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Universidade de Brasília Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literaturas Programa de Pós-Graduação em Literatura EMANUELLE ALVES MELO A PRUDÊNCIA DE NÍCIAS: ESTUDO ACERCA DO ÉTHOS DE NÍCIAS EM TUCÍDIDES E EM PLUTARCO Brasília-DF 2016

Universidade de Brasília EMANUELLE ALVES MELO · A retórica na historiografia e na biografia será o ponto crucial desta pesquisa, pois, apesar de ser tratada como um assunto controverso

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  • Universidade de Braslia

    Instituto de Letras

    Departamento de Teoria Literria e Literaturas

    Programa de Ps-Graduao em Literatura

    EMANUELLE ALVES MELO

    A PRUDNCIA DE NCIAS: ESTUDO ACERCA DO THOS DE NCIAS EM

    TUCDIDES E EM PLUTARCO

    Braslia-DF

    2016

  • EMANUELLE ALVES MELO

    A PRUDNCIA DE NCIAS: ESTUDO ACERCA DO THOS DE NCIAS EM

    TUCDIDES E EM PLUTARCO

    Braslia-DF

    2016

    Dissertao apresentada ao Instituto de Letras da

    Universidade de Braslia para obteno do ttulo de

    Mestra em Literatura.

    rea de Concentrao: Estudos Literrios

    Comparados/ Traduo e Comentrio de Prosa

    Grega Antiga.

    Orientadora: Prof. Dra. Sandra Lcia Rodrigues da

    Rocha

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo ou pesquisa, desde que citada a fonte.

    MELO, Emanuelle Alves.

    A Prudncia de Ncias: estudo acerca do thos de Ncias em Tucdides e em

    Plutarco/ Emanuelle Alves Melo; orientadora Prof. Dra. Sandra Lcia Rodrigues da

    Rocha. Braslia, 2016.

    104 p.

    Dissertao (Mestrado) Universidade de Braslia, Instituto de Letras,

    Departamento de Teoria Literria e Literaturas, Programa de Ps-Graduao em

    Literatura, 2016.

    1. Historiografia Antiga. 2. Biografia Antiga. 3. Retrica. 4. thos.

  • MELO, E. A. A Prudncia de Ncias: Estudo acerca do thos de Ncias em Tucdides e em

    Plutarco. Dissertao apresentada ao Instituto de Letras da Universidade de Braslia para

    obteno do ttulo de Mestra em Literatura (Estudos Literrios Comparados/ Traduo e

    Comentrio de Prosa Grega Antiga).

    Aprovada em: 29/02/2016

    Prof. Dra. Sandra Lcia Rodrigues da Rocha Instituio: Universidade de Braslia

    Julgamento: aprovada Assinatura: _______________________

    Prof. Dra. Maria Aparecida de Oliveira Silva Instituio: Universidade de So Paulo

    Julgamento: aprovada Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. Henrique Modanez de SantAnna Instituio: Universidade de Braslia

    Julgamento: aprovada Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. Erivelto da Rocha Carvalho (suplente) Instituio: Universidade de Braslia

    Julgamento: ___________________ Assinatura: _______________________

  • Dedico esta dissertao minha querida e amada me,

    Maria Helena. Sem seu amor e carinho, nada seria.

    Toda minha educao eu devo senhora. Amo voc!

  • AGRADECIMENTOS

    Neste momento to especial, gostaria de agradecer, primeiramente, a Deus, pelo

    dom da vida e por estar onipresente a cada passo que dou;

    Aos meus queridos pais, Maria Helena e Manuel. Muito obrigada por estarem

    sempre ao meu lado, dando-me apoio e carinho.

    Aos meus irmos, Leidinha, Luciana, Karla, Claudinha, Carlos e Csar. Obrigada

    pelos conselhos importantes.

    Ao meu namorado e melhor amigo, Rafael. Agradeo por estar sempre ao meu lado

    e nunca ter me deixado fraquejar, quando pensava que no seria capaz de terminar minha

    dissertao.

    minha grande amiga e companheira de Mestrado, Valesca. Essa vitria nossa!

    s minhas amigas, Valria, Ludimilla e Luana. Primeiramente, peo desculpas pela

    ausncia ao longo destes ltimos anos, mas prometo que agora as coisas sero diferentes.

    minha orientadora, Sandra Lcia, que me acolheu na UnB quando ainda era

    caloura. Obrigada por todos ensinamentos e oportunidades. Este Mestrado fruto de toda

    pesquisa que desenvolvemos juntas desde os tempos da Iniciao Cientfica.

    Agradeo ao Departamento de Teoria Literria e Literaturas pela grande

    oportunidade.

    Por fim, agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CAPES pelo suporte financeiro, sem o qual no seria possvel realizar esta pesquisa.

  • .

    Sendo ele [Ncias], dentre os Helenos do meu tempo, o que

    menos merecia chegar a tal destino, por ter deixado girar toda

    a sua existncia pelos mandamentos da virtude.

    (Thuc. 7.86.5)

  • RESUMO

    MELO, E. A. A Prudncia de Ncias: Estudo acerca do thos de Ncias em Tucdides e em

    Plutarco. 2016. 104 p. Dissertao (Mestrado) Instituto de Letras, Universidade de Braslia,

    Braslia, 2016.

    Esta pesquisa tem como objetivo analisar como o historiador Tucdides e o bigrafo Plutarco,

    em suas respectivas obras, Histria da Guerra do Peloponeso e Vida de Ncias, apresentam o

    carter de Ncias, um general ateniense que, devido s suas aes, no foi bem-sucedido na

    expedio Siclia. A anlise do carter desse personagem ir concentrar-se nas narrativas de

    ambos os autores e nos discursos oratrios que Tucdides atribui a Ncias. Dessa forma, para a

    anlise do carter do referido personagem, faz-se necessria a leitura de duas obras, a Retrica,

    de Aristteles, e o dilogo Do Orador, de Ccero, visto que ambos os autores trazem duas

    concepes diferentes a respeito do carter do orador: o primeiro defende que o carter

    construdo por meio do discurso, enquanto o segundo, por meio da reputao do indivduo. A

    partir da leitura de Tucdides e de Plutarco, verifica-se que a prudncia a caracterstica

    principal de Ncias, porm, h outras que derivam desta, como a desconfiana, a necessidade

    de segurana e a lentido para executar uma ao. Portanto, nesta pesquisa, ser apresentado

    como cada um desses autores escreveu acerca do carter de Ncias, tendo em vista que eles

    abordaram alguns aspectos de maneira distinta, como a prudncia, ou mais detalhada, como a

    riqueza.

    Palavras-Chave: Historiografia Antiga; Biografia Antiga; Tucdides; Plutarco; Retrica; thos.

  • ABSTRACT

    MELO, E. A. The Nicias Caution: a Research about Nicias thos on Thucydides and

    Plutarch. 2016. 104 p. Thesis (Masters) Instituto de Letras, Universidade de Braslia, Braslia,

    2016.

    The purpose of this research aims to analyze how Thucydides and Plutarch represent Nicias

    character on their respective works: History of the Peloponnesian War and Life of Nicias. Nicias

    was an Athenian general, which had a dominant trait of caution and because of his attribute he

    was not very successful at the expedition to Sicilia. The analysis of Nicias character will be

    concentrated on the narratives of both authors and on the Thucydides speeches assigned to

    Nicias. In order to a correct analysis of aspects from Nicias character, the studies of two main

    works are necessary. These are: Aristotles Rhetoric and Ciceros De Oratore. Both authors

    introduce two different conceptions about the orators character: the first one argues the thos

    is conceived through the speeches, and the second one believes that character is the result of

    the reputation. After reading Thucydides and Plutarchs works, its possible to infer that

    caution is the main character of Nicias, and this feature conceives other attributes as the distrust,

    the need for security and the delay to act. Therefore, this research expects to present an analysis

    about how the authors approach Niciass character since they have written different lines of

    analysis mostly about caution or with some details, such as wealth.

    Keywords: Ancient Historiography; Ancient Biography; Thucydides; Plutarch; Rhetoric;

    thos.

  • LISTA DE ABREVIATURAS1

    1 Abreviaturas de obras baseada no site .

    Alc. Vida de Alcibades (Plutarco)

    Alex. Vida de Alexandre (Plutarco)

    Const. Lac. A Repblica dos Lacedemnios (Xenofonte)

    Dem. Vida de Demstenes (Plutarco)

    De Orat. Do Orador (Ccero)

    De Super. Sobre a Superstio (Plutarco)

    Il. Ilada (Homero)

    Inst. Instituies Oratrias (Quintiliano)

    L. 7. Carta VII (Plato)

    Kn. Os Cavaleiros (Aristfanes)

    Nic. Vida de Ncias (Plutarco)

    Nic. Eth. tica a Nicmaco (Aristteles)

    Pers. Os Persas (squilo)

    Plb. Histria (Polbio)

    Pomp. Carta a Pompeu Gmino (Dionsio de Halicarnasso)

    Rh. Retrica (Aristteles)

    Hist. Conscr. Como se Deve Escrever a Histria (Luciano de Samsata)

    Th. Sobre Tucdides (Dionsio de Halicarnasso)

    Thuc. Histria da Guerra do Peloponeso (Tucdides)

  • NDICE

    INTRODUO ...................................................................................................................... 12

    1 ALGUMAS CONSIDERAES ACERCA DA HISTORIOGRAFIA E DA

    BIOGRAFIA ANTIGAS ........................................................................................................ 14

    1.1 CARACTERSTICAS E METODOLOGIA DA HISTORIOGRAFIA E DA

    BIOGRAFIA ............................................................................................................................ 15

    1.1.1 Consideraes acerca da Historiografia e da Biografia Antigas: Origens e Caractersticas

    Principais .................................................................................................................................. 15

    1.1.1.2 A Investigao na Biografia ......................................................................................... 23

    1.1.2. A Metodologia de Pesquisa na Historiografia Moderna ................................................ 26

    1.2 A RETRICA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DA HISTRIA E DA

    BIOGRAFIA ............................................................................................................................ 30

    1.2.1 A Retrica na Historiografia............................................................................................ 31

    1.2.1.2 Algumas Reflexes acerca da Retrica na Historiografia de um ponto de Vista

    Moderno ................................................................................................................................... 36

    1.2.2 A Retrica na Biografia ................................................................................................... 39

    1.3. AS FALAS DE PERSONAGENS .................................................................................... 41

    2 O THOS DE NCIAS EM TUCDIDES ......................................................................... 46

    2.1 AS DELIBERAES DE NCIAS ................................................................................... 47

    2.1.1 O thos de Ncias na Narrativa de Tucdides .................................................................. 49

    2.1.1.1 Os Verbos e ......................................................................................... 51

    2.1.2 O thos em Relao Maturidade dos Personagens ....................................................... 53

    2.1.3 A Preocupao em relao ao Corpo e s Posses ............................................................ 57

    2.1.4 O thos que no Persuadiu .............................................................................................. 61

    2.2 AS EXORTAES DE NCIAS ....................................................................................... 64

    2.2.1 A Experincia de Ncias em Guerras ............................................................................... 66

    2.2.2 O thos da Superioridade ................................................................................................ 69

    3 A RECEPO DE NCIAS EM PLUTARCO ................................................................ 74

    3.1 AS FONTES DE PLUTARCO NA VIDA DE NCIAS ...................................................... 74

    3.2 A PRUDNCIA DE NCIAS ............................................................................................. 77

    3.3 A MATURIDADE DE NCIAS ......................................................................................... 85

    3.3 A GENEALOGIA DE NCIAS .......................................................................................... 87

    3.4 A RIQUEZA DE NCIAS .................................................................................................. 89

  • CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 94

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 98

  • 12

    INTRODUO

    A presente dissertao tem como objetivo apresentar traos do carter de Ncias,

    que foi um dos comandantes da expedio Siclia, narrada nos livros 6 e 7 da Histria da

    Guerra do Peloponeso, de Tucdides (sc. IV a.C.), cuja vida foi posteriormente objeto da

    ateno de Plutarco (sc. I d.C.) na Vida de Ncias.

    Para tanto, ser analisado como Tucdides constri o carter de Ncias, seja por

    meio de sua prpria narrativa ou dos discursos retricos que atribuiu ao personagem em

    questo. Por conseguinte, ser analisado como Plutarco apresenta o carter de Ncias em sua

    biografia, de modo a identificar semelhanas e/ou diferenas com a representao de Tucdides,

    visto que o bigrafo declara, no incio da Vida de Ncias, que lera o historiador para a

    composio dessa biografia.

    Primeiramente, para chegar a esse objetivo, convm esclarecer alguns aspectos em

    torno da historiografia e da biografia antigas antes de apresentar as anlises. Desse modo, no

    primeiro captulo desta pesquisa, sero elucidadas algumas reflexes a respeito desses gneros,

    como, por exemplo, suas principais caractersticas, bem como suas origens e seus objetivos

    mais relevantes. Entretanto, o foco deste trabalho no reincidir sobre as diferenas desses

    gneros, mas sobre suas semelhanas. Dentre estas, destacam-se a metodologia de pesquisa e a

    forma pela qual o texto constitudo, pois ambos os textos, o de Tucdides e o de Plutarco,

    recorrem arte retrica para suas respectivas composies, seja para ornament-las, seja para

    persuadir os seus leitores/ouvintes.

    A retrica na historiografia e na biografia ser o ponto crucial desta pesquisa, pois,

    apesar de ser tratada como um assunto controverso tanto na antiguidade quanto na modernidade

    (visto que ela toca no estatuto da verdade desses gneros), todas as anlises em torno do carter

    de Ncias giram em torno dessa arte. Portanto, ainda no primeiro captulo, sero apresentadas

    algumas reflexes antigas e modernas a respeito da retrica nos gneros historiogrfico e

    biogrfico, tanto na antiguidade quanto na modernidade, no levando em conta se determinado

    evento ocorreu de fato ou no, ou seja, a retrica ser analisada somente como instrumento para

    fins de persuaso e de anlise de carter.

    Tendo em vista essas consideraes, no segundo captulo, ser apresentado como

    Tucdides representa o carter de Ncias em sua historiografia. Apesar de a descrio de

  • 13

    detalhes individuais no ser recorrente nesse tipo de texto, possvel identificar, por meio da

    retrica, alguns traos individuais na obra tucidideana, como o carter, por exemplo. Dessa

    maneira, as reflexes acerca da retrica tero como base terica a Retrica, de Aristteles, e o

    dilogo Do Orador, de Ccero, pois ambas trazem concepes diferentes a respeito do carter:

    por um lado, Aristteles defende que o carter do orador construdo a partir dos discursos,

    enquanto Ccero, por sua vez, argumenta que o carter do indivduo fruto de reputao

    adquirida em vida. Assim, essas duas noes podem ser encontradas na Histria da Guerra do

    Peloponeso, visto que o carter de Ncias pode aparecer tanto nas narrativas que Tucdides faz

    antes de introduzir os discursos, uma vez que h caractersticas que o autor confere ao

    personagem, quanto nos prprios discursos que foram atribudos a este. Durante a anlise,

    verificar-se- que o carter predominante de Ncias a prudncia, e, a partir desta, sero

    especificados os aspectos predominantes desse comportamento do personagem. Alm disso,

    sero trabalhadas outras caractersticas do carter que Ncias apresenta, como a superioridade

    em relao ao outro. Dessa forma, ser com base nesses aspectos que a anlise do carter de

    Ncias ser apresentada.

    No terceiro captulo, por fim, o carter de Ncias ser analisado por meio da

    recepo que Plutarco teve de sua leitura da obra de Tucdides. Dessa forma, ser observado se

    o carter que o historiador transmite desse personagem corresponde ao que Plutarco descreve

    na sua biografia, levando-se em conta que este tambm teve contato com a leitura de outros

    autores, ou seja, possvel haver algumas diferenas. Alm disso, visto que um dos objetivos

    da biografia antiga avaliar o carter do indivduo, sero observadas, tambm, as reflexes que

    Plutarco tece a respeito de seu biografado.

    Por ltimo, nas consideraes finais, estaro descritas, em conjunto, as concluses

    referentes s consideraes a respeito da histria e da biografia antigas e s anlises do carter

    de Ncias nos textos antigos estudados, apresentando semelhanas e diferenas observadas em

    cada um dos autores e sintetizando, por fim, todos os objetivos alcanados nesta pesquisa.

  • 14

    1 ALGUMAS CONSIDERAES ACERCA DA HISTORIOGRAFIA E DA

    BIOGRAFIA ANTIGAS

    A historiografia e a biografia antigas, apesar de suas diferenas quanto ao tipo de

    assunto abordado na primeira, eram encontrados relatos de cunho poltico-militar, e, na

    segunda, era narrada a histria da vida de um determinado indivduo , so gneros que

    compartilham algumas caractersticas semelhantes, como a metodologia de pesquisa e de

    escrita, uma vez que, neles, so evidentes as fontes de pesquisa, as selees e as crticas.

    Alm da semelhana em relao metodologia, o historiador e o bigrafo utilizam

    a retrica como recurso para a construo de seus textos e para persuadir o seu leitor/ouvinte.

    No texto biogrfico, por exemplo, h tpoi que podemos encontrar nos discursos retricos do

    gnero epidctico, como a genealogia, a educao, as aes feitas em vida e a morte do indivduo

    em questo, e, alm disso, podem ser verificados traos subjetivos do bigrafo, defendendo o

    biografado, seja por meio de elogios ou por meio de censuras aos seus antagonistas. No texto

    historiogrfico, porm, a retrica no aparece de modo to semelhante ao da biografia, visto

    que os assuntos abordados so diferentes. A retrica, no gnero historiogrfico, pode estar tanto

    na construo dos argumentos, de modo a ornamentar o texto ou a convencer seu leitor de que

    o que se est contando verdadeiro, quanto nas marcas de subjetividade do historiador, como

    no uso de adjetivos.

    Ademais, a retrica na historiografia no aparece somente na construo dos

    argumentos e nas intervenes do historiador, mas tambm na reconstituio de discursos

    diretos. Na Histria da Guerra do Peloponeso, escrita por Tucdides, por exemplo, h vrias

    transcries de discursos que teriam sido ditos por participantes da guerra, e, nesses discursos,

    podemos identificar alguns recursos retricos que foram utilizados para sua construo, como

    o thos que o orador constri ao longo de seus discursos (este aspecto ser analisado com mais

    preciso no captulo 2 deste trabalho). Alm disso, importante ressaltar que as transcries de

    falas so tema de discusso desde a historiografia antiga at a moderna, visto que elas tocam

    em um assunto pertinente no que concerne ao estatuto da verdade que visa o historiador, uma

    vez que elas exigem dele um trabalho de interpretao.

    Neste captulo, ento, pretende-se explanar como a retrica aparece nos gneros

    historiogrfico e biogrfico antigos, com enfoque maior no primeiro, visto que h vrias

    discusses em torno da retrica nesse gnero. Para tanto, sero apresentadas algumas

    caractersticas gerais da historiografia e da biografia antigas, bem como algumas observaes

  • 15

    sobre suas origens e metodologia. Alm disso, ser explicado como a retrica est presente em

    ambos os gneros, contextualizando discusses, tanto na Antiguidade quanto na Modernidade,

    de tal modo que verificar-se- que as consideraes acerca da escrita e da retrica no mudaram

    consideravelmente, principalmente em relao ao gnero historiogrfico. Por fim, ser

    introduzida a questo dos discursos transcritos na Histria da Guerra do Peloponeso como

    exemplo de uso de recursos retricos na historiografia, visto que eles contm elementos

    retricos e carter interpretativo.

    1.1 CARACTERSTICAS E METODOLOGIA DA HISTORIOGRAFIA E DA

    BIOGRAFIA

    1.1.1 Consideraes acerca da Historiografia e da Biografia Antigas: Origens e

    Caractersticas Principais

    Em relao origem da historiografia antiga, importante ressaltar que h vrias

    discusses a respeito disso. Segundo Momigliano (1998), devido longa tradio de poesia

    pica que havia na Grcia Antiga, Homero e outros poetas, como Simonides e Xenfanes, foram

    considerados como percussores dos historiadores, pois eles narravam sobre guerras e fundaes

    das cidades gregas. Entretanto, de acordo com o autor, tanto os gregos quanto os romanos

    sabiam a distino entre a histria e a poesia pica, visto que a distino entre elas estava no

    fato de a histria ser escrita em prosa e ter como objetivo separar os fatos das fantasias sobre o

    passado.

    Dessa forma, um dos critrios utilizados para diferenciar a histria de escritos

    anteriores o assunto a ser abordado, porm no somente essa a diferena que determina a

    origem desse gnero, mas tambm a forma pela qual ele est disposto ao seu leitor/ouvinte, que

    tem relevncia igualmente para fins de classificao. Para tanto, convm apresentar algumas

    consideraes acerca da origem da historiografia e identificar alguns fatores que determinaram

    a origem de ambos os gneros, historiografia e biografia.

    Ccero (sc. I a.C.) considera Herdoto, que escreveu por volta de 445-425 a.C.,

    como o pai da histria, e, segundo Momigliano (1998), foi com Herdoto que o termo

  • 16

    passou a ser utilizado como nome genrico para inqurito2. Herdoto, por sua vez, cita

    Hecateu de Mileto como seu predecessor, porm distancia-se deste, chamando-o de

    (contador de histrias) (HARTOG, 2001).3

    No sculo IV a.C., o termo continua sendo utilizado com o significado dado

    por Herdoto, a saber, uma pesquisa especfica de acontecimentos passados

    (MOMIGLIANO, 1998, p. 184). Apesar de os trs componentes do inqurito de Herdoto a

    etnografia, a pesquisa constitucional e a histria blica no permanecerem vinculados em

    autores posteriores, como, por exemplo, em Tucdides que excluiu a etnografia , Herdoto

    foi quem deixou aos historiadores o princpio do texto histrico: a explicao dos eventos que

    eram relatados.

    Durante o sculo V a.C., havia tambm os cronistas locais.4 Dionsio de

    Halicarnasso, na sua obra Sobre Tucdides,5 relata que os primeiros registros historiogrficos

    gregos surgiram, primeiramente, sob a forma de histrias locais ou regionais, que tinham como

    objetivo levar ao conhecimento de todos as lembranas conservadas por cada povo e cidade.

    Nesses escritos, havia alguns mitos, alm de peripcias teatrais, e, quanto ao estilo, esses textos

    utilizavam os mesmos recursos lingusticos, como a linguagem clara, comum e breve, no

    apresentando nenhuma preocupao tcnica (Th. 5. 2-4). Contudo, Momigliano (1998) ressalta

    que as crnicas locais no eram consideradas textos historiogrficos justamente devido aos

    temas que abordavam, pois a comunidade para a qual o historiador deveria se dirigir era a da

    Grcia como um todo, e no a de uma cidade em particular. Deste modo, a histria e as crnicas

    locais se diferenciavam por causa dos assuntos que tratavam, pois, enquanto a histria grega

    relatava, principalmente, eventos polticos e militares, as crnicas locais, por sua vez, eram

    2 Segundo Hartog (2001, p. 50-51), o termo designar tanto a ao de quem , quanto um mtodo.

    A investigao, de acordo com o autor, pode ser uma atividade de um investigador-viajante, como faz

    Demcrito, ou uma investigao de tipo judicirio. Alm disso, mdicos e tragedigrafos tambm fazem o uso da

    investigao, bem como Herdoto faz dela a palavra-chave de todo o seu empreendimento. Quanto etimologia

    da palavra , ela formada a partir do verbo , que, por sua vez, derivado de (juiz,

    testemunha), referindo-se etimologicamente ao verbo ( no infinitivo e no perfeito do

    indicativo). De acordo com o autor, quando Herdoto escreve (Hdt. 1,1),

    significa que ele no um , que somente conhece ou julga, pois ele no est decidindo uma querela, mas

    que ele aquele que , ou seja, que est reivindicando um lugar para seu saber, saber este que ainda est em

    construo. Desta forma, para ver (), necessrio se arriscar e aprender a ver, seja recolhendo testemunhas,

    reunindo as diferentes verses etc. 3 Segundo Momigliano (1998, p. 183), Hecateu de Mileto teria tentado colocar ordem e racionalidade nas

    genealogias mticas gregas, alm de ter escrito uma narrativa na qual ele discutia geografia e etnologia. Segundo

    Hartog (2001, p. 41), das obras escritas por Hecateu de Mileto, sobreviveu somente o Percurso da Terra Habitada

    (em dois livros: Europa e sia); as Genealogias esto perdidas. 4 Segundo Momigliano (1998, p. 183), os cronistas locais eram um grupo reduzido de escritores de biografias e

    autobiografias, como Sila de Carianda e on do Quios; de estudantes de cronologia, como Hpias de lide; de

    pesquisadores de histria literria, como Tegenes de Rgio e Damastes de Sigeum; e, por fim, de historiadores

    locais e regionais, como Cron de Lmpsaco e Antoco de Siracusa. 5 Halicarnasso apud Hartog (2001, p. 162-163).

  • 17

    textos sobre genealogias, fundaes de cidades, festivais, rituais, leis, costumes, entre outros.

    Foi somente na Renascena que esses aspectos foram classificados como antiguidades, visto

    que tratavam de assuntos histricos que no estavam nos moldes de Herdoto e de Tucdides,

    ou seja, no tinham como foco a poltica e a guerra (MOMIGLIANO, 1998).

    Entretanto, convm mencionar as consideraes de Gentili e Cerri (1988) quanto

    ao tratamento desses tipos de histria. Segundo esses autores, deve-se ter em vista que h duas

    noes que esto intimamente ligadas a dois tipos de concepo de histria: a primeira, que

    pode ser entendida como uma srie de eventos polticos isolados concepo definida por

    Momigliano , e a segunda, que pode ser considerada uma antropologia que envolve todos os

    aspectos da vida humana. A ttulo de exemplo do segundo tipo, eles citam a Carta a Pompeu

    Gmino, escrita por Dionsio de Halicarnasso, pois, nela, ele descreve as qualidades do trabalho

    historiogrfico de Teopompo, o qual, alm de ver e dizer no somente o visvel para a maioria

    das pessoas, consegue examinar a fundo as causas, as motivaes e afeies da alma, que esto

    por trs das aes, bem como mostrar as virtudes e os vcios dos autores (Pomp. 6.6-7).6 Dessa

    maneira, a narrativa que abrange as fundaes das cidades, as vidas dos reis, as caracterizaes

    psicolgicas e as descries das regies e dos costumes seria o que Dionsio denomina

    narrativa polimrfica do historiador (GENTILI; CERRI, 1988, p. 63). Todos esses aspectos,

    nesse caso, seriam partes indispensveis para a narrativa histrica.

    Ademais, segundo Momigliano (1998), h outro aspecto que diferenciava a crnica

    local do texto histrico, pois a primeira continha excessos de elogios e acusaes, que so

    provenientes da retrica epidctica, desviando-se, assim, de um dos objetivos cruciais da

    histria: a busca pela verdade. Portanto, para o autor, um dos fatores para no se conferir

    crnica local o carter de texto historiogrfico, bem como no atribuir a origem da historiografia

    a ela, deve-se ao fato de o cronista utilizar-se de recursos retricos, que so predominantes na

    retrica epidctica.

    Entretanto, em relao busca pela verdade ou pelo provvel, a historiografia

    levada esfera da arte retrica, particularmente da oratria forense (GENTILI; CERRI, 1988).

    Argumentam Gentili e Cerri que o historiador, da mesma forma que o orador, deveria

    reconstruir os desdobramentos dos eventos com base nas testemunhas e evidncias, a fim de

    conferir credibilidade ao seu texto. Dessa maneira, o uso da retrica se fazia importante para a

    reconstituio do texto historiogrfico, visto que ela auxiliaria no processo de construo dos

    6 Halicarnasso apud Hartog (2001. p. 97).

  • 18

    argumentos selecionados pelo historiador, de modo a convencer seu leitor/ouvinte de que aquilo

    era verdadeiro.

    Ainda acerca da utilizao da retrica no texto historiogrfico, convm apresentar

    as consideraes de Ccero (sc. I a.C.), a ttulo de exemplo, a respeito da composio do gnero

    historiogrfico. Na sua obra Do Orador, ele apresenta, dentre vrios assuntos, um dilogo

    acerca da escrita da Histria, precisamente da romana (De Orat. II, 51-53), e, nesse dilogo,

    Antnio pergunta a Ctulo se a Histria era digna de ser escrita por um orador ou por outro tipo

    de homem. Ctulo, por sua vez, responde-lhe que, se ela fosse escrita aos moldes gregos, seria

    tarefa para um homem elevado; porm, se fosse escrita da forma pela qual os seus

    contemporneos escreviam, no haveria a necessidade de ser relatada por um orador, desde que

    no escrevesse mentiras. Aps essas consideraes de Ctulo, Antnio responde-lhe da seguinte

    maneira:

    51. [...] para que no desprezes os nossos escritores, os prprios gregos, de

    incio, tambm escreveram maneira de nosso Cato, de Pictor, de Piso. 52.

    De fato, a histria no era outra coisa seno a redao de anais, para cuja

    preservao, assim como a das tradies pblicas, o pontfice mximo, desde

    o incio da histria romana at o pontificado de Pblio Mcio, confiava

    escrita todos os detalhes de cada ano, levando-os ao registro oficial e expondo

    a lista em sua casa, para que o povo dela pudesse tomar conhecimento: eles

    que ainda hoje so denominados anais mximos. 53. Muitos imitaram essa

    escrita montona, deixando sem qualquer ornamento, apenas os registros de

    pocas, homens, lugares, feitos. Desse modo, tal como Fercides, Helnico,

    Acusilau e muitos outros, entre os gregos, assim o foram o nosso Cato, Pictor

    e Piso, que no dominam os meios com que se orna o discurso.7

    A partir dessa passagem, verifica-se que h uma crtica em relao escrita da

    histria em Roma. Na historiografia romana, provavelmente, no haveria elementos retricos

    na composio do discurso, e, devido a isso, dispensava-se a sua escrita por um orador, cabendo

    ao historiador somente dizer a verdade. Entretanto, interessante observar que Antnio

    argumenta que a historiografia grega, no incio, no era escrita com o ornamento retrico,

    resumindo-se apenas a um registro de pocas, homens, lugares e feitos. Segundo Hartog (2011),

    a historiografia romana era proveniente dos anais, que eram crnicas escritas pelo pontfice

    mximo, que inscrevia, numa tbua feita de cal, os acontecimentos do ano e afixava em sua

    casa. Nessas tbuas, ele escrevia sobre as vitrias, as calamidades, os prodgios, ou seja, essas

    inscries feitas pelo pontfice eram consideradas elementos de uma histria, pois eram

    acontecimentos que a cidade teria escolhido para memorizar.

    7 Traduo de Adriano Scatolin (2009).

  • 19

    Dessa forma, verifica-se que j havia discusses acerca da utilizao da retrica

    como instrumento que auxiliaria na reconstruo do texto historiogrfico. Alm disso, infere-

    se desse trecho que haveria, em algum perodo da Grcia Antiga, uma forma de escrever histria

    de modo mais simples, visto que no continha aspectos retricos na construo dos argumentos.

    Por fim, interessante observar as caractersticas que norteavam esses textos antigos, uma vez

    que discutiam a respeito de assuntos predominantes na crnica local, na historiografia e na

    biografia tambm (registros de pocas, homens, lugares, feitos).

    Gribble (1998, p. 42), em seu artigo Narrator Interventions in Thucydides,

    argumenta que a narrativa objetiva, que a narrativa predominantemente escrita em terceira

    pessoa, est eminentemente adequada historiografia, principalmente quela que se preocupa

    em passar a impresso de que os eventos so verdicos. Dessa forma, com a ausncia de um

    narrador em primeira pessoa, a experincia em relao leitura se d de forma mais direta e

    fiel. No caso de Tucdides, h o predomnio da narrao em terceira pessoa, mas h tambm

    passagens nas quais podemos verificar a primeira pessoa, ou seja, por meio de suas

    intervenes, ele cria um tipo de retrica.8

    Portanto, quanto origem do gnero historiogrfico, verifica-se que seu comeo

    no se d exclusivamente a partir de Herdoto, pois j existiam as crnicas locais, nas quais

    eram relatadas histrias sobre as fundaes das cidades, os costumes, a religio, entre outros

    aspectos, e os anais, que abordavam assuntos semelhantes aos da crnica, mas escritos de modo

    mais simples, sem recursos retricos. Quanto ao uso da retrica, ela no pode ser um elemento

    crucial que exclua o carter historiogrfico das crnicas locais. Apesar de este gnero conter

    aspectos da retrica epidctica, como elogios e/ou acusaes, no se pode perder de vista que

    os textos considerados historiogrficos na Antiguidade eram textos compostos com o auxlio

    da retrica, principalmente no que concerne elaborao dos argumentos. Quanto a esse

    aspecto, ele ser abordado de maneira mais aprofundada na seo 1.2.1 A Retrica na

    Historiografia, onde sero apresentados alguns aspectos retricos de textos historiogrficos.

    Portanto, a crnica local e a histria antigas poderiam se diferenciar quanto ao assunto

    abordado, o que no justifica desqualificar-se a primeira devido predominncia de elementos

    da retrica epidctica, supostamente desviando-se da verdade, visto que a retrica est presente

    tanto na crnica quanto na prosa historiogrfica propriamente dita.

    8 Dentre as intervenes da narrativa de Tucdides, Gribble (1998, p. 47) destaca o uso da primeira pessoa,

    referncia a um leitor implcito (), saltos no tempo, como retrojees, antecipaes ou anacronismos com uma

    definio vaga, e o uso de superlativos.

  • 20

    Quanto biografia, h vrias consideraes acerca de sua origem. Segundo Osley

    (1946), a Odisseia de Homero pode ser considerada como um fragmento considervel de uma

    biografia escrita em versos. Para Momigliano (1986), havia tentativas de escrita desse gnero

    no sculo V a.C.9 No sculo IV a.C., Iscrates e Xenofonte escreveram biografias de cunho

    encomistico:10 em Evgoras, Iscrates combinou o relato das aes do homem com o louvor

    do seu carter, indicando as suas virtudes, e, em Agesilau, Xenofonte, aps narrar as aes do

    rei, enumerava as suas virtudes (OSLEY. 1946).11 Por fim, Whitmarsh (2005) argumenta que,

    na historiografia grega, j havia elementos biogrficos12 e que, no sculo IV a.C., existiam

    biografias, mas elas no estavam completamente estabelecidas, como a Ciropdia, de

    Xenofonte, e a Filpica, de Teopompo.

    Entretanto, de acordo com Ipiranga Junior (2014), a produo biogrfica helenstica

    at o sculo II a.C. se apresenta de forma fragmentria,13 no permitindo uma classificao

    segura desse gnero. Somente durante o sculo I a.C. que surgem os primeiros boi, como a

    coleo de vidas de Cornlio Nepos, alm dos fragmentos da Vida de Augusto14 e de um relato

    autobiogrfico,15 ambos de autoria de Nicolau de Damasco. Segundo Rocha (2014), apesar de

    a Vida de Augusto encontrar-se de forma fragmentria, possvel identificar uma unidade

    9 Momigliano (1986, p.23) cita o estudo de Homeyer (1965) que apresenta que podem ser encontrados registros biogrficos nos escritos de Herdoto. Alm disso, qualquer relato, seja em verso ou em prosa, que exponha alguma

    narrativa acerca de um indivduo, poderia ser considerada uma elaborao biogrfica. Momigliano (1986, p. 36)

    apresenta alguns fatores que podem ter contribudo para a criao da biografia, como as oraes fnebres e as

    rvores genealgicas. 10 Segundo Whitmarsh (2005, p.75), as obras Agesilau e Evgoras narravam sobre a vida de indivduos, mas elas

    no seriam consideradas biografias no sentido de relatos completos das vidas de homens; seriam um encmio

    de louvor. Para Hgg e Rousseau (2000), atualmente a biografia termo diferente de bios, utilizado na antiguidade

    para referncia ao gnero biogrfico remete a um conceito amplo, que abrange o panegrico como uma de suas

    formas de escrita. Entretanto, historicamente falando, a biografia e o panegrico constituam gneros diferentes:

    por exemplo, a obra Evgoras era considerada um panegrico puro, uma vez que era baseada em discursos

    epidcticos. A retrica permitia a esse gnero um grande nmero de tpoi e estratgias. A biografia, por outro lado,

    era um produto livresco, mais verstil e, s vezes, se perecia com uma carta. 11 Segundo Momigliano (1986), Xenofonte teria escrito a obra Agesilau duas vezes: uma do ponto de vista histrico

    e a outra do biogrfico. Dessa forma, esses textos teriam contribudo para a distino entre os gneros

    historiogrfico e biogrfico, visto que, na biografia de Agesilau, predomina o elogio ao indivduo. 12 Segundo Momigliano (1998, p. 188), os textos biogrficos no constituam histria, porm a histria poderia

    conter pequenas narraes biogrficas. 13 Segundo Ipiranga Junior (2014, p. 123), foi descoberta, em 1912, uma Vida de Eurpides, escrita por Stiro, cujo fragmento, datado da segunda metade do sculo III a. C., se encontra mais ou menos completo. Gazzinelli (2014,

    p. 149), em seu estudo sobre a Vida de Eurpides, nos revela que essa biografia apresenta aspectos referentes s

    prticas biogrficas da escola aristotlica, alm das convenes do gnero bos no perodo helenstico. Segundo a

    autora, a Vida de Eurpides, de Stiro, foi escrita cuidadosamente e com explicitao das fontes, permitindo-nos

    avaliar a influncia de textos literrios, sejam trgicos ou cmicos, na narrativa. 14 Segundo Rocha (2014), a Vida de Augusto retoma a tradio panegrica de Xenofonte e Iscrates. Ademais,

    esses fragmentos revelam a recorrncia dos tpoi tradicionais do gnero bos, como a genealogia do biografado, a

    educao e as narrativas de guerra. 15 De acordo com Lafer (2014), Nicolau de Damasco, ao escrever sua autobiografia, preocupou-se em se distinguir

    dos Commentari de vita sua dos romanos, concentrando-se em suas informaes familiares, educao e princpios

    ticos, com a finalidade de propor ao seu leitor um modelo de vida.

  • 21

    narrativa,16 pois os quinze captulos esto coesos e organizados cronologicamente. Contudo,

    segundo Ipiranga Junior (2014), somente no sculo I d.C. que as narrativas de cunho

    biogrfico e autobiogrfico do perodo romano-helenstico aparecem com maior fora, com os

    autores Plutarco, Suetnio e Luciano de Samsata, por exemplo.

    A escassez de material biogrfico entre os sculos V e II a.C., em Atenas, pode estar

    associada ao fato de que os Atenienses contemporneos poderiam no ter interesse pela gerao

    anterior. Segundo Momigliano (1986), maior o material biogrfico produzido na sia Menor

    durante esse perodo, pois era mais forte o interesse nessa regio pelos detalhes biogrficos,

    porm, em Atenas, observa-se certo desdm acerca dos detalhes pessoais. Essa falta de interesse

    por parte dos Atenienses desse perodo pode estar associada indiferena aristocrtica por esses

    detalhes, pois as circunstncias privadas, que se tornavam pblicas, eram exploradas por

    comedigrafos e oradores. Segundo Whitmarsh (2005), durante os trs primeiros sculos do

    Imprio Romano perodo denominado como a Segunda Sofstica , passou-se a ter uma nova

    nfase sobre os indivduos, tomando as suas obrigaes primrias em termos de relao moral

    entre si mesmos, em vez de centraliz-las na sociedade, de forma geral.

    A investigao histrica, por outro lado, segundo Momigliano (1986), adquiria mais

    influncia em Atenas, pois ela se dava pela narrao crtica dos acontecimentos polticos e

    militares, e no dos indivduos. A sua metodologia, que tinha como expoente Herdoto,

    abordava os costumes, as instituies e as guerras, alm da explicao dos eventos relatados

    (MOMIGLIANO, 1998). Barreira (2001, p. 193), por sua vez, destaca que a historiografia, tanto

    a grega quanto a romana, tratava de assuntos poltico-militares basicamente. A histria se

    tornou um gnero inseparvel de exerccio e de reflexo sobre o poder (), e, portanto, a

    historiografia estava direcionada aos homens que viviam na cidade e que estavam inseridos

    num contexto poltico em que a oratria tinha funo importante nas arenas judiciais e polticas.

    Dessa forma, a historiografia era um instrumento que auxiliaria na oratria, uma vez que os

    fatos descritos nos discursos deveriam ser introduzidos de forma cautelosa. Convm, por

    oportuno, ressaltar que Aristteles, em sua Retrica (1360a18-35), apresenta a histria como

    instrumento por meio do qual se pode encontrar matria para deliberar sobre alguns assuntos,

    como a legislao. Para o filsofo, para legislar, til tanto estudar a histria passada do prprio

    Estado, a fim de verificar que forma de governo desejvel a ele, quanto conhecer as formas

    de governo vigentes em outros Estados.

    16 Rocha (2014) identifica somente um problema de continuidade na passagem do captulo 12 ao 13, pois ocorre

    prejuzo quanto ao sentido, uma vez que se trata de uma grande lacuna entre dois fragmentos.

  • 22

    Entretanto, necessrio fazer uma ressalva em relao narrao crtica da

    historiografia, baseada em acontecimentos polticos e militares, assuntos estes que se encontram

    no mbito da coletividade. Apesar de predominar, na historiografia antiga, assuntos de cunho

    poltico-militar, possvel identificar algumas caractersticas de indivduos que agem para os

    eventos acontecerem. Dessa forma, pode no ser o foco da historiografia tratar de indivduos,

    porm isso no impede que traos de individualidade possam ser encontrados nesse tipo de

    texto.

    Na Histria da Guerra do Peloponeso, por exemplo, Gribble (2006) enumera que

    h trs caractersticas que definem os indivduos em Tucdides: a primeira a ausncia de

    detalhes pessoais ou privados, pois somente encontraremos detalhes da vida pblica do

    indivduo; a segunda a falta do desenvolvimento de uma histria completa dos indivduos; e,

    por fim, a terceira a ausncia de aspectos morais na representao do indivduo, porm esses

    aspectos podem ser encontrados nos indivduos polticos. Entretanto, segundo o autor, nem

    todos os indivduos so tratados da mesma maneira. A ttulo de exemplo, a atribuio de falas

    uma tcnica da narrativa de Tucdides que est relacionada com o papel do indivduo nas reais

    condies da vida poltica ateniense do sculo V a.C.. Alcibades e Ncias, por exemplo,

    representam a diviso de opinio, por meio de seus discursos, que ser recorrente durante toda

    a narrativa da expedio Siclia. Isso corrobora o argumento de Kremmydas (2016), segundo

    o qual Tucdides molda seus personagens por meio de tcnicas literrias nas quais se incluem

    descries genricas de carter, como traos cvicos se Ateniense ou Espartano , por

    exemplo.

    Tendo em vista essas consideraes acerca da temtica com nfase na coletividade,

    predominante na historiografia, e o foco na individualidade, na biografia, preciso considerar

    tambm outro aspecto que diferencia esses gneros. Visto que ambos os gneros buscavam

    objetivos diferentes, seus leitores deveriam ter expectativas especficas ao lerem as obras de

    cunho biogrfico ou historiogrfico. Isso se verifica no prefcio da Vida de Alexandre, biografia

    escrita por Plutarco (Alex. 1.1-2):

    As vidas do rei Alexandre e do Csar, que foi derrubado por Pompeu,

    escrevemos neste livro, e, devido ao grande nmero de aes j contadas,

    nenhuma outra coisa diremos de antemo e suplicamos [] aos estudiosos para no nos julgarem mal, se no podemos transmitir nem todas e

    nem cada uma das famosas aes de forma cuidadosa, mas resumimos a maior

    parte delas. [2] Pois no escrevemos histrias [ ], mas vidas

    [], e nem, nas mais notveis aes de todos os eventos, h uma

    explicao sobre virtudes e vcios, mas, muitas vezes, numa breve ao ou

    numa palavra ou na educao, algum consegue fazer uma reflexo do carter

  • 23

    [], mais do que as batalhas nas quais muitos morreram e as maiores

    cidades sitiadas [conseguem faz-lo].17

    Nesse trecho inicial da Vida de Alexandre, nota-se a diferena entre os objetivos

    propostos pela biografia e pela historiografia, pois as aes mais famosas dos biografados, que

    esto no mbito poltico-militar, no seriam o assunto principal abordado pelo bigrafo, pois

    nem sempre nelas seria encontrado o principal objeto de composio da biografia, a saber, o

    carter () do indivduo. Dessa forma, de acordo com Plutarco, no somente dos grandes

    acontecimentos narrados pela historiografia que o bigrafo ir extrair o carter do biografado,

    mas tambm de outras fontes, como nos relatos de falas ou no tipo de educao que seu

    personagem teve.

    Portanto, depreende-se dessas consideraes de Plutarco em relao sua

    metodologia de pesquisa a possibilidade de obter aspectos do carter de determinado indivduo

    a partir de suas aes em batalhas, apesar de no ser to eficiente quanto outros recursos, ou

    seja, h, sim, traos de individualidade nesses tipos de texto. Alm disso, apesar de se

    autodenominar um bigrafo, Plutarco apresenta, ingenuamente ou no, outro aspecto que

    assemelha o texto biogrfico ao historiogrfico: a metodologia de pesquisa, que ser vista na

    seo a seguir.

    1.1.1.2 A Investigao na Biografia

    O promio da Vida de Alexandre (Plut. Alex. 1.1-2), visto anteriormente, utilizado

    por vrios estudiosos18 a fim de exemplificar a distino entre os gneros biogrfico e

    historiogrfico, uma vez que o prprio Plutarco se apresenta como bigrafo em seus trabalhos,

    ratificando as opinies acerca das caractersticas e objetivos desses gneros herdados desde o

    sculo V a.C. Na biografia, os leitores encontrariam assuntos referentes educao e ao carter

    dos biografados, enquanto que, ao lerem um texto de carter histrico, eles encontrariam relatos

    de guerras e de reformas polticas (MOMIGLIANO, 1986).

    17 Todas as tradues das Vida de Alexandre so de responsabilidade da autora (2016). A traduo para portugus

    teve como base o texto grego da edio inglesa de Bernadotte Perrin (1919). 18 Acerca da reproduo dessa introduo da Vida de Alexandre, cf. Momigliano. Histria e Biografia, 1998, p.

    182; Gentili & Cerri. History and Biography in Ancient Thought, 1988, p.67; Funari. Introduo a Plutarco. In:

    Vidas de Csar, 2007, p. 132. Neste ltimo, o autor prefere associar as Vidas filosofia e no histria.

  • 24

    Ao levar em conta essa passagem da Vida de Alexandre, convm observar a

    recepo em relao leitura de ambos os gneros. Plutarco, ao desculpar-se ()

    com seus leitores por no abordar todas as aes e nem cada uma delas de forma cuidadosa,

    indica que talvez as expectativas de seus leitores pudessem confundir-se, pois as figuras de

    Alexandre e de Csar deveriam estar bastante vinculadas a textos de cunho historiogrfico. Para

    tanto, Plutarco verifica a necessidade de distinguir a biografia da historiografia, demonstrando

    as intenes que busca apresentar no gnero biogrfico, visto que os enfoques de ambos so

    diferentes. Segundo Titchener (1999), distino no seria a palavra exata nessa situao, pois,

    na verdade, Plutarco estaria sendo defensivo quando pede aos seus leitores que no o julguem

    por algo que ele no pretende fazer. O mesmo ocorre no incio da Vida de Ncias, quando ele

    expressa receio quanto s ms interpretaes de suas intenes, uma vez que ele est escrevendo

    sobre uma pessoa que aparece na narrativa de Tucdides (Plut. Nic. 1.1). Dessa forma, de acordo

    com a autora, quando Plutarco se impe como bigrafo, uma vez que no escreve Histrias, ele

    se est se precavendo de ser comparado a um historiador.

    De fato, a biografia possui temas e objetivos diferentes dos da historiografia, e,

    segundo Titchener (1999), as caractersticas de um gnero no so aplicadas necessariamente

    ao outro, principalmente em relao verdade e completude. Entretanto, importante ressaltar

    que a metodologia utilizada para a composio de ambos os gneros pode ser considerada a

    mesma, pois, quando os estudiosos diferenciam esses gneros, eles no mencionam o carter

    investigativo que est por trs da biografia. Ainda, a autora esclarece que a histria depende da

    sutileza e das habilidades de escrita do historiador, cuja inspirao se d a partir dos

    documentos, e a biografia, por sua vez, gira em torno da acumulao de vrios eventos, que so

    mais suscetveis interpretao subjetiva, ou seja, a observao e a anlise crtica se tornam

    aspectos essenciais. Dessa forma, a biografia apresenta metodologia semelhante da histria.

    Ademais, segundo Silva (2006), aps a leitura de todas as biografias plutarquianas,

    possvel identificar que a estrutura textual corresponde de uma biografia, mas que, no seu

    contedo, pode ser observado que houve um trabalho de investigao e de reflexo que esto

    no mbito do trabalho metodolgico do historiador. A ttulo de exemplo, na Vida de

    Demstenes, Plutarco apresenta certa subjetividade quando seleciona alguns relatos (Dem. 5.6):

    [Demstenes] quis Iseu como professor de oratria ainda que Iscrates

    tivesse tempo disponvel naquele momento ou [] porque, como alguns

    dizem, ele no tinha as dez minas, devido sua orfandade, para pagar o valor

  • 25

    determinado a Iscrates, ou, melhor [ ], porque admitiu que a

    oratria de Iseu fosse eficaz e inteligente de acordo com sua necessidade.19

    Nessa passagem, verifica-se duas possibilidades de relato, marcadas pelos

    advrbios [...] , que exigem do bigrafo uma escolha. Assim, podemos verificar que

    Plutarco, apesar de apresentar duas situaes para um fato, demonstra preferncia pela segunda,

    devido ao uso do comparativo , que significa melhor, muito, certamente. Dessa forma,

    Plutarco revela que, na sua metodologia, houve subjetividade, uma escolha, que so aspectos

    inerentes tambm construo da historiografia.

    Em outro trecho da Vida de Demstenes, verifica-se que Plutarco no faz uma

    escolha em um relato ou outro, mas ele desenvolve uma crtica acerca de uma de suas fontes

    (Dem, 4.2):

    Porm, das coisas que o orador squines fala [] a respeito da me de

    Demstenes, de que ela teria nascido de um tal Giln, um homem que fugiu

    da cidade por causa de traio, e de uma mulher brbara, no somos capazes

    de dizer se ele fala de forma verdadeira ou se est difamando e mentindo [

    ].

    Com base nas palavras de squines, Plutarco demonstra incerteza quanto verdade

    desse relato, visto que ele poderia estar difamando ou mentindo (

    ). As palavras ditas por squines demonstram para o bigrafo certa

    incredibilidade, devido s desavenas que havia entre aquele e Demstenes. Dessa forma,

    devido a essa inimizade entre eles, Plutarco consegue se posicionar criticamente em relao ao

    relato de squines.

    Na Vida de Alexandre, aparece novamente mais uma demonstrao de que Plutarco

    fizera um trabalho de reflexo para a composio da biografia (Alex. 17.3):

    A rapidez de seu avano na Panflia deu motivo a que diversos historiadores

    [ [...] ] exagerassem os fatos e os convertessem em

    milagres, a fim de impressionar os espritos. Narram eles que o mar, por favor

    divino, se retraiu diante de Alexandre, embora seja geralmente muito

    tempestuoso nessa costa perpetuamente batida pelas ondas e raramente deixa

    a descoberto as pontas dos recifes que cercam a margem, ao p dos cumes

    escarpados das montanhas.

    19 Todas as tradues das Vida de Demstenes so de responsabilidade da autora (2016). A traduo para portugus teve como base o texto grego da edio inglesa de Bernadotte Perrin (1919).

  • 26

    Aps esse relato proveniente de historiadores ( ), Plutarco expe a

    outra verso do que aconteceu, dizendo que o prprio Alexandre escrevera em suas cartas o que

    realmente havia acontecido, e que este no mencionava nenhuma ocorrncia divina: Mas o

    prprio Alexandre, que no fala maravilhosamente em suas cartas sobre isso (

    ), diz que abriu caminho na

    conhecida Escada e que a atravessou aps ele ter sado de Faslis (Plut. Alex. 17.4). Essa

    passagem interessante, pois, alm de estar evidente o trabalho investigativo de Plutarco, ele

    consegue criticar o relato proveniente de historiadores, apresentando nada mais do que as cartas

    escritas pelo prprio Alexandre como prova, ou seja, o relato de Plutarco, obtido por vias no

    histricas, demonstra ser, para este, mais digno de confiana do que o de outros historiadores.

    Portanto, tendo em vista esses exemplos de biografias plutarquianas, constata-se,

    de fato, que os assuntos abordados so diferentes na historiografia e na biografia antigas, visto

    que seus autores tinham objetivos distintos ao elabor-las. Entretanto, apesar de grande parte

    dos estudos estar concentrada nessas diferenas, deve-se ter em mente que ambos os gneros

    compartilham da mesma metodologia de pesquisa, ou seja, tanto o historiador quanto o bigrafo

    selecionam, criticam, analisam e interpretam suas fontes acerca de determinado

    evento/indivduo.

    Dessa forma, aps verificar essas reflexes a respeito da historiografia e da

    biografia antigas, faz-se necessrio observar agora como as caractersticas desses gneros,

    principalmente da historiografia, permaneceram nos tempos modernos.

    1.1.2. A Metodologia de Pesquisa na Historiografia Moderna

    Na Antiguidade, os recursos utilizados pelos historiadores variaram. De acordo com

    Grant (2005), a metodologia adotada por eles poderia ser bastante criteriosa ou no em relao

    busca dos dados, podendo o historiador recorrer probabilidade. Quanto seleo dos fatos,

    esta no poderia ser completamente objetiva, ou seja, no processo de composio do texto

    histrico, poderia haver omisses, nfases, escolhas pessoais e/ou distores. Dessa forma, de

    acordo com o autor, no se pode ter uma verdade completa de qualquer historiador,

    principalmente do antigo.

    De um ponto de vista moderno, a metodologia e o propsito da histria no

    mudaram de forma significativa. Ricoeur (2007, p. 353) discute a respeito da filosofia literria

  • 27

    da histria, na qual se questiona a diferena entre a histria e a fico, uma vez que ambas so

    narrativas sobre algo. Segundo o autor, a resposta clssica que est definida na Potica

    aristotlica de que a histria narra o que aconteceu efetivamente no parece estar em

    conformidade com o que se encontra na forma narrativa. Surge, dessa maneira, uma aporia, que

    Ricoeur denomina "aporia da verdade em histria", e esta consiste no fato de que os

    historiadores constroem narrativas diferentes e opostas a partir dos mesmos acontecimentos, ou

    os omitem, destacando outros etc.20

    Para Veyne (2008), em relao Antiguidade, os assuntos tratados pela histria e

    pela biografia permanecem os mesmos. A histria, segundo o autor, uma narrativa de eventos

    vividos, e todo o resto resultar disso e no dos atores, ou seja, o material historiogrfico se

    encontra nos acontecimentos, e no nos indivduos. Dessa maneira, Veyne define que a

    experincia do historiador a descoberta de um limite, sendo este limite o evento em si, e,

    dentro dessa limitao, o historiador dever selecionar, simplificar, organizar, fazer com o que

    um sculo caiba numa pgina. Nesse caso, ento, o evento em si ser apreendido de uma

    maneira direta e completa, mas ser sempre incompleta e lateralmente por meio de documentos,

    pois a narrao histrica se situa alm dos documentos, j que estes no podem ser o prprio

    evento.

    O campo da histria, segundo Veyne (2008), indeterminado, mas h a necessidade

    de que tudo o que estiver sendo narrado nela tenha realmente acontecido. Para ele, no importa

    se o enredo seja denso ou pouco espesso, completo ou incompleto, ou seja, desde que tenha

    acontecido, considerado texto histrico. Tendo em vista isso, ele cita as seguintes

    consideraes de Lvi-Strauss21 acerca da historiografia (apud VEYNE, 2008, p. 25):

    A histria um conjunto descontnuo, formado por domnios, cada um deles

    definido por uma frequncia prpria. Existem pocas em que numerosos

    acontecimentos oferecem, aos olhos do historiador, os caracteres de eventos

    diferenciais; outras, ao contrrio, em que para ele, aconteceram poucas coisas

    e, por vezes no aconteceu nada (a no ser, certamente, para os homens que

    viveram esses tempos) [...].

    20 Segundo Ricouer (2007, p. 353), quando se trata de narrao, deve-se levar em considerao que se pode contar

    de outra maneira, haja vista o carter seletivo da composio e da intriga. Nesse processo, pode-se jogar com

    outros tipos de intriga e outras estratgias retricas, alm de escolher se se quer mostrar mais do que narrar. 21 LVI-STRAUSS. O Pensamento Selvagem, 1966.

  • 28

    Verifica-se, nessas palavras de Lvi-Strauss, que os eventos histricos podem ser

    numerosos ou no a depender do olhar do historiador, pois, dependendo da poca, ele pode

    identificar ter havido bastante material ou no para compor um texto historiogrfico. Contudo,

    independentemente da quantidade de material disponvel ao historiador, este estar submetido

    ao seu limite, ou seja, ele deve selecionar e organizar o seu texto, destacando alguns eventos,

    omitindo outros.

    Alm desses passos a serem seguidos, o historiador dever recorrer sua

    interpretao dos eventos. White (2001) esclarece que o historiador procura a explicao do

    que aconteceu no passado por meio de uma reconstruo precisa e minuciosa dos

    acontecimentos que foram registrados nos documentos. Alm disso, ele argumenta que os

    tericos da historiografia geralmente concordam a respeito de que todas as narrativas histricas

    contm um elemento de interpretao inerente a elas. Segundo o autor, h duas formas de

    interpretao: a primeira acontece devido grande quantidade de fatos que o historiador possa

    incluir na sua representao narrativa, e, consequentemente, ele deve interpretar os seus

    dados, excluindo outros que no sejam to relevantes ao seu propsito;22 a segunda ocorre

    quando h a falta de dados para a explicao de determinada ocorrncia, necessitando o

    historiador interpretar o seu material, preenchendo as lacunas de informaes a partir de

    inferncias e especulaes.

    Segundo Ricoeur (2007), a reflexo da histria a respeito do seu projeto de verdade

    est relacionada com a sua noo de interpretao.23 O conhecimento histrico implica uma

    correlao entre subjetividade e objetividade, na medida em que o historiador relaciona o

    passado e o presente. Em relao interveno da subjetividade do historiador, j vista com o

    estudo de Gribble (1998), ela no parasitria, mas constitui o conhecimento histrico. Alm

    disso, a implicao subjetiva da histria constitui a condio e o limite do conhecimento

    histrico (RICOEUR, 2007).

    Tendo em vista essas consideraes acerca do carter seletivo e interpretativo da

    histria, pode-se concluir que a historiografia moderna e a antiga no diferem uma da outra. Na

    Histria da Guerra do Peloponeso, por exemplo, podem ser observadas as seguintes

    consideraes a respeito da investigao de Tucdides (Thuc. 1. 22, 1-2):

    22 White (2001, p. 71) cita a obra de Lvi-Strauss, O Pensamento Selvagem (1966), no qual ele menciona que os

    relatos histricos so interpretativos, ou seja, os fatos histricos no so dados ao historiador, mas so constitudos

    por ele. Dessa forma, uma vez que os fatos histricos so constitudos, eles so tambm escolhidos como elementos

    de uma narrativa. Por fim, diante disso, o historiador dever escolher, destacar e recortar os fatos para fins

    narrativos. 23 Para o Ricouer (2007, p. 347-348), o conceito de interpretao da historiografia amplo, visto que ele considera

    fraca a discusso que comumente denominada subjetividade versus objetividade na histria.

  • 29

    E quantas coisas muitos disseram nos discursos ou quando estavam prestes a

    entrar na guerra ou quando nelas j estavam, foi difcil lembrar com rigor as

    palavras que proferiram, quer para mim, quanto eu prprio as ouvi, como para

    outros que de outras fontes a mim as transmitiam [

    ]: E conforme o que me pareceu [

    ] que cada um teria dito e era mais apropriado [ ] para a

    circunstncia presente, eu mantive-me o mais prximo possvel []

    daquilo que na realidade [] havia sido dito. [2] Quanto aos feitos que

    foram praticados na guerra, esforcei-me por escrever no sobre informaes

    de algum que porventura l estivesse [ ], nem como

    pessoalmente me parecia provvel [ ], mas recolhendo dentro do

    possvel com rigor [ ] todos os factos nos quais estive

    presente ou que por outros me foram contados.24

    Nessa passagem de Tucdides, encontramos as duas formas de interpretao na

    narrativa histrica citadas por White. A primeira, que concerne interpretao dos dados,

    encontra-se na narrativa dos feitos praticados em guerra, pois Tucdides seleciona, dentro do

    possvel e com rigor ( ), os fatos nos quais esteve presente ou os que foram

    obtidos por meio de testemunhas, excluindo os relatos de pessoas que provavelmente no

    tinham estado na guerra ( ) e ao que parecia ser a ele ( ).

    Fazendo uma analogia com Ricouer (2007), possvel identificar, na histria do que

    contemporneo, o surgimento da dificuldade entre a interpretao e a busca pela verdade.

    Ricouer argumenta que essa dificuldade no est relacionada interveno subjetiva, mas

    posio temporal entre o momento do acontecimento e o da narrativa. No caso de Tucdides,

    quando este escreve sua histria, relata que foi difcil lembrar-se com exatido dos discursos

    ( ). Para tanto, para reconstituir

    esses discursos, manteve-se o mais prximo possvel () do que lhe pareceu (

    ) ter sido dito.

    Convm mencionar que, nessa passagem de Tucdides, podemos verificar como

    procede a metodologia utilizada. O verbo , que significa parecer, aparece em duas

    circunstncias diferentes, sendo uma positiva e a outra negativa em relao metodologia. Na

    primeira ocorrncia, esse verbo um recurso utilizado pelo historiador de forma positiva, pois,

    ao reconstruir os discursos de seus personagens, Tucdides se apoia no que lhe pareceu ter sido

    dito realmente () e no mais apropriado ( ). Contudo, quanto aos feitos da guerra,

    o no parece ser um procedimento eficaz para a descrio dos fatos, ou seja, o historiador

    24 Todas citaes da Histria da Guerra do Peloponeso, utilizadas nesta pesquisa, foram traduzidas por M. R.

    Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr (2013).

  • 30

    prefere adotar os fatos aos quais esteve presente (a autpsia) ou os que lhe foram informados

    por testemunhas, evitando, assim, o provvel. interessante essa passagem com o verbo ,

    pois um dos verbos que constituem o processo de construo do texto de Tucdides, que ser

    tratado na seo 1.2.1 A Retrica na Historiografia, com mais profundidade.

    A historiografia antiga, como visto nesse exemplo de Tucdides, contm aspectos

    que tericos modernos discutem como algo corrente do gnero historiogrfico. A histria narra

    eventos que realmente aconteceram, entretanto, a partir de um evento, surgem diversos relatos,

    nos quais o historiador dever selecionar e organizar as informaes que tem sua disposio,

    de modo a apresentar o evento de acordo com seu ponto de vista, trabalhando com suas devidas

    limitaes. Para tanto, ele poder enfatizar alguns acontecimentos, omitindo outros, durante

    esse processo. Alm disso, outro procedimento adotado pelo historiador a sua interpretao,

    sendo esse o momento em que podemos verificar a sua subjetividade, seja para criticar o evento,

    seja para preencher as lacunas deixadas pelas fontes. No caso de Tucdides, os discursos

    proferidos pelos seus personagens so construdos com base nas interpretaes feitas pelo

    prprio historiador, visto que ele os transcreveu de acordo com o que ele mesmo presenciou ou

    com o que outros lhe haviam relatado. Por fim, convm ressaltar a dificuldade que o historiador

    teve ao criar esses discursos, e, no que se refere verdade histrica, ele prefere mencionar que

    esto fundamentados no que foi mais prximo da realidade e mais adequado situao.

    Portanto, aps verificar as caractersticas que norteiam tanto a historiografia e

    biografia antigas quanto a historiografia moderna, convm fazer, parte, algumas reflexes a

    respeito da retrica, visto que ela tambm um recurso utilizado na constituio de ambos os

    gneros.

    1.2 A RETRICA COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DA HISTRIA E DA

    BIOGRAFIA

    Ao observar que a historiografia e a biografia tm objetivos e temas diferentes, mas

    que h aspectos que podemos considerar como pontos comuns entre elas, como a metodologia

    de pesquisa e a escrita, ser apresentado, nesta seo, outro fator que aproxima um gnero do

    outro: o uso de recursos retricos.

    No que concerne investigao dos eventos, ressalta-se uma questo fundamental

    em relao historiografia antiga, a saber, a busca pela autoridade dos fatos. De acordo com

  • 31

    Grant (2005), era comum que os historiadores gregos e romanos criticassem seus predecessores

    por causa do mtodo investigativo adotado por eles, visto que cada um buscava inovar o estatuto

    de sua obra, a fim de lhe conferir uma maior autoridade (LIMA; CORDO, 2010). Quanto

    investigao dos eventos, Herdoto pedia que as pessoas lhe contassem os fatos, mas no

    acreditava em tudo; Tucdides, por sua vez, reconhecia a dificuldade em obter informaes orais

    corretamente; e Polbio, por fim, seguia a autpsia risca (GRANT, 2005). Entretanto,

    independentemente das crticas que houvesse entre os historiadores antigos em relao

    investigao adotada pelos seus antecessores, a obra de Tucdides no deixou de tornar-se

    modelo de escrita da histria para autores posteriores, como Luciano de Samsata e Dionsio

    de Halicarnasso.

    Quanto aos processos envolvidos na escrita de cada tipo de texto, a retrica pode

    estar presente tanto na historiografia quanto na biografia antigas, pois, em ambos os gneros,

    faz-se necessrio o uso desse recurso, seja para ornament-los ou para persuadir o seu

    leitor/ouvinte. Para tanto, convm apresentar como a retrica aparece nos textos

    historiogrficos e biogrficos, a fim de verificar semelhanas e/ou diferenas entre eles.

    1.2.1 A Retrica na Historiografia

    Na Retrica aristotlica, pode ser observada a relevncia da histria para a

    elaborao de um tipo de discurso, o deliberativo. Dentre os cinco assuntos importantes que

    podem ser abordados no discurso deliberativo,25 Aristteles menciona que era necessrio ao

    orador, ao deliberar a respeito da guerra e da paz, saber a respeito das guerras que seu Estado

    travara e com quais Estados seria provvel ocorrer uma guerra, de modo a manter a paz entre

    os mais fortes e saber o momento de atacar os mais fracos; alm disso, ele deveria saber se o

    poder blico do outro Estado era semelhante ao seu (Rh. 1359b36). Ao deliberar acerca da

    legislao, era importante ao orador o conhecimento da histria, pois lhe era til conhecer a

    histria passada do prprio Estado, a fim de discernir qual seria a forma de governo mais

    desejvel para este (Rh. 1360a31). Dessa forma, para deliberar tanto acerca da guerra e da paz

    quanto da legislao, pode-se deduzir que o conhecimento do orador a respeito das fontes

    historiogrficas poderia ajud-lo na composio de suas deliberaes.

    25 Segundo Aristteles, os assuntos abordados no discurso deliberativo so os seguintes: recursos, guerra e paz,

    defesa nacional, importaes e exportaes e legislao (Rh. 1359b18).

  • 32

    Mais tarde, Quintiliano (sc. I d.C), na sua obra Instituies Oratrias, apresenta,

    porm, as seguintes consideraes acerca da do gnero historiogrfico em textos retricos (Inst.

    X, 1.31-34):26

    [...] tambm a histria pode nutrir o orador com certo suco abundante e

    agradvel; contudo, tambm ela deve ser lida em si mesma, de modo que

    saibamos que a maior parte de suas qualidades devem ser evitadas pelo orador.

    Com efeito, ela est muito prxima dos poetas, uma espcie de poema em

    prosa, escreve-se para narrar, no para provar e a totalidade da obra

    composta no para a realizao de algo ou para um combate presente, mas

    para a memria da posteridade e a fama do talento. [...] lcito empregarmos

    algumas vezes, nas digresses, o brilho da histria, desde que, naquilo que se

    discutir, nos lembremos de que se trata no do peitoral do atleta, mas do brao

    do soldado. [...] H uma outra vantagem que se tira da histria [...]: o

    conhecimento dos fatos e dos exemplos, em que o orador deve ter sido

    principalmente instrudo [...]

    A partir dessas consideraes de Quintiliano, verifica-se que ele separa a eloquncia

    oratria e a histria. Segundo Hartog (2001, p. 182), Quintiliano pe a histria ao lado da poesia

    algo que Aristteles teria rejeitado , pois aquela no tinha como objetivo nenhuma ao, mas

    a posteridade e a glria. A histria, ento, no pretendia demonstrar e nem provar, mas somente

    contar.27 Contudo, como j visto, nas crnicas locais, h o predomnio de excessos de elogios

    e de acusaes (MOMIGLIANO, 1998), ao passo que, nos textos histricos, a retrica pode

    aparecer como elemento auxiliar no processo de construo de argumentos, a fim de convencer

    o ouvinte/leitor de que o que se est contando verdadeiro (GENTILI; CERRI, 1988).

    Convm tambm ressaltar que no foi somente na modernidade que houve estudos

    acerca de elementos retricos na constituio de textos historiogrficos, pois, na poca imperial

    de Roma, os estudos acerca da retrica ganharam bastante fora, e, devido a isso, a retrica

    compreendia toda a cultura romana e foi introduzida no trabalho dos historiadores (GRANT,

    2005). Dessa forma, sero apresentadas, a seguir, algumas consideraes de autores antigos

    acerca da retrica enquanto componente da escrita da histria.

    26 Quintiliano apud Hartog (2001). Traduo de Jacyntho Lins Brando (2001). 27 Ginzburg (2002), que ser visto na subseo 1.2.1.2 Algumas Reflexes acerca da Retrica na Historiografia

    de um ponto de Vista Moderno, descreve de maneira inversa essa concepo de histria para Quintiliano. Para

    Ginzburg, objetivo principal da histria persuadir, e no a verdade.

  • 33

    1.2.1.1 Algumas Consideraes acerca da Retrica na Historiografia Antiga

    Ccero, como mencionado anteriormente, apresenta a retrica como instrumento

    auxiliar para a reconstruo do texto historiogrfico. Alm disso, no dilogo Do Orador, o

    personagem Antnio relata que a razo para a historiografia no ser ainda to clebre na lngua

    latina era o fato de seus conterrneos se dedicarem eloquncia somente para se notabilizarem

    no frum, ao passo que os gregos, uma vez afastados das causas forenses, estavam aplicados

    no somente aos temas ilustres, mas tambm escrita da histria (De Orat. II. 55). Segundo

    Grant (2005), Ccero verificava uma conexo muito prxima entre a histria e a retrica e

    acreditava que a histria era um tipo de oratria e que, portanto, pertencia retrica. Dessa

    forma, a histria precisava de uma ornamentao que s a retrica poderia oferecer, ou seja, a

    historiografia, para relatar os feitos, deveria conter elementos retricos para orn-la.

    Antnio continua a discusso apresentando historiadores gregos que ornaram o

    gnero historiogrfico com elementos retricos. Para ele, Herdoto foi o primeiro historiador a

    ornar o gnero historiogrfico, pois ele no estava ocupado com as causas forenses. Em seguida,

    ele cita Tucdides como o modelo de superao da arte do discurso, pois ele era denso pela

    frequncia de temas e hbil e conciso com as palavras. Alm disso, embora Tucdides tenha se

    dedicado poltica, ele teria escrito a Histria da Guerra do Peloponeso enquanto estava

    afastado da poltica, em exlio (De Orat. 56-7). Alm desses historiadores, Antnio cita outros

    com o objetivo de mostrar que grande a tarefa da histria para o orador, devido riqueza e

    variedade de discursos presentes nela, pois ele no encontra esses discursos sendo ensinados

    nos preceitos dos rtores. A partir disso, conclui-se que haveria, no gnero historiogrfico,

    bastante material retrico que passava despercebido nos manuais.

    Quanto metodologia historiogrfica, Antnio declara ser uma tarefa complexa e

    que a construo da histria baseada em temas e palavras. Os temas se estruturam

    metodologicamente em ordem cronolgica, descrio das regies, planos (por se tratar de feitos

    grandiosos e memorveis), e aes. Em seguida, acerca desses planos, o escritor aponta os

    resultados, e, das aes, ele declara o que foi feito e o que foi dito. Quanto aos resultados, ele

    explica todas as causas, seja da queda, ou da sabedoria ou da temeridade, e os feitos dos homens.

    No mbito das palavras, por sua vez, necessrio buscar uma estrutura e um gnero de discurso

    amplo, cadenciado, com leveza e sem aspereza dos julgamentos. Assim, a partir desse exemplo

    em relao complexidade de escrita da historiografia, conclui Antnio que so muitos os

    elementos que no se encontram nos manuais retricos.

  • 34

    Desses elementos ausentes dos manuais retricos, Antnio apresenta alguns

    gneros discursivos que no esto descritos nesses manuais, tais como as exortaes, os

    preceitos, as consolaes e os conselhos. Para ele, todos esses gneros, embora no tenham

    espao nos manuais de retrica, deveriam receber um tratamento mais eloquente possvel (De

    Orat. 64). Na Histria da Guerra do Peloponeso, por exemplo, h transcries de exortaes,

    que so discursos que no esto contemplados nos manuais de retrica. Portanto, verifica-se,

    em Ccero, tambm quanto a esse aspecto, uma crtica em relao prtica de escrita da histria

    em Roma, visto que esse gnero est relacionado com a retrica, sendo esta adotada pelos

    romanos somente para fins jurdicos, podendo eles utilizarem-na em outros gneros textuais.

    Entretanto, a historiografia com elementos retricos no foi vista de forma to

    positiva por outros estudiosos. Luciano de Samsata (sc. I d.C.), na sua obra Como se Deve

    Escrever a Histria, observa que os historiadores de sua poca no estavam fazendo o uso da

    retrica de forma correta nos seus textos historiogrficos. Um dos erros que ele aponta nesses

    textos a presena de bastante elogio aos generais e comandantes dos seus, rebaixando os

    inimigos (Hist. Conscr. 7). Nesse caso, Luciano apresenta o encmio e a histria como gneros

    totalmente diferentes, pois o encomiasta utiliza a mentira para elogiar algum, enquanto que o

    historiador se vale da verdade. Porm, Luciano defende que, na histria, o historiador pode

    fazer elogios s vezes, desde que seja em um momento oportuno, pois eles devem ser regulados

    para fins da posteridade (Hist. Conscr. 9). Dessa maneira, verifica-se, em Luciano, uma viso

    que aponta para uma ruptura entre a historiografia e um gnero discursivo da retrica, o

    epidctico.

    Quando Luciano apresenta a metodologia da escrita da histria, porm, inevitvel

    no observarmos uma estreita ligao do que ele diz sobre a retrica, pois (Hist. Conscr. 48):

    Aps reunir os fatos, o historiador deve tec-los numa espcie de memorial,

    constituindo um s corpo ainda sem beleza nem articulaes; em seguida, aps

    orden-lo, deve-se dar-lhe beleza, colorindo as expresses, as figuras e o

    ritmo.28

    Dessa maneira, para Luciano, a tarefa do historiador ordenar os acontecimentos

    de forma bela, de modo a mostr-los de forma mais clara possvel (Hist. Conscr. 51). Portanto,

    interessante observar as vises de Ccero e de Luciano nesse sentido, pois ambos mostram

    que a retrica um elemento constitutivo para a construo do texto historiogrfico.

    28 Traduo de Jacyntho Lins Brando (2009).

  • 35

    O historiador, para Luciano, deveria ser incorruptvel, livre, amigo da franqueza e

    da verdade, algum que no omitia nada por dio ou por amizade, visto que os historiadores de

    sua poca elogiavam seus aliados, negligenciando os seus inimigos. Segundo o tratadista (Hist.

    Conscr. 42-43), Tucdides, enquanto historiador, apresentava muito bem essas caractersticas,

    pois ele soubera distinguir as virtudes e os vcios da historiografia, uma vez que o que ele

    escrevia era uma aquisio para a posteridade, no acolhendo o fabuloso. O bom historiador,

    dessa maneira, deveria ter a mentalidade de Tucdides, e, em relao linguagem e capacidade

    de expresso, no deveria escrever aumentando a violncia, com perodos encadeados,

    raciocnio retorcido e um arsenal retrico, de modo que a linguagem fosse coerente e densa, e

    a expresso clara e adequada vida pblica.

    Dionsio de Halicarnasso, em sua obra Das Antiguidades Romanas (1. 1.2-3),29

    preocupa-se principalmente com o benefcio e o prazer, alm do sentido do valor moral, que o

    assunto escolhido pelo historiador ir trazer aos seus leitores. Dessa forma, para ele, a boa prosa

    histrica, bem como a oratria, era um repositrio de frases nobres e de ideias que ajudariam

    oradores e escritores a se expressarem de maneira mais habilidosa (FOX, 2001). Ademais, Fox

    argumenta que a histria e a retrica, para Dionsio, tinham uma estreita relao no que se refere

    educao e moral, pois tanto os discursos histricos e quanto os oratrios compreendiam

    uma parte ativa da vida poltica, e, devido a isso, esses gneros tinham o potencial de influenciar

    os seus leitores/ouvintes. Desse modo, em Dionsio, a histria e a retrica estavam relacionadas

    com o processo educacional, alm de estarem presentes nas atividades polticas.

    Entretanto, h autores antigos que fazem a separao entre a histria e a retrica.

    Alm de Quintiliano, como j visto anteriormente, o historiador Polbio (sc. III-II a.C.), por

    meio do seu mtodo pragmtico, expe as seguintes consideraes sobre a sua obra Histria

    (Plb. 9.1):

    No ignoro que minha obra apresenta uma certa austeridade por causa da

    uniformidade de sua composio, e que ela agradar somente ao gosto de uma

    classe de leitores, cuja aprovao ela conquistar. Efetivamente, a quase

    totalidade dos autores, ou pelo menos a sua maioria, atrai muitos tipos de

    pessoas para a consultas das respectivas obras por versar todos os gneros de

    Histria. O gnero genealgico atrai os leitores superficiais; o gnero

    pertinente colonizao, fundao de cidades e aos laos de parentesco entre

    os seus habitantes [...] atrai os curiosos e os apreciadores de fatos singulares,

    enquanto o estudioso de poltica se interessa pelos feitos dos povos, das

    cidades e dos estadistas. Quanto a mim, concentrei minha ateno

    exclusivamente nestes ltimos assuntos, e como toda a minha obra no trata

    29 Dionsio de Halicarnasso apud Fox (2001).

  • 36

    de qualquer outra coisa [...], ela agradar somente a uma espcie de leitores, e

    para o grande pblico posso oferecer um texto sem atrativos.30

    Nessa passagem de Polbio, ele apresenta a sua composio como algo uniforme e

    que agradar somente uma porcentagem de leitores. Alm disso, evidente a sua crtica em

    relao s crnicas locais, visto que os assuntos tratados nesses textos atraem leitores

    especficos. A sua Histria, no entanto, aborda somente os feitos dos povos, das cidades e dos

    estadistas, agradando um tipo de pblico. Por fim, de acordo com sua forma de escrita, Polbio

    j antecipa que seu texto ser sem atrativos para a maioria dos leitores, ou seja, um texto sem

    ornamentos, sem retrica, voltado a um tipo de pblico.

    Portanto, a partir dessas consideraes, verifica-se que, na Antiguidade, h autores

    que apresentam a historiografia como um gnero que se constitui de recursos retricos.

    Entretanto, h outros que separam esses gneros, excluindo a retrica do processo de construo

    do texto histrico. Tendo em vista isso, ser verificado como a retrica vista em textos

    historiogrficos para autores da Modernidade.

    1.2.1.2 Algumas Reflexes acerca da Retrica na Historiografia de um Ponto de Vista

    Moderno

    A historiografia, segundo Ginzburg (2002), assim como a retrica, visa unicamente

    a persuaso, sendo sua finalidade a eficcia, e no a verdade. Pelling (2012) defende a mesma

    ideia. Para ele, os historiadores, assim como os oradores, escreviam para persuadir, e seria

    estranho se o estudo da retrica, mesmo de um modo geral, no conseguisse esclarecer

    Herdoto e Tucdides. Para Ginzburg (2002), Aristteles, diferentemente dos sofistas,31

    identificou na retrica um ncleo racional, que so as provas, e, dessa maneira, o nexo entre a

    historiografia e a retrica deve ser procurado nessas provas. Para tanto, para entender a respeito

    dessas provas retricas, convm resgatarmos a Retrica aristotlica a fim de elucidar o que o

    autor fala acerca da persuaso da historiografia.

    30 Traduo de Mrio da Gama Kury (1996). 31 Segundo Aristteles, os sofistas teriam entendido a retrica como uma arte de persuaso por meio de ao dos

    afetos (1354a14). Grgias (sc. V a.C.) tambm um autor que critica a arte oratria. A retrica, para Grgias, em

    seu tratado Elogio de Helena (14), descrita como uma arte que influencia na disposio da alma dos ouvintes.

    Grgias compara o poder do discurso retrico com os efeitos colaterais do remdio, pois ambos exercem a mesma

    fora no indivduo: enquanto os remdios retiram os humores do corpo, os discursos podem atormentar, agradar,

    levar confiana aos seus ouvintes, ou, no caso de uma m persuaso, podem drogar e enfeitiar a alma da audincia.

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    Segundo Aristteles (Rh. 1355b35), os meios de persuaso podem depender de arte

    ou no. Os que no dependem de arte so aqueles que no foram fornecidos por ns mesmos,

    como, por exemplo, as testemunhas, as confisses mediante tortura e acordos; e os que

    dependem de arte, por sua vez, so aqueles que podemos construir e suprir por meio da

    utilizao da retrica.32 Dentre esses meios de persuaso, podemos considerar a prova como

    um meio persuasivo que depende da arte, e, para alcanar a persuaso dessa forma, empregam-

    se os exemplos e entimemas.

    Os discursos baseados em exemplos so to persuasivos quanto os outros, mas, de

    acordo com Aristteles (Rh. 1356b23), os que so baseados em entimemas so os que causam

    mais impresso. O entimema, nesse caso, constitudo por poucas proposies, em quantidade

    menor em relao s que constituem o silogismo completo, de modo a no haver necessidade

    de enunci-la, pois o ouvinte saber qual a proposio que est implcita.33 Quanto s

    premissas dos entimemas, algumas sero necessrias, mas a maioria delas ter carter

    contingente, uma vez que os entimemas so inferidos das probabilidades e de signos que

    apresentam esse carter. O (evidncia), por exemplo, um signo de carter

    necessrio, usado em enunciaes que no so refutveis.34 Segundo o filsofo (Rh. 1402b13),

    os entimemas so extrados de quatro lugares-comuns, a saber, a probabilidade (), o

    exemplo (), a evidncia () e o signo (). Os entimemas baseados

    em probabilidades so aqueles que so produzidos a partir do que j existe ou parece usualmente

    existir; os exemplos so produzidos com base na induo pelo semelhante, pelo nico ou pelo

    mltiplo quando se conclui dedutivamente um particular a partir de uma premissa universal; os

    entimemas baseados em evidncias so aqueles em que a argumentao feita a partir do real

    e do necessrio; e os que so baseados em signos, por fim, so feitos a partir de uma proposio

    universal ou particular, existente ou no.

    Tendo em vista essas breves consideraes sobre o entimema em Aristteles,

    Ginzburg (2002) cita o estudo de Croix (1975), no qual ele busca traos da leitura de Tucdides

    nas obras de Aristteles, de modo a reforar a ideia de que a relao entre a historiografia e a

    retrica se d por meio das provas/demonstraes. Croix35 (apud GINZBURG, 2002), em sua

    32 thos, lgos e pthos. 33 Como exemplo de entimema, Aristteles relata que, para mostrar que Dorieu foi o vencedor de uma competio

    cujo prmio foi uma coroa, basta dizer que ele foi vencedor em Olmpia. Quanto a acrescentar que todo vencedor

    em Olmpia recebe uma coroa, isso tambm uma informao intil, visto que todos esto cientes disso (Rh.

    1357a15). 34 De acordo com Aristteles, o tem o carter de irrefutvel. Como exemplos de , o filsofo

    cita que o sinal que algum est doente a febre e que a mulher acabou de dar luz porque tem leite (Rh. 1357b15). 35 CROIX,