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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVI- MENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE” DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ALESSANDRA TEIXEIRA DINIZ PROFª ORIENTADORA:DIVA NEREIDA MARQUES M. MARANHÃO RIO DE JANEIRO JUNHO/2002 PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVI- MENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVI-

MENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE”

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM

ALESSANDRA TEIXEIRA DINIZ

PROFª ORIENTADORA:DIVA NEREIDA MARQUES M. MARANHÃO

RIO DE JANEIRO JUNHO/2002

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVI-

MENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

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CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PROJETO "A VEZ DO MESTRE”

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM

Monografia apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de Pós Graduação Lato Sensu em terapia de Famí-lia para disciplina de metodologia da Pes-quisa. Por: Alessandra Teixeira Diniz Professora Orientadora: Diva Ne-reida Marques M. Maranhão

RIO DE JANEIRO Junho/2002

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AGRADECIMENTOS

Dedico, com carinho, todo o meu estudo e pesquisa, as três queri-das mestras, Regina, Edna e Titã, que me serviram como exemplo a ser seguido.

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RESUMO

Para falar sobre o desenvolvimento da linguagem do ser cognos-

cente, temos em um primeiro momento o pensamento de Piaget, com relação

a isso, no livro “Inteligência e Afetividade da criança na Teoria de Piaget”:

“De um modo geral, o fato a ser enfatizado é que o padrão de

comportamento, característico dos diferentes estágios, não se sucede um ao

outro de modo linear (aqueles de um dado estágio desaparecendo no momento

um que o que se segue toma forma), mas como camadas de uma pirâmide (de

cima para baixo ou de baixo para cima), em que o novo padrão de comporta-

mento, simplesmente, é adicionado aos velhos para completar, corrigir ou

com eles combinar.” (Piaget, 1952).

Segundo Piaget, não esquecemos o que aprendemos, o aprendi-

zado, apenas vai se acumulando, conforme vamos mudando de estágios:

“O período que se estende do nascimento à aquisição da lingua-

gem é marcado por um extraordinário desenvolvimento da mente. Sua impor-

tância é algumas vezes submetida por não ser acompanhada de palavras que

permita acompanhar, passo a passo, o processo da inteligência e das emoções,

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como acontece depois. No entanto, o desenvolvimento mental que ocorre nes-

se período determina o curso inteiro da evolução psicológica... No início deste

desenvolvimento, o bebê incorpora tudo a si próprio – ou, em termos mais

precisos, a seu próprio corpo – enquanto que no final do período, isto é, quan-

do a linguagem e o pensamento despontam, ele está para todos os propósitos

práticos, mas um elemento ou entidade entre outros, em um universo que gra-

dualmente ele próprio constrói, e que futuramente ele irá experimentar como

externo a ele.” (Piaget, 1967).

Para compreender que o aparecimento da linguagem se dê, o ob-

servador deve registrar, cuidadosamente, o comportamento da criança. A evo-

lução que ocorre consiste numa seqüência de períodos marcantes fluentes, na

qual cada período incorpora o anterior e marca um novo avanço.

A linguagem falada é uma forma de conhecimento social, como

podemos observar nos estudos de Piaget:

“É fundamental que haja transmissão hereditária do mecanismo

que torna possível esta aquisição (da linguagem falada). A linguagem em si é,

no entanto, adquirida através de transmissão externa. Desde que o homem

começou a falar, nunca houve um exemplo de manifestação hereditária da

estrutura lingüística.” (Piaget, 1963).

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Para Piaget a linguagem torna-se funcionalmente comunicativa,

quando há uma interação social:

“E então, o que dá origem à necessidade de verificação? Certa-

mente deve ser o choque de nossos pensamentos quando entram em contato

com o pensamento dos outros, o que provoca dúvidas e o desejo de provar...

A necessidade social de compartilhar dos pensamentos dos outros e a de co-

municar os nossos com sucesso é a raiz de nossa necessidade de verificação.

A prova é o resultado do argumento... O argumento é, portanto, o suporte

principal da socialização.” (Piaget, 1928).

No livro “Aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio –

histórico”, Vygotsky mostra claramente que o desenvolvimento do ser cog-

noscente, recebe grande influência do social:

“Podemos pensar, por exemplo, num indivíduo que vive num

grupo cultural isolado que não dispõe de um sistema de escrita. Se continuar

isolado nesse meio cultural que desconhece a escrita, esse indivíduo jamais

será alfabetizado. Isto é, só o processo de aprendizado da leitura e da escrita

(desencadeando num determinado ambiente sociocultural onde isso seja pos-

sível) é que poderia despertar os processos de desenvolvimento internos do

indivíduo que permitam a aquisição da leitura e da escrita. Confirmando o

mesmo fenômeno, podemos supor que se esse indivíduo, por alguma razão,

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deixasse seu grupo de origem e passasse a viver num ambiente letrado, pode-

ria ser submetido a um processo de alfabetização e seu desenvolvimento seria

alterado.” (Vygotsky, p. 101).

Como podemos observar, os dois teóricos dão um enfoque no social, como

sendo o responsável pelo desenvolvimento da linguagem do ser cognoscente. Esse desen-

volvimento não é inato, não nasce com o indivíduo, ele adquire com o tempo e em suas

respectivas fases do desenvolvimento.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11

CAPÍTULO I – LINGUAGEM E MENTE..................................................................... 13

I.1. A LINGUAGEM E O CÉREBRO ....................................................................... 13

I.2. A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM .................................................................... 16

I.3. A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO E LINGUAGEM................................. 21

CAPÍTULO II - A LINGUAGEM FALADA ................................................................. 27

II.1. A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA........................................................................... 27

II.2. A ESCOLA E A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA................................................... 34

II.3. DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E DA FALA................................. 39

CAPÍTULO III - OS DISTÚRBIOS DA FALA ............................................................. 41

III.1. MUDEZ................................................................................................................ 41

III.2. ATRASO NA LINGUAGEM .............................................................................. 44

III.3. PROBLEMA DE ARTICULAÇÃO ................................................................... 46

III.3.1 LINGUAGEM TATIBITATE..................................................................... 47

CAPÍTULO IV - LINGUAGEM E SOCIEDADE ......................................................... 49

IV.1. A PISCOLINGÜÍSTICA...................................................................................... 49

IV.2. A SOCIOLINGÜÍTICA ....................................................................................... 50

CONCLUSÃO.................................................................................................................... 54

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 56

ANEXOS ............................................................................................................................ 57

11

INTRODUÇÃO

Sendo a linguagem o principal elemento para a comunicação en-

tre os homens, busco nesse trabalho a conscientização da importância dela na

construção do ser cognoscente.

Como podemos estabelecer qualquer tipo de contato com um ser

que não consegue se comunicar?

Temos que construir uma espécie de comunicação com este ser,

seja pela escrita, fala e até mesmo expressões do corpo (olhar, gestos, atitu-

des,...).

Temos que entender como este ser entende o que estamos expli-

cando, e adaptarmos um meio para que haja um vínculo nessa divergência de

linguagem.

O ser cosnoscente, deixando de vivenciar qualquer etapa do seu

desenvolvimento na linguagem, pode sofrer muito no aspecto social, no cam-

po afetivo ou até mesmo uma rejeição da família. Com isso acarretando pro-

blemas afetivos como por exemplo uma baixa-estima, sua auto-imagem nega-

tiva,...

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Como embasamento teórico para esse trabalho pretendo apresen-

tar Jean Piaget, Vygotsky e Emília Ferreiro, que contribuíram muito nos estu-

dos sobre o desenvolvimento da linguagem e afetividade do ser cognoscente.

Piaget contribuiu muito para o desenvolvimento cognitivo e afe-

tivo, devido seus estudos que originaram-se na Biologia, passando pela Filo-

sofia e Psicologia. Em suas observações Piaget chegou a conclusão de que o

desenvolvimento biológico não se dava devido apenas a maturação, e sim

também a uma adaptação ao meio. Após ter trabalhado no laboratório de Bi-

net (pai dos testes de inteligência), não satisfeito com as respostas, Piaget re-

solveu investir nas pesquisas do desenvolvimento do ser cognoscente.

Vygotsky iniciou seus estudos na literatura, poesia e teatro, mais

tarde ingressou no curso de Direito e paralelamente fez cursos de História e

Filosofia, mas aprofundou seus estudos em Psicologia, Filosofia e Literatura.

Vygotsky trabalhou em uma área chamada pedologia (ciência da

criança que integra os aspectos biológicos, psicológicos e antropológicos), ele

considerava essa disciplina como sendo a ciência do desenvolvimento huma-

no. Por isso acredito que tais autores muito contribuirão para o estudo a cerca

da linguagem.

13

CAPÍTULO I

LINGUAGEM E MENTE

1.1. Linguagem e o Cérebro

De todos os órgãos corporais, o cérebro é o que desempenha o

papel mias significativo nas operações que normalmente descrevemos como

mentais, qualquer que seja a opinião que a pessoa tenha a respeito do famoso

problema mente-corpo.

O cérebro humano é muito complexo; e o modo pelo qual ele de-

sempenha suas funções é apenas parcialmente compreendido.

É sabido há bem mais de cem anos que existe uma relação especial entre a

linguagem e o hemisfério esquerdo, de modo que a linguagem é controlada

pelo hemisfério esquerdo. O processo através do qual um dos hemisférios do

cérebro é especializado para o desempenho de certas funções é conhecido

como lateralização (na pequena maioria das vezes, entre os canhotos, em que

o hemisfério esquerdo não é especializado para a linguagem, é o hemisfério

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direito que o é: isto é, a lateralização ainda assim ocorre). O processo de late-

ralização é sujeito a maturação, no sentido de que é geneticamente pré-

programado, mas leva tempo para se desenvolver. Existem, muitos processos

desse tipo no desenvolvimento biológico de todas as espécies. Considera-se

geralmente que começa quando a criança tem mais ou menos dois anos e

completa-se em algum ponto da faixa entre os cinco anos e o início da puber-

dade.

A lateralização para a linguagem não é o único tipo de especiali-

zação de função que se desenvolve nos seres humanos com relação a um he-

misfério do cérebro ao invés do outro; e a lateralização em geral é comumente

considerada uma pré-condição evolutiva do desenvolvimento de inteligência

superior no homem. O fato de a lateralização ser uma pré-condição para a a-

quisição da linguagem também constitui uma opinião amplamente aceita.

Com este ponto de vista podemos observar que a aquisição da linguagem co-

meça mais ou menos ao mesmo tempo que a lateralização e completa-se nor-

malmente, quando o processo de lateralização termina. Podemos observar

ainda o fato de que se torna progressivamente mais difícil adquirir a lingua-

gem depois da idade em que a lateralização está completa. Com efeito, parece

existir o que freqüentemente denomina-se idade crítica para a aquisição da

linguagem, no sentido de que a linguagem não será adquirida, ou pelo menos

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não com domínio total dos seus recursos, a não ser que o seja até a época em

que a criança atinge a idade em questão.

Embora a noção de que existe uma idade crítica para a aquisição

da linguagem não seja aceita universalmente, ela é reforçada pelo caso im-

pressionante de Genie. Descoberta aos treze anos e tinha sido criada por seus

pais totalmente isolada deles e dos outros, apanhando toda vez que fazia al-

gum barulho, e vítima virtual de todo tipo de depravação emocional e sensori-

al. Uma das conseqüências disso, foi que ela não sabia falar. Tendo sido aten-

dida, ela embarcou no processo de aquisição da linguagem, guiada por psicó-

logos e lingüistas, e progrediu rapidamente no início. Com isso parecia ter

refutado a hipótese da idade crítica. Nesse caso a menina possuía uma memó-

ria para vocabulário, e o desenvolvimento intelectual era satisfatório, mas ti-

nha dificuldades com qualquer aspecto de estrutura gramatical que não seja

extremamente simples. Tem sido defendido, portanto, que o caso a cima não

confirma apenas a idade crítica, mas também a opinião de que a faculdade de

aquisição da linguagem é independente de outras habilidades intelectuais.

Acreditava-se que, apesar dos determinantes genéticos da latera-

lização, havia maleabilidade suficiente, para que o outro hemisfério assumisse

as funções para as quais ele não seria normalmente especializado, na eventua-

lidade de dano ou cirurgia, contando que a necessidade disso surgisse antes do

final do processo de lateralização. Entretanto, estudos mais cuidadosos do

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comportamento lingüístico daqueles cujo hemisfério esquerdo tinha sido re-

movido no início da infância, que, apesar de não apresentarem imediatamente,

eles têm dificuldade com certas construções gramaticais.

Podemos mencionar também, que diferentes aspectos do proces-

samento lingüístico parecem ser mais característicos do hemisfério esquerdo

do que outros. O hemisfério direito pode interpretar palavras isoladas que de-

notam entidades físicas sem dificuldades; não é tão eficiente na interpretação

de sintagmas gramaticalmente complexos. Pode ser igualmente relevante que,

enquanto o hemisfério esquerdo é tido como melhor para o pensamento asso-

ciativo e para o raciocínio analítico, o direito é mais eficiente não apenas para

o processamento audiovisual, mas também para o reconhecimento de padrões

de entonação e, curiosamente, para a interpretação musical. O que sugere é

que o comportamento lingüístico envolve a interação de vários processos dis-

tintos do ponto de vista neurofisiológico. Podemos dizer que seria reconheci-

do, como parte mais distintamente lingüística da linguagem está associada ao

hemisfério esquerdo.

1.2. Aquisição da Linguagem

O termo “aquisição da linguagem” é normalmente usado sem

ressalvas para o processo que resulta no conhecimento da língua nativa. É

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concebível que a aquisição de uma língua estrangeira, se aprenda sistemati-

camente na escola ou não, processa-se de modo bastante diferente. Com efei-

to, a aquisição da língua materna depois da alegada idade crítica para a aqui-

sição da linguagem pode diferir, por motivos neurofisiológicos, da aquisição

da língua materna por parte da criança normal.

E é admirável que, mesmo nessas circunstâncias, haja ainda pes-

soas que conseguem aprender a usar a linguagem ou reaprendê-la, atingindo

um extraordinário grau de perfeição. Por exemplo: alguém que tenha sofrido

uma lesão cerebral irreversível e grave a ponto de comprometer o uso da lin-

guagem, com o tempo pode recuperar grande parte da capacidade de utilizá-

la. Esse é um caso de comportamento sério, mas há os mais circunstanciais,

como o de alguém que, quando sente dor, revela uma dificuldade no uso da

linguagem que uma pessoa sã não apresenta. E essa dificuldade pode restrin-

gir em muito a execução de sua tarefa lingüística, impedindo, ao se manifestar

que seu portador diga o que quer, e como gostaria, ou que entenda como con-

viria o que lhe é dito.

Uma criança com fome pode ter dificuldades no desempenho das

tarefas escolares, mas, se ela continua viva, com força para se locomover até a

escola, significa que dispõe de força também para aprender. Num dia será ter-

rível para ela, porque a fome é aguda; no outro, em que tiver a oportunidade

de se alimentar, sua disposição será razoável, e nesse jogo levará sua vida.

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Qualquer criança que ingressa na escola aprendeu a falar e a entender a lin-

guagem sem necessitar de treinamentos específicos ou de prontidão para isso.

Ninguém precisou arranjar a linguagem em ordem de dificuldades crescentes

para facilitar o aprendizado da criança. Ninguém disse que ela deveria fazer

exercícios de discriminação auditiva para aprender a reconhecer a fala ou para

falar. Ela simplesmente se encontrou no meio de pessoas que falavam e a-

prendeu.

A criança, evidentemente, não entrou para o mundo da lingua-

gem da mesma forma que um adulto se inicia no aprendizado de uma língua

estrangeira. Ela foi exposta ao mundo lingüístico que a rodeia e nele foi, ela

própria, traçando o seu caminho, criando que lhe era permitido fazendo com

que a linguagem. Nesse seu processo se percebe uma evolução nem sempre

simples nem sempre lógica, mas sempre condizente com seu modo de ser e de

estar no mundo. E, já com três anos chega ao ponto de ser considerada um

falante nativo de uma língua. Tal processo é, no total, independente de inteli-

gência e de diferenças de meio social e cultural.

Embora as crianças comecem a falar mais ou menos com a mes-

ma idade, é impossível dizer de qualquer uma exatamente quando começou a

falar. Uma das razões é que a transição entre um estágio identificado de des-

envolvimento lingüístico e outro é gradual e não repentino. Existe ainda a

complicação de a produção de uma criança não equivaler à sua compreensão.

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Nos primeiros seis meses de vida a criança passa normal e sucessivamente do

choro ao arrulho e do arrulho ao balbucio. Há pouca dúvida de que esta se-

qüência de desenvolvimento é determinada de nascença, pois os sons produ-

zidos no choro e no arrulho, e no início do período do balbucio, não são afe-

tados pelos ambientes lingüísticos nos quais a criança é criada; e as crianças

surdas também choram, arrulham e, pelo menos no início, balbuciam do

mesmo modo que as crianças que ouvem.

Em alguns casos o balbucio sobrepõe-se por um tempo conside-

rável ao processo de aquisição e uso de distinções fonológicas; e a diferença

entre balbucio e falar torna-se então bastante aparente. A maioria dessas dis-

tinções fonológicas terão sido dominadas quando a criança atinge os cinco

anos.

As crianças de três ou sete anos, como falantes nativos, também

usam um dialeto que tem, além de um vocabulário, um conjunto de regras

gramaticais específicas. Uma característica da fala da criança que chama a

atenção do adulto é o fato de ela generalizar regras, ou seja, o fato de ela apli-

car a regra geral quando deveria aplicar uma particular. É quando a criança

diz eu, em vez de eu fiz, como eu vendi, comi, etc. Qualquer manifestação

lingüística, desde a mais terna idade, tem vocabulário e regras.

20

Todo falante nativo usa sua língua conforme as regras próprias

de seu dialeto, espelho da comunidade lingüística a que está ligado. Natural-

mente, há diferenças entre um dialeto e o outro, mas isso não significa que um

dialeto dispõe de regras e outro não. A linguagem é um fato social e sobrevive

às convenções sociais que são admitidas para ela. As pessoas falam da manei-

ra como seus semelhantes e por isso se entendem.

A escola moderna se envolve num emaranha do de teorias e mé-

todos, mas se afastou, de fato, da realidade de seus alunos. O que fez a esco-

la? Creio que nem ela própria sabe explicar. É preciso recuperar o fio da mea-

da e começar a tecer de novo, não ao acaso, nem de maneira mais complicada

do que o próprio mundo, mas na justa medida das coisas. Por exemplo, ensi-

nar português é ensinar português e não fazer disso um campo de prova de

teorias ou hipóteses psicológicas, pedagógicas ou psicopedagógicas.

Com isso as implicações no estudo da natureza da linguagem em

relação à mente humana que tratamos da aquisição da linguagem. As inabili-

dade relacionadas a linguagem, tanto de crianças quanto de adultos, não po-

dem ser diagnosticadas nem tratadas apropriadamente por terapeutas da pala-

vra se não for com base numa melhor compreensão da aquisição, normal e

anormal, da linguagem. O material didático para crianças de escolas primárias

pode ser melhorado se for dirigido, não apenas em vocabulário, mas também

em gramática, à competência lingüística do público ao qual se destina. Além

21

disso, na medida em que a idade mental de uma criança com a qual os educa-

dores trabalham é determinada parcialmente por testes relacionados com a

linguagem, é possível averiguar se os testes em questão são ou não válidos e

dignos de confiança. É especialmente importante que os professores e todos

aqueles envolvidos na educação da criança não deixem de perceber, por um

lado, sinais de surdez parcial ou de dislexia incipiente nem de diagnosticar,

por outro, seja retardamento mental, seja uma chamada deficiência de lingua-

gem, por se basearem em dados não idôneos. Trabalhos recentes sobre o estu-

do da aquisição da linguagem muito têm feito no sentido de tornar os dados

mais dignos de confiança, embora não tenham resolvido, até o momento, ne-

nhuma questão teórica profunda.

1.3. A Relação entre Pensamento e Linguagem

O estudo das relações entre pensamento e linguagem é conside-

rado um dos temas mais complexos. Vygotsky se dedicou a este assunto du-

rante muitos anos de sua vida. Ele e seus colaboradores trouxeram importan-

tes contribuições sobre o tema, principalmente no que se refere à questão da

compreensão das raízes genéticas da relação entre o pensamento e a lingua-

gem.

22

A relação entre o pensamento e a fala passa por várias mudanças

ao longo da vida do indivíduo. Apesar de terem origens diferentes e de se de-

senvolverem de modo independente, numa certa altura, graças à inserção da

criança num grupo cultural, o pensamento e a linguagem se encontram e dão

origem ao modo de funcionamento psicológico mais sofisticado, tipicamente

humano.

A conquista da linguagem representa um marco no desenvolvi-

mento do homem; a capacitação especificamente humana para a linguagem

habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de

tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um

problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento.

Signos e palavras constituem para a criança, um meio de contato social com

outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem torna-se,

então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças. Sendo

assim, a linguagem tanto expressa o pensamento da criança como age como

organizador desse pensamento.

Tanto nas crianças como nos adultos, a função primordial da fala

é o contato social, a comunicação; isto quer dizer que o desenvolvimento da

linguagem é impulsionada pela necessidade de comunicação. Assim, mesmo a

fala mais primitiva da criança é social. Nos primeiros meses de vida, o balbu-

cio, o riso, o choro, as expressões faciais ou as primeiras palavras da criança

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cumprem não somente a função de alívio emocional, como também são meios

de contato com os membros de seu grupo. No entanto, esses sons, gestos ou

expressões são manifestações bastante difusas, pois não indicam significados

específicos. Vygotsky chamou esta fase de estágio pré-intelectual do desen-

volvimento da fala.

Antes de aprender a falar a criança demonstra uma inteligência

prática que consiste na sua capacidade de agir no ambiente e resolver proble-

mas práticos, inclusive com o auxílio de instrumentos intermediários como

por exemplo, ser capaz de se utilizar de um baldinho para encher de areia ou

de subir num banco para alcançar um objeto, mas sem a mediação da lingua-

gem. Esse é o estágio pré-lingüístico do desenvolvimento do pensamento.

Através de inúmeras oportunidades de diálogo, os adultos, que já

dominam a linguagem, não só interpretam e atribuem significados aos gestos,

posturas, expressões e sons da criança como também a inserem no mundo

simbólico de sua cultura. Na medida em que a criança interage e dialoga com

os membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem como

instrumento do pensamento e como meio de comunicação. Nesse momento o

pensamento e a linguagem se associam, conseqüentemente o pensamento tor-

na-se verbal e a fala racional.

24

Analisando as explicações de Vygotsky sobre o processo de con-

quista da utilização da linguagem como instrumento de pensamento, que evi-

dencia o modo pela qual a criança interioriza os padrões de comportamento

fornecidos por seu grupo cultural. Através de seus experimentos, pôde obser-

var que este processo, apesar de dinâmico e não linear, passa por estágios que

obedecem à seguintes trajetórias: a fala evolui de uma fala exterior para uma

fala egocêntrica, e desta para uma fala interior. A fala egocêntrica é entendida

como um estágio de transição entre a fala exterior e a fala interior.

Primeiramente a criança utiliza a fala como meio de comunica-

ção, de estabelecimento de contato com outras pessoas. Para a resolução de

um problema, a criança faz apelos verbais a um adulto. Nesse estágio a fala é

global, tem múltiplas funções, mas não serve ainda como um planejamento de

seqüências a serem realizados; assim não é utilizada como um instrumento do

pensamento. Essa é a fala de discurso socializado.

Aos poucos, a fala socializada, que antes era dirigida ao adulto

para resolver um problema, é internalizada, ou seja, a criança passa a apelar

para si mesma para solucionar uma questão; é o chamado discurso anterior.

Deste modo, além das funções emocionais e comunicativas, a fala começa a

ter também a função planejadora. Nesse caso, a criança estabelece um diálogo

com ela mesma, sem vocalização, com vistas a encontrar uma forma de solu-

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cionar o problema. Portanto, a fala passa a preceder a ação e funcionar como

auxílio de um plano já concebido mas ainda não executado.

Ao aprender a usar a linguagem para planejar uma ação futura, a

criança consegue ir além das experiências imediatas. Esta “visão do futuro”

permite que as crianças realizem operações psicológicas bem mais complexas.

Existe um tipo de fala intermediária que funciona como uma es-

pécie de transição entre o discurso socializado e o interior. A principal carac-

terística dessa fala é que ela acompanha a ação e se dirige ao próprio sujeito

da ação. Nesse estágio a criança fala alto mas não se dirige a nenhum interlo-

cutor, dialoga consigo mesma. Também serve para planejar e solucionar um

problema, só que é como planejasse em voz alta, antes ou ao longo da realiza-

ção da atividade.

As características da função planejadora da fala a partir de uma

interessante analogia com a fala das crianças enquanto desenham. As menores

tendem a nomear sues desenhos somente após realizá-los e vê-los. A decisão

do que serão é assim, posterior à atividade. Uma criança um pouco mais velha

nomeia o seu desenho quando este já está quase pronto e, mais tarde, geral-

mente decidem previamente o que desenharão. Nesse caso, a fala é anterior à

atividade e, portanto, dirige a ação. Quando a fala se desloca para o início da

atividade, uma nova relação entre fala e ação se estabelece.

26

O domínio da linguagem promove mudanças radicais na criança,

principalmente no seu modo de se relacionar com seu meio, pois possibilita

novas formas de comunicação com os indivíduos e de organização de seu

modo de agir e pensar.

27

CAPÍTULO II

A LINGUAGEM FALADA

2.1. A Variação Lingüística

Tem-se falado, em vários momentos, a respeito da variação lin-

güística. A maior parte dos problemas de fala e escrita estão ligados a esse

fenômeno. Até hoje os autores de livros didáticos não o têm levado em conta,

confundindo elementos importantes e não atendendo de fato o que acontece

sobretudo nos primeiros momentos da escolarização, ocasião dos primeiros

contatos das crianças com o estudo da sua língua, e em particular com a aqui-

sição do sistema de escrita na alfabetização. A própria visão da gramática

muda dependendo do modo como se incorpora a visão lingüística: de uma

maneira tradicional ou da forma como a sociolingüística explica esse fenôme-

no. Todo mundo sabe que há modos diferentes de se falar uma língua, mas

diante das diferenças se pode ser intransigente, atribuindo a isso valores de

certo e errado de acordo com uma gramática normativa preestabelecida pelos

estudiosos, como se pode, por outro lado, fazer uma gramática dessas mesmas

28

diferenças e observar como a sociedade as manipula para justificar seus pre-

conceitos. A escola, como representante da sociedade, costuma incorporar

esses preconceitos, mesmo sem ter consciência do fato. Por isso, parece im-

portante discutir mais detalhadamente esse assunto. Muitos dos aspectos téc-

nicos apresentados, se torna de mais fácil compreensão, mais claro, quando se

entende de fato o que é a variação lingüística e como ela ocorre numa socie-

dade como a nossa. Juntamente com o problema da variação lingüística será

preciso discutir alguns pontos relacionados muito intimamente com ela, co-

mo, por exemplo, as funções da linguagem e a noção de gramaticalidade, a

linguagem e a mente humana, a relação entre linguagem e cultura.

A linguagem humana tem uma função comunicativa. Mas essa é

apenas uma dentre uma série de outras funções, e nem sempre a comunicação

é a função mais importante no uso da linguagem. Quando as pessoas falam,

não pretendem sempre e só transmitir informação, conhecimento novo. Por

exemplo, pode-se dizer a uma pessoa: “cale a boca” simplesmente informan-

do uma ordem ao interlocutor, mas, com a entonação apropriada, pode-se di-

zer as mesmas palavras não só informando, como, ainda, ameaçando. Ameaça

a pessoa não é transmissão de conhecimento novo. A própria ordem não o é.

Quem diz “cale a boca” pode até não querer informar nada além da ameaça,

uma vez que a ordem, isto é, o não falar, é algo que o interlocutor sabe muito

29

bem, como sabe até que está infringindo uma regra e o “cale a boca” o relem-

bra disso.

A promessa é uma instituição social que se realiza através da fa-

la, quando alguém diz, por exemplo, “Eu prometo comprar o brinquedo no

Natal”. A informação “comprar brinquedo no Natal” tem um valor muito pe-

culiar neste caso, porque é entendida pelos interlocutores como um compro-

misso, um contrato, que obriga o falante a fazer algo e o ouvinte a exigir que

isso seja feito pelo falante. Tanto é assim que, se no Natal o brinquedo não for

comprado, o ouvinte reclamará ao falante: “Você prometeu e não cumpriu”.

Como se vê, além de comunicar, a linguagem estabelece direitos

e deveres entre os interlocutores.

Quando eu digo a alguém “passe o sal”, eu não o estou infor-

mando apenas do fato de “passar o sal”, mas estou exercendo um direito que a

linguagem me confere de ordenar ou pedir algo a alguém, porque o ouvinte da

minha fala, tem a obrigação não só de entender o que lhe disse, mas ainda de

fazer o que mandei ou pedi. Se a pessoa não tomar nenhuma iniciativa real,

ela passará por mal educada.

Como se nota, a linguagem tem funções muito especiais. Às ve-

zes é um exercício de poder de uns sobre os outros. Através dela podemos

convencer as pessoas, aliviar seus traumas, como nos divãs dos psicólogos,

30

condicionar os telespectadores a comprar produtos, dizendo maravilhas de

coisas simples como um sabão em pó ou uma escova de dentes. Pode-se rela-

tar uma história omitindo fatos para que o ouvinte pense que sabe tudo e na

verdade adquira um conhecimento falso por incompleto.

É através da linguagem que se mente, e a mentira não pretende só

comunicar algo errado ao falante, mas fazer com que ele use essa informação

para cometer um outro erro. Induzir as pessoas a tomar certas atitudes através

da fala é algo mais do que uma simples transmissão de mensagem do falante

para o ouvinte.

A linguagem nem é bonita; às vezes esconde na sua picada um

veneno mortal. Se fosse só comunicação, seria inócua e as pessoas não mani-

pulariam provas através da linguagem, como num tribunal.

A linguagem pode ofender as pessoas: há os palavrões, xinga-

mentos, além de outras formas mais sutis. Usar o nome de uma pessoa mal-

vista pela sociedade pode ser também uma forma de ofender o ouvinte, por

exemplo, “você é um Hitler”.

É comum dizermos coisas nas entrelinhas e um exemplo impres-

sionante na nossa leitura é encontrar “Miguilim”, de Guimarães Rosa.

31

Às vezes uma frase pode ter várias conotações; convivemos com

isso a todo instante, tendo de chamar a atenção do ouvinte para a idéia que se

quer transmitir.

Há um tipo especial de interpretação que decorre de determina-

das pressuposições. Se alguém diz, por exemplo, “Carlos parou de xingar os

colegas”, não só significa que ele não xinga mais os colegas, mas significa

também que antes ele xingava os colegas. Se o ouvinte negar esse conheci-

mento dizendo “Carlos não xingava os colegas”, cria-se um impasse.

Esse fenômeno semântico explica alguns fatos que ocorrem na

escola.

Em algumas vezes uma pergunta que parece tão simples e fácil

pode criar embaraços sérios para alguns alunos, não por causa do que a res-

posta exige em termos de conteúdo, mas por causa da própria maneira de se

lidar com a pergunta e a resposta. A questão é a seguinte: “Por que os holan-

deses não colonizaram o Brasil?”. A resposta que a professora esperava era:

“Porque os holandeses perderam a guerra contra os português e foram expul-

sos do Brasil”. Pelas respostas inesperadas de alguns alunos, observou-se que

eles se encontraram num impasse para responder àquela pergunta. Eles sabi-

am que os holandeses tinham se instalado no Brasil e que aqui ficaram por um

certo período, durante o qual colonizaram parte do país, sendo depois expul-

32

sos pelos português, que, de fato, foram os nossos principais colonizadores. A

pergunta, tal como foi feita, trazia consigo uma ambigüidade: a colonização a

que se referia dizia respeito ao processo maior de colonização, ou se aplicava

a qualquer tentativa de colonização no país? A professora interpretou a per-

gunta da primeira forma, deixando de lado a segunda. Alguns alunos respon-

deram simplesmente que os holandeses colonizaram o Brasil, negando o pres-

suposto da pergunta segundo a interpretação da professora, mas não segundo

a sua interpretação, baseada nos seguintes fatos: os holandeses vieram para

cá, ficaram certo tempo, colonizaram e depois foram expulsos. Outros alunos

responderam dizendo que os holandeses não colonizaram o Brasil porque não

sabiam como faze-lo e foram expulsos. Esses alunos re-interpretaram os fatos

que sabiam, a partir da pergunta da professora, concluindo que os holandeses

perderam a guerra porque não sabiam colonizar, eram incapazes e por isso

não colonizaram o Brasil, o que não corresponde exatamente aos fatos. Como

se pode ver pelos poucos exemplos acima, a pergunta tinha uma resposta fácil

para quem, além de conhecer os fatos, sabia das expectativas da professora.

Só a partir do conhecimento dos fatos, a resposta não era óbvia nem fácil;

pelo contrário, exigia um esforço de raciocínio lingüístico que podia ser ex-

presso da seguinte maneira: apesar de os holandeses terem vindo ao Brasil,

ficado aqui por certo tempo, durante o qual colonizaram parte do país, e terem

sido depois expulsos pelos português, na pergunta colonizar não está se refe-

33

rindo a qualquer pequena e episódica colonização do Brasil, mas à grande co-

lonização no tempo e no espaço. Aí está a resposta; contudo, para chegar a

esse ponto o caminho não foi fácil. Por fim, percebe-se claramente através

desse caso com a linguagem nem sempre comunica o que deve de maneira

fácil, mesmo por meio de palavras cujos significados literais isolados são de

fácil e comum compreensão. Ainda mais: a experiência que as pessoas adqui-

rem na manipulação de fenômenos desse tipo leva-as a usar e abusar da lin-

guagem.

Um outro ponto a ser discutido, é o caráter convencional da lin-

guagem. Naturalmente, a linguagem é convencional e por isso a comunicação

pode se estabelecer, bem como todas as outras funções da linguagem. Porém,

a linguagem não é necessariamente aberta, clara, explicita. Podem-se dizer

muitas coisas de modo que, em seu sentido literal e por uma interpretação su-

perficial, apresentem um determinado significado, mas que interpretadas à luz

de certos conhecimentos específicos, revelam seu significado diferente.

A sociedade é regida por leis públicas que todo cidadão deve co-

nhecer. Acontece, porém, que as leis são escritas numa linguagem que nem

todo cidadão consegue entender. E, para quem entende, elas dão margem a

interpretações várias, pois, embora escritas numa linguagem convencional,

esta não é óbvia, não é explícita de maneira absoluta.

34

A convencionalidade da linguagem não rege só as relações entre

signos lingüísticos e o mundo, mas está presa também a valores sociais, eco-

nômicos, ideológicos, políticos, religiosos. Dependendo de contextos desse

tipo, o próprio sentido literal das palavras muda.

Através do modo de falar de cada um, revela-se o status social

dos indivíduos e grupos sociais, ficando definido o lugar de cada um na soci-

edade.

2.2. A Escola e a Variação Lingüística

Podemos observar que as línguas evoluem com o tempo, se trans-

formam e vão adquirindo peculiaridades próprias em função do seu uso por

comunidades específicas. Todas as variedades, do ponto de vista estrutural e

lingüístico, são perfeitas e completas em si. O que as diferencia são os valores

sociais que seus membros têm na sociedade. Desse modo, um baiano falará

como baiano, não como gaúcho, uma pessoa de classe social alta não falará

como uma de classe baixa, e assim por diante.

35

Os modos diferentes de falar acontecem porque as línguas se

transformam ao longo do tempo, assumindo peculiaridades características de

grupos sociais diferentes, e os indivíduos aprendem a língua ou o dialeto da

comunidade em que vive. O latim vulgar foi numa certa época considerado

dialeto das classes pobres, e por isso desprestigiava-se quem o falava. Depois

transformou-se nas línguas românticas, e a sociedade trocou o latim clássico

por essas línguas; do ponto de vista dos antigos, mais bárbaras que o próprio

latim vulgar. Então as línguas românticas vindas do latim vulgar, passaram a

exercer a função de línguas de prestígio na nova sociedade estabelecida.

Essas considerações mostram que as línguas, quando se trans-

formaram com o passar do tempo, não se degeneram, não se tornam imperfei-

tas, estragadas, mas adquirem novos valores sociolingüísticos, ligados às no-

vas perspectivas da sociedade, que também muda. Nessas transformações não

aparece o certo e o errado lingüístico, mas o diferente. Certo e errado são con-

ceitos pouco honestos que a sociedade usa para marcar os indivíduos e classes

sociais pelos modos de falar e para revelar em que consideração os tem, se

são pessoas que gozam de influência ou ocupam posições de prestígio ou não,

se exercem o poder instituído ou não, etc. Essa atitude da sociedade revela

seus preconceitos, pois marca as diferenças lingüísticas com marcas de prestí-

gio ou estigma.

36

A escola, incorpora esse comportamento preconceituoso da soci-

edade em geral, também rotula seus alunos pelos modos diferentes de falar.

Um é inteligente, culto, bem dotado fisicamente, possuidor de boa visão, au-

dição e controle motor; outro é ignorante, incapaz para o trabalho intelectual,

para aprender coisas abstratas e lógicas, portador de deficiência visual e audi-

tiva e desprovida de habilidade manual para executar tarefas delicadas. Em

outras palavras, um se torna o aluno “certinho” porque é falante do dialeto de

prestígio, o outro é um aluno carente (“burro”) porque é falante de um dialeto

estigmatizado pela sociedade. A escola, como exemplo da sociedade, não ad-

mite o diferente e prefere adotar só as noções de certo e errado, numa falsa

visão da realidade. É claro que o diferente é de difícil avaliação, e a escola

gosta de avaliar seu trabalho em tudo ou nada, sim ou não, xis no quadrinho

de cima ou no de baixo, como acontece em muitas provas e testes. Alternati-

vas que não oferecem possibilidade de interpretação ou de discordância.

Para a escola aceitar a variação lingüística como um fato lingüís-

tico, precisa mudar toda a sua visão de valores educacionais. Enquanto isso

não acontece, os professores mais bem esclarecidos deveriam pelo menos dis-

cutir o problema da visão lingüística com seus alunos e mostrar-lhes como os

diferentes dialetos são, por que são diferentes, o que isso representa em ter-

mos das estruturas lingüísticas das línguas e, sobretudo, como a sociedade

37

encara a variação lingüística, seus preconceitos e a conseqüência disso na vida

de cada um.

A escola deve respeitar os dialetos, entende-los e até mesmo en-

sinar como essas variedades da língua funciona comparando-as entre si; entre

eles deve estar incluído o próprio dialeto de prestígio em condições de igual-

dade lingüística. A escola também deve mostrar aos alunos que a sociedade

atribui valores sociais diferentes aos diferente modos de falar a língua e que

esses valores embora se baseiem em preconceitos e falsas interpretações do

certo e errado lingüístico, tem conseqüências econômicas, políticas e sociais

muito sérias para as pessoas. Uma pessoa que deseja trabalhar como operário

que lida em silêncio com uma máquina pode consegui-lo mesmo se falar um

dialeto estigmatizado pela sociedade (aliás, se falar “bonito”, vai chocar as

pessoas). Porém, se alguém aspira um emprego em que se lida com o público,

sobretudo envolvendo as classes sociais mais altas, só o obterá se for falante

de um dialeto dessas mesmas classes. Se uma pessoa deseja freqüentar os

mesmos lugares que pessoas de determinada classe social considerada de

prestígio, ou ocupar cargos de poder, deverá saber falar com as pessoas desse

grupo, ou satisfazer as expectativas lingüísticas que a sociedade tem a respeito

da fala de seus dirigentes.

Portanto, aprender português, como se disse antes, não é só a-

prender como a língua (e suas variedades) funciona, mas também estudar ao

38

máximo os usos lingüísticos; e isso não significa só aprender a ler e a escre-

ver, mas inclui ainda a formação para aprender a usar variedades lingüísticas

diferentes, sobretudo o dialeto-padrão. A escola dessa forma não só ensinaria

português, como desempenharia ainda o papel imprescindível de promover

socialmente os menos favorecidos pela sociedade.

Essa tarefa de promoção social através do treinamento no uso do

dialeto-padrão não deve ser à custa do respeito às demais variedades lingüísti-

cas. Não é difícil, não criar confusão na cabeça dos alunos explicar a verdade.

Pelo contrário, ajuda os alunos a entender melhor o que aprendem e até a ter

uma motivação maior em seus estudos.

Para o aluno, o respeito às variedades lingüísticas muitas vezes

significa a compreensão do seu mundo e dos outros. Um aluno na escola não

pode chegar a conclusão de que seus pais são “burros” porque falam errado,

não pode achar que as pessoas de sua comunidade são incapazes porque falam

errado, não têm valor porque falam errado, ao passo que a cultura só está com

quem fala o dialeto- padrão, que a lógica do raciocínio só pode ser expressa

nessa variedade lingüística, que o bom, belo e perfeito só pode ser expresso

através das “palavras bonitas” do dialeto-padrão. Esses preconceitos, de tanto

serem ensinados geração após geração estão profundamente enraizados na

sociedade, na escola, em tudo. Mas isso deve ser mudado. Se os alunos

aprenderem a verdade lingüística das variantes, geração após geração, a soci-

39

edade mudará seu modo de encarar esse fenômeno e passará a ter um compor-

tamento social mais adequado com relação às diferenças lingüísticas.

2.3. Desenvolvimento da Linguagem Falada

Para determinar a existência de problemas de linguagem, é ne-

cessário conhecer as características do processo de desenvolvimento da fala.

Em geral, durante as cinco ou seis primeiras semanas de vida, a

fala se manifesta por gritos ou choro, através dos quais a criança exprime fo-

me, sede, dor ou desconforto.

A partir dos dois meses começa a fase do balbucio, período em

que todas as crianças se expressam do mesmo modo, qualquer que seja o seu

idioma. O bebê emite alguns sons, ouve e repete seus próprios gritos, num

verdadeiro jogo vocal. Esse período é importante, pois o bebê, ouvindo a si

mesmo e aos outros, começa a desenvolver sua capacidade de discriminação.

Numa terceira etapa, após a criança ter aprendido a identificar e

controlar alguns sons, as palavras aparecem.

40

Considera-se que a criança acompanha a média geral de desen-

volvimento da fala quando emprega palavras isoladas aos doze meses, associa

duas palavras aos vinte e um meses e usa orações curtas aos dois anos.

Por volta dos três anos, ela pode dominar de quinhentas a seis-

centas palavras. Muitas vezes, porém, ao lado dos vocábulos emitidos corre-

tamente aparecem alguns deformados por dificuldades mecânicas de emissão,

já que os órgãos da fonação ainda não possuem agilidade suficiente para emi-

tir determinados fonemas.

Mais ou menos aos cinco anos, o mecanismo de emissão deve es-

tar desenvolvido e a linguagem já se apresenta estruturada. A partir dessa ida-

de, a criança tem condições de expressar verbalmente seus desejos e de utili-

zar termos apropriados.

41

CAPÍTULO III

OS DISTÚRBIOS DA FALA

3.1. Mudez

É a incapacidade de articular palavras, geralmente decorrente de

transtornos do sistema nervoso central, atingindo a formulação e a coordena-

ção das idéias e impedindo a sua transmissão em forma de comunicação ver-

bal.

Em alguns casos, a mudez decorre de problemas na audição.

Quando a criança fica surda em uma idade anterior àquela em que adquire a

linguagem, ela não aprende a falar, a não ser que receba tratamento especiali-

zado. Se a surdez ocorrer antes dos cinco anos, mesmo que seja parcial, pro-

vocará dificuldades na fala, porque, com o tempo, a criança esquece o que já

havia adquirido. Nesse caso, é preciso proporcionar-lhe um novo aprendizado,

agora com base nos sentidos da visão e do tato.

42

Mas a fala não desaparece em crianças que ficam surdas a partir

dos nove anos. No entanto, a voz se modifica: torna-se grave e alta quando há

lesão no nervo auditivo, e baixa e monótona se o problema for no ouvido mé-

dio.

Certos tipos de distúrbios cerebral também podem causar a mu-

dez porque impedem que a criança ultrapasse a fase do choro ou do balbucio.

Há ainda outros fatores físicos que prejudicam a fala de tal ma-

neira que impossibilitam a comunicação da criança. Ao perceber que não é

compreendida, ela deixa de falar, configurando um quadro de mudez como

reação psicológica. É o caso de crianças que têm distrofia muscular, lábio le-

porino, dentição mal implantada ou rinolalia.

As más formações da boca e do nariz são facilmente corrigíveis

com cirurgia. Mas depois é preciso o auxílio de um reeducador e de um

psicoterapeuta para que a criança possa falar normalmente.

Os fatores emocionais e psicológicos também estão presentes em

algumas formas de mudez.

Há, por exemplo, crianças que não evoluem na fala por falta de

oportunidades. São aquelas que ficam muito tempo sozinhas ou mal acompa-

nhadas, sem a estimulação e o afeto necessários. Se até os dezoito meses não

43

disserem palavra alguma, nem balbuciarem, precisarão de tratamento

especializado.

Outra forma de mudez psicológica ou emocional é a elitiva, um

quadro que caracteriza a negação da fala pela criança somente em certas situ-

ações e com determinadas pessoas selecionadas por ela.

Há também alguns casos de crianças que escolhem o silêncio to-

tal para usa-lo como arma contra seus educadores. Isso acontece quando os

pais, ansiosos e perfeccionistas, pressionam o filho que fale o quanto antes e

exigem sempre o máximo de seu aprendizado. Quando a criança pronuncia

alguma palavra errada, fazem com que ela repita até acertar. Para fugir de tal

situação, ela emudece.

Às vezes a criança só fala consigo mesma. Ela vive tão isolada

do exterior que não tem o que comunicar. Fecha-se em seu próprio mundo de

fantasias e conversa só com seres imaginários.

Além disso, a mudez também é encontrada em crianças que têm

autismo. Estas, quando falam, fazem-no consigo mesma. Na linguagem, apre-

sentam dificuldade em distinguir o sim do não, o você do eu e nem sempre

conseguem formar sentenças, mesmo quando têm vocabulário suficiente.

44

Contudo, há casos em que a criança não fala porque está sob ten-

são excessiva ou sofreu algum trauma psíquico, como um grande susto ou um

ataque sexual.

Na escola, quando o professor detecta alguma forma de mudez,

deve evitar situações que solicitem a expressão oral daquele aluno. A melhor

atitude é levar a criança a cumprir seus deveres de uma maneira que não exija

muito entrosamento nem comunicação verbal. A próxima etapa será encami-

nha-la a um especialista que fará o diagnóstico e determinará o tratamento

mais adequado.

3.2. Atraso na Linguagem

Algumas pessoas acham que a criança que começa a falar depois

da época considerada normal será pouco inteligente. Essa afirmação, no en-

tanto, pode não ser verdadeira porque certas crianças têm sua fala atrasada por

motivos diversos, às vezes transitório.

Como a partir dos quatorze meses a criança torna-se capaz de

pronunciar palavras com significado, é esperado que ela tenha sua linguagem

45

estruturada por volta dos três anos. Quando isso não ocorre é que se pode de-

finir uma forma de atraso na linguagem.

Em algumas crianças essa forma de atraso é superada somente

depois dos quatro anos. Em outras, o problema se transforma em distúrbio

específico de articulação durante alguns anos e depois é resolvido, de uma

maneira natural ou em função de tratamento especializado.

Problemas de audição interferem com freqüência nos casos de a-

traso na linguagem mas o fator emocional é o mais encontrado. Nesse tipo de

distúrbio, as causa mais comuns são os traumas, carência afetiva, superprote-

ção e o uso de outro idioma em casa.

Como exemplo, temos o caso de crianças mimadas cujos desejos

são atendidos prontamente: elas não se expressam porque não querem ou não

precisam. E há aqueles que vivem em orfanatos e hospitais. Por não terem

quem as escute, nem estímulo para falar, ficam com atraso na linguagem.

Para que o professor possa detectar esse tipo de distúrbio em seus

alunos, as principais características da criança que tem atraso na linguagem

são: deficiência no vocabulário, deficiência na capacidade de formar idéias e

desenvolvimento retardado da estruturação de sentenças.

46

3.3. Problema de Articulação

Durante a fase pré-escolar, a maioria das crianças ainda apresenta

dificuldade em articular determinados sons. Isso é normal, pois somente por

volta dos sete ou oito anos é que os órgãos da fala têm maturidade suficiente

para produzir todos os sons lingüísticos.

As consoantes que exigem maior controle motor são as últimas a

serem aprendidas.

A criança de mais de sete anos que não consegue pronunciar cor-

retamente todas as consoantes e suas combinações apresenta um problema de

articulação.

Esse distúrbio da fala manifesta-se de várias formas, que podem

ser definidas de acordo com suas características.

47

3.3.1 Linguagem Tatibitate

É um distúrbio de articulação em que se conserva voluntariamen-

te a linguagem infantil.

A linguagem tatibitate geralmente tem causa emocional e pode

resultar em problemas psicológicos para a criança.

Na maioria dos casos, esse defeito de fala é cultivado pela reação

dos adultos, que se encantam com expressões da criança na época em que ela

ainda não sabe articular corretamente todas as consoantes. Alguns chegam até

a se dirigir a ela reproduzindo suas falhas: “Minha tilidinha!” (Minha queridi-

nha!), “Te tocolate?” (Quer chocolate?).

Essa fala “tão engraçadinha”, quando muito reforçada, é conser-

vada pela criança que não encontra outra fonte mais importante de atenção e

carinho.

Outro caso em que pode ocorrer a conservação voluntária da lin-

guagem infantil é quando a criança ganha um irmãozinho e sente que perdeu

sua posição de centro do universo familiar, porque vê a atenção dos adultos

sendo desviada de si para o irmão. Seu mundo desmorona e ela apela para to-

48

dos os recursos exagera suas manhas, chupa o dedo e se expressa através da

outrora fascinante linguagem tatibitate.

Esse problema de fala pode ser resolvido com aplicação de exer-

cícios que devem ser disfarçados em forma de brincadeiras e jogos.

É fundamental que a criança nunca seja corrigida diretamente.

Quando ela “falar errado”, a melhor atitude será desenvolver-lhe a forma cor-

reta, sem faze-la repetir.

49

CAPÍTULO IV

LINGUAGEM E SOCIEDADE

4.1. A Psicolinguística

Uma de suas preocupações é o processo de aquisição da lingua-

gem pelas crianças e, nesse sentido, ela tem muito a dizer com relação ao en-

sino do português. A criança, no período de 1 ano e seis meses até 3 anos, a-

prende a falar sua língua materna. Seu desenvolvimento lingüístico é notável

e rápido. Aprender a entender o que os outros dizem, as histórias que lhe são

contadas, pergunta o que não sabe, conta histórias, de tal modo que, aos 7

anos, está praticamente madura lingüisticamente. Tudo isso é, em grande me-

dida, ignorado pela escola.

Conhecer a realidade lingüística da criança não é apenas verificar

se ela fala certo ou errado na escola, mas sim descobrir como ela adquiriu es-

se modo de falar. Aprender a falar constitui um processo mental e físico muito

mais complexo e difícil do que simplesmente escrever ou mesmo aprender

modismo de um determinado dialeto.

50

A Psicolingüística se interessa também pelos processos mentais

relacionados com a produção da linguagem, estudando as relações entre pen-

samento e linguagem. Por outro lado, se interessa pelo comportamento huma-

no envolvido no uso da linguagem, mostrando por exemplo, a importância

dos processos interacionais na construção e no uso da linguagem.

4.2. A Sociolinguística

Segundo a definição mais ampla de sociolingüística, trata-se do

estudo da linguagem em relação à sociedade. Os sociolingüistas, tendem a se

concentrar muito na variação lingüística.

Torna-se mais importante do que nunca para entender o que é en-

sinar português a um grupo de alunos que são falantes nativos dessa língua.

Não basta reconhecer as variações históricas da língua. As variações geográ-

ficas, sociais e estilísticas devem ser levadas em conta, também. Infelizmente,

até mesmo os lingüistas conhecem muito pouco da variação geográfica. Como

se fala o português no Brasil? Não sabemos! Temos simplesmente algumas

informações, em geral restritas às áreas onde os lingüistas vivem. A escola

51

precisaria de uma descrição do maior número possível de falares regionais do

Brasil para poder entender a realidade lingüística de uma classe, da qual fa-

zem parte alunos procedentes de várias regiões do país, o que, aliais, é muito

comum nas grandes cidades.

A sociolingüística vai mostra os problemas da variação lingüísti-

ca e da norma culta. Se lingüisticamente não existe o certo e o errado, mas o

diferente, socialmente as coisas não caminham desse modo. A sociedade se

apega a fatos lingüísticos, que por si são neutros, a fim de usa-los como ar-

gumento para seus preconceitos. Por exemplo, falar usando o chamado R cai-

pira não mostra nada de bom ou ruim do ponto de vista da estrutura fonológi-

ca da linguagem. Porém, se alguém falar desse modo no Rio de Janeiro, pro-

vavelmente será objeto do zombaria ou terá prejuízo sociais, por exemplo que

o obrigue a lidar com o público carioca. O preconceito é social, mas sua mani-

festação se dá através das atitudes das pessoas diante de fatos lingüísticos. Por

isso, ensinar português nas escolas é uma forma de promoção social.

Para os alunos que já falam o dialeto de prestígio, aprendê-lo se

constitui numa tarefa relativamente simples, mas, para quem fala alguma va-

riedade estigmatizada do português será um trabalho tão grande quanto a-

prender uma nova língua! A escola não pode tomar a atitude lingüística de

que vale tudo, de que não existe o certo e o errado, porque tudo comunica.

Nada mais falso. A língua é falada por pessoas e as pessoas usam e abusam da

52

língua, inclusive para justificar seus preconceitos. Portanto, a escola tem que

fazer do ensino de português uma forma de o aluno compreender melhor a

sociedade em que vivemos, o que ela espera de cada um lingüisticamente e o

que podemos fazer usando essa ou aquela variedade do português.

Embora o que foi exposto a respeito da lingüística seja não mais

do que um esboço de seus aspectos mais importantes e interessantes para o

ensino, pode-se perceber agora que o ensino de português não só é problemá-

tico pelo que se ensina, mas também é falho porque se deixa de ensinar muita

coisa. Os currículos escolares, principalmente os que o professor de fato exe-

cuta nas salas de aula, fazem os estudos girar em torno sobretudo da morfolo-

gia e da sintaxe, e isso do ponto de vista da escrita e do dialeto-padrão. Falta

um estudo profundo de fonética, fonologia, semântica, sociolingüística, da

gramática e analise do discurso. Parece incrível, mas é verdade: as pessoas

estudam português durante tantos anos e não sabem como falam, quais os

sons que realmente usam quando falam sua própria língua.

Os professores se surpreendem quando se deparam com o ensinar

à criança que plural de palavras comuns em português, como por exemplo

CASA, se faz acrescentando S é ensinar uma regra insignificante, de utilidade

menor da língua portuguesa. De fato, essa regra de formação de plural serve

tão somente para sinalizar o plural na forma escrita dessas palavras, é sim-

plesmente uma regrinha de controle ortográfico. A língua só tem sua existên-

53

cia quando falada e, quando as pessoas falam o plural da palavra CASA, o

que acontece não é simplesmente o acréscimo de um S; o carioca pronunciará

de uma forma, o paulista de outra. Ainda, atendo-nos a apenas um dialeto,

verificaremos que dependendo das palavras que estiverem próximas de CA-

SA, o plural será pronunciado de uma forma. Tente falar, por exemplo: “as

casas amarelas e as casas pequenas”. A diferença é clara, mas quem não tem

nenhum conhecimento de lingüística dificilmente prestará atenção a este fato.

Passaremos, a seguir, a considerar uma série de fatos, com o ob-

jeto de mostrar o que a lingüística pode fazer para melhorar o ensino de por-

tuguês, sobretudo no que se refere à alfabetização, ajudando ao professor a

entender a realidade lingüística da classe e a ensinar ao aluno como a fala, a

escrita e a leitura funcionam e quais os usos que têm.

54

CONCLUSÃO

Ao concluir este trabalho, gostaria de apresentar um resumo das

principais idéias nele tratadas.

A escola desconhece a realidade lingüística da criança; esquece-

se de que ela foi capaz de aprender a falar e a entender a linguagem oral

mesmo antes dos três anos e de que é capaz de usar essa mesma linguagem

oral para dizer tudo o que quer, quando não poderia, de forma, alguma, igno-

rar ou destruir essa habilidade já adquirida. Não poderia deixar de reconhecer

também o fato de que as crianças aprendem a falar uma variedade do portu-

guês própria de sua comunidade, que pode ser bem ou mal vista pelos outros

grupos sociais. Ignorando a variação lingüística e seu uso na sociedade, a es-

cola faz os alunos que falam dialetos estigmatizados se sentirem fortemente

discriminados, quando deveria ensinar-lhes o dialeto de maior prestígio regio-

nal, como forma de promoção social. É por serem falantes desses dialetos

marcados pela sociedade e por serem mal compreendidos pela escola que os

alunos cometem a maioria dos erros de escrita; portanto as causas destes não

são, como se pensa, deficiências auditivas ou motoras, nem fome.

55

Da análise de muitos trabalhos escritos por crianças concluímos

que, se as deixam escrever livremente, seus “erros” revelam hipóteses sobre

possíveis usos dos sistemas de escrita e da relação letra e som. Contudo, cri-

anças que só escrevem palavras que já dominam erram pouco na ortografia,

mas executam um trabalho mecânico que lhes acrescenta pouco e contribui

para destruir a capacidade de se expressar espontaneamente através da lingua-

gem.

Finalmente, gostaria de dizer que é preciso que os cientistas, so-

bretudo os lingüistas, se dediquem a um trabalho profundo e extenso de análi-

se do que ocorre na alfabetização. Somente assim poderemos contribuir efeti-

vamente com sugestões adequadas e não com hipóteses de gabinetes que mais

atrapalham do que ajudam.

Por último, é preciso dizer que não basta “reformar” os professo-

res de alfabetização; é preciso, antes de tudo, reformar os órgãos encarregados

da Educação neste país.

56

BIBLIOGRAFIA

CÂMARA Jr., J.M. Princípios de lingüística geral. Rio de Janeiro, Liv. Aca-dêmico, 1972.

FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.

KOHL M., Aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico, Ed. Scipione

VYGOTSKY, L.S., LURIA, A.R., LEONTIEV, A. N., Linguagem, desen-volvimento e aprendizagem. Ed. Ícone.

57

ANEXOS