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UNIOESTE – UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARANÁ · constante da conduta humana em seus aspectos sociais, morais e psicológicos, ... Dom Casmurro , onde a dúvida e a ambiguidade compõem

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UNIOESTE – UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARANÁ

PDE – PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL DO ES TADO DO

PARANÁ

DOM CASMURRO SOB O PRISMA DA OBSERVAÇÃO

Professor PDE: Maria das Dores Gomes

Orientador: Prof. Ildo Carbonera

Trabalho desenvolvido como requisito final para o cumprimento do Programa de Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná PDE 2010.

Foz do Iguaçu Junho/2012

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Dom Casmurro sob o prisma da observação

Autor: Maria das Dores Gomes1 Orientador:Ildo Carbonera2

Resumo

Em Dom Casmurro o jogo de aparência/essência presente no narrador sustenta o enredo em um universo paralelo, levando o leitor a desconfiar de suas informações carregadas de insinuações direcionadas para a veracidade, na perspectiva de visão da qual ele é o único ponto referencial. Segundo Aguiar e Silva (1976), “a figura que guia a apresentação do enredo. Os fatos narrados se dividem entre o que de fato aconteceu e de como estes foram narrados”. O narrador nos apresenta pistas na tentativa de nos convencer dos acontecimentos narrados segundo suas intenções e observações. Devemos ter um olhar atento e desconfiado para os sentidos pré-estabelecidos, analisando-os em sua essência na busca constante de reflexão e observação crítica. O leitor deve perceber a construção da aparência nas entrelinhas da narrativa e constatar a ambiguidade de Bentinho em seus argumentos carregados de emoção que permitem a constatação de que podem ser apenas suposições que ele tenta tornar reais. Analisar essas possibilidades interpretativas e desvinculá-las do imediatismo da leitura inicial é a proposta de estudo e análise deste artigo, realizado com alunos do 2ºano do Ensino Médio, durante o Programa de Desenvolvimento Educacional do Paraná.

Palavras-chave : Dom Casmurro; narrador; aparência/essência.

Abstract

In Dom Casmurro the play between appearance/essence which is present in the narrator maintains the plot in a parallel universe, leading the reader to mistrust its information, full of insinuations directed to the truth, in whose point of view he is the only reference point. According to Aguiar e Silva (1976) “the figure who conducts the presentation of the plot. The facts which are narrated are divided between what really happened and how they were narrated.” The narrator presents us with clues in the attempt to convince us of the events which are narrated according to his intentions and observations. We must keep an attentive and doubting look at the pre-established meanings, analyzing them in their essence in the constant search of reflection and critical observation. The reader must perceive the construction of appearance between the lines of the narrative and observe the ambiguity of Bentinho

1Especialista em Literatura, Graduada em Letras – Professora Ensino Médio Colégio Tancredo de Almeida Neves – Foz do Iguaçu. 2Doutor em Literatura, Professor da Universidade do Oeste do Paraná – UNIOESTE Foz do Iguaçu

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in his arguments full of emotion which allow the realization that they may be only suppositions which he attempts to make real. To analyze these possibilities of interpretation and disconnect them from the immediateness of the initial reading is the project of study and analysis of this article, conducted with second year high school students during the Parana Educational Development Program. Key-words: Dom Casmurro; narrator; appearance/essence.

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1 INTRODUÇÃO

Considerado uma obra-prima da Literatura Brasileira, Dom Casmurro de

Machado de Assis, é marcado pela ambiguidade, conduzindo o leitor a trilhar um

limite tênue entre o que parece ser e o que realmente é. Nada pode ser afirmado

categoricamente.

O narrador fornece as informações apresentando sinais de traição

combinados com indício de um ciúme doentio, paranoico.

A proposta deste trabalho é analisar as possibilidades interpretativas

contidas na obra observando a relação aparência/essência que se descortina na

construção e desconstrução presentes nas entrelinhas da narrativa levando à

reflexão sobre a veracidade da mesma. Essas possibilidades interpretativas tornam

a obra motivo constante de estudo e investigação.

Machado de Assis consegue ser um autor moderno pela problematização da

vida, pelo emprego da ironia e pela busca de respostas que não se alcança. Ao

estudarmos suas obras somos remetidos ao universo de reflexão em uma análise

constante da conduta humana em seus aspectos sociais, morais e psicológicos,

numa aproximação de identificação de características inerentes ao ser que

ultrapassa o limite de tempo e época perdurando em uma sondagem permanente.

É nesse universo psicológico que nos deparamos com as personagens em

Dom Casmurro, onde a dúvida e a ambiguidade compõem o enredo do romance,

principalmente o narrador-personagem, foco da atenção e análise deste projeto, que

busca investigar: “O ciúme exarcebado de Bentinho pode levá-lo a um mundo de

fantasia, oscilando entre o parecer e o ser, o imaginário e o real?

A relação entre o fato real e imaginário compõe o universo machadiano na

obra Dom Casmurro. É necessário que se aprenda a ler, identificar, relacionar essas

características, interagindo com o contexto da obra.

Este trabalho foi realizado com alunos do 2º ano do Ensino Médio do

Colégio Estadual Tancredo de Almeida Neves, Ensino Fundamental e Médio, de Foz

do Iguaçu, direcionado para a formação de leitores capazes de sentir e expressar,

reconhecer nas aulas de literatura o envolvimento de subjetividades que se

expressam pela tríade obra/autor/leitor, como sugerem as Diretrizes Curriculares da

Educação Básica de Língua Portuguesa do Estado do Paraná (DCE, 2008, p.58).

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1.1 Descrição da estratégia proposta

A estratégia proposta neste trabalho é analisar a obra Dom Casmurro de

Machado de Assis, despertando o aluno/leitor para interpretações que a obra

possibilita, aguçando o senso crítico, levando-o a investigar a questão da

aparência/essência na obra, incentivando-o a leitura de maneira crítica e

possibilitando a leitura de textos com temáticas semelhantes, assim como, conhecer

o contexto histórico no qual a obra está inserida e a trajetória literária de Machado

de Assis.

1.1.1 Contexto histórico

É importante que o aluno consiga perceber o panorama da época, tenha

condições de refletir quanto ao posicionamento das personagens, principalmente o

papel da mulher na sociedade, os movimentos que estavam sendo articulados, a

transição do Romantismo para o Realismo e o paralelo com o contexto histórico-

social atual.

A França foi o grande palco das revoluções europeias do século XIX. Com

os desenvolvimentos científicos, tecnológicos e as novas teorias sociais torna-se

inviável uma visão de mundo romântica, surgindo o Realismo em oposição a

subjetividade, imaginação e fantasia do Romantismo, baseando-se na objetividade,

racionalidade das ideias, propondo retratar fielmente a vida contemporânea para

denudá-la em uma análise psicológica.

A imparcialidade dos temas garante ao leitor a elaboração própria de suas

interpretações e conclusões.

1.1.2 Machado de Assis – Vida e obra

Trabalhamos Machado de Assis no contexto histórico-social da época, a

linguagem, a construção da mesma nos textos, a ironia, humor, metalinguagem,

ambiguidade, narração não-linear, foco narrativo, conversa com o leitor, inovação,

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estilo, o que tornam seus textos atuais e instigam estudiosos a pesquisá-lo, porque

ele não se enquadra somente ao estilo literário Realismo, mas ao estilo permanente

de análise e reflexão.

Comentamos a riqueza de suas obras na poesia, crônica, contos, romances,

que evidenciam características do nosso psiquismo, retratando a natureza humana.

1.1.3 Leitura da obra

Esta etapa objetivou estimular a leitura, auxiliar o aluno nos fatores que

envolvem o funcionamento e desenvolvimento da obra.

Apresentamos textos que abordaram temáticas semelhantes, principalmente

textos atuais que possibilitaram a comparação e a percepção dos problemas sociais,

culturais e intelectuais dos quais fazemos parte e que se encontram presentes no

mundo ficcional. Promovemos a troca de informação, a análise crítica, o

envolvimento, a participação e o debate.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A literatura, como produção humana, está intrinsecamente ligada à vida

social. O entendimento do que seja o produto literário está sujeito a modificações

históricas, portanto, não pode ser apreensível somente em sua constituição, mas em

suas relações dialógicas com outros textos e sua articulação com outros campos: o

contexto de produção, a crítica literária, a linguagem, a cultura, a história, a

economia, entre outros. (DCE 2008, p. 57).

Hans Robert Jauss, na década de 60, questionou os estudos relativos à

história da literatura – apenas historiográfica – e a função do leitor no momento da

recepção. Teceu, ainda, uma crítica aos métodos de ensino da época, que

consideravam apenas o texto e o autor numa perspectiva formalista e estruturalista.

(DCE 2008, p. 58).

É primordial que a literatura seja introduzida, de forma a resgatar o contato

do leitor com o texto, estimulando e ampliando seu conhecimento de mundo. A

literatura provoca e aguça a imaginação, a reflexão, permitindo uma vivência

individual.

O texto literário é carregado de pistas/estruturas de apelo, as quais

direcionam o leitor, orientando-o para uma leitura coerente. Além disso, o texto traz

lacunas, vazios, que serão preenchidos conforme o conhecimento do mundo, as

experiências de vida, os valores, etc, que o leitor carrega consigo. (DCE 2008, p.59).

Essa relação estabelece identificação, vínculo entre obra/leitor, tornando a

leitura um exercício contínuo, buscando conhecimento e estimulando a imaginação.

Baseado na Estética da Recepção e na Teoria do Efeito, as professoras

Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar elaboraram o Método Recepcional,

o papel que se atribui ao leitor, uma vez que este é visto como um sujeito ativo no

processo de leitura, tendo voz em seu contexto. Além disso, proporciona momentos

de descoberta, reflexão sobre a obra lida, possibilitando ao aluno a ampliação dos

horizontes de expectativas. (DCE 2008, p.74).

O contato do aluno com a obra sensibiliza-o para a leitura como fonte de

prazer, informação, fantasia, despertando sua capacidade de ler/ouvir com

motivação. Aproxima-o da realidade social e psicológica, como meio socializador e

emocional.

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O aluno é o leitor, e como leitor é ele quem atribui significados ao que lê, é

ele quem traz vida ao que lê, de acordo com seus conhecimentos prévios,

linguísticos, do mundo. O primeiro olhar para o texto deve ser de curiosidade,

sensibilidade e identificação. O professor pode estimular o aluno a projetar na

narrativa e identificar-se com algum personagem. (DCE 2008, p.75).

Dom Casmurro permite essa identificação por abordar temas comuns,

evidenciando características psicológicas do ser humano. Analisa psicologicamente

as personagens, principalmente o comportamento do narrador-personagem,

procurando mostrar a relatividade das coisas.

É importante o professor trabalhar as estruturas de apelo, demonstrando que

não é qualquer interpretação que cabe à literatura, mas aquelas que o texto permite.

(DCE 2008, p.76).

Dom Casmurro permite ao leitor várias possibilidades interpretativas, criando

polêmicas, gerando dúvidas e o leitor busca elementos que concretizem sua visão, o

que o leva à releitura, encontrando novos questionamentos, numa nova

interpretação.

Segundo Duarte (2008, p.3), “A literatura de Machado de Assis leva o leitor a

refletir sobre si mesmo e o mundo em que vive [...].”

Sendo Dom Casmurro uma obra com uma forte carga psicológica,

apresentando sensações, questionamentos, sentimentos, inerentes ao ser humano,

é natural que o leitor transporte seus valores e experiências, identificando-se com

as personagens. “Machado valoriza mais a ação interior, captando os mais

recônditos pensamentos e conflitos das personagens.” (CHACON, 1994, p.58).

Podemos dizer que Machado de Assis já era, no século XIX, um escritor do

século XX, inovando o aprofundamento da análise psicológica.

O objeto principal de Machado de Assis é o comportamento humano […] se hoje podemos incorporar à nossa percepção do social o olhar machadiano de um século atrás, é porque este olhar foi penetrado de valores e ideais cujo dinamismo não se esgotava no quadro espaço-temporal em que se exerceu. (ALFREDO BOSI, 1999, p.11/12).

Cada leitura que se faz de Dom Casmurro observa-se aspectos novos que

levam a reflexão.

Nos textos de Machado de Assis, a ambiguidade do signo permite que a leitura se abra, que as significações brotem num ritmo que permita fugir dos limites impostos pelo discurso persuasivo; o leitor pode participar da

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aventura da descoberta dos sentidos presentes no texto […], o signo da dúvida alimenta o texto machadiano, impedindo a formação de juízos definitivos. (CITELLI, 1988).

Estando a narrativa condicionada à visão de Bentinho, a descrição de Capitu

deve ser posta em dúvida pelo leitor. O seu ciúme exacerbado pode criar uma

atmosfera suspeita, percepção e interpretação delirantes.

Capitu é descrita exclusivamente do ponto de vista de Bentinho/Dom Casmurro, personagem-narrador convencido da infidelidade da esposa com seu amigo Escobar; as palavras dela nos diálogos são as que o marido relata, e Machado não faz uso do recurso de interferir na narração, como autor onisciente, para fornecer ao leitor, diretamente, informações imparciais e elucidativas. O Leitor de Dom Casmurro é absolutamente dependente das informações de Bentinho e este dá frequentemente a impressão de sonegar ou fornecer os dados de maneira que melhor lhe convém. Além disso, naquilo que ele decidiu relatar, os fatos aparecem evidentemente como ele foi capaz de observá-los. Machado escreveu um livro em que, rigorosamente, a questão do adultério permanece em aberto, este não é o problema do livro, não é este o assunto, mas antes o conflito psicológico em que se encontra Bentinho – através de cujas ações o escritor descreve a dificuldade ou impossibilidade de apreender o ser humano, a não ser parcial e unilateralmente. (INGRID STEIN, 1994).

Conforme Linda M. Kelley, “ao reconstruir a imagem de Capitu, Bentinho o

faz emotivamente. Ele não está interessado nela, mas em si próprio.” “O narrador é,

por sua vez, a figura que guia a apresentação do enredo.” (AGUIAR E SILVA, 1976).

É possível em Dom Casmurro, uma narrativa carregada de insinuações

direcionadas para a veracidade, e o narrador procura conduzir o leitor a essa

perspectiva de visão da qual ele é o único ponto referencial, ou seja, é ele quem

constrói a existência das personagens, todas refletidas a partir de seu ângulo de

visão, retiradas ou relembradas da maneira como ele as projeta. Portanto, as

identificamos sob o prisma único, do personagem-narrador e possui uma carga

significativa de imaginação, que procura através da escrita, reviver, resgatar-se -

“Viverei o que vivi” - no capítulo II, onde explica o livro e a reprodução no Engenho

Novo, da Rua de Matacavalos. Trata-se de uma tentativa de “atar as duas pontas

da vida e restaurar na velhice a adolescência.” Reviver os acontecimentos através

da imaginação, nos faz refletir na possibilidade da emotividade determinar o sentido

real das informações narradas.

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Os fatos podem ocorrer na aparência da qual o narrador propõe, e seria

ingênuo o leitor deixar-se envolver sob essa única possibilidade, uma vez que a

emoção provoca influência, refletindo subjetividade no fato narrado.

Para Eugênio Gomes é a questão da verossimilhança a responsável pelas

controvérsias que o romance suscita […] “há uma confusão geral, que perturba

todas as observações, porque […] a versão da história é dada exclusivamente pelo

homem que se considera vítima de um deplorável engodo.”

Helen Caldwell (1960) compara Bentinho às personagens Shakespearianas

de Otelo e Iago, na medida em que o adultério de Capitu seria, em sua opinião,

como o de Desdêmona, produto da sugestão (no caso autossugestão) do marido

ciumento. Para Keith Ellis, a questão da culpa de Capitu está envolvida na

ambiguidade que resiste a qualquer elucidação.

Aceitar a culpabilidade de Capitu é concordar com o narrador sem refletir

nas lacunas existentes na obra, nas pistas e entrelinhas do discurso narrativo.

Segundo Helder Macedo (2008), a tragédia de Bento Santiago foi constatar: “mas

falta eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Essa constatação o leva a construir a tese de condenar Capitu, baseado em

hipóteses, possibilidades que refletem sua visão de vítima, sem apresentar fatos

concretos que a comprovem. Baseou-se na semelhança física entre Ezequiel e

Escobar, o hábito de imitá-lo e o comportamento de Capitu no enterro de Escobar.

Na velhice procura explicar suas memórias, retrocedendo no tempo de

adolescente puro e ingênuo, para um advogado brilhante que não consegue

elucidar a dúvida que o atormenta, por ser passível de estar apenas no seu

inconsciente, numa suposta verdade.

Dom Casmurro, como considera Eugênio Gomes, é “a narrativa mais

ambígua da literatura nacional.”

Uma obra que continuará gerando discussões, pesquisas, mantendo assim,

a sua contemporaneidade.

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3 DESENVOLVIMENTO

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu a 21 de junho de 1839 no Morro

do Livramento, Rio de Janeiro, e faleceu a 29 de setembro de 1908, também no Rio

de Janeiro.

Iniciou o Realismo brasileiro, em 1881, com Memórias Póstumas de Brás

Cubas. É considerado o maior escritor em prosa da literatura brasileira. Sua obra

dividi-se em duas fases: a primeira fase apresenta características românticas e a

segunda apresenta o autor definido nas ideias realistas.

Apresenta uma evolução, em que predomina a reflexão e a investigação da realidade humana na sua camada mais profunda, revelando uma visão pessimista e amargurada da vida humana. E é nessa exploração do ser humano, de seus problemas e conflitos, que a arte de Machado de Assis se distingue e se destaca. (TUFANO, 1975).

A análise psicológica das personagens está presente nos textos

machadianos, assim como, a análise da sociedade e da crítica aos valores

românticos.

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida: eu mudo de rumo. (D.C3 - 158).

Machado ironiza o mundo de diversões de salão que provavelmente cercam

a leitora.

Outra característica utilizada por Machado de Assis é a metalinguagem.

Tudo que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o murro, li estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:

Bento Capitolina

Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro. (D.C - 30)

3 As citações da obra Dom Casmurro de Machado de Assis virão acompanhadas com iniciais do título e respectivas páginas.

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As digressões, lacunas, reticências e omissões são recursos estilísticos

usados por Machado de Assis, demonstrando a sua habilidade em jogar com o leitor

despistando-o do que poderia ser sem importância ou fundamental.

“Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança que se case com ela...” Era certamente alusão ao cavaleiro. […] Eu, impaciente, queria ir à casa ao pé, imaginava que Capitu saísse da janela assustada e não tardasse a aparecer, para indagar e explicar... (D.C - 108).

O leitor de Dom Casmurro deve manter-se independente das sugestões e

insinuações do narrador. É preciso ter um olhar crítico da narrativa, analisar até que

ponto a narrativa de um homem que se sente traído é confiável, como saber o que

de fato aconteceu? Bento Santiago, decide o que deve ou não ser relatado ao leitor.

A narrativa é ambígua evidenciando a contradição do narrador.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. [...] Fui andando e cismado. [...] Cuidei e recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo de dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e dedutiva, tenha sido antes uma farafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava clar e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre. (D.C. p.163).

O leitor deve desconfiar de suas reais intenções e perceber as justificativas

para suas atitudes questionáveis, pois ele procura incutir a ideologia e os sentidos

pré-estabelecidos, concepções que guiam a estrutura da narrativa. Tenta persuadir o

leitor a acreditar na sua versão dos fatos, ainda que tente convencer a si mesmo.

A literatura de Machado de Assis nos conduz a refletir sobre nós mesmos e

sobre o mundo em que vivemos, pois sempre descobrimos algo que nos diz

respeito, evidenciando características do nosso psiquismo. Retrata em suas obras a

pessoa humana, suas incertezas, contradições e esperanças, garantindo a

atualidade de seus textos, permitindo a vida ser interpretada em qualquer época.

Segundo Teotônio Martins Filho, Machado de Assis é “o grande arquiteto de

personalidades”, suas personagens apresentam os enigmas da alma, revelando a

precariedade e a hipocrisia das relações sociais.

Em Dom Casmurro, texto imortal da literatura brasileira, Machado de Assis

apresenta a temática das relações e contradições da natureza humana, os jogos de

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interesses e a necessidade de irmos além das aparências procurando investigar o

universo psicológico das personagens.

Sua obra não visa apenas à diversão ou à afirmação de valores morais, mas objetiva, antes de tudo, a investigação do espírito humano, universal, sem contudo, afastar-se da realidade universal. (MARIA TEREZA FARIA, 2008, p. 7).

Machado de Assis foi capaz de retratar, de modo extraordinário, o

comportamento de um homem transtornado pelo ciúme.

A linguagem constitui o elemento formal da literatura. A narrativa, no romance, nos dá através do conflito de personagens, uma certa concepção da realidade. A originalidade no manejo técnico dos signos e das estruturas sintáticas produz o estilo individual dos escritores. (TUFANO, 1975).

Em Machado de Assis, a análise psicológica das personagens, a linguagem

correta, frases e capítulos curtos, conversa com o leitor, análise da sociedade são

características predominantes. A relação entre o fato real e imaginado compõe o

universo machadiano na obra Dom Casmurro. É necessário que o aluno aprenda a

identificar essas características, interagindo com o contexto da obra.

As contradições da natureza humana, os jogos de interesse e rivalidades que existem nos relacionamentos mais íntimos, a mistura de amor e ódio que une e desune os seres, sempre mais complexo do que parecem ser […] nos ensina que para ler e para viver precisamos ir além das aparências, percebendo a distância que há entre as ações e as suas modificações mais profundas, entre as linhas e as entrelinhas. (RICARDO LEITE, 1997).

Em Dom Casmurro, nos deparamos com essas contradições, gerando

dúvidas quanto ao conflito apresentado no enredo. Essas contradições possibilitam

várias interpretações e a análise das mesmas foi proporcionada ao aluno.

Por ser uma narrativa em primeira pessoa, as informações nos são

fornecidas sob o prisma único de observação, a do narrador-personagem, que

através das insinuações procura convencer o leitor da sua visão acerca do suposto

adultério de Capitu.

A princípio, o leitor sente-se envolvido, induzido pela aparência das

informações, vislumbrando a perspectiva de suposições apontadas pelo narrador,

porém a leitura mais atenta o faz refletir, buscando nas lacunas existentes uma

análise mais perspicaz, percebendo a construção e desconstrução das informações,

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a relação do ser e do suposto ser, a aparência que se descortina de imediato e a

essência que flui a cada análise.

Essa percepção de possibilidades gera interpretações variadas, tornando

Dom Casmurro motivo constante de análise.

Pesquisadores como Ingrid Stein, que apresenta o trabalho sob visão da

narrativa em primeira pessoa, Linda M. Kelley, desenvolve a emotividade do

narrador ao reconstruir Capitu. Eugênio Gomes e a questão da verossimilhança;

Helen Caldwell e a comparação de Bentinho às personagens Shakespearianas

Otelo e Iago; e vários estudiosos, nos instigam a participar desse complexo que

envolve o romance, sempre aguçado por uma análise mais profunda, o que garante

a atualidade da obra.

Segundo Eagleton (1983, p.105), “sem essa constante participação ativa do

leitor, não haveria obra literária.”

Sob esse enfoque, o presente trabalho será direcionado, formando leitores

capazes de sentir e expressar, reconhecer nas aulas de literatura o envolvimento de

subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, como sugerem as

Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa do Estado do

Paraná. (DCE, 2008, p.58).

Perceber as possibilidades de interpretações, ampliar o horizonte de

expectativas, visão de mundo e experiência (DCE, 2008); observar que as

possibilidades surgem quando a análise sai do superficial (aparência) e se depara

com o ser (essência), que pode se descortinar em outra possibilidade retomando a

aparência.

Esse desenvolvimento ligado à reflexão psicológica e filosófica, não desperta

o interesse do aluno do Ensino Médio. Aproximá-lo da obra, auxiliá-lo a perceber a

correlação entre a aparência e a essência e vislumbrar os horizontes que a permeia

foi o objetivo deste trabalho, onde atuamos como mediador para que se

descortinassem as possibilidades de reflexão e análise oportunizadas na leitura da

obra.

O projeto foi desenvolvido com alunos do segundo ano do ensino médio, de

maneira que oportunizasse esses alunos o contato com as obras de Machado de

Assis, principalmente Dom Casmurro. A leitura da obra machadiana conduz o aluno

para o fascinante mundo da leitura, da sensibilidade e da criatividade.

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Segundo Eugênio Gomes (1958) “a atitude e os gestos, entre os indivíduos,

serão sempre os mesmos, mas os efeitos podem ser colhidos de maneira diferente

conforme a índole, o espírito e as tendências do observador”.

Nesse contexto de observação e análise, a obra Dom Casmurro foi levada

ao aluno, primeiro em uma leitura abrangente da obra e a seguir em seleção

minuciosa de detalhes da obra, que exigem reflexão por trazerem uma relação de

novas possibilidades, gerando dúvidas e ambiguidade, tornando o texto motivo

constante de estudo e investigação.

O ciúme exarcebado de Bentinho pode levá-lo a um mundo de fantasia,

oscilando entre o parecer e ser, o imaginário e o real?

A dúvida e a ambiguidade, presentes em Dom Casmurro, geram polêmica,

dividindo opiniões, aumentando o número de estudiosos, pesquisadores e críticos.

Diante das possibilidades de interpretação de Dom Casmurro, da evidência

do aspecto psicológico, será feita a análise comparativa abordada nas opiniões,

pontos de vista feitos em relação à obra, assim como as reflexões que procuram

mostrar o ser humano na sua essência, provocando o senso crítico.

É primordial que a literatura seja introduzida de forma a resgatar o contato

do leitor com o texto, estimulando e ampliando seu conhecimento de mundo.

A literatura provoca e aguça a imaginação, a reflexão, permitindo uma

vivência individual.

Cada leitura que se faz de Dom Casmurro se observa aspectos novos que

levam à reflexão.

Dom Casmurro é uma narrativa carregada de insinuações direcionadas para

a veracidade, e o narrador procura conduzir o leitor a essa perspectiva de visão da

qual ele é o único ponto referencial, ou seja, é ele quem constroi a existência das

personagens, todas refletidas a partir de seu ângulo de visão, relembrados da

maneira como ele as projeta. Portanto, as identificamos sob o prisma único do

personagem-narrador, que possui uma carga significativa de imaginação e procura

através dos escritos, reviver, resgatar-se.

Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquele outro, que desapareceu. (D.C. p.14).

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Trata-se de uma tentativa de resgatar o passado, reviver através da

memória, das lembranças, sua adolescência, buscando o tempo perdido.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falta eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (D.C. p. 14).

O tempo é irrecuperável. Sua solidão atual denuncia o vazio que fora sua

vida não assumida. Recompor o passado através da escrita permitirá que esteja

novamente com as pessoas com as quais convivera, buscando sentido para sua

vida presente, uma vez que fisicamente vivo, sente-se morto para si mesmo e para

os outros.

Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns [...] deste modo, viverei o que vivi (D.C. p. 15).

Reviver os acontecimentos através da imaginação nos faz refletir na

possibilidade da emotividade determinar o sentido real das informações narradas.

Os fatos podem ocorrer na aparência da qual o narrador propõe, e seria

ingênuo o leitor deixar-se envolver sob essa única possibilidade, uma vez que a

emoção provoca influência, refletindo subjetividade no fato narrado.

Minha mãe era boa criatura. [...] Tenho na parede o retrato dela, ao lado do meu pai [...] O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. (D.C. p. 21).

No fragmento acima, observamos um casamento não influenciado pelos

conflitos e desentendimentos, geralmente desencadeados pelo amor. A mãe

continua guardando luto e o pai (morto) continua exercendo seu poder, participando

da vida familiar e a permanência do seu retrato na parede, evidencia o apego de

Bentinho ao passado.

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A vida é uma ópera. (D. C. p. 22).

O narrador faz alegoria aos conflitos humanos. A vida é interpretada como

um espetáculo, uma peça de teatro, uma representação constante.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... (D. C. p. 25).

Estaria o narrador iniciando sua problemática, insinuando a suspeita da

infidelidade de Capitu, a desconfiança da relação entre ela e Escobar e a dúvida

quanto à paternidade de Ezequiel?

Segundo Chacon (1994), “O tema central a unificar todas as demais é o do

ciúme, gerando a partir da suspeita do adultério, justificando com isso as referências

feitas à peça de Shakespeare.”

No capítulo LXII, “uma ponta de Iago”, José dias refere-se a Capitu: “aquilo,

enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...” despertando

o ciúme de Bentinho, assim como o Iago fizera com Otelo, na peça de Shakespeare.

O ciúme está presente em vários momentos: “Tal foi o segundo dente de

ciúme que me mordeu” (LXII), “Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia

estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela” (CVII), “cheguei a ter

ciúmes de tudo e de todos” (CXIII), “Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam

aos seus ciúmes!” (CXXXVIII), Capitu diz ao perceber seu ciúme por Escobar.

Quando os primeiros ciúmes começam a atormentá-lo, sua reação

emocional é histérica, refugiando-se no quarto.

[...] corri ao meu quarto, e entrei através de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com ponta do lençol. (D. C. p.109)

A imaginação e a fantasia surgem.

[...] via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo; restava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles. (D. C. p. 109)

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Bentinho é introvertido, sonhador, sua realidade oscila entre o real e a

fantasia, como no episódio em que ele encontra o Imperador e no seu devaneio, sua

majestade, intercederia no cancelamento da sua entrada para o seminário.

Vi então o Imperador escutando-me refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar com minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. [...] O Imperador entrou em casa de Dona Glória! Que será? Que será? [...] Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala, ou entrando, não me lembra bem, os sonhos, são muitas vezes confusos, pediria a minha mãe que não me fizesse padre, e ela lisonjeada e obediente, prometia que não. (D. C. p. 49).

A imaginação se faz presente em toda a vida de Bentinho, acentuando a

constante fuga da realidade. São fantasias lembradas como fatos sempre

condicionadas a sua visão e ponto de vista, através do qual faz sua narrativa.

O leitor pode acreditar ou duvidar da interpretação que o narrador faz dos

fatos por ele vividos, assim como, ele imagina que foi sua vida.

Dom Casmurro ressuscita Bentinho através da memória na tentativa de

reconstruir uma existência atormentada pela dúvida e assim, convencer a si mesmo,

da veracidade dos fatos ocorridos.

Retrocede no tempo de adolescente puro e ingênuo (Bentinho), com uma

mente repleta de imaginação, devaneios, insegurança, para um advogado brilhante,

na maturidade, mas que não consegue elucidar a dúvida que o atormenta, tornando-

se na velhice, um solitário, tentando reviver através das lembranças o que de fato foi

no passado.

Através da narrativa, deixa transparecer pela imaginação o reviver do

passado, procurando explicar a si mesmo e aos outros, em um julgamento do

passado pelo presente que se apresenta.

A escolha do foco narrativo em primeira pessoa registra a subjetividade

pelas observações pessoais, intensificando o aspecto psicológico do romance. A

trama vai além do ciúme e da traição, levam a uma reflexão dos aspectos da

aparência e essência, do ser e do parecer.

Aparentemente, a complexidade gira em torno do enigma de Capitu, mas o

conflito psicológico em que se encontra Bentinho conduz o leitor a essa perspectiva

de visão da qual ele é o único ponto referencial.

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Segundo Aguiar e Silva (1976), “O narrador é, por sua vez, a figura que guia

a apresentação do enredo.”

Estando a narrativa condicionada à visão de Bentinho, a descrição das

personagens, principalmente Capitu, deve ser posta em dúvida pelo leitor.

Conforme Linda M. Kelley, “ao reconstruir a imagem de Capitu, Bentinho o

faz emocionalmente. Ele não está interessado nela, mas em si próprio.”

Dom Casmurro é uma narrativa carregada de insinuações, levada por um

ciúme exarcebado que pode criar uma atmosfera suspeita, percepção e

interpretação delirantes.

Para Eugênio Gomes é a questão da verossimilhança a responsável pelas

controvérsias que o romance suscita [...] “há uma confusão geral, que perturba todas

as observações, porque [...] a versão da história é dada exclusivamente pelo homem

que se considera vítima de um deplorável engodo.”

Bentinho baseou-se na semelhança física entre Ezequiel e Escobar, o hábito

de imitá-lo e o comportamento de Capitu no enterro de Escobar, para construir a

tese da infidelidade da esposa, sem apresentar pontos concretos que a comprove.

Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-lo cair, quando ria. (D. C. p. 154).

Essas semelhanças geraram a dúvida da própria paternidade, esquecendo-

se que a semelhança física independe do parentesco, como a de Capitu com a mãe

de Sancha.

No enterro de Escobar, o comportamento de Capitu, a maneira como ela

olhava para o defunto, despertou o segundo indício de sua suspeita.

A confusão era geral. No meio dela, Capitu, olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (D. C. p.161).

O olhar e o choro não constituem provas substanciais da infidelidade de

Capitu.

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São suspeitas de um possível adultério, sob o prisma da visão de um marido

ciumento, que tem consciência desse ciúme desde a adolescência, mesmo na

época não existindo motivo real.

Aceitar a culpabilidade de Capitu é concordar com o narrador sem refletir

nas lacunas existentes na obra, nas pistas, entrelinhas do discurso narrativo.

[...] momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (D.C. p.161).

Para Bentinho não havia dúvidas, o olhar fixo e aberto de Capitu, era a prova

da sua infidelidade.

Torturado pelo ciúme, Bentinho não suporta mais a presença do filho e o

manda para o Colégio da Lapa.

Cada vez mais melancólico e atormentado pelo ciúme, planeja o suicídio,

mas interrompe a ação pela entrada de Ezequiel a chamá-lo, transferindo-lhe o

ímpeto suicida, mas também abandona e passa a beijar doidamente a cabeça do

filho, evidenciando uma personalidade alucinada, paranóica.

Bentinho adentra cada vez mais nessa consciência delirante, conturbada e

impõe a separação, enviando Capitu e Ezequiel para Suíça. Simulava viagens à

Europa no intuito de enganar a opinião dos outros, mantendo, assim, sigilo da

separação e aparência social.

Capitu morre na Suíça. Dom Casmurro reserva-lhe apenas o relato de ter

continuado bonita, e sempre afirmando para o filho, a bondade e a dignidade do pai.

Ezequiel pede ajuda financeira ao pai para estudar arqueologia e, Bentinho,

em seu ciúme delirante, deseja que o filho pegue lepra. Sentindo-se cruel e

perverso, quis abraçá-lo ao coração, mas não o faz.

A mudança brusca de comportamento denota a acentuada alienação de

Bentinho, saindo da condição de vítima para réu. É perceptível essa mudança desde

adolescente, quando deseja, mesmo por instantes, a morte da mãe para livrar-se do

seminário. “Mamãe defunta, acaba o seminário.” (D. C. p.100).

Seus impulsos crueis prosseguem quando no enterro de Escobar, deseja

“atirar à rua caixão, defunto e tudo” (D. C. p.161), e continua na tentativa de

envenenar o filho.

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Como acreditar na sinceridade da narração de Bentinho e na veracidade dos

fatos, sem cogitar a possibilidade de ter sido feita uma interpretação das aparências

do que ele acredita que viu e viveu e que pode estar enganado?

As contradições da natureza humana, os jogos de interesse e rivalidades que existem nos relacionamentos mais íntimos, a mistura de amor e ódio que une e desune os seres, sempre mais complexo do que parecem ser [...] nos ensina que para ler e para viver precisamos ir além das aparências, percebendo a distância que há entre as ações e as suas modificações mais profundas, entre as linhas e as entrelinhas. (LEITE, 1997).

Em Dom Casmurro, o momento de transparência nunca chega, e Bento

permanece na posição de juiz de Capitu. A sua crença na verdade das aparências

se torna dramática; levando-o a busca incessante de comprovar, de convencer a si

mesmo, da veracidade as suas suspeitas.

Segundo Antônio Cândido (1977), “Dentro do universo machadiano, não

importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a

consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real. Ele destroi

sua casa e sua vida.”

Dom Casmurro sugere variados sentidos e como define Lukács, nele não

existem fórmulas prontas para a solução dos problemas.

É um enigma. A constante análise da relação entre o fato real e o imaginado,

o absoluto e o relativo.

Para Keith Elis, a questão da culpa de Capitu está envolvida na ambiguidade

que resiste a qualquer elucidação. Portanto, Dom Casmurro continuará gerando

discussões, pesquisas, mantendo assim, a sua contemporaneidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste projeto foi analisar a obra Dom Casmurro de Machado de

Assis sob uma perspectiva mais abrangente levando o aluno do Ensino Médio a

observar o porquê desta obra escrita há mais de um século ser ainda, motivo

constante de investigação por parte de estudiosos e críticos da literatura.

As obras machadianas nos remetem ao universo de reflexão levando-nos ao

questionamento em relação aos temas abordados, por refletirem o comportamento

do ser humano, seus valores e ideais.

A ambiguidade presente em Dom Casmurro permite que a leitura se abra e o

leitor se envolva na tentativa de descobrir os sentidos que a obra possibilita. Esse

envolvimento do leitor com a obra aguça o senso crítico, desperta novos olhares e o

torna mais atento quanto ao universo da relação entre o real e o imaginário que

compõe o enredo da obra.

Essa percepção sobre a obra foi força motriz para alavancar este projeto e

percebemos que o objetivo foi alcançado, transportando os alunos para uma visão

crítico-social e a contemporaneidade machadiana.

O aluno/leitor consegue aprimorar o senso crítico em relação a literatura,

basta o professor despertar, aguçar o prazer que a literatura proporciona.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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