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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PROJETO A VEZ DO MESTRE PÓS-GRADUAÇÃO – “LATO SENSU” A QUEM PERTENCE A CRIANÇA ABRIGADA? ( Um Estudo Sobre o Pertencimento da Criança Abrigada em um abrigo em São Gonçalo/RJ) por: Deusirene Santos da Silva Moreira Orientação: Professor Nilson Guedes de Freitas Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2003

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PROJETO A VEZ DO MESTRE

PÓS-GRADUAÇÃO – “LATO SENSU”

A QUEM PERTENCE A CRIANÇA ABRIGADA? ( Um Estudo Sobre o Pertencimento da Criança Abrigada em

um abrigo em São Gonçalo/RJ)

por: Deusirene Santos da Silva Moreira Orientação: Professor Nilson Guedes de Freitas

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2003

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PROJETO A VEZ DO MESTRE

PÓS-GRADUAÇÃO – “LATO SENSU”

A QUEM PERTENCE A CRIANÇA ABRIGADA? ( Um Estudo Sobre o Pertencimento da Criança Abrigada )

Monografia apresentada à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Terapia de Família, da Universidade Cândido Mendes, sob a orientação do Professor Nilson Guedes de Freitas, como requisito para conclusão do Curso.

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2003

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AGRADECIMENTOS

Á Deus, fonte de toda a sabedoria;

Ao meu esposo Gilmar, pela compreensão e grande apoio;

Ao meu filho, Víctor, que está construindo a sua identidade;

Ás poucas famílias de crianças abrigadas que contribuem

com seus relatos.

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DEDICATÓRIA

À todos os meninos e adolescentes que foram abrigados no

REAME, cujo comportamento é um convite a que

busquemos juntos o “fio da meada” de sua história de

pertencimento, em busca de suas identidades.

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RESUMO

A quem pertence a criança abrigada? Esta é a pergunta que tencionamos responder na apresentação deste trabalho. O presente estudo tem por objetivo apontar à quem pertencem aqueles que sofrem privação da família, via de regra, representada pela mãe, ou similar. Seja a privação de curto, médio ou longo prazo. Aborda, mais especificamente, a realidade da criança, sua família e o abrigo por onde esta primeira passa. Será preciso entender a dinâmica desta família que abriga sua prole e, ainda, que tipo de instituição é esta que recebe “filhos” de passagem, que muitas vezes tornam-se permanentes, por longo tempo. O pertencimento e a identidade são faces da mesma moeda. A construção da identidade de uma criança dependerá, basicamente, de suas primeiras relações com o mundo externo. Portanto, dentre os muitos teóricos que poderiam ser a referência deste estudo, tomamos por base a psicanálise de Winnicott e de Bowlby. Estes, apresentam o desenvolvimento emocional do ser humano, de maneira similar. O primeiro, apresenta a constituição do eu, à partir de três processos: a integração, a personalização e a adaptação à realidade. Daí surge a formação do “eu”. Um outro motivo pelo qual a pesquisa buscou Winiccott, se dá por sua experiência com um lar com menores desassistidos, durante a guerra. Bowlby, iniciou seus estudos sobre o tema, enfocando os efeitos da privação materna e , para tanto, também se utilizou dos estudos com crianças privadas do contato materno, em situação de guerra. Seu trabalho é enriquecido à luz da etologia com os experimentos de Lorenz (gansos) e Harlow (macacos). É de sua autoria a “Teoria do Apego”, em que apresenta a vinculação como forma de pertencer e se identificar. O terceiro teórico – Erickson - também psicanalista, apresenta uma ênfase na influência social e cultural que o ser humano sofre. O homem tem necessidade de pertencer (identificar-se) com o contexto sócio-cultural. É um estudo de reflexão, fazendo uma articulação entre a teoria e a prática profissional em um abrigo no Município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. O abrigo, denominado REAME, recebe crianças e adolescentes em situação de Risco Social.

Palavras-Chave: pertencimento. Famílias. abrigo. crianças abrigadas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................07 1. PERTENCIMENTO E IDENTIDADE..........................................10 1.1. A Visão de Winnicott...............................................................10 1.2. A Visão de Bowlby..................................................................14 1.3. A Visão de Erickson................................................................19 2. A FAMÍLIA E A CRIANÇA ABRIGADA ......................................25 2.1. Breve Histórico da Família Brasileira ......................................27 2.2. O Abrigo – Uma Medida Provisória........................................32 2.3. A Filosofia do Reame..............................................................33 2. INFLUÊNCIAS DO ABRIGO SOBRE A CRIANÇA ABRIGADA ...... ................................................................................................48 CONCLUSÃO ................................................................................52 BIBLIOGRAFIA ..............................................................................57 ANEXOS ........................................................................................60

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INTRODUÇÃO

Na atuação como psicóloga de um abrigo, no município de São Gonçalo,

desde o ano de 2000, e em anos anteriores tendo feito um estágio para a

graduação de Psicologia, neste mesmo abrigo, em outro município, o contato

com as histórias de vida das crianças e sua famílias, mostrou-me o quanto era

necessário uma reflexão acerca do pertencimento e formação da identidade das

crianças abrigadas em Instituições.

A motivação ao desenvolver o tema foi crescente, pois ao mergulhar nas

atividades dentro da área de atuação como psicóloga em um abrigo, sendo

recém formada, me deparei com a necessidade de construção contínua nas

diversas formas de trabalhar, apelando para uma flexibilidade constante, de

acordo com as demandas. Muitos são os entraves institucionais e, ao mesmo

tempo a atuação como profissional deve atender às crianças e à Instituição, ao

Poder Público e as famílias envolvidas no abrigamento.

Os atravessamentos de um abrigo, atingem as crianças e suas famílias,

além disso, o atendimento psicossocial – durante o qual me defronto com

dificuldades de vinculações desta população, até a angústia de não se sentir

pertencido ou mesmo enfrentando uma crise profunda quanto à sua identidade

– aguçou-me a pesquisa sobre tal tema.

Diante das experiências profissionais, as quais sempre suscitam dúvidas

e dilemas, tornou-se necessário um estudo que vise analisar a formação da

identidade de uma criança abrigada, à partir do seu pertencimento à família

biológica ou mesmo àquela que a abriga.

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Isto será detalhado de forma que o leitor possa visibilizar a rede de

relações onde esta criança encontra-se inserida, a qual influencia sua

formação: quer seja a família, o abrigo, a escola, a vizinhança, a igreja, etc. O

nosso foco está sob as duas primeiras, conquanto, este é o objetivo principal: o

seu pertencimento, à partir de sua família, aliada à experiência do abrigo.

No primeiro capítulo, apresentaremos as concepções acerca de

pertencimento e identidade, abordadas pela psicanálise de Winnicott e Bowlby ,

arrematadas com a visão de Erickson, que sendo psicanalista, fora influenciado

pela antropologia, portanto traz um enfoque psicossocial. Muitos outros

teóricos contribuíram grandemente na relação mãe-bebê e as conseqüências

desta interação, tais como Melaine Klein e Henry Wallon. Contudo, os

teóricos eleitos representam de forma significativa os estudos quanto ao

pertencimento e a identidade.

No segundo capítulo, pretendemos identificar as influências das

referências familiares sobre a criança abrigada, e, ao se abordar família, será

necessário, primeiramente, destacar a sua origem e um pouco da sua história.

Neste ponto, dada a inesgotabilidade do assunto, limitamos a discorrer sobre a

família brasileira e a situação familiar atual, frente à necessidade de

abrigamento de seus filhos. Como forma de intercessão, entre a criança e sua

família, inserimos a filosofia do abrigo para crianças e adolescentes em

situação de Risco, denominado REAME (Resgate e Ame Crianças e

Adolescentes em Situação de Risco Social).

Se as influências familiares serão descritas em um capítulo, o terceiro

está reservado a identificar as influências do abrigo sobre a criança abrigada.

Tais espaços, denominados pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei

no. 8.069, de 13/07/90, como abrigo, são de caráter provisório, como medida de

proteção à infância e adolescência que vive sob riscos sociais (violência

doméstica, aliciamento pelo tráfico de drogas, experiências de roubos e furtos

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ou mesmo negligência dos pais ou responsáveis, não contendo seus filhos em

casa ou na escola), cabendo portanto, uma atenção aos seus objetivos,

funcionamento e valores propostos aos abrigados.

O trabalho foi produzido com base na pesquisa bibliográfica (livros,

periódicos, boletins de ong’s que atuam com crianças abrigadas e suas

famílias). Também foram utilizados os conhecimentos à partir dos relatos da

referida população, no trabalho como psicóloga. Finalmente, foi utlizada a

pesquisa documental, sob a forma de documentos. As conclusões ainda não

foram sistematizadas, do ponto de vista de pesquisa de campo, porém

constam como relatórios produzidos pela Instituição denominada REAME.

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1. PERTENCIMENTO E IDENTIDADE

A palavra “pertencimento” não encontra-se no dicionário, porém tem sido

utilizada como sinônimo de pertença. O dicionário Aurélio (2002) define

pertença como “pertencente, que pertence a alguém ou alguma coisa” .

Pertencer, portanto, significa ser oriundo de alguém. Todos os seres humanos

tem desejo de pertencimento.

Sobre a “identidade”, apresenta o dicionário (2002): “ ... conjunto de

caracteres próprios de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo,

defeitos físicos, etc”. Cada um de nós é possuidor de identidadade única,

singular. Um modelo dessa representação é a cédula de identidade que

apresenta-nos como cidadãos de uma Nação, portadores de digitais

inigualáveis. Mas a identidade nos remete ao pertencimento. De onde viemos?

De onde surgimos? A filiação nos oferece a resposta. Sendo assim, para

refletirmos acerca da construção da identidade humana, temos que considerar

o pertencimento. Winnicott, Bowby e Erickson, oferecem contribuições

fundamentais para tal compreensão.

1.1. A Visão de Winnicott

Donald W. Winnicott, médico pediatra e psiquiatra infantil, dedicou-se aos

estudos do desenvolvimento infantil, com base nos contatos da clínica com as

crianças e suas famílias. Revolucionou a pediatria com suas idéias associadas

à psicologia. Na década de 30 leu Freud e descobriu a psicanálise. Foi aos

poucos elaborando suas próprias idéias acerca do desenvolvimento emocional

do ser humano, sob influência de Freud e Melaine Klein. Suas contribuições ao

desenvolvimento emocional humano tem atualmente paralelo à obra de

Bowlby(1958).

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Existem três processos que fazem parte do desenvolvimento do bebê e

por serem incompletos, acompanham o desenvolvimento do ser humano por

toda a vida: a integração, a personalização e a adaptação à realidade. Tais

processos são interdependentes e superpostos mas não se consolidam ao

mesmo tempo.

Winnicott preconiza que o ser humano é produto de uma integração

constante e permanente com o meio, “resultado do encontro de maturação com

um ambiente facilitador, que possibilita o desenvolvimento destas

potencialidades” (FILHO, 1995, p.32). O bebê funciona logo após o nascimento

como se fosse um somatório de partes fisicas e psíquicas ainda não integradas

e que necessita da mãe para tal integração. A integração não é algo garantido

e se desenvolve gradualmente em cada criança.

A integração ocorre através do holding materno, ou seja, a criança se

sente integrada em si mesma e começa a experimentar a sensação de

diferenciação do mundo externo. O holding é o suporte físico e emocional que

a mãe oferece ao seu bebê. É o atendimento às necessidades específicas do

filho. À partir de então, constitui-se o “eu”.

A conquista da integração se baseia na unidade. Primeiro vem o eu que inclui, todo o resto é não-eu. Então vem eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma interação introjetiva com o não-eu, o mundo real da realidade não compartilhada. Acrescente-se a isto: meu existir é visto e compreendido por alguém, e ainda mais: É-me devolvida (como uma face refletida em um espelho) a evidência de que necessito de ter sido percebido como existente (WINNICOTT apud FILHO, 1995, p.34).

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Winnicott descreve a personalização assinalando que esta é tão

importante quanto a integração. Uma personalização satisfatória consiste em

aliar as experiências pulsionais às tranqüilas experiências de cuidado (holding).

Da mesma forma que a desintegração , o fenômeno psicótico da despersonalização se relaciona a retardos iniciais na personalização (...). A despersonalização é algo comum em adultos e crianças, sendo freqüentemente ocultado no que se chama sono profundo e em ataques de prostração com palidez (1945, p.51).

No que se refere a adaptação à realidade, ele exemplifica o fenômeno

considerando a díade mãe-bebê. O bebê tem ímpetos pulsionais e idéias

predatórias e a mãe tem o seio para saciar sua fome. A experiência só se torna

real e válida quando a díade a vivencia. Foi Winnicott (1971) que valorizou a

interação mãe-bebê. Posteriormente, ele chamou esta experiência de

criatividade primária .

Assim sendo, os três processos descritos distinguem um “eu” de um

“não-eu”. O resultado desta interação de fenômenos é a possibilidade do bebê

alcançar o estágio de “ser uma pessoa”.

A criança necessita de um ambiente adequado para atender às

necessidades especiais. Na falta deste ambiente não são estabelecidos seus

alicerces de saúde mental. Sem uma pessoa para atendê-la, não poderá

operar com a realidade externa. Sem alguém para proporcionar satisfações

instintivas razoáveis, ela não poderá descobrir o seu corpo, nem desenvolver

uma personalidade integrada. Sem alguém para amar e odiar não poderá

descobrir-se com tais sentimentos ou mesmo os sentimentos de culpa. Sem

um ambiente humano e físico limitado que ela possa conhecer, não pode

descobrir o limiar de sua agressividade ou sua destrutividade. Não consegue

diferenciar a fantasia do real.

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O lar é assim o espaço onde a criança inicia seu auto-conhecimento. As figuras parentais favorecem a formação de sua identidade: Sem um pai e uma mãe que estejam juntos e assumam juntos a responsabilidade por ela, a criança não pode encontrar e expressar seu impulso para separá-los, nem sentir alívio por não conseguir fazê-lo (WINNICOTT, 1969 apud FILHO, 1995, p.105,106).

Winnicott relata uma experiência com menores desassistidos (FILHO,

1995, p.104-108) na Inglaterra, contexto cultural diferente, marcado pela guerra,

sofrendo as ameaças da Alemanha. Contudo, a idéia da violência e da

delinqüência é universal. Os menores eram abrigados em Casas e ele

observou que desde a chegada destes até à sua acomodação, as crianças

abrigadas passavam por algumas fases, descritas assim: Na primeira fase,

bastante curta, a criança era notavelmente normal. Ela alimentava uma nova

esperança e esperava encontrar na casa o seu ideal do que deveria ser um pai

e uma mãe. Mais cedo ou mais tarde acontecia o colapso deste ideal e a

criança entrava na segunda fase. Primeiramente, dispunha-se a testar

fisicamente as instalações e as pessoas para saber que danos poderia causar e

até que ponto poderia ficar impune. Quando descobria que podia ser

fisicamente controlada, passava a testar o ambiente de forma mais sutil,

jogando as pessoas umas contra as outras e tentando fazê-las brigar, a fim de

que uma denunciasse a outra. Quando um alojamento estava sendo

administrado de forma insatisfatória essa segunda fase se tornava quase

constante. Se o alojamento sobrevivesse a todos estes testes a criança

entraria na terceira fase: se acalmaria, daria um suspiro de alívio e aderiria à

vida do grupo como um membro comum.

Estas três fases se apresentaram de modo nítido na experiência da casa.

A primeira fase, chamada pela equipe da casa de lua-de-mel, costumava durar

em torno de 15 dias. O jovem mostrava-se excessivamente bem comportado,

não dizia palavrões, não agredia, era obediente e muito cooperativo. Nesta

primeira fase, ainda dominada pela desconfiança, os menores contavam

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histórias de vida mentirosas, excessivamente tristes, escondendo os dados que

permitiriam que eles fossem incriminados como jovens delinqüentes e

problemáticos.

Na segunda fase a casa e a equipe sofriam o peso de toda a desilusão e

a agressividade do adolescente. Os ataques ao prédio e às instalações eram

tão grandes e constantes que a equipe encarregada da manutenção se negava

a atuar e a consertar os móveis e todos os outros utensílios existentes. Eram

as próprias crianças que passavam a consertar as camas, mesas, cadeiras,

portas e tudo o mais que elas próprias haviam destruído. Isto estava de acordo

com as recomendações de Winnicott, isto é, que os internados se

confrontassem com as conseqüências de sua própria destrutividade. Nesta

segunda fase os roubos também eram freqüentes, bem como as ameaças e

enfrentamentos à equipe e a quebra de regras e normas estabelecidas.

A entrada na terceira fase representava um alívio para o adolescente e

para a equipe (1995, p.108). Nesta fase, a criança ou adolescente entendia os

limites que ela ou ele reclamava desde a sua chegada a um abrigo. Os atos de

insubordinação e a destruição do patrimônio estavam sinalizando que eles

solicitavam desesperadamente alguém que viesse a dar-lhes o cerceamento

necessário. Aqui temos o que Winnicott denomina a “adaptação a realidade”.

Estas três fases se apresentam tanto a nível individual como a nível grupal.

1.2. A Visão de Bowlby

Considerando que este estudo se propõe a analisar a criança abrigada e

e que esta sofre perda e privação materna, ainda que temporariamente; torna-

se imprescindível recorrer a Bowlby. A teoria da vinculação foi elaborada a

partir de 1958 e enriquecida por publicações regulares ao longo de vinte anos.

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O inglês John Bowlby dedicou-se aos estudos que revelaram os efeitos

doentios da separação, perda e privação materna durante os primeiros anos de

vida, e como, à luz dessas evidências fora construída sua teoria denominada

“teoria do apego”.

Ele chama a atenção para o fato de que muitas crianças inglesas que

foram separadas de suas mães durante a guerra, receberam tratamento

impessoal e mais tarde apresentaram deficiências emocionais, cognitivas e

sociais. Como psiquiatra infantil, se utilizou da observação na Clínica Tavistock,

em Londres, mantendo uma criança pequena sob cuidados de uma pessoa

estranha, em um lugar estranho por semanas ou até por meses, para produzir

seus estudos teóricos.

Até então, o que se postulava era que a criança desenvolvia um forte

laço com sua mãe; isto porque esta o alimentava. O alimento era considerado

o elemento primário e a relação pessoal, referida como “dependência”,

secundário.

Bowlby descarta esta teoria, conquanto um bebê de um ano ou dois

deveria prontamente aceitar quem quer que o alimentasse e isso não era o

caso.

Em 1951, descobre o trabalho de Lorenz sobre a resposta de filhotes de

patos e gansos. Acerca disso, ele mesmo escreve:

Durante o verão de 1951, um amigo meu mencionou o trabalho de Lorenz sobre as respostas de filhotes de patos e gansos. Ler sobre isso e sobre o trabalho relativo ao comportamento instintivo revelaram-me um novo mundo; um mundo no qual cientistas de grande valor estavam investigando, nas espécies não-humanas, muitos dos problemas com os quais nós estávamos lutando na espécie humana, especialmente as relações relativamente duradouras que se desenvolvem em muitas espécies...Ele

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me mostrou que, em algumas espécies animais, um forte laço com a figura materna poderia se desenvolver sem a mediação do alimento...(BOWLBY, 1986, p. 16).

Posteriormente, conhece o experimento de Harlow (1959) com macacos

rhesus. Ele criara os primatas com diferentes mães: biológicas, semelhantes

feitas de pano felpudo e outras em arame. Algumas inanimadas eram

equipadas para dar leite. As mães de arame eram duras, as de tecido, macias.

O resultado comprovou que os filhotes de macaco criados pelas mães de

arame apresentavam comportamentos neuróticos de medo, mais do que os

demais.

Existem provas abundantes de que quase toda criança escolhe

habitualmente uma pessoa, que prefigure a representação materna, para

acolhê-la em situações de desconforto. Na sua ausência, elege então outra

pessoa, de preferência, alguém próxima a ela. Bowlby chama esta

aproximação de vinculação e interação.

Segundo ele, a vinculação é descrita sendo:

Um sistema primário específico, isto é, está presente a partir do nascimento com características próprias da espécie. Tão natural como a respiração, não deriva de outra necessidade primária, tal como a satisfação das necessidades alimentares. Já não se trata, como na abordagem psicanalítica clássica, de comparar a relação privilegiada entre o recém-nascido com a mãe a uma força primária e irresistível (ou pulsão) que leva o recém-nascido à satisfação da sua sensualidade (princípio do prazer ou libido), através de relações que ele próprio estabelece com o seio materno, satisfazendo simultaneamente as suas necessidades alimentares (BOWLBY apud MONTAGNE, s.d. p.23).

A vinculação é um comportamento do bebê na tentativa de criar e manter

a proximidade e o contato com a mãe, ou a pessoa que a substitua. São

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manifestações inatas tais como o choro, o riso, a sucção, o balbucio, etc.

Através desta aproximação, há uma identificação entre mãe-bebê.

Bowlby (1958) esteve seduzido pelos estudos que etólogos fizeram à

respeito da impregnação. Inicialmente, tratava-se de um fenômeno das aves

nídífugas (não confinadas ao ninho), como filhotes da galinha doméstica e da

pata. Horas após o nascimento dos filhotes, estes tomam seletivamente as

pegadas da mãe durante as primeiras horas após o seu nascimento. A isto

denominou-se impregnação. Os filhotes ficavam impregnados da mãe.

Segundo Lorenz (1937) a impregnação filial adquirida na primeira idade vai até

a reprodução. Tais aves apresentam as mesmas características da mãe por

aprendizagem. Isso estende-se à idade adulta na orientação dos

comportamentos sexuais.

Como o jovem filhote, desde cedo que sai do ovo, segue qualquer “objeto” móvel, é fácil substituir a mãe por um indivíduo pertencente a outra espécie, mesmo por ser um ser humano, ou simplesmente por um objeto que se desloque, por exemplo, a chocadeira em que o ovo esteve incubado. Observa-se então que o filhote segue “espontaneamente” a “mãe substituta” e segue a sua pegada, como se tratasse da própria mãe (LORENZ, 1937 apud MONTAGNER, s.d. p. 9).

A impregnação e a vinculação foi retratada no filme “Voando Para Casa”

de Carroll Ballard. A protagonista, Amy, é uma adolescente de 14 anos, órfã da

mãe, que vai morar com o pai e descobre um ninho de gansos no quintal.

Reproduz uma chocadeira artificial e acompanha o nascimento dos filhotes.

Quando os gansos começam a andar, seguem espontaneamente a menina,

que ficou conhecida nos noticiários como a mamãe gansa. Ela os ensina a

voar, salvando a espécie.

Há uma complexidade dos elementos que entram em jogo na

constituição da personalidade humana e Bowlby , à partir de experiências com

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os animais, investigou estas formas de vinculação, como se criam as

vinculações entre o bebê e o seu meio e como se consolida a sua capacidade

de comunicação e de aprendizagem.

À partir de então, temos um novo olhar acerca das vinculações

considerando que este vínculo mãe-bebê pode ser estabelecido com figuras

que representem a maternidade. O autor utiliza em sua obra o termo mãe

substituta que atualmente é usado nos casos de adoção e abrigamento. Esta é

uma contribuição social, haja visto que o apego não se dá necessariamente

pelo viés biológico.

Há, portanto, uma organização psicológica interna, com um certo número

de traços altamente específicos, que incluem modelos representativos do self e

das figuras de apego. O bebê vive na sua primeira relação, seja com a mãe ou

com quem a cuida, uma importante matriz na configuração das outras relações

vividas por ambos os parceiros, à medida que é justamente a mãe, em grande

parte, que apresenta o mundo para o seu bebê, possibilitando a ele outras

interlocuções. A mãe ou similar é a provedora de cuidado e afeto para o bebê.

A teoria de Bowlby favorece a reflexão quanto aos efeitos da separação

a curto e a longo prazo e ajuda a perceber o que está acontecendo com as

crianças abandonadas e institucionalizadas. Toda questão que Bowlby coloca

do comportamento instintivo de procura do vínculo, de procura da ligação logo

que a criança nasce, da procura do seio, do aconchego e do apego, como isso

é uma questão natural entre os animais e que no bebê pequenininho existe ;

como é completamente anômalo deixar que as crianças pequenas vivam esta

experiência de não terem a quem se apegar; as crianças vivem com atendentes

que circulam e são incapazes de manter algum tipo de vínculo mais duradouro,

mais profundo, verdadeiro com essas crianças, e elas têm muitas dificuldades

de sobreviver; se as tendências mais instintivas são negadas, que dirá o resto.

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1.3. A Visão de Erickson

A visão de Erick Erickson é neo-psicanalista. Seu referencial é Freud,

embora tenha desenvolvido seus estudos de psicologia evolutiva sem perder o

enfoque social. Para ele, a evolução psicológica do homem está relacionada

aos fatores sociais. Foi influenciado por antropólogos como Margaret Mead.

Como salienta Elkind: “ Erickson introduziu inovações na teoria psicanalítica

sem rejeitar ou ignorar a monumental contribuição de Freud” (ELKIND, 1970

apud ROSA, 1983, p. 130).

A teoria de Erickson , apesar de fundamentalmente psicanalítica, não se

limita necessariamente ao desenvolvimento emocional do ser humano ou ao

aspecto cognitivo da evolução, como seu ícone, Jean Piaget. A característica

marcante de sua teoria é a ênfase sobre os aspectos culturais do

desenvolvimento humano. Muitos são os fatores culturais que determinarão o

comportamento do indivíduo. Ele encara o homem em sua totalidade –

biopsicossocial – e estuda a vida humana como um todo desde o nascimento

até à velhice.

O processo de desenvolvimento humano não pára. Ao longo da vida, há

sempre novos ajustamentos que precisam ser feitos em função da demanda do

meio. A grande contribuição de Erickson reside no fato de dar uma visão geral

do desenvolvimento humano em todos os períodos da vida, bem como

descrever os ajustamentos necessários a cada fase da existência humana.

A teoria psicossocial de Erickson advoga que a vida humana pode ser

entendida em termos de estágios evolutivos. Em cada um desses, alguma

forma de ajustamento estará sendo produzida ou alguma forma de

aprendizagem para favorecer ao indivíduo alcançar os seus objetivos de forma

amadurecida.

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O conceito de tarefa evolutiva está ligado a adquirir uma competência ou

habilidade em determinada fase. Quando tal ajustamento não é feito dentro da

fase que lhe é peculiar, torna-se mais difícil e, em muitos casos poderá não

ocorrer. Rosa (1983) assinala que esta falha no processo evolutivo dá origem a

distúrbios emocionais ou desordens do comportamento, ou, na melhor das

hipóteses, à impotência social ou à incapacidade de ajustamento adequado à

vida em sociedade.

Há um forte determinismo nas teorias psicossociais que não oferecem

saídas de êxito para o indivíduo. Havendo falhas no processo, o indivíduo

herda um problema de origem emocional ou de origem social. Este último,

segundo o autor, menos danoso. Considerando que o indivíduo interage a vida

toda e é resultado destas interações, como o próprio Erickson preconiza, o

homem está fadado ao fracasso social, caso não cumpra a tarefa evolutiva.

De acordo com a teoria, existem oito estágios evolutivos da vida humana.

Cada um destes representa uma fase crítica na vida do indivíduo. Basicamente

há duas alternativas para cada estágio evolutivo. O indivíduo pode alcançar

sucesso ou pode falhar no processo de ajustamento às demandas da vida e do

meio social (1983). São eles: infância, meninice, fase lúdica, idade escolar,

adolescência, adulto jovem, adultícia e maturidade.

01. Infância – Compreende aproximadamente o primeiro ano de vida pós-

natal. A principal crise evolutiva nesse estágio é o estabelecimento de

uma relação básica com o universo. Essa relação ou atitude

fundamental é denominada confiança básica versus desconfiança

básica. Se a criança recebe o que necessita em termos de conforto

físico, afeto e calor humano durante esta fase da vida, ela pode

desenvolver uma atitude de confiança básica para com seu mundo. Ela

incorpora essa confiança à estrutura de sua personalidade e se torna

uma pessoa capaz de confiar em si mesma e nos outros. Por outro

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lado, se as necessidades não foram satisfeitas, ela pode desenvolver

uma atitude de desconfiança consigo mesma e com o mundo. A relação

mais pessoal nesta fase é com a mãe ou com a figura materna com

quem ela está mais associada.

02. Meninice – Esse estágio vai de um a três anos de idade. Autonomia

versus vergonha e dúvida é a crise psicossocial do período. Este

conceito está em conformidade com o estágio psicanalítico de

analidade. Nesta fase, a criança desenvolve a musculatura e a

habilidade de coordenar um grande número de padrões de ações

bastante conflitivas tais como sustentar e soltar. A criança começa a

aprender a noção de ordem e pontualidade. Se submetida a uma

disciplina coerente, tornar-se-á uma pessoa de hábitos higiênicos

saudáveis, organizada e cumpridora dos seus deveres. Se, porém, a

criança é submetida a uma forma rígida de disciplina, poderá tornar-se

compulsiva e caracterizada por retentividade e meticulosidade.

03. Fase Lúdica – Esta fase estende-se dos quatro aos cinco anos.

Iniciativa versus culpa caracteriza esta fase. A criança procura

identificação com os pais e ser como eles em termos de iniciativa e de

poder social. Nas brincadeiras este jogo de poder e as identificações

com as figuras paterna e materna serão presentes. Se a iniciativa é

fomentada ou reconhecida pelos pais, ela desenvolverá um senso de

ação independente. Por outro lado, no entanto, se a criança percebe

que seu jogo lúdico é bobo, ela poderá desenvolver um sentimento de

culpa em relação a qualquer atividade por ela iniciada.

04. Idade Escolar – Esta idade compreende dos seis aos doze anos. A

crise psicossocial do período é denominada indústria versus

inferioridade. Em ambiente criativo, onde a criança pode manipular

objetos, desenvolverá um sentimento de indústria. Ela começa a ter

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autonomia de pensamento com potencial criador como os adultos do

mundo ao qual pertence. Caso a criança não desenvolva esta

competência, poderá apresentar um sentimento de inadequação e

inferioridade.

05. Adolescência – De acordo com a teoria de Erickson, a adolescência,

que estende-se dos treze aos dezoito anos, é o ponto crucial do

desenvolvimento humano. A principal crise desta fase é a identidade

versus difusão de identidade. Na formação da identidade estão

presentes dois movimentos antagônicos: o apegar-se e o afastar-se. As

crises da adolescência são marcadas por esta dinâmica. O adolescente

necessita da família e demais grupos sociais para a formação de sua

identidade, ao mesmo tempo em que precisa afastar-se, principalmente

da família, a fim de perceber-se separado (autônomo). Quando o

adolescente não busca este movimento antagônico, vivencia as crises

de auto-conceito.

06. Adulto Jovem – Abrange a fase da vida humana dos dezenove aos vinte

e cinco anos. A crise é denominada intimidade versus isolamento. A

maior necessidade nesta fase consiste em estabelecer relacionamentos

com o sexo oposto. Erickson descreve “como sendo a habilidade de

perder-se e achar-se no outro” (ROSA, 1983, p.135). Se a pessoa não

conseguir dar e receber amor de modo maduro, tende a isolar-se da

vida social.

07. Adultícia – Esse estágio vai dos vinte aos quarenta anos de idade.

Geratividade versus estagnação são as alternativas desta fase.

Geratividade significa procriar e também estar habilitado a guiar as

novas gerações. Ou seja, gerar filhos e educá-los e não somente criá-

los. Esta fase da vida do homem poderá ser bastante criativa. Ele

alcançou o nível de suas potencialidades e poderá, portanto, tornar-se

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altamente produtivo. Contudo, se não alcança este nível poderá

caracterizar-se por estagnação ou auto-absorção. Sua vida será

rotineira e monótona e, por certo, dificilmente experimentará real prazer

na vida.

08. Maturidade – Este é o estágio que vai dos quarenta e um anos de idade

até o fim da vida. Integridade versus desespero são as alternativas da

maturidade. A integridade no sentido psicológico é a unidade funcional

do eu. Seu antônimo, portanto, é esquizofrenia ou divisão do eu. Se o

homem alcançou a integridade, ele estará ajustado ao processo do

envelhecimento e da morte. Se o homem não alcançou a integridade,

ele se sentirá desesperado diante da vida, pois a vida não lhe deu

nenhum significado.

A autonomia e independência da criança, na fase da meninice pode ser

considerada a auto-estima como critério de avaliação do desenvolvimento do

auto-conceito. Outra maneira de entender a formação do auto-conceito é

quando a criança começa a sentir que tem o poder ou capacidade de alterar o

seu ambiente. O fato de nesta fase ela dizer “não” a quase tudo no mundo,

traduz a sua auto-estima. Para Erick Erickson (1983), duas qualidades

essenciais do “eu” emergem nesta fase autonomia e iniciativa. A cultura

desempenha um papel relevante na aquisição dessas qualidades fundamentais.

Ao assinalar o conflito existente na fase da infância – confiança básica

versus desconfiança básica - Erickson traz à tona a relação nebulosa das

famílias com seus filhos abandonados, grande parte confinada aos abrigos. O

registro de desconfiança de tais crianças apresentam em seu comportamento a

falta de confiança na vida, nas relações sociais. As primeiras impressões do

mundo externo foram marcadas pela desconfiança e não conseguem uma

vinculação e um sentimento de pertencimento.

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Na fase denominada adolescência, a crise da identidade é marcada pelo

apego e separação. Um grande teórico, de visão sistêmica, Andolfi preconiza:

“o curso da história futura do indivíduo pode ser previsto a partir do nível de

diferenciação dos pais e do clima emocional predominante na família de

origem” (ANDOLFI, in: PRADO, 1996, p.24). A perspectiva familiar sistêmica

articula-se com conceitos psicanalíticos de Winnicott, Bowlby e Erickson.

Assim, para separar, primeiramente é preciso ter uma boa ligação.

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2. A FAMÍLIA E A CRIANÇA ABRIGADA

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), devem os pais

sustentar, guardar e educar os filhos menores, cabendo-lhes ainda, no

interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações

judiciais (art.22).

É sabido que a família é a instituição que mais contribui com seus

membros, dando-lhes normas e valores, estabelecendo o processo de

comunicação e relação interpessoal, favorecendo as experiências de afeto, a

aprendizagem básica, a proteção emocional, os modelos ou referências sociais.

É de Minuchin, a definição de que

Em todas as culturas, a família dá aos seus membros o cunho da individualidade. A experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que estes ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz da identidade (1996, p.79).

A família funciona como um sistema de interação, seus elementos se

interligam e, a mudança de um, interfere no outro e no todo. As famílias vivem

em constante processo de evolução. As mudanças pelas quais elas passam,

determinam um novo ciclo de vida. Por exemplo: um casamento de um filho, a

morte de um cônjuge, a chegada de um bebê... Tais acontecimentos marcam

uma mudança no sistema familiar.

O abrigamento de uma criança ou adolescente de uma família, mudará a

sua “homeostase”. Quando o Estado intervém nesse sistema familiar, acarreta

alterações que não se restringem ao cotidiano da família. As transformações

suscitam outras conseqüências.

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A família do abrigado se reconfigurará a fim de que cada componente

ocupe o seu lugar. Este, será inevitavelmente diferente do anterior ao

abrigamento.

Atuando em abrigo, é comum ouvir relatos de que o filho agora abrigado

não será mais o provedor da casa – situação muito comum às famílias de

adolescentes de baixa renda ou ainda, que este membro não ocupará mais o

lugar de cuidador dos irmãos menores. A saída de um membro, por

intervenção do Juizado da Infância e Juventude altera o comportamento da

família. O sistema familiar lutará para receber seu membro, através da

reinserção familiar, apresentando-se pontualmente às intimações judiciais, às

solicitações do abrigo, acompanhando o filho abrigado de forma regular no

desenvolvimento escolar ou, o que é mais comum, em nossa experiência,

passa a haver um certo distanciamento gradativo da família às visitas aos filhos,

ao ponto de tornar tais encontros bastante escassos, até que quase não

existam. Nesse ponto, o abrigo e o Juizado reclamam a presença mais

constante da família.

Seria bastante pertinente um estudo acerca do perfil detalhado da família

dos abrigados. Não será possível estender a pesquisa, conquanto este

trabalho prioriza elucidar a questão, do pertencimento destes abrigados, ainda

que seja primordial analisar esta família.

Outro aspecto é de fundamental importância. De onde vem o modelo de

família que estamos estudando. Este é baseado na família brasileira, que

passa por transformações sociais profundas e precisamos, primeiramente

entender sua história.

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2.1. Breve Histórico da Família Brasileira

A família brasileira tem, historicamente , a imagem de família patriarcal.

Desde o período colonial, formada por membros de várias origens, que

mantinham diversos tipos de relações com o dono da casa, sua mulher e prole

legítima. Eram indivíduos ligados ao proprietário, por laços de parentesco,

trabalho ou amizade. Isto é que conferiu ao conceito de família, o sinônimo de

família extensa.

O chefe da família ou do grupo de parentes cuidava dos negócios e

tinha, por princípio, preservar a linhagem e a honra familiar, procurando exercer

sua autoridade sobre a mulher, filhos e demais dependentes sob a sua

influência. A família brasileira era uma vasta parentela que se expandia,

verticalmente, através da miscigenação e, horizontalmente, pelos casamentos

entre a elite branca.

Assim, a sua composição apresentava uma estrutura dupla: um núcleo

central acrescido de membros subsidiários - o núcleo central era formado pelo

chefe de família, esposa e descendentes legítimos (filhos e netos por linha

materna ou paterna) - A camada periférica era composta por parentes, filhos

ilegítimos ou de criação, afilhados, amigos, serviçais, agregados e escravos.

Estes moravam fora da chamada “casa grande”, mas estavam sob a autoridade

do patriarca ou senhor.

Schreiner destaca a relação utilitária que o patriarca vivia com os

indivíduos da camada periférica.

...se por um lado para os indivíduos da camada periférica era interessante procurar a proteção de uma família, para o patriarca também era importante a sua manutenção, que significava a projeção política em um tipo de sociedade em que o prestígio era medido pela quantidade de pessoas sob sua influência. Cabia, portanto, estar cercado de

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parentes, amigos, afilhados, agregados e escravos e manter um vasto círculo de aliados. (SAMARA apud SCHREINER, 2001, p.14).

A história da família brasileira foi marcada por algumas características

muito peculiares. As primeiras crianças, denominadas por Leonardi (1996),

“meninos brasis” eram os mestiços, filhos de pais brancos com as negras que

habitavam o Brasil. Uma miscigenação formada à partir do índio, português e

africanos, deu origem aos brasileiros. Essa mesclagem era étnica, cultural e

lingüística.

Os casamentos foram formalizados com a chegada dos padres jesuítas.

A educação aos filhos também foi assegurada por estes que impuseram a

doutrina e os costumes cristãos aos “meninos brasis”.

O concubinato, celibato e ilegitimidade foram traços comuns da

sociedade brasileira e explicam parte da nossa formação familiar, embora a

Igreja e o Estado tentassem impor o modelo de casamento e procriação

legítima, concretizado na família extensa patriarcal.

A função da família era perpetuar o poder sócio-econômico, sendo

também uma solução para os problemas sócio-culturais da população livre e do

pobre. O fato de permanecer, primeiramente em ambiente rural, liderada pelos

grandes latifúndios, condicionou seus membros a uma certa trama de relações

aparentemente estáveis, permanentes e tradicionais.

O autor Gilberto Freyre descreve em sua obra: Casa Grande e Senzala,

o modelo que mitificou-se, pois ainda hoje ela influencia a composição das

famílias no Brasil. O machismo predominava, o culto ao pai, e o maternismo

era uma constante.

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Segundo Streck (1999), esta é uma família idealizada, onde o pai tem o

poder e os demais estão subordinados. O padrão de família brasileira

dominava econômica e politicamente o grupo que dele dependia.

Correa , assinala haver outros modelos de organização familiar, paralela

à patriarcal. O Brasil colonial não poderia ser resumido a este modelo. “a

família patriarcal teve um tempo e um espaço limitados aos engenhos de

açúcar do nordeste. Mesmo assim, é um modelo que se impôs. Porém, por

trás desse modelo existiram muito sofrimento e muitas lutas” (apud STRECK,

1999, p.37).

Discorrer sobre a família brasileira é falar dos diversos tipos que

coexistiram e coexistem e formam a sociedade no nosso país. Uma análise

histórica, sua composição e particularidade dos seus membros precisam fazer

parte da nossa reflexão acerca da família atual brasileira.

Uma significativa parcela das crianças de famílias miseráveis tinha como

lugar no mundo pseudo-orfanatos. A infância menorizada, composta de

"carentes, abandonados, desadaptados e infratores, recebia do Estado e da

Sociedade dois “cuidados" principais: a adoção direta ou oficial e a internação.

Ou seja, as famílias pobres podiam perder seus filhos em função da condição

social. Perdiam definitivamente no processo de adoção ou viam seus filhos

confinados em instituições totais, onde passavam a ser tratados primeiro como

órfãos, depois com o tempo e o fracasso institucional, como periculosos.

Simone Weil (apud Bosi, 1983) considerava que uma das maiores

violências que os pobres sofria era o desenraizamento, a obrigação de migrar e

romper com a comunidade e tudo o que isto representa enquanto danos na

vinculação afetiva, no sentimento de pertinência, na memória.

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Mas no Brasil, aos mais pobres estruturou-se um processo de espoliação

mais sofisticada: retirar das famílias fragilizadas seus filhos e transformá-los em

órfãos de pais vivos. Retirar os filhos. Numa cultura onde estes significam uma

dádiva divina, um tesouro, é um empobrecimento adicional, pois priva a família

de futuro. Quero dizer com isso, que aos nossos pobres tanto o passado quanto

o futuro estavam ameaçados. E o futuro era fraturado por um processo de falsa

proteção.

Esta expropriação vinha acompanhada de uma retórica justificadora, que

associava a esta ação violenta uma acusação e culpabilização. Estes pais

passavam a ser tratados e considerados como incapazes de criar e educar, por

omissão, negligência ou desamor.

Este sistema de atenção à infância (não devemos deixar de lado nesta

reflexão, a lei que respaldava estas intervenções), era compatível com o Estado

Totalitário, cuja lógica de enfrentamento dos conflitos sociais é de seqüestro.

Então, o abrigo-orfanato era, em minha opinião, exatamente o que o

criminólogo italiano Paverini definiu para as instituições totais: uma instituição

de seqüestro dos conflitos sociais. A miséria reinava soberana e inatingível fora

das considerações sobre o quê fazer.

O Paradigma da Proteção Integral do ECA (Estatuto da Criança e do

Adolescente) abandona totalmente esta perspectiva. Evita a perda dos filhos

por pobreza, as crianças e as famílias passam a ter direitos: direito à

convivência familiar e comunitária. Para que o novo olhar sobre a criança possa

se concretizar em ações, programas e serviços, têm sido necessários.

Desconstruir o que estava organizado para garantir um mundo humanizado e

integrador. Para construir as novas respostas aos antigos problemas, é

necessário passar por uma desconstrução , discussão do que não fazer, por

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abandonar um repertório instituído e criar o novo modo de garantir integridade a

todas as crianças.

É verdade que muitas vezes a família está num processo de falência

relacional tão grande, que para colocar a criança a salvo de maus tratos, um

dos caminhos é o abrigo. Sabemos também que pais violentos freqüentemente

foram crianças vítimas de maus tratos na infância. São pais que repetem suas

histórias, impondo à sua prole as mesmas agruras que viveram . São famílias

adoecidas. Necessitam de apoio, orientação e tratamento psicológico e

psiquiátrico. Seja pelo gesto destrutivo, seja pelo silêncio ou omissão. Para

estas famílias o abrigo poderia servir como retaguarda durante o tratamento do

grupo familiar. Para além da função judicante, do magistrado , muito pode ser

feito pela família no campo assistencial. Mas, se a família é cortada por mera

pobreza, o que dizer da intolerância, quando se trata de pais com distúrbios

mentais?

Eliminar os distúrbios decorrentes da pobreza absoluta, depende de

programas de auxílio, como, por exemplo, o programa de renda mínima.

Capacitar os pais para incluí-los no mundo da produção depende de ações

pedagógicas nas áreas de educação e trabalho.

Os programas de saúde mental para famílias violentas devem estar

sintonizados com a perspectiva segundo a qual, as condições concretas de

existência determinam significativamente as condutas dos sujeitos, mas podem

estar presentes em grupos familiares, nos quais o aspecto econômico não está

prejudicado. A articulação de várias medidas é fundamental para não corrermos

o risco de transformar miséria e suas seqüelas em problemas psicológicos.

Não se pode esquecer que a vítima sai de casa em último caso.

Preferencialmente, caberá ao agressor a retirada do convívio familiar em

caráter transitório ou definitivo. Embora isto esteja explícito na lei, tem

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predominado a retirada da criança ou do adolescente. Esta deturpação deverá

ser corrigida quando a política de apoio à família passar a ser executada de

modo regular.

2.2. O Abrigo – Uma Medida Provisória

O dicionário Aurélio (2002) define abrigo:

1. lugar que abriga; refúgio, abrigada, abrigadouro. 2. Cobertura, teto. 3. Casa de assistência social onde se recolhem pobres, velhos, órfãos ou desamparados...6. Agasalho, em geral impermeável, usado em ocasião de mau tempo. 7. fig. Asilo, amparo, socorro, proteção.

De todas as definições, “agasalho” no sentido de “proteção” e “proteção”

no sentido de “colo”, soam apropriadas quando falamos do amparo de crianças

em situação de vulnerabilidade. Este agasalho impermeável, é usado como

uma medida provisória até que se reestabeleça a situação familiar ou se envie

estas crianças para uma família substituta.

O abrigo é uma instituição em franca transformação. Como tantos outros

aspectos da área da infância, exige profunda reformulação. Abrigar ocupava

uma posição central no paradigma da Situação Irregular presente no antigo

Código de Menores. Com o binômio proteção e vigilância.

O abrigo é, antes de tudo um momento crucial na vida de uma criança ou

adolescente. Seu universo familiar (conhecido) é substituído pela instituição

que o acolhe. Seus laços de parentesco, amizade e vizinhança ficam

suspensos e ameaçados. Tal suspensão pode durar dias, semanas, meses ou

anos. Como as famílias estão fragilizadas emocional e sócio-economicamente,

o que é provisório, tem caráter permanente, via de regra.

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A identidade vive uma ameaça extrema , pois, na definição de quem

somos, os parâmetros básicos são nossa filiação à comunidade onde

nascemos. O abrigo é quase um não lugar, por isso deve ser transitório. Além

de ter o lugar no mundo alterado , a criança e o jovem passam pela vivência de

não poder definir o futuro. Não se sabe para onde irá, nem com quem, nem em

qual condição.

Sem saber para onde ir – e este não saber é um fato individual e grupal –

a expectativa tenciona tanto a criança quanto os adultos que a acompanham

neste período devido à impossibilidade de formular metas. Mas a criança tem

um passado, tem uma história. Será que os abrigos têm conseguido acolher

esta história?

Este estado de suspensão impõe uma fragilidade no abrigado. E a isto,

emergem defesas que costumam ser confundidas como características do

sujeito. É muito fácil atribuir isto ou aquilo como característica pessoal, como

modo de ser. Se os mesmos movimentos e reações forem tratados como

modos de estar, a trajetória da criança deverá ser resgatada. É possível, que o

sentido de sua conduta seja compreendido pelo seu entorno.

Sempre que não sabemos o que esperar, é compreensível o desespero .

As agitações são pedidos de socorro, não são problemas de ordem disciplinar.

2.3. A Filosofia do REAME

No ano de 1999 foi aberto um abrigo nos moldes de casa-lar no

Município de São Gonçalo, Rio de Janeiro. De iniciativa privada, com a parceria

de igrejas evangélicas e da Fundação Para Infância e Adolescência de São

Gonçalo (FIASG), o abrigo denominado REAME (Resgate e Ame Crianças e

Adolescentes em Situação de Risco Social), atende 16 crianças e adolescentes,

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entre 09 a 17 anos, encaminhados pelo Juizado da Infância e Juventude do

Município e seus Conselhos Tutelares, conforme anexo.

Os objetivos deste atendimento são amplos; desde a assistência às

necessidades básicas dos abrigados (alimentação, vestuário, escolarização,

saúde e lazer), à evangelização e reconstrução dos laços familiares. As

crianças e adolescentes convivem em um modelo familiar diferente do que

conhecem até então. Uma das metas é resgatar a cidadania destes.

São oriundos de um contexto familiar semelhante: casas sem móveis e

utensílios, as pessoas praticamente vivem em dois cômodos e toda a família

divide o mesmo espaço de dormir. As casas são cedidas por famílias que

residem na mesma propriedade ou são próprias com construções precárias e

inacabadas.

As famílias são quase sempre monoparentais, chefiadas por mulheres.

Estas possuem uma grande prole, com filhos de parceiros diferentes. Os

homens são quase ausentes ou omissos. Tais mulheres precisam trabalhar

para sustentar a casa e deixam os filhos à mercê da comunidade. Existe grande

índice de repetência e evasão escolar.

A comunidade, na maioria das vezes, é controlada pelo tráfico de drogas

e, cedo, os meninos são aliciados pelo tráfico ou envolvem-se em furtos, dada

a situação de extrema miséria ou como forma de compensação. Sendo assim,

são retirados desse contexto, e passam a morar no abrigo.

As histórias de vida destes jovens estão cheias de situações traumáticas

e relatos de privações várias, tornando-se quase impossível identificar qual a

privação inicial que determinou o desvio para um comportamento considerado

“anti-social” ou o fator que os coloca sob situação de risco social. Na escuta de

várias histórias me deparei com o que o Júlio de Mello Filho chama de

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“psicopatologia do brasileiro pobre”. São jovens que viveram episódios

incestuosos, diferentes formas de abuso, omissões, miséria e privações em

vários sentidos e direções. É oportuno ressaltar que muitos dos relatos trazem

fantasias, exageros e tendência a projetar todas as culpas e responsabilidade

no meio. Em alguns casos, há também uma necessidade de preservar a

família, especialmente a figura da mãe.

Existem, ainda, meninos que não conhecem sua família nuclear ou

precocemente sofreram perdas. Para estes, o pertencimento é constituído de

traficantes, comerciantes, moradores de rua, etc. Muitos desconhecem seus

pais e por isso pertencem a grupos que dão proteção e alguma segurança.

O cotidiano de um abrigo exige muito de seus operadores sociais. Os

abrigos, como as demais instituições, têm uma microfísica. As rotinas, os

regulamentos são definidos por uma necessidade de ordenação, de dar conta

das inúmeras necessidades do usuário.

Para imaginar o que é o olhar panóptico presente nas instituições são

especialistas em detectar os piolhos. Para acabar com ele deixam as pessoas

sem cabelos. Mas o cabelo não é só um conjunto de pêlos. Se curto ou

comprido, com franja ou sem , são molduras para o rosto, é o modo como a

pessoa é reconhecida. Na busca pela ordem, necessidades e direitos vão para

o lixo.

No entanto, a criança, vista como quem tem direitos, coloca novas

exigências para antigas demandas. Precisamos acabar com o piolho, mas não

podemos cortar compulsoriamente o cabelo, para ilustrar o limite. Parece tão

simples e prático, por exemplo, raspar a cabeça da criança. Mas se este

procedimento afeta um direito, deve-se buscar novas soluções. Todas as

rotinas devem ser revistas, e os parâmetros são:

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• a condição peculiar de desenvolvimento;

• o direito ao desenvolvimento;

• o direito à convivência familiar e comunitária;

• o direito à liberdade, respeito e dignidade.

O aspecto pragmático não autoriza as instituições a destruírem o único

bem que normalmente a criança leva consigo: seu corpo e sua imagem .

Nenhuma higiene é necessariamente destrutiva. As justificativas econômicas,

por exemplo, rapidez e facilidade, não se sustentam. Porque a imagem é um

bem e um direito da criança.

No REAME, as crianças e adolescentes são respeitadas, logo no seu

ingresso, quando têm dificuldades com os hábitos de higiene, não estão

acostumadas a dormir em camas, ou ainda, têm liberdade para escolher o corte

de cabelo. Aliás, um simples corte de cabelo revela criatividade, desejo de

inclusão social, ou aponta a indiferença diante da possibilidade de escolhas.

Dentre as perspectivas de um abrigo provisório, encontra-se o conceito

de resiliência que permite novos horizontes aos operadores sociais.

Resiliência é um conceito da física, muito utilizado pela engenharia,

refere-se à capacidade de um material sofrer tensão e recuperar seu estado

normal, quando suspenso o "estado de risco" (FERREIRA, 2002).

O termo tem sido utilizado em psicologia como capacidade humana de

enfrentar adversidades sucessivas ou acumuladas sem prejuízos para o

desenvolvimento. A resiliência pode ser pensada como capacidade de

adaptação ou faculdade de recuperação. Alguns autores enfatizam a

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capacidade de "fazer as coisas bem", apesar das adversidades, ou seja, soma-

se à capacidade de resiliência uma "faculdade de construção positiva".

Este modo de responder às adversidades é socialmente valorizado ou,

pelos menos, aceito. A resiliência é considerada como a capacidade humana

universal, podendo ser ativada pelas vivências das pessoas. Ativar não no

sentido de despertar, mas de desencadear um processo de construção.

Loesel elencou algumas possibilidades (Vanistendael, 1995):

• alcançar resultados positivos em situações de alto risco: (acúmulo de estresse e pressões);

• manter competência sob ameaças, por exemplo, a vida de Ana Frank no esconderijo;

• recuperar-se de traumas.

Nos primeiros estudos sobre este tema, alguns autores utilizavam o

termo "invulnerabilidade". Mas, a discussão deixou claro que não é possível

dizer que seres humanos sejam invulneráveis. Pelo contrário, muitas vezes, as

vivências difíceis, as experiências trágicas possibilitam um enriquecimento

único do sujeito.

A capacidade humana de crescer e desenvolver-se, apesar de condições

de vida marcadas por diversas tragédias, não é apenas um fenômeno

individual. Existe resiliência grupal, institucional e comunitária. Podemos

também aplicar este conceito a determinados povos. As primeiras tentativas de

explicar e compreender a resiliência ocuparam-se em arrolar fatores de risco ou

proteção observáveis entre pessoas resilientes. Alguns fatores podem ser de

risco ou proteção para outros. Esta "contradição" apontou para a necessidade

de conhecer os "mecanismos" ou dinâmica da resiliência. Mais do que isto,

permite pensar na resiliência como algo construído, pode ser promovido. De

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modo que podemos, a partir do que já sabemos sobre resiliência, aplicar este

saber nas políticas públicas, principalmente em educação, saúde e assistência

social.

Tanto na literatura, quanto em nossa atuação em um abrigo, durante três

anos, encontramos atitudes básicas nos resilientes, tais como: auto-confiança,

auto-respeito, presença de vínculo significativo com pelo menos uma pessoa,

experiência de algum "suporte social", presença de um sentido para a vida e/ ou

estabelecimento de metas a serem atingidas. Nas histórias de vida de

adolescentes com os quais trabalhamos, observamos o predomínio de uma

cisão equilibrada ou global sobre agressor ou a situação estressante ou

adversa. Esta visão equilibrada faz com que o sujeito não se coloque como

vítima. Esta espécie de generosidade, permite compreender a situação e evita

uma resposta de mero espelhamento, seja no que diz respeito ao agir, ou na

definição de si mesmos. O distanciamento que acompanha a visão equilibrada

permite ao sujeito fazer escolhas com mais liberdade. Isto propicia evitar a

transmissão transgeracional de risco (a repetição de violência e maus tratos

com os filhos).

Se utilizarmos a perspectiva psicanalítica, podemos afirmar que o sujeito

lida com os conflitos por meio da sublimação e, este processo é possível em

grande parte por uma relação com o objeto interno.

Outro aspecto muito evidente nos resilientes é o predomínio do modelo

desafio. Muitas pessoas têm um modo de lidar com situações problemáticas de

acordo com o modelo do dano. Isto significa que a pessoa é capaz de

reconhecer as dificuldades, desenvolver explicações bastantes elaboradas

sobre as raízes ou processo que determinam tais obstáculos, mas não se

incluem na resolução ou não aproximam estas dificuldades para o seu âmbito

de ação. Decorre deste modo de percepção e formulação do mundo um

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sistema explicativo gerador, ora de banalização, ora de desculpabilização,

acompanhadas, freqüentemente, pelo sentimento de impotência.

Seligman (apud Luthar, 1991) desenvolveu o conceito de Paradigma da

Desesperança, isto é:

quando as pessoas acreditam que elas são impotentes para controlar o que acontece com elas, tornam-se passivas e restritas em suas habilidades de enfrentamento. Por outro lado, quando os indivíduos acreditam que os eventos e resultados são controláveis, o aprendizado da desesperança é evitado, e, ao invés disso, tentativas ativas para vencer situações aversivas são realizadas.

Este paradigma tem conseqüências práticas, não apenas no

enfrentamento do presente, mas pode participar ativamente da construção de

um "futuro anunciado" sem perspectivas, ou pior, com o predomínio de

profecias negativas, retirando do sujeito a "energia" que acompanha a luta pela

felicidade.

No modelo do desafio, o reconhecimento dos problemas é acompanhado

da percepção das possibilidades de enfrentamento. O sujeito estabelece metas

(e define o sentido de suas ações). Nesta busca, muitos recursos negados ou

escondidos passam a ser descobertos ou reconhecidos. O sentimento

predominante é a esperança, e para muitas pessoas, está associado com a

perspectiva religiosa: a fé.

As experiências mais significativas vêm do abrigo REAME, com direção

evangélica. Dentro do município de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro,

existem nove abrigos para crianças e adolescentes em situação de risco social.

Contudo, nas reuniões periódicas com a equipe técnica do Juizado da Infância

e Juventude da Comarca, temos conhecimento que este abrigo para onde as

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crianças são enviadas por este Juizado, lá permanecem. Destas crianças,

algumas já havendo passado por outros abrigos, de lá evadem.

O tratamento humanitário dado pela equipe do abrigo, aliado à

evangelização promovida como um dos objetivos da Instituição, dirigida por

evangélicos, produz crianças e adolescentes diferentes do ponto de vista

emocional: chegam revoltados, hostis, depressivos e passam a ser dóceis,

alegres e resilientes.

Esperança e vontade são os dois focos principais. A criança abrigada

vive das "pequenas alegrias". São vivências de bem-estar, acolhimento e

trancendência que permeiam a vida, um recompor-se acompanhado do

desenvolvimento do humor. O humor evidencia uma capacidade especial de

lidar com a vida, uma plasticidade possível quando a rigidez não predomina na

percepção da pessoa.

A resiliência é um fenômeno psicológico construído, e não é tarefa do

sujeito sozinho. As pessoas resilientes contaram com a presença de figuras

significativas, estabeleceram vínculos, seja de apoio, seja de admiração. Tais

experiências de apego permitiram o desenvolvimento da auto–estima e auto-

confiança.

A resiliência tem uma dimensão ética que não pode ser negada. Ela só

existe quando há esperança no futuro e um sentido anunciando uma meta, um

horizonte ético que nos atiça para frente. Um dos fatores de destruição do

trabalho de um educador social ao lidar com vidas difíceis é a descrença que

nasce do modelo do dano. Portanto, a promoção da resiliência serve não

apenas ao meninos e meninas em dificuldade, mas a toda comunidade

comprometida com estas vidas.

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O primeiro grande passo diz respeito à própria equipe. Sabe-se que parte

do problema tem relação com dificuldades do mundo adulto que fracassou com

estes jovens. A equipe realiza seu trabalho em determinado contexto

institucional. Ao chegar nas instituições, as pessoas encontram muitas rotinas,

regulamentos, tradições , modos de compreensão e de relacionamento

instituídos. As instituições têm memória. Nem sempre esta memória é explícita

ou consciente. Muitas vezes, são gestos que se repetem e ninguém sabe

explicar a origem. É neste ponto que o Estatuto da Criança e do Adolescente

encontra enormes dificuldades de implantação, porque ele exige a criação de

um novo repertório.

O antigo repertório do "Código de Menores" (1927) explicava-se pela

função do internato - exclusão ou seqüestro social, associada a uma dinâmica

centrada na vigilância e punição . A distância da comunidade permitia o pacto

de omissão e silêncio, enquanto na clausura só restava aos presos transgredir

ou acatar a morte civil em silêncio. Por isso, quando o sistema é destruidor,

aquele que manifesta a ira revela ter preservado aspectos fundamentais da

condição humana.

A construção de um novo repertório dependerá da capacidade criativa da

comunidade institucional, incluindo aí seus destinatários e suas famílias. A meta

transversal de um abrigo, aquela que deve permear todas as demais, é a

construção de um ambiente solidário e promotor do potencial de todas as

pessoas envolvidas no trabalho, seja na condição de operador seja como

destinatário.

Planejar de modo democrático participativo possibilita que todos os

setores participem da construção do que fazer. Permite que os diferentes atores

institucionais conheçam os problemas e as soluções que serão implementadas ,

dando sentido para suas ações e inserindo-as num conjunto articulado voltado

para metas comuns.

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A experiência de planejar deve sempre contemplar os períodos de

avaliação, na qual as operações, o cronograma e os responsáveis possam ser

discutidos com todo o grupo avaliador, Com os resultados parciais avaliados é

possível corrigir o plano de trabalho. Planejar/ avaliar/planejar permite romper

com o modelo do dano, pois o famoso discurso do "é muito difícil" deve ser

substituído pelo "podemos fazer...".

Planejar não dispensa o treinamento. Os hábitos, os modelos de

responder às situações de conflito têm uma matriz muito autoritária em nosso

país. Um cotidiano democrático exige construção de atitudes pouco frequentes

nos nossos repertórios. Esta construção passa por sensibilização, compreensão

e treinamento. A capacitação permanente da equipe é um elemento

fundamental na formação dos operadores.

Na experiência do REAME, a equipe (funcionários e técnicos) entende

que sua atuação primeiramente é educar. Desta forma, tanto os que atuam em

áreas burocráticas, como escritório, cozinha, serviços gerais, como aqueles que

trabalham na condução de atividades recreativas ou pedagógicas, auxiliam na

educação para a construção da identidade e resgate da cidadania.

As condições adversas de vida podem levar as pessoas a uma atitude

existencial provisória, um modo de ocupar-se apenas com o presente

baseando-se numa atitude fatalista, de que "não tem jeito", "não adianta".

A construção do sentido é acompanhada da introdução do futuro. Mas

este futuro precisa ser de curto prazo, viável e concreto. As atividades lúdicas, a

organização de uma festa , um campeonato, permitem que o potencial se

expresse e, simultaneamente, haja prazer ou satisfação.

Junto com a construção da vontade de sentido podemos fomentar na

criança e no jovem um projeto de lugar no mundo, no futuro. Os jovens que não

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conseguem imaginar seus futuros são, a meu ver, os mais frágeis. Se o futuro

não existe, ou se a pessoa não "ocupa" um lugar no mundo no futuro, não há

esperança, não há desafio.

Muitos jovens não conseguem, entender para que serve o conhecimento.

Fica difícil dedicar-se a algo cuja finalidade não está clara ou não tem gancho

com a vida e a perspectiva do aluno. A adesão à escola deve ser estimulada

diariamente pela equipe do abrigo.

Devido a isto, considero fundamental estabelecer os nexos entre as

matérias básicas e as profissões. Assim, o aluno pode entender para que serve

a matemática, a língua portuguesa e as ciências, pois junto com estes saberes

existem modos de estar no mundo, por meio da produção. Cria-se uma ponte

entre o ensino, o mundo e o futuro. Aprender passa a fazer sentido

pessoalmente.

Muitas vezes, uma criança abrigada não internalizou a escola, durante

sua convivência familiar. No REAME, um elemento prioritário no processo de

estada no abrigo é a sua vinculação à escola. O grau de vinculação, ou seja,

sua permanência na sala de aula, seu envolvimento com a cultura da escola,

sua atuação nas aulas de reforço escolar, no abrigo, servirão de “termômetro”

na reinserção familiar.

Os cuidados com o próprio corpo tem um importante papel na promoção

da auto-estima. Estimular a capacidade de cuidar de si mesmo. E

simultaneamente fomentar os cuidados com os ambientes onde o cotidiano

transcorre. A dimensão estética, as cores, as formas e a construção de "coisas

belas" devem ser estimuladas. É claro que esta estética virá marcada pelos

interesses da adolescência, da cultura e da época. Mas o que nos interessa é o

movimento de preservação, de carinho, de envolvimento, enfim, da

exteriorização de forças essenciais do jovem.

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Nas instituições existe sempre um registro das chamadas "ocorrências",

destinado a anotar os problemas, os erros, as brigas e as medidas adotadas.

Este livro precisa mudar de enfoque. Quando o menino acerta, quando eles se

entendem, quando revelam suas qualidades e interesses aonde fica o registro?

Precisamos começar a anotar as soluções e as possibilidades.

O livro de ocorrências foi adotado por um curto período no REAME, nos

moldes tradicionais (controle e punição). Atualmente, as comunicações ficam

afixadas nos murais do escritório e a comunicação verbal intensificou-se. Desta

forma, as “ocorrências” são notificadas com o contato pessoal. O que muitas

vezes acontece é deixar alguma informação escapar, por esquecimento. A

equipe não registrava os dados no livro e ele tornou-se uma referência

nebulosa.

Quando o menino ou a menina são agressivos, ou "inadequados", o que

fazer? Antes de atribuir os motivos do jovem e "condená-lo" com alguma

medida disciplinar, precisamos entender o acontecimento. Entender,

suspendendo a tendência de classificar entre certo e errado, bom e mau. A

maioria destes atos expressa um pedido de socorro ou um fragmento

importante da vida do sujeito.

Muitos adolescentes reclamam limites, nunca antes estabelecidos no

convívio familiar. Aliás, o abrigamento de crianças e adolescentes tem sido

efetuados, a meu ver, de forma irrefletida. Situações em que os pais não

conseguem disciplinar seus filhos, casos de evasões e não permanência na

escola, ou uma simples atitude de insubordinação de um adolescente, tem

levado muitos ao abrigo. Ao chegar à instituição, estes querem desafiar as

normas do abrigo, a autoridade da equipe, com o fim de identificar seus limites.

O espaço psicossocial no REAME, é este lugar de “escuta”. Como

psicóloga da Instituição, reservo no programa de atividades um horário semanal

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individual, onde através dos jogos e do lúdico, as crianças e adolescentes têm o

seu espaço para elaborar, ouvir-se e crescer.

Momentos de conversas coletivas, de cantoria e danças, de assistir um

filme em conjunto, comemorar o seu aniversário, passear, podem ser

momentos de restauração, de trégua, e também, de elaboração. A atmosfera

criada nestas atividades talvez seja mais importante do que o recado verbal.

Estruturar atividades onde o rir esteja de algum modo contemplado, deveria ser

um indicador de qualidade em avaliação de programas de abrigo.

Os vínculos são muito importantes para a vida. Bebês morrem quando

não são amados. Morrem de carência. O afeto é tão importante quanto as

vitaminas. Este envolve um campo novo, que é difícil de expressar em lei, trata-

se do direito à ternura e ao amor. Este direito deve ser uma espécie de

tempero, presente em todos os ingredientes da vida cotidiana.

O artigo 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), preconiza:

As entidades que desenvolvem programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios:

I – preservação dos vínculos familiares;

II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;

III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;

IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;

V – não-desmembramento de grupos de irmãos;

VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;

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VII – participação na vida da comunidade local;

VIII- preparação gradativa para o desligamento;

IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo;

PARÁGRAFO ÚNICO – O dirigente da entidade de abrigo é equiparado ao guardião, para todos os efeitos de direito.

O abrigo deve ser porta-voz dos anseios e direitos das crianças. Estas,

muito pouco podem fazer por si mesmas, diante da lei que diz ser um direito

seu a permanência em família. Desta forma, é o abrigo que deve viabilizar o

seu retorna para a família de origem ou uma substituta. Isso não é fácil se

refletirmos sobre os motivos que levam as crianças e adolescentes aos abrigos.

Em pesquisa feita nos documentos de ingresso dos meninos e

adolescentes abrigados no REAME no período de 2000-2002 constatamos que

o motivo principal de abrigamento refere-se à situação sócio-econômica das

famílias do Município de São Gonçalo. Para reinserir o abrigado ao convívio

familiar, seriam necessárias medidas sócio-educativas que atendessem às

famílias e esta não é a esfera de ação do abrigo. Mesmo assim, o REAME

oferece, dentro de suas limitações, um atendimento mensal às famílias e

acompanha no período de um ano todos os que foram reinseridos ao convívio

familiar.

A ONG Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH) em parceria

com EXCOLA apresentaram os primeiros resultados de um levantamento

Reordenamento de Abrigos promovido pelo Conselho Municipal dos Direitos da

Criança e do Adolescente (CMDCA):

De acordo com os resultados, ao contrário do que se acredita, não é a violência e sim a falta de investimentos em políticas públicas o principal motivo de abrigamento.

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Dos 1981 abrigados, 39,75% estão nas instituições devido à carência material de suas famílias e 11,26% devido à insuficiência da rede de serviços (creches, pré-escolas e programas sociais que atendam em horário complementar ao período de freqüência escolar. A violência doméstica responde por 28,64% dos casos, seguido dos motivos relacionados ao tráfico de drogas, saúde física dos pais ou dos abrigados, dependência química dos pais ou dos próprios filhos e prisão dos pais (10,61%). Já os abrigados que viviam nas ruas correspondem a 9,73% do total (http://www.terradoshomens.org.br.)

O Estatuto também assinala que o abrigo deve guardar a história de vida

dos abrigados como um tesouro, seu grande e único bem, a fim de ajuda-los a

lidar com ela, se fortalecer e aprender com as circunstâncias que a vida lhes

apresenta. O educador de um abrigo deve ajudar na resiliência da criança e

nunca enfraquecê-la.

O lugar da mãe na vida dos abrigados é quase que “intocável”. Nas

brigas cotidianas dentro do REAME, tudo é contornável, desde que os meninos

não xinguem às mães. Á partir de então, a briga torna-se uma guerra!

O papel do abrigo não restringe a guardar esta história, mas também

estimular o contato e o vínculo com a família. As visitas e os telefonemas

devem ser viabilizados pelo abrigo. Estimular o vínculo ultrapassa as fronteiras

de permitir visitas; é respeitar a criança e sua história.

Quando a reinserção passa a ser possível, a criança precisa ser

preparada para a volta. Se sua história foi desrespeitada, haverá incoerência no

discurso da reinserção.

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3. INFLUÊNCIAS DO ABRIGO SOBRE A CRIANÇA

ABRIGADA

Existe por parte da sociedade, um desconhecimento acerca do que seja

um abrigo para crianças em situação de risco social. O abrigo não é um

orfanato, e muito menos internato. Enquanto o internato é um local destinado a

jovens que cometeram infrações de diversas naturezas, o abrigo é uma

instituição de acolhimento para crianças e adolescentes em situação de risco,

cujas necessidades básicas não estão sendo supridas. Os abrigos deveriam

também ter um caráter provisório e o mais personalizado possível, conforme o

artigo 92 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Salvo raríssimas exceções, crianças abrigadas não são órfãs e mais de

70% delas não são abandonadas. “Possuem pai, mãe, irmãos e geralmente

sofrem com a ausência deste vínculo afetivo”, afirma Cláudia Cabral, diretora

executiva da Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH) – (www.terrados

homens.org.br).

Por esta razão, o grande desafio de uma instituição de abrigo talvez seja

o de assegurar a estabilidade afetiva necessária ao desenvolvimento do ser

humano; necessidades essas que foram apontadas por Maslow. Sabe-se o

quanto as crianças abrigadas desejam voltar para seus pais biológicos ou

encontrar pais adotivos.

A interação vai se expandindo, à partir do nascimento da criança.

Primeiramente, ela vive a díade mãe/bebê, já abordada anteriormente.

Conforme cresce, suas interações sociais também se expandem. Depois do

lar, vem a escola, a igreja, a vizinhança até que na fase adulta as relações de

trabalho e conjugalidade começam a fazer parte desse cenário, também.

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Enquanto se dá a permanência da criança no abrigo, ela passa a sofrer

influências desse novo convívio. Existe toda a representatividade de cuidado e

proteção, na maioria das vezes, na figura de educadores, “tios” e em alguns

modelos de abrigo, na figura de “pais sociais”. O REAME, abrigo que temos

citado desde o início do trabalho, adota esta estrutura de Casa-Lar, com

educadores e um casal de “pais sociais”.

Com a permanência dos abrigados nas instituições, este modelo de

família que é apresentado na casa, começa a influenciar a construção

intrapsíquica e as relações sociais das crianças e adolescentes abrigados. No

dia-a-dia, é comum ouvir frases do tipo:

“ Quando eu crescer, quero ter uma família como a da tia B”.

As figuras representativas que atuam nos abrigos dão uma perspectiva

contextual, sociocultural e psicossocial a criança que agora começa a absorver

o modelo que estão apresentando-lhe. Ocorre uma “transição ecológica”,

segundo Krebs (1995), na história dos abrigados:

sempre que uma pessoa envolve-se num determinado ambiente pela primeira vez ocorre uma transição ecológica. Esse tipo de transição é caracterizado pela passagem da pessoa em desenvolvimento de um ambiente familiar para um outro ainda desconhecido Tais espaços, de caráter provisório, como medida de proteção à infância e adolescência que vive sob riscos sociais (violência doméstica, aliciamento pelo tráfico de drogas, experiências de roubos e furtos ou mesmo negligência dos pais ou responsáveis, não contendo seus filhos em casa ou na escola)(apud SANTOS e MOURA, 2002, p. 89).

Na chegada de uma criança ao abrigo, todas as transformações em sua

rotina, as novas pessoas com as quais conviverá, os objetos e mobílias

diferentes, enfim, a cultura do abrigo refletirá sobre sua nova visão de mundo e

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influenciará no seu desenvolvimento humano. Embora estas crianças já

apresentam sua individualidade e singularidade, no contexto social, ela se

constrói, à partir dessas relações grupais. Se um abrigo está suprindo somente

as necessidades primárias de seus abrigados, como provedor de alimento e

vestuário, não estará cumprindo o seu papel de assegurar a estabilidade

emocional, não dando lugar ao aconchego e afeto, como referenda a palavra

“abrigo”.

O longo período de abrigamento a que as crianças e adolescentes são

sujeitos, acarretam um enfraquecimento com a família, absorção do modelo da

instituição, ocupando a lacuna deixada pelo abandono familiar. A figura de

apego da mãe ou cuidadora é enfraquecida e mais dificuldades eles terão de

estabelecer relações pessoais e sociais.

Quando a reinserção familiar é concretizada e as crianças e

adolescentes retornam para o seio familiar, algumas intercorrências surgem e o

trabalho de acompanhamento às famílias dos abrigados no REAME, com base

em observações, revelou-me o seguinte:

• Devido às dificuldades sócio-econômicas a que os filhos são submetidos,

começam a cobrar das famílias um padrão de vida, semelhante ao

vivenciado no REAME.

• No abrigo a criança era cuidada e protegida e na volta ao lar ela tem que

ser a provedora e cuidadora, no caso de irmãos menores.

• As famílias revelam seus conflitos, frente a essa impotência, em nossos

encontros mensais, esperando receber orientação como proceder.

• Crianças e adolescentes que vivem carências afetivas e privação dentro

das famílias, começam a apresentar os mesmos “sintomas” que

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justificaram o abrigamento, ou ainda, novos: exemplo: antes do

abrigamento furtava na comunidade, agora está envolvendo-se com

drogas.

Por isso, a reinserção precisa ser acompanhada durante um período,

cujo objetivo é que a família reaprenda a lidar com a nova demanda e os filhos

se reintegrem à dinâmica de sua família. Vale ressaltar que tais situações

ocorrem quando há um longo período de abrigamento.

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CONCLUSÃO

Geralmente, ao tratar do assunto apresentado neste trabalho, as

considerações são feitas com base no ideal, ou seja, discute-se a questão da

crianças sob situações de risco, sua família e o que o Estado tem a oferecer

diante deste grave problema: o abrigo. As discussões são bastante atuais, pois

a família brasileira tem sofrido transformações sociais e políticas em duas

dimensões: novas configurações familiares e aumento da pobreza e miséria

social, provocando exclusão social.

Enquanto a família sofre transformações significativas, o Estado tenta

acompanhar as rápidas mudanças. O Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), foi criado na década passada e ainda não oferece, por exemplo, o

abrigo como uma medida de proteção provisória. À guisa de ilustração, as

crianças permanecem mais tempo do que deveria, abrigadas. As famílias estão

frágeis e não conseguem recebê-las.

A pergunta que originou o estudo acerca do pertencimento das crianças

abrigadas, continua a ecoar: A Quem Pertence a Criança Abrigada? O estudo

revelou que o ideal de abrigo, faria deste apenas um local de passagem, sem

grandes implicações à sua identidade. Contudo, a realidade que se apresenta

é de Instituições absorvendo crianças e adolescentes por muito tempo, diante

dos motivos expostos.

A identidade é formada à partir do pertencimento à alguém. Ninguém

existe sem pertencer. A pertença tem dois lados: a familiaridade e a filiação. A

primeira, vem do relacionamento travado no cotidiano e a segunda, é fruto da

representação psíquica que é reforçada no contexto cultural. Família é

sociológica e filiação é biológica. Logo, a criança objeto do nosso estudo,

encontra-se nesta mediação entre a família e a filiação.

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A criança que não conhece sua história, seu passado, a origem do seu

nome, não consegue estruturar o seu tempo. Em sua vida há lacunas, dada à

essa desestruturação. O ato de nomear alguém, é fator importante na

constituição desse novo ser. O prenome é dado em uma relação íntima,

afetiva. A comunicação com crianças que vivem esta situação de abrigo, é

dificultada, pois seu discurso é confuso e, sendo assim, o interlocutor não

consegue acompanhá-lo. Isso torna a criança excluída dos círculos sociais e

das trocas afetivas.

O simples fato de não saber identificar com quem se parece, faz a

criança perceber a lacuna da impessoalidade. No aspecto social, identificar o

grupo ao qual a criança pertence, a faz sentir-se orgulhosa e segura quanto à

sua identidade. As crianças que desconhecem seus pais se utilizam de um

recurso emocional, afim de aliviar a dor e seu sofrimento: pais oníricos. Isso

favorece a idealização de pais, que se revela através das mentiras, lendas e as

invenções sobre a própria origem. Para elas, tudo adquire sentido.

Na adoção, quando os pais adotam uma criança da mesma cultura,

geralmente lhe omitem seus genitores. Mas quando a criança vem de outra

cultura, procuram informar sobre suas origens. Querem com isso que sua

afetividade não pertença mais aos pais biológicos e suas origens pertençam a

outra cultura. A criança pertence aos que estão envolvidos no seu dia-a-dia

(familiaridade), enquanto que a filiação imaginária remete a outra cultura com

gestos, gostos, práticas diferentes.

A pertença é reforçada pela linguagem. O linguajar comum, as mímicas,

as maneiras diferentes de expressão nos identificam e nos fazem trocar afeto.

O estrangeiro sente-se estável e seguro quando encontra alguém que fale sua

própria lingua. Povos como os ciganos, estruturam-se através dos seus rituais

cotidianos. Não possuem história e geografia própria, absorvendo a cultura de

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onde se estabelecem; contudo, alguns hábitos são mantidos para conservar

seus mitos.

Outro fator importante para o pertencimento, diz respeito à transmissão

de bens, carregados de história. Isso nos assegura um lugar afetivo em nossa

linhagem. Por exemplo, uma criança tutelada, no caso abrigada, sem contato

contínuo com sua família, absorve completamente os hábitos de vida de seu

tutor: identifica-se com ele no falar, agir, vestir, segue sua profissão, etc. Na

ausência deste tutor, nada lhe é assegurado. Isso cria no tutelado uma

descontinuidade, um “não-existir”.

Os rituais de inclusão social também reforçam o pertencimento: escolhas

profissionais, escolhas conjugais, padrão de estética, etc. A falta destes, faz

com que o indivíduo fique passivo, sendo levado de um lado para outro,

indiferente.

A vida está permeada de ambivalências. Ao mesmo tempo que

necessita-se do outro para o desenvolvimento, se pertencer demais a esse

grupo, será aquilo que o grupo determinar. Bowlby utilizou-se das experiências

de Lorenz e introduziu na espécie humana o conceito de impregnação. A

convivência, o “modus vivendi” determina a identidade. Erickson apresenta a

crise da criança, na fase da infância com o dilema confiança versus

desconfiança e a crise do adolescente entre apego e separação.

CYRULNIK (1995), apresenta-nos a fábula dos “destinados ao Fier”,

onde a família era marcada por uma depressão genética ou maldição

hereditária. Todos os homens aos quarenta anos se lançavam no rio e

morriam. Isso perpassava as gerações. Um jovem narra que viveu o drama do

“destino ao Fier” nos anos que antecediam a chegada dos quarenta. Perto de

completar a idade, descobre-se adotado por aquela família. Sente-se aliviado,

pois agora não precisa ser fiel àquele padrão. Já não pertencia àquela família.

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O pertencimento nesse sentido é maléfico, pois há uma prisão a um padrão (ex:

crianças não são boas alunas para não humilhar seus pais, judeus retornaram

para junto dos seus para serem sacrificados no holocausto).

Os jovens do mundo atual não sabem quem são seus pais. No modelo

de família brasileira, da época colonial, temos o grande patriarca e tudo o mais

desenrolando-se ao seu redor. Uma criança do Séc XIX conhecia seu pai, seu

ofício, suas ferramentas, seu local de trabalho. Atualmente não sabe acerca do

trabalho do seu pai, muito menos de sua função, enquanto função social; razão

porque não tem laços afetivos nesta relação. Não é chamado de pai. A mãe

assume todo o lugar destinado aos pais.

Atualmente, muitas crianças abrigadas tornam-se órfãs de pais vivos. A

família adoecida, ao invés de tratar as suas mazelas, retira a criança do

contexto, deixando a menor parte sã acabar de adoecer. Então o abrigo ocupa

o lugar da família, proporcionando figuras às quais os abrigados passam a se

vincular. Quando refletem acerca do papel que passam a desempenhar para

as famílias e seus filhos, conscientes que não existem políticas apropriadas

para apoiar as famílias, ainda oferecem experiências de confiança, apego e

pertencimento aos abrigados.

Tendo em vista o que foi exposto, concluímos que o sentimento de

pertença vai reforçando a construção da identidade, que possui aspectos

relacionados às primeiras vinculações e as relações que se estabelecem daí

em diante. No caso específico estudado – as crianças abrigadas – dependerá

do tempo de permanência com as figuras que representarão segurança, amor,

ou mesmo o modelo familiar.

O desejo de pertencimento é inerente ao homem. Desejamos pertencer a

uma escola de pensamento, a uma comunidade eclesial, a um partido político,

muitas vezes sacrificando a autonomia.

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Vimos, neste breve estudo, que a tríade criança-família-abrigo é

complexa e, como toda a triangulação, dois se tornam unívocos, em detrimento

ao terceiro. O lugar do abrigo deve ser de mediação entre a criança e sua

família, para que a reinserção seja uma realidade para tais crianças. Como

dispõe o ECA,

Toda a criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (art.19, cap.III)

Um estudo mais aprofundado, levando-se em consideração os motivos

de abrigamento, auxiliarão o pesquisador a refletir sobre a questão principal

deste estudo. No decorrer do trabalho, percebemos que existe uma diferença

entre a criança que passa pelo abrigo e aquelas que fazem dele a sua base

para a construção de sua identidade. Nesses casos, não são identificadas

referências familiares e estes são enquadrados sob a designação

abandonados.

Portanto, a pesquisa de campo, com questionários para as Instituições

de abrigo, crianças e famílias aprofundará a temática e dará uma visão mais

refinada. Entrevistas com tal população e estudos de casos, realizados por

assistentes sociais e psicólogos dos abrigos serão, certamente, um acervo

riquíssimo para futuros pesquisadores. Os questionários, as entrevistas e os

estudos de casos apresentarão situações não contempladas neste estudo e

corroborarão as idéias dos teóricos que aqui apresentamos.

Uma pesquisa bibiográfica sob o ângulo da Terapia Familiar Sistêmica

apresentará o tema em questão sob a ótica do sistema familiar, ou seja,

mudaremos o foco da criança para toda a família. A Quem Pertencem as

Famílias Abrigadas? A reflexão se dará sobre a família (sistema) sob condição

de abrigamento, onde o filho (subsistema) é seu representante no abrigo.

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ANEXOS