Unidade 2 - Habitos e Comportamentos

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  • Estilo de Vida, Sade e Meio AmbienteProf. Dr. Maria Elisabete Guazzelli

    Hbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida moderna.

  • Universidade Anhembi MorumbiHbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida moderna. 01

    Sistemas peritos

    So sistemas de excelncia tcnica ou competncia profissional que organizam grandes reas do ambiente material e social em que vivemos hoje. Podem ser tomados como a crena coletiva na funcionalidade e eccia de instituies, produtos ou servios oferecidos por prossionais competentes e legitimados. Anthony Giddens introduziu esse termo. Alguns autores utilizam a expresso expertise ao se referir aos sistemas peritos.

    Dicas

    Aprendemos ao longo de nossos dias, inmeras medidas compreendidas como adequadas, saudveis, civilizadas. Enquanto vocs lerem o texto vale a pena reetir sobre situaes cotidianas, sobre as diferentes prticas prossionais e sobre as diculdades presentes nas recomendaes que surgem dos sistemas peritos.

    Pensando o nosso dia a dia

    Cada um de ns, dentro de nossa modal idade de ao, j nos vimos tentando aconselhar, sugerir, argumentar e at impor modos de vida mais saudveis, comportamentos mais racionais, hbitos ecologicamente corretos. Fazemos isso quase que o tempo todo. Andamos, ou corremos, carregando nossas garranhas com gua, tentamos acondicionar corretamente o lixo, separando os metais dos plsticos e estes do orgnico. bem verdade que, mesmo aconselhando os outros a seguir nossas prescries sejam elas mais impositivas

    ou mais sutis, uma srie desses novos comportamentos divulgados e sugeridos, uma poro deles, ns mesmos no conseguimos segui-los.

    Seguir uma dieta balanceada, cuidar da boa postura, praticar exerccios ou atividades fsicas, realizar meditaes ou praticar tai-chi, usar protetor solar e hidratante, vacinar os ces e outros animais domsticos, no fumar, no beber, no se automedicar, dormir de seis a oito horas por noite, manter um comportamento amistoso e, simultaneamente, eciente, antenado, criativo no emprego, manter-se bem informado, exercitar a pacincia, fazer exerccios faciais para manter a juventude da face, usar leave-in e produtos que ajudem a manter os cabelos brilhantes e alinhados, manter o bom humor no trnsito, aproveitando esse tempo para ouvir uma boa msica, aproveitar os instantes livres para alongamentos, no esquecer de usar o o dental e escovar os dentes aps as refeies, evitar andar descalo em pisos frios e midos, evitar exposio constante em mudanas de temperatura, como o ar condicionado e o ambiente externo, evitar car em frente de porta de geladeira ou do freezer quando est trabalhando com calor, evitar o a acar branco e a farinha renada, evitar a promiscuidade e a relao sexual sem o uso da camisinha, consultar o mdico e o dentista regularmente deitar-se por alguns minutos a cada 03 horas porque isto preserva a funo circulatria e ao mesmo tempo proporciona a recuperao da hidratao do disco intervertebral,

    beneciando com isto a coluna vertebral, evitando os problemas de dor na coluna, ou mesmo aliviando as dores que j existem, evitar se virar bruscamente para pegar objetos no banco traseiro do carro e dobrar a coluna com a perna estendida para pegar objetos do cho, evitar assistir a televiso deitado, pois isto ocasiona vcios posturais na coluna, procurar viver o dia de hoje, separar o lixo, no esquecer de levar a sacola ecolgica de casa, procurar pelo histrico das empresas de alimentos, combustveis, roupas, eletrodomsticos e automveis e verificar se elas tem certificado de responsabilidade social , se respeitam o meio ambiente e se cumprem suas obrigaes scais

    Ser que s isso? Ser que me esqueci de alguma recomendao para um estilo de vida mais saudvel? ... Talvez tenha me esquecido... O fato que, fazendo essa lista, no me pareceu nada fcil segui-la

    fato que as coisas no nosso mundo tm mudado muito rapidamente e o famigerado estilo de vida te sido o foco de vrios campos de ateno. Ele percorre o imaginrio de vrios grupos de prossionais, inclusive. No se trata apenas daqueles campos ligados rea de sade, rea da educao ou dos setores ocupados com a beleza e o bem estar. Tambm aquelas prosses ocupadas

    com a lgica produtiva e com servios passaram a se

    ocupar de, a dizer sobre, e buscar pelo

  • Universidade Anhembi Morumbi 02CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    estilo de vida mais saudvel. Tambm no podemos nos deixar enganar: o estilo de vida, ainda que mais explicitamente, seja um objeto de preocupao presente nos grandes centros urbanos, tornou-se uma questo que percorre muitos campos do mundo global. Mas o estilo de vida no se tornou um objeto de desassossego e de ateno de modo aleatrio. Ele surge numa posio central do cenrio da sade pblica e da lgica da capital a partir de determinadas conjunturas.

    De modo geral, as categorias culturais vo se incorporando de modo a parecerem naturais. Temos a sensao de que certos hbitos sempre foram assim, e que no poderiam ser de outro jeito, e que se foram de outro jeito em outro momento isso s ocorria por total falta de conhecimento, porque se tratava de um momento de grande atraso. crendo nisso que nos enganamos enormemente.

    Nossa discusso de hoje se inicia perguntando se possvel seguirmos tantas prescries entremeadas com tantos compromissos, afazeres, responsabilidades ligadas nossa vida acadmica e ao nosso trabalho. E outras perguntas se seguem: ser que sempre foi assim? E se no fora dessa forma, porque, de repente, tudo passou a se organizar dessa maneira?

    Estilo de Vida e Promoo de Sade: encontros e desassossegos

    A preocupao com o estilo de vida surge dentro de um contexto em que a sade guarda uma importncia crucial. No podemos deixar de lembrar que vivemos em um ambiente marcado pela gide do capital. Quer estejamos em um ambiente rural, quer estejamos em um ambiente urbano, quer estejamos alocados prossionalmente em um hospital ou em uma clnica veterinria, quer nos apresentemos como educadores em uma escola ou como administradores em uma empresa, impossvel dissociarmos o estilo de vida articialmente

    estabelecido como ideal dos modelos de sade e ecincia determinados pelo iderio capitalista.

    bem verdade que a realidade nos parece outra. Mas cabe ento comearmos a questionar sobre a realidade. Berger 2002 diz que a realidade entendida como uma qualidade pertencente a fenmenos que so reconhecidos como tendo uma existncia independente da vontade. O conhecimento entendido como a certeza de que esses fenmenos so reais e possuem caractersticas especcas. No entanto preciso compreender que aquilo que se constitui como conhecimento numa determinada sociedade, independentemente de sua validade ou invalidade, est submetido a uma srie de processos que permitem sua transmisso e consolidao, de tal modo que uma realidade admitida como certa se solidica para o homem comum.

    No h pensamento humano que seja imune s inuncias ideolgicas de seu contexto social. A ideologia um sistema de idias onde se incluem crenas, tradies, princpios e mitos interdependentes, que, sustentados por um grupo social de qualquer natureza ou dimenso, refletem, racionalizam e defendem os interesses e compromissos institucionais a eles associados, sejam morais, religiosos, polticos ou econmicos. Elas determinam a construo social da realidade e organizam os conhecimentos e os saberes. As formulaes tericas da realidade, sejam elas cientcas ou loscas, no esgotam o que real para os membros de uma sociedade. Pensemos nas atividades fsicas, pensemos nos esportes. Poderia haver uma realidade mais concreta que essa. No entanto, vejamos uma notcia publicada na internet:

    De repente ser possvel que uma atividade esportiva ou um esporte coletivo sejam praticados por sujeitos virtuais? Jogamos tnis de campo sem o campo, sem a bola e sem um parceiro. Seria esse um jogo real ou apenas uma sensao? E essa nova modalidade virtual de atividade fsica, como ela pode ser categorizada ou

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  • Universidade Anhembi Morumbi03 CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    interpretada? Pois , a vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido na medida em que forma um sentido coerente para eles. preciso compreender a realidade segundo algum conjunto ou sistema de crenas; preciso uma interpretao para as tenses, os conflitos e as contradies para escapar do caos. O senso comum possui uma srie de interpretaes pr-cientcas ou quase cientcas sobre a realidade cotidiana que admite como certas.

    A valorizao social dos indivduos, de seu corpo e das funes que esse corpo permite tambm est intrinsecamente relacionada a aspectos culturais. Essa construo est medializada tambm por questes histricas. Nos sculos XVIII e XIX o homem passou a ter na sua utilidade social o principal ndice de valorizao. Nesse contexto, os corpos e a sade valorizam-se na medida em que podiam contribuir para a rmao dos novos valores do trabalho, do rendimento e da idia de progresso surgida com o ethos burgus. Crespo 1990 lembra que, nesse perodo, enquanto os crticos apontavam o malefcio dos luxos da vida desregrada, a polcia mdica pretendia regulamentar os costumes pervertidos pelos excessos e assegurar as condies propcias subsistncia corporal. Surgiram novas preocupaes com o corpo e seus adereos e esse corpo passou, potencialmente, a permitir a armao social. Esse perodo travou uma verdadeira guerra contra o cio e foi marcado pela progressiva valorizao do trabalho. Inaugurou-se, desse modo, um novo estilo de vida, que exigiu novas modalidades de adequao e modelao.

    Costumamos chamar esse processo de renamento de gestos, esse adestramento de comportamento e de hbitos e civilizao ou processo civilizador. No entanto, esse percurso no ocorre de modo indolor. A passagem de um mundo grosseiro ou brbaro em direo a outro, regulado prioritariamente pela razo, ou aquilo que chamamos de conscincia civilizada como nos lembra Jung 2000 no tem cessado de afastar-nos de nossos instintos mais bsicos,

    que nem por deixaram de existir; apenas perderam contato com a conscincia, sendo obrigados a afirmar-se de maneira indireta. Nietzsche 2004 e Marcuse 1999 armam que o custo da civilizao a infelicidade, o recalcamento das pulses e quanto mais ela cresce mais aumenta essa infelicidade.

    O processo civilizador regulou condutas e posturas, sobretudo na convivncia social, normatizando desde pequenos detalhes a grandes aspectos da vida social cotidiana. Mais do que sinal de repugnncia a tudo que lembrasse a animalidade, indicou novos locais de sociabilidade. Esse processo determinou espaos onde no havia lugar para a livre manifestao dos sentimentos e intenes. Esses costumes, explicados de modo racional atravs da higiene ou dos discursos mdicos, tiveram sua gnese na etiqueta.

    Foi ela quem inicialmente imps novos hbitos, organizando e estabelecendo categorias claras que distinguia homens civilizados do resto da multido. Esse processo manifestou-se no s atravs das habitaes, do vesturio, mas tambm nas expresses, nos comportamentos, nas posturas e nos gestos, marcando de maneira visvel as diferenciaes sociais. Formas de sentar, formas de se vestir e comportar no trabalho, atividades fsicas desejveis, alimentaes adequadas, no so apenas modalidades saudveis: elas identicam uma hierarquia social.

    Toda a atividade social passvel de regulamentao e, toda atitude, de ser controlada. O estilo de vida desejvel na sociedade capitalista deseja que os hbitos contribuam para melhorar a imagem no mercado de trabalho. Trata-se de uma rede e um conjunto de pressupostos que tm nas relaes comerciais, polticas e econmicas, seu maior foco e objetivo. Os valores culturais se compem em ns no como uma memria que se presta como um lbum de retratos, mas como um manual de regras que aponta para o valor a ser pago caso as regras sejam descumpridas. Muitas vezes essas regras circulam entre ns maquiadas

    Hbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida moderna.

  • Universidade Anhembi Morumbi 04CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    por uma ideologia de natureza libertria, escondida em um discurso que valoriza nossas possibilidades de escolha. assim, por exemplo, com relao exposio do nosso corpo.

    Na atualidade, em uma sociedade em que os corpos se expem em roupas de banho minsculas, em trajes colados, em fotos e exposies na mdia exige-se dos homens e mulheres um autocontrole muito maior do que quando os corpos se escondiam. Decotes, cavas, tecidos que aparentemente indicam a liberdade do corpo obrigam a manuteno de uma forma corprea. Ao invs de libertar denunciam a gordura a mais, a celulite indesejvel, o desalinhamento dos ombros e das vrtebras, o abdmen proeminente. Os pormenores do corpo ganharam evidncia e relevncia e contam para a compreenso das representaes, das idias e dos valores de uma cultura.

    Cada indivduo em sua curta histria experimenta alguns processos que a sociedade vivenciou ao longo de sua histria. Nenhum ser humano nasce civilizado e o processo civilizador individual pelo qual ele obrigatoriamente passa uma funo do processo civilizador social. A criana ao nascer um ser no civil, no civilizado. Uma srie de processos a pressiona no sentido de desenvolver essa civilidade, atravs da alternncia de recompensas e punies que reforam ou reprimem certos comportamentos. Esse processo de reforos positivos ou negativos ganha, posteriormente, outras medializaes, respondendo posteriormente ao conceito que o grupo social tem de si mesmo.

    Vejamos que o conceito de civilizao presente na sociedade ocidental expressa a percepo que esta tem de si mesma como superior a outras que sejam organizadas de maneira diferente. So levados em conta para a constituio do status de sociedade civilizada o nvel tecnolgico, a natureza de seus modos e maneiras e o desenvolvimento cientco. O mundo civilizado

    entende aquilo que faz parte de sua viso de mundo como superior e aquilo que lhe escapa como inferior. A alteridade negada, prevalecendo uma hierarquizao cultural. A sociedade civilizada se pauta por idias de progresso, evoluo e movimento incessante para frente e as sociedades que no se norteiam por esses valores so consideradas atrasadas ou arcaicas. Foi assim que o processo civilizador criou a ideologia da supremacia dos povos ocidentais em relao a outros. Esse mecanismo age tambm nos micro-universos, no espao interpessoal. Gestos, atitudes, linguagens, hbitos, formas, postura e modos so compreendidos como mais ou menos civilizados, conferindo posies de superioridade ou inferioridade, determinando formas de ser e de agir. De to cotidianos so percebidos como naturais, como a nica forma possvel de ser e agir.

    De vrias maneiras essa supremacia entre o mais civilizado e o menos civilizado demarcada. Ela pode estar manifesta, por exemplo, na linguagem utilizada por um sistema perito, que s pode ser compreendida por indivduos iniciados. As tcnicas e tecnologias e os discursos a elas associados crescem e mudam com o grupo do qual elas so expresso. Elas s podem ser mais plenamente compreendidas pelo grupo que as concebeu ou que a elas teve acesso, persistindo obscuras para aqueles que no fazem parte da mesma tradio e situao. No entanto, como a sociedade ocidental muda continuamente, tambm os padres de comportamento e a constituio psquica se modicam. Essa mudana de mentalidades e costumes extremamente valorizada na sociedade ocidental, vida por novidades. Ela pensa e valoriza o novo, o contemporneo na mesma proporo em que desdenha o antigo e o conservador.

    Culturas alheias ao modo civilizado so entendidas como, alm de estranhos, arcaicas e at como insanas, porque ameaam a lgica civilizada, entendida como democrtica e moderna.

    Braudel 1995 diz que o processo civilizador investiu Hbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida

    moderna.

  • Universidade Anhembi Morumbi05 CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    atividades como alimentar-se, vestir-se, habitar por uma aura que transcende o limite da necessidade de mera sobrevivncia. Elas passaram a representar, simbolizar e signicar para alm do seu sentido vulgar, denotando uma posio ou um status social, compondo uma srie de smbolos e de esquemas intelectuais. Podem denotar luxo e, se o luxo no um bom meio de sustentar ou promover a economia, um meio de assegurar e de fascinar uma sociedade. Uma ordem complicada em que intervm o que subliminar, as tendncias, as presses inconscientes das economias, das sociedades e da civilizao estabelecida.

    Inicialmente o controle de gestos e maneiras se mostrava uma forma bastante interessante na economia de trocas e nas atividades mercantis; agora ele estar inserido tambm na diviso de trabalho, que aproximou indivduos de maior nvel social aos socialmente inferiores e exigiu um maior grau de controle e de civilidade. A reformulao das necessidades humanas decorrente da transformao generalizada das relaes entre os homens, o desenvolvimento de aparelhagem tcnica correspondente ao padro mudado consolidou extraordinariamente os novos hbitos, reproduzindo constantemente o padro e disseminando-o, mas sempre apresentando atualizaes superciais.

    Foucault 1987 arma que o controle desejado nesse cenrio exercido pelo indivduo sobre si mesmo, na forma de autocontrole. O que prende e controla, nessa situao, a necessidade de corresponder a um ideal de forma, de gesto, de hbitos, de atitude, de comportamento, previamente, estabelecidos. A esfera de preceitos e normas do que socialmente aceito traada com tamanha nitidez em torno das pessoas e a censura e a presso da vida social que modela os hbitos so to fortes, que s resta submeter-se ao padro de comportamento exigido pela sociedade, ou ento ser excludo da vida em um ambiente decente. Os mecanismos de recompensa e punio no so explcitos ou claramente impostos pela macroestrutura: eles antes se disseminam pelos interstcios da trama social,

    numa microfsica do poder.

    O avano dos sentimentos de vergonha e asco simultaneamente ao avano da del icadeza so simultaneamente processos naturais e histricos. As emoes so manifestaes da natureza humana em condies sociais especcas e reagem, por sua vez sobre o processo scio-histrico como um dos seus elementos. Mesmo levando em conta a oposio radical entre civilizao e natureza, a vida psquica de povos ditos primitivos no menos social e historicamente marcada que a dos povos ditos civilizados. O sentimento de embarao, como muitos outros, fazem parte da estrutura humana e que tanto em povos primitivos como civilizados observam-se proibies e restries socialmente induzidas como ansiedade, prazer, averso, desagrado e deleite.

    Elias 1994 considera que a sociedade vai suprimindo o componente de prazer positivo de certas funes atravs do engendramento da ansiedade, tornando esse prazer privado e secreto e, desse modo, reprimindo-o no indivduo. Ao mesmo tempo, fomenta emoes negativamente carregadas, como nojo, repulsa ou desagrado. Ele destaca que esse aumento da proibio social de muitos impulsos, atravs de sua represso na vida social, faz aumentar o distanciamento entre a estrutura da personalidade e o comportamento de adultos e crianas. O processo civilizador, antes de ser efetivado pela fora fsica e por armas, utilizou o autocontrole atravs de formas de dependncia e de rigorosos cdigos de etiqueta. Gerou, por exemplo, a necessidade de manter os corpos impecavelmente corretos, sem desalinhamentos. Inicialmente incutidos na criana pela famlia e por instituies educacionais, entre outras, tornam-se parte integrante do indivduo, manifestando-se como um superego.

    Esse controle exercido atualmente, por exemplo, atravs de artigos presentes em revistas leigas que orientam quanto aos comportamentos, a postura, o vesturio, a linguagem, enm, em todo um cdigo de condutas que deve ser adotado

    Hbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida moderna.

  • Universidade Anhembi Morumbi 06CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    no ambiente de trabalho. Essas recomendaes no so vistas como restrio desconfortvel e castradora da maneira de ser e viver, mas como desencadeadoras de benefcios que podem trazer uma boa colocao prossional, uma promoo ou at a felicidade.

    Segundo Elias 1994b as mudanas especficas na forma como as pessoas se unem umas s outras e tm a personalidade moldada maneira civilizada ocorreram porque desde os perodos mais remotos da histria do Ocidente, as funes sociais sob a presso da competio, tornaram-se cada vez mais diferenciadas. Quanto mais diferenciadas elas se tornavam, mais crescia o nmero de funes e assim de pessoas das quais os indivduos constantemente dependiam em suas aes, desde as mais simples at as mais complexas. medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras mais a teia de aes teria que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, am de que cada ao individual desempenhasse uma funo social.

    A uniformizao das aes individuais na direo de um padro esperado, o adestramento de gestos em busca de uma harmonia e funcionamento perfeito nas dinmicas de diviso de trabalho e o aperfeioamento das funes longe de arrefecer-se, radicalizou-se. Exemplo disso so os treinamentos de atendimento ao cliente, onde gestos, palavras e posturas so exaustivamente treinados e repetidos em busca da uniformizao e do famigerado padro de qualidade. A pessoa desaparece por trs da mscara imposta pelo treinamento.

    A crescente valorizao do trabalho surgida com o processo civilizador repercutiu sobre o corpo, sobre a moda, sobre as maneiras possveis de se apresentar. Inicialmente comeam a ser desvalorizados os trajes suntuosos e pouco prticos. As roupas foram paulatinamente recobrando a simplicidade. Sem mais os mesmos adornos externos restou ao prprio corpo sustentar signos de beleza, tornar-se belo e atraente.

    Os diferenciais de beleza passam a estar estruturados na sua forma, na pele que o recobre, na perfeio que ele busca e manifesta. Esse processo de introjeo das prticas de beleza para a estrutura corporal radicalizou-se medida que o corpo foi se desnudando e chegou a limites inimaginveis nos dias de hoje. O luxo, apesar de condenado, era perdoado e desejado para apenas uma parcela da populao como forma e necessidade de desenvolvimento da indstria e do comrcio. Ambivalente, ele era compreendido como atestado de progresso e respeito aos valores da civilizao.

    O processo civilizador combateu juntamente o cio. Ele era compreendido como a fonte de todos os males, considerando-se que os homens afeitos ao trabalho estavam livres da degenerao fsica e moral, uma idia comum at os dias de hoje. O trabalho foi, ao longo desse processo, ganhando valor hegemnico, sendo considerado o meio essencial de conquista de felicidade.

    Ele visto como fundamental para a coeso social e para evitar a marginalidade. Situaes como a doena e as festas passam a ser compreendidas como episdios de desperdcio da energia que poderia ser utilizada na produo, devendo, portanto, serem evitadas.

    Na nossa sociedade, cada poca inventa o seu modelo de corpo e de sade. O corpo medieval no era o corpo-ferramenta que o capitalismo inventaria sculos mais tarde. Ele no estava denido pelos msculos, pela fora, pela resistncia, pela disciplina, pela rentabilidade. Se comparado ao modelo atual, era preguioso, sem grandes preocupaes com o tempo ou com o trabalho, estava mais voltado para as festas e para a espera. Tambm no podia ser entendido como o corpo-propriedade como visto na burguesia, nem como bem de produo ou ferramenta essencial no modelo capitalista.

    medida que o corpo vai se congurando como um bem de produo tanto mais cuidado a ele vai sendo

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  • Universidade Anhembi Morumbi07 CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    oferecido. Nessa nova dinmica, o corpo e a sua sade passam a ser entendidos como os maiores bens que um trabalhador pode possuir porque dele vai depender toda a sua existncia fsica, afetiva, psquica. E s parece haver sentido na existncia quando envolvida no trabalho. O medo de adoecer vivenciado nos dias de hoje corre passo a passo com o risco de desinserir-se do mercado de trabalho. nessa dinmica que se estreitam os cuidados com a criana e o adolescente, vistos como patrimnio de Estado, e se aperfeioa a sade pblica e avanam os mecanismos e dispositivos pedaggicos. Aos pais e familiares outorgado o cuidado primordial da criana, de seu corpo, de sua sade, da busca de uma forma corporal perfeita, num modelo que persiste at hoje.

    Crespo 1990 argumenta que o processo civilizador acabou por transformar o mundo em um grande mercado, a vida em um contnuo negcio. A experincia da vida passou a se concretizar atravs do estudo e do trabalho, pelo desempenho das atividades que tivessem evidente utilidade social. Um estilo de vida que obedece ao discurso

    oa riv ociggadep retrac etrof ed ,ocinigih e octneicencontro dessa nova feio. Eles determinaro preceitos destinados a uma vivncia corporal entendida como mais correta, coerente com essa nova mentalidade. Cuidados com a postura e a sade corporal manifestos nos discursos cientcos viro ancorados num discurso moral, numa dinmica que se atualiza e chega at os dias de hoje.

    Os grupos sociais que no tm normas to xas ou nos quais elas foram concebidas de outra maneira so vistos como inferiores ou brbaros. So comuns na sociedade brasileira observaes de senso comum categorizando o nosso povo como inferior ao americano ou ao europeu por conta da falta de pontualidade ou pelas manifestaes afetivas e emocionais mais efusivas. Tambm corpos que manifestam livremente tristeza ou alegria ou que se neguem a modelagem segundo regimes ou programas de ginstica so compreendidos como selvagens ou inferiores.

    Os gestos que manifestam forte carga emocional e que por isso no so comedidos ou contidos, mas antes se revelam intensos, visveis, foram banidos paulatinamente do cotidiano. Forma de expresso de pulses emocionais intensas, esses gestos foram contidos atravs do processo civilizador. A manifestao das pulses afetivas e emocionais foi impedida. No entanto, as pulses mesmo no podendo expressar-se no deixam de existir, sendo, portanto, reprimidas. Cont-las exige um sem nmero de mecanismos, inclusive motores e posturais como a adoo de posturas corporais rgidas, contidas, controladas.

    Quem controla e quem controlado?

    O autocontrole uma funo que atua em tempo integral. A agressividade, impedida de manifestar-se objetivamente encontra nas intrigas e nos jogos de palavras uma forma de manifestar-se. Tambm assim que funciona em relao a outras manifestaes afetivas e emocionais. Elas emergem de maneiras disfaradas, sub-textuais, j que sua manifestao explcita est impedida.

    Foucault 1988 diz que as medidas de controle de corpo no so da esfera da represso propriamente dita. Antes, esse processo suscitou a se falar cada vez mais sobre o corpo e sobre o sexo. Mas muda-se a forma de falar, uma vez que esses objetos foram apropriados pela biologia, pela medicina, pela demograa, pela moral e pela poltica.

    Os modelos propostos passaram a vir, ento, ao encontro, dos valores destacados em cada etapa do processo civilizador. Quando esse processo pretendia viabilizar a economia de trocas e os hbitos e costumes funcionavam comprometendo as atividades comerciais entre grupos sociais culturalmente diversos, os modos corteses foram exaltados de modo a permitir maior aproximao entre os grupos, ao mesmo tempo em que viabilizava que insgnias corporais e gestuais criassem espaos diferenciadores de status social. Esse processo foi se aprofundando ao longo de sculos, culminando com o esvaecimento do papel dos

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  • Universidade Anhembi Morumbi 08CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    jogos e das brincadeiras, espao privilegiado do convvio social na Idade Mdia.

    No estamos considerando que abordagens que preconizam mudanas de hbitos e comportamentos no tragam benefcios e efeitos positivos na sade das pessoas que eventualmente conseguem alterar seus padres de exposio aos riscos. Mas devemos reconhecer que medidas que caminham nesta direo trazem resultados muito aqum daqueles esperados. H algo que resiste a corresponder aos objetivos dos programas de monitoramento de fatores de risco comportamental.

    Mas possvel pensarmos na promoo de sade a partir de uma perspectiva libertria, Nesse foco a ateno em sade desloca-se do enfoque biologizante e as formas de interpretar as necessidades e implantar as aes conguram-se de modo contextual, histrico, coletivo, amplo. Desistimos da idia de meramente controlar os fatores de risco e comportamentos individuais, voltando-nos para a ao poltica, para direcionadas ao coletivo.

    O deslocamento da responsabilizao individual pela promoo de sade em direo mobilizao pelo estabelecimento de polticas pblicas favorveis sade, a criao de ambientes propcios, o fortalecimento da ao comunitria, o desenvolvimento de habilidades pessoais e a reorientao dos servios sanitrios, torna-se, ento, uma prerrogativa, mas nem sempre facilmente alcanvel.

    Cabe, entretanto, que nos perguntemos antes de propor modicaes nos comportamentos, nas atitudes e no estilo de vida, seja qual for o ambiente onde estamos alocados, que propsitos esto nos guiando. Ser que ao propormos mudanas elas de fato pretendem emancipar os sujeitos ou apenas faz-los agentar ainda um pouco mais? Ser que essas mudanas podem permitir que esses sujeitos atinjam uma vida melhor

    na percepo deles mesmos ou apenas se prestam a organizar e controlar aos interesses de mercado ou da lgica do capital? Ser que essas mudanas respondem aos sujeitos envolvidos, priorizando seu bem estar e o equilbrio ambiental ou so apenas formas atualizadas de garantir a hegemonia do capital?

    Abordar estilo de vida sempre implica numa reexo consciente, profunda, que questione, principalmente, as verdadeiras razes escondidas nos diferentes atos.

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  • Universidade Anhembi Morumbi09 CORPO, SADE E ESTILO DE VIDA NA SOCIEDADE COMPLEXA

    Referncias

    BRAUDEL, F.Civilizao material, economia e capitalismo sculos XV a XVIII As estruturas do cotidiano. So Paulo: Martins Fontes, 1995.

    ELIAS, N. O processo civilizador: Uma histria dos costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1994. 2v. O processo civilizador: Uma histria dos costumes. Vol. 2. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1994b. 2v.FOUCAULT, M. Vigiar e punir: histria de violncia nas prises.Petrpolis: Vozes, 1987.Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de janeiro: Edies Graal, 1988.JUNG, C.O homem e seus smbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.MARCUSE, H. Eros e Civilizao: uma interpretao losca do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 1999.NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polmica. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.

    Hbitos e comportamento. Estilo de vida: reflexes sobre a vida moderna.

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