá-los através de produto produzido

por seus próprios organismos.

Ademais, além da responsabilidade pela perpetuação da espécie, é esperado

da mulher, o cuidado e a educação dos filhos (especialmente nos aspectos

emocionais e morais), a assistência aos idosos, doentes e portadores de

necessidades especiais e atividades concernentes, denominadas, segundo Daniel

Viana Teixeira como “economia doméstica” (improdutiva), em contraposição às

atividades da “economia de mercado” (produtiva).62

O trabalho, numa classificação segundo o critério de gênero, pode ser

compreendido como produtivo e reprodutivo. O primeiro é assim classificado por

executar atividades de produção social e direção da sociedade, as quais são

exercidas, geralmente, por homens, no espaço público. Já o segundo, conhecido

como trabalho doméstico, ocorre no espaço privado, realizando as atividades

relacionadas aos cuidados do lar e da família.

61 PARISOTTO, Luciana et al. Diferenças de gênero no desenvolvimento sexual: Integração dos paradigmas biológicos, psicanalítico e evolucionista. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul , vol. 25, abr. 2003, p. 84. 62 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol. 6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 259.

34

Vera Maluf observa, contudo, que ao longo da história, a mulher passou a

desempenhar três papéis: a esposa, a profissional e a mãe. E, destes múltiplos

papéis, tem se esperado a sua execução perfeita por um mundo, no qual, os

imperativos de eficácia, o pragmatismo de resultados, teorizam permanentemente

sobre as vidas humanas, gerando muita frustração e sentimento de culpa em muitas

mulheres.63

Daniel Viana Teixeira adverte sobre as consequências do ônus (social) que

também é impingido às mulheres, no tocante aos cuidados com os filhos em idade

pré-escolar. Tal atribuição importa em intensa dedicação, por seguidos anos,

justamente no período em que a mulher está “na plenitude de sua capacidade

laborativa”, e no qual poderia termais chances de sucesso de competição no

mercado de trabalho.64

Estas responsabilidades domésticas e familiares atribuídas, em geral, às

mulheres, podem ser consideradas prejudiciais ao trabalho feminino, na medida em

que lhes tomam o tempo que poderiam dedicar-se a uma atividade laborativa, o que,

muitas das vezes, acaba por gerar sentimentos que prejudicam a própria saúde da

mulher, comprometendo a sua qualidade de vida.

As diferenças de gênero podem então, nestas situações, se tornarem

desigualdades, haja vista todas as consequências geradas em relação às mulheres.

Elas acabam por ficar em condição desfavorável em relação aos homens, os quais,

detentores do poder, e norteadores do padrão ideal, ficam, confortavelmente, em

posição de vantagem em várias situações no contexto social.

Ressalta-se que embora a estrutura familiar venha passando por significativas

alterações nas últimas décadas, tendo o “pátrio poder” sido substituído pelo “poder

familiar” por uma questão cultural65, os padrões continuam a se repetir, ou seja, o

trabalho reprodutivo e doméstico continua a pertencer à mulher.

63 MALUF, Vera. Mulher, trabalho e maternidade : uma visão contemporânea. São Paulo: Editora Atheneu, 2012, p. 12. 64 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol. 6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 260. 65 Art. 1.631, CC “Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais ; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.” (grifos acrescentados) Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em 04 maio 2014.

35

Observa-se, contudo, que muitas mulheres, para dar conta da dupla jornada

de trabalho que lhes é imposta, têm delegado o dever de cuidado com a casa e os

filhos a uma terceira pessoa, a empregada doméstica (geralmente mulheres). E tal

“transferência”, por sua vez, acaba configurando uma perpetuação da relação de

desigualdade de gênero, pois o serviço doméstico passa de uma, para outra mulher.

Entretanto, em relação à exclusividade da mulher executar a função de

trabalhadora doméstica, asseveram Silvana Souza Netto Mandalozzo e Lenir

Mainardes da Silva, que em um futuro próximo é possível que também os homens

possam vir a se dedicar a tais serviços inerentes a esta profissão (como limpar a

casa, cozinhar, arrumar e cuidar de crianças e idosos, dentro outros), vindo a

contribuir para a igualdade entre os sexos.66

O fato é que a reação contra a desigualdade de gênero tem gerado também

outras mudanças no contexto social. Informa Mary del Priore que as mulheres, no

início do século XXI, estariam retardando a maternidade e escolhendo o melhor

momento para serem mães. Muitas delas estariam passando a escolher quando e

se terão filhos, dependendo das condições econômicas e culturais de cada uma,

valorizando mais a realização profissional e a independência financeira.67

Sobre o tema da opção da maternidade, Vera Maluf observa que a mulher,

“presa às leis instituídas pela sociedade dos homens, vê-se condicionada a uma

vida de sacrifícios para criar e educar os filhos e desiste de sua realização

profissional!”. Para se justificar, a autora faz referência ao pensamento da filósofa

francesa Elizabeth Badinter, para a qual a mulher é vítima de um sistema que a

impossibilita de se desenvolver como ser humano livre e independente.68

Contudo, na sociedade atual, principalmente após a década de 1980, quando

se acentuaram as modificações de paradigmas dos processos de produção

manufatureira dos países industrializados, houve expressivas mudanças sociais,

66 MANDALOZZO, Silvana Souza Netto; SILVA, Lenir Mainardes. Aspectos Sociais da Relação entre Empregado e Empregador doméstico. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. Trabalho doméstico : teoria e prática da Emenda Constitucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p. 187. 67 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013, p. 157. 68 MALUF, 2012, p. 60.

36

econômicas e políticas que repercutiram no modelo patriarcal da família (esfera

privada), e nas relações de trabalho da mulher (esfera pública).69

Houve um alto grau de emancipação da mulher, onde medidas de inclusão e

promoção à igualdade passaram a ser adotadas, refletindo, também, no ambiente

familiar. Os homens, sensibilizados, parecem estar mais comprometidos e atuantes

em relação aos serviços domésticos, ao cuidado e educação dos filhos.

Entretanto, a despeito das tentativas de superação das diferenças e

desigualdades de gênero, a mulher tem sido alvo de discriminações, tanto no

ambiente doméstico como no mercado de trabalho, onde a maioria vivencia ainda

posições precárias e subalternas. Embora muitas barreiras tenham sido superadas,

persistem ainda características socioculturais que discriminam as mulheres sob as

mais variadas formas. E isto não pode ser mais tolerado pela sociedade atual.

1.2.2 A discriminação de gênero no Brasil

O verbo discriminar tem origem no latim discriminare, significando diferenciar,

distinguir, discernir, separar, especificar, extremar e estabelecer diferença,70 em

relação a uma pessoa ou grupo de indivíduos em face de alguma característica

pessoal, cultural ou racial; formar grupo à parte em razão de alguma pertença, como

por exemplo: étnica, religiosa, cultural entre outros, segundo definições encontradas

na maioria dos dicionários.

A utilização da palavra discriminação no sentido de “distinção desfavorável” é

adotada na maioria dos textos constitucionais elaborados a partir da segunda

metade do século XX.71 No Brasil, somente a partir de 1998, por seu cunho de

resgate ao Estado de Direito, é que tal expressão passou a ser utilizada com este

sentido, sendo antes utilizado para fins administrativos ou tributários. 69 MOURÃO, Tania Fontenele; GALINKIN, Ana Lucia. O que pensam as mulheres no topo da carreira? In: _______. Trabalho de Mulher : mitos, riscos e transformações. São Paulo: LTr, 2007, p. 144. 70 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 686. 71 LIMA, Firmino Alves. Teoria da discriminação nas relações de trabalho . Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 20.

37

O ato ou a ação de discriminar, isto é, de segregar, desigualar por à parte por

intolerância ou preconceito, é um fenômeno eminentemente social, que guarda

conotação de desvalor, visto que gera desigualdades entre indivíduos e grupos

sociais. A discriminação é fundada em uma ideologia preconcebida que pode

resultar em inferioridades em geral.

Segundo Thereza Cristina Gosdal, a discriminação pode ser considerada um

fenômeno social, relacional, que excede o campo do Direito. Por ser social, a

discriminação é dinâmica, podendo variar no espaço e tempo, ou seja, em um

mesmo contexto, um fato pode ser discriminatório para uma pessoa, e não ser para

outra, pois está relacionado a uma valoração comparativa, inerente ao sujeito.72

O ato de discriminar, no discurso político moderno, tem conotação de

desfavorecimento de um indivíduo ou de um grupo social, aparentemente sem um

motivo que o justificasse. E já em um discurso jurídico, discriminar pode ter sentido

amplo, correspondendo ofensa ao princípio da igualdade, e sentido estrito, quando a

violação ao princípio da igualdade tem fundamento em critérios proibidos.

Para Joaquim Benedito Barbosa Gomes, a discriminação possui um caráter

competitivo, que é, em geral, indissociável das relações sociais, e revela uma

tentativa de beneficiar alguns indivíduos em detrimento de outros: “quanto mais

intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o

seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e

discriminado.”73

Por isso entende Robert Castel ser a discriminação “escandalosa”, porquanto

se constitui ela em uma negação dos direitos inscritos nos textos constitucionais,

substanciais ao exercício da cidadania. Ademais, o tratamento igualitário dos

indivíduos é uma condição de entrada na democracia moderna, fixando contornos

de uma sociedade na qual os cidadãos podem ser responsáveis por si mesmos.74

72 GOSDAL, 2003, p. 91. 73 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ações Afirmativas e princípio constitucional da igualdade : o Direito como instrumento de transformação social (A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 18. 74 CASTEL, Robert. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones? Tradução de Francisco Morás. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 12.

38

A discriminação é uma conduta que interfere de forma negativa nos direitos

das pessoas, as impedindo, por motivos injustificados, de exercerem plenamente o

direito à igualdade de oportunidades. E a causa da discriminação, segundo observa

Maurício Godinho Delgado, pode residir, muitas vezes, no “cru preconceito, isto é,

um juízo sedimentado desqualificador de uma pessoa em virtude de uma sua

característica determinada externamente”, em razão de sexo e raça, por exemplo.75

Preconceito, para Thereza Cristina Gosdal, constitui em uma ideia

preconcebida acerca de algo ou alguém, advinda de atitude interior de um indivíduo

ou de um grupo, visando à justificativa de sua exploração econômica, política ou

ocultação de antagonismos de classe. O preconceito conduz à discriminação,

infligindo em certas pessoas um tratamento diferenciado e imerecido, fundado, em

geral, no desconhecimento.76

Observa Sergio Gomes da Silva, a respeito da origem do preconceito em

relação às mulheres, que tal fenômeno ocorre em razão de que, por muito tempo,

partia-se da idéia de que o Direito deveria estar a serviço dos homens, os quais

eram tidos, geralmente, como a classe dos mais fortes, o que teria servido para

construir idéias falsas. Desta forma, os preconceitos contra o gênero feminino

estariam presentes nos mais diferentes setores das sociedades.77

No mesmo sentido, Daniel Viana Teixeira entende que os atos

discriminatórios guardam relação direta com a própria estrutura social, a qual foi

moldada, no decorrer dos tempos, segundo necessidades, interesses e pontos de

vista sob o enfoque masculino. Entendendo, por derradeiro, ser um problema não

especificamente de discriminação, mas sim de dominação, sugerindo, como

solução, a presença do poder às mulheres.78

Segundo o mesmo autor, para a obtenção da igualdade de oportunidades, se

faz necessária, então, não apenas a busca dos papéis definidos aos homens, mas,

em especial, uma posição de igual poder às mulheres para criar papéis sociais que

75 DELGADO, Maurício Godinho. Proteções contra discriminação na relação de emprego. In VIANA, Marcio Tulio; RENAULT, Luiz Otavio Linhares. Discriminação . São Paulo: LTr, 2000, p.97. 76 GOSDAL, 2003, p. 92. 77 SILVA, Sergio Gomes. Preconceito e discriminação: as bases da violência contra a mulher. Revista Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília, vol. n. 30, n. 3, Setembro, 2010, p. 561. 78 TEIXEIRA, Daniel Viana. Desigualdade de Gênero : sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Revista Direito GV, vol.6, nº1, Jan/Jun. 2010, São Paulo, p. 261.

39

redefinam os trabalhos em masculinos e femininos. Ademais, informa que muitos

países, como a Suécia, por exemplo, já vem adotando uma visão diferenciada do

problema, procurando interferir na própria estrutura desempenhada tanto pelos

homens quanto pelas mulheres.79

Desse modo, tanto o preconceito quanto a discriminação dirigidos em relação

às mulheres sofrem a interferência de uma conduta humana masculina, seja por

ação ou omissão, violando, diretamente, direitos. O preconceito, portanto, é uma das

causas da discriminação negativa, embora ambas as denominações não se

confundam, visto o preconceito tratar-se de uma idéia pré-concebida que, sem

verificação, acaba por se propagando no meio social em desfavor das mulheres.

A reação das mulheres contra atos discriminatórios, e de cunho

preconceituoso, podem ser observadas em muitos e diversos momentos da História,

segundo afirma Guacira Lopes Louro. Contudo, foi no final do século XIX, no

Ocidente, onde as manifestações do feminismo (movimentos socias feministas)

ganharam visibilidade, adquirindo, a partir de então, um caráter mais expressivo, em

especial pela extensão do direito de voto às mulheres.80

Destaca-se que no Brasil, no ano de 1832, ou seja, ainda durante o século

XIX, Nísia Floresta Brasileira Augusta81 publicou o livro “Direitos das mulheres e

injustiça dos homens”, onde ela reivindicava a igualdade e a educação para as

mulheres, indo contra, portanto, a discriminação e preconceitos da sociedade

patriarcal da época. Tal obra representou, certamente, um marco inicial na luta pelos

direitos das mulheres no país.

Na sequência, na virada do século, ocorreram os movimentos de

reinvindicações femininas, através do sufragismo, fato que passou a ser reconhecido

como a “primeira onda” do feminismo, cujos objetivos imediatos estavam

relacionados à organização familiar, ao acesso aos estudos, e oportunidades para o

79 Ibid, p. 261 e 262. 80 LOURO, 2011, p.18. 81 O seu verdadeiro nome é Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885). Ela foi uma notável educadora, escritora e poetisa, nascida no Rio Grande do Norte. Disponível em: < http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/NisiaFlo.html>. Acesso em 10 maio 2014.

40

desempenho de algumas profissões. Embora, segundo assevera Guacira Lopes

Louro, dirigidos apenas a “interesses de mulheres brancas de classe média”.82

Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que estes primeiros movimentos

feministas ocorridos no início do século XX, possuíam um traço de caráter liberal,

consistindo em uma luta pela “igualdade formal”, fato este que teria marcado, até a

década de 1980, a política pública no Brasil. Ressalta, ademais, que o enfoque

daquele movimento inicial, todavia, era a busca pela igualdade entre os sexos,

passando, posteriormente, para a diferença entre os sexos, enfatizando, então, “os

valores da mulher como mulher”.83

Salienta-se que no Brasil, para além da conquista do direito de votar (ocorrida

em 1932, sob o governo de Getúlio Vargas)84, o Estado, na década de 90, a fim de

promover uma maior participação política das mulheres, criou cotas por sexo para

candidaturas femininas, através da Lei nº 9.504/97. Tal dispositivo legal prevê a

reserva de, no mínimo, 30% e, no máximo, 70% para as candidaturas de cada sexo,

importando num mecanismo de promoção feminina nos espaços formais de poder.

O segundo movimento feminista, conhecido como a “segunda onda” do

feminismo, iniciou no final da década de 60, movido por diferentes grupos de

conscientização, tendo surgido para expressar a insatisfação com os tradicionais

arranjos sociais e políticos da época. Esse movimento ocorreu através de marchas e

protestos públicos, mas teve influências de publicações em jornais, revistas e livros,

como, por exemplo, a clássica obra “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir.85

Os direitos e deveres das mulheres, a partir dos dois movimentos feministas,

deram um grande salto, seja no âmbito público, seja no âmbito privado. Eles

proporcionaram também à sociedade moderna a compreensão de que as mulheres

não poderiam mais fazer parte de um grupo oprimido, vítimas de preconceitos e

discriminações, passando a ser recriada, a partir de então, a relação entre os

gêneros masculino e feminino.

82 Ibid, p. 19. 83 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O Direito à Diferença. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2009, p. 75. 84 BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade: Reestruturação da Ideo logia de Gênero no Brasil. Tradução de Lólito Lourenço de Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 02. 85 LOURO, 2011, p.18.

41

Os comportamentos conservadores da sociedade, em relação à mulher, tanto

na vida doméstica como na social, passaram a ser revistos nos mais diversos

campos. Segundo assevera Leda de Oliveira Pinho, foram os novos métodos

contraceptivos e o maior acesso à escolarização que acabaram por permitir o

acesso das mulheres ao espaço público, outrora voltado e preparado para o modelo

masculino, onde eram os seus representantes quem detinham os melhores postos e

as melhores remunerações.86

Observa Andrea Simpriani, ademais, que o feminismo multicultural

contemporâneo está dirigido a um debate no campo moral, tendo por interesse as

questões de relação interpessoal e a busca por uma “identidade feminina”.

Diferentemente, portanto, do que objetivou o movimento feminista ocorrido no final

da década de 60, o qual estava voltado para reivindicações em relação aos aspectos

de cunho político e econômico da opressão das mulheres.87

A busca pela identidade feminina ocorre em decorrência da notável mudança

havida na sociedade nas últimas décadas, quando houve um acesso maciço das

mulheres ao ensino superior e ao mundo do trabalho.

Mas, segundo informa Nanci Stancki da Luz, apesar da elevação do número

de mulheres no ensino superior, há uma distribuição desigual de gênero entre os

cursos. A participação feminina continua ocorrendo em áreas associadas ao cuidado

e educação, enquanto que a masculina é associada com a racionalidade,

confirmando, portanto, a ocorrência de discriminação também neste setor.88

Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que, ultimamente, a condição de

“dona de casa” se tornou, inclusive, objeto de escárnio social, pois sequer está

incluída nas pesquisas do IBGE como parte integrante da população

economicamente ativa. A sociedade atual, por outro lado, tem esperado da mulher a

86 PINHO, 2005, p. 41. 87 SEMPRIANI, Andrea. Multiculturalismo . Tradução Laureano Pelegrin. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p. 52. 88 LUZ, Nanci Stancki. Divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no Brasil. In: LUZ, Nanci Stancki et al (org.) Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola. Curitiba: UTFPR, 2009, p. 159.

42

submissão a uma dupla jornada de trabalho, reforçando o pensamento machista

presente ainda na cultura brasileira.89

Pesquisas comprovam que, embora o modelo contemporâneo de família

esteja sendo alterado nos últimos tempos, as mulheres brasileiras ainda são as

responsáveis pelo cuidado dos filhos e dos afazeres domésticos. Segundo

estatísticas da PNAD, no conjunto de cônjuges que realizam afazeres domésticos,

96% são mulheres. São elas que participam com mais intensidade e gastam um

número de horas mais elevado no cuidado de tais atividades do que os homens.90

Alice Monteiro de Barros lembra que a educação transmitida pela família,

antigamente, induzia as mulheres a relegar a um plano secundário a vida

profissional, incutindo-lhes a idéia de que elas deveriam estar disponíveis para as

atividades relacionadas aos cuidados domésticos, relegando aos homens a

responsabilidade pelo sustento familiar. E isto acabou por influenciar a própria

estrutura ocupacional das mulheres no mercado de trabalho.91

Além do mais, ressaltando a importância da família no direcionamento da

escolha profissional dos indivíduos, Nanci Stancki da Luz observa que, nos

processos de socialização familiar, os próprios brinquedos oferecidos às meninas e

aos meninos reforçam a divisão sexual do trabalho. Assim, ao serem oferecidos a

eles jogos eletrônicos e carrinhos, e para elas utensílios domésticos e bonecas,

acaba sendo transmitida a ideia dessa divisão de papéis.92

É inegável, contudo, que a grande inclusão das mulheres no ensino superior,

verificada nas últimas décadas no país, tem contribuído para o avanço das mulheres

nos mais variados setores profissionais. Mas a distribuição desigual das tarefas no

âmbito familiar, somada à questões relacionadas à própria condição feminina

(reprodução e amamentação) tem mantido a desvalorização do trabalho da mulher.

A dupla jornada a que são submetidas às mulheres, em razão da necessidade

de conciliar a vida familiar e profissional, aliadas às questões biológicas, acaba por

89 CRUZ, 2009, p.40. 90 Disponível: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tempo_trabalho_afdom_pnad2001 2005.pdf, acesso em 10 abril 2014. 91 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no emprego por motivo de sexo. In: VIANA, Márcio Túlio, RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coord). Discriminação : estudos. São Paulo: Ltr, 2000, p. 32. 92 LUZ, 2009, p. 160.

43

sujeitá-las a precarização de suas atividades, incorrendo em alguns fenômenos

como: terceirização, informalidade, flexibilização, baixas remunerações, entre outros

que acabam por desvalorizar e diminuir chances de êxito profissional.93

Importa ressaltar que certas diferenças, além de darem ensejo ao trabalho

precário da mulher, causam, sobretudo, discriminações por gênero no ambiente de

trabalho, nas mais variadas formas e fundamentos. Mas, ainda pior, pode acontecer

quando há outro fator discriminante agregado, como, por exemplo, a raça. Nestas

situações, a discriminação ocorrerá de forma dupla, sendo, portanto, potencializada,

podendo ocasionar indignidade na própria condição humana destas mulheres.

1.3 A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER NEGRA

1.3.1 Desigualdade e discriminação racial

O gênero é um fator que gera desigualdades e discriminações entre homens

e mulheres. Mas outro fator que pode ser constatado, também pelo físico dos seres

humanos, é a raça, embora esta compreenda mais a ideia de traços encontrados em

grupos específicos, como os negros, por exemplo.

A palavra “negra”, segundo observa Antonio Sérgio Guimarães, foi utilizada

inicialmente pelos europeus para fazer referência à cor da pele escura de alguns

povos, após as conquistas do século XVI. A partir de então, tal palavra passou a ser

utilizada como fonte de sentimento negativo, visto que no Ocidente cristão, a

coloração negra significava derrota, pecado, enquanto que o branco significava

pureza, sucesso, e a sabedoria.94

93 Ibid, p. 161. 94 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito racial: temas e tempo. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2012, p. 11.

44

Entre os séculos XVII e XIX, a ciência moderna criou para os negros e

“homens de cor”, teorias raciais ou racistas, sob a suposição de existência de raças

humanas, na busca de explicações biológicas para as suas origens, capacidades e

habilidades. O médico francês François Bernier, no ano 1684, foi o primeiro autor a

fazer uso da noção de raça, propondo em sua obra uma classificação pautada nos

diferentes tipos físicos nos diversos continentes.95

Tal obra denominada “Nova Divisão da Terra pelas Diferentes Espécies ou

Raças de Homens que a Habitam”, utilizando-se não apenas da cor da pele, mas de

outros traços fisionômicos, agrupou os europeus, os norte-africanos, os habitantes

do Oriente Médio, os persas e iranianos numa mesma espécie. A diferença de cor

entre essas populações seria devido à exposição solar. E à raça encontrada nas

demais partes da África foi atribuída por Bernier como “negra”. 96

Segundo Lilia Moritz Schwarcz, o termo raça teria sido introduzido na

literatura por Georges Cuvier, no início do século XIX, dando início à idéia da

existência de heranças físicas permanentes entre grupos humanos diversos.97 Este

cientista, ademais, representou as raças como uma hierarquia explicada por

diferenças de cultura e de qualidade mental, com os brancos no topo e os negros na

base, conceito este que para alguns vigora até os dias atuais.

Jessé de Souza, ademais, atribui esta suposta concepção de superioridade

de raças, ainda verificada atualmente, a uma associação inconsciente e pré-reflexiva

de alguns indivíduos, para os quais, a “raça branca” é associada aos povos

europeus e sua herança cultural, possuindo autocontrole e disciplina em suas

necessidades corporais. E já a “raça negra” está relacionada com primitivismo

africano, sendo, por isso, considerada inferior e percebida como “repositário de

valores ambíguos como força muscular e sensualidade.” 98

As teorias raciais, entretanto, não são de ordem biológica, ainda que possam

conceituar, arbitrariamente, grupos humanos pelo conjunto de caracteres físicos

95 SOARES FILHO, Almiro de Sena. A cor da Pele. Curitiba: Instituto Memória, 2010, p. 45. 96 GUIMARÃES, 2012, p. 18. 97 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 47. 98 SOUZA, Jessé. A visibilidade da raça e a invisibilidade da classe contra as evidências do conhecimento imediato. In: SOUZA, Jessé (Org.) A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 85.

45

hereditários como a cor da pele, formato da cabeça, tipo de cabelo entre outros.

Segundo Antonio Sergio Guimarães, o que as teorias faziam (e fazem) é reproduzir

preconceitos vulgares para justificar a exploração econômica, a dominação política,

e relações de classe daqueles que detém o poder.99

Com efeito, o conceito de raça, tal qual tem sido utilizado, não tem

fundamento científico, sendo tal palavra considerada até de difícil definição. Todavia,

está presente tanto no imaginário popular, como pelo próprio IBGE, onde permanece

a adoção de uma multiplicidade das raças: branca, preta, amarela, parda ou

indígena, sendo utilizadas as categorias raça/cor: “preta” e “parda”, como

equivalentes à categoria raça/cor: “negra”.100

Ali Kamel observa que já é consenso entre os geneticistas, nas últimas

décadas, que não há diferença entre os homens, os quais são considerados todos

iguais, ou “igualmente diferentes”. A propósito, a ciência já afirmou que associação

entre raça e doença não passa de um mito. A equivocada atribuição de determinada

doença a uma raça (como, por exemplo, a anemia falciforme), na verdade, nada tem

a ver com a questão racial, mas sim com grupos populacionais, em razão dos

casamentos realizados entre seus pares.101

Por outro lado, acerca das diferenças na coletividade humana, segundo crítica

de Demétrio Magnoli, embora a ciência tenha mesmo desmoralizado a crença

anacrônica sobre o racismo, o multiculturalismo, no entanto, teria acabado por

replantar as raças no solo da cultura.102 Ou seja, para esse autor, embora

cientificamente inexista o racismo, persiste por questões relacionadas à diversidade

cultural presente nas sociedades.

Raça, portanto, pode ser considerada como um conceito social, e não um

conceito científico, pois nem a genética oferece subsídio algum para a idéia social e

cultural referente à questão racial, segundo assevera Craig Venter, um dos maiores

geneticistas do mundo, tendo sido o primeiro a descrever a sequência do genoma

99 GUIMARÃES, 2012, p. 21. 100 SOARES FILHO, 2010, p. 49. 101 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 43. 102 MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue : história do pensamento racial. 1 ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009, p. 15.

46

humano. Os indivíduos negros, segundo este cientista, diferem tanto entre si, quanto

os indivíduos brancos.103

Desse modo, o conceito de raça, segundo os estudos avançados no campo

da genética, bem como pelas seguras pesquisas realizadas pela ciência moderna,

está, de fato, desvinculado de critérios biológicos, confirmando ser oriundo de uma

construção eminentemente sociocultural, ocorrendo na forma negativa ou positiva,

conforme o objetivo que se lhe queira dar, segundo observa José Augusto Lindgren

Alves.104

Contudo, o problema não está somente na existência ou não de raças, mas,

principalmente, no sentido que é dado ao termo, até mesmo porque a categoria

“raça” não teria mais utilidade prática atualmente.105Segundo Sergio Pena, é preciso

ser assimilado à noção de que há apenas uma única divisão de cunho biológico

coerente da espécie humana, que é a que resulta em bilhares de indivíduos, e não

em algumas “raças”.106

Ademais, ao serem atribuídos aos indivíduos alguns caracteres, como às

diferenças físicas ou etno-religiosas, por exemplo, poderia estar se incorrendo em

um ato de “racismo”, o qual, quase sempre, ocorre com conotação negativa, no

sentido de segregar, discriminar individualmente ou uma coletividade, fruto de uma

ideologia preconceituosa.

Observa-se que a questão racial já foi, inclusive, objeto de apreciação pelo

Supremo Tribunal Federal107, processo no qual houve a condenação de Siegfried

Ellwanger, autor de obras com conteúdo antissemita, pelo crime de racismo. Nesses

autos, após debates acerca do significado jurídico do termo, reconheceu-se o

racismo como sendo um fenômeno social, e que a existência de “raças” decorrem de

mera concepção histórica, política e social.

103 Jornal da Ciência. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.php?id=11494. Acesso 10 abr. 2014. 104 ALVES, José Augusto Lindgren. A conferência de Durban contra o Racismo e a responsabilidade de todos. Revista Brasileira de Política Internacional. Vol. 45, n. 2, Brasília, jul/dez. 2002, p. 203. 105 GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 48. 106 PENA, Sergio. Receita para uma humanidade desracializada. In FRY, Peter et al. Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 41. 107 Autos HC 82.424-QO/RS, Rel. Min. Maurício Correa, conhecido como “Caso Ellwanger”.

47

Os argumentos pseudocientíficos justificaram, durante muito tempo, os

comportamentos raciais. Atualmente, porém, a genética já colocou abaixo o

fundamento dessas teses, e estabeleceu que as diferenças entre indivíduos não são

determinadas por herança biológica ancestral, mas, sim, dependem de atributos

individuais e das experiências socioculturais de cada um.

Além do mais, como não existem diferenças genéticas significativas entre as

raças, os seres humanos podem ser considerados todos parentes, sendo, ao

mesmo tempo, diferentes entre si. Por isso, o racismo, que por sua vez gera o

preconceito racial, não pode ser tolerado em nenhuma parte do mundo, ainda que

as relações raciais ocorram de forma diferenciada nos países, podendo haver menor

ou maior tolerância, como é verificado em diversos países.

As relações raciais no Brasil são consideradas diferentes das observadas em

países como EUA e África do Sul,108 onde há uma tensão de natureza puramente

racial, o que não é verificado neste país. Segundo Gilberto Freyre109, tal fato pode

ser atribuído à intensa miscigenação ocorrida, a qual teria levado a formação do tipo

brasileiro, considerado como um indivíduo dotado de maior elasticidade e

passividade nas relações sociais. 110

Entretanto, alguns autores como Alvaro Ricardo de Souza Cruz, por exemplo,

entendem que a “democracia racial” é um mito, por desconsiderar a existência da

distinção entre as raças, e, consequentemente, do racismo entre os brasileiros.111A

seu ver, é este o motivo, inclusive, que tem dificultado a consecução de medidas

afirmativas no Brasil, o qual tem sido amplamente difundido pelas mídias em geral,

do “mito da democracia racial”.

O racismo brasileiro, resultante de um processo sócio-econômico-cultural,

expressa-se através das desigualdades verificadas em diversos indicadores sociais

(renda, emprego, educação, saúde, moradia). Pesquisas diversas já realizadas 108 Países em que tiveram como líderes em defesa dos direitos dos negros: Martin Luter King (1929-1968) e Nelson Mandela (1918-2013), respectivamente. 109 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: formação da família brasilei ra sob o regime da economia patriarcal . 51 ed. São Paulo: Global, 2006, pp. 116 e 117. 110 Destaca-se que este entendimento de Freyre teria levado alguns estudiosos à conclusão de que no Brasil haveria uma “democracia racial”, fato este que o teria levado a ser conhecido como autor deste conceito. Contudo, tal fato é contestado de forma contundente por Ali Kamel. KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 18. 111 CRUZ, 2009, p. 135.

48

demonstram a existência de diferenças significativas na apropriação da riqueza e no

acesso aos serviços básicos pelos negros, pertencentes às camadas socias mais

baixas.

Além do mais, as desigualdades raciais podem ser acentuadas quando há um

grupo dominante, geralmente detentor de maior força, e que acaba por impor

características que lhes favoreçam, na busca de melhores posições na hierarquia

social (espaços de poder, decisão e prestígio). Tal fato, contudo, acaba por dar

origem a uma cultura de discriminação racial, presente na maioria das sociedades.

A questão da discriminação racial-social-econômica dos negros, no Brasil,

está diretamente ligada ao passado, remontando ao século XVI, quando teve início o

comércio de escravos no período colonial. Segundo Thereza Cristina Gosdal, tal fato

teria ocorrido em razão do sistema capitalista mercantil vigente na época, no mundo

ocidental, voltado à produção do lucro pela exploração do trabalho.112

Ressalta-se que a escravidão ocorreu, primeiramente, com os indígenas,

como uma tentativa que os portugueses encontraram para lucrar com a colônia,

através do cultivo da cana-de-açúcar, visto que a busca pelo ouro e prata haviam,

incialmente, sido frustradas. Para tanto, exigia-se, para a produção do açúcar, uma

grande quantidade de mão-de-obra e trabalho constante.113

Diante da mal sucedida escravidão dos indígenas, houve a substituição pela

mão-de-obra dos negros, os quais foram trazidos à força para as colônias. O

transporte era feito em navios em condições extremamente ruins, onde as doenças

se proliferavam de forma avassaladora, sendo comum a ocorrência de óbitos pelos

negros, tanto por doenças, como pela fome, além do cometimento de suicídios.114

Recentemente foi noticiada pela imprensa escrita, inclusive, a descoberta de

uma cova coletiva no Rio de Janeiro, onde os corpos dos escravos mortos durante o

transporte pelo Atlântico apodreciam em meio a pilhas de lixo. Este “cais sórdido”,

como foi chamado pelo jornal, funcionou até a década de 1840, quando então as

112 GOSDAL, 2002, p. 231. 113 Ibid,p. 232. 114

Ibid,p. 232.

49

autoridades os enterravam sob docas projetadas para receber a nova imperadora do

Brasil, que estava vindo da Europa para o Brasil.115

Os escravos, quando então não morriam antes de chegar ao país, eram

submetidos ao árduo trabalho, castigos corporais, e diversas humilhações. Além do

mais, eram excluídos do convívio social, e tinham que suportar a própria

desintegração familiar, pois, ao chegar ao Brasil, havia grande probabilidade de que

cada membro da família fosse vendido para diferentes fazendeiros, degenerando

profundamente as relações sociais.116

Álvaro Ricardo de Souza Cruz observa que o mito existente de que o negro

era mais dócil, e o indígena incapaz para trabalhar, faz parte de uma “ideologia

racista” do escravagismo. Pois diversos estudos já comprovaram que, na verdade,

houve uma grande perda da população indígena117, razão pela qual não foi possível

corresponder com a expectativa de mão-de-obra esperada pelos portugueses para o

trabalho na agricultura.118

Além do mais, a alegada “passividade” dos negros, em aceitar o regime de

cativeiro, também não corresponde à realidade da época, visto que as rebeliões

eram constantes, tendo como exemplo mais marcante as manifestações ocorridas

pelos quilombolas em Palmares. E em decorrência delas, os quilombos, na visão

escravagista, foram associados à idéia de “vadiagem”, tornado comum à concepção

de que “negro bom” era aquele que trabalhava, ou seja, que não se rebelava.119

Outras demonstrações de que a população negra não aceitava passivamente

o regime da escravatura, é verificado através da grande quantidade de pedidos de

liberdade ocorridos no século XIX, durante ainda o período de escravidão. Conforme

resultado encontrado em pesquisa realizada por Keila Grinberg, foram encontradas,

115Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2014/03/11/corrida-do-rio-para-o-futuro-cruza-com-o-passado-escravo.htm>. Acesso em: 10 abr. 14. 116 PAIXÃO, Marcelo. Histórias das Diferenças e das Desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES Flavio (orgs.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 298. 117 Estima-se que a escravidão teria provocado cerca de 90% dos óbitos dos ameríndios em algumas regiões da América. (CRUZ, p. 131). 118 CRUZ, 2009, p. 133. 119 Ibid, p. 135.

50

na Corte de Apelação do Rio de Janeiro, cerca de 380 ações de liberdade,

superando, inclusive, os processos criminais.120

Thereza Cristina Gosdal informa que muitas foram as formas de reação dos

negros contra a opressão a que sofriam por conta do regime escravo. Alguns,

pacificamente, optavam pelo suicídio, aborto ou através da resistência ao trabalho

forçado. Outros, reagiam ativamente através de fugas, formando-se os conhecidos

quilombos, comuns em todo o período escravista. Também ocorriam atentados

contra a vida dos proprietários e familiares, sendo tais atos, também, severamente

repreendidos.121

Marcelo Paixão ressalta a importância que tiveram as mulheres negras na

resistência à dominação, contrariando, deste modo, à ideia de que a aceitavam

pacificamente. Informa este autor que as mulheres agiam a fim de proteger seus

filhos e companheiros, bem como a comunidade a qual pertenciam, no intuito de

garantir a integridade física e psicológica de todos. E, para evitar que a venda de

filhos e esposo ocorressem em separado, rebelavam-se ameaçando os senhores

com o suicídio e infanticídio, além da recusa ao trabalho.122

Segundo consta na legislação referente à escravidão, o negro era

considerado um objeto, e classificado como uma mercadoria (coisa). Mas, como

naquela época na Europa o trabalho era livre, com o passar do tempo, em

decorrência das transformações nas relações sociais, e nos interesses econômicos

(especialmente a formação de um mercado consumidor, pela Inglaterra), o discurso

escravista no país foi sofrendo modificações, até culminar na abolição, em 1888,

através da edição da Lei Áurea.123

120 GRINBERG, Keila. Liberata : a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, p. 9. 121 GOSDAL, 2002, p. 235. 122 PAIXÃO, 2012, p. 298. 123 Ressalta-se que até a promulgação definitiva da abolição da escravatura, muitas leis foram criadas no sentido de ‘libertar lentamente’ os trabalhadores forçados. Em setembro de 1871 foi criada a Lei do Ventre Livre, que concedeu liberdade aos escravos nascidos no Brasil após a data de promulgação da mesma. Conta-se, contudo, que ao nascerem eram simplesmente abandonados por ordem do proprietário da mãe do recém-nascido; e a Lei dos Sexagenários, favorável aos escravos de mais de 60 anos, os quais eram simplesmente expulsos das fazendas sem nenhuma indenização ou amparo do governo. A Princesa Isabel, como regente do Brasil Imperial, foi a responsável por assinar a Lei Áurea (Lei Imperial nº 3.353), depois de diversas tentativas empenhadas pelos integrantes da Campanha Abolicionista, que se desenvolvia desde 1870. A sanção da referida Lei foi

51

Celso Furtado observa que a abolição dos escravos no Brasil significou mais

uma medida de caráter político do que econômico, visto que não foram verificadas

alterações significativas na organização da produção, e nem na distribuição da

renda naquela época. Ou seja, o período escravista teria servido mais como base de

um sistema regional de poder, do que como forma de organização produtiva.124

A referida lei que pôs fim à escravidão125, contudo, concedeu apenas a

liberdade “formal” aos escravos, não tendo representado solução à situação do

negro, que se viu impelido, para tentar se manter, ou retornar às áreas rurais, ou

sujeitar-se ao recebimento de ínfimos salários. Além do mais, segundo Antonio

Celso Baeta Minhoto, o escravo negro, recém-liberto, estava diante de outro

problema, a ausência de identidade própria, pois até então era considerado como

um bem social.126

Além do mais, observa Thereza Cristina Gosdal que na mentalidade dos

escravos negros, o trabalho, em razão da escravidão, possuía conotação pejorativa,

estando esta integrada na psicologia coletiva. Deste modo, era preferível para eles o

estabelecimento em distantes locais, vivendo da caça, pesca ou lavoura, à trabalhar

de forma rígida e disciplinada, garantindo, ao menos, a conquistada liberdade e a

própria dignidade social.127

A abolição da escravidão significou para o negro, portanto, uma fase de

elaboração de nova concepção de sua própria identidade, e o seu papel na

sociedade, implicando em novos padrões de comportamento, diante da liberdade

recém-adquirida. No entanto, se por um lado ele estava livre, a dependência

econômica permanecia, assim como a visão geral estereotipada (negativa) em seu

desfavor.

Antonio Celso Baeta Minhoto observa, ademais, que a escravidão ocorrida

nas Américas foi desprovida de lastro ideológico racial, tendo ela ocorrido como

produto de inspiração fundamentalmente econômica, em consonância com o início

do período capitalista. E a escolha pelo trabalho dos negros africanos foi em razão

um enorme passo dado pelos liberais, que um ano mais tarde iriam derrubar o sistema monárquico em favor da Proclamação da República. 124 FURTADO, 2007, p. 204 e 205. 125 O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. (MINHOTO, 2013, p. 46.) 126 Ibid, p. 46. 127 GOSDAL, 2002, p. 246.

52

de que eram eles considerados mais eficientes que outros grupos étnicos na lavoura

da cana-de-açúcar, e pela maior capacidade de adaptação ao clima tropical que

possuíam.128

Porém, muito embora a ideologia da escravidão no Brasil não tenha tido

cunho racial, durante o período de trabalho escravo havia a presença de um

sentimento desfavorável atribuído à raça negra. Tal fato teria levado a disseminação

de um estereótipo negativo em desfavor dos negros129, fato este que não pode ser

deixado de ser considerado na análise de sua trajetória social no país,

especialmente no período após a abolição.

Os escravos, recém-libertos, passaram da categoria de “coisa” para,

legalmente, desfrutarem a condição de cidadãos. No entanto, diante da ausência de

políticas governamentais, de apoio e incentivo para os negros iniciarem uma nova

vida, gerou-se graves consequências de cerceamento de oportunidades, os

impedindo de exercitarem plenamente a cidadania conquistada. Além do mais, a

presença do analfabetismo era comum maioria dos ex-escravos, fato que agravava

a situação deles, informa Camilla Cowling130.

Os negros recém-libertados, segundo observa Thereza Cristina Gosdal,

acabaram formando um “contingente desenraizado”, aos quais eram relegadas as

piores tarefas, e pagas pífias remunerações.131Neste cenário, onde os negros

estavam praticamente abandonados ao acaso numa sociedade elitizada, acabavam

alguns ingressando na marginalidade para garantir a própria sobrevivência.

Assim, se por um lado os negros ganharam a liberdade com respaldo legal,

de outro, deixaram de ganhar subsídios para que pudessem ser inseridos à nova

ordem econômica do país. Portanto, daí já se denota o início da formação de uma

estrutura social restritiva, que deixou de promover, naquele importante momento

histórico, as possibilidades reais de mobilidade, mantendo, ademais, a estratificação

discriminatória da sociedade, atingindo, especialmente, as mulheres negras. 128 MINHOTO, Antonio Celso Baeta. Da escravidão às cotas : a ação afirmativa e os negros no Brasil. Birigui, SP: Boreal Editora, 2013, p. 44. 129 Ibid, p. 45. 130 COWLING, Camila. O fundo de emancipação “livro de ouro” e as mulheres escravizadas: gênero, abolição e os significados da liberdade na corte, anos 1880. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES Flavio (orgs.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 219. 131 GOSDAL, 2002, p. 248.

53

1.3.2 Discriminação da mulher negra

Ao longo da história, as mulheres tiveram importante participação na

formação das sociedades em geral, vinda a alcançar voos de dimensões

inimagináveis. Por certo, ainda que tenham conseguido conquistar a igualdade em

relação aos homens, ocupando posições significativas, há um grupo de mulheres

que ainda estão muito aquém dos direitos outrora conquistados, como as negras,

por exemplo.

Para tratar da realidade da mulher negra no Brasil, atualmente, é necessário

remontar ao período em que elas chegaram ao país, a fim de verificar em que

contexto histórico, e sob quais condições elas vivenciavam as relações públicas e

privadas na sociedade escravocrata, no início do século XVI. Época esta em que,

ressalta-se, as mulheres, assim como homens e crianças, em razão de seus

fenótipos e origem africana, era tratados como coisas, e não como seres

humanos.132

As mulheres negras, no tempo da escravidão, segundo observação de Sonia

Maria Giacomini,133 além de serem tratadas como “coisa”, representando um objeto

de comercialização para o trabalho escravo, também eram consideradas como

objeto de satisfação sexual, amamentação dos filhos dos homens brancos e, ainda,

como “saco de pancada das sinhazinhas”, porque, além de escravas, eram elas

mulheres, assevera esta autora.

Cabe lembrar que a sociedade era estruturada sob o paradigma do

patriarcalismo, marcada pelo domínio e exploração do homem branco tanto em

relação ao gênero como da raça, ao qual era permitida, na esfera privada, a

possibilidade de exercer a própria sexualidade de forma livre, inclusive podendo

buscar satisfação fora da vida conjugal, conforme observam Carla Bassanezi Pinky

e Joana Maria Pedro.134

132 SOARES, 2010, p.21. 133 GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava : uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Curitiba: Appris, 2013, p. 103. 134 PINSKY, Carla Bassanezi, PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 16.

54

Sendo assim, as escravas, submetidas a uma relação de subordinação e

submissão, expostas à opressão, eram, rotineiramente, além de oprimidas pelas

relações de gênero, sexualmente violentadas dentro das próprias senzalas. E isto

acabou por contribuir na formação de uma imagem de suposta permissividade

sexual, segundo informa Marcelo Paixão e Flavio Gomes, de forma a ocasionar uma

estigmatização e grande erotização do corpo da mulher negra.135

Conforme aduz Carlos Roberto Bacila, se a inferioridade feminina é vista

como um estigma, em razão da alta concentração de poder que detém a figura

masculina136, poder-se-ia afirmar, sob este viés, que as mulheres negras, portanto,

são estigmatizadas sob as mais variadas formas, o que acaba por reforçar aquela

imagem negativa a elas associada.

Além do mais, durante a época da escravidão surgiu a teoria do racismo

científico, conforme a qual os intelectuais e a própria elite política definiam o negro

como raça inferior. Desta forma, as mulheres negras eram, invariavelmente

associadas à animalidade e perversão, sendo alvo de ataques diversos, de

estereótipos e estigmas de cunhos também pejorativos, segundo observa Petrônio

Domingues.137

Segundo relatos de mulheres negras no Brasil, oriundo de pesquisa realizada

por Emerson Rocha, é comum nas rodas sociais ouvir entre os indivíduos piadas

sobre “pretos” e “macacos”. No entanto, tal discriminação é verificada ainda na fase

infantil, como nas escolas, onde as meninas negras comumente são alvo de

chacotas como: “benfeito, estava pulando como uma macaca”; “vai pro circo

chipanzé”; “olha o cabelo dela”; entre outras.138

Além do mais, ainda na mesma pesquisa139 há relatos de mulheres negras

que se ressentem por não passarem a maior parte de suas vidas despercebidas

(pelo fato de possuírem uma cor), ao contrário do que ocorre com pessoas brancas,

135 PAIXÃO, 2009, p. 955. 136 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas : um estudo sobre os preconceitos. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008, p. 51. 137 DOMINGUES, Petrônio. Zizinha Guimarães: entre a história e a memória. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012, 267. 138 ROCHA, Emerson. Cor e dor moral. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira : quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 354 e 355. 139 Ibid., p. 355.

55

o que lhes geram um sofrimento íntimo, calado. Mas, sobretudo, sentem-se

incapazes de compreender este sofrimento, causado por motivo de racismo, em um

país composto por “pessoas tão multicoloridas”.

A cor da pele está diretamente ligada à imagem, à estética dos seres

humanos, especialmente das mulheres na cultura ocidental. A estética, por sua vez,

pode ser considerada como grande influenciadora na sociedade, de maneira a

formar critérios de gostos, opiniões, escolhas e situações. Contudo, com a sua

supervalorização atualmente, tal fato acaba por gerar discriminações em relação à

mulher negra, haja vista o imposto padrão estético atual.

É notória, tanto no imaginário social, como principalmente através dos meios

de comunicação, a padronização de uma beleza branca no país em relação às

mulheres, fazendo com que isto seja referência para a população em geral. Tal

fenômeno é verificado, inclusive, em anúncios de emprego, onde pode haver a

exigência por uma “boa aparência” como critério de seleção, o que, em geral,

significa pessoa de cor branca, embutindo, claramente, conteúdo racista.

Os meios de comunicação, por outro lado, podem se constituir em um espaço

no qual as mulheres negras, ainda que em presença minoritária, venham a construir

uma nova representação, modificando a lógica atual. Ademais, acaba por possibilitar

a veiculação desta nova representação, mais positiva, menos estereotipada das

categorias tradicionalmente conhecidas, como as domésticas e as mulatas.

Como consequência da histórica imagem das mulheres negras, assevera

Sueli Carneiro, que elas sofrem graves sequelas na autoestima, ensejando, em seu

desfavor, uma espécie de violência psicológica, de natureza racial. Tal fato,

ademais, implica em diversas outras consequências, como, por exemplo, no precoce

relacionamento tanto afetivo quanto sexual das meninas negras, as levando,

inclusive, ao envolvimento no turismo sexual, na busca de aceitação e afeto.140

140 CARNEIRO, Sueli. Mulheres Negras, violência e pobreza. In: Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional: diálogos sobre violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas / Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. – Brasília: A Secretaria, 2003, p.15.

56

As mulheres negras no país, segundo a mesma autora141, são tratadas como

“antimusas” pela sociedade em geral. Há relatos de negras, na pesquisa realizada

por Emerson Rocha142, que, na ânsia de corresponder ao padrão estético

estabelecido na coletividade, quando crianças, penteavam os cabelos,

extremamente crespos, com tamanha força que acabavam por fazer o couro

cabeludo sangrar. Em outro relato, uma negra afirma ter evitado, muitas vezes, a

exposição solar, a fim de ficar “mais branquinha”.

Ressalta Emerson Rocha, ademais, que ao homem branco é fácil esquecer-

se da cor, pois conta com a “cumplicidade do mundo”, podendo estar relaxado em

relação à sua cor.143 Mas já em relação ao negro, há forças que sempre o fazem

lembrar, lhes gerando grande angústia e sofrimento, sobretudo no caso das

mulheres, pois a elas é imposto um padrão estético inalcançável. De forma

discriminatória, ocorre uma limitação de suas aspirações e motivações perante a

vida social.

Observa Devah Pager144que os grupos estigmatizados sentem a

discriminação como algo que, invariavelmente, permeia suas vidas. O mesmo autor

informa, ainda, que pesquisas comprovam que os indivíduos discriminados são

mesmo mais propensos a sofrer de ansiedade, depressão, e vários outros

problemas que influenciam na saúde de uma forma geral.

A saúde mulher negra, aliás, já foi bastante debatida no país, pelo próprio

Ministério da Saúde, o qual, trazendo a tona o conceito de “doenças raciais”, lançou

no ano de 1996, o Programa de Anemia Falciforme, entre outros nos anos

seguintes, segundo informa Demétrio Magnoli.145 Este autor, contudo, faz severas

críticas às atitudes estatais, ao classificar doenças relacionadas aos negros, como,

por exemplo, a anemia falciforme, sob o fundamento de que, simplesmente, raça

não existe, conforme amplamente comprovado pelos mapas genéticos.146

141 Ibid, p. 16. 142 ROCHA, 2009, p. 354 e 355. 143 Idem, p. 359. 144 PAGER, Devah. Medir a discriminação . Revista de Sociologia da USP, vol. 18, nº 2, São Paulo, nov. 2006, p. 67. 145 MAGNOLI, 2009, p. 344. 146 Ibid, p. 341.

57

A anemia falciforme, contudo, embora comum entre os povos negros,

advindos ou não do continente africano, não pode ser classificada como doença de

negros e nem como doença africana, pois se trata, na realidade, de uma “doença

geográfica”, que resultou de uma “bem-sucedida estratégia evolucionária humana

para lidar com a malária causada pelo Plasmodium falciparum”, informa Magnoli.147

Portanto, é descabido classificar doenças adotando critérios raciais, sob o

risco de estar agindo, de maneira discriminatória, em assunto relacionado à “saúde

dos negros”. Por outro lado, há que se ter em conta que embora a anemia falciforme

não seja considerada uma doença relacionada à raça, ela existe e, assim como

outras doenças, fazem das mulheres negras vítimas de um sistema de saúde

precário, sendo deixado de lhes oferecer a devida atenção para o tratamento.148

Além do mais, a negra também na saúde é vítima de discriminação dentro

dos próprios serviços oferecidos, ao receber atendimento descortês e humilhante

pelos profissionais desta área. É comum o relato de atendimento hostil, o qual gera

nestas mulheres sensação de invisibilidade social, tornando o sofrimento ainda

maior, ao somar a dor da própria doença com a dor que as afeta intimamente.149

A fragilidade do sistema de saúde também é verificada em relação ao

conhecimento precário que as mulheres negras têm em relação à própria fisiologia

reprodutiva, e as formas de anticoncepção. O acesso das mulheres negras à

assistência obstétrica (pré-natal, parto e puerpério) é também inferior em relação às

demais mulheres.150

Ocorre no país uma baixa qualidade de serviços de saúde em relação à

mulher negra, citando, como exemplo, a inadequado atendimento de puérperas.

Informa esta autora que além da falta de cordialidade, há uma baixa utilização de

anestesia no parto vaginal. O acesso a este procedimento é maior às mulheres

brancas do que às negras, refletindo atitudes discriminatórias inclusive na área de

saúde.151

147 Ibid, 341. 148 CORDEIRO, 2007, p. 72. 149 Ibid, p. 72. 150 OLIVEIRA, Fátima. Saúde da população negra : Brasil ano 2001. Brasília Organização Pan-Americana da Saúde, 2003, p. 160. 151 CORDEIRO, 2007, p. 21.

58

O acesso a determinados tipos de exame como, por exemplo, os exames

preventivos do câncer de mama, mamografia e exame do colo do útero

(Papanicolau) também reflete a discriminação. A proporção de atendimentos

realizados a população de brancos é significativamente maior que a de negros,

tendo sido constatado, ademais, que enquanto 19% das mulheres brancas nunca

haviam feito tal procedimento, o índice é de 32,6% para mulheres negras.152

O diferente acesso aos serviços de saúde é, certamente, um dos pontos que

contribuem para o maior adoecimento e menor esperança de vida da população

negra. Segundo dados do IPEA, no ano de 2011, a população negra, em

comparação à população branca, tende a se concentrar um pouco mais nas faixas

mais jovens. Enquanto 42,6% das mulheres negras tinham até 24 anos, as brancas,

na mesma faixa de idade, correspondiam a 37,1% da população.153

De outro lado, a mesma pesquisa verificou que, como reflexo da precariedade

do sistema de saúde para com a mulher negra, foi constatado que estas, com 60

anos ou mais de idade representavam 10,3% do total, enquanto que as mulheres

brancas alcançaram 14%, representado, portanto, uma menor expectativa de vida

para a população negra em comparação à branca.154 Segundo Fátima Oliveira, a

população negra tem uma expectativa de vida 6 anos inferior à população negra (64

e 70 anos, respectivamente).155

No Brasil, a expectativa de vida da mulher negra é de 66 anos, enquanto a da

mulher branca é de 71 anos, sendo que aquela tem 25% a menos de chance de

chegar aos 75 anos como esta. Convém ressaltar, ainda, que a taxa de mortalidade

infantil das crianças negras é de 62,3%, enquanto a das brancas 37,3%, segundo

informa aquela mesma autora.156 Portanto, as diferenças de tratamento encontradas

no sistema de saúde refletem diretamente na população negra feminina no país.

Além do mais, outras diferenças podem ser encontras no tocante à população

negra, como na distribuição de renda. Tatiana Dias Silva observa, primeiramente,

152 Ibid, p.22. 153 MARCONDES, Mariana Mazzini et al. Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 22. 154 Ibid, p. 23. 155 OLIVEIRA, 2003, p. 19. 156 Ibid, p. 19.

59

que a desigualdade dos rendimentos está relacionada, sobretudo, ao pertencimento

racial. Informa a autora que a participação da população negra nos estratos

inferiores é sempre maior que o dobro da participação branca, aqueles

representando 52% com rendimentos igual ou superior a um SM per capta (não

pobres), e 74% vivenciando a extrema pobreza, do total de contingente.157

Em relação ao acesso a bens de consumo e exclusão digital, segundo Layla

Daniele Pedreira de Carvalho, houve uma notável evolução ao longo das últimas

décadas, em razão, provavelmente, também da estabilidade econômica do país.

Como consequência, verificou-se uma diminuição das desigualdades sociais, e,

consequentemente, das desigualdades raciais,158 visto que a população negra é

quem compõe a base da pirâmide social brasileira.

Destaca-se que um fator considerado importante na (e pela) sociedade atual

é o acesso a internet, seja nas trocas de informações como na geração de

conteúdos, nos mais variados segmentos. Contudo, a população negra, do Brasil,

ainda mantem-se em níveis inferiores se considerados à média nacional. Segundo

Layla Daniele Pedreira de Carvalho, 60% desta população permanecem excluídos

dos meios digitais de comunicação, diminuindo, desta forma, as chances para uma

inserção mais igualitária na economia nacional.159

O acesso à escola significa, de uma forma geral, também uma oportunidade

de diminuir as desigualdades ocorridas no país, principalmente em relação à

população de negros. É na inserção escolar que ocorre um importante momento de

socialização do indivíduo, mas que, por outro lado, também são verificadas atitudes

discriminatórias de reprodução de estereótipos, segregações, atingindo duramente

esta população.

Ressalta-se que a situação dos negros no Brasil, como já verificado, foi

marcada por grande opressão. Maria Ligia de Oliveira Barbosa informa que no ano

de 1835, era vedado, por lei, a matrícula de escravos em qualquer escola, inclusive 157 SILVA, Tatiana Dias. Mulheres negras, pobreza e desigualdade de renda. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 115. 158 CARVALHO, Layla Daniele Pedreira. A concretização das desigualdades: disparidade de raça e gênero no acesso a bens e na exclusão digital. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 83. 159 Ibid, p. 102.

60

a primária. Antes da abolição da escravatura, portanto, os negros/escravos recebiam

educação somente em casa, no espaço privado, sendo a educação formal, assim,

privilégios da população branca.160

A mesma autora trás um interessante resultado de pesquisa realizada entre

alunos brancos e negros em relação ao quesito qualidade escolar: alunos negros

que estudaram em escolas de boa qualidade tiveram um desempenho melhor, em

testes de matemática e português, do que alunos brancos que estudaram em

escolas de má qualidade. Isto confirma a igual capacidade de aprendizagem entre

ambos por um lado, e de outro que a qualidade escolar é de fundamental

importância no aprendizado dos alunos.161

Portanto, tão importante quanto o acesso à instituição escolar, é a presença

de qualidade no ensino direcionada aos alunos, sejam brancos ou negros. Mas

outros fatores também devem ser observados, como, por exemplo, o material

didático utilizado em salas de aula, os quais, muitas vezes, trazem como referência

de modelo bem sucedido indivíduos geralmente brancos. Além do mais, alguns

livros fazem, inclusive, apologia ao racismo, contribuindo no afastamento e até na

desistência escolar pelo aluno negro.

As taxas de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais, entre anos de

1993 e 2003, embora tenha apresentado quedas significativas, caindo de 16,4%

para 11,6%, não foi suficiente para diminuir as disparidades escolares na população.

No ano de 2003, o número encontrado de indivíduos brancos, maiores de 15 anos,

analfabetos, foi de 7,1%, e já de indivíduos negros foi de 16,8%, representando mais

que o dobro daqueles, segundo informações do IPEA.162

Em pesquisa mais recente, no tocante ao período de estudos, foi observado

que a média de anos da população com 15 anos ou mais de idade aumentou de 5,5

anos, em 1995, para 7,5 anos, em 2009, significando aumento de apenas 2 anos no

160 BARBOSA, 2005, p.10. 161 Ibid, p. 12. 162 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 1ª edição. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf>. Acesso em 20 abr. 2014.

61

período. E, da mesma forma, também em relação à população negra, houve uma

pequena elevação de 2,4 anos no mesmo intervalo, conforme dados do IPEA.163

Mas há um fator que pode ser decisivo na permanência escolar: a expectativa

da própria família em relação ao desempenho escolar, segundo Maria Ligia de

Oliveira Barbosa. A autora informa que em pesquisa realizada ficou demostrado que

as crianças negras, no Brasil, costumam ser objeto de avalição menos positiva por

parte de suas genitoras, inclusive em relação a esperança quanto ao número de

anos de escolarização de seus filhos.164

Outro motivo que pode ser atribuído à baixa permanência nas instituições

escolares, segundo a mesma autora, seriam as próprias práticas docentes. Uma

observação etnográfica demonstrou que o tratamento dispensado pelas professoras

aos alunos ocorria de forma desigual, e não apenas na educação infantil, sendo

verificado nos diversos níveis tratamento mais favorável e acolhedor em relação ao

aluno branco, em expressa atitude discriminatória em relação ao negro.165

Em relação a presença da população negra nas Universidades, segundo

dados do IPEA, no ano de 2009, a taxa de escolarização no nível superior da mulher

era de 16,6%, e do homem 12,2 %. A taxa de escolarização das mulheres brancas

era 23,8%, enquanto das mulheres negras a taxa é de apenas 9,9%, confirmando a

existência de significativa desigualdade racial também nesta modalidade de

ensino.166

Ressalta-se, todavia, que na análise do referido resultado há que se levar em

conta a políticas públicas estatais adotadas, em razão de pressões sociais ocorridas

na metade de 1990, por mais vagas no ensino superior. Segundo Edilza Correa

Sotero, isto gerou a criação de modelos diversos de ações afirmativas nas

163 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 4ª edição. Disponível em: Acesso em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014. 164 BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. As relações entre educação e raça no Brasil: um objeto em construção. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas b rasileiras . Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.13. 165 Ibid, p. 13. 166 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das Desigualdades. Gênero e Raça. 4ª edição. Disponível em: Acesso em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_retradodesigualdade_ed4.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014.

62

instituições públicas. Além do mais, no ano de 1995, foi introduzido pelo governo

federal o Programa Universidade para Todos (PROUNI) em instituições privadas,

permitindo, neste contexto, o ingresso de mais alunos negros no ensino superior.167

Ainda que o acesso ao ensino superior tenha melhorado, sobretudo a partir

dos anos 1970 (quando houve maior acesso pelas mulheres), e nos anos 1990,

(facilitando o acesso da população negra, em razão tanto da estabilidade da moeda,

como pela adoção de políticas governamentais), há desigualdade em relação às

opções profissionais. Segundo observam Kaizô Iwakami Beltrão e Moema de Poli

Teixeira, os homens brancos continuam a dominar as carreiras de mais alto prestígio

e status social.168

Segundo estes autores, em relação à divisão de carreiras por gênero, aquelas

consideradas femininas estariam relacionadas com o prolongamento das funções

domésticas (ensino, cuidado e serviços), enquanto as consideradas masculinas a

manutenção de maquinários e objetos técnicos. Em relação à divisão de carreiras

por cor, entretanto, verifica-se que os homens negros tendem a realizar o mesmo

tipo de atividades executadas por mulheres brancas, sendo verificado que quanto

mais feminina for a carreira, maior a proporção indivíduos negros.169

Rafael Guerreiro Osório atribui às divisões de carreiras em relação aos

indivíduos brancos e negros à diferença educacional havida entre eles. Além do

mais, há que se levar em conta, também, que a posição social dos negros, ao

ingressarem no mercado de trabalho, em geral já está consolidada, restando grande

chance de encontrarem apenas ocupações relacionadas as atividades manuais de

baixa qualificação e remuneração, tanto para mulheres como para homens

negros.170

167 SOTERO, Edilza Correia. Transformações no acesso ao ensino superior brasileiro: algumas implicações para os diferentes grupos de cor e sexo. In: Dossiê mulheres negras : retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras: Mariana Mazzini Marcondes et al. Brasília: IPEA, 2013, p. 43. 168 BELTRÃO, Kaizô Iwakami; TEIXEIRA, Moema De Poli. Cor e Gênero na seletividade das carreiras universitárias. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas b rasileiras . Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.143. 169 Ibid, p. 174. 170 OSORIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. A geração 80: um documentário estatístico sobre produção das diferenças educacionais entre negros e brancos. In: Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras. Sergei Soares et al (organizador). Rio de Janeiro: Ipea, 2005, p.22.

63

Em relação à diferença de carreiras exercidas entre mulheres brancas e

negras, nota-se discrepância ainda maior, ainda que tenha havido avanços

educacionais, o movimento para melhores ocupações ocorre com as mulheres

brancas. 171 As mulheres negras, provenientes de classes mais pobres, em sua

maioria, acabam por se dirigir aos empregos domésticos, enquanto que as

pertencentes da classe média se voltam para a prestação de serviços, tanto em

áreas administrativas, como de saúde e educação.

A profissão de empregada doméstica, sendo uma profissão que independe de

qualificação, embora exija esforço físico, representa um meio para as mulheres que

vivem em condição social precária para obter renda. E consequentemente, segundo

asseveram os autores, entram estas mulheres na ciranda do consumo, torna-se um

meio também pelo qual geram para si mesmas a aparência de uma vida a qual elas,

provavelmente, estão fadadas a não viver. 172

Mas não são apenas as mulheres negras, com precária condição social, que

sofrem discriminação. Há casos de mulheres que, mesmos possuindo renda,

também são vítimas deste fenômeno, conforme noticiado pelo jornal Gazeta do

Povo, sob o título: “Porta fechada para a discriminação”. A funcionária pública Ana

Claudia Oliveira relata que, por diversas vezes, não conseguiu fechar contrato de

locação, exatamente na etapa final, quando já restava superado o requisito renda

(sendo concursada possui garantia de remuneração mensal).173

Ana Claudia Oliveira comenta, também, que ouviu relatos de pessoas negras

que pediram para que outras pessoas intermediassem a locação, a fim de evitar a

situação por ela enfrentada.174 Tais fatos demonstram, deste modo, que a

discriminação racial no país nem sempre é observada de forma direta, sendo

interessante, portanto, a realização de estudos baseados também em notícias de

jornal, conforme assevera Carlos Hasenbalg.175

171 LIMA, 2013, p.56. 172 CARNEIRO, 2009, p.141. 173 Jornal Gazeta do Povo, edição de 15 de maio de 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/imobiliario/conteudo.phtml?id=1372615&==tit=Porta-fechada-para-discriminacao>. Acesso em 28 abr. 2014. 174 Ibid. 175 GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Entrevista com Carlos Hasenbalg. Revista Tempo Social, SãoPaulo, v.18, n.2, Nov. 2006.Disponívelem:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010320702006000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 30 Apr. 2014.

64

2. A DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA NA RELAÇÃO DE

EMPREGO

2.1 TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO EM FACE DA MULHER NEGRA NA RELAÇÃO

EMPREGATÍCIA

O trabalho pode ser considerado um meio pelo qual os indivíduos podem

superar a situação de pobreza e alcançar condições de vida digna. Nesta

perspectiva, o trabalho remunerado torna-se uma necessidade social, uma forma de

garantir a manutenção própria e familiar, mas que também pode significar uma

necessidade política nos caso das mulheres, dado o contexto histórico e social em

que foram inseridas no mercado de trabalho.

A participação feminina no mundo do trabalho, perpassando pelo processo de

globalização e ajustes estruturais, apresenta-se bastante heterogênea, estando

presente em diversas atividades e setores. O perfil da força de trabalho feminino,

entretanto, é marcado pela forte presença cultural, a qual exerce influência em

relação à execução de determinadas funções, como o trabalho doméstico, por

exemplo, o que acaba por gerar uma dupla jornada de trabalho, sobrecarregando

demasiadamente as trabalhadoras em geral.

Thereza Cristina Gosdal observa que, embora a mulher, a partir do século XX,

tenha sido integrada ao trabalho, o núcleo central de sua identidade social continuou

sendo sua função de mãe e esposa176, ou seja, permaneceram a elas as

responsabilidades domésticas e reprodutivas. Tais atribuições, vistas como

diferenças no capítulo primeiro, acabam por gerar discriminações de gênero no

ambiente de trabalho.

Assevera Antonio Casemiro Ferreira, ademais, que embora existam normas

laborais positivas que visam a assegurar a proteção a determinados grupos, elas

176 GOSDAL, 2003, p. 74.

65

acabam não tendo a devida efetividade, ao não assegurar a proteção esperada,177

como no caso das mulheres (licença maternidade), por exemplo, as quais podem

significar contraditoriamente motivo para a ocorrência de atitudes discriminatórias no

meio laboral.

A caracterização de um ato discriminatória no ambiente de trabalho, segundo

José Claudio Monteiro de Brito, ocorre quando é negada ao trabalhador a igualdade

necessária na aquisição e manutenção do emprego. Na relação de emprego é

verificada, além do mais, a condição ideal para quem irá discriminar, visto que nela

há uma sujeição de um indivíduo por outro, portanto, uma relação de poder onde

facilmente podem ocorrer práticas discriminatórias.178

Ademais, onde há uma relação de poder, geralmente há um estado de

subordinação, o qual, somando-se às características do contrato de trabalho

(pessoal e de trato sucessivo), pode ensejar situações propícias à ocorrência de

práticas discriminatórias, ofensivas aos direitos de igualdade e à dignidade da

pessoa do empregado.

No entanto, nem sempre práticas discriminatórias são verificadas apenas

durante a relação empregatícia. A discriminação pode ser ocorrer até mesmo antes

da própria relação de emprego, atingindo certos grupos de pessoas, como por

exemplo, mulheres e negros, os quais podem ter acesso obstado inclusive a certos

postos de trabalho.179 Verifica-se, atualmente, muitos casos onde há a ocorrência de

impedimento na aquisição do emprego em si, caracterizando atitude discriminatória.

A discriminação no meio laboral, portanto, pode ocorrer sob as mais variadas

formas e em momentos diversos. As condutas discriminatórias intentadas em

desfavor das mulheres, em geral, mas, principalmente, em relação às mulheres

negras, são as mais difíceis de ser comprovadas, tendo em vista tanto a reprimenda

legal como, especialmente, a reprimenda social. Na sociedade contemporânea não

é mais comum revelar preferências, e nem demonstrar explicitamente o racismo.

177 FERREIRA, Antonio Casemiro. Para uma concepção decente e democrática do trabalho e dos seus direitos: (Re)pensar o direito das relações laborais. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais . 2 ed. São Paulo – Cortez, 2002, p.286. 178 BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTR, 2002, p.43. 179 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilícitos. Curitiba: 2009, p. 118.

66

Segundo informa Ana Emilia Andrade Albuquerque da Silva, o Brasil foi a

segunda maior nação escravista da era moderna, perdendo apenas para os Estados

Unidos, tendo sido o maior importador de escravos (40% do total conhecido).

Durante quase cinco séculos foram trazidos cerca de 4 (milhões) de negros para

executarem o trabalho na lavoura, mineração entre outros.180 O escravo além de não

ser considerado sujeito de direito, era privado do convívio social.

A mesma autora informa também que o Brasil foi o penúltimo país a abolir o

tráfico de escravos, no ano de 1850, e o último país a abolir a escravidão, em

1888.181A partir de então, o trabalhador negro, que era a força motriz da economia

nacional, passou a ser considerado preguiçoso, indolente, e sem o conhecimento

necessário para trabalhar na indústria então nascente, perdendo espaço para o

imigrante branco que recém estavam chegando ao país.

Camila Cowling observa que após a abolição, a elite temendo o perigo social

que os escravos libertos representavam, criaram escolas para educar principalmente

os filhos destes, onde quase sempre, porém, aprendiam tarefas domésticas. Tal fato

ocorreu, inclusive, porque nas famílias brasileiras não existia a domesticidade,

sendo comum todo o trabalho doméstico ser realizado exclusivamente pelos

escravos, diferentemente do que ocorria nas famílias europeias, conforme informa a

mesma autora.182

Durante ainda o período imperial (1822-1889), ressalta Flavia Fernandes de

Souza que a escravidão doméstica era mantida, aceita e muito utilizada nas

diferentes camadas sociais, podendo ser considerada como um fenômeno

disseminado nos espaços urbanos. Ademais, a presença de escravos era indicador

de status social, sendo a sua quantidade considerada como um elemento

identificador do grau de poder, riqueza e prestígio de certas famílias durante aquele

período.183

180 SILVA, Ana Emília Andrade Albuquerque da. Discriminação racial no trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 55. 181 Ibid, p. 57. 182 COWLING, 2012, p. 220. 183 SOUZA, Flavia Fernandes de. Escravas do lar: as mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emanc ipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 244.

67

O número de escravos domésticos nas famílias era variável, podendo oscilar

de um a dois em famílias pobres, de cinco a seis em famílias médias e de poucas

posses, e de dez ou mais cativos em núcleos médios menos abastados, informa a

mesma autora. E já nas famílias mais ricas, de mais posses, havia cerca de vinte ou

mais escravos, sendo a maioria alocada para o trabalho doméstico, ocupação esta

que representava a maioria dos escravos, sendo as mulheres o segmento

majoritário.184

Acerca do período pós-abolição, Sonia Maria Giacomini observa que não

houve espaço para a “pacífica coexistência” entre senhoras e escravos, assim como

também não houve muito espaço para a “solidariedade feminina” e, muito menos,

para a emergência de uma “escrava livre enquanto mulher.” Embora estas mulheres,

no âmbito do cativeiro, pudessem ser consideradas muito mais independentes do

ponto de vista econômico que as mulheres brancas, assevera a autora.185

A libertação dos escravos, ademais, não representou para eles a liberdade

efetivamente, e muito menos, a equiparação entre brancos e negros. O grande

contingente de trabalhadores domésticos se manteve, representando no período

pós-abolição, cerca de 14% da população trabalhadora contabilizada e classificada

em diferentes ocupações, ficando atrás somente da categoria denominada “sem

profissão” ou de ocupações “desconhecidas”. Após, vinham outras categorias, como

“manufaturas”, e do “comércio”.186

A dependência econômica, portanto, continuou e as atitudes e

representações socias que regulavam as relações entre as raças somente foram aos

poucos se modificando. Com efeito, Sonia Maria Giacomini ressalta que é a

ocorrência da desmistificação dos papéis atribuídos à mulher negra, na época da

escravidão, que pode levar a um questionamento do discurso dominante sobre a

condição da mulher negra na atualidade.187

184 Ibid, p. 246. 185 GIACOMINI, 2013, p. 104. 186 SOUZA, Flavia Fernandes de. Escravas do lar: as mulheres negras e o trabalho doméstico na corte imperial. In: XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação . São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 244. 187 GIACOMINI, 2013, p. 105.

68

Sonia Maria Giacomini observa que embora a escravidão tenha acabado,

teria restado a presença de suas heranças no “bojo das relações burguesas e

capitalistas”. Segundo a autora, a mulher negra assalariada hoje, grande parte na

condição de empregada doméstica, ou babá de família burguesa e pequeno-

burguesa, confirma a imensa capacidade das classes dominantes de incorporar

privilégios antigos que lhes são próprios188, encobrindo práticas discriminatórias.

A discriminação no mercado de trabalho, segundo Silvia Carine Tramontin

Rios, pode ocorrer de forma direta (quando ela é intencional e consciente), indireta

(quando há uma conduta velada), e oculta (similar à indireta, diferenciando-se

quanto à intencionalidade, sendo nesta forma consciente). A autora ressalta,

todavia, que estas duas últimas formas de discriminação (indireta e oculta) são as

mais difíceis de comprovar quando assim as empresas estão agindo.189

Estevão Mallet, em um entendimento similar em relação à discriminação racial

havida no mercado de trabalho, observa que ela costuma apresenta-se de forma

oculta, disfarçada, e, por vezes, dissimulada, o que a torna ainda mais grave, e, pior,

de difícil identificação e combate.190

A não identificação da discriminação, assim como a concepção de que o

Brasil é uma sociedade desracializada, sem desigualdades, sem distinções sociais,

hierárquicas e econômicas, pautadas nas diferenças fenotípicas, resulta na

sedimentação de um racismo disfarçado, sem rosto nem sanção. Este é o primeiro

óbice a ser ultrapassado na árdua luta contra a discriminação racial no País,

especialmente no mercado de trabalho.

Destarte, diante de dificuldade em averiguar a ocorrência de práticas

discriminatórias em face das mulheres negras, no mercado de trabalho (inclusive

doméstico), nos momentos em que ela pode ocorrer (seja na fase pré-contratual,

como no curso do contrato) lança-se mão de verificação de dados fornecidos em

institutos de pesquisas do país, a fim de localizar tais práticas no âmbito laboral.

188 Ibid, p. 105. 189 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos . Curitiba: 2009, p. 122. 190 MALLET, 2013, p.40.

69

2.1.1 Discriminação na fase pré-contratual

A fase pré-contratual, no âmbito do emprego, é aquela que antecede a

assinatura do contrato de trabalho, consistindo para a empresa o recrutamento e

seleção, e para o indivíduo, a candidatura do emprego. E é neste momento em que,

embora não exista formalmente uma relação de emprego, várias práticas adotadas

no processo de seleção do trabalhador podem configurar condutas discriminatórias.

O período pré-contratual consiste no momento em que a atividade

empresarial busca indivíduos com as características necessárias para integrá-las,

representando, por isso, um momento decisivo para a inserção ou não ao trabalho.

Mas não significa, por outro lado, que o empregador está obrigado a contratar quem

se candidata, sendo, para tal faculdade, estabelecidos limites.

Observa-se que ao mesmo tempo em que há a liberdade de contratar, há

limites para o poder de quem oferta o emprego. No momento pré-contratual, este

deve avaliar somente a capacidade profissional do candidato. Contudo, se ocorrer

de forma diversa, o ofertante estaria extrapolando o poder para obter dados sem

relação com a atividade laboral a ser exercida, incorrendo em ato discriminatório.191

Diversas condutas discriminatórias podem ocorrer nesta fase contratual, como

a exigência de exames relativos à esterilização ou estado de gravidez, quando na

admissão de mulheres; e, de forma geral, quando há arguições pessoais objetivando

obter informações relacionadas a crenças religiosas, estado de saúde, situação

familiar, orientação sexual, entre outros, além das questões ligadas à estética e

aparência física (incluindo aí a “cor da pele”) dos candidatos à vaga de emprego.192

A despeito de todo o aparato de proteção e do que dispõem as normas

internacionais, as discriminações estão presentes no mercado de trabalho. Em face

das dificuldades encontradas pelo indivíduo que procura uma colocação no mercado

de trabalho, surgem as oportunidades do empregador, movido pelo preconceito e

discriminação, violar o seu direito fundamental ao trabalho.

191 MARQUES, Christiani. O contrato de trabalho e a discriminação estética. São Paulo: Ltr, 2002, p. 36. 192 Conforme prevê a Lei 9.029, de 13 de abril de 1995, que proíbe práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.

70

Observa Sandra Lia Simon que na fase pré-contratual se revela uma situação

de vulnerabilidade do empregado, que dispõe de sua força de trabalho e necessita

do emprego para sustento próprio familiar, em relação ao empregador, o qual é

detentor de meios de produção. E este impõe, normalmente, as condições

estabelecidas no contrato, se assemelhando a um contrato de adesão, na busca de

seus interesses privados.193

Mas embora a atividade empresarial conte com a liberdade econômica,

pautada no sistema capitalista, a observância de preceitos de proteção e valorização

da pessoa humana se impõe. Assim, faz-se necessária a preocupação com

eventuais critérios discriminatórios que possam permear o processo seletivo.

A mera apresentação de critérios objetivos durante um processo seletivo,

contudo, não é suficiente para descaracterizar uma atitude discriminatória, pois

critérios subjetivos podem estar escondidos, camuflados, caracterizando a hipótese

de discriminação oculta. Em tal ato não é revelada a real intenção do avaliador,

podendo ocorrer quando, por exemplo, há anúncio de vaga sem discriminação de

sexo ou cor, mas a real intenção é a de contratação de pessoa branca.

Ressalta Luciano Augusto de Toledo Coelho que, se as tratativas pré-

contratuais contrariarem os deveres que a boa-fé impõe, poderá dar ensejo a danos,

tanto ao empregador quanto ao empregado. E tal fato pode advir de condutas

realizadas (através de anúncios e solicitação de exames), ou pela não realização do

próprio contrato, assevera o autor.194

Na fase pré-contratual não se vislumbra a subordinação entre as partes,

considerada um dos elementos da relação de emprego. Assim, para apurar se uma

conduta foi ou não razoável, é necessária a contextualização entre a exigência do

ofertante e a necessidade real para preenchimento de vaga no pretenso emprego,

como por exemplo, quando há exigências que não tenham relação com a finalidade

da atividade profissional, caracterizando indício atitude discriminatória.

193 SIMÓN, Christiani. A proteção constitucional da intimidade e da vida p rivada do empregado. São Paulo: LTr, 2000, p. 129. 194 COELHO, Luciano Augusto de Toledo. Responsabilidade civil pré-contratual em direito d o trabalho. São Paulo, LTr, 2008, p. 42.

71

Ademais, ressalta Eduardo Milleo Baracat que a responsabilidade pré-

contratual, dentre outras situações, decorre dos deveres de proteção. Consiste ela

em um dever das partes em não causar danos diretos ou indiretos durante as

tratativas preliminares do contrato, por meio da observância da conduta de boa-fé,

permitindo, desta forma, evitar condutas discriminatórias.195

No entanto, a ocorrência de atos lesivos à pessoa do trabalhador, fundados

em condutas ilícitas que configurem discriminação, pode dar ensejo ao direito à

reparação, uma vez que, ao dificultar o acesso ao mercado de trabalho, se mostram

impeditivos do direito a igualdade de oportunidades que deve ser garantido a todos,

independentemente de gênero ou raça, inclusive.

Firmino Alves Lima informa que, nos Estados Unidos da América, a agência

do governo Equal Employment Opportunity Comission, encarregada de combater a

discriminação no mercado de trabalho, estabelece diretrizes para os empregadores.

Tais diretrizes, além de orientar os empregadores, também são utilizadas como

auxiliares em decisões judiciais que envolvam condutas discriminatórias.196

O acesso das mulheres e negros ao mercado de trabalho, no Brasil, é

pautado por grande desvantagem histórica. Mesmo antes do capitalismo, quando

havia outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, esta divisão

era marcada pela relação entre produção e reprodução. Coexistindo com essa

divisão, há uma desigualdade racial, advinda do período escravo ocorrido no país.

No entanto, o processo histórico de inserção social especificamente das

mulheres, como trabalhadoras, não é o mesmo entre mulheres brancas e negras.

Para estas, além da problemática de gênero, há a questão da desigualdade racial

verificada no país. Nesta perspectiva, o mercado de trabalho, para as mulheres

negras, torna-se um locus de lutas e tensões entre a inserção desigual e a

transformação social, segundo assevera Maria Betânia Ávila.197

195 BARACAT, Eduardo Milleo. A boa-fé no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 225. 196 LIMA, Firmino Alves. Teoria da discriminação nas relações de trabalho . Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 220. 197 AVILA, Maria Betânia. Reflexões sobre a Desigualdade de Gênero e Raça no Mercado de Trabalho. In: Autonomia econômica e empoderamento da mulher: textos acadêmicos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011, p. 193.

72

Conforme anteriormente informado, cabível repetir que em análise de dados

fornecidos pelo IBGE, contendo microdados Pnad por atividade no mercado de

trabalho, no ano de 2006198, em relação às cinco principais ocupações das

mulheres, verificou-se entre as mulheres brancas que: 33,0% estavam empregadas

no setor privado (com carteira assinada), 13,5% empregadas no mesmo setor (sem

carteira); 13,3% exerciam atividade considerada por conta própria (sem 3º grau),

9,9% empregada pública/estatutária/militar, e 9,0% empregada doméstica (sem

carteira).

Em relação ao trabalho das mulheres negras, a mesma pesquisa mostrou

que: 22,0% estavam empregadas no setor privado (com carteira assinada), 16,6%

trabalhavam como empregada doméstica (sem carteira), 15,9% exercia atividade

considerada por conta própria (sem 3º grau), 14,2% empregadas no setor privado

(sem carteira assinada), e 7,5% empregada pública/estatutária/militar. E em relação

ao emprego doméstico (com carteira), o índice encontrado foi de 5,2%.199

Evidencia-se entre as trabalhadoras brancas e negras, portanto, uma grande

diferença em relação à atividade exercida quando divididas utilizando-se o critério

racial. As mulheres negras, em especial, são as que, de forma já esperada, estão

em maior número nas atividades ligadas aos serviços domésticos, principalmente na

informalidade (sem carteira), haja vista ser uma atividade que não requer elevado

nível educacional, apenas disposição e força física.200

Pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho, aponta que

entre os dez países com maior número de trabalhadores domésticos, oito estão no

chamado mundo emergente. E o Brasil está entre estes, vindo acompanhado pela

Índia, Indonésia, Filipinas, México, Colômbia e Arábia Saudita. Por outro lado, os

países que menos possuem empregados domésticos são: Japão, Austrália, Hungria

e Montenegro, informam Edésio Passos e André Passos.201

198INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2011microdados.shtm> Acesso em 03 maio 2014, p.15. 199 Ibid, p.15. 200 Entre as trabalhadoras negras, uma em cada cinco é trabalhadora doméstica (21,8%). 201 PASSOS, Edésio; PASSOS, André. O Trabalho Doméstico e a Emenda Constitucional 72: resgate, igualdade, perdão, responsabilidade. In: GUNTHER, Luiz Eduardo; MANDALOZZO, Silvana (Coord.). Trabalho doméstico: teoria e prática da Emenda Cons titucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p.80.

73

Em relação às taxas de desocupação no mercado de trabalho brasileiro, no

período de 1995 e 2009, observa-se que a taxa de desemprego feminina é maior

que a masculina, tanto entre brancos e negros. Segundo asseveram Márcia Lima,

Flavia Rios e Danilo França, este resultado decorre da crescente disputa por postos

de trabalho entre mulheres e homens, em especial no setor de serviços. Estes

autores atribuem o desemprego feminino à existência de maiores oportunidades de

trabalho para os homens, mesmo em setores tradicionalmente favoráveis às

mulheres.202

O Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial - INSPIR solicitou ao

DIEESE que elaborasse um estudo da presença da população negra no mercado de

trabalho metropolitano, o qual, desde 2000, vem publicando no dia da Consciência

Negra (20 de novembro) estatísticas sobre a população negra no mercado de

trabalho. Nessas pesquisas, do período entre 1996 a 2004, também ficou

demonstrado que a taxa de desemprego da população negra é mais elevada.203

A mesma pesquisa revelou que naquele período o tempo de procura por

emprego aumentou vertiginosamente. Um negro levava, em média, 15 meses para

conseguir um emprego, lapso bem maior que para a população não-negra. A

diferença é ainda maior, contudo, quando o corte acresce, além da raça, a questão

de gênero, pois entre as mulheres negras a média de procura é de 17 meses; já

entre os homens negros, este tempo cai para 13 meses.204

As mulheres negras são as que apresentam maiores taxas de desocupação,

seguidas pelas mulheres brancas, em terceiro lugar os homens negros, e, por fim,

os homens brancos. A maior taxa de desocupação das mulheres ocorre, em parte,

em razão de sua trajetória diferenciada em termos de inserção no mercado de

trabalho, dada, inclusive a tarefa de conciliar o trabalho remunerado e as atividades

domésticas, observam Márcia Lima, Flavia Rios e Danilo França.205

202 LIMA, 2013, p.66. 203 DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDO SOCIOECONOMICOS –DIEESE. Disponível em:<http://projetos.dieese.org.br/projetos/inspir/relatorioPesquisa.pdf>. Acesso em 04 maio 2014, p. 157. 204 Ibid, p.159. 205 Ibid, p.67.

74

Além do mais, as mulheres negras ingressam mais cedo do que as brancas

no mercado de trabalho, e tendem a sair mais tarde. A entrada precoce no mundo

do trabalho, e a consequente necessidade de conciliar trabalho e estudo, leva não

só a taxa de abandono escolar mais elevada entre os negros em geral, mas também

a piores performances no sistema educacional, que, somadas às manifestações

racistas, acabam desestimulando os jovens negros a permanecerem na escola e os

coloca em situação de desvantagem perante seus colegas brancos. 206

Além de ingressarem mais cedo no mercado de trabalho, as mulheres negras

enfrentam maior jornada de trabalho, pois os postos normalmente elas ocupam

exigem maior número de horas de permanência. Além do mais, embora tenha

ocorrido um aumento da participação feminina na força de trabalho, a sua rotina é

acrescida das “obrigações” domésticas que ainda não são divididas no âmbito

familiar, influenciando na qualidade de vida destas trabalhadoras.

Por fim, é possível constatar que tanto na inserção no mercado de trabalho,

como nos níveis de desemprego ocorrido na população brasileira, especialmente

entre os negros, a escolarização tem papel fundamental. Mas também é importante

destacar que as manifestações racistas que permeiam a sociedade, ainda que

considerada velada, certamente geram atos discriminatórios no meio laboral,

exercendo grande influência nos números encontrados nestas pesquisas realizadas.

Observa-se que, inobstante a existência de normas tanto no âmbito

internacional, como nacional, que vedam a discriminação racial nas relações de

emprego, as práticas discriminatórias em face da mulher negra ocorrem de diversas

maneiras na fase pré-contratual.

As trabalhadoras negras, conforme visto, embora tenham apresentado uma

elevação no ingresso ao mercado de trabalho (PEA), no período de 1995 a 2006,

elas ainda permanecem em desvantagem em relação ao trabalhador negro e à

trabalhadora branca. Foi verificado que ocorrem restrições a elas em determinados

postos de trabalho, por questões de gênero e raça.

206 INSTITUTO BRASILERIO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IPEA. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/primeiraedicao.pdf>. Acesso em 03 maio 2014.

75

Ademais, além de ingressarem mais cedo no mercado de trabalho, e saírem

mais tarde, elas ainda representam o maior número de desocupados, confirmando a

perversa discriminação ocorrida na fase pré-contratual em relação às negras.

2.1.2 Discriminação no curso do contrato

A fase contratual da relação de trabalho compreende o período que decorre

do termo de início do contrato de trabalho até o momento anterior à sua extinção. O

empregador, durante essa fase, tem o dever de respeitar a dignidade de pessoa do

empregado207 e as condições de realização do trabalho, que atinem ao princípio da

boa-fé contratual. Observam Rafaela Correa Leite e Silvia Carine Tramontin Rios

que é exigida do empregador, quando da utilização dos métodos na seleção de

pessoal, uma atitude lícita, diante da inexistência de previsão legal.208

Contudo, na execução do contrato são observadas muitas situações que

constituem descumprimento das obrigações emergentes da relação trabalhista,

sobretudo em decorrência do exercício abusivo do poder, gerando circunstâncias

propícias às discriminações no curso do contrato de trabalho, como por exemplo, em

relação à ascensão profissional, remuneração diferenciada e a dispensa.

Para Firmino Alves de Lima são inúmeras as situações em que o empregador

ou tomador de serviços pode incorrer em atitudes discriminatórias durante o contrato

de trabalho, como quando deixa de conceder os mesmos benefícios a alguns

trabalhadores, ou quando aplica cargas de ônus, de forma desproporcional, aos

empregados. O autor observa que algumas atitudes mais severas podem até

configurar o assédio moral vertical, como quando o empregado é colocado sem

importância para a atividade funcional perante os mais colegas, por exemplo.209

207 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil . Art. 1º, III. Brasília, DF, 05 out 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 04 maio 2014. 208 LEITE, Rafaela Correa; RIOS, Silvia Carine Tramontin. Durante a Contratação. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos. Curitiba: 2009, p. 169. 209 LIMA, 2011, p. 222.

76

Na atual sociedade, capitalista, salarial, a forma preponderante de garantir

renda para sobrevivência é por meio do emprego. Assim, um trabalho remunerado,

preferencialmente formalizado, é uma necessidade social e também política para as

mulheres, tanto para a própria manutenção e/ou de sua família, como para a sua

autonomia e autoafirmação.

Assim, quando há a efetivação de um contrato de trabalho, a mulher

consegue vencer uma etapa importante para o seu acesso ao emprego, vez que

demonstra que ela está inserida no mercado de trabalho. Tal fato pode significar

que, eventuais desigualdades que poderiam influenciar de forma negativa a

contratação, foram ultrapassadas. Contudo, isso não garante a impossibilidade de

ocorrência de atos discriminatórios durante o vínculo empregatício.

As trabalhadoras são vítimas de discriminação, porquanto as relações sociais

são, por si, desiguais e hierarquizadas. Isto ocorre tanto pela exploração da relação

capital/trabalho, como pela dominação masculina sobre a feminina, retratando a

relação entre produção e reprodução. Decorre, daí, a divisão sexual do trabalho,

oriunda desta relação, transformando-se conforme a sociedade que está inserida.

Thereza Cristina Gosdal observa que a vinculação da mulher às tarefas

domésticas e ao cuidado de familiares é considerada como um fator que condiciona

a busca feminina por empregos precários, a tempo parcial ou temporário.210 O

desenvolvimento de atividades em empregos nestas condições acaba por favorecer

a ocorrência de discriminação salarial, influenciando, também, na divisão sexual das

tarefas, seja em ambiente produtivo, como no ambiente doméstico.

Observam Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira e Monica Nicknich que as

trabalhadoras, inicialmente, realizavam atividades como: domésticas, cozinheiras,

costureiras, parceiras sexuais (dos senhores da casa-grande), mineradoras e

agricultoras, tendo mudado este quadro a partir do início do século XX. Mas, mesmo

com a inserção em outras atividades, as mulheres ficavam com as tarefas menos

especializadas e mal remuneradas, tal qual ainda subsiste nos dias de hoje.211

210 GOSDAL, 2003, p. 161. 211 OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar; NICKNICH, Mônica. Uma reflexão sobre o direito das mulheres ao trabalho : a igualdade à luz da filosofia de Bobbio e o pragmatismo da singularidade

77

Atribui-se a discriminação havida em desfavor das mulheres, seja salarial ou

acerca de oportunidades, às questões inerentes ao gênero feminino, como:

gestação, maternidade e responsabilidades familiares. Tais situações decorrem da

visão patriarcal, presente na cultura nacional, que exerceu influência na concepção

do modelo produtivo, e mantém os papéis de cada gênero no âmbito familiar.

Muitas mulheres se submetem a receber baixos salários, e se contentam com

atividades consideradas inferiores, em postos de trabalho menos relevantes,

principalmente por questões econômicas. Isto ocorre, sobretudo, em relação às

mulheres negras, as quais fazem parte de um tipo de “família mais vulnerável” (sem

cônjuge e com filhos pequenos). Mas outros motivos levam a estas situações, como

baixos índices escolares, de renda, e a presença de discriminação nas relações

empregatícias.212

Hélio Santos identifica três tipos básicos de discriminação racial que podem

ocorrem durante a relação empregatícia. A primeira denomina ocupacional, que se

caracteriza pela dificuldade do trabalhador em obter vagas em funções mais bem

remuneradas e valorizadas. Tal fato é verificado quando, por exemplo, o trabalhador

negro é preterido para ocupar cargos hierarquicamente superiores dentro da

empresa. Nesta modalidade, parece haver incertezas quanto à capacidade do

referido trabalhador em executar certas tarefas.213

A segunda prática discriminatória, referida pelo autor, é a denominada

salarial. Tal prática é considerada antiga, e trás a idéia de que o trabalho do

individuo negro tem valor inferior aos demais trabalhadores. A terceira prática seria a

discriminação pela imagem, que, segundo o autor, tem embutida uma espécie de

fobia pela presença do negro. Esta pode ocorrer nos mais variados segmentos, os

quais não consideram o trabalhador negro à altura de imagem ideal que o

empregador pretende passar a sociedade.214

para Warat. In: GUNTHER, Luiz Eduardo, MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. 25 anos da Constituição e o direito do trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, p. 443. 212 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IPEA. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em 01 maio 2014. 213 SANTOS, Hélio. A baixa diversidade étnico-racial no mundo do trabalho. In: GONÇALVES, Benjamim. O Compromisso das Empresas com a promoção da Iguald ade Racial. São Paulo: Instituto Ethos, 2006, p. 20. 214 Ibid, p. 20.

78

Em todas as situações supracitadas, há claramente a presença, no fundo, do

tão contestado racismo, o qual a maioria das pessoas no país nega praticar. A rigor,

não existe um prévio acordo para a não contratação dos homens e mulheres negros.

Mas, no dia-a-dia, através do comportamento da maioria dos empregadores, quando

excluem os trabalhadores negros em geral, está subentendida a existência de uma

discriminação racial, mas que, culturalmente, tenta se passar por uma espécie de

“racismo cordial” (se é que isto é possível!).

Uma prova da discriminação racial havida no mercado de trabalho são os

insultos raciais ocorridos neste ambiente. Informa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,

que segundo uma pesquisa realizada pela Delegacia de Crimes Raciais de São

Paulo, nos anos de 1997 e 1998, os insultos aparecem na maioria das queixas

relativas à discriminação nas esferas do trabalho (36%), seguido pelas ocorrências

referente à relação de consumo de bens e serviços (24%), e por vizinhanças do

indivíduo insultado (21%).215

“Operário é indenizado após ser chamado de macaco”, foi o título de uma

matéria veiculada no jornal, no início do mês de maio de 2014, acerca de um ato

discriminatório ocorrido em face de um trabalhador negro, em uma empresa de

alimentos, na cidade de Florianópolis. O empregador foi condenado ao pagamento

do valor de R$ 15 (quinze) mil, fixado pelos desembargadores da 3ª Turma do

Tribunal Regional do Trabalho de Santa Cataria. A decisão, ressalta-se, é

definitiva.216

No entanto, a forma disfarçada como os atos discriminatórios costumam

ocorrer nas relações empregatícias, especialmente as de cunho racial, sejam na

fase pré-contratual, como durante a relação empregatícia. Mas, embora as

pesquisas demonstrem a existência de insultos no âmbito laboral, assevera Luís

Felipe Lopes Boson, que é muito raro o preconceito racial ser objeto de debate em

tribunais trabalhistas no país.217

215 GUIMARÃES, 2012, p. 199. 216 Disponível em:<http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=11146 7025&tit=Operario-e-indenizado-apos-ser-chamado-de-macaco-em-SC. Acesso em 07 maio 2014. 217 BOSON, Luis Felipe Lopes. A discriminação na Jurisprudência. In: RENAULT, Luiz Otávio Linhares, VIANA, Marcio Tulio, CANTELLI, Paula Oliveira (coord.). Discriminação. 2 ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 276.

79

O mesmo autor ressalta a possibilidade de utilização do art. 932, III, do

Código Civil, o qual prevê a responsabilização do empregador por atos de seus

empregados. Ou seja, diante de atos discriminatórios ocorridos entre empregado e o

chefe hierarquicamente imediato, por exemplo, seria possível atribuir o dever de

indenizar ao empregador. Assim, a responsabilização poderia ensejar uma maior

vigilância no interior da empresa, vindo a coibir práticas racistas, conclui o autor.218

Observa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães que os insultos raciais, utilizados

como instrumentos de humilhação, ocorrem geralmente por grupo dominante

(brancos), que ocupam melhores posições sociais em termos de poder, prestígio

social e vantagens materiais. Tal fato ocorre em relação a ambos os sexos, sendo

normalmente ao homem atribuído termos animalescos associados a qualidades

desprezíveis (“macaco safado”), acrescentando-se às mulheres a devassidão moral

e sexual (“filha de uma barata preta” entre outros).219

A despeito das injúrias, de cunho racial depreciativo, havidas no mercado de

trabalho em desfavor das mulheres negras, também é verificado outro modo de

discriminação em face das mulheres: a discriminação salarial. Em comparação aos

homens, as mulheres percebem menor contraprestação salarial por serviço

realizado, tendo recebido em média 72,3% do salário dos homens em 2011,

segundo IBGE.220

O ordenamento jurídico pátrio, de forma expressa, protege a mulher contra a

discriminação salarial. Os textos constitucionais de 1934, 1946, 1967, e 1988, e a

CLT, proíbem a diferença salarial por motivo de sexo (artigo 7º, XXX, da CF, e

artigos 5º e 373-A, III, da CLT). Além do mais, o Brasil é também signatário da

Convenção nº 100 da OIT, a qual estipula igualdade de remuneração de

trabalhadores homens e mulheres por atividade laboral de igual valor, observa Alice

Monteiro de Barros.221 No entanto, segundo mostram pesquisas, tais dispositivos

não têm sido observados no cotidiano.

218 Ibid, p. 277. 219 GUIMARÃES, 2012, p. 190. 220 Disponível em:<http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,mulheres-receberam-72-3-do-salario-dos-homens-em-2011-diz-ibge,105384,0.htm>. Acesso em 01 maio 2014. 221 BARROS, Alice Monteiro. Discriminação no Emprego por Motivo de Sexo. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação . 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 66.

80

A constatação de desigualdade de remuneração entre mulheres e homens é

verificada tanto de forma geral, através de estatísticas que demonstram que a

maioria das trabalhadoras possui empregos que remuneram menos que o emprego

masculino, ou de situações específicas, onde são observadas desigualdades dentro

de uma empresa. A diferença de rendimentos expressa uma síntese da situação dos

indivíduos no mercado de trabalho e da magnitude dos déficits de trabalho decente

existentes no país.

O trabalho feminino costuma ser precário, tendo como características a baixa

valoração e, consequentemente, uma menor remuneração, refletindo em ínfimos

salários. Atribui-se tal fato, de forma geral, tanto à estrutura patriarcal enraizada na

sociedade brasileira, que influenciou o modelo de produção, pautado em

características masculinas, quanto à manutenção de tarefas domésticas,

relacionadas às atividades do lar, juntamente com responsabilidades pelos encargos

com filhos e familiares.

Márcio Túlio Viana, ao tratar do aumento da desigualdade ocasionado pelo

modelo econômico de produção, assinala que a comparação entre o salário da

mulher e do homem é possível quando ambos exercem a mesma função. O autor

ressalta, todavia, que como a função exercida por mulheres corresponde a tarefas

domésticas e que, portanto, consideradas de menor valor, torna difícil haver aquela

coincidência de funções.222

Além da verificação de diferença salarial entre mulheres e homens, também é

verificada desigualdade de rendimentos entre brancos e negros. Segundo projeção

feita pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a renda da população

negra só será igual à da branca em 32 anos. Atualmente, negros ganham, em

média, 53% da renda do branco, informa a mesma pesquisa.223

Após a abolição da escravatura, surgia no país uma população livre em teoria,

porém presa a sua condição e taxação de ex-escravo, condição que por si só lhe

garantia a exclusão da estrutura produtiva de então. Ao negro foi imposta uma

realidade de ocupação das mais baixas escalas do operariado, o afastando do ideal

222 VIANA, p. 325. 223BRASIL. Senado Federal. Notícias do Senado. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/Datasenado/noticia.asp?not=12>. Acesso em 01 maio 2014.

81

de integração social. Além do mais, ao negro era atribuída natureza inferior

embasadas em teorias pseudocientíficas, a fim de legitimar a exploração econômica,

o impossibilitando de manifestar suas reais potencialidades.

Na esperança por uma remuneração em sua oferta de trabalho, tal qual ao

branco imigrante, o negro submetia-se às piores condições empregatícias,

entendendo o trabalho livre, qualificado ou não, como sinônimo de liberdade. Os

empregadores capitalistas, na busca por melhores custos, contratavam para o

trabalho os empregados que lhes fossem mais em conta. É desta forma que o ciclo

da imobilidade social para o ex-escravo vai se consolidando, refletindo nas atuais

condições de trabalho dos negros.

Segundo Lilian Arruda Marques e Solange Sanches, as ocupações formais no

mercado de trabalho brasileiro mostram rendimentos próximos ao dobro dos postos

de trabalho informais, que são ocupados, em sua maioria, por mulheres e negros (de

ambos os sexos). Além do mais, é no setor informal onde são reproduzidas as

desigualdades existentes nos postos formalizados, e onde são oferecidas as

menores remunerações. No ano de 2006, por exemplo, o rendimento médio de um

homem branco, no setor forma, era 72% maior que de uma mulher negra.224

Os rendimentos do trabalho, em geral, são considerados baixos no país. A

diferença racial de rendimentos, contudo, é maior que a diferença entre gêneros. No

ano de 2006, o rendimento médio entre os homens negros equivalia a 70% do

rendimento das mulheres brancas, e a 51% dos rendimentos dos homens brancos.

As mulheres negras tinham um rendimento médio equivalente a apenas 37% do

recebido pelos homens brancos, informam as mesmas autoras.225

Em um comparativo de rendimentos realizado entre negros e brancos, em

seis grandes capitais do país, foi constatados que negros e pardos recebem

remuneração inferior aos dos brancos, segundo Antonio Celso Baeta Minhoto. O

autor informa também que o salário médio na cidade de São Paulo, no ano de 2004,

é de R$ 1.242,77, para os brancos, e R$ 653,16, para os negros.226

224 MARQUES, 2010, p. 67. 225 Ibid, p. 68. 226 MINHOTO, 2013, p. 24.

82

Contudo, é frequente a argumentação de que as diferenças de rendimentos

entre brancos e negros se deve, sobretudo, aos diferenciais na qualificação. De fato,

no caso dos negros, em razão do processo discriminatório no ambiente escolar, e da

necessidade de abandonar os estudos para ingressar mais cedo no mercado de

trabalho, os indicadores educacionais acabam sendo inferiores aos dos brancos.

As diferenças escolares entre brancos e negros, porém, tem o condão de

explicar apenas uma parte da desigualdade racial. Parte significativa da diferença

salarial havida entre ambos pode ser explicada, desta forma, pela própria

discriminação racial havida no ambiente laboral.

É notória que a escolaridade pode influenciar no rendimento de um indivíduo.

No entanto, Antonio Celso Baeta Minhoto assevera que independente do grau de

escolaridade, a remuneração do trabalhador branco é maior que a do negro, sendo

ampliada ainda mais a diferença quando há um maior nível de escolaridade entre os

grupos. Os negros, embora sejam mais alfabetos, no ensino superior estão cinco

vezes menos que os brancos, a despeito da política de cotas nesta área.227

O mercado de trabalho brasileiro discrimina homens negros e mulheres

brancas e negros, mas estando em pior situação as mulheres negras. Comparando

a remuneração em relação à totalidade de pessoas ocupadas, as negras recebem

53% do que recebem os homens brancos. As brancas o equivalente a 69%, e os

negros, 63% dos rendimentos dos brancos. Neste cenário, evidencia-se, com o

rendimento inferior, o baixo status das mulheres negras na sociedade brasileira.228

Além das diferenças salariais, outras discriminações também ocorrem em

relação à mulher negra durante a relação empregatícia. A igualdade também não é

observada em relação aos quadros funcionais. Os postos de chefia e de direção, os

quais envolvem, normalmente, poder de mando, permanecem aos homens,

incluindo atividades que elas costumam estar representadas, como no ensino.229

Em relação à diferença de gênero havida em relação à ocupação de postos

de comando na maioria das empresas, a autora atribui a “obstáculos implícitos

derivados de preconceitos psicológicos e estruturais que constituem as chamadas

227 Ibid, p. 26. 228 LIMA, 2013, p.76. 229 BARROS, 2010, p. 72.

83

barreiras invisíveis”. E tais barreiras, por sua vez, dificultam, e até mesmo impedem

as trabalhadoras de assumirem cargos diretivos na maioria dos países, inclusive no

Brasil, onde a participação delas é inexpressiva.230

No Brasil, ainda que a quantidade de mulheres em postos de comando esteja

aumentando, em pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, no ano de 2004, eram elas

ainda minoria. Constatou-se que quanto mais alto fosse o cargo, mais alta seria a

disparidade entre os gêneros. Dentre as empresas foram verificadas as seguintes

proporções de ocupação das mulheres: 11,5% para cargos de direção; 24,6% para

nível de gerência; 37% para nível de supervisão; e 35% para o nível funcional. 231

Pesquisa mais recente realizada, no ano de 2010232, verificou-se uma

evolução positiva na participação das mulheres, comparando-se como a pesquisa

realizada em 2007, no nível executivo, onde a proporção delas foi alterada de 11,5%

para 13,7% nos cargos de direção. Contudo, nos demais três cargos hierárquicos

(funcional, de supervisão e gerência) a evolução foi negativa, ou seja, não houve um

aumento na participação de trabalhadoras nestes níveis.

Em relação à participação dos negros aos quadros funcionais, outra pesquisa

realizada pelo Instituto Ethos, com 500 empresas no país, no período de 2003 e

2005, constatou-se que houve uma melhora em três dos quatro níveis hierárquicos

pesquisados: no quadro executivo, que engloba presidentes, vice-presidentes e

diretores (1,8% para 3,4%) na gerência (8,8% para 9%), e no quadro funcional geral

(20 para 23%). No nível de supervisão, chefia ou coordenação, o quadro se manteve

inalterado (13,5%).233

Em outra pesquisa realizada pelo Instituto Ethos, em parceria com a

Fundação Getúlio Vargas, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fundo

de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), no período de

230 Ibid, p. 72. 231 INSTITUTO ETHOS. A responsabilidade das empresas no processo eleitor al. São Paulo: Instituto Ethos, 2004. Disponível em: <http://www3.ethos.org.br/cedoc/a-responsabilidade-social-das-empresas-no-processo-eleitoral-2004/#.U2fjcYFdXEg>. Acesso em 01 maio 2014, p.20. 232 INSTITUTO ETHOS. Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores E mpresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas . São Paulo: Instituto Ethos, 2010. Disponível em: < http://www1.ethos.org.br/ethosweb/arquivo/0-a-eb4perfil_2010.pdf>. Acesso em 01 maio 2014, p.15. 233 INSTITUTO ETHOS. O Compromisso das Empresas com a Promoção da Iguald ade Racial . São Paulo, Instituto Ethos, 2006. Disponível em: < http://www3.ethos.org.br/cedoc/o-compromisso-das-empresas-com-a-promocao-da-igualdade-racial-maio2006/#.U2fmrIFdXEg>. Acesso em 01 maio 2014, p. 20.

84

julho à setembro de 2003, foi constatado, quanto à participação da mulher negra

entre as 500 maiores empresas do Brasil, em números absolutos, de 6.016 mulheres

ocupando cargo de gerência, somente 372 são negras ou pardas. No quadro

executivo, entre 339 mulheres que desempenham a atividade, somente 3 são

negras!234

Segundo os resultados obtidos, embora possa haver uma confirmação de

uma tendência de contínua expansão da presença da mulher, ainda que apenas no

topo, das escalas hierárquicas das empresas, não foi possível verificar a quantidade

de mulheres negras participantes dos cargos das empresas analisadas. Mas, diante

da baixíssima presença de negros constatada nesta última pesquisa, é possível

esperar pouco, ou quase nenhuma presença das mulheres negras nos quadros

funcionais das empresas brasileiras.

É imprescindível que haja, portanto, o reconhecimento da existência da

discriminação racial no meio laboral, como sendo um processo que passa por

inúmeros obstáculos, que vão desde a noção destes conceitos até a aceitação

consciente, por brancos e negros, de que tanto uns como outros são sujeitos nessa

relação desarmoniosa.

Uma parte dos operadores do direito, contudo, assim como a sociedade em

geral, não reconhecem a existência da discriminação no ambiente social, e muito

menos no mercado de trabalho, não conseguindo visualizar, desta forma, que

algumas das práticas cotidianas externam o pensamento vicioso do preconceito.

Algumas atitudes corriqueiras são vistas como meros acontecimentos, e não como

ato discriminatório.

Portanto, embora haja a existência de normas que vedem a utilização de

critérios relacionados ao gênero e raça no acesso ao emprego, critérios subjetivos

são utilizados pelo empregador para ocultar a intenção de discriminar. Deste modo,

as coerções jurídicas apenas contribuem para evitar algumas situações

discriminatórias, mas não às impedem de acontecer no mercado de trabalho.

234 Disponível em: <http://www.uniethos.org.br/_Uniethos/Documents/pesquisa_diver_perfil.pdf.> Acesso em: 04 maio 2014.

85

2.2 EVOLUÇÃO NORMATIVA RELACIONADA À DISCRIMINAÇÃO RACIAL

O Direito tem a função de regular a vida na sociedade, através de um

conjunto de normas de caráter positivo, quando para atribuir vantagens jurídicas em

favor de seus titulares, como de caráter negativo para vedar condutas agressoras

em desfavor dos indivíduos. É no conjunto de regras de caráter negativo onde se

localizam as normas que vedam a discriminação, e de regras positivas que as que

visam promover o direito a oportunidades de grupos discriminados.

Atualmente, o universo jurídico está composto por inúmeras normas que

proíbem atos discriminatórios, notadamente em matéria de emprego e profissão.

Visando a eliminar a discriminação racial no mercado de trabalho, no âmbito

internacional foram criados instrumentos, os quais servem de diretriz ao

ordenamento jurídico nacional, possuindo ambos a intenção de abolir violações,

conferindo maior igualdade social.

O ordenamento jurídico brasileiro, desta forma, em consonância com a

normativa internacional, acerca da promoção da igualdade no mercado de trabalho,

prevê normas que visam a garantir a efetivação do direito a tratamento isonômico

dos trabalhadores, seja no acesso, como durante a relação empregatícia,

especialmente em relação ao trabalhador negro.

Observa Flávia Piovesan235, ademais, que os Tratados e Convenções

Internacionais, em conformidade com o disposto no parágrafo 2º, do artigo 5º, da

Constituição Federal (“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”) têm

hierarquia de norma constitucional e, consequentemente, aplicabilidade imediata no

ordenamento jurídico brasileiro.

235 PIOVESAN, Flavia, GUIMARAES, Luis Carlos Rocha. Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial . Disponível: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/Flavia piovesan/piovesan_racial.html>. Acesso em 04 maio14

86

Incontinenti, serão verificados a seguir os instrumentos legais, nos âmbito

internacional e nacional, utilizado na busca pela igualdade de oportunidades, e no

combate à discriminação racial ocorrida no mercado do trabalho.

2.2.1 No âmbito internacional

O tema da igualdade e da não discriminação encontra-se na origem do

próprio Direito do Trabalho, que surge historicamente como elemento compensador

das desigualdades reais existentes entre os empregados e empregadores nas

relações laborais. A discriminação racial é vedada por fontes internacionais de

Direito, tendo como principal norteadora, além da Declaração Universal dos Direitos

Humanos (DUDH), de 1948, as Convenções da Organização Internacional do

Trabalho (OIT).

Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio informa que a OIT foi criada pelo

Tratado de Versalhes, na tentativa de adotar medidas em relação aos direitos

sociais, os quais estavam comprometidos ao final da Primeira Guerra Mundial. O

objetivo principal foi o de promover negociações entre as esferas governamentais e

privadas, entre trabalhadores e empregadores, dos países membros, dos diversos

continentes.236

Acerca do papel da OIT, no cenário da globalização, onde surgem

continuamente desafios jurídicos tanto para os Estados, como para empresas e

organizações internacionais, assinala Luiz Eduardo Gunther que ela possui

importante significado “para reunir elementos de convicção, analisá-los e apresentar

estudos constantes com o objetivo de equilibrar as relações de capital e o trabalho,

já que vivemos em um mundo unipolar, com predomínio do capitalismo.”237

236 MASTRANTONIO, Simone Aparecida Barbosa. Ações Afirmativas : promoção da cidadania empresarial. Curitiba: Juruá, 2011, p. 102. 237 GUNTHER, Luiz Eduardo. A OIT e o Direito do Trabalho no Brasil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 26.

87

A discriminação racial no ambiente de trabalho, ademais, foi objeto de

preocupação na OIT antes mesmo da existência da Convenção Internacional sobre

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, datada de 1966 (quando

foi aberta para assinatura dos Estados, sendo publicada em 10 de dezembro de

1969). A Convenção nº. 111, que trata da proibição da discriminação nas relações

de emprego e profissão, foi aprovada em 1958, sendo ratificada pelo Brasil dez anos

depois.

O ato discriminatório, segundo a Convenção n. 111, pode ser observado por

intermédio da conduta de distinguir, excluir ou dar preferência, agregada aos tipos

de discriminação que podem ser por raça, cor, sexo, origem social, ascendência

nacional, tendo como efeitos a anulação ou alteração da igualdade de oportunidade,

ou de tratamento no emprego ou ocupação. O parágrafo 1º, do artigo 1º, indica os

critérios de discriminação e, dentre estes, tem-se o critério de cor e raça.

Os Estados que aderiram à Convenção, se comprometeram a participar da

tarefa de eliminar a discriminação e fomentar a igualdade, dentre outras ações,

enviando relatório anual das atividades desenvolvidas com base nos ditames da

Convenção. Para Thereza Cristina Gosdal, trata-se de uma política social que

objetiva suprimir todas as formas de discriminação, sendo aplicável aos indivíduos e

empregadores, alcançando desde o acesso até a permanência no emprego.238

A Convenção além de tratar do direito a não discriminação, prevê também o

direito à diferença, como ocorre quando se determina a adoção de políticas

nacionais com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades e de tratamento

em matéria de emprego e profissão, em virtude da constatação de diferença fática

(art. 2º e 5º). Trata, enfim, de assegurar a igualdade através da diferença.

Observa-se que a tanto a Convenção n. 100 (Igualdade de Remuneração,

1951), com a própria Convenção n. 111 (Discriminação no Emprego e Ocupação,

1958), ambas ratificadas pelo Brasil na década de 60, são parte do conjunto das

convenções definidas pela OIT como fundamentais. Representam o principal

instrumento de luta contra a discriminação e pela promoção da igualdade de

oportunidade e de tratamento no local do trabalho.

238 GOSDAL, 2003, p. 101.

88

Ademais, considerando que no Brasil, no ano de 2009, o setor que

apresentou maior déficit de trabalho decente e proteção normativa no mundo do

trabalho foi o doméstico (formado por maioria de mulheres negras)239, foi aprovada

na 100ª Conferência da OIT, em Genebra, a Convenção n. 189, sobre o Trabalho

Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos.

A Convenção 189, acompanhada pela Recomendação n. 201 (com o mesmo

título), por sua vez, traz normas mínimas aplicáveis ao trabalho doméstico, no intuito

de romper o “paradigma da submissão e informalidade”, conforme assevera Lorena

de Mello Rezende Colnago240. E, na esteira deste instrumento internacional de

proteção, ocorreu no país à promulgação da EC 72, em 02.04.2013, equiparando

aos demais empregados à maioria dos direitos dos trabalhadores domésticos.

Dentre os organismos internacionais, destaca-se que não é apenas a OIT que

possui normas que vedam práticas discriminatórias. A Organização das Nações

Unidas (ONU) também trás uma série de normas a respeito, como as seguintes

Declarações: sobre a “eliminação de todas as formas de discriminação racial”

(1963), sobre a “eliminação da discriminação contra a mulher” (1967), e sobre a

“eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião

e nas convicções” (1981).

José Claudio Monteiro de Brito Filho observa que na seara internacional, há

previsão de normas que vedam a discriminação através de Convenções, como

sobre: “a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, ratificada em 1965,

e “a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher”, ratificada em

1979. Havendo, ainda, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, ratificado em 1992 pelo Brasil, segundo lembra o autor.241

239 DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONOMICOS – DIEESE. Anuário do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda 2010/2011: Mercado de Trabalho. São Paulo: DIEESE, 2011. Disponível em: < http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A333FE61F013341780DBB382F/mercado.pdf>. Acesso em 04 maio 2014. 240 COLNAGO, Lorena de Mello Rezende. O Trabalho Doméstico: primeiras impressões da Emenda Constitucional 72/13. In: GUNTHER, Luiz Eduardo, MANDALOZZO, Silvana Souza Netto (coord.). Trabalho doméstico: teoria e prática da Emenda Cons titucional 72, de 2013. Curitiba: Juruá, 2013, p. 195. 241 BRITO FILHO, 2002, p. 62.

89

O amplo arsenal legislativo contra a discriminação, no plano internacional,

seja de forma geral, ou em casos determinados por motivos ou hipóteses geradoras

de preconceito (como em relação aos negros), serve de balisa para o ordenamento

jurídico brasileiro. Contudo, assevera Ana Emilia Andrade Albuquerque que referidos

diplomas internacionais e nacionais “estão longe de garantir ao cidadão brasileiro a

igualdade substancial almejada”.242

2.2.2 No âmbito nacional

As normas nacionais, relativas às vedações de práticas discriminatórias no

meio laboral, têm como principal diretiva a Constituição Federal, de 1988. Observa

Antonio Sergio Alfredo Guimarães que antes desta data, as lideranças negras no

país não tinham espaço para expressar as suas reinvindicações, ante a negativa do

reconhecimento da existência de discriminação e preconceito racial, sendo a

“pobreza negra puramente pobreza”.243

Observa o autor que com a promulgação do texto constitucional, as condutas

discriminatórias raciais passaram a ser reconhecidos tanto pelo governo como pela

opinião pública. No entanto, na prática muito pouco teria mudado para os negros,

visto que a discriminação de classe (no caso, a pobre) é considerada legítima na

sociedade em geral.244

Apesar de autores considerarem ineficaz o dispositivo constitucional no

efetivo combate da discriminação racial, o fato é que há tal previsão, em

circunstâncias e dimensões diversificadas, se estendendo ao mercado de trabalho.

Maurício Godinho Delgado assevera que na ordem justrabalhista, a atual

constituição lançou um “divisor nítido de fases nessa seara temática”, a partir do

qual um sistema legal de proteção contra atos discriminatórios foi assentado. 245

242 SILVA, 2005, p.40. 243 GUIMARÃES, 2012, p. 72. 244 Ibid, p. 72. 245 DELGADO. Maurício Godinho. Proteções contra Discriminação na Relação de Emprego. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação. 2 ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 109.

90

No artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, encontra-se como objetivo da

República Federativa do Brasil: a promoção do bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Confirmando à intenção pela busca de um Estado Social, no artigo 4º foi estipulado

o princípio da prevalência dos direitos humanos, denotando a posição do Brasil junto

à comunidade internacional, quanto à intenção em aplicar tal disposto nos

documentos ratificados.

O artigo 5º, caput, da CF, ao determinar que “todos são iguais perante a lei,

sem distinções de qualquer natureza”, exalta o princípio da igualdade como ícone à

aplicação dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos. O inciso XLI,

na mesma linha, prevê a punição legal de “qualquer discriminação atentatória dos

direitos e liberdades fundamentais”. E já o inciso XLII, de forma incisiva, traz que “a

prática de racismo constitui crime...” (grifos acrescentados) e, de tão grave, é

considerado inafiançável e imprescritível pela lei.

A vedação à discriminação, entretanto, não se esgota no texto constitucional

como preceitos genéricos. Ao contrário, em relação à prática discriminatória no

ambiente de trabalho, há expressa previsão contida no Capítulo dos Direitos Sociais,

artigo 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII (contém proibições de diferença de salários, de

exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo, idade, cor ou

estado civil; de qualquer discriminação no tocante a salários e critérios de admissão

do trabalhador portador de deficiência; de distinção entre trabalho manual, técnico e

intelectual ou entre os profissionais respectivos)

Além dos dispositivos constitucionais, outras normas infraconstitucionais

existem na tentativa de combater a discriminação, a qual é considerada, segundo

observam Gustavo Pereira Farah e Rafael Carmezim Nassif, como um dos maiores

problemas enfrentados pela sociedade moderna.246 A Lei n. 7.716/89, editada meses

após a CF, trouxe uma reprimenda à prática discriminatória, definindo, em seu artigo

1º, os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. Nos artigos 3º e 4º, dispôs

sobre a discriminação no acesso ao trabalho em cargos da Administração Direta ou

Indireta, concessionárias de serviços públicos, e ainda em empresas privadas.

246 FARAH, Gustavo Pereira, NASSIF, Rafael Carmezim. A discriminação na Constituição Federal de 1988 e a súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho. In: GHUNTER, Luiz Eduardo, e MANDALOZZO, Silvana Souza Netto. 25 anos da Constituição e o Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, p. 265.

91

Observa Silvia Carine Tramontin Rios, no entanto, que a Lei n. 7.716/89

equiparou o preconceito de “raça” ao de “cor”, para fins de aplicação das penas

estabelecidas (inclusive reclusão) ao estabelecer como contravenção penal, no

artigo 4º, ao ato de negar ou obstar emprego em empresa privada em razão de

sexo, raça ou estado civil.247 Ademais, a Lei n. 9.459/97 passou a considerar crime

condutas configuradas por atos discriminatórios ou de preconceito em razão de raça,

cor, etnia, religião e origem (como o crime de injúria, por exemplo). Assim, ambos os

critérios (raça e cor) foram utilizados pelo legislador.

Ressalta-se que na década de 50 houve no país, a promulgação da Lei 1.390,

denominada Lei Afonso Arinos que tratava como contravenção penal as práticas

decorridas de atos resultantes de preconceitos de raça e de cor, no meio laboral.

Segundo Fabiano Augusto Martins Silveira, esta lei pode ser considerada como um

dos primeiros dispositivos a tratar positivamente dos crimes raciais e de preconceito,

no ordenamento penal brasileiro.248

Firmino Alves Lima observa que o nome da Lei Afonso Arinos se deve em

razão de ter sido elaborada pelo deputado Afonso Arinos de Melo Franco, da União

Democrática Nacional – UDN.249 Esta lei, segundo o autor, além de não definir

exatamente o significado de discriminação, tratou apenas de proteger o trabalhador

na questão da recusa ao “acesso” ao emprego, por motivo de raça ou cor da pele,

sem, no entanto, mencionar algum óbice relativo à sua “manutenção” pelos mesmos

motivos mencionados.250

No ordenamento jurídico brasileiro, há outros diplomas infraconstitucionais

que buscam a isonomia dos trabalhadores de maneira geral, como as Leis n.

9.029/95 e n. 9.799/99 (relativas ao acesso às relações empregatícias). Também a

própria CLT traz a vedação às práticas discriminatórias em diversos artigos, com

destaque para os artigos 460 e 461 (que vedam discriminação salarial entre os

trabalhadores).

247 RIOS, Silvia Carine Tramontin Rios. Discriminação do empregado. In: BARACAT, Eduardo Milleo. Controle do empregador: procedimentos lícitos e ilí citos. Curitiba: 2009. 248 SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da Criminalização do Racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 101. 249 LIMA, 2006, p.82. 250 Ibid, p. 83.

92

Além do mais, considerando que a discriminação ocorrida em face à

trabalhadora negra perpassa além da questão racial, também pela questão de

gênero (dupla discriminação), encontra ela guarida igualmente na CLT. O Capítulo

III, do Título III, desta Consolidação, trata da “Da proteção do trabalho da mulher”, o

qual aborda, em cada uma das sessões: duração e condições do trabalho, trabalho

noturno, períodos de descanso, métodos e locais de trabalho, e proteção à

maternidade.

A CLT, embora tenha sido elaborada no ano de 1943, durante o período do

Estado Novo (sob o comando do então presidente Getúlio Vargas) está em vigência

até os dias atuais, encontrando-se, no entanto, repleta de emendas, inclusões e

supressões.251 Àquele dispositivo que trata especificamente da proteção do trabalho

da mulher (Capítulo III, do Título III), inclusive, teria sido influenciado pelo Decreto nº

21.417-A, de 1932, que regulamentou as condições de trabalho da mulher nos

estabelecimentos industriais e comerciais, observa Barros252.

Para Maria Cristiane Sbalqueiro Lopes253, o ordenamento jurídico, até a

Constituição de 1988, tinha por tendência “proteger” o trabalho da mulher, acabando

por perpetuar, desta forma, a discriminação da mulher no mercado de trabalho. A

autora assevera que o motivo principal era, na realidade, a busca da proteção

estrutural da família patriarcal, do qual perduram resquícios destas disposições

“falsamente protetivas”. Contudo, haveria ainda “riscos de retrocesso, alimentado

pelo contexto de contínua precarização laboral”.

O combate à discriminação no âmbito do trabalho está, portanto, amplamente

amparado por instrumentos legais (constitucionais e infraconstitucionais), todos

devidamente orientados pelo princípio da igualdade, seja no tocante ao gênero,

como em relação à questão racial. Contudo, é notório que tais normas jurídicas, por

si só, não estão sendo suficientes para obstar as práticas discriminatórias cometidas

principalmente em relação às trabalhadoras no país, conforme verificado no item

anterior. 251 CORTÊS, Iáris Ramalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi, e PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 279. 252 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 8ª ed., 2012, p. 856. 253 LOPES, Maria Cristiane Sbalqueiro. Direito do Trabalho da Mulher: Da Proteção à Promoção . Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, Junho 2006. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01043332006000100016&lng=en&nrm=iso>. Acesso 05 maio 2013, p.2.

93

Na busca pela não discriminação e implementação dos ditames contidos na

Convenção n. 111, da OIT, e na Convenção Internacional sobre Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação Racial, inclusive na própria Constituição e leis

infraconstitucionais, foi instituído, através da Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, o

Estatuto da Igualdade Racial, após aproximadamente cinco anos e meio de debate

no Congresso Nacional, observam Mateus Bertoncini e Felippe Abu-Jamra

Correa.254

O Estatuto da Igualdade Racial representou não apenas um avanço legislativo

no tocante à aplicação da Convenção n. 111, da OIT, ao prever o acesso ao

mercado de trabalho pelo negro, no intuito de eliminar a discriminação racial no meio

laboral, mas também um leque de possibilidades para reverter à desvantagem

socioeconômica do indivíduo negro que também acaba influenciando em outros

segmentos de sua vida em sociedade.

O artigo 1º do Estatuto trás como objetivo: “garantir à população negra a

efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais,

coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância

étnica”. E, especificamente em relação ao mercado de trabalho, previu, de forma

expressa, a partir do artigo 38, que as políticas voltadas para a inserção dos negros

no mercado de trabalho devem respeitar os compromissos assumidos pelo Brasil ao

ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, e a Convenção n. 111, da OIT. 255

O Estatuto previu também, no artigo 47, a instituição de um Sistema Nacional

de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) “como forma de organização e de

articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados

a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público

federal”. Este artigo determinou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios

poderão participar do Sistema mediante adesão; cabendo ao Poder Público Federal

incentivar a sociedade e a iniciativa privada a participar do Sinapir.256

254 BERTONCINI, Mateus, e CORREA, Felippe Abu-Jamra. Responsabilidade social da empresa e as ações afirmativas : implicações do estatuto da igualdade racial. Curitiba: JM, 2012, p. 75. 255 Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 256 Ibid.

94

O Estatuto da Igualdade Racial é composto por sessenta e cinco artigos,

sendo dividido em quatro títulos (Disposições Preliminares, Direitos Fundamentais,

SINAPIR, e Disposições Finais). O “acesso ao trabalho”, que é o foco principal do

presente estudo, está previsto no Capitulo V, do Título II, artigos 38 a 42, do

Estatuto. E já este primeiro artigo aduz que “a implementação de políticas voltadas

para a inclusão da população negra no mercado de trabalho será de

responsabilidade do poder público”.257

O artigo 39, e seguintes, diz que o poder público deverá promover ações que

assegurem a “igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população

negra”, através de implementação de medidas que visem “à promoção da igualdade

nas contratações do setor público, e o incentivo à adoção de medidas similares nas

empresas e organizações privadas”.258

A iniciativa privada, portanto, está nitidamente relacionada com o referido

Estatuto, o qual está “conclamando as empresas a uma atuação responsável, na

senda de implementação de seu programa de isonomia material em favor da

população negra”.259 Tal entendimento, porém, é alvo de críticas de quem entende

ser esta função do Estado, exclusivamente, não aceitando a inclusão da participação

do empresariado no combate a discriminação racial no mercado de trabalho.260

Em 05 de novembro de 2013 foi aprovado o regulamento do Sinapir, através

do Decreto n. 8.136, como forma de organização e articulação, para a

implementação do conjunto de políticas e serviços, destinados a superar as

desigualdades étnicas existentes no Brasil. Segundo dispõe o Estatuto de Igualdade

Racial, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão participar deste

Sistema, mediante a adesão. Ressaltando que ao Poder Público Federal cabe

incentivar a sociedade civil, inclusive a iniciativa privada, a também participar deste

Sistema.261

257 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em 05 maio 2014. 258 Ibid. 259 BERTONCINI e CORREA, 2012, p. 79. 260 Ibid, 79. 261 BRASIL. Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Instituiu o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8136.htm>. Acesso 06 maio 2014.

95

Porém, diante da verificação de descompasso existente entre as legislações

que vedam a ocorrência de discriminação racial no meio laboral, e a realidade

encontrada no mercado de trabalho, notadamente em relação à mulher negra, talvez

se faça necessária à adoção de outros mecanismos de promoção de igualdade de

oportunidades no emprego. Em consonância com o Sinapir, é possível, por

exemplo, a utilização de ações afirmativas, em especial cotas raciais de gênero, a

serem instituídas pela iniciativa privada, na busca da equidade e justiça social.

Observa-se, além do mais, que o direito à liberdade econômica não pode se

sobrepor à existência digna e livre do homem, devendo a economia privada se

adequar aos princípios basilares previstos na Declaração Universal de Direitos

Humanos, na Convenção n. 111 da OIT, e nos demais instrumentos internacionais,

assim como no amplo arsenal legislativo interno. Deste modo, não pode o

empregador, por exemplo, ao argumento de que pretende exercer o poder diretivo

sob sua empresa, proceder em atitudes discriminatórias raciais, que vão de encontro

à dignidade do trabalhador negro.

A normativa que veda a discriminação racial, conforme visto, é extremamente

ampla, seja através da ratificação dos vários instrumentos internacionais, como pelo

vasto ordenamento jurídico interno. A despeito de toda esta tentativa de combate da

discriminação racial e da promoção da igualdade de oportunidades no trabalho, sem

preconceitos, especialmente de gênero e raça, torna-se imperativo a adoção de

mecanismos de promoção no meio laboral.

A neutralidade estatal, característica da sociedade capitalista liberal, tem se

mostrado prejudicial a determinados grupos sociais, principalmente em relação às

trabalhadoras negras. Por isso, segundo assevera Joaquim Benedito Barbosa

Gomes, quando o Estado e a lei não são suficientes para reverter um quadro social

de desigualdade, a neutralidade deve ser renunciada.262 Vislumbra-se, desta forma,

a possibilidade de adoção de ações afirmativas, decorrentes de políticas públicas ou

privadas, a fim tornar a sociedade brasileira justa e solidária de fato, e livre da

presença de condutas discriminatórias.

262 GOMES, 2001, p. 37.

96

3. A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA MULHER

NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO

3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS DECORRENTES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E

POLÍTICAS PRIVADAS

A desigualdade racial no país não pode, e nem deve, ser considerada um

simples fenômeno, mas muito mais, pois se produz e reproduz na sociedade de

forma nefasta, em diversos âmbitos, notadamente no mercado de trabalho. E é

também neste âmbito que ocorrem dificuldades na efetivação dos direitos humanos,

correndo o risco de, inclusive, comprometer os avanços conquistados na esfera

jurídica.

Ao Estado, enquanto agente regulador da ordem social, cumpre exercer o

seu papel, devendo buscar mecanismos na promoção da igualdade para todos,

principalmente os mais vulneráveis, visando, por fim, a estabelecer a justiça social e

garantir a convivência pacífica e igualitária na sociedade, especialmente em relação

a determinados grupos, como os negros.

Convém observar que o próprio Estado brasileiro, aliás, colaborou para o

agravamento da discriminação racial. Inicialmente, no período em que apoiou o

movimento da escravatura, considerado ato legal (1500-1888) e, na sequência,

durante o período republicano, quando deixou de propiciar o acesso dos negros às

terras, à educação263, e ao trabalho.

Além do mais, é ao Estado que cabe, com suas decisões imperativas, ditar

as normas de conduta, organizacionais e, deste modo, criar novas situações a fim

de também atuar no sentido de fazer prevalecer os direitos humanos na sociedade.

Assim, o Estado é considerado supremo e o legal depositário da vontade social,

devendo oferecer a toda população a característica de certeza. 263 A respeito da exclusão dos negros do sistema de ensino brasileiro, por ocasião da abolição da escravatura, cita-se a tese de doutorado do médico (negro) Nizan Pereira, intitulada: “A construção da invisibilidade e da exclusão da população negra nas práticas e políticas educacionais no Brasil”, noticiado na matéria: O Brasil sem “escola” tem história e tem cor, pelo jornal Gazeta do Povo, pág. 08, em 13 de maio de 2014.

97

Propiciar o bem-estar de todos os membros da sociedade, sem distinção,

também é outro objetivo do Estado, que deve ser implementado através de políticas

públicas. Para tanto, a atuação de todos os Poderes do Estado devem se direcionar

para a construção de uma sociedade justa e igualitária, ou ao menos,

incessantemente almejada, cabendo a toda a sociedade verificar se os poderes

públicos estão cumprindo esse dever.

A questão dos negros no Brasil, em especial, foi quase sempre tratada com

certo descaso pelo Estado desde o seu início, de forma autoritária e excludente, por

séculos a fio. Contudo há poucas décadas, a partir de amplos debates sobre o seu

papel, os Poderes do Estado passaram, então, a lançar mão de políticas públicas,

visando à promoção da igualdade no país.

O tema desigualdade racial no Brasil vem crescendo e tomando força não

apenas na forma de debate público e acadêmico, mas também como uma

preocupação do Estado, em torno do qual vem sendo construído um conjunto de

iniciativas, a fim de propiciar a efetiva democracia racial. E, para tanto, é imperioso

que haja intervenção estatal através de políticas públicas. 264

Políticas públicas, em sua acepção conceitual, são entendidas como

programas de ação do governo que resultam de processos previamente regulados

(processos eleitoral, de planejamento, de governos, legislativo, administrativo,

judicial e orçamentário), com vistas a coordenar os meios à disposição do Estado e

das atividades privadas, a fim de realizar objetivos socialmente relevantes, e

politicamente determinados.265

O conceito de políticas públicas, desse modo, pressupõe um modelo de

ação, ou programa, ou atividade pública, o que torna evidente o comprometimento

das funções estatais na realização de metas para efetivas os direitos fundamentais

previstos na Magna Carta. Esta, por sua vez, dá a direção e regula a atuação do

Estado, representado através de seus três Poderes (Executivo, Legislativo, e

Judiciário).

264 Sabrina Moehlecke destaca que o início do desenvolvimento de políticas públicas de “valorização e promoção da população negra”, ocorreu a partir de 1995, por influência do movimento negro (Marcha Zumbi contra o racismo), no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>. Acesso em 10 maio 2014. 265 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em Direito. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.

98

Os referidos Poderes do Estado, por sua vez, são harmônicos e

independentes entre si266, sendo verificada divisão de atribuições distintas entre eles

dentro do âmbito do próprio Estado, ficando a cargo dos Poderes Executivo e

Legislativo a elaborações dos planos de governo, dos quais se originam políticas

públicas nas áreas administrativas. No caso de omissões ou outro tipo de

irregularidades, pode caber uma intervenção judicial, através, então, da participação

do Poder Judiciário.

Joaquim Benedito Barbosa Gomes aduz que as ações afirmativas (espécie

de política pública) que decorrem da ação do Poder Judiciário, ora assumem um

caráter “redistributivo”, ora se revestem de natureza “reparadora” ou “restauradora”.

Assevera que às vezes, todavia, podem ambas as características se cruzarem,

como no caso em que os programas são concebidos e implementados em

decorrência de decisão judicial.267

Políticas Públicas, ademais, não devem ser confundidas com o próprio

direito social, mas devem sim ser vistas como um programa de governo cujo objetivo

é o de alcançar a efetivação deste direito. Acentua-se que as políticas públicas

prioritárias para o Estado, foram previamente inseridas na Constituição Federal,

devendo então os poderes Executivo e Legislativo observá-las e implementá-las,

observa Lívia Regina Savergnini Bissoli Lage.268

Cristiane Derani269 conceitua política pública como:

“um fenômeno oriundo de um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade. É fruto de um Estado complexo que passa a exercer uma interferência direta na construção e reorientação dos comportamentos sociais. O Estado para além do seu papel de polícia ganha dinâmica participativa na vida social, moldando o próprio quadro social por uma participação pelo poder de impor e pela coerção.”

266 Art. 2º, da Constituição Federal. 267 GOMES, 2001, p. 56. 268 LAGE, Lívia Regina Savergnini Bissoli. Políticas Públicas como programas e ações para o atingimento dos objetivos fundamentais do estado. In: GRINOVER, Ada Pelegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas . 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 152. 269 DERANI, Cristiane. In BUCCI, Maria Paula Dallari (organizadora) Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico . São Paulo: Saraiva, 2006, p. 131.

99

A política pública pode ser considerada como fruto do Estado moderno, no

qual a sociedade outorga um poder de mando, aguardando que sejam emanadas

ações que guardem previsibilidade no âmbito da representação política, através de

via legal. Neste cenário, os Estados podem ser vistos como uma arena onde se

promovem ações respaldadas no texto constitucional, assim como um agente

central, quando atua na promoção da dignidade humana.270

Observa-se que, após os acontecimentos ocorridos na 2ª Guerra Mundial, os

direitos humanos passaram a ter a atual concepção. A partir da Declaração

Universal de 1948, foram adotados inúmeros instrumentos internacionais de

proteção, “com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos

direitos humanos”, segundo assevera Flávia Piovesan.271

Contudo, a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada pela

tônica da proteção geral, não foi suficiente no combate à discriminação, e fim do

racismo. A mera igualdade formal, não foi capaz de garantir a dignidade humana dos

grupos mais vulneráveis, surgindo, daí, a necessidade de conferir a estes uma

proteção especial e particularizada.

A partir do início da segunda metade do século passado, então, a

comunidade internacional foi compelida a elaborar instrumentos internacionais de

proteção dos direitos humanos, mas com um recorte mais étnico-racial, visando a

erradicação do racismo e da discriminação, apesar de muitos Estados europeus,

contraditoriamente, terem continuado com suas colônias na maioria dos continentes.

No âmbito internacional surgiu, em 1950, a Declaração das Raças da

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(UNESCO); em 1958, a Convenção n. 111 da Organização Internacional do

Trabalho (OIT) sobre a Discriminação em Emprego e Profissão; e, em 1960, a

Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino da

UNESCO, os quais representaram um marco inicial na proteção dos direitos

humanos.

270 SANTOS, Hermílio. Sociedades complexas e políticas públicas. In: ______(org.). Debates pertinentes: para entender a sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. Disponível em: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/>. Acesso em 01 maio 2014. 271 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justiça internacional: um estud o comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africa no. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p, 43.

100

A exemplo destes documentos paradigmáticos surgiu, em 1965, a Convenção

Internacional para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial, a qual

adveio em decorrência das lutas pelos Direitos Civis nos EUA, e das lutas

anticoloniais na África.272 Posteriormente em 2001, houve a elaboração da

Declaração e o Plano de Ação de Durban, na África do Sul.

No âmbito nacional também houve um avanço na questão da igualdade racial,

inclusive na área do mercado de trabalho. Tal fato resultou em parte da influência do

movimento realizado em 1995, através da Marcha Zumbi dos Palmares contra o

Racismo, pela Cidadania e a Vida, em Brasília273; e outra parte influenciada pela

referida Declaração ocorrida na África do Sul, durante a III Conferência Mundial

contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Assim estes eventos, ocorridos na perspectiva dos direitos humanos, tanto

os internacionais como os nacionais, com respaldo na vasta legislação referente ao

combate da discriminação e promoção racial (mencionada no capítulo anterior),

vieram a dar visibilidade para a questão racial no país, dando início a discussões

sobre o tema, e as variadas formas de combatê-los e até mesmo exterminá-los.

A partir de então, a sociedade brasileira e o próprio Estado, este através dos

poderes Executivo e Legislativo, começaram a debater sobre a implantação de

outras políticas (públicas e privadas) visando a efetivar a promoção da igualdade

racial, já que a previsão dos instrumentos legais referente a este tema, não foram

suficientes para que o ideal de justiça social fosse alcançado no país.

Entre as possibilidades de implementação de outras políticas, a fim de

promover a igualdade de oportunidades e tratamento no emprego dos trabalhadores

negros, destaca-se a utilização de ações afirmativas, como mecanismos públicos ou

privados no combate à discriminação racial. Segundo Firmino Alves Lima, ações as

quais integram “um corpo de posturas em busca da igualdade real como um objetivo

a ser alcançado”.274

272 Destaca-se que o Brasil ratificou a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial em 17 de março de 1968, ratificado por 170 Estados. 273 Movimento do qual decorreu a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI), em 1995, sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. 274 LIMA, 2006, p. 136.

101

Destaca-se, contudo, que o termo “políticas públicas” acaba sendo utilizado, e

até em algumas vezes confundido, com “ações afirmativas”, as quais são

consideradas como espécie de ferramentas sociais necessárias ao combate da

desigualdade e discriminação tanto racial como social, com vistas a atender grupos

que se encontram em condições de desvantagem ou vulnerabilidade social, em

decorrência de fatores históricos, culturais ou econômicos.275

O primeiro registro no Brasil, a respeito de medidas para solucionar a prática

discriminatória no meio laboral, precursor do que poderia chamar-se de ação

afirmativa, ocorreu em 1968, por iniciativa de servidores do Ministério do Trabalho e

do TST. Na ocasião, referidos servidores, tendo verificado a existência de

discriminação na área ocupacional (através de fiscalização e denúncias) se

mostravam favoráveis a uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter a

percentagem mínima de empregados para trabalhadores de cor (20%, 15% ou 10%,

de acordo com o ramo de atividade e demanda).276

Apenas foi nos anos 80 que houve a primeira formulação de um projeto neste

sentido, partindo do Poder Legislativo, através do projeto de Lei n. 1.332, de 1983. O

autor deste projeto foi o deputado federal Abdias Nascimento, e tinha como proposta

uma “ação compensatória”, estabelecendo mecanismos de compensação para os

trabalhadores negros, após séculos de discriminação (20% de vagas tanto para

mulheres, como para homens, em concursos públicos). No entanto, este projeto

também não foi aprovado pelo Congresso Nacional.277

Livio Sansone assevera que o próprio movimento negro no Brasil, além de

tentar sensibilizar a opinião pública, acerca dos temas ligados a causas negras em

geral, tem elaborado diversas reinvindicações, também no mercado de trabalho.

Entre elas destacando-se, inclusive, a adoção de ações afirmativas (em especial o

sistema de quota racial), originariamente utilizada em países mais etnicamente

polarizados278, informa o autor.

275 Ibid, p.136. 276 MASTRANTONIO, 2011, p. 120. 277 MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 278 SANSONE, Livio. Racismo sem Etnicidade: Políticas Públicas e Discri minação Racial em Perspectiva Comparada. RiodeJaneiro, v.41, n.4, 1998.Disponívelem:<http://www.scielo.br/scielo.ph pscript=sci_arttext&pid=S0011-52581998000400003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 01 maio 2014.

102

Joaquim Benedito Barbosa Gomes conceitua ações afirmativas, ademais,

como um conjunto de ações de políticas públicas e privadas, de caráter compulsório,

facultativa ou voluntário, que visam ao combate de discriminação presente ou a

correção dos efeitos de discriminações pretéritas, que objetivam concretizar a

igualdade a bens fundamentais, como, por exemplo, o acesso a educação e ao

mercado de trabalho.279

Também neste sentido é o entendimento de Paulo Lucena de Menezes, para

o qual a ação afirmativa, fundada na idéia clássica de justiça social, consiste em

tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, com a finalidade de

implementar uma “igualdade concreta (igualdade material), no plano fático, que a

isonomia (igualdade formal), por si só, não consegue proporcionar.”280

Assim, tem-se que a ação afirmativa desiguala para igualar, mas para igualar

especialmente no tocante a oportunidades, que é o ponto principal no qual onde

estão localizados os grupos discriminados. Assevera Manuela Tomei que a ação

afirmativa amplia a noção da não discriminação e da igualdade de oportunidades

(como o acesso ao emprego e educação, por exemplo), no acesso aos bens

sociais.281

A base filosófica das ações afirmativas, segundo Joaquim Benedito Barbosa

Gomes, pode estar fundamentada nas idéias de justiça compensatória e de justiça

distributiva. A primeira se motiva por fatos pretéritos, oferecendo uma reparação (ou

compensação) a indivíduos de determinados grupos socias, que não sofreram

diretamente os danos, pleiteada em face de quem, portanto, não deu causa ao dano,

consistindo em um ônus impingido a sociedade atual. A natureza das ações

afirmativas seria, portanto, restauradora.282

279 GOMES, 2001, p. 40. 280 MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa no direito norte-americano. São Paulo: RT, 2001, p.29. 281 TOMEI, Manuela. Ação Afirmativa para a igualdade racial: caracterís ticas, impactos e desafios. Brasília, OIT, 2005, p.9.Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 282 GOMES, 2001, p. 62.

103

Por meio da justiça compensatória, portanto, a reparação seria efetivada para

aqueles que não sofreram o dano diretamente. Ademais, as políticas indenizatórias

para reparar a dívida histórica da sociedade em relação a determinadas categorias

não seriam consideradas legítimas, visto que somente aqueles que foram

diretamente prejudicados poderiam pleitear a reparação correspondente, e contra

quem efetivamente deu causa ao dano.

A justiça distributiva, por outro lado, a qual remonta a Aristóteles, visa

promover a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riquezas e outros

importantes bens e benefícios, segundo assevera Joaquim Benedito Barbosa

Gomes. Ressalta ainda o autor que os partidários desta tese vislumbram um

substrato utilitarista, portanto, a redistribuição dos benefícios e ônus na sociedade

teria o efeito de promover o bem-estar na sociedade.283

As ações afirmativas, através da justiça distributiva, estariam relacionadas,

assim, a uma distribuição mais igualitária de oportunidades, de maneira a facilitar o

acesso dos indivíduos em condição desfavorável a bens que, normalmente, não

conseguiriam alcançar caso não fossem excluídos histórica e culturalmente. Esta

teoria, contudo, é comumente a mais aceita pelos defensores das ações afirmativas,

sendo adotada como principal fundamento.284

Paulo Lucena de Meneses entende que as ações afirmativas se encontram

justificadas pela necessidade de promoção de uma maior diversidade social,

mediante a ascensão e o fortalecimento de grupos sub-representados na sociedade,

independente das causas que deram origem as exclusões.285

Joaquim Benedito Barbosa Gomes, ademais, cita Dworkin em sua obra

Taking Rights Seriously, o qual, com base em argumentos utilitaristas, entende que

o objetivo imediato das ações afirmativas seria o de aumentar o número de

determinadas raças em certas posições e profissões, e o objetivo final seria, então, o

de reduzir o grau de consciência racial na sociedade em geral.286

283 Ibid, p.68. 284 Ibid, p.72. 285 MENEZES, 2001, p.34. 286 Ibid, p.69.

104

Assim, as ações afirmativas visam acelerar o ritmo de participação de

indivíduos de determinados grupos (como mulheres e negros) no acesso

especialmente a educação e emprego, através de políticas públicas ou privadas. Por

isso, devem ser tomadas tanto pelo Estado, quanto pela sociedade (incluindo aí a

atividade empresarial) ambos considerados verdadeiros atores, de acordo com a

realidade constatada, vindo a ampliar o acesso aos bens sociais.

Portanto, para a concretização da igualdade substantiva (material), conta-se

com aqueles indispensáveis atores, a fim de evitar discriminações e dar, por

derradeiro, mais eficácia ao princípio da isonomia. Justifica-se assim o

favorecimento de indivíduos pertencentes a determinados grupos em detrimento de

outros, como espécie de “discriminação positiva, visando à igualdade entre os

desiguais, ou seja, a restituição de uma igualdade que foi rompida ou que nunca

existiu.”287

Importa ressaltar que a ação afirmativa não se constitui em direito de

minorias, haja vista que as desigualdades sociais não são adstritas,

necessariamente, às minorias. Pelo contrário, elas podem atingir maiorias, como na

situação de mulheres, negros e pobres. Tampouco poderia ser confundida com

medidas assistenciais, sob o risco de cristalizar preconceitos. Atenta-se, no caso, a

devida comprovação de discriminação contra o grupo a ser beneficiado, a fim

promover a igualação de oportunidades.288

Ressalta-se que as ações afirmativas foram adotadas no país, no ano de

1990, para a contratação de pessoas deficientes no serviço público289, e em 1991 no

setor privado,290 devidamente respaldadas na atual CF. Tais normas trouxeram

proteção ao mercado de trabalho (como parte dos direitos sociais) a este grupo, com

a reserva de percentual de cargos e empregos para deficientes, previsões as quais

provam, ademais, a própria legalidade das ações afirmativas no país!

287 MASTRANTONIO, 2011, p. 127. 288 LIMA, 2006, p. 139. 289 BRASIL. Lei n. 8112, de 11 de dezembro de 1990, art. 5º, § 2º. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 12 dez. 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm. Acesso em 10 maio 2014. 290 BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, art. 93. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 25 jan. 1991. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em 10 maio 2014.

105

Infere-se que políticas públicas podem ser consideradas ações afirmativas,

mas estas, no entanto, podem advir de políticas privadas, portanto não

necessariamente decorrentes de uma ação estatal, ainda que advinda de legislação

decorrente de política pública do Poder Legislativo ou Executivo. Ações afirmativas

podem ser consideradas, desta forma, como políticas institucionais, ou seja,

medidas que decorrem tanto de entes públicos quanto de entidades privados. 291

As ações afirmativas, portanto, sendo consideradas como um mecanismo

utilizado também pela iniciativa privada, estão sendo utilizadas por empresas em

programas de diversidade, objetivando não apenas a melhoria da imagem, mas

também a ampliação de seus meios de competitividade e, sobretudo, para tornar o

ambiente de trabalho mais cooperativo e receptivo às diferenças pessoais. 292

Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio assevera que a busca pela efetiva

concretização do princípio da isonomia, dirigida aos grupos vulneráveis, objetivando

a inclusão social, somente poderá ser implementada com a máxima eficácia, se

contar com ações concretas do Estado (mediante ações no plano de produção

legislativa, e da atividade administrativa) e da atuação empresarial, em consonância

com a atuação do Poder Judiciário.293

Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-Jamra Corrêa

observam, ademais, que a concretização dos direitos fundamentais, previstos na

Constituição, não é obrigação exclusiva da atividade estatal, mas também da

sociedade e do meio empresarial. Os autores citam como exemplo os direitos do

trabalhador (em especial), o respeito ao consumidor, e a preservação do meio

ambiente, cujas violações geralmente ocorrem na esfera das relações privadas.294

291 Manuela Tomei observa que as medidas de ações afirmativas podem decorrer de autoridades legislativas ou administrativas, por meio de ordens judiciais, ou podem ser também voluntárias (no caso, quando advindas de entidades privadas). Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 292 TOMEI, Manuela. Ação Afirmativa para a igualdade racial : características, impactos e desafios. Brasília, OIT, 2005, p.9. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/discrimination/pub/acao_afirmativa_igualdade_racial227.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 293 MASTRANTONIO, 2011, p.154. 294 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes, e CORREA, Felippe Abu-Jamra. Responsabilidade social da empresa e as ações afirm ativas : implicações do estatuto da igualdade racial. Curitiba: JM, 2012, p. 81.

106

Contudo, Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-Jamra

Correa advertem que a atividade estatal não deve ser substituída pela atividade

empresarial. A esta incumbe cumprir a função social, no âmbito interno,

implementando os direitos fundamentais que guardam relação com o

desenvolvimento da atividade empresária. Concluem ensinado que a empresa pode

“fazer mais, a título de responsabilidade social. Menos, no entanto, lhe é defeso”. 295

O fundamento jurídico das ações afirmativas, além do mais, é o próprio

princípio da igualdade, o qual, em conformidade como o conteúdo de igualdade

material (substantiva), necessita, para a sua efetivação, mecanismos de igualação

de oportunidades para assegurar a justiça social. Paulo Lucena de Menezes justifica

a implantação de ações afirmativas também sob esta noção de justiça, ao considerar

a existência de desigualdades injustificadas na sociedade.296

Em 1995, visando a promoção de justiça social também nas esferas do poder,

foi estabelecida ação afirmativa por parte do Poder Legislativo, cota mínima de 30%

para as mulheres, nas candidaturas de todos os partidos políticos do país.297Esta

iniciativa teria origem em uma experiência semelhante utilizada pelos Partidos dos

Trabalhadores em 1991, decorrente de reinvindicações e pressões do movimento

feminista naquela época, na busca de espaço na sociedade.298

Esther Duflo observa que na política, medidas de discriminação positiva

(através das cotas) em favor das mulheres, parecem justificadas. A autora observa

que na maioria dos 17 países que atingiram os Objetivos de Desenvolvimento do

Milênio (ODM)299, 30% tinham mulheres entre os parlamentares, ressaltando que

nestes casos alguma forma de discriminação positiva havia sido implementada.

295 Ibid, p. 82. 296 MENEZES, 2001, p.38. 297 BRASIL. Lei n. 9.100, de 29 de setembro de 1995. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 set. 1995. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9100.htm>. Acesso em 10 maio 2014. 298 MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e debates no Brasil. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf. Acesso em 10 maio 2014. 299 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) surgem da Declaração do Milênio das Nações Unidas, adotada por 191 estados membros em 8 de setembro de2000. Criada para sintetizar acordos internacionais alcançados em cúpulas mundiais nos anos 90 (sobre meio-ambiente e desenvolvimento, direitos das mulheres, racismo, etc.), a Declaração traz compromissos concretos que, se cumpridos, deverão melhorar o destino da humanidade neste século.

107

Conclui que para haver uma representação equilibrada dos sexos, nos espaços de

poder e decisão, “formas de discriminação positiva serão necessárias”.300

Segundo Vera Soares, a previsão de cotas no sistema eleitoral justifica-se,

ademais, em razão do modo como ocorreu a construção da cidadania política e

social no Brasil, o qual contribuiu para a ausência de um forte sentido de direitos.

Observa a autora que “temos uma cidadania considerada tardia, com reflexos

posteriores sobre as práticas e os direitos políticos no país, em particular nas

mulheres”, o que torna a prática das ações afirmativas nesta campo necessárias,

inclusive no caso dos negros.301

Contudo, tanto as mulheres como os negros ainda mantém baixa

representatividade no parlamento brasileiro, principalmente as negras. Segundo um

estudo da União dos Negros pela Igualdade (Unegro), em parceria com a

Universidade Federal de Outro Preto (MG)302, apenas 0,0001% dos negros no país

exercem mandatos nas principais casas legislativas, sendo que destes, há apenas

13 mulheres, ou seja, uma ínfima participação delas na vida política nacional!303

Joaquim Benedito Barbosa Gomes, por derradeiro, assevera que o combate à

discriminação, de uma forma eficaz, nos mais varias âmbitos, não seria viável sem

“o empenho, a determinação, o engajamento e a vontade política dos órgãos que

encarnam o poder político da nação”304. Portanto, medidas há que serem adotadas,

e utilizadas, no combate às práticas discriminatórias sofridas pelas mulheres negras,

especialmente no mercado de trabalho. E, uma medida afirmativa indicada nesta

caso, poderia ser a adoção de cotas raciais.

300 DUFLO, Esther. Igualdade dos sexos e desenvolvimento. In: OCKRENT, Christine (coord.). O livro negro da condição das mulheres. Tradução: Nícia Bonatti. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2011, p. 664. 301 SOARES, Vera. As ações afirmativas para mulheres na política e no mundo do trabalho no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva. Ação Afirmativa e diversidade no trabalho : desafios e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 33. 302 Disponível em: <http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/265-generos-em-noticias/17342-13-mulheres-negras-brasileiras-de-destaque-na-politica>. Acesso: 10 maio 2014. 303 Destaca-se que há em trâmite atualmente uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), sob n. 116/2011, que reserva vagas a parlamentares de origem negra. De acordo com a proposta do deputado petista Luiz Alberto (BA), a cota valerá para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmara Legislativa do Distrito Federal por cinco legislaturas a partir da promulgação da emenda, prorrogáveis por até mais cinco legislaturas. A proposta ainda passará por uma Comissão Especial antes de ir à votação em dois turnos no plenário da Casa. Disponível: <http://www.estadao. com.br/noticias/nacional,ccj-da-camara-aprova-proposta-de-cota-para-parlamentar-de-origemnnegra, 1091391,0.htm>. Acesso em 10 maio 2014. 304 GOMES, 2001, p. 53.

108

3.2 A UTILIZAÇÃO DE COTAS NO COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Alvaro Ricardo de Souza Cruz explica que as políticas afirmativas não se

confundem exclusivamente com a implantação de cotas, não havendo dúvida,

contudo, de que constituem “um aspecto nodal na questão”. As ações afirmativas,

segundo o autor, podem ser consideradas quaisquer posturas, tanto de ordem

estatal, quando privada, em favor da integração sócio-econômica dos grupos

vulneráveis, garantindo-lhes, ademais, uma identidade sociocultural.305

Almiro de Sena Soares Filho observa que as cotas étnico/raciais enunciam

uma espécie das affirmative action (no direito americano), e discrimination positive

ou action positive (no direito europeu), sendo adotadas há muitos anos em outros

países, como Estados Unidos, África do Sul, Canadá e Índia. A sua utilização, além

do mais, não é recente para o mundo jurídico contemporâneo, principalmente nas

sociedades mais desenvolvidas, cujos regimes democráticos são mais estáveis.306

Resta claro, deste modo, que embora as ações afirmativas sejam,

frequentemente, associadas à fixação de cotas, ou seja, a reserva de espaços em

favor de grupos sociais que necessitam ser beneficiados (a fim de promover-lhes a

inserção social), consistem elas em uma mera modalidade de tais ações. A

utilização das cotas objetiva, assim, corrigir possíveis discriminações.307

A previsão de cotas, todavia, por se uma medida especial, tomada no tempo e

focada em determinada questão, deve persistir até o momento em que as distorções

sejam diminuídas, e melhor, eliminadas, não devendo perdurar indefinidamente para

não vir a provocar outras distorções. No caso das cotas raciais, até que “em

algumas gerações, a cor da pele seja irrelevante”, conforme assevera Luís Roberto

Barroso308.

305 CRUZ, 2009, p.185. 306 SOARES FILHO, 2010, p. 154. 307 MASTRANTONIO, 2011, p.139. 308 BARROSO, Luís Roberto. ”Cotas e Justiça Racial: de que lado você está?” , artigo de 06 maio 2013. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-mai-06/luis-roberto-barroso-justica-racial-lado-voce>. Acesso em 01 maio 2014.

109

Há, portanto, condições que devem ser observadas em relação ao sistema de

cotas. Segundo Thereza Cristina Gosdal, a utilização das cotas deve ser temporária,

tendo durabilidade até que seja estabelecido o equilíbrio relativo ao determinado

grupo em situação vulnerável. Ressalta a autora que tal medida é necessária para o

rompimento dos preconceitos, para a alteração de relações socias, bem como para

o próprio aspecto simbólico envolvido, podendo, inclusive, exercer um papel

transformador na sociedade.309

Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio também ressalta a necessidade da

previsão da regra de temporalidade como condição jurídica para a utilização das

ações afirmativas, vez que elas têm por objetivo a criação de um “status jurídico”

excepcional, com caráter provisório em favor de determinados grupos discriminados.

Ademais, a autora informa a necessidade de verificação de outras regras, como:

objetividade, proporcionalidade, razoabilidade, finalidade, e não onerosidade

excessiva para outros grupos ou para a sociedade em geral.310

Entretanto, segundo Manuela Tomei, as medidas temporárias não devem ser

confundidas com medidas de curto prazo, conforme experiências em outros países

do mundo. A autora observa que tanto para as medidas temporárias como para as

permanentes, é essencial a existência de monitoramento regular da lei e da prática

para pôr fim ao tratamento diferencial quando ele não se fizer mais necessário.311

As ações afirmativas, em especial as cotas, devem ser, portanto, temporárias

e dotadas de especialidade, características estas que, segundo Luciana de Oliveira

Leal, necessitam estar demonstradas no próprio ato que as estabeleceu. Assim,

quando da implementação de cotas, seja no mercado de trabalho, como no ensino,

há que estar indicado o lapso temporal estimado, e os motivos que o justificaram.312

De outro lado, ensina Luis Roberto Barroso que o discrimen utilizado deve

passar, antes, pelo crivo da razoabilidade, a fim de verificar “se o meio empregado e

309 GOSDAL, 2003, p. 129. 310 MASTRANTONIO, 2011, p. 139. 311 TOMEI, 2005, p.16. 312 LEAL, 2009, p.17.

110

o fim perseguido são compatíveis com os valores constitucionais”.313 Desse modo,

quando da previsão de cotas, é necessário verificar no caso concreto se a medida

atende o princípio da razoabilidade, sob pena da norma instituidora de tais medidas

possuir grande possibilidade de ser considerada inconstitucional.

O ordenamento jurídico brasileiro, conforme já verificado, considerando a

constitucionalidade do sistema de cotas, acolheu, ainda que de forma pontual, este

sistema em relação à participação no poder (de gênero), e no mercado de trabalho

(aos deficientes). Insta ressaltar, ademais, que em relação à discriminação racial e

social, o ordenamento pátrio previu cotas raciais tanto no âmbito do trabalho (esfera

pública), como cotas sociais/raciais no acesso às universidades.

Segundo informam Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini e Felippe Abu-

Jamra Corrêa,314 o primeiro caso no país de discriminação positiva para os negros

foi o sistema de cotas instituído nas universidades do Estado do Rio de Janeiro (Lei

Estadual nº 3.708/2001)315, a qual estabeleceu a cota mínima de 40% para a

população negra e parda, no preenchimento de vagas relativas ao curso de

graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e da Universidade

Estadual do Norte Fluminense.

No entanto, a referida Lei foi revogada pela Lei Estadual nº 4.151/2003,316 a

qual alterou o sistema de cotas para 20% das vagas nas instituições públicas de

ensino superior, mantidas e administradas pelo Estado do Rio de Janeiro, para

estudantes oriundos da rede pública de ensino; 20% para negros; e 5% para os

portadores de deficiência e filhos de policiais mortos em razão de serviço.

313 BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: RENAULT, Luiz Otavio Linhares; VIANA, Marcio Tulio; CANTELLI, Paula Oliveira (coord.) Discriminação. 2ª ed., São Paulo: LTr, 2010, p. 35. 314 BERTONCINI, 2012, p. 65. 315 RIO DE JANEIRO. Lei nº 3.708, de 9 de novembro de 2001. Instituiu cota de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, RJ, 11 dez. 2001. 316 RIO DE JANEIRO. Lei nº 4.151, de 4 de setembro de 2003. Instituiu nova disciplina sobre o sistema de cotas para o ingresso nas universidades públicas estaduais e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, RJ, 05 set. 2003.

111

Outras medidas judiciais houveram referente à discussão do sistema de cotas

nas universidades no país317. Contudo, a mais significativa foi a Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186318, em 2012.Esta ação

tramitou perante o STF, por intermédio da qual o Partido Democratas, sendo nela

postulada a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos da

Universidade de Brasília, que utilizaram como política de admissão o critério racial

na seleção de candidatos para o ingresso na universidade.

Nos autos, o Ministro Lewandowski afirmou que tais políticas estabeleciam

“um ambiente acadêmico plural e diversificado, tendo por objetivo a superação de

distorções sociais historicamente consolidadas”. O ministro confirmou que os meios

empregados e os fins perseguidos pela UNB são marcados pela “proporcionalidade

e razoabilidade”, e as políticas eram “transitórias” prevendo a revisão periódica dos

resultados. Quanto aos métodos de seleção, considerou-os “eficazes e compatíveis”

com o princípio da dignidade humana.319

Nesse julgamento favorável ao sistema de cotas na UNB, o ministro relator

arguiu que para a efetivação do princípio constitucional da igualdade, o Estado pode

sim lançar mão também de ações afirmativas, as quais consideram a situação real

de determinados grupos socias. Considera-se que tal decisão significou um divisor

de águas, em relação ao assunto do sistema de cotas raciais nas universidades,

pois a partir de então, o tema restou pacificado pelos Tribunais no país.320

No mesmo ano do julgamento da APDF, em 2012, houve a edição da Lei nº

12.711/12 que, consolidando o entendimento acerca do tema, previu vagas aos

estudantes brasileiros das escolas públicas, de baixa renda familiar, a fim de

obterem melhores condições de ingressar nas universidades públicas do país.321

317 Ressalta-se a instituição do PROUNI, através da Lei nº 11.096/2005, que previu “bolsas de estudo” para pessoas portadoras de deficiência, índios e negros, conforme visto em capítulo anterior. 318 BRASIL, ADPF 186. Julgamento em 26.4.2012. 319 Ibid. 320 Observa-se que o STF há havia enfrentado a questão racial no Habeas Corpus (HC 82424), impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, acusado por ser o responsável pela edição e venda de livros fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias em relação à comunidade judaica. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=61291>. Acesso em: 10 maio 2014. 321 Lei nº 12.711/12 – Esta “lei de cotas” é válida inicialmente por dez anos, a partir de agosto de 2012. O regime de cotas sociais/raciais no ensino brasileiro garante 50% das vagas das universidades federais, e dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, aos alunos que estudaram durante todo o ensino médio em escola pública. Para cada uma dessas condições de

112

Insta observar, em relação a parte histórica das ações afirmativas, que

embora haja entendimento por parte de doutrina que as suas origens tenham

ocorrido na Índia,322 Antonio Celso Baeta Minhoto esclarece que a criação dessas

ações seria atribuída aos EUA, pois foi lá que a esta política com caráter social foi

criada, desenvolvida e amadurecida de forma ampla e completa. O autor informa

que a existência de tais políticas em países como a África do Sul (onde o regime do

aparheid durou de 1948 a 1990)323 e Índia324, ocorreram tendo por motivação

principal o combate à exclusão social, mas sob outro modelo.

A política de cotas, referente ao problema da questão racial, utilizadas nas

universidades norte-americanas, foi por diversas vezes levada à Suprema Corte

daquele país. Em 1978, a Universidade da Califórnia estabeleceu cotas para negros,

hispânicos e outros grupos desfavorecidos, porém aquele Tribunal afirmou serem as

mesmas inconstitucionais325. Em 2003, no entanto, aquela Corte reviu a sua

posição.326Segundo observa Estevão Mallet, a Suprema Corte validou a adoção de

cotas para negros nas universidades americanas.327

Notícia veiculada em 22 de abril de 2014 informa que a Suprema Corte dos

Estados Unidos decidiu, por seis votos contra dois, a constitucionalidade de uma

medida aprovada por referendo em Michigan328, que dissolvia a ação afirmativa nas

universidades daquele estado. Ressalta-se, contudo, que a decisão não tratou sobre

o constitucionalidade de implementação de cotas raciais nas universidades, mas sim

de quem deve resolvê-la (se podem os eleitores locais, através de plebiscito, fazê-lo

ou não).329

renda, um percentual das vagas é destinado a quem se auto declarar preto, pardo ou indígena, na mesma proporção em que esses segmentos são encontrados no estado onde está instalada a instituição de ensino, de acordo com o mais recente censo do IBGE. 322 Neste sentido entendeu o ministro Lewandowski nos autos de ADPF 186, julgado em 26.4.2012. 323 BERTONCINI, 2012, p. 57. 324 MINHOTO, 2013, p. 47. 325 Regents of the University of Caifornia versus Bakke (438 US 265). CRUZ, 2009, p. 169. 326 Grutter v. Bollinger (000 U.S. 02-241). MALLET, 2013, p. 107. 327 MALLET, 2013,107. 328 Michigan é um dos oito Estados americanos a banir as ações afirmativas. Ela se soma ao Arizona, Flórida, Nebraska, New Hampshire, Oklahoma, Washington, e Califórnia, onde, em 1996, iniciou este movimento. 329 Disponível em:<http://oglobo.globo.com/sociedade/suprema-corte-dos-eua-respalda-fim-de-crite rios-raciais-em-admissao-de-universidades-do-michigan-12262088>. Acesso em: 10 maio 2014.

113

Ainda em relação à utilização de ações afirmativas nos EUA, ressalta-se que

no campo das relações do trabalho houve também a sua validação. Estevão Mallet

informa que tal fato ocorreu no ano de 1970, no julgamento do caso Steelworkers

versus Weber, reconhecendo a validade de uma norma coletiva celebrada

juntamente com Sindicato. A norma previa promoção preferencial de trabalhadores

negros, os quais eram preteridos pelo setor.330

Álvaro Ricardo de Souza Cruz informa que, no entanto, o caso Weber,

embora tenha sido vencedor nas instâncias inferiores, acabou sendo derrotado na

Suprema Corte dos EUA. Mas o cerne da questão desta última decisão, segundo o

autor, era a verificação da possibilidade da legislação americana poderia contemplar

os planos privados de ações afirmativas,331 e não a constitucionalidade de cotas no

mercado de trabalho para indivíduos negros.

Os julgamentos ocorridos na Suprema Corte Americana, todavia, podem ter o

entendimento alterado, sendo variável a compreensão quanto a legitimidade e

alcance da utilização de cotas raciais, em razão da composição dos juízes daquele

Tribunal. Assim, o entendimento sobre tal tema ora pode ser mais conservador, ora

mais liberal. Atualmente, contudo, a utilização das ações afirmativas, conforme já

verificado, permanecem plenamente válidas, sendo utilizadas naquele país.332

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, ademais, destaca a importância que teve a

criação da Agência Federal EEOC na implantação das ações afirmativas no campo

das relações empregatícias nos EUA. A agência americana cuida dos casos onde

ocorrem discriminações, no campo do trabalho, inclusive raciais, atuando de forma

muito útil também em juízo nestas situações, tendo muito utilidade na questão

probatória.333

Manuela Tomei lembra que ainda nos EUA, em 1964, foi editado o Civil

Rights Act, o qual determinou que os empregadores, com 100 ou mais empregados

deveriam fornecer estatísticas sobre o número de trabalhadores de cada raça,

anualmente. O ato incluía as agências de emprego, sindicatos e empresas. A autora

330 MALLET, 2013, p.108. 331 CRUZ, 2009, p.166. 332 BERTONCINI, 2012, p. 73. 333 Idem, p. 167.

114

informa ainda que desde o ano de 1972, os empregadores dos setores públicos e

privados, com mais de 15 empregados, tem o dever de cumprir aquela norma.334

Segundo Tomei, diversos países adotam políticas de ações afirmativas para,

em consonância com a Convenção n. 111 (OIT), criar mecanismos de combate à

discriminação racial no âmbito do trabalho, entre eles: EUA, Canadá, Irlanda do

Norte, Índia, e a Malásia. Mas, segundo a autora, apenas estes dois últimos países

adotam o sistema de cotas raciais, como espécie de práticas positivas na inclusão

de trabalhadores negros.335

No tocante à justificativa de cotas em relação a discriminação de gênero, no

mercado de trabalho, Vera Soares as justifica em razão de que a “problematização

da presença das mulheres no mundo do trabalho ainda é muito débil.”336

Diante da precariedade do trabalho feminino, alguns países, inclusive,

adotaram cotas de gênero para determinados cargos. A considerável expansão da

mulher nesse campo, em diversas partes do mundo, parece ser algo evidente,

embora ainda marcado por algumas desigualdades, as quais alguns países têm

tentado combater através de política de implantação de cotas nas empresas.

Em especial no continente europeu, tal política teve início já há alguns anos,

como, por exemplo, em 2004 na Noruega (país o qual tem liderado, ultimamente,

ranking mundial de desenvolvimento humano)337, quando o governo local obrigou

empresas públicas e privadas de capital aberto a adotarem cotas para mulheres em

seus conselhos diretores. Pela regra, 40% dos assentos de conselhos diretores são

reservados para mulheres.

Aparentemente o efeito dessa imposição parece ter sido positivo, pois além

de ser considerado um dos melhores países para se viver, inclusive com o continua

elevação de seu PIB, a medida lá adotada acabou por servir de exemplo a outros

países, também na Europa, como, por exemplo, Espanha, que as adotou em 2007,

e, em 2011, França, Itália, Holanda, Bélgica, e Islândia. 334 TOMEI, 2005, p. 19. 335 Idem, p. 14. 336 SOARES, Vera. As ações afirmativas para mulheres na política e no mundo do trabalho no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva. Ação Afirmativa e diversidade no trabalho : desafios e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 45. 337 Disponível em: <www.bbc.co.uk/portuguese/.../09/120919_cotas_mulheres_ru.shtml>, acessado em 10 maio 2014.

115

Ressalta-se que tamanha foi a aceitação, que a vice-presidente da Comissão

Européia, Viviane Reding, cogitou, no ano de 2012, a possibilidade de implantar a

política de cotas femininas nas empresas dos 27 membros do bloco, no intuito de

tentar corrigir a falta de diversidade no topo das empresas, permitindo, desta forma,

que as mulheres possam alcançar postos de liderança com maior rapidez.338

Naquele continente, de forma não muito diferente do Brasil, a porcentagem da

presença feminina nas empresas é de 50%, sendo, contudo, nos conselhos

corporativos apenas 12% a participação delas339. Neste país, o índice é de 8% de

mulheres nesses conselhos das companhias abertas, conforme Instituto Brasileiro

de Governança Corporativa, sendo ainda menor em algumas empresas públicas340.

No Brasil, cotas de gênero, no campo do trabalho, não existem atualmente.

Mas está em trâmite um projeto de lei no Senado neste sentido, a exemplo da

política adotada em países europeus, prevendo igualmente 40% de vagas para

mulheres, nos conselhos de administração de empresas públicas e sociedades de

economia mista, com o objetivo de tornar efetiva a presença de mulheres das

empresas cujo capital majoritário seja da União.

O projeto que prevê cotas para mulheres tramita sob nº PLS 112/2010341, de

autoria da senadora Maria do Carmo Alves, filiada ao partido DEM/SE, prevê ainda

que as empresas estariam livres para realizar o preenchimento de cargos, contanto

que elas respeitem os limites mínimos estabelecidos pela lei, para o preenchimento

das cotas, que são: 10% até 2016, 20% até 2018, 30% até 2020, e fechando os 40%

até 2022. 342

Conquanto não existam cotas de gênero no campo do trabalho no país, há

previsão de cotas raciais no âmbito laboral, as quais se situam, exclusivamente, no

serviço público federal (tal qual em trâmite as cotas raciais atualmente). No setor

privado, informa Benjamin Gonçalves que, em um total de 500 empresas

338 Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/09/120919_cotas_ mulheres_ru. .shtml>. Acesso em 10 maio 2014. 339 Ibid 340 Disponível em: <http://www.ibgc.org.br/PressRelease.aspx?CodPressRelease=415>.Acesso em 10 maio 2014. 341 PLS – Projeto de lei do Senado Federal, nº 112, de 2010. Autora: senadora Maria Carmo Alves (partido DEM/SE). 342 Disponível em: < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106392>. Acesso em 10 maio 2014.

116

pesquisadas, apenas 7% desenvolviam programas especiais para contratação de

pessoas usualmente discriminadas no mercado de trabalho (como mulheres, negros

e indivíduos com mais de 45 anos de idade). Porém não havendo nenhum indicativo

da existência de cotas raciais nas referidas contratações.343

No ano de 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF), em observância à

Convenção n. 111 (OIT), demonstrou preocupação com a igualdade de

oportunidades na área do emprego, notadamente à questão da discriminação racial.

Este Órgão fixou no edital da licitação que cuidava da contratação de terceirizados

para prestação de serviços gerais, a estipulação de cota de 20% de empregados

afrodescendentes, para admissão nos quadros da empresa a ser contratada.344

Também em 2001, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA foram

os primeiros órgãos do governo federal a institucionalizar um programa de ações

afirmativas, seguidos pelo Ministério da Justiça, que pretende ter 45% do quadro de

funcionários formados por mulheres, negros e deficientes. Desde 2002, todas as

empresas que prestam serviços para esses órgãos têm que reservar 20% de vagas

para negros, embora parte dos servidores públicos sejam terceirizados.345

O Ministério da Cultura, em agosto de 2002, instituiu o Programa de Ações

Afirmativas, adotando cotas de 20% no preenchimento de funções de direção e

assessoramento superior, e determinando cláusulas de promoção da igualdade nos

convênios ou cooperação técnica. O Ministério de Comunicação, em fevereiro de

2003, determinou que as campanhas publicitárias da Presidência da República, dos

ministérios, das estatais e das autarquias federais respeitem diversidade.346

O Ministério das Relações Exteriores, no ano de 2002, previu cotas raciais

(10% na primeira fase) para a seleção de candidatos a diplomatas, realizado pelo

Instituto Rio Branco. E desde 2011, o Itamaraty (sede do Ministério) incorporou outra

ação afirmativa à seleção. O órgão passou a aprovar, para a segunda fase da

prova,10% a mais de candidatos em grupo integrado exclusivamente por bolsistas

343 GONÇALVES, 2003, p.22. 344 BRITO FILHO, 2002, 57. 345 DOMINGUES, 2005, P.17. 346 Idem, p.17.

117

negros. Esta política, no entanto, é única no âmbito da Administração Pública

Federal.347

No Instituto Rio Branco (que forma os diplomatas) os cotistas são

selecionados em lista à parte, por ordem de classificação, desde que cumpram o

requisito mínimo para aprovação (40% de acertos). Além disso, há uma parceria

com a Fundação Palmares que oferece bolsas de estudo (R$ 25 mil anuais em

dinheiro) para que pessoas negras possam comprar livros e material de estudo, e

custear cursos preparatórios e professores particulares.348

Entre os Governos e assembleias legislativas dos 26 estados, e Distrito

Federal, apenas o Paraná, Mato Grosso do Sul, e mais recentemente Maranhão e

Rio de Janeiro utilizam a reserva de cotas raciais nos concursos públicos desta

esfera pública. Há, no entanto, localidades onde ainda não existe regra válida para

todo o estado, como no Rio Grande do Sul e o Espírito Santo, onde poucos municípios

adotam a prática.349

No Paraná, desde 2003, a Lei 14.274/03350 reserva 10% das vagas para negros

em concursos estaduais. Contudo, esta lei ainda não prevê mecanismos de controle

para a verificação da declaração dos candidatos afrodescendentes (atualmente os

candidatos que se declaram negros passam por uma seleção “visual”, onde são

verificadas características como: cor da pele e tipo do cabelo)351. Em concursos públicos

municipais do estado, são apenas 9 as cidades paranaenses que aderiram a política.352

Recentemente o Poder Executivo Federal elaborou projeto de lei (PL

6.783/13), que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais a

candidatos negros e pardos. A proposta aplica tal reserva aos órgãos da

administração pública federal, autarquias, fundações, empresas públicas e

sociedades de economia mista.353 No entanto, embora tenha sido aprovado pela

347 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po2912201009.htm>. Acesso em: 10 maio 2014. 348 Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2013/06/vagas-para-diplomata-caem-e-disputa-cresce-veja-graduacoes-que-passam.html>. Acesso em: 10 maio 2014. 349 Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2011/06/pr-e-ms-ja-adotam-cotas-para-negros-em-concursos-estaduais.html. Acesso em 10 maio 2014. 350 Disponível em:<http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto= 252&indice=1&totalRegistros=1>. Acesso em 10 maio 1014. 351 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1431351&tit== Cotas-raciais-no-servico-publico-dividem-opinioes>. Acesso em 10 maio 2014. 352 Disponível em: < http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/12/pesquisa-desfaz-mitos-de-que-cotas-raciais-no-servico-publico-nao-sao-necessarias-6001.html>. Acesso em: 10 maio 2014. 353 Exemplo: Petrobrás, Caixa Econômica Federal, os Correios e o Banco do Brasil.

118

Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), em 7 de maio de 2014, aguarda votação

(em regime de urgência) pelo plenário do Senado Federal.354

Em referido projeto, a cota racial terá validade de dez anos, não sendo

aplicável aos concursos cujos editais tenham sido publicados antes da vigência da

lei. Para concorrer a essas vagas, os candidatos deverão se declarar negros ou

pardos no ato da inscrição do concurso, conforme o quesito de cor ou raça usado

pelo IBGE. O projeto determina ainda a adoção da cota racial sempre que o número

de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a três, não

mencionando, no entanto, os cargos em comissão.355

Assim, a exemplo do serviço público e das nações onde já se utilizam cotas

como medidas afirmativas, estas, quiçá, poderiam ser adotadas também no setor

privado do país, em parcerias com as empresas,356 a fim de auxiliar no combate à

discriminação racial, bem como na promoção da igualdade de oportunidade

daqueles que enfrentam desigualdades socias357 (como é o caso das trabalhadoras

negras, por exemplo).

3.3 DESAFIOS NO COMBATE À DISCRIMINAÇÃO DA TRABALHADORA NEGRA

ATRAVÉS DE COTAS

Ressalta-se que, inobstante a tentativa de implementação de ações

afirmativas nas empresas, no ano de 1968, por técnicos do Ministério do Trabalho (a

qual não chegou a ser efetivada), resta demonstrado que a separação de vagas

para negros no mercado de trabalho não é inovação, pelo contrário, a preocupação

com a questão da discriminação racial no mercado de trabalho remanesce há muito

tempo no país.

354 Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=1467113>. Acesso em 10 maio 2014. 355 Idem. 356 Conforme previsão contida no art.39, do Estatuto da Igualdade Racial , instituído pela Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, e em consonância com a Convenção n. 111, da OIT. 357 BERTONCINI, 2012, p.190.

119

As ações afirmativas, em especial a política de cotas raciais, passaram a ser

utilizadas no mercado de trabalho brasileiro há pouco mais de uma década358, mas

tão somente no serviço público. Assim, para que o problema da discriminação

ocorrida em face das trabalhadoras negras possa ser, efetivamente, enfrentado e

resolvido, surge a possibilidade da utilização de cotas raciais direcionado a elas,

através da atividade empresarial (mediante imposição legal ou voluntariamente).

O texto constitucional, em 1988, não enfrentou explicitamente a questão do

negro no mercado de trabalho. É de se indagar, todavia, a razão pela qual é difícil

para muitas pessoas aceitarem que os negros, em especial as mulheres, de fato têm

dificuldades em se alocarem nesse mercado em igualdade de condições (por

questões de gênero e raciais). Essa dificuldade, contudo, é de difícil resolução

natural, necessitando da influência do Estado e da sociedade em geral.

A realidade da mulher negra no Brasil, segundo demonstram as pesquisas, é

precária. Elas possuem acesso limitado a determinas funções e cargos (estando

muitas relacionadas ao serviço doméstico), recebem salários inferiores em relação

tanto aos homens, como às mulheres brancas, além de terem maior dificuldade de

reinserção no mercado de trabalho (as negras são as que permanecem mais tempo

desempregadas). Além do mais, muitas são vitimas também de insultos ocorridos

dentro do ambiente laboral.359

A ocorrência de discriminação racial no Brasil, notadamente em relação às

mulheres negras é, portanto, um fato evidente! E por não se tratar de um mito, mas

sim de uma realidade, impõem-se um tratamento diferenciado a fim de implementar

o direito à igualdade no mercado de trabalho para esta categoria vulnerável. Neste

contexto, torna-se imperioso, primeiramente, o reconhecimento de tal fenômeno.

Observa-se, conforme já verificado, que foi na década de oitenta que tiveram

início os estudos referentes às desigualdades raciais no país, mas que, entretanto,

apenas após 1995 o resultado foi divulgado para a sociedade em geral.360 A partir de

358 Observa-se que o Paraná foi um estado pioneiro a prever cotas raciais no acesso ao serviço público, no ano de 2003, através da edição da Lei estadual 14.274/PR. Ademais, a UFPR, desde 2004, segue a Resolução 1.707, que destina 40% das vagas a cotistas sociais e raciais nas universidades. 359 Conforme dados demonstrados no Capítulo 2 desta pesquisa. 360 Ressalta-se que no ano de 1995 ocorreu no Brasil o movimento negro Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e a vida, em Brasília, do qual decorreu a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI).

120

então, houve campanhas contra o racismo, realizadas pelos movimentos negros, os

quais apontaram que práticas discriminatórias eram mais acentuadas nos estratos

de maior escolaridade, deixando transparecer, logo, a discriminação como fator

explicativo para os resultados obtidos na maior parte das pesquisas já realizadas.361

Antonio Sergio Guimarães assevera que existe, na sociedade brasileira, uma

verdadeira “guerra ideológica” em torno das cotas raciais. O autor observa que há

tanto opiniões favoráveis como contrários à implantação de tais políticas, utilizando-

se, cada qual, de seus próprios argumentos.362

Segundo o autor, os opositores à implantação de ações afirmativas, em

especial à utilização das cotas, adotam suas linhas de defesa em nome de uma

“democracia racial”. Esses se utilizam basicamente de dois argumentos: o primeiro

se refere à institucionalização racial, ou seja, a adoção de políticas raciais poderia

dividir a população brasileira em brancos, negros e indígenas, levando à racialização

da sociedade brasileira.363

A segunda argumentação utilizada pelos oponentes daquelas ações se refere

ao argumento de inexistência das “raças” humanas para a ciência moderna. Nesta

concepção, a discriminação (positiva) racial, portanto, seria infundada, visto a

possibilidade de negros brasileiros terem ancestralidade branca, e brancos

brasileiros terem ancestralidade tanto indígena como africana, assevera Guimarães,

baseado nos conceitos do geneticista Sérgio Pena.364

Neste sentido entendem também Peter Fry e Yvonne Maggi, para os quais a

implementação de cotas em nada iria afetar as “elites endinheiradas do país”. Para

os autores, seria a classe média, principalmente a baixa ascendente, que seriam as

prejudicadas, considerando a notável expansão do ensino médio nos últimos anos, e

o consequente acesso às Universidades em geral. Asseveram que tal política,

mesmo sendo de curto prazo, teria consequências sentidas em um longo prazo.

361 GUIMARÃES, 2012, p. 125. 362 Idem, p. 125. 363 Idem, p. 125. 364 Idem, p. 126.

121

Ademais, o Estado, ao legislar sobre esta matéria, estaria fundando uma “raça”,

criando, justamente, aquilo que se pretendia ver destruído, concluem os autores.365

Ali Kamel é outro autor conhecido por sua posição radicalmente contrária à

“política de preferência racial”. Assevera o autor que a implementação de cotas

representa um “caminho mágico sedutor”, aduzindo que para muitos “basta facilitar o

acesso dos negros e pardos às universidades para que todos os problemas estejam

resolvidos, quando, na verdade, estarão apenas começando”. Justifica tal

entendimento arguindo que além de não haver garantias quanto à eficácia das

cotas, elas podem ensejar o aparecimento do “ódio racial”. 366

Além destas justificativas, há outras ainda também contrárias a utilização das

ações afirmativas. Segundo informa Fátima Bayma, os indivíduos em desacordo

com tais políticas costumam argumentar que elas seriam injustas por desconsideram

o critério do mérito e, portanto, poderiam levar a uma espécie de discriminação

reversa. E, uma vez ocorrendo esta discriminação, estar-se-ia incitando o ódio entre

as raças, o que aumentaria ainda mais o racismo e a discriminação na sociedade

brasileira. 367

Antonio Celso Baeta Minhoto destaca que o tema meritocracia, quando

relacionado ao assunto cotas, seja relacionado à área da educação, como na área

do trabalho, é uma questão importante a ser tratada, visto que comporta

subjetividade em sua abordagem. A meritocracia, para o autor, traz (ou pode trazer)

consigo “uma carga considerável de ideologias, bem como concepções morais,

sociológicas, antropológicas e até psicológicas.”368

Assevera Antonio Celso Baeta Minhoto que nas discussões acerca do mérito,

referente ao acesso às ações afirmativas, pretende-se colocar os possíveis

beneficiários como “aquinhoados que nenhum esforço envidaram para gozar de tais

benefícios, deixando-se de lado o fato de que a própria noção de empenho e esforço

é bastante relativizada no país.” E conclui observando que embora tais políticas

relativizem a questão do mérito, elas não devem impedir a sua adoção pelo Estado

365 FRY, Peter, MAGGIE, Yvonne. Política social de alto risco. In: FRY, Peter et al (org.). Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.280. 366 KAMEL, 2006, p. 143. 367 BAYMA, 2012, p.17. 368 MINHOTO, 2013, p. 174.

122

democrático de Direito, o qual está fundado em valores que tais ações visam a

contemplar.369

José Roberto Pingo Góes, desfavorável à implantação de cotas no sistema

educacional, no entanto, faz críticas em relação à assertiva de que as cotas teriam,

entre seus os objetivos, o rompimento do sistema meritocrático, o qual estaria ao

alcance de indivíduos privilegiados na sociedade. Segundo o autor, “não é o sistema

de mérito que gera injustas desigualdades, mas a precariedade da rede escolar

pública”. Questiona também sobre a possibilidade de imputação de responsabilidade

de fatos ocorridos no passado (escravidão) para a atual sociedade.370

Thereza Cristina Gosdal informa que outra justificativa para posições

contrárias às ações afirmativas e ao sistema de cotas, seria porque estas igualam e

equilibram de uma forma artificial a representação de determinados grupos, como,

por exemplo: as mulheres e os negros. Ademais, observa que para combater a

discriminação destes grupos, alguns autores sugerem a utilização de outras medidas

que sejam menos “dramáticas e estereotipantes”.371

A implementação de cotas, portanto, seja no sistema educacional, como no

ambiente de trabalho, possui diversas críticas. Simone Aparecida Barbosa

Mastrantonio observa que os oponentes que atribuem cunho negativo à tal política,

apontam a existência de diversas falhas, sendo necessário, desta forma, um arsenal

de outras medidas para corrigir os desequilíbrios existentes no mercado de trabalho,

a fim de evitar desigualdades ainda maiores neste meio. 372

Demétrio Magnoli critica a adoção de política de cotas raciais. Segundo o

autor, a população brasileira, em toda a sua história, “não aprendeu a separar as

pessoas segundo o cânone do mito da raça”, e por este motivo, as cotas viriam a

despertar a atenção para tal questão. Observa, ademais, que segundo especialistas,

diferenças genéticas dos grupos humanos não tem importância na interpretação das

369 Idem, p. 174. 370 GÓES, José Roberto Pinto de. O Racismo vira lei. In: In: FRY, Peter et al (org.). Divisões perigosas : políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.197. 371 GOSDAL, 2003, p. 128. 372 MASTRANTONIO, 2011, p. 183.

123

diferenças sociais ou culturais373, não podendo ser admitido, portanto, o termo raça

em discursos de políticas afirmativas.

Outro argumento, contrário à adoção de cotas, ser refere à alegação de que,

sendo discriminatórias, seriam inconstitucionais. Ou seja, não ser reconhece este

tratamento diferenciado para que a igualdade seja alcançada. Paulo Lucena de

Menezes observa, contudo, que “a constitucionalidade de questões envolvendo a

matéria terá de ser, necessariamente, investigada em cada situação concreta,

segundo o método de averiguação do princípio da igualdade jurídica.”374

Por outro lado, os defensores dos programas afirmativos procuram justificar a

opção por tais medidas de combate à discriminação racial, utilizando, basicamente,

como principais argumentos, a reparação histórica pelo sofrimento do passado, a

inclusão e a diversidade social. Tais argumentos se traduzem nos postulados

filosóficos: Justiça Compensatória e Justiça Distributiva, respectivamente.

A Justiça Compensatória está baseada na retificação de injustiças cometidas

contra indivíduos no passado, visando a promover o resgate da dívida histórica, no

caso dos negros, do período da escravidão a que foram submetidos. Mas o

problema deste argumento seria o de identificar quem seriam os beneficiários do

programa compensatório (restaurador), já que os negros de hoje não sofreram

diretamente os danos, bem como identificar quem arcaria com a reparação (no caso,

a sociedade atual), conforme já visto anteriormente.375

Sob a ótica da Justiça Distributiva, a utilização das ações afirmativas estaria

relacionada a uma distribuição mais igualitária das oportunidades, de forma a

facilitar o acesso dos desfavorecidos a bens que alcançariam (direitos, vantagens,

riquezas entre outros), caso não fossem excluídos histórica e culturalmente.

Ressalta Joaquim Benedito Barbosa Gomes que os partidários desta tese

vislumbram um substrato utilitarista. Assim, a redistribuição dos benefícios e os ônus

na sociedade teriam como efeito a promoção do bem-estar na sociedade.376

373 MAGNOLI, 2009, p. 58. 374

MENEZES, 2001, p. 152. 375 GOMES, 2001, p. 62. 376 Ibid, p.68.

124

Há também diversos autores que se mostram favoráveis às ações afirmativas.

Thereza Cristina Gosdal, por exemplo, observa que na análise das experiências

ocorridas em países da Comunidade Européia, os resultados se revelam vantajosos

também às empresas, na medida em que acabam dando retorno econômico positivo

às mesmas. O reconhecimento e a valorização das diferenças “passam a ser

estratégia de competitividade para a empresa”, assevera a autora.377

As políticas afirmativas, para Ronald Dworkin, na perspectiva do sistema

americano, não podem ser consideradas contraproducentes, visto que têm se

mostrado, ao contrário, que são bem-sucedidas (ou seja, funcionam!) conforme

demonstram as estatísticas daquele país. Ademais, tais políticas também não

podem ser consideradas injustas, visto que “não transgridem os direitos individuais

nem comprometem nenhum princípio moral”, logo, as diretrizes das ações

afirmativas podem ser consideradas justas, segundo o autor.378

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, por um lado, observa que ações afirmativas

são medidas que se prestam a “efetivação dos princípios constitucionais da

dignidade humana, do pluralismo e da concepção procedimental da igualdade no

paradigma do Estado Democrático de Direito”. Contudo, de outro lado, adverte que

essas políticas não se limitam ao estabelecimento de cotas, devendo ir mais além,

sob pena de perderem a sua legitimidade, e transformar-se em “cota cega” (como,

segundo o autor, é o caso das cotas raciais nas universidades federais no país).379

Assevera Luis Roberto Barroso, em concordância com a implementação de

ações afirmativas pelo Estado, que:

A própria Lei Maior desequipara as pessoas com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional, nacionalidade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas, como, ao contrário, impõe o tratamento desigual .”380 (grifos acrescidos)

377 GOSDAL, p. 130. 378 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualda de. Tradução: Jussara Simões. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 578. 379 CRUZ, Alvaro Ricardo de Souza. O Direito à Diferença. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2009, p. 231. 380 BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: VIANA, Marcio Tulio; RENAULT, Otavio Linhares (coord.). Discriminação : estudos. São Paulo: Ltr, 2000, p. 32.

125

Michael J. Sandel observa que o princípio da diversidade, utilizado como

principal argumento na implementação de ações afirmativas nos EUA, se justifica

em nome de um bem comum, qual seja: o bem comum da própria universidade e

também da sociedade em geral. No entanto, nele também se verificam objeções,

entre as quais a de que não haveria como garantir existência de uma sociedade

mais diversificada, nem uma maior conscientização, podendo-se correr o risco,

inclusive, de gerar tensões entre as partes que se submetessem às essas ações.381

Para Mateus Eduardo Bertoncini, as políticas de ação afirmativa são

necessárias para que haja a reconstrução do futuro de diversas classes e grupos

menos favorecidos, “como um imperativo constitucional, como uma obrigação

positiva do Estado, da sociedade civil e de cada cidadão, na consolidação do projeto

constitucional de transformação da atual sociedade numa sociedade livre, justa e

solidária”. 382

Note-se que alguns órgãos, como o Supremo Tribunal Federal, conseguiram

já vislumbrar essa realidade. Este Tribunal, no ano de 2012, no julgamento da APDF

186, reconheceu a existência da discriminação racial havida no país, tendo,

consequentemente, julgado pela constitucionalidade das cotas sociorraciais,

permitindo então a sua utilização em uma universidade de Brasília (UNB).

Além do mais, a referida decisão deve ter, por certo, influenciado a edição da

Lei nº 12.711, ocorrida naquele mesmo ano, a qual, reconhecendo a importância da

implantação das cotas no combate a discriminação racial, as previu nas

universidades federais, e de 38 institutos de educação, ciência e tecnologia. Esta

norma visou a oferecer condições melhores para os estudantes ingressarem nas

universidades públicas brasileiras.

Observa-se que o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, enquanto

Presidente STF, no seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido

pelo Tribunal Superior do Trabalho (em 20 de novembro de 2001) proferiu uma

381 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa . Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. – 5ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 211. 382 BERTONCINI, Mateus Eduardo, e CAMPOS FILHO, Wilson Carlo. Políticas de Ação Afirmativa no contexto do direito constitucional brasileiro. Revista Jurídica Unicuritiba – v. 27, nº 11, 2011. Disponível em <http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/215> Acessado em 10 maio 2014, p. 165.

126

palestra intitulada “Óptica Constitucional - A Igualdade e as Ações Afirmativas”,383

onde defendeu a constitucionalidade da implementação de ações afirmativas em

favor dos negros brasileiros já naquele ano!

O atual Presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, inclusive, em

entrevista ao Jornal o Globo, em julho de 2013, exaltando o posicionamento do STF

ao reconhecer o racismo no país, mencionou a existência de “clichês” atribuídos aos

negros (carnaval, futebol, e samba) pela sociedade brasileira. Ademais, ele

confessou ter sido vítima de prática racial, ao ser reprovado na entrevista (após ter

passado com êxito nas provas escritas) quando prestou concurso no Itamaraty.384

Conquanto a suprema Corte do país tenha, recentemente, reconhecido a

existência do racismo no Brasil, e se mostrado favorável à utilização das cotas como

mecanismo de combate da discriminação racial, destaca-se que entre os sujeitos de

obrigação positiva, para a implementação de políticas afirmativas, encontram-se as

empresas.

Nesse sentido, a atividade empresarial, ciente do compromisso social com

seus públicos de interesse, tem buscado, segundo Benjamin Gonçalves, a promoção

da diversidade e da equidade, a qual pressupõe a “representação proporcional nos

quadros da empresa de todos os grupos presentes na sociedade, e oportunidades

iguais para todos e todas.”385

O constituinte, ao estabelecer que a ordem econômica, deve atentar para o

princípio da função social da propriedade (art. 170, III, CF), se referiu, de forma

certeira, à empresa que é uma das unidades econômicas mais importantes do

sistema capitalista atual, segundo José Afonso Dallegrave Neto386. Ressaltando,

ademais, que o processo econômico vigente é determinado e impulsionado,

portanto, pela empresa, e não mais pela propriedade.

383 Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:artigo.revista:2006;1 2000798698. Acesso em: 10 maio 2014. 384 Disponível em: < http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2013/07/28/joaquim-barbosa-brasil-nao-esta-preparado-para-um-presidente-negro-504975.asp>. Disponível em: 10 maio 2014. 385 GONÇALVES, 2003, p. 5. 386 DALLEGRAVE NETO, José Afonso. Notas sobre a subordinação jurídica e a função social da empresa à luz do solidarismo constitucional. In: GEVAERD, Jair, e TONIN, Marta Marília. Direito Empresarial e Cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 208.

127

O referido artigo estabeleceu ainda, que a ordem econômica seria fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa (art. 170, caput), extraindo-se,

daí, que é campo dos particulares o exercício da atividade econômica, cabendo ao

poder público, então, agir em caráter excepcional. Segundo Thais Novaes

Cavalcanti, houve neste dispositivo uma tentativa do constituinte em conjugar a livre

concorrência com a justiça social, fundamentando assim a função social da

empresa.387

Todavia, se o objetivo da economia é o desenvolvimento da pessoa e, por

conseqüência, do país, a concorrência e o lucro podem vir a contribuir para uma

maior igualdade social. Dessa forma, exerce a empresa um papel de catalizadora

dessas propostas. Ressalta-se, ademais, que no ordenamento jurídico pátrio, a

concepção da função social da empresa é prevista, inclusive, no novo Código Civil,

bem como na Lei das Sociedades Anônimas388.

A atividade empresarial, com o advento da Constituição Federal de 1988,

adquiriu função social, tornando-se também responsável pelo desenvolvimento

sustentável. Há, em seu artigo 170, uma inovação da ordem econômica, vindo a dar

um roteiro de ação ética para as empresas, um verdadeiro código de ética, o que

esclarece, deste modo, o conteúdo constitucional da responsabilidade social da

atividade empresarial.

Sob esta ótica, as empresas estão buscando adaptar-se e estabelecer

padrões de comportamento, adotando uma postura ética voltada a atender não

apenas o interesse lucrativo, e os relacionados aos consumidores e fornecedores,

mas também a um corpo social, cientes de que tal conduta pode refletir na imagem

que representam no mercado consumidor. De outro lado, a sociedade em geral,

cada vez mais, tem cobrado das empresas um posicionamento ético e politicamente

correto, segundo asseveram Mara Darcanchy e José Cabral da Silva Dias.389

387 CAVALCANTI, Thais Novaes. Ética empresarial: fundamentos constitucionais de u ma nova ordem econômica socialmente responsável. Disponível em: <http://www.academus.pro.br/profess or/thaisnovaes/material/Texto_%C3%89tica%20empresarial_Thais%2pdf>. Acesso em 10 maio 2014. 388 Idem, p.5. 389 DARCANCHY, Mara, e DIAS, José Cabral da Silva. Inclusão e Responsabilidade Social nos Direitos Constitucionais Trabalhistas. In DARCANCHY, Mara Vidigal (coordenadora). Direito, inclusão e responsabilidade social : estudos em homenagem a Carlos Aurélio Mota de Souza e Viviane Coelho de Séllos Knoerr. São Paulo: Ltr, 2013, p. 470.

128

Ademais, segundo observa Viviane Coelho de Séllos Knoerr, a ética “é

essencial para a concreção constitucional, para a organização e funcionamento do

Estado, para a efetivação dos direitos fundamentais, para o equilíbrio entre os

poderes públicos, para a representividade política e para a manutenção da

democracia com paz e ordem”.390

Nesta perspectiva, a empresa ética que age de forma socialmente

responsável, acaba por privilegiar necessidades relevantes para a sociedade como

um todo. Enquanto importante agente social, ela pode trazer a diferença para dentro

de seu empreendimento através de políticas afirmativas (como as cotas, por

exemplo), valorizando a diversidade, e, inclusive, “buscando relações sustentáveis

em todos os níveis”. 391

Através de conduta ética pela atividade empresarial pode ocorrer, portanto, a

promoção da diversidade. Para Aaron Myers, a diversidade faz parte da própria

responsabilidade empresarial.392 As empresas têm inúmeros motivos para promover

a diversidade, o que se justificaria pela ética e vantagem econômica.393 Logo, as

empresas podem ser consideras tanto instituições econômicas como instituições

sociais, capazes de provocar grande impacto nas comunidades onde inseridas.

Em síntese, a utilização das cotas pelas empresas pode refletir uma

preocupação destas com a obtenção de melhorias no status, e na participação de

grupos discriminados no emprego e na ocupação. Segundo Manuela Tomei,

ademais, a pressuposição é de que os talentos estejam distribuídos igualmente

entre homens mulheres, e entre grupos raciais dominantes e subordinados, podendo

vir as cotas a oportunizar o pleno desenvolvimento de seus potenciais, a fim de

alcançar, assim, a plena cidadania e justiça social.394

390 SELLOS-KNOERR, Viviane Coelho de. A ética e a constituição: uma reflexão sobre o unidimensional . Disponível em: <http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-389-Viviane_Coelho_de_Sellos_Gondim.pdf> Acesso em 08 de ago. 2013. 391 GONÇALVES, 2003, p. 11. 392 No mesmo sentido Mastrantonio. MASTRANTONIO, 2011, p. 264. 393 MYERS, Aaron. O valor da diversidade racial nas empresas . Revista de Estudos Aafro-asiáticos. Rio de Janeiro, v 25, n. 3, 2003. Disponível a partir do <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101Acesso em 23 de maio de 2014. 394 TOMEI, 2005, p.17.

129

CONCLUSÃO

A idéia de que todos os seres humanos são iguais em direitos é um princípio

declarado universalmente. A priori, ela pode se traduzir na noção de que todos os

seres humanos possuem a mesma dignidade humana, condição esta que os

“igualaria” em direitos e condições, tornando irrelevante toda e qualquer diferença

em face de sexo, cor, origem entre outros.

O princípio da igualdade, transformado em prescrição jurídica, é acolhido pela

maioria das sociedades e inserido em suas constituições políticas, servindo de limite

ao poder estatal, e como norteador e regulador da vida social. Contudo, o fato de

elevar-se a igualdade a um princípio, não confere o tratamento igualitário e digno a

todos os indivíduos, como no caso das mulheres e negros, notadamente no Brasil.

A realidade vivenciada no país, principalmente pelas mulheres negras, nos

diversos âmbitos, mas especialmente no mercado de trabalho, onde se focou esta

pesquisa, confirma a existência de práticas discriminatória em relação ao gênero e

raça. Percebeu-se através do estudo realizado, que estas mulheres passaram (e

ainda passam) por situações discriminatórias que lhes causam sofrimentos, sob a

conivência de uma sociedade que nega a existência do racismo.

No entanto, há que se ressaltar que tentativas para modificar essas situações

vêm ocorrendo nas últimas décadas. A partir dos anos 90, por influência de

organizações internacionais (como a OIT, por exemplo), do processo de

globalização, do multiculturalismo, bem como da própria percepção da

responsabilidade social empresarial, houve mudanças no modo de pensar e agir,

diante dessas sociedades e mercados cada vez mais diversos.

O reflexo de tais mudanças, no Brasil, pode ser percebido pelas atitudes

estatais, em prol do combate a discriminação racial, sob os governos dos

presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (como, por

exemplo, as diversas normas já vistas, e criações de Secretarias e Grupos de

Trabalho acerca do tema). Mas, sobretudo, através da edição do Estatuto da

Igualdade Racial e, mais recente, da aprovação do regulamento do Sinapir.

130

Destaca-se a importância deste Sistema como forma de organização e

articulação, mais efetiva, para a implementação do conjunto de políticas e serviços,

destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no país. Releva-se a

determinação nele instituído, a qual permite, por exemplo, a utilização de ações

afirmativas, em especial cotas raciais de gênero, a serem instituídas pela iniciativa

privada, visando à inclusão da mulher negra no mercado de trabalho.

De outro lado, no tocante às ações afirmativas, em especial às cotas (sendo

aquelas consideradas gênero, da qual esta é a espécie), constatou-se que o assunto

é causador de muitas polêmicas na sociedade brasileira. Foi verificado que há

opiniões de autores que condenam a utilização destas políticas afirmativas, por

entenderem, basicamente, que o sistema de cotas pode institucionalizar a raça,

levando, portanto, a racialização da sociedade brasileira.

Outro argumento contrário utiliza-se da alegação de inexistência de raças

humanas para a ciência moderna. Para esta concepção, não teria fundamento a

instituição de cotas raciais, uma vez que raças não existem, podendo tanto os

negros brasileiros descenderem de brancos, assim como estes terem a

ancestralidade africana. Entretanto, foi verificado que a raça, na verdade, é uma

construção eminentemente sociocultural (no caso, de cunho negativo!).

Além destes dois principais argumentos encontrados, há outro que alega

serem as cotas injustas por ferirem a meritocracia. Porém, deve ser observado que

este argumento, além de não ser unívoco, quando utilizado em relação ao acesso

mercado de trabalho, necessita ser relativizado, pois há que se levar em conta o

preconceito racial existente na sociedade brasileira. Ou seja, ainda que uma

candidata negra preencha os requisitos condizentes com a vaga pretendida (tenha

“mérito”), ela pode ser preterida em razão da cor de sua pele!

A inconstitucionalidade destas políticas afirmativas também foi outro

argumento utilizado em desfavor da utilização das cotas raciais. Segundo seus

defensores, ao preverem a discriminação (reversa), estariam ferindo o princípio da

igualdade. Portanto, não haveria aqui um reconhecimento do tratamento

diferenciado (desigualar para igualar), a fim de que a igualdade seja alcançada,

sendo sugerida uma análise pontual de acordo com as situações concretas (como

no caso da análise das cotas nas universidades, realizada pelo Supremo em 2012).

131

Em contraponto a esses argumentos, há muitos autores que defendem a

utilização de cotas no combate a discriminação, seja sob o viés de uma justificativa

compensatória, como distributiva, inclusive tendo como base as medidas adotadas

em outros países (como nos EUA, por exemplo, país onde há décadas são

utilizadas). Em suma, tais argumentos reforçam a importância de sua implementação

como forma de propiciar a igualdade de oportunidades (igualdade material), como no

caso da mulher negra em relação ao mercado de trabalho.

No entanto, é importante recapitular que a política de cotas, por ser

considerada uma medida especial, deve observar alguns critérios, levando em conta

o tempo e a motivação. Assim, a temporalidade dessas políticas deve ser

considerada quando de sua implementação, não sendo prudente perdurar

indefinidamente, sob o risco de provocar distorções no mercado de trabalho.

Essa característica das cotas (temporalidade), inclusive, também foi

evidenciada naquele julgamento do STF ocorrido recentemente. Mas, conquanto o

Supremo tenha declarada a constitucionalidade das cotas nas universidades, reputa-

se tão importante quanto esta declaração, o reconhecimento da existência de

racismo na sociedade brasileira! Isto certamente reforça a necessidade de

implantação das cotas, as quais já tem respaldo no ordenamento jurídico brasileiro,

especialmente no Estatuto da Igualdade Racial.

Assevera-se, contudo, que a política de cotas no âmbito laboral, não figura

como uma “opção” ofertada pelo ordenamento jurídico, e nem como uma

“exclusividade” de adoção pelo Estado. Ao contrário, trata-se de uma imposição, e

não somente a ele, mas também (e talvez principalmente) à atividade empresarial, a

qual é também considerada como agente da concretização dos direitos

fundamentais, ou seja, é ela também responsável em garantir o acesso das

mulheres negras ao mercado de trabalho.

Infere-se, ademais, conforme anteriormente verificado, que as cotas

(enquanto espécie de ações afirmativas) podem ser consideradas políticas públicas,

mas, no entanto, reforça-se que é possível que elas advenham de políticas privadas,

ainda que oriundas de legislações decorrente de políticas públicas do Poder

Legislativo ou Executivo. Daí surge uma importante questão: como realmente

efetivar a utilização das cotas pelas empresas?

132

Durante a pesquisa foi possível verificar a possibilidade de serem adotadas

cotas raciais por empresas consideradas éticas, que agem de forma socialmente

responsável. Essas empresas, via de regra, visam a promover a diferença dentro de

seu empreendimento, valorizando a diversidade, e, sobretudo, a manter relações

sustentáveis em todos os níveis, em consonância com as políticas internacionais de

valorização do trabalho humano, com ênfase à questão racial.

Contudo, como tal meio de implantação seria em caráter voluntário, pode ele

se mostrar insuficiente no combate à discriminação da mulher negra no mercado de

trabalho. Assim, como a busca pela igualdade de oportunidade não pode ficar

esperando por ato espontâneo, sugere-se a previsão de cotas para essas mulheres,

através de negociações coletivas, bem como a realização de estudo sobre a

viabilidade de criação de normas específicas, pautadas no Estatuto de Igualdade

Racial, voltadas também para o setor privado.

Observa-se, ademais, que alguns aspectos para a implementação das

medidas afirmativas devem ser verificados, como o seu alcance (se a utilização das

cotas raciais de gênero seria adotada, inclusive, por micro e pequenas empresas), e

em relação ao prazo de duração de tais medidas, ou seja, o critério da

temporalidade (o tempo que elas devem persistir, com a previsão, inclusive, de

sanção em caso de seu descumprimento).

Ressalta-se que a pesquisa não teve a preocupação em verificar outros

métodos de ações afirmativas, os quais, certamente, podem ser bem-vindos para tal

fim. Assim com não foi objeto deste estudo a análise das repercussões de cotas

raciais no serviço público em geral, dada a previsão de legislações neste sentido

(inclusive, na esfera federal, permanecia em trâmite até o final deste trabalho), bem

como a questão dos critérios de identificação para o preenchimento de vagas.

Ademais, salienta-se que a existência de uma democracia racial, outrora

considerada no país, é considerada já um mito, ao contrário da discriminação racial

verificada em relação às trabalhadoras negras, a qual é real e, portanto, precisa ser

combatida e eliminada. Para tanto, foi sugerida no presente trabalho a adoção das

cotas raciais de gênero, como medida ético-política-social, a serem adotadas pelas

empresas, visando a obtenção de uma economia mais competitiva, mas, sobretudo,

de uma sociedade mais justa e igualitária.

133

REFERÊNCIAS

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Deposite-se na Secretaria do Mestrado.

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Professor (a) Orientador (a) Curitiba, ____/_____/________

Recebido em: _______/________/________

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Secretaria