28
SISTEMA ANGLO DE ENSINO 65 ANGLO VESTIBULARES O GOSTO LITERÁRIO DA DÉCADA DE DOM CASMURRO De todas as tendências literárias da década de 1890, em que se escreveu Dom Casmurro, o Realismo-Naturalismo foi a que mais impregnou a literatura brasileira. O escritor que melhor representa o Naturalismo entre nós é Aluísio Azeve- do. Foi também o mais lido entre 1880 e 1890. Depois de Ma- chado de Assis, Aluísio Azevedo é autor do melhor conjunto de obras do período realista entre nós. Sua obra naturalista 1 apresenta, basicamente, duas preo- cupações: promover um retrato vivo e crítico da sociedade do segundo reinado e analisar cientificamente casos extremos de patologia comportamental. Assim, quase todos os seus romances apresentam crimes, sangue, morte, homossexua- lismo, lesbianismo, incesto, ninfomania, ataques de histeria, tara por dinheiro e poder, etc. Nesse sentido, poderíamos dizer que o texto de Aluísio Azevedo é dominado pela hipertrofia da descrição fisiológica, de que é exemplo o fragmento se- guinte, extraído de O Homem (1887), capítulo 7: Pobre velha! consumia-se numa infernal complicação de moléstias; era intestino, era cabeça, eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia como coisa podre! Já se não alimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos de ovo choco, e os humores que ela expelia por toda a parte do corpo empestavam a casa inteira […] Camila rouquejava gemidos que iam se transformando num pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escorria-lhe das ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade esverdinha- da e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal a respiração lhe foi aos poucos amortecendo na garganta, e até que os olhos espremeram a última lágrima e os pulmões sopraram o derradeiro fôlego. Além de inúmeras descrições fisiológicas como a do texto acima, O Homem apresenta outros tantos casos de sublimações eróticas, numa das quais a protagonista (Magdá) mantém relação sexual com Jesus Cristo, num sonho. O sucesso de O Homem foi tamanho que, em 1896, o roman- ce já atingia a sua sexta edição. Nesse ano de 1896, Machado de Assis iniciava a redação de Dom Casmurro, totalmente indife- rente ao espalhafato da literatura naturalista, que, entre outros, produzira o escândalo sexual de A Carne (Júlio Ribeiro, 1888) e O Bom Crioulo (Adolfo Caminha, 1895). O estilo de Dom Casmurro Nesse período de popularidade do romance exibicionista, Machado de Assis manteve-se fiel às suas convicções estilísticas, sem fazer concessões ao gosto fácil do romance naturalista. DOM CASMURRO Machado de Assis ANALISE DA OBRA IVAN TEIXEIRA Machado de Assis 1 Aluísio Azevedo escreveu, alternadamente, romances românticos e romances naturalistas. ´

Dom Casmurro

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Dom Casmurro

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 65 • ANGLO VESTIBULARES

OO GGOOSSTTOO LLIITTEERRÁÁRRIIOO DDAA DDÉÉCCAADDAA DDEEDDOOMM CCAASSMMUURRRROO

De todas as tendências literárias da década de 1890, emque se escreveu Dom Casmurro, o Realismo-Naturalismo foia que mais impregnou a literatura brasileira. O escritor quemelhor representa o Naturalismo entre nós é Aluísio Azeve-do. Foi também o mais lido entre 1880 e 1890. Depois de Ma-chado de Assis, Aluísio Azevedo é autor do melhor conjuntode obras do período realista entre nós.

Sua obra naturalista1 apresenta, basicamente, duas preo-cupações: promover um retrato vivo e crítico da sociedade dosegundo reinado e analisar cientificamente casos extremosde patologia comportamental. Assim, quase todos os seusromances apresentam crimes, sangue, morte, homossexua-lismo, lesbianismo, incesto, ninfomania, ataques de histeria,tara por dinheiro e poder, etc. Nesse sentido, poderíamos dizerque o texto de Aluísio Azevedo é dominado pela hipertrofiada descrição fisiológica, de que é exemplo o fragmento se-guinte, extraído de O Homem (1887), capítulo 7:

Pobre velha! consumia-se numa infernal complicação de moléstias; era intestino, era cabeça,eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia como coisa podre! Já se nãoalimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos de ovo choco, e os humores que ela expeliapor toda a parte do corpo empestavam a casa inteira […] Camila rouquejava gemidos que iam setransformando num pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escorria-lhedas ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade esverdinha-da e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal a respiração lhe foi aospoucos amortecendo na garganta, e até que os olhos espremeram a última lágrima e os pulmõessopraram o derradeiro fôlego.

Além de inúmeras descrições fisiológicas como a do texto acima, O Homem apresenta outrostantos casos de sublimações eróticas, numa das quais a protagonista (Magdá) mantém relaçãosexual com Jesus Cristo, num sonho. O sucesso de O Homem foi tamanho que, em 1896, o roman-ce já atingia a sua sexta edição.

Nesse ano de 1896, Machado de Assis iniciava a redação de Dom Casmurro, totalmente indife-rente ao espalhafato da literatura naturalista, que, entre outros, produzira o escândalo sexual de ACarne (Júlio Ribeiro, 1888) e O Bom Crioulo (Adolfo Caminha, 1895).

OO eessttiilloo ddee DDoomm CCaassmmuurrrrooNesse período de popularidade do romance exibicionista, Machado de Assis manteve-se fiel às

suas convicções estilísticas, sem fazer concessões ao gosto fácil do romance naturalista.

DDOOMM CCAASSMMUURRRROOMachado de Assis

ANALISE DA OBRA IVAN TEIXEIRA

Machado de Assis

1 Aluísio Azevedo escreveu, alternadamente, romances românticos e romances naturalistas.

´

Page 2: Dom Casmurro

O seu convívio com a sobriedade e discrição dosautores clássicos afastava-o da literatura de consu-mo imediato, limitando os seus romances a tiragenspequenas.

Apesar disso, após as mais recentes investiga-ções sobre o texto machadiano, tornou-se incorretofocalizar apenas o aspecto clássico de seu estilo:equilíbrio, clareza, simplicidade, harmonia, elegân-cia, correção, agudeza, acabamento, concisão.

Essas propriedades, Machado de Assis as pos-sui todas em grande medida. Mas é preciso acres-centar que todas elas são dinamicamente atualiza-das por inúmeras experiências formais, que tornam afrase sarcástica, brincalhona, obscura, com feiçõesde ziguezague. Tais experiências, que aproximamMachado de Assis tanto do Barroco quanto das van-guardas contemporâneas, valorizam tipografica-mente a página, com disposição visual dos vocábu-los, como ocorre, por exemplo, no capítulo 14 deDom Casmurro (“A inscrição”). Incorporam a paró-dia, a ironia, a digressão e o absurdo do humor dispa-ratado, como aquele diálogo do narrador BentoSantiago com os vermes, pertencente ao capítulo 17do mesmo romance.

Os experimentos formais do estilo machadianoincorporam também o leitor incluso, que consisteno truque de trazer o leitor para dentro do romancee conversar com ele, como se fosse uma persona-gem a mais da história. O leitor incluso possui vidaprópria na ficção machadiana, com gestos, fisiono-mia e postura mental.

Um caso famoso da presença do leitor inclusoem Dom Casmurro é o do capítulo 119 (“Não façaisso, querida!”), em que o narrador promete mudaro rumo da história, por perceber que uma leitora nãoestá gostando do enredo. Outro caso interessante éo do capítulo 129 (“A Dona Sancha”). Sancha é espo-sa de Escobar, o grande amigo do narrador Bento.Ela aparece o tempo todo como personagem do ro-mance, mas a uma dada altura torna-se apenas leito-ra, a quem o narrador implora que suspenda a leiturado livro porque o final pode desagradá-la profunda-mente.

À parte alguns casos extraordinários, que dãogrande atualidade à obra, o leitor incluso em DomCasmurro é sempre o destinatário da narrativa (onarratário), invocado pelo narrador como forma dedinamizar o texto através da simulação do diálogo(dialogismo).

AA ttrraaddiiççããoo lluucciiâânniiccaaLuciano de Samósata é um escritor grego de

origem síria, que viveu no século II de nossa era. Sa-mósata era então uma província romana às mar-gens do rio Eufrates, de formação helenística. EmSamósata havia duas línguas literárias: o grego e o

latim. Depois de viajar muito, Luciano fixou residên-cia em Atenas e Alexandria. Foi alto funcionário doImpério Romano.

Suas obras foram escritas em grego clássico einteressam tanto à literatura quanto à filosofia. Sen-do um polígrafo2, Luciano escreveu diálogos satíri-cos e filosóficos, narrativas ficcionais e históricas,textos autobiográficos, ensaios, crítica e tratados deretórica. Libertário e fantasioso, seu estilo é baseadono uso sistemático da paródia.

Sua obra mais conhecida são os Diálogos dosMortos, cuja personagem central é o filósofo cínicoMenipo de Gadara, do século III a.C. Depois demorta, essa personagem ridiculariza o mundo dosvivos. Machado de Assis inspirou-se nessa obra deLuciano para escrever as Memórias Póstumas de BrásCubas, razão pela qual o romance ficou conhecidocomo sátira menipéia, isto é, sátira escrita à manei-ra de Menipo, na tradição luciânica.

Outra obra famosa de Luciano é História Verda-deira, na qual se descreve a ilha dos Sonhos, aludi-da no capítulo 64 de Dom Casmurro (“Uma idéia eum escrúpulo”), reproduzido e comentado adiante.

Luciano de Samósata sistematizou o uso da pa-ródia e aplicou à obra literária uma lógica fantasio-sa, que não coincide com a lógica da vida real. Emoutros termos: a tradição luciânica não observa averossimilhança exigida pelo verismo do romancetradicional oitocentista. Isso agradava muito a Ma-chado de Assis, a tal ponto que foi levado a aplicar alógica fantasiosa de Luciano às suas Memórias Pós-tumas de Brás Cubas, fazendo o protagonista falardepois de morto. Após essa experiência revolucioná-ria em nossa literatura, Machado de Assis sempreretornaria à lógica luciânica, porque ela lhe facultauma visão mais engraçada e verdadeira do real.Vejamo-la num trecho de crônica publicada em “ASemana”3 (seção mantida por Machado de Assis naGazeta de Notícias, entre 1892 e 1897), com data de 5de agosto de 1894:

Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas,acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo defilosofar sobre o destino das coisas tangíveis em com-paração com as imagináveis. Grande sabedoria é in-ventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver atodos, e acabar acreditando que não há pássaros comasas…

Conforme se vê por esse trecho genial, existemalgumas camadas da obra de Machado de Assis que

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 66 • ANGLO VESTIBULARES

2 Polígrafo: autor que escreve muito sobre vários assuntos eem vários gêneros literários Machado de Assis é o maiorpolígrafo da literatura brasileira, talvez até por sugestão deLuciano. Em Portugal, o grande polígrafo é Camilo CasteloBranco.

3 As crônicas dessa seção jornalística foram reunidas em volu-me por Mário de Alencar com o mesmo título de A Semana,editado pela Livraria Garnier em 1914(?).

Page 3: Dom Casmurro

só se explicam à luz da tradição luciânica, apesar desua filiação a alguns princípios do realismo oitocen-tista. Mas vêm da tradição luciânica os aspectos maismodernos de seu texto, como o riso, a ironia, a fu-são de gêneros, a digressão e o pessimismo hu-morístico. Todos esses elementos compositivos fa-zem parte da estrutura de Dom Casmurro, conformese demonstrará neste estudo.

Luciano e seus seguidores, dentre os quais sedestaca Erasmo de Roterdã, defendiam a obra aber-ta, sem conclusão explícita e definitiva. Tal noção éfundamental para a filiação de Dom Casmurro à tra-dição luciânica, não só pelo enigma geral do ro-mance, mas também pelo capítulo metalingüístico“Convivas de boa memória” (cap. 59), que ratifica anoção de obra aberta.4

EENNRREEDDOO DDEE DDOOMM CCAASSMMUURRRROO

OOrriiggeennss ddee BBeennttiinnhhooPedro de Albuquerque Santiago era casado

com Dona Maria da Glória Fernandes Santiago epossuía uma fazenda em Itaguaí. Um dia, apareceuali um sujeito chamado José Dias, apresentando-secomo médico homeopata. Curou o feitor e uma es-crava. Por isso o proprietário propôs-lhe ficar vi-vendo na fazenda, com pequeno ordenado. JoséDias aceitou casa e comida sem outra remuneração,salvo o que quisessem dar por reconhecimento.

O primeiro filho de Dona Glória nasceu morto,razão pela qual ela procurou a proteção de Deus pa-ra que o segundo vingasse. Fez promessa de torná-lo padre, se nascesse varão e sadio. O filho nasceusaudável e foi batizado com o nome de Bento de Al-buquerque Santiago, logo chamado Bentinho pelafamília. Dois anos após o nascimento do único filho,Pedro de Albuquerque foi eleito deputado e mudou-se para o Rio de Janeiro com a família, instalando-se numa casa assobradada na rua de Mata-cavalos,em cuja chácara, ao fundo, José Dias teve o seuquarto. Este se tornara um agregado querido e res-peitável, proferindo sempre pomposos superlativos.Com o tempo, revelou ao dono da casa que não eramédico. Tomara esse título para ajudar a propagandada nova escola médica, a homeopatia. Mentira emfavor da verdade. Pedro de Albuquerque não o des-pediu, e ele foi-se tornando cada vez mais aceitonaquela família abastada.

Quando Bentinho tinha 4 anos, seu pai faleceu.Dona Glória tomou a direção da casa e levou paramorar consigo dois parentes igualmente viúvos: o

seu irmão Cosme (advogado gordo e bonachão) e aprima Justina (mulher magra e maledicente). Era acasa dos três viúvos.

FFoorrmmaaççããoo ddee BBeennttiinnhhooEmbora modesta e bondosa, Dona Glória era

matriarca de poderes. Tendo convertido a herança do marido em apólices, casas de aluguel e escravos,todos em casa obedeciam às vontades dela. JoséDias lia romances para ela, alterando a voz segundoas situações do texto.

Sendo muito religiosa e temente a Deus, divul-gou a parentes e familiares a promessa de entregar ofilho à Igreja, receosa de que, sem testemunhas, nãocumprisse o prometido. Apesar disso, temia o diaem que haveria de se separar dele, a quem dispen-sava todo o mimo e atenção. Assim, para se afastaro mais tarde possível de Bentinho, contratou PadreCabral, que sempre jogava gamão com tio Cosme,para que ensinasse o menino em casa.

Ao lado da casa de Dona Glória, morava a famí-lia Pádua, formada pelo casal João e Fortunata, cu-ja filha, Capitolina — chamada Capitu —, era um anomais nova que Bentinho. Sendo pobres e vizinhos,Dona Glória os protegera de uma enchente e tinha,desde então, uma certa ascendência moral sobre eles.Mandara rasgar uma porta no muro que dividia ascasas, de modo a facilitar as relações de Bentinho eCapitu, que, desde tenra idade, foram criados emestreita união, quase como irmãos.

Como não freqüentasse escola nem saísse à rua,Bentinho foi criado entre os adultos das duas casas,brincando exclusivamente com Capitu. Simulavammissas, nas quais a hóstia era sempre um doce ar-ranjado por Bentinho. Bem cedo a menina se acos-tumou aos privilégios do vizinho rico e logo passoua comandar-lhe a vontade, o que em nada diminuíaa sua íntima afeição. Os pais de Capitu, sentindo es-pontaneamente as conveniências daquela amizade,favoreciam a união dos meninos.

AA rreevveellaaççããoo ddee JJoosséé DDiiaassNuma tarde de 1857, quando Bentinho estava

com 15 anos e Capitu com 14, José Dias lembrou àDona Glória que já era tempo de enviar o filho ao se-minário, porque senão poderia haver uma grandedificuldade. Explicou depois que a dificuldade con-sistia em que Bentinho e Capitu ultimamente anda-vam de namoro pelos cantos; sempre juntos, emsegredinhos. Bentinho, escondido atrás da porta dasala em que se dava a conversa, ficou estarrecido aoouvir a denúncia de José Dias. Dona Glória, perce-bendo a iminência da separação, pôs-se a chorar.Bentinho saiu dali absorto com a revelação. De fato,ele amava Capitu, mas ainda não se dera conta dis-so. Inebriado pelo conhecimento de seu novo esta-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 67 • ANGLO VESTIBULARES

4 Para noções sistemáticas e seguras sobre Luciano e Macha-do, consultar REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia:Machado de Assis, a Sátira Menipéia e a Tradição luciânica.Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

Page 4: Dom Casmurro

do, foi levado pelas pernas à casa da vizinha. Lá, en-controu Capitu escrevendo no muro, com um pre-go, o seu nome junto ao dela. Depois de olharem ainscrição, ambos, surpresos, foram dominados pelamesma e intensa emoção. Calados, deram-se as mãos.Os olhos procuraram-se e permaneceram enfiadosuns nos outros.

Somente a chegada do pai de Capitu pôde tirá-los daquela mútua e intensa contemplação. Benti-nho atrapalhou-se todo. Capitu dissimulou o ocorrido,e o pai nada percebeu ou fingiu não perceber.

OO ppllaannoo ddee CCaappiittuuRestabelecidos à solidão, Bentinho contou à na-

morada o perigo do seminário. Capitu irritou-se coma notícia, perdeu o equilíbrio e acabou xingando Do-na Glória. Mas, depois, reassumiu o controle de simesma e traçou um plano para evitar a separação.Bentinho deveria fazer ver a José Dias quem seria ofuturo dono da casa. A partir daí, o agregado, se qui-sesse continuar em seu posto, deveria tomar o parti-do de Bentinho, no sentido de dissuadir a mãe documprimento da promessa. Em vez de padre, seriaadvogado por São Paulo.

Bentinho procurou José Dias e falou-lhe confor-me a orientação de Capitu. O agregado achou exce-lente a idéia de estudar leis, pois viu nela a hipótesede acompanhar o menino à Europa. Prometeu inter-ceder em seu favor. Nessa mesma conversa, travadano Passeio Público, José Dias procurou rebaixar ovizinho Pádua, dizendo que os olhos da filha deleeram obra do diabo. Em seguida, criou a seguinteimagem para classificar os mesmos olhos: São as-sim de cigana oblíqua e dissimulada.

Passados alguns dias do ajuste com o agregado,Bentinho quis espiar bem dentro dos olhos de Ca-pitu, a ver se a imagem do outro conferia com o real.Mas o que encontrou foi um fluido misterioso e enér-gico, uma força que arrastava para dentro, como avaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.Quando tornou cá fora, isto é, quando se livrou doencanto dos olhos da amiga, preferiu classificá-loscomo olhos de ressaca, sem contudo jamais esque-cer a imagem de José Dias.

Em seguida à vertigem provocada pelos olhosda namorada, Bentinho fê-la sentar de costas parasi e de frente para o espelho (um espelhinho bara-to). Queria pentear-lhe os longos cabelos escuros.Depois que ele os penteou, Capitu jogou bruscamen-te a cabeça para trás. Permaneceu nessa posição atéque Bentinho a beijasse na boca.

Nesse dia, Bentinho não teve aula, porque Pa-dre Cabral fora nomeado protonotário apostólico5

e, para comemorar o título, deu folga ao menino.Bentinho voltou para a casa de Capitu e tentou rou-bar outro beijo dela. Dessa vez, ela recusou. Quan-do, depois de insistir muito, Bentinho desistiu daintenção, ela própria o beijou rapidamente.

À noite, o namorado inquietou-se tanto que re-solveu atalhar o trabalho de dissuasão iniciado por José Dias. Conseguindo estar só com a mãe, confes-sou que não tinha vocação para padre e pediu-lheque desfizesse a promessa. Embora no íntimo eladesejasse o mesmo que o filho, Dona Glória não aten-deu ao pedido e fixou o prazo de sua entrada noseminário, que seria dentro de dois ou três meses.

OO jjuurraammeennttoo ddoo ppooççooNo dia seguinte, custou a Capitu conter a cólera

diante do prazo estipulado por Dona Glória. Ao per-ceber que Bentinho não se oporia à vontade damãe, lançou-lhe na cara que ele ainda haveria de ba-tizar o seu primeiro filho com outro homem.

A briga se dera à beira do poço, no quintal da vi-zinha. Minutos depois, ela encaminhou a paz e am-bos acabaram por jurar que jamais se casariam se-não um com o outro.

NNoo sseemmiinnáárriiooMeses depois, Bentinho foi para o seminário de

São José, com a condição de abandoná-lo no fim deum ano, caso a vocação eclesiástica não se revelasseespontânea. Tais termos foram negociados entreDona Glória, Padre Cabral e José Dias, que ainda acalentava o projeto de acompanhar o patrãozinhoem viagem de estudos à Europa.

O seminarista visitava a família todo fim de se-mana, mas, durante sua ausência, Capitu entrou naintimidade de Dona Glória, que cedo passou a tra-tá-la por filha e cumulá-la de presentes e afeição.Nessas ocasiões, os olhos de Capitu não eram oblí-quos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos.

No seminário, Bentinho teve impulsos literáriose sexuais, mas nenhuma inclinação para a vida reli-giosa. Teve sobretudo ataques de ciúmes, provoca-dos pela insídia de José Dias, que se referia a Ca-pitu como uma leviana, sempre à cata de algum pe-ralta que se casasse com ela. Os ciúmes levantadospelo agregado provocavam pesadelos e inseguran-ças no seminarista sem vocação. A intenção de JoséDias era livrar Bentinho do seminário e conduzi-lopara a Europa. Possuía um antigo sonho de rever oVelho Mundo.

Havia no seminário um outro jovem sem ne-nhuma inclinação religiosa, mas com verdadeirapaixão pelo comércio. Chamava-se Ezequiel deSousa Escobar. Viera de Curitiba. Identificou-se lo-go com Bentinho, e ambos se tornaram amigos econfidentes.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 68 • ANGLO VESTIBULARES

5 Protonotário apostólico: dignatário da Cúria romana, encarre-gado do registro e da expedição dos atos pontificiais.

Page 5: Dom Casmurro

Um dia, Dona Glória ficou doente, razão pela qualBentinho foi chamado a casa. Após o restabelecimentoda mãe, não tornou imediatamente ao seminário. Àsaída da missa em que fora agradecer a melhora damãe, esteve com Sancha, amiga de Capitu, cujo pai eraviúvo e se chamava Gurgel. Retornando a casa, Ben-tinho teve a boa surpresa da visita de Escobar, que,mais tarde, ficaria impressionado com a beleza de DonaGlória e também com o seu dinheiro. A sua fineza,porém, fê-lo querido de todos. A própria prima Justina,normalmente áspera, não teve do que reclamar.

Com o tempo, Dona Glória foi apreciando a uniãode Bentinho e Capitu. Num sábado, sugeriu ao filhoque a fosse ver à casa de Sancha, aonde fora acudir auma febre da amiga. Aí, Bentinho soube por Gurgelque Capitu era muito parecida com sua falecida espo-sa. Ressaltou que a semelhança, extensiva aos olhose ao gênio, era esquisita.

Já de volta, na Rua de Matacavalos, Bentinho foicomunicado da morte de Manduca, vizinho leprosocom quem mantivera, por cartas, uma polêmica so-bre a guerra da Criméia.

SSaaííddaa ddoo sseemmiinnáárriiooBentinho voltara ao seminário. Numa de suas

visitas ao menino, José Dias insinuou que ele deve-ria simular sintomas de tuberculose para que bus-cassem melhores ares na Europa. Dona Glória jánão escondia o desejo de libertar o filho do seminá-rio, só não achava como liquidar a promessa. Esco-bar sugeriu que se financiasse a ordenação de ummoço pobre. A promessa se cumpriria sem prejuízode Bentinho. Assim foi feito. Ambos deixaram jun-tos o seminário de São José.

Escobar entrou para o comércio, tendo tomadodinheiro emprestado com Dona Glória. Murmurou-se que desejara casar-se com a viúva. Depois, ca-sou-se com Sancha, a amiga de Capitu.

Aos 22 anos, Bentinho era bacharel em Direitopor São Paulo. Tornando ao Rio, casou-se com Ca-pitu em 1865. Foram residir no bairro da Glória.

Depois de casadas, Sancha e Capitu continua-ram a antiga amizade. Da mesma forma, com Ben-tinho e Escobar, cuja filha se chamou Capitu, em ho-menagem à esposa do amigo do seminário. A inti-midade dos casais tornou-se intensa. Ambos os ma-ridos revelavam algum ciúme das esposas.

Bentinho e Capitu viviam felizes, embora lamen-tassem a falta de um filho. Ambos rezavam com fé pe-lo complemento da família. A filhinha de Escobar játagarelava e brincava, quando nasceu o filho de Ben-tinho, batizado com o nome de Ezequiel, em homena-gem a Escobar (lembre-se que o nome completo desteera Ezequiel de Sousa Escobar). A essa altura, os paisde Capitu já haviam falecido, e tio Cosme não durariamuito.

Escobar deixou Andaraí e mudou-se para o Fla-mengo, mais próximo do amigo. Ambos faziam gostoque os filhos crescessem juntos, como Bento e Capito-lina.

À proporção que Ezequiel crescia, revelava o há-bito de imitar as pessoas. Fazia-o sobretudo em re-lação a José Dias, que também freqüentava a casa doDr. Bento Santiago. Um pouco mais, e este come-çou a ver no filho as feições do amigo Escobar. Sur-giram dúvidas sobre dúvidas. Tornou-se um ho-mem desconfiado. Para ele, a mãe passou a evitar oconvívio da nora e do neto. Uma noite, supôs queSancha o desejara sexualmente, expressando-secom os olhos e apertos de mãos. Na manhã seguin-te, Escobar morreu no mar, onde costumava nadar.Na despedida do corpo, supôs que Capitu chorara emirara o defunto de modo especial. Concluiu daíque ela fora amante do amigo e que Ezequiel era,definitivamente, filho do outro e não seu.

Apesar da convicção, teve de proferir um dis-curso à beira da cova de Escobar. Depois, tomou adecisão de suicidar-se, logo transformada em inten-ção de matar Capitu. Ocorreu-lhe também a idéiade assassinar o filho. Por fim, apenas negou explici-tamente que era pai de Ezequiel e separou-se deCapitu, que partiu com o filho para a Suíça, ondemorreu tempos depois. Ezequiel tornou ao Rio pa-ra conhecer o suposto pai. Antes disso, José Diasexpirara, soltando um último superlativo. Após amorte de prima Justina, Ezequiel, que era arqueólo-go, embarcou para a Palestina e lá foi abatido poruma febre mortal. Dona Glória faleceu antes de Jo-sé Dias, e Bentinho fez gravar em seu túmulo ape-nas duas palavras: uma santa.

AA vveellhhiiccee ddee BBeennttooSobrevivente único de uma razoável constelação

de pessoas, Bento Santiago habituou-se à solidão.Quanto a amores, limitou-se, depois de viúvo, a re-lações superficiais com prostitutas. Tornou-se um ho-mem solitário e recluso, metido consigo e calado,razão pela qual os vizinhos o apelidaram Dom Cas-murro. Quando passava dos 50, Bento mandouconstruir no Engenho Novo uma casa igual àquelaem que se criara na Rua de Matacavalos, obedecendoa detalhes de pintura, número e disposição de cômo-dos. O seu propósito, ao reconstituir a casa, era res-taurar na velhice a adolescência. Não conseguiu.Em face disso, tentou recompor a vida mesma, me-diante a narrativa que acabamos de resumir.

EELLEEMMEENNTTOOSS CCOOMMPPOOSSIITTIIVVOOSS

FFáábbuullaaO resumo que acabamos de apresentar contém

a fábula de Dom Casmurro, quer dizer, a síntese or-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 69 • ANGLO VESTIBULARES

Page 6: Dom Casmurro

denada dos acontecimentos em sua ordem cronoló-gica. Temos ali o plano geral dos eventos e das causasque determinam a ação ou enredo do romance. Em-bora muito importante, o enredo não é o mais impor-tante em Dom Casmurro, como de resto em nenhumdos cinco romances maduros de Machado de Assis.Apesar disso, a compreensão da fábula de qualquerromance contribui para tornar mais claros e apreen-síveis os elementos mais importantes na composi-ção de uma obra de arte literária.

Mas, então, quais os elementos compositivosmais importantes que a fábula em Dom Casmurro?

Muitos outros elementos têm mais importânciaque a fábula na composição de Dom Casmurro. Se-gue a relação desses elementos, na ordem em queserão estudados:

• o modo narrativo do romance;• foco narrativo (ponto de vista);• intriga;• estilo;• cosmovisão (visão de mundo);• paródia e intertextualidade (estilo);• personagens;• espaço do romance;• tempo do romance.

OO mmooddoo nnaarrrraattiivvooDom Casmurro é a autobiografia de Bento de Al-

buquerque Santiago — advogado abastado, viúvosolitário e cinqüentão circunspecto. Mais propria-mente, trata-se de uma pseudo-autobiografia, pois tal personagem é fictícia; jamais existiu senãona imaginação de Machado de Assis. Em outros ter-mos: Dom Casmurro apresenta uma personagem nacondição de autor de um livro que, na verdade, foiescrito por Machado de Assis.

Em Dom Casmurro, a dramatização do ato de nar-rar é um dos componentes essenciais do enredo eda vida do protagonista. Tal dramatização consisteno seguinte: em vez de simplesmente escrever umahistória, Machado de Assis inventou uma persona-gem (um pseudo-autor) de quem nos é dado ver oato de escrever o seu próprio romance.

Com efeito, ao abrirmos o livro, não nos depara-mos com o início de uma história propriamente dita,mas com as preocupações prévias de um homemprestes a iniciar o relato de sua vida. Tais preocupa-ções compõem os dois primeiros capítulos e consti-tuem-se numa espécie de preâmbulo, em que seexplicam o título e a finalidade do romance. O títulodecorre do apelido do personagem-narrador oupseudo-autor, considerado muito “casmurro” (ensi-mesmado) pelos vizinhos e amigos; a finalidade con-siste na reconstituição de sua própria vida.

Dom Casmurro pode também ser entendido co-mo uma auto-análise de Bento Santiago, sobrevi-vente único de uma história de amor com finalamargo: pois Bento julga-se traído pela esposa (Ca-pitu) e pelo melhor amigo (Escobar), razão pela qual éum homem emocionalmente mutilado. Vários anosapós a morte da esposa e seu suposto amante, deci-de escrever o livro para restaurar no presente oequilíbrio perdido no passado. Pretende exorcizaros demônios da memória e provar definitivamente,perante si e a posteridade, que não errou ao aban-donar a mulher e negar paternidade a Ezequiel.

Como o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) em sua longa obra, Machado de Assis, emDom Casmurro, estará sobretudo preocupado em for-mular um conceito sobre a vida a partir da busca dotempo perdido, trabalho em que a memória afeti-va procura restaurar as sensações e impressões dopassado — determinante básica de nosso presente.

Barreto Filho, um intérprete importante da obramachadiana, assim descreve a estrutura de DomCasmurro: “O livro é feito de pequenas cenas e inci-dentes, numa urdidura cerrada, obedecendo muitoà estrutura de uma peça teatral, na entrada e saídadas personagens, nos diálogos curtos e breves. Masseria uma peça à qual se incorporou o trabalho dosbastidores, e as indicações da movimentação cêni-ca. Isso lhe dá um aspecto único. É um gênero no-vo, estritamente machadiano”.6

FFooccoo nnaarrrraattiivvooConcebido como continuidade das experiências

estilísticas das Memórias Póstumas de Brás Cubas(1881), Dom Casmurro retoma o foco narrativo emprimeira pessoa, abandonado temporariamente porMachado de Assis em Quincas Borba (1891).

O ponto de vista de Bento Santiago — protago-nista e narrador — domina tudo na narrativa. Atémesmo as demais personagens não passam de pro-jeções de sua alma. São lembranças de seu passado,que vão ressurgindo do subsolo da memória à medi-da que ele procura a reconstrução de si mesmo.Bento não conta objetivamente uma tragédia, ape-nas apresenta sua versão da vida que levara em fa-mília. E é até provável que essa sua visão pessoal eíntima das relações com os outros tenha causado adesgraça que resultou de seu amor por Capitu.

Bento Santiago fala dos outros como condiçãopara falar de si. O encontro consigo mesmo depen-de de sua compreensão das pessoas com quem con-viveu, principalmente Capitu. Por isso esmerou-semuito em traçar para o mundo o perfil íntimo da

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 70 • ANGLO VESTIBULARES

6 BARRETO FILHO. Introdução a Machado de Assis. Rio deJaneiro, Agir, 1947 p. 190.

Page 7: Dom Casmurro

própria esposa. Procurou reconstituí-la com o propó-sito de entendê-la.

Resulta daí que Dom Casmurro é também um“perfil feminino”, como os de José de Alencar7, sóque agora traçado pelo próprio marido. Ele foi sem-pre ciumento e inseguro e, por isso mesmo, jamaisconseguiu captar inteiramente a essência de suamulher. Vem daí que a ambigüidade dessa podero-sa personagem machadiana dependa da maneiraemocionada com que o marido a vê. Além disso, sen-do um retrato moral bem feito, isto é, que procurainsinuar a complexidade de um modo de ser, o per-fil de Capitu jamais poderia ser preciso e unívoco.

AA aaccuussaaççããoo ddee BBeennttiinnhhooBento Santiago conviveu intimamente, em graus

diferentes, apenas com duas mulheres: Dona Glória(a mãe) e Capitu (a esposa). Na verdade, foi substan-cialmente dominado por elas, e isso se percebe acada linha de seu relato. Mas sua reação em face daimagem póstuma de cada uma não é a mesma. Aocontrário, é muito diferente.

Ao morrer Dona Glória, o filho preocupou-seem preservar e divulgar a imagem querida da mãe,fazendo gravar-lhe no túmulo só duas palavras: “umasanta” (ainda que para isso tivesse de influir junto aovigário responsável pelo Cemitério de São JoãoBatista).

Quanto à esposa, o livro inteiro busca demons-trar a sua insídia e infidelidade. Pois isso é o queBentinho alcançou entender de Capitu. Mas não é di-fícil perceber que o desenvolvimento de Dom Cas-murro possui alguns traços formais de “acusação ju-rídica” previamente assumida. Em outros termos:Bento simula buscar a verdade com seu discurso,quando, ao contrário, ela já a possui desde o princí-pio. Assim, o texto se inspira, de fato, num precon-ceito disfarçado, o que é extremamente fecundo co-mo motivação literária, pois transforma o narradornum ser mais complexo, que às vezes é omisso, ou-tras reticente, mas que se diz sempre sincero.8

O fato de Bentinho procurar disfarçar o precon-ceito contra Capitu é um dos índices de sua condi-ção de narrador problemático. Com efeito, ele é da-quele tipo de pessoa que sempre afirma o contráriodo que sente. Em outras palavras, trata-se de umindivíduo irônico e enganoso, cuja expressão produzum texto insinuante e ardiloso.

OO pprroobblleemmaa ddoo ccoonnhheecciimmeennttooO que acabamos de dizer deixa claro que o em-

penho de Bento em acusar não deixa senão uma sé-rie de dúvidas quanto a Capitu e outro tanto de cer-tezas sobre si mesmo.

Na infância e juventude, Bento foi um meninodócil, sempre inclinado a agir pela cabeça dos ou-tros, tendo inclusive entrado para o seminário con-tra sua vontade. Na velhice, tornou-se um cético,com a mania das insinuações, reticências e ironiasardilosas. Além de esquecido e emotivamente pre-judicado, Bento faz questão explícita de ser omissoem seu relato.

No capítulo 59 (“Convivas de boa memória”) desua narrativa, exalta os livros lacunares, sem signifi-cado único e autoritário. Os bons livros seriam aque-les cuja conclusão decorre também da imaginaçãointerpretativa do leitor. Com efeito, esse capítuloinduz o entendimento de Dom Casmurro como umaobra aberta, dentro da tradição luciânica. A tradiçãoluciânica é, vimos, aquela inaugurada por Lucianode Samósata, cuja essência é a recusa do discursotradicional e de um só significado.

No capítulo 68 de seu relato (“Adiemos a virtu-de”), o Dr. Bento Santiago afirma:

Ora, há um só modo de escrever a própria essên-cia, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à me-dida que me vai lembrando e convindo à construçãoou reconstrução de mim mesmo.

O trecho evidencia que escrever é conhecer-se.E essa é a razão pela qual Bento escreve.

Assim, ao relatar que tomara a drástica decisãode separar-se de Capitu (cap. 140, “Volta da igreja”),Bento pondera:

Acaso haveria em mim um homem novo, um queaparecia agora, desde que impressões novas e forteso descobriam? Nesse caso era um homem apenasencoberto.

Nessa passagem, Bento revela-se um pouco maisque na anterior, sobretudo quando afirma que im-pressões novas é que o levaram a consolidar o conhe-cimento de si e de Capitu. Vem daí uma pista impor-tante para o entendimento de Dom Casmurro: trata-se, efetivamente, de um livro que consagra a impres-são como forma de conhecimento, razão pela qualdeve, ao menos em parte, ser associado ao Impressio-nismo — tomado o termo aqui no sentido daquele ti-po de processo imitativo que deforma a realidade porforça do subjetivismo do narrador.

Desse modo, além do problema do ciúme e datraição, Dom Casmurro coloca igualmente a questãoda dúvida entre o que conhecemos das pessoas e oque elas realmente são.9

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 71 • ANGLO VESTIBULARES

7 José de Alencar chama “perfil feminino” aos romances emque procura delinear caracteres de mulheres complicadas oucom problemas psicológicos, como o fez em Lucíola (1862) eSenhora (1875). Nesse sentido, Alencar foi um modesto pre-cursor de Machado de Assis.

8 Consultar SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos.São Paulo, Perspectiva, 1978. pp.29-48.

9 Consultar CANDIDO, Antonio. Vários Escritos, São Paulo,Duas Cidades, 1970. pp.25-6.

Page 8: Dom Casmurro

Era Capitu realmente do jeito que Bentinho a via?Isso jamais saberemos, porque dela só nos restamas impressões deixadas pelo marido — que dizserem a expressão da verdade. Lembre-se, porém,que muitas vezes as impressões de Bento se bara-lham com outras colhidas indiretamente, através depersonagens como José Dias e prima Justina, quedeclaradamente não gostavam de Capitu.

OO nnaarrrraaddoorr pprroobblleemmááttiiccooConclui-se do que ficou dito acima que o advo-

gado e ex-seminarista Bento é um narrador proble-mático. Problemático em duplo sentido: como enti-dade psicológica (um homem emotivamente mutila-do) e como foco narrativo (fala sobre algo que nãoconhece bem).

Ao escolher um narrador problemático para DomCasmurro, Machado de Assis descobriu a chave paraa densidade psicológica do romance e também para oseu inesgotável poder de sugestão. Tal se deve ao fatode que um ser problemático apresenta, quase sempre,maiores surpresas e incógnitas em sua expressão.

Assim, através de Bento Santiago, Machado deAssis: a) problematiza a noção de romance conven-cional, pois o narrador não é um contador de histó-rias e sim um advogado que escreve por motivospsicológicos; b) questiona a noção de verdade abso-luta, visto que jamais saberemos se Capitu traiu ounão o marido; c) produz um dos mais belos textosda literatura americana, sobretudo pela capacidadede o livro suportar sempre novas e diferentes inter-pretações, o que se deve ao fato de ser uma obraaberta, isto é, aquela cuja estrutura deixa o essencialdo significado sob a sombra de uma dúvida.

IINNTTRRIIGGAA

FFllaasshhbbaacckkUma das posturas mais recomendáveis para o

entendimento literário de romances como Dom Cas-murro é a correta percepção da intriga ou trama, queconsiste na maneira pela qual se apresentam os ele-mentos da fábula. A trama ou intriga é a ordem ado-tada pelo autor na apresentação dos eventos queformam a fábula. Em outros termos: a intriga é o mo-do pelo qual o artista nos dá a conhecer as unidadesmínimas do enredo.

Nesse sentido, convém destacar que Dom Cas-murro começa pelo fim da história, isto é, conhece-seprimeiro a solidão trágica do viúvo Bento (dois capí-tulos iniciais), para depois se tomar conhecimentodas causas e motivos que o levaram a semelhanteestado. Tais causas e motivos são toda a história do li-vro. Isso quer dizer que a narrativa de Dom Casmurroé apresentada em flashback. Em outros termos: o nar-

rador interrompe a seqüência de acontecimentos pre-sentes para relatar o que sucedeu antes do ponto emque iniciou. O passado das personagens secundárias,como os pais de Capitu, os pais e os familiares deBentinho (inclusive José Dias), é igualmente apresen-tado em forma de flashback.

MMeettaalliinngguuaaggeemmAinda no que diz respeito ao modo de apresen-

ta-ção dos eventos em Dom Casmurro, convém des-tacar também que a exposição da fábula, quer dizer,a escritura do livro que se lê, faz parte da própriafábula, porque é uma microsseqüência do enredo.Com isso, Machado de Assis adota uma forma radi-cal de enfatizar a função metalingüística da comuni-cação verbal. Esse tipo de dramatização do ato denarrar pode ser exemplificado pelo capítulo 64 deDom Casmurro (“Uma idéia e um escrúpulo”), trans-crito adiante.

DDrraammaattiizzaaççããoo ddoo nnaarrrraaddoorrVejamos a posição desse capítulo no conjunto do

romance. No capítulo anterior, Bentinho encontra-se no seminário, recebendo visita de José Dias. Naconversa que mantêm, o seminarista mostra-se an-sioso por saber notícias da vizinha. O agregado fin-ge não perceber o interesse do menino por Capitu efala mal dela, chamando-a tontinha, sempre à espe-ra de algum peralta da vizinhança que case com ela.Nasce daí o primeiro lance de ciúme em Bentinho.O capítulo intitula-se precisamente “Uma ponta deIago”. Iago é personagem da célebre tragédia Otelo,de Shakespeare. Tal personagem desperta ciúmesinfundados em Otelo com relação à sua amada,Desdêmona. Ora, o título do capítulo 63 de DomCasmurro associa José Dias a Iago, donde se con-clui que suas notícias sobre o comportamento deCapitu são falsas, e os ciúmes de Bentinho, igualmen-te infundados.

Mas, infundados ou não, à noite Bentinho temum sonho, que é fundamental para o significado ge-ral do romance.10 Instigado pela insídia de JoséDias, sonha que se colocou à espreita dos peraltas davizinhança de Matacavalos. Um deles conversava àjanela com Capitu. Este fora levar o resultado da lo-teria ao pai dela e logo sumira no sonho. A sós comCapitu, Bentinho segura-lhe as mãos e espera um bei-jo. Antes que o beijo se concretize, Bentinho acordasolitário no dormitório do seminário. Muito necessi-tado daquele beijo, o seminarista esforça-se por dor-mir de novo e reatar o sonho truncado.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 72 • ANGLO VESTIBULARES

10 Este sonho é importante porque revela que o inconsciente deBentinho já está dominado pelo ciúme. Mais adiante, o ciú-me virá à consciência.

Page 9: Dom Casmurro

EESSTTIILLOO

OO pprroocceeddiimmeennttoo ddiiggrreessssiivvoo ((eexxeemmpplloo))Aquele é o conteúdo do capítulo 63, que serve de

base para a reflexão (digressão) irônica do capítuloseguinte, “Uma idéia e um escrúpulo”:

Relendo o capítulo passado, acode-me uma idéiae um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrevera idéia, não a havendo mais banal na terra, posto quedaquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dátodos os dias e todos os meses. Deixei o manuscrito,e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Enge-nho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, éreprodução da minha antiga casa de Matacavalos.Outrossim, como te disse no capítulo II, o meu fim emimitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o quealiás não alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele so-nho do seminário, por mais que tentasse dormir edormisse. Donde concluo que um dos ofícios do ho-mem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se con-tinua pela noite velha o sonho truncado da noite mo-ça. Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôraqui, e só provisoriamente a escrevo.

Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagarda noite por que razão os sonhos hão de ser assim tãotênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ouvoltar de corpo, e não continuam mais. A noite não merespondeu logo. Estava deliciosamente bela, os mor-ros palejavam11 de luar e o espaço morria de silêncio.Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já nãopertencem à sua jurisdição. Quando eles moravam nailha que Luciano12 lhes deu, onde ela tinha o seu palá-cio, e donde os fazia sair com as suas caras de váriafeição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tem-pos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposen-tados, e os modernos moram no cérebro da pessoa.Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não po-deriam fazê-lo; a ilha dos Sonhos, como a dos Amo-res, como todas as ilhas de todos os mares, são agoraobjeto da ambição e da rivalidade da Europa e dosEstados Unidos.

Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo apolítica, e ainda menos a política internacional, fe-chei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir.Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros,filhos da memória ou da digestão; basta-me um sonoquieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizen-do o mais da minha história e suas pessoas.

CCoommeennttáárriioo àà ddiiggrreessssããoo ddoo ccaappííttuulloo 6644Nesse capítulo, Bento Santiago suspende a nar-

rativa de seu passado para se referir ao presente. É,

vimos um exemplo notável de dramatização do atode narrar, que implica o realce da função metalin-güística da comunicação verbal. A ironia e a elegân-cia insinuativa se fazem sentir em cada linha. O ca-pítulo consta de três parágrafos, dos quais comen-tamos alguns pontos essenciais.

§1. O narrador recapitula o motivo pelo qual re-construiu no Engenho Novo a casa de Matacavalos,que é o de atar as duas pontas da vida. Fracassou. Areconstrução da casa é uma metáfora da reconsti-tuição da própria vida, que se dá mediante a escritu-ra do livro autobiográfico. Se a reconstrução da casanão atingiu o seu objetivo, escrever o livro tambémnão ajudará Bento Santiago a encontrar a própria es-sência. Em seguida, o narrador compara o fracassoda reconstrução da casa com o da tentativa de reataro sonho truncado no seminário. Por fim, expõe aidéia que hesitava expor no começo, por julgá-la ba-nal, tão banal quanto o surgimento, todos os dias, dosol e da lua: uma das funções do homem é se esfor-çar por não deixar escapar os sonhos. É o que Ben-tinho fez na solidão do seminário, perdeu uma noitede sono na perseguição de um sonho. Trata-se de umparágrafo de fina ironia, porque o narrador chamade banal uma idéia que considera essencial.

§2. O narrador suspende a redação do capítulopara dialogar com a noite. Reproduz o diálogo quemanteve com ela através do discurso indireto. Ten-do-a interrogado sobre a fragilidade dos sonhos, a facilidade com que se rompem e não se cumprem, anoite respondeu que não sabia mais deles. Perderao controle sobre os sonhos desde que a modernapsicologia os explica como reações cerebrais, rela-cionados com o passado e as condições físicas dosindivíduos. A noite sabia deles somente na Antigüi-dade, quando a imaginação literária de homens co-mo Luciano de Samósata atribuía-lhe o poder dearmazenar todos os sonhos humanos num palácio,localizado na ilha dos Sonhos, de onde os soltavasegundo as necessidades do sonhador. Mas a ilhados Sonhos deixou de existir, porque a Europa e osEstados Unidos desejam todas as ilhas para si. Oparágrafo alude também aos cantos IX e X de OsLusíadas, em que se descreve outra ilha de igual en-canto, a dos Amores, dirigida por Vênus.

§3. Algumas noções desse parágrafo comple-tam premissas do anterior, como a idéia da guerradas Filipinas (ou hispano-americana), travada nasegunda metade do século XIX entre a Espanha eos Estados Unidos. Descoberto em 1521 por Fernãode Magalhães, já em 1571 o arquipélago das Filipi-nas era dominado pelos espanhóis. Trata-se de umconjunto de cerca de 7 mil ilhas, cujo nome deriva deFelipe II, rei da Espanha. Os Estados Unidos con-trolaram as Filipinas de 1858 até 1934, ano de suaindependência. Ao término do parágrafo anterior,Bento Santiago ridicularizou o jogo dos imperialis-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 73 • ANGLO VESTIBULARES

11 Palejavam: empalideciam.12 Luciano: Luciano de Samósata.

Page 10: Dom Casmurro

mos europeu e americano. Mas tal foi dito por ironia,pois, como na abertura do capítulo, ele diz uma coisapela afirmação do contrário, isto é, Bento afirma quenão se interessa por política internacional, mas dei-xa clara sua repulsa pelos imperialismos interconti-nentais. Contudo, a idéia mais importante desse pa-rágrafo é a de que a velhice não carece tanto de so-nhos quanto a adolescência. No seminário, Bentinhoperdeu uma noite inteira de sono na busca de um so-nho; agora, no Engenho Novo, o cinqüentão já nãoos deseja — nem sob a forma antiga e encantada deLuciano, nem sob a forma fisiológica da psicologiamoderna. Contenta-se com o sono. Ao cabo, o narra-dor promete que, na manhã seguinte, abandonará oespírito digressivo daquele capítulo e retomará o fiolinear de sua história.

OO pprroocceeddiimmeennttoo ddiiggrreessssiivvoo ((eexxpplliiccaaççããoo))O capítulo 64 é um desvio do fio central da narra-

tiva. Embora a fábula de Dom Casmurro seja muitobem arquitetada, nem todos os seus capítulos narramacontecimentos. É muito freqüente a suspensão doseventos do enredo, exemplificada nesse capítulo.Tal s dá lugar à digressão machadiana, processocompositivo iniciado nas Memórias Póstumas de BrásCubas e retomado em Dom Casmurro e nos demaisromances maduros de Machado de Assis.

A digressão machadiana, ou o desvio para forados limites necessários da fábula, comporta sempreuma reflexão irônica sobre arte, história, política, fi-losofia ou sobre o próprio livro que está sendo es-crito. Com efeito, o autor-narrador Bento Santiagosuspende com freqüência o fluxo narrativo para dis-correr sobre inúmeros assuntos, dos quais destaca-mos alguns, com a indicação de alguns capítulos emque ocorrem:

• discussão e exposição do método adotado no li-vro (cap. 59, “Convivas de boa memória”);

• comparação de assuntos da obra com outros es-tranhos a ela (cap. 17, “Os vermes”);

• discussão de opiniões ou levantamento de hipó-teses sobre uma possível reação do leitor em facede sua vida e de sua obra (cap. 119, “Não faça is-so, querida!”);

• composição de breves histórias ou apólogos para-lelos à ação central do livro (cap. 9, “A ópera”);

• esboços e perfis psicológicos de personagensalheias à fabula (cap. 127, “O barbeiro”).

Digressões dessa espécie tornam ziguezaguean-te a estrutura de Dom Casmurro, porque o texto oraconta a história, ora tece comentários paralelos a ela.Com efeito, o estilo desse livro baseia-se na alternân-cia de seqüências narrativas (a vida de Bentinho eCapitu) com seqüências digressivas (idéias do viúvoBento). E as seqüências digressivas são tão impor-tantes quanto as seqüências narrativas. Sendo assim,

a melhor leitura de Dom Casmurro será aquela quesouber estabelecer a perfeita relação entre os dois ti-pos de seqüências. Acrescente-se, ainda, que o con-teúdo das digressões funciona sempre como umsuporte teórico dos eventos narrados, ou contém umaconclusão conceitual extraída deles.

CCOOSSMMOOVVIISSÃÃOO

PPeessssiimmiissmmoo ee hhuummoorr ddiiggrreessssiivvoossComo toda digressão bem caracterizada, o ca-

pítulo 9 de Dom Casmurro, “A ópera”, representa umaruptura na ordem factual do romance. Tal rupturadeve ser entendida como uma suspensão estratégicano andamento da narrativa, com o propósito de apre-sentar uma alegoria ou apólogo que suporte filoso-ficamente todo o romance. Trata-se, portanto, de umcapítulo doutrinal, que contém a visão de mundo se-gundo a qual Bento interpreta as pessoas e a vida.

Tal cosmovisão é pessimista, pois entende co-mo causa das ações humanas apenas a vontade pes-soal e o interesse, nunca o amor ou o desprendi-mento. Trata-se de uma descrença na bondade doshomens, também chamada ceticismo. De um mo-do geral, essa é a posição filosófica de Machado deAssis em face do mundo. Mas ele a transfere a Ben-to Santiago com muita verossimilhança ficcional,porque o pessimismo ressentido dessa personagemdecorre do desencontro amoroso que experimentouna maturidade.

Na ficção machadiana, a idéia do predomínio domal sobre o bem associa-se freqüentemente ao po-der da astúcia do demônio diante da ingenuidadede Deus. Tal pode ser comprovado não só no entre-cho do capítulo 9 de Dom Casmurro, mas também emcontos como “A igreja do diabo” (Histórias semData) e “Adão e Eva” (Várias Histórias). Trata-se detextos alegóricos, que apresentam a humanidadecomo invenção do demônio ou convertida por ele àssuas pregações.

O centro do capítulo 9 é a idéia de que a vida éperversa, e a perversão decorre das próprias forçascriadoras do universo. Essa idéia prende-se à ima-gem segundo a qual a vida é uma ópera, cujos pa-péis o destino impõe arbitrariamente aos homens.Marcolini, velho tenor13 desempregado e amigo deBento, era quem costumava dizer isso. Um dia expôsao viúvo a sua versão da origem dos males humanos.

Deus deixou incompleta uma ópera colossal,tendo escrito apenas a letra. Deu-se a queda de Lú-cifer, que roubou o libreto14 divino, indo musicá-lono inferno. Após concluir o trabalho, Lúcifer apre-sentou-se a Deus e pediu licença para encenar a

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 74 • ANGLO VESTIBULARES

13 Tenor: cantor de voz mais aguda numa ópera.14 Libreto: letra ou poema de uma ópera.

Page 11: Dom Casmurro

ópera. Insistiu tanto com o parceiro involuntário queo Senhor criou o planeta Terra para que servisse depalco ao espetáculo. Criou também todos os atorespara a encenação, que são os habitantes deste pla-neta, cujos gestos e intenções, embora escritos porDeus, são regidos por aquele maestro das trevas.

DDiiggrreessssããoo ee ppeessssiimmiissmmoo:: ““OO ddeellíírriioo”” ee““AA óóppeerraa””

Quem já leu as Memórias Póstumas de Brás Cu-bas há de se lembrar de que o seu capítulo 7 (“O delí-rio”) contém a doutrina do pessimismo irônico e re-lativista, que é a chave filosófica daquele romance.Pois então, “A ópera” exerce a mesma função naestrutura de Dom Casmurro. Tanto quanto “O delí-rio”, é um capítulo doutrinal, irônico e sob a formade digressão. Demanda igualmente leitura cuidadosa.

PPAARRÓÓDDIIAA EE IINNTTEERRTTEEXXTTUUAALLIIDDAADDEE

OO pprroocceeddiimmeennttoo ppaarróóddiiccooA matéria de Dom Casmurro aproxima-se do trá-

gico, pois relata a frustração de um grande amor,nascido espontaneamente na infância dos amantes.Mas essa quase tragédia não espanta o humor ma-chadiano. Ao contrário, torna-o necessário à estru-tura do romance, porque a história de Bentinho pro-cura demonstrar que a vida é traição. Mas, em facedisso, Machado de Assis prefere sorrir em vez dechorar. Assim, o seu pessimismo é sempre irônico ecarregado de humor. E uma das formas mais agudasde seu humor sofisticado é a paródia.

Paródia é a recriação burlesca de qualquer estru-tura (um poema, um estilo, uma filosofia, um ritual)consagrada pela tradição. No caso de Machado de As-sis, consubstancia-se freqüentemente na reescriturade textos famosos ou na imitação sarcástica de esti-los solenes. Machado parodia também sistemas filo-sóficos e acontecimentos históricos importantes.Ele foi o primeiro escritor a adotar sistematicamen-te o procedimento paródico em nossa literatura,traço visivelmente contemporâneo de seu estilo.

IInntteerrtteexxttuuaalliiddaaddeeParódia é também uma forma de estabelecer diá-

logo com os textos de tradição, isto é, uma forma deintertextualidade. Raro é o texto machadiano quenão alude a outros textos do passado. Em Dom Cas-murro, por exemplo, há três alusões importantes àIlíada de Homero, nos seguintes capítulos: 17, “Osvermes”; 61, “A vaca de Homero”; e 125, “Uma com-paração”.

Este último é particularmente interessante: as-sim como Príamo, rei de Tróia, teve que beijar amão de Aquiles, assassino de seu filho Heitor, Ben-

to teve que proferir um discurso elogioso à beira dacova do amante da mulher (seu comborço).

PPaarróóddiiaa ddee OOtteellooAo aceitar a teoria de que a vida é uma ópera, de-

fendida pelo tenor italiano Marcolini, o desencanta-do Bento Santiago não consegue mais se referir aosseus amores com Capitu senão como uma paródiaou imitação burlesca de uma encenação trágica.Com efeito, ele traça constantes paralelos entre suavida passada e o andamento do teatro clássico, so-bretudo da peça Otelo, por causa do tema do ciúmee da traição. Nesse sentido, convém reler com cui-dado os capítulos: 10, “Aceito a teoria”; 72, “Umareforma dramática”; 73, “O contra-regra”; e 135,“Otelo”.

PPaarróóddiiaa ddoo mmiittoo ddee AAbbrraaããoo ee IIssaaaaccA primeira parte da vida de Bentinho pode ser

resumida nos seguintes termos: antes mesmo de oconceber, uma mãe promete o filho a Deus (seriapadre, jamais casaria). Porém ele se apaixona poruma mulher justamente na ocasião de se iniciar nosserviços do Senhor (entrada para o seminário). Osamantes lutam por se manterem unidos. A mãe,obrigada em Deus e com o coração partido, deter-mina a separação de ambos. Entretanto a ação damulher que ama o filho predestinado (Capitu) con-segue anular a promessa e remover o sacrifício. Osamantes unem-se. A mãe fica feliz.

Pelo resumo da primeira parte da vida de Ben-tinho, pode-se concluir que sua história é uma espé-cie de paródia do mito de Abraão e Isaac, do VelhoTestamento: Deus pede a um fiel servidor o seu filhoem sacrifício. O servidor prepara-se para atender.Na hora de imolar o próprio filho, Deus suspende opedido. O pai é salvo de matar o filho amado.

PPaarróóddiiaa ee uunniivveerrssaalliissmmooO próprio autor-narrador Bento Santiago sugere

a correlação de sua história com o mito de Abraão eIsaac, no capítulo 80 de Dom Casmurro, chamado“Venhamos ao capítulo”.

A retomada desse mito bíblico ilustra o univer-salismo na obra de Machado de Assis. Tal univer-salismo consiste na investigação da estrutura dopensamento humano, isto é, sua ficção empenha-sena pesquisa de certas constantes transistóricas etransculturais de comportamento. No caso de DomCasmurro, Machado de Assis focaliza a tradição dosacrifício humano em favor de crenças religiosas(um arquétipo), que pode ser observada tanto emculturas politeístas, quanto no monoteísmo do Ve-lho Testamento e no cristianismo atual (a promessade Dona Glória).

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 75 • ANGLO VESTIBULARES

Page 12: Dom Casmurro

O universalismo destacado acima não indica queo pensamento machadiano seja metafísico, porqueele não parte de abstrações apriorísticas ou subjeti-vas. Ao contrário, o seu pensamento decorre da ob-servação objetiva e da análise irônica de estruturassocioculturais concretas — tanto do passado quantodo presente.

PPEERRSSOONNAAGGEENNSS

BBeennttiinnhhooA personagem mais complexa de Dom Casmur-

ro é Bento Santiago, que é ao mesmo tempo pseu-do-autor, narrador e personagem. Trata-se de umafigura um tanto esquizóide15: no passado, dividia-seentre a mãe e a namorada; na altura em que escreve olivro, divide-se entre o passado e o presente. Tantoacusa quanto louva a falecida esposa.

E quanto ao físico, sabemos algo de Bentinho?Nada, a não ser que era um pouquinho mais baixoque Capitu. Com o tempo, apanhou barba e cabelosbrancos. Quando voltou de São Paulo para o Rio fei-to advogado, sua mãe exclamou: Mano Cosme, é acara do pai, não é?

CCaappiittuuA maneira ambígua e parcial com que Bento re-

trata Capitu torna-a uma personagem densa, decomportamento insinuante e surpreendente. Trata-se de uma das personagens femininas mais instigan-tes da literatura brasileira. Entretanto, pouco se sa-be de seu físico. E o pouco que se sabe contémmuito das impressões do retratista, muito mais preo-cupado com a reconstituição do perfil moral da es-posa, isto é, com o seu modo de ser:

Todo eu era olhos e coração, um coração que destavez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tiraros olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte echeia, apertada em um vestido de chita, meio desbo-tado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com aspontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, narizreto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. Asmãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram cura-das16 com amor; não cheiravam a sabões finos nemáguas de toucador, mas com água do poço e sabãocomum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de du-raque17, rasos e velhos, a que ela mesma dera algunspontos.

(cap.13, “Capitu”)

A partir desses exíguos elementos físicos, Ma-chado de Assis extraiu a poderosa personalidade deCapitu. Agripino Grieco, crítico de tiradas bem-hu-moradas, afirmou que, do ponto de vista físico, Ca-pitu é descrita em linguagem de passaporte, realçan-do com isso a brevidade do traçado.

Entretanto, Machado concebeu imagens fortespara esboçar o perfil moral de Capitu. Escolheu omotivo dos olhos, por onde se capta a essência daspessoas. Dizem que os olhos são o espelho da alma.José Dias não gostava de Capitu; tinha ciúmes daatenção dada a ela na casa de Dona Glória. Por essarazão procurou influenciar Bentinho, dizendo-lheque os olhos da vizinha pobre eram de cigana oblí-qua e dissimulada. Ao classificá-la assim, isto é, co-mo ardilosa, maliciosa, sinuosa, astuciosa, fingida, hi-pócrita, José Dias nada mais pretendia que separaros dois adolescentes.

Sabemos que Bentinho foi conferir a descriçãode José Dias. Achou outra coisa: sentiu-se arrastadopor aqueles olhos, como se possuíssem a força dorefluxo das águas do mar. Por isso disse: são olhosde ressaca. Ressaca marítima, que, em sentido pró-prio, arrastará Escobar para a morte, no capítulo 121(“A catástrofe”).

Tanto Capitu quanto Bentinho são personagensesféricas, isto é, pertencem à tipologia de persona-gens cujos traços psicológicos não são apresenta-dos de uma só vez. A fisionomia moral (espiritual)dessas personagens vai-se formando aos poucos napercepção do leitor, à medida que agem ou se ex-pressam. São verdadeiros seres vivos. Dão a im-pressão de trazerem a vida para dentro do romance.Por isso surpreendem.

As grandes personagens esféricas de Machadode Assis quase nunca são descritas fisicamente. Umligeiro traçado físico, como aquele de Capitu, bastapara sugerir as vastidões do mundo interior. São se-res dotados de alma ou espiritualidade. Convencempela interioridade e não pelo brilho da aparência.

As personagens machadianas possuem densi-dade moral. Com isso, não se pretende exprimir juí-zo de valor, ou seja, não se cogita se são boas ou másdo ponto de vista ético. Pretende-se, apenas, realçarsua força ou densidade psicológica. Bentinho, porexemplo, é uma grande personagem, mas nem porisso possui unidade de caráter ou coerência. Nemsempre foi justo ou bondoso: a cena em que arrastaEzequiel para o internato (cap. 132, “O debuxo e ocolorido”) demonstra uma frieza muito próxima dacrueldade. Bento é, enfim, um ser fragmentado,roído pela dúvida e incerteza. Por isso faz tantaquestão de ostentar convicção. Entretanto, queenorme criação literária!

Sabemos que os nomes podem explicar a funçãodas personagens na trama e no significado do ro-mance. Nesse sentido, Bento não combina com Ca-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 76 • ANGLO VESTIBULARES

15 Esquizóide refere-se a esquizofrenia, cuja etimologia quer di-zer espírito dividido. É nesse sentido que aplicamos o termo,no de personalidade dividida. Em psiquiatria, o termo desig-na uma doença mais complexa.

16 Curadas: cuidadas.17 Duraque: tecido forte.

Page 13: Dom Casmurro

pitolina. Bento é nome cristão e quer dizer aben-çoado por Deus. Capitolina deriva de Capitólio, otemplo pagão dos romanos.

EEssccoobbaarrBentinho conheceu Escobar no seminário. Am-

bos se identificaram por não possuírem vocação ecle-siástica. A relação deles foi tão afetuosa que levou osdemais seminaristas a notar certos exageros de inti-midade física. Um dia, depois de um abraço no pátio,um padre os repreendeu assim: A modéstia não con-sente esses gestos excessivos; podem estimar-se commoderação. Como resposta, Escobar apertou a mãode Bento às escondidas (cap. 94, “Idéias aritméticas”).

Ficaram tão felizes ao se encontrarem pela pri-meira vez em Matacavalos, que Escobar esteve coma mão de Bento entre as suas cerca de cinco minu-tos (cap. 93, “Um amigo por um defunto”). O críticoBarreto Filho assinala que “o primeiro contato deEscobar com a família de Bentinho e com Capitucria uma atmosfera diferente. É como se houvesseocorrido a conjunção de astros maléficos”18. À des-pedida, quando Escobar tomou o ônibus, Bentinhoconfessa: Conservei-me à porta, a ver se , ao longe,ainda olharia para trás, mas não olhou (cap. 71, “Vi-sita de Escobar”).

Essas relações femininas entre os dois adoles-centes no tempo do seminário, que lembram a atmosfera de O Ateneu, de Raul Pompéia, talvez te-nham contribuído para a influência que Escobarexercerá sobre Bentinho para o resto da vida, inclu-sive depois do casamento. Convém lembrar, ainda,que o Dr. Bento tinha uma foto emoldurada do ami-go no seu escritório de trabalho, junto com a de Do-na Glória.

Embora meio nebulosa, Escobar é uma figura de-cidida. Gostava do comércio e dedicou-se com êxitoao negócio de café.

A narrativa de Bento insinua que ele tinha inte-resse na fortuna de Dona Glória (cap. 94, “Idéiasaritméticas”). Prima Justina espreitava nele o desejode se casar com a viúva de Matacavalos, apesar dagrande diferença de idade.

Depois de iniciar suas especulações com dinhei-ro emprestado pela mãe de Bento, Escobar disse,ao saldar a dívida: D. Glória é medrosa e não temambição (cap. 98, “Cinco anos”).

Escobar tinha muita habilidade intelectual, ten-do sido o responsável pelo casuísmo (jogo com re-gras) teológico que permitiu a Dona Glória livrar Ben-tinho do seminário, sem quebrar a promessa. Eleamava os números e fazia complicadas operações

aritméticas de cabeça, com incrível rapidez. No côm-puto geral, porém, Bento deixa-nos dele a imagemde um grande traidor, por abusar de sua confiançae possuir Capitu.

Bento já amava Capitu ao conhecer Escobar. Ape-sar disso, a impressão que este causou no semina-rista foi espantosa, como deixa ver a imagem literá-ria que provocou o velho Bento Santiago, ao comporo capítulo 56 de suas recordações, intitulado “Um se-minarista”:

A princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado naminha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavamquando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram maispousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde aporta da rua até ao fundo do quintal.

Escobar tornou-se símbolo de pessoa esperta ecalculista. Esse poder simbólico aproxima-o maisdo tipo ou personagem plana que da espécieesférica, apesar do mistério que sugere.

É possível que Machado de Assis tenha se ins-pirado no jesuíta espanhol Manuel da Costa Es-cobar para criar a sua personagem. Aquele jesuítatornou-se famoso no século XVIII pela astúcia emresolver casos difíceis de Direito Canônico, isto é, odireito que regula a disciplina da Igreja.

Numa crônica de 1883, Machado de Assis re-fere-se, sob o pseudônimo de Lélio, a uma intrincadaquestão entre irmandades religiosas, sobre a qualcomenta: Aí está o caso em que nem o mais fino Es-cobar era capaz de resolver...19

JJoosséé DDiiaassJosé Dias é o melhor e mais acabado exemplo

de personagem típica em Dom Casmurro. Os tiposgeralmente são personagens planas, mas José Diasapresenta uma ligeira curvatura rumo à esferici-dade, pois possuía alguma sutileza de caráter: E nãolhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fi-zesse vinham antes do cálculo que da índole.

José Dias era agregado em casa de Dona Glóriadesde os tempos em que ainda era vivo o deputado Pe-dro de Albuquerque Santiago, seu marido. Represen-ta as pessoas que viviam de favor junto a famíliasabastadas do Brasil imperial, mas que acabavaminfluindo em algumas decisões dessas famílias, como,de fato, acontece com José Dias em relação à famíliaSantiago. Após o casamento de Bentinho, dividia-seentre os jantares do advogado na Glória e os almoçosem Matacavalos. Era um charlatão arrependido (apre-sentara-se como médico homeopata sem o ser) e podeser tomado como um dos grandes parasitas que fre-qüentam abundantemente a obra machadiana.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 77 • ANGLO VESTIBULARES

18 BARRETO FILHO. op. cit,. p. 194.19 GOMES, Eugênio. O Enigma de Capitu: ensaio de interpre-

tação. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1967. p..116.

Page 14: Dom Casmurro

Sendo um tipo, José Dias pode também ser con-siderado uma personagem de costumes, na acep-ção que o crítico inglês setecentista Dr. Johnsonatribuía à expressão. Os traços da personagem decostumes são fixados de fora, isto é, pelo aspecto físi-co, e tendem para a caricatura. Com freqüência sãopersonagens pitorescas e engraçadas. Possuemsempre uma característica marcante pela qual sãoimediatamente identificadas.20

O traço decisivo na caracterização de José Diasé o uso constante dos adjetivos no grau superlativo.Com isso, pretendia impressionar os ouvintes.

O texto em que Machado de Assis apresenta Jo-sé Dias é uma obra-prima de concisão retratística.Trata-se do capítulo 4 de Dom Casmurro, intituladoironicamente “Um dever amaríssimo!”, transcrito aseguir. O capítulo seguinte a este (“O agregado”) cui-da ainda da figura de José Dias, historiando o seu pas-sado e o primeiro contato dele com a família Santiago.

Veja-se o capítulo 4, com a atenção voltada pa-ra a enorme perícia de Machado em produzir re-tratos-miniaturas com grande poder de expressão:

José Dias amava os superlativos21. Era um modode dar feição monumental às idéias; não as havendo,servir a prolongar as frases. Levantou-se para ir bus-car o gamão22, que estava no interior da casa. Cosimemuito à parede, e vi-o passar com as suas calças bran-cas engomadas, presilhas, rodaque23 e gravata demola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio deJaneiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtaspara que lhe ficassem bem esticadas. A gravata decetim preto, com um aro de aço por dentro, imobi-lizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque dechita, veste caseira e leve, parecia nele uma casacade cerimônia. Era magro, chupado, com um princí-pio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos.Levantou-se com o passo vagaroso do costume, nãoaquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas umvagar calculado e deduzido, um silogismo24 completo,a premissa antes da conseqüência, a conseqüênciaantes da conclusão. Um dever amaríssimo!25

José Dias era uma espécie de pajem de Benti-nho. Quando Dona Glória adoeceu, ele foi buscar omenino no seminário. No caminho de casa, infor-mou que o estado da doente era gravíssimo. Benti-

nho desatou a chorar na rua, e José Dias teve de acal-má-lo, descrevendo o verdadeiro estado da paciente.

Muitos anos depois, relembrando tal episódioda adolescência, o velho Bento comenta, no capítu-lo 67 de suas memórias (“Um pecado”):

Vi depois que ele só queria dizer grave, mas ouso do superlativo faz a boca longa, e, por amor doperíodo, José Dias fez crescer a minha tristeza. Seachares neste livro algum caso da mesma família,avisa-me, leitor, para que o emende na segunda edi-ção; nada há mais feio que dar pernas longuíssimas aidéias brevíssimas.

Embora muito disfarçadamente, José Dias ex-pressava alguma convicção política. Tinha simpatiapelo liberalismo do regente Feijó e pelas inovaçõesdos primeiros atos de Pio IX como papa26. Citavatambém Robespierre27.

DDoonnaa GGllóórriiaaNome completo: Maria da Glória Fernandes San-

tiago, filha de uma senhora mineira, descendente deoutra paulista. Dona Glória é mãe de Bentinho e viú-va de Pedro de Albuquerque Santiago, que fora fa-zendeiro em Itaguaí — cidade em que se desenrolaa trama de “O alienista” (em Papéis Avulsos, 1882) — e deputado no Rio de Janeiro. Dona Glória enviu-vou quando Bentinho tinha 4 anos. Manteve-se fielà memória do marido, ocultando a beleza e a ju-ventude até quando pôde, com roupas austeras emuito trabalho caseiro.

Dedicou-se inteiramente à educação de Benti-nho, mimando-o tanto quanto possível. Estava com42 anos quando José Dias cobrou-lhe a promessade enviar o filho ao seminário. Ela chorou nessaocasião.

Dona Glória soube preservar a boa herança domarido, a qual foi, mais tarde, transferida ao filho. ODr. Bento considera-a uma boa senhora. Mandougravar no seu túmulo: uma santa. Capitu, aos 14anos, considerava-a Beata! Carola! Papa-missas! Vistade fora, é uma mulher egoísta, superprotetora, poistenta tomar o filho como instrumento de seu extre-mado sentimentalismo religioso. Trata-se de um fiel

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 78 • ANGLO VESTIBULARES

20 Consultar CANDIDO, Antonio et. al. A personagem de ficção.2ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1970. p. 61.

21 Superlativos: adjetivos com a significação elevada ao maisalto grau.

22 Gamão: jogo de tabuleiro para duas pessoas.23 Rodaque: espécie de casaco leve.24 Silogismo: raciocínio da lógica formal. Parte de duas premis-

sas ou hipóteses para chegar à conclusão ou conseqüência.José Dias andava metodicamente, como se estivesse desen-volvendo um silogismo.

25 Amaríssimo: superlativo do adjetivo amargo.

26 Pio IX (Mastai Ferretti) foi papa de 1846 a 1878. Os seus pri-meiros atos como pontífice sustentavam um catolicismo libe-ral que ele não foi capaz de manter por muito tempo.

27 Robespierre (1758-1794): um dos principais líderes da Revo-lução Francesa em seu período do terror. Cognominado o in-corruptível, levou muita gente ao cadafalso, mas acabou elepróprio guilhotinado. José Dias cita-o para demonstrar cultu-ra geral e por ter uma inclinação reprimida pela idéia derenovação, razão pela qual era adepto da medicina homeopá-tica. John Gledson, estudioso de Machado na Inglaterra, con-sidera José Dias um liberal ressentido, em seu livro Machadode Assis: impostura e realismo (São Paulo, Companhia dasLetras, 1991).

Page 15: Dom Casmurro

retrato da mulher oitocentista brasileira, com a par-ticularidade de ser uma matriarca poderosa quepode ser entendida como uma alegoria de D. PedroII. Ver, a esse respeito, o tópico Mundo exterior e aalegoria de Matacavalos.

O Dr. Bento Santiago conserva na casa do En-genho Novo a velha foto dos pais quando jovens. Talfoto domina-o agora quase tanto quanto na infân-cia, em Matacavalos. A relação de Bento e Dona Glória é meio freudiana, lembrando em alguns ca-sos um possível complexo de Édipo. Bento nada sen-te ao saber, por alto e tardiamente, da morte de Ca-pitu (cap. 145, “O regresso”). Quanto à da mãe, ex-pressa profunda emoção. Ler o capítulo 141 (“A so-lução”) de Dom Casmurro.

À proporção que Ezequiel crescia, Dona Glóriapassou a evitar a família do filho, afirma o velho Ben-to Santiago.

TTiioo CCoossmmeeIgualmente a Dona Glória e José Dias, é apre-

sentado em uma vinheta (pequena gravura bem tra-balhada para ilustrar livros manuscritos), no iníciodo romance. Possui pouca importância na trama,funcionando mais como elemento caracterizador domatriarcado da viúva Glória, sua irmã.

Trabalhava como advogado criminalista, cujodesempenho era muito elogiado por José Dias, queo ajudava no vestimento da toga e na cópia de pa-péis e autos. Tio Cosme, sendo muito gordo, tinhaenorme dificuldade em montar a besta (presente deDona Glória) que o levava diariamente ao escritório.Foi perspicaz o bastante para perceber que a irmãeducava mal o filho. Vivia com ela desde a morte desua mulher.

PPrriimmaa JJuussttiinnaaViúva e quarentona, prima Justina fora morar

com Dona Glória por servir e ser servida. Era dota-da de uma franqueza um tanto rude, que pareciaprovir antes do ressentimento de não ser amada doque do amor à verdade: Dizia francamente a Pedro omal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensavade Pedro. Talvez essa propriedade de caráter tenhaalgo a ver com o seu nome: Justina, derivado dejusta. Mas isso não passava de uma pretensão.

Não vivera bem com o marido, mas, depois demorto, ele tornou-se um santo homem em sua opi-nião. Julgava que Capitu era um pouco trêfega eolhava por baixo. Igualmente a José Dias, tinha ciú-mes da menina.

Quando estava à beira da morte, prima Justinafez questão de ver Ezequiel adulto, certamente paracertificar-se da semelhança entre ele e Escobar,pensa o velho Bento Santiago.

Quando, no capítulo 22 do romance (“Sensaçõesalheias”), prima Justina percebe o amor de Benti-nho por Capitu, os olhos dela gozam no adolescenteas antigas sensações dos próprios amores: Só entãosenti que os olhos da prima Justina, quando eu fala-va, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gos-tar-me, fazer o ofício de todos os sentidos.

MMaanndduuccaaManduca era um leproso que morava perto de

Bentinho. Depois da morte do doente, Bento San-tiago nos relata a polêmica (por cartas) que manti-vera com ele, cujo corpo carcomido teve oportuni-dade de ver e parcialmente descrever. Em certa me-dida, o cuidado em sugerir as condições de suas car-nes deterioradas e malcheirosas lembra as técnicasnaturalistas. Mas Machado não extrapola o seu gos-to próprio, evitando a descrição direta da fisiologia,tão cara aos naturalistas. Na verdade, ele apresentaManduca pelo processo da preterição, que consisteem negar aquilo que sugere. Trata-se de uma de suasmuitas formas de ironia.

A polêmica de Bentinho com Manduca foi so-bre a guerra da Criméia (1854-1856), península aosul da Rússia, no Mar Negro. Os russos foram ven-cidos pelos aliados (Turquia, França, Inglaterra ePiemonte) em Sebastopol (na Ucrânia) e não conse-guiram tomar Istambul (Constantinopla), conformedesejava o Czar Nicolau.

Bentinho tomou o partido dos russos. Manducadefendia os aliados, concluindo sempre seus longose ardorosos escritos pela mesma frase profética: Osrussos não hão de entrar em Constantinopla! Mandu-ca, por não ter alternativa de diversão, punha toda aalma na polêmica. Bentinho sentia-se bem em dis-trair o outro. Essa guerra, no romance, pode ser umaalusão alegórica à guerra do Brasil com o Paraguai,conforme sugere John Gledson.

PPáádduuaaJoão Pádua era marido de Dona Fortunata e pai

de Capitu. Funcionário público modesto, teve doislances de sorte na vida: serviu dois anos como ad-ministrador interino (substituto) e ganhou na lote-ria, com cujo dinheiro pôde comprar uma casa asso-bradada com duas janelas de frente, ao lado da deDona Glória, também assobradada, mas com trêsjanelas. A sua terceira grande sorte foi casar a filhacom Bentinho, o vizinho rico.

Pádua colecionava passarinhos e era gastador.José Dias não gostava dele e chamava-o de “Tar-taruga”, devido a uma ligeira corcunda que tinha.Sua esposa era resoluta e era ela quem tomava asgrandes decisões da família. No físico, Dona Fortu-nata também se parecia com Capitu: era robusta ede olhos claros.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 79 • ANGLO VESTIBULARES

Page 16: Dom Casmurro

SSaanncchhaaSancha tornou-se amiga de Capitu na escola.

Casou-se com Escobar, depois do que a amizadeentre ambas tornou-se mais forte. No capítulo 118(“A mão de Sancha”), ela tem uma participação es-pecial: numa reunião noturna em sua casa, trocouolhares de desejo sexual com Bentinho, em presen-ça do marido. No fim da reunião, à despedida, ex-pressou o mesmo desejo num aperto de mão espe-cial. Tal é afirmado pelo velho Bento no menciona-do capítulo. Mas no capítulo 120 (“Os autos”), elemesmo afirma ao recompor as sensações da manhãseguinte que as abominações da véspera não passa-ram de alucinações. Nessa mesma manhã, Escobarmorre no mar. Depois, Sancha muda-se com a filha(Capituzinha) para Curitiba, onde residia a famíliado falecido esposo. No capítulo 129 (“A D. San-cha”), ela se converte numa simples leitora das me-mórias do velho Dr. Bento Santiago.

EEzzeeqquuiieellEzequiel Albuquerque de Santiago, quando crian-

ça, exerce no romance a mesma função do lençoposto por Iago no quarto de Desdêmona, na tragé-dia de Shakespeare, Otelo: a prova do adultério. Talé a conclusão (parcialíssima) de Bento. Depois disso,o menino é arrastado para o internato. Mas Bentojulga-o tão parecido com o falecido amigo que deci-de matá-lo. Por fim, envia-o com a mãe para a Suíça.

Aos 25 anos, Ezequiel retorna ao Rio para co-nhecer o suposto pai. Igualmente a Bento, Ezequielé obcecado pelo passado, razão pela qual se forma-ra em arqueologia. Mesmo depois de adulto, Bentocontinua vendo nele a cópia de Escobar. Depois deum jantar amigável, o suposto pai concorda em fi-nanciar uma viagem do moço para o Oriente. Ben-to, entretanto, expressa o desejo íntimo de que elemorra de lepra por aquelas bandas.

Com efeito, o jovem arqueólogo é vitimado poruma febre tifóide, sendo sepultado nas imediaçõesde Jerusalém. Os companheiros de expedição gra-varam-lhe no túmulo as seguintes palavras bíblicas:Tu eras perfeito nos teus caminhos, extraídas do profe-ta Ezequiel. Ao tomar conhecimento da inscrição, Dr.Bento consultou a Vulgata (versão latina da Bíblia) edescobriu que a frase completa era: Tu eras perfeitonos teus caminhos, desde o dia da tua criação. Pensan-do na segunda parte da frase, Bento pergunta: Quan-do seria o dia da criação de Ezequiel?

Quando Ezequiel tinha 5 anos, possuía o hábitode imitar as pessoas, principalmente Escobar e Jo-sé Dias. Nessa altura, este referia-se ao menino co-mo O filho do homem, expressão da Bíblia referenteao profeta Ezequiel. José Dias dizia também que ofilho de Capitu era a terceira geração, evocando o fa-to de haver servido ao pai e à avó da criança. John

Gledson interpreta tal expressão como uma possívelalusão ao terceiro reinado brasileiro, o da princesaIsabel, que não se cumpriu.

Dom Casmurro declara que, no dia em que re-cebeu a notícia da morte de Ezequiel, jantou bem efoi ao teatro.

EESSPPAAÇÇOO DDOO RROOMMAANNCCEE

MMuunnddoo iinntteerriioorrApesar daquelas referências ao pitoresco urba-

no carioca, Dom Casmurro é, dominantemente, umromance intimista, interiorizado ou introspectivo.Trata-se de uma narrativa que desloca o interessedo cenário e da ação exterior para o íntimo das perso-nagens. Não é à toa que boa parte de sua fábula seconstitui de impressões e suposições de Bento Santia-go. Sendo um romance muito mais preocupadocom o modo de ser das pessoas do que com o quepossam fazer, Dom Casmurro secundariza o enredoconvencional em favor da análise das atitudes e si-tuações vivenciadas pelas personagens. Decidida-mente, não estamos diante de um romance de ação.

Ao contrário, Dom Casmurro é, basicamente,um romance de personagem, ou seja, um roman-ce que prioriza a investigação moral ou psicológicado protagonista (Bentinho) e de outras personagens(Capitu, Escobar). Pode-se afirmar também queDom Casmurro possui algo do chamado romancede drama, quer dizer, foi escrito de maneira que aação e as personagens se fundissem num só corpoindivisível. Em outros termos: o discurso de Bentounifica tudo na narrativa, de tal forma a se poderpensar que tanto a ação quanto as personagens nãopassam de projeções de seu universo psíquico.

MMuunnddoo eexxtteerriioorrOs principais lances da ação de Dom Casmurro

transcorrem no apogeu do Segundo Reinado, no Rio de Janeiro, entre 1857, quando Bentinho desco-bre que ama Capitu (cap. 3, “A denúncia”), e 1871,ano da morte de Escobar (cap. 122, “O enterro”).Bento redige suas memórias no final da década de1890, aos 55 anos de idade.

Embora não seja um romance de costumes,Dom Casmurro registra, com fidelidade e minudên-cia, diversos aspectos da paisagem urbana oitocen-tista do Rio de Janeiro: o mendigo do passeio pú-blico, o passeio de coche do imperador, a procissãodo Santíssimo Sacramento, o oratório no interiordas famílias, a leitura de romances em voz alta — ànoite — para um auditório familiar, as conversas eos olhares ao longo e depois da missa, etc. Tais ele-mentos representam uma discreta filiação de Ma-chado de Assis à tradição do romance urbano de Ma-nuel Antônio de Almeida.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 80 • ANGLO VESTIBULARES

Page 17: Dom Casmurro

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 81 • ANGLO VESTIBULARES

MMuunnddoo eexxtteerriioorr ee aa aalleeggoorriiaa ddee MMaattaaccaavvaalloossA casa de Bentinho em Matacavalos pode ser in-

terpretada como uma espécie de microcosmo da so-ciedade do Segundo Reinado. Com efeito, pode-semesmo falar em matriarcado da viúva Glória, cujavontade determina, como a do imperador para oBrasil, a atitude de todas as pessoas que a cercam.Nesse sentido, a namorada pobre de Bentinho podeser interpretada como uma postulante ao poder,pois o casamento a faria mudar de classe. Da mes-ma forma, José Dias seria um fino e habilidoso po-lítico, cioso por manter o equilíbrio na corda bam-ba de sua frágil condição social.

Veja-se o final do capítulo 94 das memórias deBento (“Idéias aritméticas”), como exemplo da no-ção de que o seu discurso funde tudo: ação e perso-nagem, personagem e narrador, passado e presen-te, incidente e impressão:

Escobar apertou-me a mão às escondidas, comtal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, de-certo, se não é efeito das longas horas que tenhoestado a escrever sem parar. Suspendamos a pena poralguns instantes…

Essa passagem demonstra, ainda, que Dom Cas-murro não é apenas romance da reconstrução de umavida. É também um discurso lírico sobre o passado,uma busca do tempo perdido, que incorpora igual-mente as sensações ou impressões do presente.

Da mesma forma, a passagem em foco rompecom a velha noção de verossimilhança romanescaem favor da prática de um texto mais livre, maispoético e fantasioso. Um texto que seja expressãode um ser em processo de conhecimento e não ape-nas cópia das coisas externas.

TTeemmppoo ddoo rroommaanncceeO tempo pode assumir duas formas principais

num romance:

1) tempo cronológico ou histórico, que é mar-cado pelo fluxo das horas no relógio ou dos dias nocalendário. Contém idéia de noite, semana, mês, ano,estação, etc. Trata-se do tempo em sua acepção objeti-va. Tal noção de tempo é essencial aos romances deação, como O Guarani, de Alencar, por exemplo.

2) tempo psicológico ou duração interior,que são as pulsações subjetivas provocadas nas per-sonagens pelo transcorrer do tempo histórico. Esteé o tempo da memória, cujo fluxo varia de pessoapara pessoa e pode assumir as mais diversas confi-gurações, pois transcorre no íntimo do indivíduo. Talnoção de tempo confunde-se com o escoar de nossos

pensamentos, idéias e sensações fugazes. Aproxima-se do monólogo interior ou fluxo da consciência28.

Dom Casmurro, como os demais romances ma-duros de Machado de Assis, prioriza o tempo psi-cológico, porque se trata de um romance escritosob o signo da memória ou da evocação sugestiva.Nesse romance, há uma espécie de presentificaçãodo passado, sem deixar de haver também uma in-terferência do presente no passado. Esta última hi-pótese se observa quando o velho Bento interpreta,reinterpreta ou retifica antigas ocorrências da in-fância, da adolescência e da maturidade.

As passagens seguintes contêm exemplos explíci-tos de apelo ao tempo psicológico ou duraçãointerior. Estes pequenos trechos demonstram oquanto Bento Santiago cultua a memória afetiva, naconstante busca da sensação perdida, da vivênciaespiritual pretérita, que preenchem o vazio interior dopresente. Tal força do passado sobre o presente con-firma a ressonância impressionista no estilo de DomCasmurro:

Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só osrelógios do céu terão marcado esse tempo infinito ebreve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por nãoacabar nunca deixa de querer saber a duração das fe-licidades e dos suplícios.

(cap. 32, “Olhos de ressaca”)

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, semmostrador, de maneira que não se vissem as horas es-critas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas ne-nhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Talfoi aquela semana na Tijuca.

(cap. 102, “De casada”)

Já agora creio que não basta que os pregões derua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos,pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenhaconhecido e padecido no tempo, sem o que tudo écalado e incolor.

(cap. 60, “Querido opúsculo!”)

A preferência pelo registro das impressões, pelaexploração da memória e pela análise das emoçõesleva Bento Santiago a abreviar ironicamente inúme-ras seqüências da fábula do romance, desdenhandoem absoluto a ação externa e o tempo histórico nacomposição do texto. Vejam-se dois trechos em quetal se evidencia:

28 Monólogo interior é tradução da expressão inglesa stream ofconsciouness, também conhecida por fluxo da consciência.Trata-se da manifestação verbal das idéias fugazes do espíritohumano. O fluxo da consciência manifesta-se mais freqüente-mente através do discurso indireto livre. O monólogo interiorpropriamente dito rompe com os padrões lógicos da linguageme procura expressar o caos do inconsciente das personagens.

Page 18: Dom Casmurro

Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiên-cia fez-me ir atrás da pena, e chego quase no fim dopapel, com o melhor da narração por dizer. Agoranão há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulosobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudoem resumo. Já esta página vale por meses, outrasvalerão por anos, e assim chegaremos ao fim.

(cap. 97, “A saída”)

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, nãoera ainda gerado; quando acabou era cristão e católico.Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequielaos cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhosclaros, já inquietos, como se quisessem namorar todasas moças da vizinhança, ou quase todas.

(cap. 109, “Um filho único”)

Estas passagens demonstram também que DomCasmurro não deixa de ser um anti-romance, istoé, aquele tipo de romance que rompe com o veris-mo da ficção tradicional e mostra (como nos exem-plos acima) os componentes técnicos da composi-ção da própria obra. O anti-romance conversa com oleitor. É como se dissesse: olha, isto aqui não é có-pia verdadeira da vida, é apenas um discurso artísti-co e inventivo sobre ela.

Todo anti-romance é também um romancepoético, porque pretende ser mais apreciado pelaarte da escrita do que pelos acontecimentos do en-redo. Com efeito, a escrita artística de Machado éuma das muitas razões pelas quais Dom Casmurrodeve ser considerado um dos textos mais atuais detoda a literatura americana.

LLEEIITTUURRAA

II —— DDoo ttííttuullooNeste capítulo, o narrador Bento Santiago explica

o motivo pelo qual chamou Dom Casmurro ao seulivro. Daí o capítulo denominar-se “Do título”, quequer dizer sobre o título. O nome do livro e todo ocapítulo indicam tratar-se de um romance de per-sonagem, isto é, um romance cujo principal inte-resse é analisar o caráter da personagem que dátítulo ao livro, o protagonista, que, no caso, é tam-bém o narrador.

Bento apresenta-se meio narciso nessa abertu-ra, mas nos próximos capítulos desvia a atenção desi para a reconstituição da personalidade de suafalecida esposa, Capitu. Mas, em tudo que afirmadela, revela indiretamente o seu próprio caráter.

A releitura cuidadosa desse primeiro capítulo deDom Casmurro deve conduzir-nos às seguintes con-clusões:

a) o narrador procura transmitir uma imagemurbana e civilizada de si mesmo; esforça-se por nas-cer normal; enquanto a análise do livro como um to-

do demonstra que ele não soube conviver nem coma esposa nem consigo mesmo;

b) o narrador é enganoso, pois procura conven-cer o leitor (e talvez a si próprio) de algo que sabenão ser seguro nem indiscutível;

c) o último parágrafo do capítulo instaura umprocesso narrativo dialógico que persiste até o fim dolivro, isto é, a narrativa é apresentada sob a forma deum diálogo simulado com um suposto leitor que sefaz presente em todo o livro: não consultes dicionários;trata-se, neste caso, apenas de uma alusão ao destina-tário, que às vezes se transforma em leitor incluso,conforme ficou explicado no início deste estudo;

d) neste capítulo predominam as propriedadesclássicas do estilo machadiano: clareza, concisão,simplicidade, harmonia de linguagem; em outros,aparecerão propriedades contrárias a essas;

e) nos dois últimos parágrafos do capítulo anun-cia-se a ironia humorística, que se mesclará coma atmosfera trágica do romance;

f) o capítulo pode ser tomado como um preâm-bulo metalingüístico, isto é, uma introdução em queo assunto é o próprio livro; a história (narrativa,fábula) começará apenas no capítulo 3.

Uma noite destas, vindo da cidade para o EngenhoNovo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui dobairro, que eu conheço de vista e de chapéu29. Cumpri-mentou-me, sentou-se ao pé de mim30, falou da lua edos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagemera curta, e os versos pode ser que não fossem inteira-mente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava can-sado, fechei os olhos três ou quatro vezes31; tanto bastoupara que ele interrompesse a leitura e metesse os versosno bolso.

— Continue, disse eu acordando.— Já acabei, murmurou ele.— São muito bonitos.

Vi-lhe32 fazer um gesto para tirá-los outra vez dobolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No diaseguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou al-cunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que nãogostam dos meus hábitos reclusos33 e calados, deramcurso à alcunha34, que afinal pegou. Nem por isso mezanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles,por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes:“Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. —

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 82 • ANGLO VESTIBULARES

29 De chapéu: de cumprimento. Até uns cinqüenta anos atrás aspessoas se cumprimentavam com um ligeiro movimento dechapéu.

30 Ao pé de mim: perto de mim, ao meu lado. Expressão lusitana.31 Fechei os olhos três ou quatro vezes: primeiro índice (sinal) de

que o narrador é idoso, pois cochilava com facilidade.32 Vi-lhe: a construção mais usual seria vi-o.33 Reclusos: fechados, próprios de quem vive em convento, clau-

sura ou prisão.34 Deram curso à alcunha: propagaram o apelido.

Page 19: Dom Casmurro

“Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mes-ma da Renânia35; vê se deixas essa caverna do Enge-nho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.”— “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dis-penso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na ci-dade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama;só não lhe dou moça.”

Não consultes dicionários. Casmurro não estáaqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs ovulgo de homem calado e metido consigo.36 Domveio por ironia, para atribuir-me fumos37 de fidalgo.Tudo por estar cochilando! Também não achei38

melhor título para a minha narração; se não tiveroutro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. Omeu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardorancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu,poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenasterão isso dos seus autores; alguns nem tanto.39

IIII —— DDoo lliivvrrooEste capítulo forma, com o anterior, o preâmbu-

lo metalingüístico de Dom Casmurro, porque o seuassunto é ainda o livro (a linguagem) e não a históriaou narrativa. “Do livro” quer dizer sobre o livro.

Aqui, apresentam-se as razões pelas quais o Dr.Bento de Albuquerque Santiago resolveu escreveruma autobiografia. Ele diz que foi para se distrair,mas devemos entender que foi para se conhecer.Este capítulo evidencia sobretudo o caráter enga-noso da escrita de Bento: ele sente uma coisa e es-creve outra. Tal é um dos elementos essenciais doprocedimento irônico.

As notas ao texto do capítulo procurarão revelaras segundas intenções desse texto simples na apa-rência e tão complexo na essência.

Porém, antes de tentar recompor a própria vi-da, Bento Santiago mandou reconstruir na velhice acasa em que foi criado. Nesse sentido, a reconstru-ção da casa é uma metáfora ou alegoria da res-tauração da família e do indivíduo que se perdeu aosentir a destruição de sua linhagem. Tal pormenortemático de Dom Casmurro lembra uma tópica

(assunto recorrente) de A Ilustre Casa de Ramires,romance de Eça de Queirós, em que o protagonista(Gonçalo Mendes Ramires) só se reorganiza moral,psicológica e economicamente depois de restaurar,pela escrita, a história dos antepassados. O mesmomotivo reaparece num famoso conto do escritoramericano Edgar Allan Poe (1809-1849) “A queda dacasa de Usher” (The fall of the house of Usher), noqual a extinção de uma família tradicional é simboli-zada pelo desmoronamento físico da mansão emque se criaram as gerações da família.

Agora que expliquei o título,40 passo a escrever o li-vro. Antes disso, porém, digamos os motivos que mepõem a pena na mão.

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é pró-pria; fila construir de propósito, levado de um desejo tãoparticular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, hábastante anos, lembrou-me reproduzir no EngenhoNovo a casa em que me criei41 na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia42 da-quela outra, que desapareceu. Construtor e pintor en-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 83 • ANGLO VESTIBULARES

35 Renânia: No texto, designa uma rua de Petrópolis, cidadecriada por D. Pedro II, para as férias de verão da elite impe-rial. Fica a 68 km do Rio de Janeiro.

36 Casmurro: além de pessoa calada e metida consigo, os dicio-nários registram o sentido de teimoso, obstinado, cabeçudo.Notar que Bento procura ocultar essas propriedades que opoeta do trem pode ter querido lhe atribuir. Afinal, este en-trou (começou) a dizer nomes feios de Bento. O xingamentopode ter ido além do que Bento sugere.

37 Fumos: fumaças. No texto, está por ares, atmosfera, aparência.38 Também não achei…: aqui, até o fim do capítulo, predomina

a função metalingüística da comunicação verbal, isto é, otexto fala sobre si mesmo.

39 E com pequeno… Há livros… esses dois períodos são maisque irônicos, são quase humorísticos. Insinuam que há auto-res que plagiam tudo quanto dizem seus livros.

Páginas de rosto da 1ª- edição de Dom Casmurro.Fonte: SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis.Rio de Jaaneiro, INL, 1955. s.p.

40 Agora que expliquei o título…: recuperação da função meta-lingüística do capítulo anterior. A organização expositiva danarrativa de Bento nestes dois capítulos revela domínio naarte da disposição da matéria escrita, o que indica sua for-mação e prática de advogado.

41 Reproduzir […] a casa em que me criei: atitute anormal, quasepatológica, essa de reproduzir nos anos 1890 uma casa comestilo e modelo dos anos 1830. Bento procura apresentar talesquisitice apenas como um desejo particular, pelo qual fazquestão de declarar que sente um certo constrangimento,como forma de sugerir que sua esquisitice é voluntária. Taldesejo revela também o nível socioeconômico do narrador.

42 Economia: disposição dos cômodos.

Page 20: Dom Casmurro

tenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmoprédio assobradado, três janelas de frente, varanda aofundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, apintura do teto e das paredes é mais ou menos igual,umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros queas tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatrocantos do teto as figuras das estações, e ao centro dasparedes os medalhões de César43, Augusto44, Nero45 eMassinissa46, com os nomes por baixo… Não alcanço arazão de tais personagens. Quando fomos para a casa deMatacavalos, já ela estava assim decorada; vinha dodecênio anterior. Naturalmente era gosto do tempometer sabor clássico e figuras antigas em pinturas ame-ricanas47. O mais é também análogo e parecido. Tenhochacarinha, flores, legume, uma casuarina48, um poço elavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim,agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vidainterior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.

O meu fim evidente49 era atar as duas pontas da vi-da, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui50. Emtudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só

me faltassem os outros, vá; um homem consola-se maisou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, eesta lacuna é tudo.51 O que aqui está é, mal comparan-do, semelhante à pintura que se põe na barba e noscabelos, e que apenas conserva o hábito externo, comose diz nas autópsias52; o interno não agüenta tinta. Umacertidão que me desse vinte anos de idade poderiaenganar os estranhos, como todos os documentos falsos,mas não a mim. Os amigos que me restam são de datarecente; todos os antigos foram estudar a geologia doscampos-santos.53 Quanto às amigas, algumas datam dequinze anos, outras de menos, e quase todas crêem namocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros54,mas a língua que falam obriga muita vez a consultar osdicionários, e tal freqüência é cansativa55.

Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; éoutra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga apare-ce-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas étambém exato que perdeu muito espinho que a fez mo-lesta, e, de memória, conservo alguma recordação docee feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo56.Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar,jardinar e ler; como bem e não durmo mal.

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou porexaurir-me também. Quis variar,57 e lembrou-me escre-ver um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudi-ram-me, mas não me acudiram as forças necessárias.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 84 • ANGLO VESTIBULARES

43 César: Júlio César (100-44 a.C.), general romano que conquis-tou as Gálias, tendo escrito um livro clássico da prosa latina,os Comentários sobre a guerra aos gauleses (Commentarii debello gallico). Morreu apunhalado pelo filho adotivo, Brutus,em pleno senado. No capítulo 31 de Dom Casmurro (“Ascuriosidades de Capitu”), a menina interroga José Dias sobreo significado dos medalhões. José Dias empolga-se com JúlioCésar, e Capitu espanta-se diante do fato de ele ter sido Umhomem que podia tudo! que fazia tudo!

44 Augusto: Otávio Augusto (63 a.C. – 44 d.C.). Iniciou a era dosimperadores em Roma. Auxiliado por Agripa e Mecenas, deugrande avanço às artes. O século em que viveu ficou sendo cha-mado o Século de Augusto, reconhecido como o período áureoda cultura latina.

45 Nero: Lúcio Domício Nero Cláudio (37-68 d.C.) governou Romaentre 54 e 68 d.C. Embora fosse educado pelo grande filósofoSêneca, notabilizou-se por sua crueldade: matou a própria mãee duas esposas, perseguiu os cristãos e foi acusado de incendiarRoma.

46 Massinissa (238-148 a.C.): rei da Numídia, região da Áfricaantiga. A princípio foi contra os romanos em sua expansãopela África. Depois, na segunda guerra púnica (218-202 a.C.),aliou-se a eles contra Cartago. Como aliado dependente, foiobrigado pelos romanos a envenenar a própria esposa, deorigem sudanesa. No capítulo 145 de Dom Casmurro (“O re-gresso”), Ezequiel, já adulto, é surpreendido pelo Velho Ben-to a contemplar o busto de Massinissa na sala da casa doEngenho Novo. Todos os medalhões ocultam significadossutis no romance; tais personagens históricas estão ligadas aeventos que envolvem traição; a figura de Massinissa, em es-pecial, pode ser uma alegoria de certas alianças políticas doperíodo regencial brasileiro.

47 Pinturas americanas: os pássaros, as grinaldas de flores e asfiguras das estações.

48 Casuarina: árvore que geme quando bate o vento.49 O meu fim evidente…: inicia-se aí um parágrafo de grande

intensidade poética, em que Bento se revela quase inteira-mente. Reler com atenção.

50 O que foi: o que aconteceu; o que fui: minha participação noque sucedeu, minha essência no que aconteceu. Trocadilhode grande força expressiva e significativa.

51 Se só me faltassem os outros, vá; […] e esta lacuna é tudo:chave para o entendimento da perda de identidade de Bento.Consolava-se da perda de toda a família e amigos, mas nãose conformava com o desencontro consigo mesmo. Naslinhas seguintes ele prossegue dizendo que a aparência daspessoas pode ser alterada, mas nunca a essência.

52 Autópsias: etimologicamente, quer dizer auto-análise, que é apista mais certa para se interpretar Dom Casmurro.

53 Os amigos que […] campos-santos: trata-se de uma perífraseirônica e eufemística. Os amigos antigos morreram, estão nascovas (estudando geologia) dos cemitérios (campos-santos).

54 Duas ou três […] aos outros: algumas amigas, embora ve-lhas, fariam algumas pessoas crerem na mocidade, pelos ar-tifícios da maquilagem e outros cuidados.

55 Mas a língua que falam […] e tal freqüência é cansativa: embo-ra algumas amigas idosas enganem pelo disfarce da aparên-cia jovem, suas palavras traem a idade, porque pela lingua-gem se revela a alma, a essência das pessoas. A idéia de con-sultar os dicionários é irônica. Pretende revelar que uma almajovem não se comunica bem com outra idosa.

56 Pouco apareço e menos falo: Bento é um misantropo, cujasolidão ele nos apresenta como voluntária e normal, mas quepode decorrer de uma aversão doentia ao convívio social.Mas o seu discurso procura seduzir o leitor pela exibição deum falso equilíbrio psicológico. Mais uma vez mostra-seenganoso.

57 Quis variar: depois de tentar “restaurar na velhice a adoles-cência” com a reconstrução da casa de Matacavalos, Bentoalega como motivo de sua autobiografia a superficial quebrada monotonia. Ora, sabe-se, pela análise do livro, que as ra-zões pelas quais Bento escreve são muito mais complexas. Aidéia de escrever para espairecer é um índice do interesse donarrador em parecer normal e seduzir o leitor para que acre-dite no que vai ser narrado ao longo do livro. É índice tam-bém da perícia retórica do advogado Bento.

Page 21: Dom Casmurro

Depois, pensei em fazer uma História dos Subúr-bios, menos seca que as memórias do padre LuísGonçalves dos Santos58, relativas à cidade; era obramodesta, mas exigia documentos e datas, como prelimi-nares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pinta-dos nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que,uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me ostempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talveza narração me desse a ilusão, e as sombras viessemperpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas odo Fausto59: Ai vindes outra vez, inquietas som-bras…?

Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agorame treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massi-nissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meuscomentários,60 agradeço-vos o conselho, e vou deitar aopapel as reminiscências que me vierem vindo. Destemodo, viverei o que vivi, e assentarei a mão61 para al-guma obra de maior tomo62. Eia, comecemos a evoca-ção por uma célebre tarde de novembro, que nunca meesqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, masaquela nunca se me apagou do espírito. É o que vaisentender, lendo.63

IIIIII —— AA ddeennúúnncciiaaO terceiro capítulo de Dom Casmurro contém a

situação inicial da fábula propriamente dita: Benti-nho está apaixonado, mas deverá ser enviado parao seminário.

O termo denúncia do título do capítulo possui duasdireções: José Dias acusa a Dona Glória o namo-ro de Bentinho e Capitu, ao mesmo tempo que faz comque este tome consciência de seu amor pela vizinha.

A estrutura desse capítulo é basicamente dramá-tica, isto é, aproxima-se muito do teatro. Por isso,predomina o diálogo em todo o texto. Os dois capí-tulos anteriores eram mais narrativos (sobretudo o

primeiro) e mais dissertativos (sobretudo o segun-do). O terceiro rompe com aquele ritmo meio lentodos anteriores e agiliza subitamente o romance, co-locando com clareza e precisão o problema centralda fábula. Mostra quase todas as personagens do ro-mance em plena atividade, sem sequer as ter men-cionado antes.

Se os capítulos anteriores eram escritos e bempensados, este é genialmente bem escolhido, extre-mamente dinâmico e muito econômico em seus ter-mos, pois temos noção da psicologia de todas aspersonagens que participam do diálogo através desuas próprias falas e não através do narrador.

O narrador aqui é uma espécie de bisbilhoteiroque registra com alguma objetividade o que vislum-bra de seu esconderijo no corredor que conduz pa-ra a sala central da casa de Matacavalos.

A passagem súbita da atmosfera reflexiva doscapítulos precedentes para o tom demonstrativo, derepresentação teatral desse terceiro capítulo indica oquanto Machado de Assis sabia da eficácia da mis-tura dos gêneros literários como elemento moderni-zador de um texto. Quer dizer: aqui a técnica narra-tiva do romance se mistura com a técnica demons-trativa do teatro.

Nos capítulos seguintes, Machado adota a técni-ca das vinhetas (retratos em miniatura), apresentan-do o passado de todas as personagens que toma-ram parte na cena de “A denúncia”.

Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir omeu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a daRua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que éum tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas àminha vida só para agradar às pessoas que não amamhistórias velhas; o ano era de 1857.

— Dona Glória, a senhora persiste na idéia demeter o nosso Bentinho64 no seminário? É mais quetempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

— Que dificuldade?— Uma grande dificuldade.Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois

de alguns instantes de concentração, veio ver se haviaalguém no corredor; não deu por mim, voltou e, aba-fando a voz, disse que a dificuldade estava na casa aopé65, a gente do Pádua.

— A gente do Pádua?— Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas

não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Ben-tinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaru-ga66, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de na-moro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 85 • ANGLO VESTIBULARES

58 Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844): cônego da capelaimperial. Homem culto, versado em línguas e história, lutoupela independência do Brasil. O Dicionário bibliográfico bra-sileiro, de S. Blake, na relação de obras do cônego, omite es-ta referida por Bentinho.

59 Fausto: obra-prima de Goethe (1749-1832), cuja personagemcentral, o sábio e mago Dr. Fausto, entrega a alma ao demô-nio, Mefistófeles, em troca de juventude e prazeres. Com opacto, Fausto passa a ter poderes de invocar a imagem dosmortos. Nessa passagem, Bento equipara-se ironicamente aFausto, porque irá também ressuscitar, em sua narrativa , assombras de pessoas mortas.

60 César, que me incitas a fazer os meus comentários: alusão irô-nica à obra-prima de Júlio César, Commentarii de bello galli-co, cuja qualidade é sempre comparada com a de Cícero, quepraticou a oratória.

61 Assentarei a mão: exercitarei a pena.62 Maior tomo: maior vulto, maior tamanho e importância.63 É o que vais entender, lendo: nova alusão ao leitor, que ainda

não é propriamente o leitor incluso. Trata-se, aqui, de apenasum aceno ao destinatário da narrativa (narratário).

64 O nosso Bentinho: pronome possessivo diante do substantivoindica afetação e sujeição de José Dias.

65 Na casa ao pé: na casa ao lado (lusitanismo).66 Tartaruga: apelido de Pádua dado por José Dias.

Page 22: Dom Casmurro

— Não acho. Metidos nos cantos?— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre

juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena éuma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que ascoisas corressem de maneira, que… Compreendo o seugesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lheque todos têm a alma cândida…

— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brin-cando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta aidade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quator-ze à semana passada; são dois criançolas. Não se es-queça que foram criados juntos, desde aquela grandeenchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeutanta coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei decrer…? Mano Cosme, você que acha?

Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzi-do em vulgar, queria dizer: “São imaginações do JoséDias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde estáo gamão67?”

— Sim, creio que o senhor está enganado.— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão;

mas creia que não falei senão depois de muito exami-nar…

— Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu mi-nha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quantoantes.

— Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazerpadre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfa-zer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileiratem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presi-diu a Constituinte, e que o padre Feijó68 governou oimpério…

— Governou como a cara dele! atalhou tio Cosme,cedendo a antigos rancores políticos.

— Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém,estou citando. O que eu quero é dizer que o clero aindatem grande papel no Brasil.

— Você o que quer é um capote69; ande, vá buscaro gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre,realmente é melhor que não comece a dizer missa atrásdas portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo neces-sidade de fazê-lo padre?

— É promessa, há de cumprir-se.— Sei que você fez promessa… mas, uma promes-

sa assim… não sei… Creio que, bem pensado… Vocêque acha, prima Justina?

— Eu?

— Verdade é que cada um sabe melhor de si,70

continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos.Contudo, uma promessa de tantos anos… Mas, que éisso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto écoisa de lágrimas?

Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justi-na creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se umalto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar nasala, mas outra força maior, outra emoção… Não pudeouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. PrimaJustina exortava: “Prima Glória! prima Glória!”. JoséDias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, masfalei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cum-prir um dever amargo, um dever amaríssimo71…”.

LLEEIITTUURRAA EE EEXXEERRCCIICCIIOOSS

1. (FUVEST-97) Com essa história enjoada de traiuou não traiu, de Capitu ser anjo ou demônio, o lei-tor de Dom Casmurro acaba se esquecendo dofundamental: as memórias são do velho narrador,não da mulher, e o autor é Machado de Assis, enão um escritor romântico dividido entre misté-rios.Aceitas as observações acima, o leitor de DomCasmurro deveráa) identificar o ponto de vista de Capitu, consi-

derando ainda o universo próprio da ficçãonaturalista.

b) reconhecer os limites do tipo de narrador ado-tado, subordinando-o ao peculiar universo devalores do autor.

c) aceitar os juízos do velho narrador, por meiode quem se representa a índole confessionalde Machado de Assis.

d) rejeitar as acusações do jovem Bentinho, pre-ferindo-lhes a relativização promovida pelovelho narrador.

e) relativizar o ponto de vista da narração, cujaambigüidade se deve à personalidade oblí-qua de Capitu.

2. (PUCCamp-SP) Assinale a alternativa em que seanalisam corretamente os conceitos de Realis-mo e Naturalismo.a) São caminhos antagônicos, esteticamente fa-

lando. O primeiro deriva do segundo, mas aele se opõe quando retoma atitudes de estiloe ideologias que marcavam o Romantismo.

b) No Realismo, importa sobretudo a realidadeurbana, com os tipos burgueses dominando acena; no Naturalismo, importa a Natureza, avida simples e bucólica do campo.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 86 • ANGLO VESTIBULARES

67 Gamão: jogo de tabuleiro para duas pessoas. Tio Cosme erafã desse jogo.

68 Feijó: Diogo Antônio Feijó (1784-1843), eclesiástico e políticobrasileiro. Ministro da Justiça em 1831, reprimiu severamentemovimentos revoltosos desse período agitado do Impériobrasileiro (Regência). Em 1835, foi eleito regente do Império.Combatido pelos conservadores, abdicou em 1837. Tomouparte na revolta popular de Sorocaba.

69 Capote: dar capote: vencer no jogo pelo dobro ou mais do do-bro dos pontos alcançados pelo adversário. Dar uma “surra”.

70 Verdade é que cada um sabe melhor de si: tio Cosme estáinsinuando a maledicência de prima Justina.

71 Amaríssimo: primeiro superlativo usado por José Dias no ro-mance. Virão muitos outros.

Page 23: Dom Casmurro

c) São termos equivalentes, já que se referemao mesmo fenômeno ou tendência artística:expressão subjetiva da realidade, captada nosdetalhes que mais estimulam a imaginação.

d) Realismo é um conceito genérico, denotandosobretudo uma reação anti-romântica e com-promisso com a objetividade; Naturalismo éuma particularização científica e deterministado Realismo.

e) São termos que se excluem: as idéias realistasdefendiam o progresso do pensamento e asconquistas sociais; as idéias naturalistas ti-nham como base a nostalgia e a conservaçãode valores do passado.

(PUC-SP) Textos para os exercícios de 3 a 6:

Texto ANo momento em que eu terminava o meu movi-

mento de rotação, concluía Lobo Neves o seu movi-mento de translação. Morria com o pé na escada mi-nisterial. Correu, ao menos durante algumas semanas,que ele ia ser ministro; e que pois o boato me encheude muita irritação e inveja, não é impossível que a notí-cia da morte me deixasse alguma tranqüilidade, alí-vio, e um ou dois minutos de prazer. Prazer é muito,mas é verdade; juro aos séculos que é a pura verda-de.

Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, aopé do féretro a soluçar. Quando levantou a cabeça, vique chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-seao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para dentro.Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui aocemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontadede falar; levava uma pedra na garganta ou na cons-ciência. No cemitério, principalmente quando deixeicair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, obaque surdo da cal deu-me um estremecimento pas-sageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tardetinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as rou-pas pretas…

Texto BEnfim, chegou a hora da encomendação e da

partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o de-sespero daquele lance consternou a todos. Muitoshomens choravam também, as mulheres todas. SóCapitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a simesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. Aconfusão era geral. No meio dela, Capitu olhou al-guns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixona-damente fixa, que não admira lhe saltassem algumaslágrimas poucas e caladas.

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela;Capitu enxugou-as, olhando a furto para a gente queestava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, equis levá-la; mas o cadáver parece que a tinha tam-bém. Momento houve em que os olhos de Capitu fi-

taram o defunto, quais os da viúva, sem o prantonem palavras desta, mas grandes e abertos, como avaga do mar lá fora, como se quisesse tragar tam-bém o nadador da manhã.

3. Quanto à trama narrativa que envolve os doistrechos, podemos afirmar que:a) as lágrimas de Virgília e de Capitu são provo-

cadas pelo mesmo motivo familiar.b) Virgília e Capitu se encontram em idêntica

condição de viuvez.c) os dois trechos são mórbidos porque o de-

sespero de Capitu é igual ao de Virgília.

d) os narradores têm a mesma relação conjugalem ambas as narrativas.

e) o choro de Virgília causa certeza, o de Capi-tu, uma suspeita.

4. No confronto, ainda, dos dois trechos, podemosafirmar que a criação de atmosfera emotivadiante do morto é:a) mais dramática no trecho A e a narrativa é

mais diluída.b) menos intensa no trecho B onde a narrativa é

mais densa.c) igual em ambos os trechos, visto que as emo-

ções humanas são iguais.d) moderada no trecho A e intensificada no tre-

cho B.e) igualmente insignificante porque o autor dos

trechos é o mesmo.

5. O narrador do trecho B é:a) Dom Casmurro e se marca pelo ponto de vis-

ta de terceira pessoa.b) Brás Cubas e se caracteriza pela onisciência.c) o mesmo do trecho A e controla a impressão

do leitor sobre o todo da obra.d) Bentinho e se marca pelo ponto de vista de

primeira pessoa.e) Machado de Assis e delineia seu mundo com

a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

6. A referência aos olhos de Capitu, “grandes e aber-tos, como a vaga do mar lá fora, como se quises-se tragar também o nadador da manhã”, permi-te afirmar que eram:a) olhos de primavera.b) olhos de espanto.c) olhos de desespero.d) olhos de contemplação.e) olhos de ressaca.

7. (FATEC)Tudo o que contei no fim do outro capítulo

foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foiainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que elaraspasse o muro, li estes dois nomes, abertos aoprego, e assim dispostos:

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 87 • ANGLO VESTIBULARES

Page 24: Dom Casmurro

BENTO

CAPITOLINA

Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos nochão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olharum para o outro… Confissão de crianças, tu va-lias bem duas ou três páginas, mas quero serpoupado. Em verdade, não falamos nada; o mu-ro falou por nós. Não nos movemos, as mãos éque se estenderam pouco a pouco, todas quatro,pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Nãomarquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-lamarcado; sinto a falta de uma nota escrita na-quela mesma noite, e que eu poria aqui com oserros de ortografia que trouxesse, mas não trarianenhum, tal era a diferença entre o estudante e oadolescente. Conhecia as regras do escrever,sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim eera virgem de mulheres.Assinale a alternativa que corresponda ao au-tor, à obra e à época do texto acima.a) José de Alencar — Senhora — Romantismob) Júlio Ribeiro — A carne — Naturalismoc) Raul Pompéia — O Ateneu — Realismod) Machado de Assis — Dom Casmurro — Realismoe) Joaquim Manuel de Macedo — A Moreninha

— Romantismo

(UnB-DF) Texto para os exercícios de 8 a 10.

D. GlóriaMinha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o

marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trin-ta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Nãoquis, preferiu ficar perto da igreja em que meu pai forasepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comproualguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de pré-dios, certo número de apólices, e deixou-se estar nacasa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anosde casada. Era filha de uma senhora mineira, descen-dente de outra paulista, a família Fernandes.

Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Mariada Glória Fernandes Santiago contava quarenta e doisanos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimavaem esconder os saldos da juventude, por mais que anatureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Viviametida em um eterno vestido escuro, sem adornos,com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochadoao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eramapanhados sobre a nuca por um velho pente de tarta-ruga; alguma vez trazia touca branca de folhos. Lidavaassim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surra-dos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviçostodos da casa inteira, desde manhã até à noite.

(Machado de Assis, Dom Casmurro)

8. Todas as seguintes afirmativas sobre o texto deMachado de Assis estão corretas, exceto:a) Trata-se de um texto onde se alternam narra-

ção e descrição.b) Estão implícitos no texto aspectos da realida-

de socioeconômica da época descrita.c) O narrador apresenta a personagem de ma-

neira irônica, ressaltando aspectos ridículosde sua indumentária.

d) O emprego constante de verbos no imperfei-to do indicativo confere ao texto certo tommemorialista que, de resto, predomina no ro-mance de que foi extraído.

9. No primeiro parágrafo do texto, a idéia central é:a) “preferiu ficar perto da igreja em que meu

pai fora sepultado”.b) “deixou-se estar na casa de Matacavalos, on-

de vivera os dois últimos anos de casada”.c) “era filha de uma senhora mineira, descen-

dente de outra paulista, a família Fernandes”.d) “minha mãe era boa criatura”.

10. As características fundamentais ressaltadaspelo narrador na personagem D. Glória são:a) sua idade e ascendência.b) sua beleza física e elegância.c) sua bondade e caridade.d) sua modéstia e dedicação.

11. (ITA-SP) As afirmações abaixo referem-se àobra Dom Casmurro. Apenas uma delas é incor-reta. Assinale-a:a) Quanto ao foco narrativo, o “eu” do narrador

se identifica com a personagem central do ro-mance, transformando-se numa espécie dediário íntimo da personagem Bentinho.

b) Bentinho constitui a personagem que primor-dialmente realiza a função emotiva ou expressi-va, pois o foco narrativo vem de Bentinho e de-le derivam os sentimentos, as idéias e as sensa-ções com relação às personagens que com eleentram diretamente em contato: Capitu, DonaGlória, José Dias, Escobar, Ezequiel.

c) Machado de Assis, deslocando o foco narrati-vo para o narrador-protagonista, adota umaatitude que, aparentemente, retira do autor doromance a responsabilidade pelo que está sen-do relatado. Ele como que se isenta da culpado que ali vai sendo narrado, pois é a persona-gem Bentinho quem fala diretamente ao leitor.

d) A ação é essencialmente psicológica e limita-se ao processo da conquista realizada por Ca-pitu e à conseqüente queda e destruição inte-rior de Bentinho.

e) A ação desenvolve-se em torno das tentativasde uma explicação do adultério cometido porCapitu, e esta dúvida é dirimida ao leitor nofinal do romance.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 88 • ANGLO VESTIBULARES

Page 25: Dom Casmurro

12. (PUCCamp-SP) Identifique o trecho em que onarrador de Dom Casmurro introduz o romancee considera seu sentido profundo.a) “Horas inteiras eu fico a pintar o retrato des-

sa mãe angélica, com as cores que tiro da ima-ginação, e vejo-a assim, ainda tomando con-ta de mim, dando-me banhos e me vestindo.A minha memória ainda guarda detalhes bemvivos que o tempo não conseguiu destruir.”

b) “O meu fim evidente era atar as duas pontas davida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois,senhor, não consegui recompor o que foi nemo que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisiono-mia é diferente. É o que vais entender, lendo.”

c) “Faz dois anos que Madalena morreu, doisanos difíceis. E quando os amigos deixaram devir discutir política, isto se tornou insuportável.Foi aí que me surgiu a idéia esquisita de, com oauxílio de pessoas mais entendidas que eu,compor esta história.”

d) “Suposto o uso vulgar seja começar pelo nas-cimento, duas considerações me levaram aadotar diferente método: a primeira é que nãosou propriamente um autor defunto, mas umdefunto autor; a segunda é que o escrito fica-ria assim mais galante e mais novo.”

e) “Sua história tem pouca coisa de notável. ForaLeonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; abor-recera-se porém do negócio, e viera ao Brasil.Aqui chegando, não se sabe por proteção dequem, alcançou o emprego de que o vemosempossado.”

13. (UEL-PR) O romance Dom Casmurro, de Ma-chado de Assis,a) filia-se à corrente naturalista, uma vez que o

autor, entusiasmado pelas teses cientificistasda época, elegeu o meio e a hereditariedadecomo as forças básicas de construção de seuuniverso ficcional.

b) é considerado um representante tardio do ro-mance social urbano, na linha inauguradapor José de Alencar, pelo tratamento ousadoe direto dado ao tema do adultério.

c) representa um dos pontos altos do realismobrasileiro, pois ultrapassa os limites de umbanal caso de adultério e tem, na condiçãohumana, captada pelo viés da ironia, a maté-ria de sua narrativa.

d) deve ser encarado como uma produção inde-pendente em relação à nossa tradição literá-ria, visto que inaugura a chamada prosa poé-tica de cunho introspectivo, precursora doromance intimista dos anos 30.

e) está comprometido com os postulados daestética pré-modernista, não só pela escolhacorajosa do tema, mas também pela lingua-gem agressiva, de denúncia, que investe con-tra os valores burgueses.

14. (UFPA) Os enredos dos romances Dom Casmurroe Senhora, do ponto de vista do leitor, remetem a:a) ratificação do papel submisso da mulher no sé-

culo XIX, através das protagonistas.b) crítica da escravidão.c) uma visão da mulher que, conscientemente,

quer ser agente do seu destino — é o caso deCapitu, em Dom Casmurro, e Aurélia, em Se-nhora.

d) supervalorização do sentimento amoroso dasprotagonistas.

e) construção de caricaturas femininas do sécu-lo XIX, por isso Capitu, em Dom Casmurro, eAurélia, em Senhora, aparecem transforma-das e deformadas.

(FGV-SP) Texto para os exercícios de 15 a 18:O meu fim evidente era atar as duas pontas da vi-

da, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor,não consegui recompor o que foi nem o que fui. Emtudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se sóme faltassem os outros, vá; um homem consola-se maisou menos das pessoas que perde; mas falto eu mes-mo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal com-parando, semelhante à pintura que se põe na barba enos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo,como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tin-ta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade po-deria enganar os estranhos, como todos os documen-tos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restamsão de data recente; todos os antigos foram estudar ageologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algu-mas datam de quinze anos, outras de menos, e quasetodas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer ne-la aos outros, mas a língua que falam obriga muita veza consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa.

(Machado de Assis. Dom Casmurro.Rio de Janeiro, Aguilar, 1959.)

15. O personagem-narrador expressa no texto o de-sejo de:a) recompor sua experiência vivida.b) desligar a adolescência da velhice.c) separar sua vida presente da dos amigos que

perdeu.d) unir sua vida presente à dos amigos que perdeu.e) ignorar que o passado e o presente se somam.

16. Segundo o autor-personagem:a) seus amigos eram estudiosos de Geologia.b) seus antigos amigos são os que lhe restam.c) os velhos amigos morreram.d) os novos amigos datam de quinze anos.e) são recentes as amigas que lhe restam.

17. No texto o autor expressa:a) a impossibilidade de se esconder a própria

velhice.b) a possibilidade de enganar-se a si mesmo

usando um documento falso.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 89 • ANGLO VESTIBULARES

Page 26: Dom Casmurro

c) a impossibilidade de se enganar os amigosusando um documento falso.

d) a capacidade de falsear a idade sem uso dedocumentos.

e) a capacidade de enganar estranhos que sãofalsos.

18. Segundo o autor:a) de suas amigas, todas se mantêm jovens.b) algumas de suas amigas parecem jovens mas

traem sua idade usando vocabulário antigo.c) é cansativo consultar dicionários para procu-

rar palavras novas.d) suas amigas são todas de longa data.e) é natural que suas amigas consultem os di-

cionários com bastante freqüência.

19. (FATEC-SP) A propósito do trecho a seguir, deMachado de Assis, e com as informações de quevocê dispõe sobre esse autor, assinale a alternati-va CORRETA.

A imaginação foi a companheira de toda a mi-nha existência, viva, rápida, inquieta, alguma veztímida e amiga de empacar, as mais delas capazde engolir campanhas e campanhas, correndo.Creio haver lido em Tácito que as éguas iberasconcebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutroautor antigo, que entendeu guardar essa crendi-ce nos seus livros. Neste particular, a minha ima-ginação era uma grande égua ibera; a menorbrisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo deAlexandre; mas deixemos metáforas atrevidas eimpróprias dos meus quinze anos. Digamos o ca-so simplesmente. A fantasia daquela hora foi con-fessar a minha mãe os meus amores para lhe di-zer que não tinha vocação eclesiástica.

a) O trecho ironiza o conceito de imaginação, aoassociar imaginação e égua, produção criativae potro.

b) Por suas características temáticas, é possívelidentificar o trecho com o realismo, já quetrata do anticlericalismo.

c) A metalinguagem (que pode ser definida co-mo uma reflexão sobre o próprio ato de es-crever) evidencia-se em trechos como “deixe-mos metáforas atrevidas e impróprias dosmeus quinze anos” ou “digamos o caso sim-plesmente”, mas não é procedimento habi-tual de Machado de Assis.

d) O trecho apresenta foco narrativo em primei-ra pessoa, em que um “eu” tudo julga, sejasuas próprias emoções, seja a tradição literá-ria clássica.

e) O trecho relata objetivamente fatos ocorridosao narrador quando tinha quinze anos; comoo centro da narração é o ato de a persona-gem dizer à mãe que não irá ao seminário,pode-se identifica-lá com facilidade: trata-sede Bentinho, do romance Dom Casmurro.

20. (UEL-PR) No começo do capítulo anterior informei-vos

“quando” exatamente eu nasci; mas não vosinformei “como”. Não; esse particular estavainteiramente reservado para um capítulo separa-do; além disso, senhor, como somos de certomodo perfeitos estranhos um para o outro, nãoteria sido de bom-tom fazer-vos saber, de umasó vez, tantas circunstâncias comigo relaciona-das.O texto acima, do inglês Laurence Sterne, revelatom e procedimento que influenciaram a técni-ca narrativa:a) da novela picaresca de Manuel Antônio de Al-

meida.b) do folhetim romântico de José de Alencar.c) do romance realista de Machado de Assis.d) da prosa naturalista de Aluísio Azevedo.e) do discurso impressionista de Raul Pompéia.

21. Leia para responder:

A fotografiaPalavra que estive a pique de crer que era ví-

tima de uma grande ilusão, uma fantasmagoriade alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel,gritando: — “Mamãe! mamãe! é hora da missa!”restituiu-me à consciência da realidade. Capitu eeu, involuntariamente, olhamos para a fotografiade Escobar, e depois um para o outro. Desta veza confusão dela fez-se confissão pura. Este eraaquele; havia por força alguma fotografia de Es-cobar pequeno que seria o nosso pequeno Eze-quiel. De boca, porém, não confessou nada; re-petiu as últimas palavras, puxou do filho e saírampara a missa.

(Dom Casmurro, cap. 139)

Considerando que um dos objetivos da narrativade Bento Santiago é provar sua inocência no pro-cesso de dissolução de sua família, responda:a) Qual é, na perspectiva do narrador, a principal

declaração do capítulo 139 de Dom Casmurro?b) Há alguma outra passagem do romance que

relativize a certeza da declaração contida nocapítulo 139?

22. Leia para responder:Chamado

[…]Não culpo ao homem; para ele, a coisa mais

importante do momento era o filho. Mas tambémnão me culpem a mim; para mim, a coisa maisimportante era Capitu. O mal foi que os dois ca-sos se conjugassem na mesma tarde, e que amorte de um viesse meter o nariz na vida do ou-tro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois,ou se o Manduca esperasse algumas horas paramorrer, nenhuma nota aborrecida viria interrom-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 90 • ANGLO VESTIBULARES

Page 27: Dom Casmurro

per as melodias da minha alma. Por que morrerexatamente há meia hora? Toda hora é apropria-da ao óbito; morre-se muito bem às seis ou setehoras da tarde.

(Dom Casmurro, fragmento do cap. 84)

a) O texto faz menção a Manduca. Quem é essapersonagem em Dom Casmurro? Qual é suaposição no enredo do romance?

b) Há no texto algo de irônico ou humorístico?Explique sua resposta.

23. Leia para responder:

Otelo[…]

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho,subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam darseis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei emmangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, aúltima, dirigida a Capitu. Nenhuma das outrasera para ela; senti necessidade de lhe dizer umapalavra em que lhe ficasse o remorso da minhamorte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-opor ser longo e difuso. O segundo continha só onecessário, claro e breve. Não lhe lembrava onosso passado, nem as lutas havidas, nem ale-gria alguma; falava-lhe só de Escobar e da ne-cessidade de morrer.

(Dom Casmurro, fragmento do cap. 135)

a) Tendo em vista a fábula de Dom Casmurro, ex-plique a presença do veneno no bolso do nar-rador, acusada nesse fragmento do capítulo135 do romance.

b) Pode haver alguma relação entre o motivopor que o narrador destruiu, no fragmentoacima, um dos textos que escreveu e o estiloadotado por Machado de Assis em Dom Cas-murro? Qual é ela?

RREESSPPOOSSTTAASS1. B

Comentário:Como se trata de um romance muito discutido, abanca optou por limitar o universo das possíveisinterpretações, orientando o candidato para omodo mais atual de entendê-lo. Até os anos 60,D. Casmurro era lido como uma estória de adul-tério ou vilania feminina, surgindo daí o pseudo-problema sobre se Capitu traiu ou não o marido.Atenta contra essa leitura limitada do romance,a questão desloca o foco para a condição do nar-rador, absorvido pela necessidade de justificar adissolução de sua família. Por isso, para se en-tender a narrativa, é preciso perceber a condi-ção de quem a organiza, isto é, não se pode deco-dificar devidamente o romance sem a clara no-

ção daquele que fala. E Bento fala de Capitu, co-mo condição para falar de si. Ao defini-la, nãodeixa de se definir também. A questão destaca,ainda, que os elementos que porventura o leitorpossa atribuir ao narrador não devem excederos limites do universo mental do escritor Macha-do de Assis, que, à maneira do que faria mais tar-de Fernando Pessoa, inventou uma persona-gem e, depois, atribui a ela a autoria de um livro.Essas noções subjazem ao texto do enunciado,que se completa com o conteúdo da alternativacorreta. As demais alternativas não consideramessa problemática, que pertence antes à esferada teoria literária do que a D. Casmurro em par-ticular. Por essa perspectiva, tudo o que chegaao leitor depende da sensibilidade do narrador,que é um velho emotivamente mutilado por jul-gar-se traído pela esposa. Decorre daí o carátercambiante de seu enunciado, que, quase, sem-pre, significa o contrário do que afirma (ironia).Isso tudo, enfim, confere com o espírito da esco-la realista, mais preocupada com a análise doscaracteres do que propriamente com os misté-rios folhetinescos.

2. D 5. D

3. E 6. E

4. D

7. DComentário:No texto apresentado para a questão percebe-seum lance visual na disposição das palavras, quefoi utilizado com mais insistência nas MemóriasPóstumas de Brás Cubas. No capítulo 145 de DomCasmurro (“O regresso”), ocorre outro lance vi-sual semelhante a este.

8. C

9. D

10. D

11. EComentário:Seqüência de alternativas corretas forma um pe-queno resumo de Dom Casmurro, com destaquepara alguns elementos técnicos de composição.

12. BComentário:Trata-se de um trecho do capítulo 2 (“Do livro”).

13. C

14. CComentário:Senhora é um “perfil de mulher”, que exerceu ra-zoável influência em Machado de Assis. Alencarfoi o primeiro, com Lucíola (1862), a abordar oproblema da mulher complicada em nossa lite-ratura.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 91 • ANGLO VESTIBULARES

Page 28: Dom Casmurro

15. A 17. A

16. C 18. D

19. DComentário:A alternativa a seria perfeitamente correta senão excluísse aquela característica da obra deMachado de Assis.

20. CComentário:O trecho citado pertence ao romance TristranShandy, traduzido para o português por JoséPaulo Paes. Tal romance, quase ignorado noséculo XIX, exerceu enorme influência na ficçãomadura de Machado de Assis. Laurence Sterneé um dos mais ilustres e típicos representantesda tradição luciânica.

21. a) A principal declaração desse capítulo é a cul-pa de Capitu no processo de dissolução dafamília de Bento Santiago. Ele pretende con-vencer o leitor de que a confusão de Capitudiante da fotografia de Escobar revela a pa-ternidade deste sobre Ezequiel.

b) Há. Todas as passagens do romance em queBento demonstra insegurança quanto à re-constituição do passado, como a do terceiroparágrafo do capítulo 2, relativizam a certezasobre o que afirma no capítulo 139. Mas háainda uma segunda semelhança em DomCasmurro que também relativiza a certeza deBento quanto à culpa de sua esposa: trata-seda semelhança da falecida esposa de Gurgel,pai de Sancha, com a própria Capitu, revela-da no capítulo 83, cujo título é, curiosamente,“O retrato”. Duas semelhanças num só ro-mance podem insinuar a presença do acaso.

22. a) Manduca morava perto da casa de Bentinho.Era leproso e gostava de escrever. Manteveuma polêmica, por cartas, com o protagonista.Trata-se de uma personagem secundária, semfunção no enredo. Sua presença pobre e doen-te contribui, no entanto, para adensar a at-mosfera realista do romance.

b) Sim, as últimas linhas do texto contêm umaboa dose de humor negro, isto é, geram a gra-ça a partir da abordagem leviana de uma si-tuação séria, a morte alheia. Bento não se aca-nha em expor o seu egoísmo irônico, ao dese-jar que a natureza alterasse o seu curso só paranão quebrar a harmonia de sua alegria pessoal.

23. a) Tendo se convencido da traição da esposa,Bento Santiago decidiu suicidar-se. Comprou oveneno, guardou-o no bolso, foi à casa da mãe,jantou fora, assistiu a uma peça de teatro (a tra-gédia Otelo, de Shakespeare), e tornou a casacom a idéia de suicídio na cabeça.

b) Bento rasgou um dos textos por ser “longo edifuso”, isto é, por ser prolixo, imperfeito es-tilisticamente. Manteve o outro por “contersó o necessário”, por ser “claro e breve”; querdizer, correto estilisticamente. Assim é, em li-nhas gerais, o estilo adotado por Machado deAssis em Dom Casmurro.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 92 • ANGLO VESTIBULARES