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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA MONOGRAFIA FILOSÓFICA Vander Soares da Silva O PROBLEMA DO OBJETIVISMO DA CIÊNCIA MODERNA E A FENOMENOLOGIA DO MUNDO DA VIDA NA PERSPECTICVA HUSSERLIANA Brasília 2015

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

MONOGRAFIA FILOSÓFICA

Vander Soares da Silva

O PROBLEMA DO OBJETIVISMO DA CIÊNCIA MODERNA E A

FENOMENOLOGIA DO MUNDO DA VIDA NA PERSPECTICVA HUSSERLIANA

Brasília

2015

Vander Soares da Silva

O PROBLEMA DO OBJETIVISMO DA CIÊNCIA MODERNA E A

FENOMENOLOGIA DO MUNDO DA VIDA NA PERSPECTICVA HUSSERLIANA

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Universidade de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de licenciatura em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes.

Brasília

2015

Vander Soares da Silva

O PROBLEMA DO OBJETIVISMO DA CIÊNCIA MODERNA E A

FENOMENOLOGIA DO MUNDO DA VIDA NA PERSPECTICVA HUSSERLIANA

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Universidade de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de licenciatura em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes.

Aprovada em ___/___/_____

Banca Examinadora

Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes (Orientador)

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Hahn

____________________________________________________________________

AGRADECIMENTOS

Primeiramente à mente filosófica que nos presenteou com o conceito de uma

atitude teleológica do mundo da vida, que como perspectiva filosófica não nos deixa à

mercê de uma total ignorância.

Ao meu pai terreno, em memória, pela educação e postura ética incansável.

À minha mãe terrena, que com muita sabedoria e perseverança me mostrou o

caminho e o valor da justiça incondicional, do apreço à virtude e do silêncio diante amor

universal.

Aos irmãos e irmãs pelo apoio e pela fé ilimitada que depositaram neste

sempre insistente e curioso buscador.

Aos amigos e professores, colaboradores incansáveis e resolutos com a

jornada acadêmica.

Ao grande amigo, irmão, pai, professor e mestre Jayme do Nascimento

Teixeira, pelos momentos de intensa discussão em torno das grandes verdades, das

grandes farsas e das possibilidades infinitas do poder criativo da humanidade.

Ao dedicado e competente Professor Marcos Aurélio Fernandes pela absoluta

dedicação e paciência na orientação e revisão deste texto, bem como pelas sinceras

e sempre ricas considerações.

À minha esposa amada, Mírian Braga e filha querida, Mainhdra Leony,

instâncias de reflexões infinitas e inspiração para uma busca assertiva e altruísta, de

melhores possibilidades para o serviço em prol do espírito, da família e da humanidade.

RESUMO

Ao perguntarmos sobre o objetivismo das ciências modernas como elemento

desencadeador e como origem da crise da humanidade europeia, também estamos

nos referindo a uma crise filosófica que Edmund Husserl passa anos de sua vida

tentando dar uma resposta. Primeiramente surge o embrião de uma filosofia radical

quando resolve, seguindo os passos trilhados por Descartes, instituir uma atitude

filosófica que tenha como suporte para a verdade universal o que Husserl chama

evidências apodíticas. Posteriormente avança criticamente contra objetivismo

naturalista estabelecendo uma teoria do conhecimento baseada na consciência

transcendental capaz de efetuar sua epoché fenomenológica como caminho seguro

para o subjetivismo transcendental. Este último finalmente, será uma resposta à crise,

na medida em que poderá restaurar o espirito europeu e da humanidade ao mesmo

tempo que redireciona o pensamento filosófico da modernidade europeia à ideia-fim

de uma filosofia teleológica do mundo da vida.

Palavras-chave: Filosofia; Fenomenologia; Objetivismo naturalista; Subjetivismo

transcendental; Mundo da vida; Teleologia.

ABSTRACT

When we ask about the objectivism of modern science as a trigger element and origin

of the crisis of European humanity, we are also referring to a philosophical crisis which

Edmund Husserl spend years of your life trying to give an answer. First the embryo of

a radical philosophy emerges when solved by following the steps trodden by

Descartes, to establish a philosophical attitude that has as support for the universal

truth what Husserl called apodictic evidence. Later critically advances against

naturalistic objectivism establishing a theory of knowledge based on transcendental

consciousness able to make its phenomenological epoché as a sure path to

transcendental subjectivism. The latter will ultimately be a response to the crisis, in that

it can restore the European spirit and humanity while redirects philosophical thought to

the idea of European modernity-end of a teleological philosophy of life world.

Keywords: Philosophy; phenomenology; Objectivism naturalist; Transcendental

subjectivism; World of life; Teleology.

.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8

CAPÍTULO 1 - A CRISE DA MODERNIDADE EUROPEIA ........................................... 10

1.1. Objetivismo naturalista e subjetivismo transcendental ......................................... 10

1.2. Filosofia Científica e Filosofia Ideológica ................................................................ 16

CAPÍTULO 2 - TEORIA DO CONHECIMENTO EM HUSSERL .................................... 20

2.1. Evidências Apodíticas ................................................................................................ 20

2.2 . O ego transcendental como suporte para uma filosofia radical ......................... 25

CAPÍTULO 3 - A ATITUDE TRANSCEDENTAL FENOMENOLÓGICA ...................... 34

3.1. Superando objetivismo naturalista ........................................................................... 34

3.2 . O espírito originário europeu .................................................................................... 42

3.3 . O Mundo da vida teleológico .................................................................................... 50

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 59

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 62

"Pelo fato de conceber ideias, o homem

se torna um homem novo, que, vivendo na finitude,

se orienta para o polo do infinito."

Edmund Husserl

8

INTRODUÇÃO

Buscando percorrer a trajetória da filosofia Husserliana em direção a uma

fenomenologia radical nos orientamos na presente pesquisa no sentido de responder

em que sentido E. Husserl aborda e resolve o problema do objetivismo da ciência

moderna e a fenomenologia do mundo da vida na perspectiva de uma filosofia

Transcendental.

Além de identificar o elemento fundamental da crise, como sendo o

pensamento objetivista das ciências de seu tempo, H. Husserl também o divulga junto

à comunidade filosófica como demonstração de sua incansável necessidade de dar

uma resposta ao objetivismo por via da filosofia.

Ao contextualizar a crise da humanidade europeia e entendê-la como uma

grave consequência do objetivismo da ciência moderna, procuramos nos aproximar

do pensamento deste autor, - através de reflexões em torno da dupla oposição

representada de um lado pelo objetivismo naturalista e de outro pelo subjetivismo

transcendental - e por via de um método fenomenológico, podermos responder em

que sentido tal método pode restaurar um modelo de filosofia transcendental como

resposta à crise de fundamentos da ciências modernas.

Portanto, ao abordamos a Crise da Humanidade Europeia, tivemos a

oportunidade de pensar no problema que Husserl originariamente pensou. A grande

relevância deste esforço reflexivo, leva de certa forma a uma compressão da teoria do

conhecimento desenvolvida por Husserl, e como este estabeleceu a ideia-fim de uma

ciência universal, que diante do objetivismo, precisaria agora ser recuperada com o

retorno ao mundo da vida.

No segundo capítulo procuramos estabelecer os parâmetros da teoria do

conhecimento por trás do método fenomenológico, esboçando os fundamentos da

fenomenologia como ciência radical e como ciência que se propõe restaurar o espirito

europeu originário através do subjetivismo transcendental do mundo da vida.

E por último, no terceiro capitulo, ao tratarmos do problema do objetivismo

naturalista e sua oposição, ou seja, o subjetivismo transcendental, estamos antes de

tudo investigando os elementos históricos originários, que desde a Grécia antiga

constituíram o espirito europeu, e de certa forma o espirito humano, suas

particularidades e suas mais intimas relações com o fazer humano cotidiano.

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Ao apontarmos o pensamento de Husserl acerca Crise das ciências

modernas, e sua proposta de enfrentar tal crise por via de uma atitude baseada no

mundo da vida e em um subjetivismo transcendental, abordamos finalmente o projeto

teleológico de Husserl, que instituído no mundo da vida dará um novo sentido para a

vida e o fazer humano do espirito europeu da modernidade.

10

CAPÍTULO 1 - A CRISE DA MODERNIDADE EUROPEIA

1.1 Objetivismo naturalista e subjetivismo transcendental

Ao traçar em linhas gerais o processo histórico que definiu as

características da razão, desde a gênese da cultura ocidental até a modernidade,

Husserl mostra que por meio de ideais infinitos se consolida o escopo de uma filosofia

como instrumento de investigação e reflexão infinitas. Aqui a peculiaridade da filosofia

pura, ante as outras ciências, ganha uma conotação absolutamente radical, no

sentido principalmente de ser ela, a filosofia, responsável por pensamentos livres,

infinitos e universais.

Após seguir o itinerário cartesiano, como pressuposição para uma filosofia

com tais características, Husserl analisa o progresso das ciências positivas como um

grande avanço do ponto de vista da aquisição e melhoramento de técnicas

instrumentalistas, bem como surgimento de inovações no campo científico. Para ele

tais benefícios representam, não obstante, um tipo de progresso que necessita

encontrar sustentação no que diz respeito aos seus fundamentos. Apesar do esforço

cartesiano em constituir um modelo que atendesse a tal demanda, e que desse

fundamentação à esta ciência positiva, a verdade é que para Edmund Husserl, tal

modelo ainda era sustentado por dogmas, já que não consegue dar suporte aos seus

fundamentos por via de uma ciência rigorosa. O que estava antevendo, desta forma,

era o embrião de uma proposta de mudança radical na filosofia, em que o objetivismo

naturalista seria então substituído pelo subjetivismo transcendental.

Ao descrever os passos que levaram a modernidade ao que Husserl

chama de desintegração da filosofia, e que de certa forma representa a crise da

modernidade, começa quando a fé religiosa perde espaço ao novo advento de uma

ciência positiva. Ao cair em descrédito, determinados valores e princípios, muitas

vezes norteadores da conduta e da moral humana, cedem para uma nova abordagem

do mundo. Entra em cena a ciência positiva como nova proposta de mundo e de

direcionamento para as mentes pensantes da época.

Em sua análise, tal nova perspectiva, entendida como ciência autônoma,

não conseguiu alcançar a grande meta, que era de não apenas abrir caminho para o

aperfeiçoamento do intelecto, mas além disso de desbravar os caminhos do

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desconhecido que se descortinavam frente às primeiras descobertas científicas

fortemente tuteladas por essa nova ciência. Tal conjuntura levou a filosofia a ocupar

um lugar secundário na busca pelo desconhecido. Deixou de figurar como a

responsável pelo grande desafio que se colocava. Assim, diferentemente do que era

esperado, a filosofia não ocupa o lugar preponderante de tutora do conhecimento.

Havia uma urgente necessidade de reforma em todos os campos do conhecimento,

e entre elas a mais fundamental e radical deveria então ocorrer na própria filosofia.

Quando Husserl assenta tal proposta na conceituação de uma filosofia

radical. Neste caso entende o termo “radical” a partir de sua etimologia, ou seja,

referindo-se à “radix”, no sentido de “ir à raiz” e argumenta que o único meio de

agregar radicalidade ao conhecimento, seria então, no sentido de ir aos fundamentos

e se debruçar sobre as fontes primeiras de todas coisas, de forma radical e rigorosa.

É neste ponto portanto, que a filosofia Husserliana ganha conexões significativas com

a filosofia cartesiana, já que este rigor necessário e indispensável ao conhecimento

seria o retorno ao “ego cogito”, e se transforma em uma investida definitiva para uma

filosofia transcendental.

A base de sustentação para uma filosofia transcendental, é aquela que

seria capaz de conduzir o investigador filósofo pelo caminho do ego transcendental.

Assim dois conceitos são cruciais para o entendimento desta proposta. Uma é a

subversão cartesiana, que consiste em uma atitude radical no sentido de suspender

quaisquer convicções que tenhamos construído ou que tenhamos adquiridos por

quaisquer mecanismos de apreensão ou aquisição de conhecimento. A outra é a

ideia-fim diretora, e se trata de uma perspectiva de Ciência Universal. Assim, a

filosofia transcendental, é a proposta ou a ciência que visa realizar esta ideia. E neste

caso este modelo de ciência, não deve se basear por sua vez, em qualquer tipo de

estrutura cientifica pré-determinada, pois segundo Husserl, talvez este tenha sido o

grande erro de Descartes, que pressupôs o advento desta nova ciência, a Ciência

Universal, em modelos estruturados de geometria, matemática e ciências da natureza,

configurando assim, um sistema axiomático-dedutivo.

A correção de Husserl neste sentido, é não admitir a permanência de uma

estrutura de ciência, ou de um modelo de ciência que tenha como referência a auto

certeza do ego, oferecidos pela cadeia axiomática que opera com conceitos que vão

desde a existência de Deus até a dualidade das substâncias.

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Apesar de manter a proposta de ideia-fim de uma Ciência Universal, E.

Husserl, não aceita o sistema axiomático, utilizando o argumento de que nenhuma

ciência, seja ela matemática, lógica ou da natureza, tem condições de servir de base

para sustentar uma ciência universal. Todas, invariavelmente, deveriam ser

submetidas à crítica de uma ciência fenomenológica.

Portanto, ao mesmo tempo em que aposta na filosofia apegada aos

princípios gestores da razão de uma herança clássica, e definida para uma função

diretriz, Edmundo Husserl nos apresenta o outro lado de um desenvolvimento

também peculiar da razão ocidental, articulada principalmente em torno da ciência e

do racionalismo. Para ele, a ascensão da cultura ocidental, localizada principalmente

no seio da Europa moderna é marcada por uma forte onda de falsos julgamentos e

pré-julgamentos que culminaram em mal-entendidos responsáveis pelo que o autor

chama de “Crise da humanidade europeia”.

A ideia central desta tese se baseia principalmente naquilo que o

racionalismo se tornou em termos prejudiciais e maléficos para toda a cultura

europeia, ao se distanciar do conceito originário de razão herdado pelo ideal da

filosofia grega. Ao analisar os aspectos embrionários da crise, Husserl nos faz refletir

sobre a razão e sobre os diferentes níveis de compreensão desta racionalidade.

Defende sobremaneira a importância cultural da razão axiológica, dos nossos

ancestrais, e que de certa forma se perdeu com o advento de uma razão cotidiana

profundamente reconfigurada pelas ciências positivas. Mas ao diferir razão objetivista

de uma razão teórica universal deixa claro, que para alcançar uma Razão superior

alocada para reflexões infinitas é também necessário o desenvolvimento de uma

filosofia universal voltada para a plena concepção e realização do espírito, como

coloca Husserl:

A filosofia universal, com todas as ciências particulares, constitui, por certo,

um aspecto parcial da cultura europeia. Mas toda a minha interpretação

implica que esta parte exerce, por assim dizer o papel de cérebro, de cujo

funcionamento normal depende a verdadeira saúde espiritual da Europa. O

humano da humanidade superior ou a razão, exige pois, uma filosofia

autêntica (Husserl, 1935, p. 77).

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É portanto, por conta da necessidade de uma reestruturação da filosofia,

que Husserl traz à tona, a discussão em torno do sentido de razão. O que seria então

esta razão capaz de colocar-se a si mesma na mesma medida em que coloca o ser

e a verdade? Husserl vai nos responder, apontando a razão como algo totalmente

diferente daquilo que é contingente e factual, ou seja, é uma forma estrutural que

abarca o caráter máximo da universalidade e essencialidade da própria subjetividade

transcendental.

A subjetividade transcendental, tem sustentação no processo de redução

fenomenológica, que ao encontrar o eu fundamental puro, encontra o próprio caminho

para a subjetividade. Husserl defende que este eu fundamental, não se trata da

consciência, nem sua matéria e nem sua forma, mas antes de tudo uma integração

de ambas na apropriação dos vividos. Assim o eu transcendental, não se refere a

fatos na perspectiva empírica, vai além disso, e se refere “ao fato do mundo”.

É nesta perspectiva que o autor nos apresenta a crise, ou seja, como uma

doença da modernidade caracterizada pelo objetivismo. Um total afastamento de uma

filosofia autêntica. Se por um lado, a humanidade de caráter intelectual superior exige

uma filosofia autêntica e por outro, esta filosofia autêntica se resume a uma visão

parcial, limitada e desconexa de horizontes infinitos, fica claro então perceber que a

razão constituída em superstições e contradições, tipicamente factuais, levaram a

humanidade para um caminho em que os valores e conceitos da modernidade depois

do Renascimento, se mostraram ingênuos. O principal argumento do autor, para tal

proposição, se baseia, primeiro na construção equivocada de princípios matemáticos

e lógicos a partir de leis psicológicas. A isso o autor chamou de psicologismo e cuja

elaboração conceitual, o autor critica abertamente. Depois, ao considerar nociva a

interpretação puramente psicológica, Husserl tenta fundamentar a lógica e a

matemática em evidências consistentes, como forma, de ao mesmo tempo que se

distanciar do objetivismo naturalista, também se afastar da posição ingênua a que se

colocou o espirito humano da modernidade.

A esta ingenuidade diante da crise, foi que se estabeleceu o objetivismo

naturalista. E antes que possamos nos aprofundar na teoria fenomenológica, como

filosofia universal, é necessário compreender em que consiste a discussão e temática

que envolve esse objetivismo naturalista, primeiro, com a relação sujeito-objeto alvo

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da problemática realismo e idealismo, e depois com a Crise da modernidade europeia

apresentada pelo autor.

Tal problemática, se apresenta fundamentalmente a partir de uma

oportuna diferenciação que o autor nos traz sobre a “representação que fazemos das

coisas” e “as coisas mesmas”. Como elementos próprios do processo de apreensão,

o fenômeno e a coisa mesma, (sujeito-objeto) sempre foram alvos prioritários tanto

do pensamento filosófico clássico, quanto das teorias do conhecimento apresentadas

nas propostas contemporâneas.

Dentro desta temática entre realismo e idealismo, temos afirmações que,

se por um lado o realismo coloca que a exclusão do sujeito e da consciência geram

o surgimento da coisa em si ou da realidade como ela é, por outro, o idealismo, ao

contrário afirma que se eliminarmos as coisas ou o nôumeno, resta a consciência ou

o sujeito que, através das operações do conhecimento, põe a realidade, o objeto.

Mesmo com a diminuição da distância entre o a priori e o a posteriori, por meio do

sintético a priori kantiano, a questão não se resolve para Husserl. No processo de

apreensão, o objeto, é mascarado pela perspectiva puramente psicológica em que é

visto, ou como um elemento resultante das experiências, rótulos e estruturas lógicas

de quem apreende, ou seja, por parte do sujeito que conhece. Nesta relação, o sujeito

se sobrepõe ao objeto, e agrega todas as experiências de fatos na definição do objeto,

em um processo de sobreposição naturalista. Isso acontece, exatamente porque ao

construir hipóteses sobre a existência do objeto, o sujeito já possui um leque variado

de categorias e propriedades adquiridas por via de uma “orientação natural” em

contraposição ao que Husserl chama, por sua vez, de “Doação originária”.

Husserl quer resolver a questão do objetivismo naturalista, em que a lógica

e matemática são estabelecidas com bases frágeis, e para isso propõe, primeiro, por

meio da evidência consolidar estas ciências, e depois, superar este objetivismo

naturalista como característica marcante da crise. Objetivismo naturalista então, é

exatamente este conjunto de experiências e rótulos conceituais estabelecidos por

uma ciência positiva em ascensão. É o que o autor chama de carga naturalista

oriunda de uma experiência de fatos e de interações sensoriais com o mundo externo,

totalmente desvinculados de uma visão de essência, ou de uma visão de ideias

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infinitas e universais do mundo e sobre o mundo e que inexoravelmente leva a uma

plena naturalização do espirito.

Neste sentido, naturalização do espirito significa antes de tudo uma

configuração de todo o conhecimento alinhado com as elaborações sobre a natureza

e sobre toda a construção conceitual do mundo na perspectiva de uma ciência

objetiva. Trata-se de uma concepção psicofísica do mundo, onde todo o

conhecimento é agora encapsulado pelo conhecimento matemático e natural do

mundo. A força da racionalidade lógico matemática se expande de tal maneira que

tudo quanto for possível conhecer, deve, não obstante, se adequar à razão do

objetivismo naturalista. Tal generalização, agora alcança o espírito, que ao contrário

de ir em direção a uma filosofia universal, fica submetido ao discurso das ciências

naturais, da química e da física.

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1.2 Filosofia Científica e Filosofia Ideológica

A crise de uma certa forma é uma manifestação do fracasso do

racionalismo objetivo. Porém, o motivo do fracasso desta cultura racional não está na

essência do racionalismo em si, mas em seu processo de desintegração em direção

a uma alienação cada vez mais aparente. Trata-se aqui, de uma “absolutização” do

mundo proposto nas ciências naturais e humanas, através de um continuo processo

de absorção destas, pelo naturalismo e pelo objetivismo.

Tanto o positivismo quanto o iluminismo, buscam encontrar leis gerais que

expliquem o comportamento e desenvolvimento da sociedade. Já o historicismo, ao

abrir mão desta prerrogativa, procura antes de tudo se concentrar no particular, ou

seja, naquilo que torna a sociedade única em sua singularidade e que faz com que

cada etapa histórica tenha como base um conjunto específico de processos

históricos. A tríade do pensamento historicista se baseia, primeiro, na relatividade do

objeto histórico; segundo, na especificidade metodológica do historiador e por último

na subjetividade do historiador. Tal subjetividade, baseia-se além do que é factual,

também no movimento da vida mental psíquica e empírica. É nestes termos que o

historicismo se assenta em um contínuo processo de relativização que leva a um

perigoso cepticismo historicista. O Naturalismo e o historicismo apesar da diferença,

defendem uma ideologia que interpreta ideias como fatos, transformando toda a vida

em um conglomerado de fatos sem ideais correspondentes.

Segundo Dilthey, essa crescente expansão de um subjetivismo cético

acarreta serias implicações para os sistemas filosóficos, já que a problemática

envolvendo a consciência histórica e as grandes dúvidas da filosofia vai mais além.

Isto quer dizer, que as riquezas da consciência histórica são mais amplas e ricas do

que as conclusões céticas. É a mudança constante de opiniões científicas e a

relatividade histórica da vida que faz com que o historicismo culmine no subjetivismo

cético, onde todas as concepções de Verdade, Teoria, Ciência perdem

definitivamente seu valor absoluto.

Aqui, o valor latente e o valor objetivo de Ciência como realização cultural

e como Ciência valorativa distinguem exatamente a discussão em que se coloca o

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historicismo e o subjetivismo cético. O que Husserl claramente apresenta portanto,

para resolver tal questão, é, ao contrário de aceitar que a história e os fatos históricos

possam fundamentar ou refutar ideias com fatos, propõe que tal iniciativa cabe única

e exclusivamente a uma filosofia sistemática como ciência de Rigor.

Para E. Husserl, não se trata simplesmente de negar o valor histórico como

elemento crucial para os sistemas filosóficos. Defende apenas que o Historicismo não

pode fazer esta contribuição à sua maneira, ou seja, perdendo-se no processo

contínuo da evolução histórica onde residem a gênese das grandes filosofias. O que

ele chama de filosofia histórica, de certa forma contribui com a filosofia, na medida

em que comportam uma vida filosófica rica de motivações vivas de maior importância,

conforme Husserl assinala:

Não é das filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas, sim, das coisas e dos problemas (Husserl, 1911, p. 72).

A crise a que se refere o autor, na modernidade europeia se consolida com

a sobreposição dos modelos objetivos do conhecimento, sobre todas as ciências,

inclusive as ciências humanas, por meio do naturalismo e do materialismo

principalmente.

A ingenuidade da ciência objetiva, e das concepções acerca do mundo se

consolidam a partir de uma aceitação da realidade como sendo tudo aquilo que pode

ser descrito em termos de objetividade. Para Husserl, é ingênuo considerar o mundo

objetivo como sendo a manifestação total do universo; considerar apenas uma parte

significativa de toda a existência, como sendo o todo absoluto. Quando no advento

do racionalismo positivista, se consolida uma proposta de visão do mundo que

enxerga a subjetividade apenas na perspectiva do psicologismo e do empirismo

factual, tem-se um afastamento da subjetividade universal.

Ao direcionar sua crítica para a perspectiva objetivista, o autor deixa claro

que não se trata simplesmente de travar uma guerra contra as ciências matemáticas

e da natureza, até admite sua utilidade e importância na construção do conhecimento,

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que segundo ele deve pautar-se como apenas uma das esferas do conhecimento e

não como um conjunto de regras absolutas sobre a realidade. As ciências

matemáticas esbarram no relativismo, já que ainda não alcançaram uma

racionalidade efetiva, ou seja, não foram estabelecidas a partir de uma base rigorosa.

Ainda não foram definidas a partir de uma filosofia transcendental. A grande verdade

é que o desenvolvimento das ciências exatas tem representado, mais do que em

qualquer outra época, uma crescente dominação técnica da natureza. Os moldes

dessa influência e desta dominação são muito bem conhecidos. Por outro lado a

ordem do espírito tem como base fundamental a physis humana onde toda a

individualidade se relaciona diretamente com o corpo individual que por sua vez forma

a sociedade. Não se estabelece neste sentido uma participação significativa das

ciências do espirito no sentido tal como ocorre com as ciências da natureza. O

problema da crise e da enfermidade europeia é um reflexo desta tentativa positivista

de agregar objetividade e positividade às ciências do espirito, e de alguma forma

considerá-la da mesma forma que a ciência da natureza um mundo fechado por si e

em si. É neste ponto que surge a filosofia ideológica.

A grande verdade, é que ao distinguir filosofia ideológica e filosofia

científica, E. Husserl, abre caminho para uma ciência autêntica. Ao estabelecer a

crítica científica como requisito para superação de absurdidades relacionadas à

concepção ideológica do mundo, defende uma filosofia cientifica em oposição às

ideologias. O que se espera, é que a filosofia ideológica renuncie à pretensão de ser

uma ciência rigorosa, já que tal pretensão, além de confundir os espíritos, impedem

o pleno desenvolvimento de uma autêntica filosofia científica.

Nesta perspectiva, as ideologias até podem elaborar elementos de disputa,

porém, somente esta filosofia cientifica pode fundamentar decisões eternas. Assim, a

fundamentação que se espera a partir de uma proposta fenomenológica, é antes de

tudo, a de fundamentar uma ciência rigorosa do espirito, que não concorra com a

ciência da natureza, mas que possa superá-la efetivamente.

Estando já no plano desta experiência transcendental, da experiência de

si mesmo e da experiência do outro, Husserl coloca no final das Meditações

Cartesianas, que podemos confiar na validade destas experiências, em função da

própria evidência vivida, e da mesma forma na evidência de todos os julgamentos e

19

procedimentos da proposta transcendental. Mesmo que eventualmente venhamos a

deixar de lado a exigência máxima de uma apodicidade máxima, ainda assim, o

conhecimento apodítico jamais poderá ser abandonado.

De certa forma Husserl considera de maior urgência discutir sobre os

problemas mais fundamentais de uma filosofia primeira ou da filosofia

fenomenológica, que segundo sua perspectiva ainda, tem como empecilho uma

estrutura caracterizada pela ingenuidade objetivista. É esta filosofia fenomenológica,

responsável pela tarefa fenomenológica de compor uma ciência rigorosa, com bases

novas e superiores. Aqui fica clara a posição do autor em se manter no foco de suas

aspirações no sentido de não dedicar suas reflexões para o que não estivesse dentro

deste escopo de investigação, ou seja a de agregar radicalidade ao pensamento

filosófico fenomenológico, a partir da determinação não apenas da extensão e dos

limites da apoditicidade, mas indo além disso determinar os modos de sua

apoditicidade.

O que foi exposto e apresentado no sentido de uma problemática

envolvendo o objetivismo naturalista e a subjetividade transcendental, passam antes

de qualquer coisa pela necessidade de um crítica do conhecimento fenomenológico

transcendental, pois toda a teoria do conhecimento transcendental fenomenológico ,

como crítica do próprio conhecimento, leva inexoravelmente a uma crítica do

conhecimento transcendental e da mesma forma a uma crítica da experiência

transcendental, já que a fenomenologia pode constantemente voltar-se a si mesma

no sentido de uma autocrítica. Não obstante, esse retorno constante, e esse voltar-

se a si mesmo, não configuram ainda, segundo Husserl, o que ele chama de

regressus in infinitum.

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CAPÍTULO 2 - TEORIA DO CONHECIMENTO EM HUSSERL

2.1 Evidências Apodíticas

Tendo como base a leitura de Meditações Cartesianas, e buscando mais

uma vez delimitar a teoria do conhecimento na perspectiva fenomenológica,

poderemos finalmente investigar e situar o conceito de evidência como ponto chave

na teoria fenomenológica de Edmund Husserl. Ao considerar tal prerrogativa na

perspectiva do pensamento cartesiano, é preciso antes de qualquer coisa, levar em

consideração a crítica que Husserl faz ao conceito dualista de evidência previsto por

este sistema e da mesma forma adquirir uma compreensão do modo como Descartes

procura atribuir validade e legitimidade ao seu sistema através da representação, da

correspondência e da realidade objetiva.

Obviamente que podemos perceber que ao tentar superar o dualismo

cartesiano, com um tratamento fenomenológico, Husserl avança inexoravelmente

para uma proposta fundada no domínio do transcendental, oposta à atitude

transcendental em que fica assentada as bases do pensamento cartesiano. Portanto,

para Husserl, o modo como Descartes tenta finalmente superar a dualidade em busca

de legitimação, através da clareza e da distinção, não avança e não encontra

sustentação, tão somente por que não consegue superar o domínio de uma atitude

natural. A atitude natural diz respeito a toda a investigação que pressupõe o dado, que

utiliza os mecanismos de uma ciência positiva e objetiva para estabelecer os

fundamentos da realidade, mais com base na prerrogativa empírica de fatos, do que

em evidências puras. Para este autor, a evidência, e até mesmo a verdade, só podem

fazer sentido na perspectiva de uma autêntica mudança no campo da investigação.

Fica claro a transição que Husserl tanto busca para a filosofia, e que se refere

efetivamente a dar um salto de atitude objetivamente natural, passando pela atitude

do historicismos e psicologismos, na forma de um subjetivismo cético e finalmente

para uma atitude subjetivamente transcendental, característico de uma filosofia

científica, ou seja uma fenomenologia pura.

21

Assim, a base da teoria do conhecimento em Husserl, está em uma

discussão em torno do conceito de evidência, situada entre o pensamento cartesiano

e a superação deste, por via de uma filosofia transcendental. Não há dúvida que o

tema da evidência, tem suscitado uma infinidade de discussões que culminaram

principalmente, na pretensão fenomenológica de avançar no sentido de fundamentar

de forma segura o conhecimento. E neste caso tanto o pensamento de Husserl

quanto o pensamento cartesiano, visam antes de qualquer coisa, fundamentar o

conhecimento, através da evidência e da verdade.

Ao pensarmos no sentido de verdade na perspectiva grega, notamos, que

alétheia tem uma estreita correspondência de significação com fenômeno husserliano.

E sobre este ponto de vista não fica difícil pensar tanto o fenômeno quanto a evidência,

como aquilo que é capaz de aparecer, pois para Husserl, a evidência do que é

constituído é diferente da evidência do que é constituinte. Esta é mais clara e distinta.

A consciência, com efeito, é auto evidente. Ela é o puro aparecer como uma auto

presença, uma perfeita autodoação, auto apresentação. Evidência apodítica:

incondicionada. Base, portanto, de todas as outras evidências. O que é constituído

tem a sua evidência como uma doação para a consciência. É somente nesta esfera e

neste domínio que a verdade pode ser finalmente tratada bem no sentido husserliano,

de ir às coisas mesmas, como veremos mais adiante.

Husserl resolve formular sua concepção de evidência a partir da

concepção de evidência cartesiana:

Toda razão de ser brota da evidência; extrai-se, pois, de nossa subjetividade

transcendental mesma; toda imaginável adequação surge como verificação

nossa, é nossa síntese, tem em nós seu último fundamento transcendental

(HUSSERL, 1986, p. 112).

Husserl busca consolidar seus argumentos em uma evidência cada vez

mais sólida, e neste caso faz uma interpretação da consciência em um sentido

transcendental. Compreende os caminhos traçados por Descartes e de certa forma,

compartilha até certo ponto, com nuances, deste caminho. Não obstante, avança na

medida que busca elucidar e desvendar, o modo particular da subjetividade

transcendental, em que o mundo é dado por si mesmo com e a partir dessa

22

perspectiva transcendental. A consciência neste caso é interpretada no sentido

transcendental.

Se em Descartes a noção de transcendência se baseia na representação

e correspondência, em Husserl, ocorre uma aproximação das interações sujeito-

objeto, tendo como princípio norteador, a intencionalidade e a própria constituição

dessa relação sem dicotomia ou dualidade. Isso se dá exatamente porque Husserl, e

de uma certa forma, a própria teoria fenomenológica, não podem conceber a cisão

entre sujeito-objeto, pois é no domínio transcendental da consciência que estes

conceitos se confundem e se mesclam.

O próximo passo portanto, que Husserl vai dar, será no sentido de

questionar a validade objetiva e a partir deste questionamento, perguntar como todo

o fluxo de vivências subjetivas, que desencadeiam as respectivas evidências,

constituídas na consciência, possuem de certa forma alguma significação objetiva?

Ao mesmo tempo que tenta resolver a questão, se propõe, além de

demarcar o posicionamento da fenomenologia frente a este problema, também busca

resolver a questão da constituição do mundo objetivo através da subjetividade do ego

e da intersubjetividade imposta pela presença do outro na composição de um nós:

Esse problema é um contra-senso ao qual o próprio Descartes não escapou,

porque ele se enganou sobre o sentido autêntico de sua epoché

transcendental e da redução ao ego puro (HUSSERL, 2001, p. 98).

Ao tecer tal comentário, expõe não apenas o dualismo, como um sério

problema do pensamento cartesiano, mas antes de tudo a forma como Descartes

procura constituir a sua relação sujeito-objeto e até mesmo como este realiza o

trânsito no fluxo da relação sujeito-objeto.

A análise fenomenológica, ao investigar uma determinada entidade e toda

a variedade de conhecimentos relacionados a esta entidade concebe o que Husserl

chama de “correlatum da consciência” (Husserl, MC, p.65), onde analisa não apenas

sua própria estrutura e tampouco apenas em uma relação com o “eu” , o “ego cogito”

do qual é “cogitatum”. Vai além desta perspectiva e direciona o seu olhar reflexivo para

a intensidade da vida anônima do pensamento e dos diversos modos da consciência

e os modos mais internos da estrutura do eu, que de certa forma autorizam a captação

dos sentidos intuitivos, sejam eles com significados ou não.

23

No caso da percepção espacial, os objetos expostos na res extensa, serão

então devidamente estudados a partir de uma sistemática abstração dos significados

destes objetos. Cada um deles, tanto visuais, quanto sensoriais serão apresentados

em si mesmos no contexto da res extensa, e serão analisados segundo cada uma das

perspectivas em que se apresentam, bem como os seus diferentes modos de

presença, sejam eles temporais, na percepção, na lembrança e na memória imediata.

Husserl coloca que não há legitimidade no problema cartesiano e que

mesmo diante das defesas impetradas a este pensamento, mostra a evidência de que

tal problema não foi resolvido. Defende que a única forma legítima e definitiva para se

construir tal passagem está na esfera da subjetividade transcendental. Somente neste

domínio seria possível pressupor o mundo exterior. Aqui, fica claro que para Husserl,

o principal erro de Descartes, apesar de ter percebido o caráter apodítico da evidência

na consciência, não consegue elevar suas reflexões para o sujeito transcendental.

Desta forma, o dualismo cartesiano, se caracteriza fundamentalmente por

uma certa desvinculação do sujeito transcendental em relação ao mundo, onde a

natureza inicial do cogito já vem configurada. Quando Descartes concebe o mundo

cogitado, sem levar em consideração a existência real deste mundo, implanta no seio

da discussão a problemática dualista. O que Husserl propõe de certa forma é justificar

este domínio extra-psicológico, fragilizado, por uma subjetividade transcendental.

Ao formular o problema do dualismo na perspectiva fenomenológica,

Husserl lança mão do que ele chama de intencionalidade, na medida em que afirma

que Descartes não deu este passo porque não conseguiu enxergar que a consciência

é sempre a consciência de algo e que a compreensão sobre a relação sujeito-objeto

deveria ser vista de outra perspectiva, ou seja, aquela que ambos se entrelaçam em

uma mesma dimensão, constituído assim o fluxo da consciência na temporalidade,

que é capaz de visar a própria consciência em movimento. Somente nesta concepção

o dualismo pode ser superado. Assim, é perfeitamente aceitável, que o problema seja

rearticulado dentro da perspectiva fenomenológica, onde o campo das vivências e a

constituição dos objetos são dados na consciência.

Fica então claro que a formulação fenomenológica do conceito de

evidência, não assume e tampouco admite mais a relação sujeito-objeto, já que a tese

em torno de uma transcendência deve superar o dualismo e ser investigada na

imanência da consciência. Ao assumirmos a reconfiguração do problema da verdade,

a partir de um salto da relação sujeito-objeto como uma relação dualista, para uma

24

passagem desta relação se constituindo no cerne de um único domínio, aí então,

segundo Husserl, estar-se-á de encontro ao domínio de uma filosofia transcendental,

terreno fértil para o método fenomenológico.

Quando ataca o psicologismo e as teorias psicológicas fundadoras das

ciências de sua época, está na verdade redirecionando a estrutura do conhecimento

para um outro nível de compreensão. Ao apontar os erros cometidos a partir de uma

interpretação errônea do pensamento, nos leva a perceber que sua teoria do

conhecimento, antes de qualquer coisa não enxerga o pensamento como algo

pontual, ou apenas como o resultado de um processo de raciocínio, mas sim, como

atos constituintes, que dessa vez, não serão baseados em concepções psicológicas

ou “absolutizações” objetivistas. Procura a partir desta visão, assentar sua teoria do

conhecimento, que passa agora a ter como meta fundamental, a estruturação das

ciências matemáticas e da lógica associadas ao que Husserl chama de evidências

puras.

Estas evidências não se dão portanto, de uma mesma forma, já que

também possuem diferentes modos de se apresentarem à consciência.

Metodologicamente, podem ser organizadas hierarquicamente, de uma forma que

vão desde o modo de apresentação de uma evidência baseada na certeza absoluta,

com características da teoria cartesiana, até o modo de apresentação de uma

evidência baseada no modo de indubitabilidade absoluta, própria da fenomenologia.

O primeiro modo específico da evidência, e que se apresenta com maior

grau de evidência à consciência, é a evidencia adequada. Trata-se da verdade

completamente revelada à consciência. No nível da percepção, como ato da

consciência, jamais se poderá alcançar a evidência adequada - esta será sempre

inadequada.

Outro modo de evidência que se apresenta claramente à consciência, é a

evidência apodítica. Se refere àquela que parte tanto da intuição quando da reflexão.

Se partirmos da intuição como forma de apropriação do objeto, será necessário

colocá-lo sob a prova da reflexão. Esta reflexão é que finalmente conclui sobre os

estados de coisas como sendo algo que não poderia ser diferente daquilo que

manifestam. Neste caso não há aqui uma certeza absoluta, característica da

evidência adequada. O que há na verdade é um alto grau de certeza e

indubitabilidade. O maior exemplo de evidência apodítica é exatamente aquela que

25

se refere ao sujeito que pensa. Esta jamais pode ser colocada em dúvida. Segundo

Husserl, nem mesmo a evidência do mundo pode ser considerada como evidência

apodítica. Mas os atos da consciência, segundo Husserl, possuem evidências

apodíticas.

2.2 – O ego transcendental como suporte para uma filosofia radical

Desta forma ao se chegar aos atos da consciência, chegamos

definitivamente ao ego puro. Para Husserl, esse processo de redução consiste na

própria fundamentação das ciências. E neste caso, tem-se primeiramente, a partir do

“ego” transcendental, uma ontologia universal, que se reconfigura posteriormente em

ontologias regionais para finalmente especificar as ciências particulares. Mas aqui,

vale lembrar que não se trata de uma fundamentação positiva, com base nos

pressupostos do objetivismo naturalista. Desta vez tal fundamentação se baseia em

uma ciência rigorosa conforme Husserl coloca:

Se queremos fundamentar as ciências de maneira radical, a evidência do mundo que a experiência nos fornece necessita de qualquer forma de uma crítica prévia de sua autoridade e de seu alcance (Husserl, 1929. § 7).

Criticar previamente esta ciência positiva do ponto de vista de sua

autoridade e alcance, passa a ser então a meta do projeto fenomenológico em sua

primeira instância. Este é o passo a ser dado em direção ao ego transcendental onde

o mundo é pensado e onde o mundo todo está como limite último de nossas sínteses

do próprio mundo, realizadas não apenas pelos sentidos, mas pela observação do

próprio sentido. É o pensamento no sentido intuitivo, que pensa o pensamento. É o

eu transcendental que se manifesta na consciência.

Aqui a crítica ao positivismo empírico encontra argumento, já que o

objetivismo característico do empirismo, jamais encontrou sustentação ao se prender

a uma noção de consciência pautada em uma concepção psicológica que vê o mundo

por representação, através de uma consciência-sujeito. Aqui, vale lembra que a

discussão entre o idealismo psicológico e o idealismo transcendental, encontra

26

resposta no modo como a consciência é retomada e reinterpretada a partir do

transcendental. No idealismo transcendental, a consciência é uma consciência que

não apenas pensa o mundo, mas que além de tudo, pensa a si mesma, e se coloca

como o próprio fundamento para se pensar o mundo. Isto quer dizer que toda a

validade da existência, seja em termos universais ou em termos particulares são

constituídos a partir dos cogitationes, o ego puro em uma perspectiva eidética.

Ao pensar o ego transcendental, Husserl coloca que o mesmo é

indissociável das vivências, pois o mesmo só pode ser definido como tal, ou seja, só

é o que é, na relação com as objetividades intencionais. Tais objetos da

intencionalidade ora podem ser imanentes, quando se dão em uma experiência no

interior da consciência ou podem ser transcendentes a partir das experiências

externas à consciência. É neste sentido que o ego transcendental tem como correlato

um sistema de objetos intencionais e transcendentes.

Husserl, considera o eu como um polo de vivências em que o ego se

interpreta como um ser posto em constante evidência. Não se trata, portanto, de uma

interpretação a respeito da vida fluente feita pelo ego. Tal interpretação é feita no

sentido de que o ego interpreta e vê a si mesmo como eu que vive isto e aquilo, que

vive por meio deste e daquele cogito. É por este motivo que tal correlação intencional

possui dois polos. A saber, o “cogitatum”, que se manifesta como sistemas de objetos

intencionais e o “cogito” o “eu idêntico” que fica inalterado como fonte das

“cogitationes”. É este eu, o “substrato de habitualidades” que vive as vivências em

plenitude e em atividade se referindo sempre ao que Husserl chama de polos-objeto:

É preciso notar no entanto, que esse eu central não é um polo de identidade vazio (não mais do que qualquer outro objeto); com qualquer ato que ele efetue e que tem um sentido objetivo novo, o eu - em virtude das leis da "gênese transcendental" - adquire uma nova propriedade permanente. Se me decido, por exemplo, pela primeira vez, num ato de julgamento, pela existência de um ser e por esta ou aquela determinação desse ser esse ato passa, mas eu sou e permaneço daqui por diante um eu que decidiu desta ou daquela maneira, "tenho uma convicção correspondente (Husserl,1929,§ 32).

Portanto, a validade e o domínio de toda a existência natural possuem um

grau secundário de importância, já que esta categoria pressupõe sempre o domínio

transcendental. E nos faz perceber, não obstante, que o simples fato de estarmos

27

colocando o mundo em suspensão por meio de uma epoché, estamos na verdade

aceitando o posicionamento do eu, e suas cogitationes, como elemento primordial

para constatação da existência, na mesma medida em que efetuamos a redução

fenomenológica. Colocar as cogitationes como pressuposto para a própria existência

do mundo é realizar a redução fenomenológica transcendental.

Nas meditações, ao argumentar acerca das cogitationes, Husserl está

abrindo caminho para uma ampla compreensão do verdadeiro significado de

consciência. Ao colocar a base da consciência como sendo uma estrutura formada

pelo ego, pelo cogito e pelo cogitatum, nos possibilita entender que esta consciência

sempre será consciência de algo. Não pode haver a consciência de nada. Um objeto

sempre deverá ser pressuposto, já que consciência é sempre consciência de um

objeto. O que Husserl nos oferece para conceber tal estrutura, é exatamente a

intencionalidade e seu papel como condutora nos atos da consciência em sua atitude

de visar.

Não é difícil compreender assim, que a conexão ego, cogito e cogitatum

formam a própria estrutura da consciência. E quando dizemos consciência, aqui, não

estamos nos referindo à reflexão isolada de objetos do mundo. Ora, se a consciência

sempre é consciência de algo e se penso, sempre estarei pensando sobre algo ou

pensando em algo, então a redução fenomenológica não é somente o eu penso, ou

a constituição de um ego cogito no sentido cartesiano, que simplesmente não

constitui nenhum objeto. Aqui na redução fenomenológica transcendental, também o

objeto do pensamento é constituído como produto que tem significado e validade, ou

seja, também é constituído como um cogitatum. É exatamente esta constituição com

significado e validade da consciência, como ego-cogito-cogitatum, que garante a

Husserl seu afastamento definitivo do solipsismo do cogito.

Daí se tira, que toda a existência se constitui da relação entre os objetos e

a consciência. A consciência em Husserl, é definida como: primeiro, entrelaçamento

das vivências psicológicas verificáveis por via da experiência no fluxo da vida;

segundo, percepção interna das vivências intencionais. Ou seja, consciência é o que

dá sentido às coisas. Assim, o pensar nos sentidos de consciência, distanciando-se

do correlativo leigo, em fenomenologia, segundo Fernandes 2011:

28

Precisamos ter em mente o tríplice significado de “consciência”, a saber, consciência como apercepção das próprias vivências, como o eu fenomenal, que, nesta e para esta apercepção se constitui e consciência como totalidade estrutural intencional dos atos” (FERNANDES, 2011).

Se a consciência atua como doadora de sentido, o objeto desta

consciência é então um objeto para esta consciência, e portanto um objeto intencional

visado por um sujeito. Intencionalidade é a propriedade específica da consciência de

ser consciente de alguma coisa. É importante perceber que tal intencionalidade não

visa apenas a ideia do objeto que é constituída na consciência e tampouco visa

somente a existência do objeto em si mesmo, mas de forma absolutamente radical e

intensa, visa a essência do objeto que corresponde a uma representação

transcendental do mesmo na consciência. Esta representação é gerada pelo cogito e

doada ao cogitatum.

A condição primordial para a consciência de um objeto é, desta forma, a

intencionalidade, e esse mesmo objeto é o objeto intencional. Vale ressaltar aqui a

diferença crucial entre nóesis e nóema. O primeiro é entendido como sendo os

próprios atos da consciência em sua intencionalidade, no sentido de que a

consciência é sempre consciência de algo. O segundo, é exatamente o modo de ser

do objeto intencional, constituindo de certa forma uma conformação de bipolaridade

na estrutura da consciência, ou seja ela sempre terá início com atos da consciência

tendo em vista sempre um objeto.

A transcendência, é portanto, esse movimento que a consciência produz

ao visar um objeto. Ela transcende a si mesma, pois a constituição do objeto é

imanente a si mesma. Essa imanência se relaciona com o caráter apriorístico dos

objetos na consciência. A transcendência neste caso, é realizada na imanência, já

que o objeto intencional, apesar de ser diferente do objeto real, é o que finalmente irá

atribuir sentido ao objeto real.

O que é colocado entre parêntese na epoché universal é a existência do

mundo como um todo. Desta existência não se pode duvidar, mesmo quando do

ponto de vista filosófico ela não deve ser considerada. Assim podemos finalmente

entender que a evidência apodítica, incondicionada e absoluta, é a evidencia que a

consciência tem de sí mesma, enquanto que a consciência que se tem do mundo

29

objetivamente, é a consciência assertória e que é condicionada, relativa e passível

de dúvida. É portanto, a evidência apodítica da consciência, que funda a consciência

do mundo objetivo, ou seja, uma apreensão imediata do mundo intencionado que é

imanente à consciência e que se diferencia assim, do objeto em si mesmo.

O sentido é a totalidade do ato visado, e jamais se dá parcialmente com

relação a percepção do objeto. O cogito é sempre limitado e pouco abrangente. O

sentido sempre irá ultrapassar o cogito, apesar de ser constituído no próprio cogito.

Segundo Husserl, os sentidos se manifestam à consciência de duas formas

totalmente distintas. Uma é por meio da consciência atual, ou seja, aquela que é dada

imediatamente e continua se dando atualmente e que representa a totalidade no

presente. A outra é um horizonte indeterminado, uma vaga generalidade, que não é

o objeto imediatamente dado na experiência, mas objeto tão somente do

pensamento, na forma de uma vivência potencial.

Obviamente, que o visar atual sempre está contido no horizonte de nossas

percepções, e carrega de certa forma uma potencialidade de atos e vivencias. É por

este motivo que os atos e vivencias da consciência, são distintos entre si, pois

pertencem a diferentes modos de visar, sejam eles atuais ou potenciais. De certa

maneira é dentro do modo de visar potencial que se situa os atos da consciência

relacionados com memória e imaginação por exemplo. Esta perspectiva leva a teoria

fenomenológica a definir o mundo como sendo delimitado pelo horizonte de nossas

concepções, que implicam em experiências das mais variadas, tais como religiosas,

políticas e morais.

De forma geral, a consciência é formada pelo conjunto de todos os

sentidos, que se organizam conforme as nossas sínteses. São as sínteses que nos

dão o sentido e são elas características próprias da consciência. Sem a síntese, não

haveria sentido. Trata-se, portanto, do processo inverso da redução fenomenológica.

É no estudo fenomenológico que se pode mostrar o caminho de construção das

sínteses e como estas são formadas. A consciência é na verdade uma formadora de

sínteses.

Husserl da mesma forma que Kant procura fazer tal distinção, de forma

que de acordo com a fenomenologia Husserliana, o transcendental diz respeito à

consciência e o transcendente diz respeito às coisas do mundo, que são exteriores à

30

consciência. O próprio mundo em si é exterior ao cogito. Assim, o que está posto no

mundo, tal como coisas, como árvores, montanhas e objetos gerais, são puramente

transcendentes ao sujeito. É na intencionalidade que a consciência toma posse

destes objetos, apreendendo os mesmos por meio do que chamamos de atos de

consciência. Cogitatum, portanto, pode ser o objeto em si, exterior do ego, da mesma

forma que pode ser uma vivência na imanência.

É somente na síntese que este objeto é tomado como posse da

consciência. E quando se efetua tal apropriação, este objeto enquanto objeto se

transfigura para um transcendental. Assim, o transcendente é tudo que está fora do

sujeito e pertence ao sentido próprio do mundo, enquanto o transcendental é o eu em

si, que carrega o mundo como uma unidade que tem significado e validade.

Finalmente, a reflexão intencional da consciência descreve e define a

interação entre os atos da consciência e o mundo exterior. Se caracteriza como algo

intencional, tão somente porque tal relação prescinde de um objeto sobre o qual se

intencione. É por meio deste fluxo intencional que a consciência pode constituir a

unidade noemático-noética que representa o sentido objetivo das coisas do mundo.

Para Husserl, existe um universo de natureza essencial que pode ser delimitado por

conceitos rigorosamente constituídos na evidência.

Apesar de Descartes, no Discurso do Método, apresentar evidência como

aquilo que se apresenta clara e distintamente ao espirito, em Husserl, a evidência se

refere tanto à manifestação do objeto quanto do sujeito na consciência, efetivando o

que ele chama de preenchimento da intencionalidade. Para esclarecer tal ponto é

preciso entender o intencionado e o imediatamente dado. Intencionado é o fluxo da

consciência que se movimenta em direção ao objeto na forma de uma

intencionalidade e o imediatamente dado é o objeto em toda a sua plenitude. Neste

caso não é simplesmente uma percepção sensorial ou uma voz nos alertando para a

apresentação de uma ideia ou fato. Aqui se refere a algo que antecede toda opinião,

teoria ou hipótese acerca do vivenciado, como em Meditações cartesianas:

Tomando como filósofo, meu ponto de partida, tenho para o fim presumindo uma ciência verdadeira. Por isso, eu não poderia evidentemente nem ter nem admitir como válido juízo algum, se eu não os tomar na evidência, isto é, em experiências onde as coisas e os fatos em questão me

são presentes, eles mesmos (HUSSERL, 1929 - § 5).

31

A evidência apodítica, é portanto critério fundamental para uma filosofia

primeira, já que estabelece os alicerces de uma ciência rigorosa, em que as coisas

devem ser vistas em sua pureza. É o movimento da consciência que vê e se

conscientiza exatamente acerca do objeto vivenciado em sua plenitude. Husserl

coloca esse movimento como uma autorreflexão acerca do vivenciado.

Procura desvincular a base destas ciências das teorias psicológicas e

fundamentá-las a partir de certezas e evidências cada vez mais distintas e claras.

Somente uma ciência universal e radical poderia estabelecer os alicerces deste

método. É, portanto, deste ponto de vista que o pai da fenomenologia estabelece a

fenomenologia como uma proposta de filosofia primeira.

Para sustentar a perspectiva do fenômeno como um processo dinâmico,

nos convida a enxergá-lo a partir de uma concepção histórica, vinculando as

influências do meio, da vida, das estruturas sociais e da própria filosofia da história, a

um movimento no tempo e no espaço onde toda a experiência do mundo e com o

mundo estão constituídos.

Uma das metas fundamentais de Husserl é alcançar a subjetividade

transcendental através do ato intencional puro desprovido da sua relação com o

mundo natural, através da nóesis. Esse método de redução fenomenológica é

chamado por “epoché”, ou “colocar o mundo entre parênteses”.

Quando colocamos o objeto da consciência isoladamente, e deixamos de

lado quaisquer relações com nossas experiências e recusando a imanência, nossas

crenças e aceitações passivas do mundo natural, estaremos reduzidos ao ato

intencional e nosso conhecimento se dará por princípios transcendentais e não por

representações ou associações naturalistas, já que o objetivismo naturalista, é

responsável por um círculo vicioso de causalidade, e isso, segundo Husserl, não

poderia compor a base para a constituição de uma teoria do conhecimento. Na teoria

Husserliana o conhecimento do objeto na consciência, o ato intencional, não depende

da existência do objeto; na verdade a existência ou não do objeto não é considerada.

É crucial perceber neste ponto, que quando pensa no mundo percebido, e

o coloca entre parêntese, Edmund Husserl não está negando a validade existencial

do ser do mundo. A questão portanto, não se trata de isolar, ver, e analisar o objeto,

mas inserir-se no processo e divisar a ponte existente entre o sujeito que intenciona

32

e visa e o objeto que é intencionado e visado. Seu interesse está mais do que em

qualquer outra coisa, focado no fenômeno que se estabelece a partir de sua “Epoché”,

ou seja, de sua “redução fenomenológica”.

A redução fenomenológica passa então a figurar como uma atitude deste

método, e colocará o mundo entre parênteses. Neste sentido, mundo se refere a toda

a realidade natural, o homem e todos os conhecimentos constituídos racionalmente,

entre elas, as ciências exatas, a matemática e a lógica. Segundo o método, somente

a redução fenomenológica nos permite saltar da experiência do mundo empírico para

finalmente vislumbrar e descrever o sujeito transcendental na subjetividade

transcendental.

Mas de que se trata então a redução fenomenológica?

A chave para entender a teoria do conhecimento proposta por Husserl, se

resume no entendimento de sua “epoché”, e para tal é preciso compreender a

redução fenomenológica em níveis distintos ou em perspectivas diferentes. Primeiro

é a perspectiva da redução eidética, e se refere principalmente a distinção entre aquilo

que se conhece como fato daquilo que se entende como essência. Reduzir

eideticamente um fenômeno é antes de tudo separar a natureza essencial do

fenômeno de sua correspondente factual. Isto quer dizer que essência carrega toda

a significação da realidade factual e por isso não poderá jamais ser desvendada como

alheia ao fato.

A segunda forma de redução fenomenológica é a redução transcendental

onde o mundo corresponde à consciência e neste sentido o que opera nas relações

entre o fato e a essência é a intencionalidade noética e noemática, ou seja um

conjunto de operações que ocorrem no nível da consciência e do objeto significativo,

como já foi exposto anteriormente.

Para Husserl a epoché não altera a realidade objetiva do mundo, mas o

que sofre uma profunda alteração, é exatamente o modo de se relacionar com o

mundo na perspectiva da consciência. A percepção dos objetos físicos do mundo não

se altera na perspectiva de uma redução fenomenológica, pois todas as percepções

acerca dos objetos do mundo físico continuam sendo as mesmas. A mudança crucial

inerente a este modo de se relacionar com o mundo consiste no fato de que agora os

objetos físicos não são tomados como “coisas” que ocorrem no mundo dado. De

33

forma absolutamente diferente, tais objetos percebidos na percepção, agora, são

dados na consciência. São as vivências da consciência que se tornam vivência deste

ou daquele objeto, trazendo estes do ser intencionado. É este ser que é visado pela

vivência da consciência, e que ela, a consciência, traz em sí mesma, que Husserl

chama de cogitatum.

Na proposta transcendental alcançada com a redução fenomenológica, os

objetos físicos do mundo não são mais como objetos dado no mundo absoluto, são

agora objetos percebidos pelo ato de perceber. A consciência agora, não apenas

percebe, mas vai além, e passa para uma atitude transcendental, ou seja, agora ela

percebe que percebe. Esta percepção, não obstante, pode ocorrer de diferentes

modos. A percepção visa no modo de percepção, a recordação no modo de

recordação, e o dado como um juízo predicativo. Estes objetos recordados,

imaginados ou percebidos na forma de vivências, são os objetos intencionais. É com

base nisto que a consciência tem a propriedade de ser consciência de alguma coisa,

e de trazer em si, enquanto cogito, o seu cogitatum.

Ao delinear sua teoria do conhecimento através de uma perspectiva

transcendental, mais precisamente uma atitude direcionada para o subjetivismo

transcendental, Husserl procura diferenciar a reflexão natural e reflexão

transcendental. Considera a reflexão transcendental, como um ato da consciência

que se dobra, flexiona e sempre retorna a sí mesmo. Segundo ele, posso voltar-me

para um objeto percebido simplesmente, ou apenas como lembrança e refletir sobre,

ele em um processo que chama de retrorreferência. Neste último se estabelece a

percepção que percebe, em um ato puro de reflexão. Esta ele chama de reflexão

natural, pois se trata da reflexão psicológica e cotidiana que coloca o mundo como

ponto de partida para o conhecimento. Uma outra reflexão é a reflexão

transcendental, totalmente livre de preconceitos e que se estabelece com base em

uma total rejeição às opiniões, pressuposições e construções psicológicas puramente

construídas a partir de uma atitude natural. Na reflexão natural o indivíduo é um

participante interessado no mundo, enquanto na reflexão transcendental este mesmo

individuo é um expectado desinteressado de tudo o que se dá na consciência em sua

correlação com o mundo. A experiência transcendental desvenda assim um ego

concreto correlacionado com o mundo.

34

CAPÍTULO 3 - A ATITUDE TRANSCEDENTAL FENOMENOLÓGICA

3.1. Superando objetivismo naturalista

A base de toda teoria do conhecimento de Husserl foi construída para dar

sustentação à sua filosofia transcendental. Se considerarmos o caminho de uma

fenomenologia pura como a meta deste projeto ambicioso, podemos entender da

mesma forma, que entre os motivos para Husserl buscar tal método, a crise da

modernidade europeia é talvez aquela que mais se torna claro diante da estrutura de

pensamento deste autor.

Quando estabelece os alicerces para transpor o objetivismo naturalista em

busca de um subjetivismo transcendental, não está apenas construído um arcabouço

teórico desconectado de uma práxis universal. Muito pelo contrário. Todo o

pensamento husserliano se estrutura em torno da vida, dos processos históricos,

culturais e sociais que moldaram, particularmente a modernidade europeia. E é neste

ponto que a sua teoria tem a ambiciosa proposta de reformular a base do

conhecimento fundado nas ciências de fato e nos processos puramente empíricos

que levaram à crise da modernidade, ser tanto uma crise de valores quanto uma crise

de fundamentos.

O que Husserl se propõe, portanto, é transformar a filosofia na gestora de

uma razão capaz de promover mudanças exatamente nos fundamentos do

conhecimento. É aqui, que a proposta de tornar a filosofia uma ciência de rigor ganha

mais sustentação e aos poucos toma forma a partir da interpretação de fenômenos

ou da fenomenologia como uma ciência a priori de todo o conhecimento. Mesmo

reconhecendo a experiência como etapa do processo de conhecer, coloca de maneira

taxativa o a priori, necessário e universal, como o tipo de aquisição que finalmente

será capaz de doar a universalidade das coisas e de agregar o máximo de pureza à

intuição universal como ato doador originário da consciência.

Assim, o que fica claro, é que a tarefa que Husserl se predispõe a enfrentar,

no sentido de remodelar os fundamentos do conhecimento na modernidade - e aí,

considerando esta em todos os seus aspectos, sejam eles científicos, sociais ou

35

morais - passa de certa forma pelo desenvolvimento desta ciência rigorosa que usa,

antes de tudo, o exercício da “epoché” como mudança de atitude, ou seja, de uma

atitude natural, alienada da consciência, para uma atitude fenomenológica que dê

acesso ao domínio transcendental da verdade.

O impulso do projeto husserliano toma folego com as cinco lições de 1907,

em que existe uma clara influência da filosofia cartesiana. Vale, lembrar que a filosofia

cartesiana tinha como meta reformular os fundamentos da própria filosofia, no sentido

de torná-la, da mesma forma, uma ciência rigorosa. Foi neste sentido que ao tentar

construir uma filosofia livre de quaisquer ameaças, e neste caso particularmente do

solipsismo e do ceticismo, seria necessário estabelecer tal filosofia sobre as bases

sólidas de evidências apodíticas.

Não obstante a superação da filosofia cartesiana, só foi possível quando,

através de uma radicalização profunda, Husserl finalmente alcançou o modelo

conceitual de sua fenomenologia transcendental, como ele mesmo acrescenta: “[...]

devido a um desenvolvimento radical de temas cartesianos” (Husserl, 1973 [1931], p.

63). Foi neste sentido que a superação da evidência da cogitatio, em seu sentido

cartesiano, possibilitou a Husserl adentrar-se para as profundezas da subjetividade

transcendental, onde somente nesta perspectiva poderiam ser encontrados os

fundamentos últimos de uma radicalidade fenomenológica.

Esta radicalidade só pode ser encontrada em evidências apodíticas, que

são em última instância o requisito essencial para o exercício da epoché

fenomenológica, mas indo além disso, para a fundamentação da filosofia como uma

ciência rigorosa. É a suspensão do juízo herdada pelo ceticismo antigo, e reformulada

segundo a fenomenologia que possibilita a concepção de uma epoché moderna, cuja

principal característica não é exatamente julgar sobre a existência ou não das coisas,

mas antes de tudo, na acepção fenomenológica, que consiste em uma posição radical

de colocar a validade do mundo “entre parênteses”. Aqui o que é fato e contingente

fica em absoluta suspenção, ou como diz Husserl, fica totalmente “fora de circuito”.

Mais importante do que o exercício da epoché, é saber e ter consciência, de que não

se trata efetivamente de negar a existência do mundo. Essa suspensão, pressupõe

um mundo, que Husserl chama de Tese do mundo, e não pretende de certa forma

negar que não seja possível continuar vivenciando essa tese do mundo, mas apenas

admitir que essa tese do mundo e sobre o mundo será temporariamente suspensa,

36

como diz Husserl: “[...] a tese é um vivido, mas dele não fazemos nenhum uso [...]”

(Husserl, 1913, p. 54).

Já cientes do sentido de transcendente, como sendo algo que está no

mundo externo e fora da perspectiva cognitiva, podemos entender o movimento que

a epoché faz ao se lançar sobre este conjunto transcendente de coisas postas no

mundo. Toda a gama de objetos percebidos tem toda a atenção da consciência

enquanto esta se debruça sobre eles e os vivencia.

Um salto é efetivamente realizado com o deslocamento da atenção,

daquilo que está no mundo externo, ou seja, do que é transcendente, para o que

finalmente é revelado na vivência dentro da consciência em uma atitude totalmente

imanente. A passagem do que é transcendente para o que é imanente Husserl chama

de redução psicológica, pois se refere a uma imanência psicológica, pois se refere ao

conjunto de minhas vivências no âmbito da experiência.

O resultado de tal análise leva à percepção de que se pode duvidar de tudo

quanto existe fora do “cogito”, mas jamais se pode duvidar do fato de que este “cogito”

está tendo “esta e esta” vivência no momento em que ela se manifesta. Aqui se

percebe a gênese da perspectiva transcendental, que não é delimitado pelo que está

fora do cogito, como o transcendente e tampouco pelo que está dentro do cogito,

como o imanente. O transcendental é o sujeito puro, não empírico e tampouco

psíquico.

O golpe definitivo na filosofia cartesiana, consiste no fato de que Husserl,

avança no sentido de expandir o nível de sua epoché, a um nível em que até mesmo

a vivência psicológica, ou seja, a vivência do sujeito empírico é colocada em

suspenção. Para Husserl, esta vivência é objeto da ciência psicológica, sendo um

ente empírico, inserido no contexto de outros entes, e portanto, da mesma forma deve

ser submetido à epoché fenomenológica. Desta forma, a generalização da epoché

fenomenológica se refere não apenas aos fatos do mundo, mas também o eu

psicológico que vivencia estes fatos e mais ainda, as vivências desse próprio eu.

Agora o transcendente ganha uma outra significação, já que não apenas o que está

fora passa a ser objeto de dúvida. Também o eu empírico é adicionado ao que tem

caráter transcendente, e, portanto, passível de ser submetido à epoché

fenomenológica. Esta generalização fenomenológica faz com que dois saltos

37

significativos pudessem fundamentar uma perspectiva ainda mais radical à filosofia

Husserliana. A primeira, já superando Descartes, é o exercício da epoché

transcendental e a segunda como consequência da primeira o surgimento da

subjetividade transcendental.

É o descolamento da atenção dos fatos contingentes do mundo natural,

para o domínio de uma atitude baseada na subjetividade transcendental, “[...] domínio

absolutamente autônomo do ser puramente subjetivo [...]” (Husserl, 1970 [1924], p.

321), onde os fenômenos tidos como idealidades puras, são revelados como

evidências absolutas para uma determinada consciência transcendental, que é capaz

de ver estes fenômenos em sua plenitude, ou seja, da forma como são em evidência

pura.

Porém, para alcançar tal plenitude de desvelamento do mundo através de

uma atitude transcendental, é preciso que a fenomenologia tenha condições de

analisar o sentido das coisas do mundo, bem como sua posição de existência, como

forma de somente assim, se virar para os fenômenos tal como estes se revelam, ou

seja, em sua pureza e evidência irrefutáveis manifestados na subjetividade

transcendental. A consciência pura aqui, na verdade é uma consciência originária

doadora de sentido. Assim a relação da consciência pura com os objetos do mundo,

que são os conteúdos intencionais desta consciência, estamos nos referindo a uma

relação de imanência, que conforme já percebemos não se trata em última análise de

uma imanência psicológica, mas sim de uma imanência autêntica, no âmbito de uma

clarificação absoluta, já que o objeto submetido desta vez à redução fenomenológica

e se manifesta como fenômeno puro é revelado de forma absoluta e imediata na

consciência transcendental.

Com a epoché fenomenológica é possível então produzir uma espécie de

conversão no modo como se considera o mundo. O salto consiste na superação de

um domínio de dúvidas e incertezas para um domínio em que a coisa é dada em sua

doação originária, ou seja, revelada na imanência da subjetividade transcendental.

Tal salto tem como plano de fundo a própria objetividade do mundo, da mesma forma

que suas manifestações em diferentes graus de evidência. De qualquer forma fica

claro o deslocamento de uma objetividade empírica para uma autêntica subjetividade

imanente, sendo esta última um domínio último de evidência fenomenológica

transcendental.

38

Essa dimensão, aberta pela redução do objeto à consciência

transcendental, apresenta uma nova relação entre o eu e o mundo de tal forma que

não seja possível se desfazer da objetividade do mundo, o que coloca então o

fenômeno como a manifestação do mundo em sua totalidade. Segundo Husserl o que

acontece é que perdemos o mundo em sua orientação natural, para recuperá-lo na

consciência transcendental, de um modo mais puro em sua versão reduzida.

A grande questão que Husserl coloca então, é que se deseja, finalmente

atingir o terreno sólido e firme das evidências apodíticas, deve-se avançar para além

da redução eidética. É somente a redução transcendental que possibilita ter um

contato imediato com as coisas que se nos revelam em suas evidências originais na

consciência. E a principal consequência desta percepção, é a de que não se pode

possuir o mundo, mas apenas a consciência deste.

Quando na perspectiva fenomenológica o ser, considerando o verdadeiro

ser, é interpretado a partir de um acontecimento intencional da vida consciente, não

quer dizer exatamente, de acordo com Husserl, que o elemento da percepção seja

uma forma exclusiva de conhecer o real. É através da experiência mediata, e se refere

à experiência tida através do corpo animado que se tem do outro. Esta apresentação

através do corpo animado do outro, na forma de uma outra subjetividade é irredutível

ao polo intencional da minha subjetividade. Então a partir do polo intencional da

subjetividade é situada o plano da intersubjetividade transcendental. A redução

fenomenológica direciona portanto, para dois princípios universais da vida: a minha

vida enquanto vida intencional e a vida do outro, onde a distinção entre ambas é feita

pela diferença entre minha esfera originária ou primordial e uma esfera primordial

alheia.

Ao distinguir a vida imanente do eu, Husserl, admite que nesta vida

imanente está implícita a vida dos outros, sem, no entanto, permitir que esta mesma

vida imanente seja confundida com a esfera primordial. Na medida em que tenho

experiência do meu corpo, também tenho agregado a esta experiência a experiência

que tenho de corpos que são alheios ao meu. Através do corpo alheio, tenho então a

experiência de uma subjetividade alheia, que Husserl descreve como uma vida

transcendental distinta da minha. A comunidade intermonádica em um “nós”

transcendental é o que constitui, de certa forma o mundo compartilhado por todos.

39

Assim, o “eu”, como mônada originária, tem como horizonte de percepções

outras mônadas que constituem o “eu” como uma mônada singular de um “nós” de

um universo de mônadas com validade e sentido ontológico. O que configura a

intersubjetividade transcendental é exatamente este “nós” que constitui o mundo em

sua validade objetiva para o “eu e para o “nós”, ou seja para “todos” e para “qualquer

um”. Essa pluralidade de seres na totalidade transcendental, são seres em uma

relação “em si para si”.

No parágrafo 56 de Meditações Cartesianas, Husserl estabelece uma clara

identidade entre a intersubjetividade, que representa a relação entre a minha vida e

a vida do outro em uma perspectiva transcendental e a própria comunidade de

mônadas. O eu é a própria mônada individual originária, que vai em busca, a partir

de si mesma, para uma comunidade de mônadas no plano transcendental. Neste

movimento acontece o que Husserl chama de “compenetração intelectual” no

horizonte original do outro, de forma que toda a percepção e toda a interação

acontece em um absoluto nível de reciprocidade subjetivamente transcendental.

A comunidade humana então, na perspectiva da intersubjetividade

transcendental, é uma “vivencia de homogênea alteridade” que me permite

aperceber-me de minha própria humanidade. Ainda de acordo com Edmund Husserl,

esta comunidade de mônadas configuram uma comunidade aberta e universal, onde

a intersubjetividade transcendental tem as seguintes características:

a) Constitui-se puramente em mim, no ego que medita; b) constitui-se para mim a partir de minha pura intencionalidade; c) mas e tal que, ao constituir-se em cada modificação de outros, e a mesma, apenas num modo subjetivo de diferente apresentação; d) constitui-se, por sua vez, como portadora necessariamente do mesmo mundo objetivo; e) e propriedade essencial deste mundo transcendental constituído em mim, por necessidade eidética, a de ser também um mundo humano; f) está constituído com maior ou menor perfeição na interioridade psíquica de cada um dos homens em vivências intencionais, em sistemas potenciais da intencionalidade; g) este sistema potencial da intencionalidade implica um horizonte indefinidamente aberto (ZILLES, 1996, p.35).

Na fenomenologia de Husserl, a intersubjetividade tem uma importância

ímpar, na medida em que estabelece os limites e própria intersubjetividade inerente

ao eu e ao outro, no sentido de “alter ego”, que serve como fio condutor para o

40

conteúdo ôntico-noemático, ou seja, para o ato da consciência que visa

intencionalmente. A importância dessa empatia baseada na experiência do outro é a

chave para a resolução das mais variadas dificuldades inerentes ao caráter

transcendental da objetividade do mundo, conforme o próprio Husserl assinala, que:

[...] imediatamente se torna patente que o alcance de uma tal teoria é muito maior do que parece à primeira vista, dado que ela também conjuntamente funda uma teoria transcendental do mundo objetivo [...] (HUSSERL, 2010, p. 134).

Assim, como estratégia metodológica para alcançar o que chama de

“redução à esfera da propriedade” coloca em movimento a abstração de tudo aquilo

que se refere à subjetividade alheia, neste caso o outro, como alter ego e todo o resto

que deriva disso, tal como a objetividade do mundo compartilhado

intersubjetivamente. O mundo assim, passa a ser visto como um fenômeno

transcendental, de onde é recolhido por uma abstração o sentido que de uma certa

forma se refere à vida intersubjetiva. O corpo orgânico aqui, fica como fenômeno no

âmbito noemático, ou seja, permanece como uma unidade psicofísica que permite o

reconhecimento do ego transcendental como “um homem”. Esse processo, de

espelhamento entre o corpo orgânico próprio e o corpo orgânico de outrem, aparece

na percepção do ego transcendental como uma percepção analógica, onde por

transferência, o sentido de uma unidade psicofísica passa ao outro, constituindo um

alter ego. Após a explicitação da experiência do outro, a camada noemática recebe

um outro estrato de sentido proveniente da efetivação da empatia, que se refere ao

sentido do mundo intersubjetivamente compartilhado. Mesmo sendo este mundo

objetivo, o mesmo não é mais depende apenas das vivências do ego transcendental

originário, já que para Zahavi:

Se o outro não passasse de uma variação intencional do ego, sendo, portanto, acessível de forma direta para este, não haveria instituição de nenhuma objetividade, pois o sentido “alter ego” não ultrapassaria o círculo daquilo que é próprio ao ego. Tendo como pano de fundo a transcendência e a objetividade daí resultante, compreende-se que a intersubjetividade, para Husserl, ao menos no relato da quinta meditação, não retira sua importância do fato de ser um mero episódio intramundano, mas por ser a condição para a constituição da verdadeira objetividade (Zahavi, 2003, p. 116).

41

A abordagem da intersubjetividade como elemento da subjetividade traz à

tona o verdadeiro sentido da proposta do método fenomenológico. Pois a “verdadeira

objetividade”, aquela mais profunda e mais rigorosa, consiste exatamente na

elucidação do mundo da vida. O método fenomenológico vai investir na tentativa de

descrever os fundamentos de uma filosofia baseada na intencionalidade de uma

consciência que reflete a si mesma. Urbano Zilles (1996), na tradução de “Crise da

Humanidade Europeia e a Filosofia” apresenta este método como aquele, que,

primeiramente deriva de uma atitude que se propõe a um completo esvaziamento de

pressuposições, julgamentos e opiniões. Neste sentido tem como objetivo a

fundamentação de uma filosofia rigorosamente calcada em evidências apodíticas.

Depois, é um método de análise do que é inerente à consciência e não ao que é

inerente a especulações visionárias. A “matéria prima” dessa analise são as

essências dos fenômenos puros visados na subjetividade transcendental. Sua

característica descritiva não trabalha, neste caso, com inferências e tampouco tem

como objetivo teorias metafísicas.

A própria definição de conhecimento fundado em essências, estabelece os

parâmetros de uma ciência eidética, ou seja, aquela que é fundada no que é

absolutamente necessário e universal. É uma ciência da certeza, do apriori universal.

Isto o diferencia totalmente do conhecimento factual e contingente das ciências

fundadas na experiência empírica. Estas características do método fenomenológico

estabelecem as características de uma ciência ou de um método científico no melhor

sentido que a palavra “ciência” pode ter, ou seja, aquela que busca a raiz última das

coisas para onde deve seguir todo o pensamento puramente filosófico.

Ao distinguir a atitude natural da atitude fenomenológica, Husserl já está

delimitando o campo da atitude fenomenológica como a atitude voltada para a

consciência. A consciência pura como resultado da epoché fenomenológica

radicalmente praticada. Husserl deixa claro, que neste processo deve haver um

distanciamento radical da atitude psicológica, já que também a psicologia como

ciência passível de crítica deve ser submetida à redução fenomenológica.

42

3.2 . O espírito originário europeu

Diante da discussão em torno da crise, percebe-se que o que Husserl, no

fundo estabelece como prioridade, é a tomada de consciência diante desta crise. É

preciso, antes de tudo compreender as origens e as características dessa crise.

Porque não se trata de uma crise apenas das ciências europeias, mas também, de

forma avassaladora, é uma crise do homem europeu. Husserl entende aqui, que

“Europa” é um ente cultural, que possui todo um modo peculiar de ser. Refere-se a

este ente cultural, em um sentido espiritual, que engloba inclusive outras partes do

mundo com ideias de pertencimento cultural e histórico.

O conjunto de todas as aspirações, desejos, ambições e objetivos,

inseridos no cotidiano, como em uma síntese de tudo o que se é ou que se pode ser

no âmbito da comunidade europeia, suas organizações e instituições, denominam-se

o que Husserl chama de ordem espiritual da Europa. Neste contexto é que se

desenvolvem e atuam as instituições e os indivíduos que compõe uma sociedade

múltipla e complexa de famílias, raças e nações, unidos pelo vinculo espiritual, no

sentido cultural e humano a que Husserl se refere. É investindo nessa natureza e

estrutura espiritual que Husserl acredita no potencial da racionalidade para finalmente

identificar, primeiramente as origens dessa crise, e posteriormente com uma profunda

reflexão, apresentar um esboço metodológico de superação de tal crise.

Neste estado de reflexão, enxerga a gêneses de toda a cadeia de relações

históricas que finalmente culminaram com o objetivismo naturalista, que segundo este

autor, se desenvolveu, por sua vez, em consequência do esquecimento trágico do

mundo da vida. Somente a filosofia, nos moldes de uma radicalidade e rigor

universais, podem direcionar a uma solução da crise, como o próprio Husserl

defende:

Nesta conferência quero tentar suscitar um novo interesse para o tão frequentemente tratado tema da crise europeia, desenvolvendo a ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanidade europeia. Ao expor a função essencial que, neste sentido, tem a exercer a filosofia e suas ramificações, que são nossas ciências, a crise europeia também ganhará uma nova elucidação (Husserliana, VI, p.314).

43

Toda a problemática da crise e das questões urgentes das primeiras

décadas do século XX, já haviam sido discutidas e levantadas nos grandes círculos,

inclusive naqueles de nomes proeminentes e contemporâneos de Husserl. Tais

questões que eram por Husserl consideradas como uma grande ameaça à cultura

moderna, eram particularmente, segundo ele condicionadas pela própria crise da

filosofia, mergulhada em uma cientificidade que Husserl, tardiamente denominou de

“crise das ciências europeias”.

Ao considerar a totalidade da obra de Edmund Husserl e sua

fenomenologia, dois períodos distintos podem ser levados em consideração. O

primeiro, com Ideias (1913), onde sua obra é caracterizada principalmente pelo

Idealismo Transcendental, que se estende finalmente até as Meditações Cartesianas

(1931). De forma geral, nesta segunda fase do pensamento Husserliano, há uma forte

investigação que recai predominantemente sobre o sujeito como base para a

consciência, que de acordo com os princípios fundamentais do método, é uma

instância constituinte do sentido do mundo. É por esse motivo que tal obra também

ser chamada de Egologia, já que neste sentido o ego, é por sua vez o suporte para

as vivencias da consciência. Somente após 1920 é que Husserl vai se debruçar sobre

os problemas da crise, e construir um caminho de investigação voltado para história,

se posicionando então, na historicidade da filosofia. Com este propósito, em 1935, na

Conferência de Viena, ao trabalhar o conceito de história, o articula como uma

superação da atitude natural. Aqui superar, é mais significativamente entendido como

transcender a atitude natural e construir uma teoria filosófica que possa através da

epoché, alcançar o ente em sua plenitude. É exatamente nesta concepção de

totalidade, que Husserl estabelece suas ideias de infinito, que posteriormente vão se

tornar de grande importância na filosofia.

Esta perspectiva histórica da análise fenomenológica não rompe, portanto,

com o idealismo transcendental da primeira fase, ao contrário disso, dá um novo e

renovado fôlego à fenomenologia transcendental, ao adotar a perspectiva da história

e da vida. Apesar de dar uma certa ênfase na segunda fase, pela busca de evidências

pré-lógicas, no que se refere ao sentido da existência, ele não deixa de continuar

buscando o caráter absolutamente apodítico como é característica de sua proposta

inicial.

44

Finalmente, quando Edmund Husserl ataca o objetivismo naturalista e o

relaciona diretamente com a crise das ciências europeias, está na verdade se

manifestando diante do problema do objetivismo da ciência moderna na mesma

medida que apresenta um arcabouço teórico poderosamente articulado pela

fenomenologia do mundo da vida, na forma de uma fenomenologia transcendental. É

também essa a questão a que nos remetemos ao articular uma resposta

fenomenológica à crise com foco no subjetivismo transcendental.

Tal articulação iniciada no capitulo 1, é expressa na forma de uma

apresentação do problema que Husserl procurou enfrentar, agora, já encaminhada

para a elucidação, nos faz entender que para Husserl, o fracasso das ciências na

compreensão do próprio homem, levou inexoravelmente ao objetivismo, ou seja, toda

a validade e objetividade do mundo só podem ser aceitos por via de enunciados

solidamente tutelados e homologados por um sistema de proposições impetradas por

uma ciência objetiva. A principal consequência, para o que Husserl chama de crise,

é o distanciamento gradativo e acelerado de outras questões inerentes à vida que

são fundamentais para o desenvolvimento de uma humanidade autêntica. O

objetivismo afastou a ciência das questões fundamentais do homem e perdeu seu

valor enquanto ciência, para a vida e para o mundo.

Sem se preocupar com a erudição histórico-crítica, mas de certa forma,

assumindo a teleologia da razão histórico-crítica, Husserl resolve reconstruir a

tradição clássica de um ponto de vista da fenomenologia. A chave para esta

construção reside então na questão que Husserl coloca como fundamental, que é a

de investigar a natureza e a característica do eidos de toda a cultura europeia. Onde

reside o formato e a identidade espiritual de ser do europeu, que moldou a ideia-fim

ou o télos que orienta o pensamento e a filosofia Ocidental?

Para Husserl, o modo ser, a identidade espiritual latente, como atitude

filosófica e como mudança de atitude diante do mundo tem sua gênesis exatamente

na Grécia séculos de VII a VI a.C.. A partir dessa nova mentalidade e desse novo

modo espiritual de ser surge então o embrião de uma filosofia, fundamentalmente

pensada como uma filosofia capaz de fundar uma ciência universal como ciência do

universo. Ironicamente, foi exatamente essa vontade de busca pela unidade no verso,

ou pela unidade total do ente, que transfigurou, a filosofia como a ciência una, em

múltiplas ciências individuais e particulares.

45

Várias etapas do pensamento representam o processo do pensamento que

finalmente culminou com a crise. Primeiro descreve os fundamentos originários que

levaram os gregos a pensar genuinamente, na Grécia, de uma tal forma que

pudessem chegar a um conhecimento universal e único sobre a totalidade; depois,

pensa sobre o processo de reabilitação desse ideal embrionário, particularmente

durante o renascimento, renovado pelo formalismo matemático; e também, a volta

do pensamento cartesiano e do empirismo inglês na perspectiva da consciência; e

ainda, a experiência investigativa de Kant em direção a subjetividade, sem no entanto

alcançar o transcendental. Para Husserl, o erro de Kant reside principalmente em não

ter avançado no conceito de consciência em uma perspectiva fenomenológica, ou

seja, a consciência que na intencionalidade visa a sí mesma. É interessante notar,

que estes momentos, para o pai da fenomenologia, representaram algumas das

tentativas mais significativas em torno da construção de uma fenomenologia pura.

É neste ponto, que a fenomenologia representa uma nova tentativa, que

assume rigorosamente este ideal originário dos gregos, que ficou conhecido como a

realização de uma ciência fundamental, capaz de alcançar, por sua vez, um saber

baseado no mais alto e absoluto grau de apoditicidade. É fácil aqui compreender

então, que Edmund Husserl está aplicando às filosofias embutidas nestes momentos,

o método de sua redução fenomenológica, já que segundo ele, estes sistemas

filosóficos não consideravam o mundo da vida, Lebenswelt, como suporte para as

experiências universais e absolutas. Talvez uma das críticas mais contundentes de

Husserl recai exatamente sobre esse processo de construção da realidade, em que

se tenta explicar o mundo espiritual circundante (Husserl, 1935,p.63-64), meramente

através das ciências da natureza.

Obviamente que ao fazer suas reflexões sobre a crise das ciências

modernas, Husserl não pode deixar de considerar o intrigante fato, de que mesmo

alcançando tamanha abrangência e importância para a sociedade, as ciências

modernas tenha de certa forma sido conduzidas para o que o autor vai chamar de

crise da humanidade europeia. A base para o entendimento desta questão, segundo

Husserl, reside no fato de que o télos originário no seio da filosofia grega, que através

do tempo chegou à humanidade europeia foi definitivamente perdido com o advento

da expansão e desenvolvimento de uma ciência objetivista. Portanto não se trata de

uma crise envolvendo um aspecto meramente científico, ou seja, as crises das

46

ciências modernas representam para Husserl, em última instância, uma crise da

humanidade europeia.

O projeto de uma razão universal, constituído originalmente na antiguidade

foi então definitivamente influenciado por uma ciência fatalmente imersa em uma crise

de fundamentos. Foi o projeto político racional oriundo deste processo que configurou

a vida humana a partir da razão, cujo maior exemplo de fracasso e decadência pode

ser definitivamente ilustrado pela guerra de 1914, segundo Husserl, representa ainda

uma crise que começa do ponto de vista epistemológica, passando por uma crise do

psicologismo e das ciências modernas até o nível de uma crise antropológica sem

precedentes.

A proposta de pensar a fenomenologia como um método em busca de uma

resposta à crise, aparece como um modelo de superação que antes de tudo, consiga

restaurar a confiança naquele projeto teórico e político originário. O primeiro passo

desta restauração consiste, de uma correção nos fundamentos de uma epistemologia

ingênua, já que:

“...Em virtude da exigência de submeter toda a empiria a normas ideais, as da verdade incondicional, aparece, de imediato, uma mudança de grande alcance em toda a práxis da existência humana, portanto, de toda a vida cultural. Esta já não se deve reger pela ingênua empiria cotidiana e pela tradição, mas pela verdade objetiva” (HUSSERL, 1976.p.73).

Sem dúvida que esta atitude de renovação, pressupõe a concepção de

um novo homem, ou seja, aquele em que este, desvencilhando-se de toda a imersão

e consideração factual do mundo, possa fundar o próprio mundo em uma instância

última e fundamental, definida pela fenomenologia como subjetividade

transcendental, onde reside a razão e a verdade últimas.

Diante da crise, e em posição ao mundo estabelecido pelas ciências

modernas, entres elas, as ciências da natureza, o psicologismo e até mesmo as

ciências humanas, Husserl articula o termo “Lebenswelt”, o mundo da vida. Tal

estratégia tem como objetivo principal, fundamentar estas ciências modernas no

próprio mundo da vida, que de acordo com o autor, significa que:

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“Enquanto vivemos, temos consciência desse mundo da vida como mundo de todos nós, sem que, de modo algum, façamos dele um tema universal: ao contrário, continuamos nos consagrando exclusivamente aos fins e interesses de nosso ofício, dia após dia, momento após momento, individual ou universalmente. – Será que, mudando de atitude, não podemos ter em vista esse mundo da vida universalmente? Não podemos querer aprender a conhecê-lo tal como ele é, na mobilidade, na relatividade que lhe é própria? Dele fazer o tema de uma ciência universal, no sentido em que foi desejada pela filosofia histórica e pelas ciências? (HUSSERL, 1923/4 - Husserliana. Vol. 8. Apêndice XVII).

Nesta concepção, Husserl defende que a mudança de atitude radicalmente

urgente consiste no entendimento desta estrutura do mundo da vida através de uma

experiência pré-científica. Uma espécie de condição ou pré-requisito totalmente

radical de conhecimento, como forma de ir em direção ao que que é absolutamente

a priori de possibilidades existenciais. Para Husserl é o recredenciamento da ciência

originária, no próprio mundo da vida, estabelecida com uma atitude de crítica, das

ciências humanas, incluído o psicologismo, e das ciências naturais. Tal recondução

constitui a ciência do mundo da vida que se apresenta como fonte originária do

sentido de todos os conceitos articulados pelas ciências modernas aquém da

experiência pré-científica.

O mundo da vida é, portanto, a base originaria e fundamental por trás de

todas as ciências, sejam elas humanas ou naturais, ou ainda as próprias ciências

objetivas que de uma certa forma negaram sua origem fundamental e pré-científica e

se estabeleceram em torno do objetivismo naturalista. Reconduzir as ciências

objetivas às suas fontes primárias, significa antes de tudo, iniciar uma nova

possibilidade de conhecimento a partir do mundo da vida. Somente esta atitude pré-

científica pode levar a uma fenomenologia transcendental, primeiramente através de

uma função de fundamento, onde se constituiria a estrutura cientifica objetiva, que

neste caso, o mundo da vida serviria como fundamento para as ciências, e depois

como fio condutor para uma proposta de retorno da fenomenologia para próprio

mundo da vida, ou ainda, para a subjetividade constitutiva do mundo. A forma mais

radical para alcançar tais objetivos, segundo Husserl, é através de sua epoché,

reduzindo tudo que se refere ao mundo entre parênteses. Ao contrário da experiência

empírica onde a análise é meramente objetivista e científica, na redução

fenomenológica, há o acesso a uma experiência transcendental, com uma atitude pré-

científica, que é rigorosa por si só. Husserl é quase sempre taxativo, ao apresentar

48

as diferenças neste sentido, já que para ele o mundo da vida não se trata da atitude

natural, onde todos os interesses teóricos e práticos são direcionados aos entes do

mundo. Na atitude fenomenológica, suspendemos todo esse conjunto interesses de

nosso horizonte para focarmos o mundo da vida.

Assim, o objeto da fenomenologia no mundo da vida, não é nem o “ser no

mundo” e tampouco o é, “seu sentido”. É nesta subjetividade em que se dá o mundo

como existente, e na qual a fenomenologia persiste como ciência do mundo da vida,

conforme Zilles (1997, p.45) “...a ciência do mundo da vida tem pois, por objeto o

estudo da vida transcendental e de sua atividade constituinte”.

Dentre todas as visões de mundo, ou de imagens de mundo, em que

Husserl coloca nossos valores culturais, costumes e saberes também está a imagem

científica do mundo. O grande problema em torno da questão claramente expressa,

do objetivismo e do subjetivismo, reside exatamente no fato de que Husserl percebeu

que as ciências objetivas tomaram posse da realidade objetiva sem considerar o

mundo da vida em toda as suas instâncias. Assim ao assumirem a perspectiva

meramente de um ponto de vista objetivista, desconsideraram este mundo histórico-

cultural intersubjetivo. Este portanto foi, segundo Husserl o maior erro do objetivismo,

que lançando mão das ciências matemáticas, fundamentalmente, trocaram o mundo

subjetivo da vida, por um modelo ou imagem do mundo e da natureza estabelecido e

idealizado na linguagem de símbolos lógicos e matemáticos.

Um dos principais argumentos de Husserl, que de certa forma também

descreve uma das propostas da fenomenologia, considera o homem pertencente ao

conjunto dos fatos objetivos, mas que no entanto, enquanto indivíduos, enquanto

“eus”, estes possuem objetivos, buscam metas e estando em constante relações com

o mundo, referem-se à verdade como normas eternas. A função da fenomenologia

aqui, é exatamente a de tirar este homem do anonimato e direcioná-lo para o rigor

destas verdades eternas. Apesar de se basear no mundo da vida subjetivo e

transcendental, a fenomenologia não deixa de considerar no sujeito como polo de

referência, só que agora, diferente do sujeito empírico, este é pensado na perspectiva

da intersubjetividade transcendental, ou seja, como um sujeito transcendental.

Ao vincular o eu e a “lebenswelt” na intersubjetividade, faz uma correlação

com consciência-mundo. Tal atitude agrega novas possibilidades às investigações de

49

Husserl. Aqui, a intencionalidade e a intersubjetividade é aplicada a uma visão de

mundo pensada a partir da história e da teologia. Tudo isso significa dizer

simplesmente que a proposta fundamental da filosofia fenomenológica de Edmund

Husserl é recuperar o mundo da vida através de um retorno ao mundo anterior a toda

catalogação científica ou conceptualização metafisica.

Para tal, é preciso trazer a subjetividade transcendental para o núcleo das

discussões que tenham como meta o retorno ao mundo da vida e às experiências

pré-científicas originárias que historicamente são responsáveis pelos fundamentos da

ciências. Todo o idealismo e toda a raiz das ciências modernas encontram-se desta

forma no mundo da vida. Outro problema das ciências objetivas, é que estas

passaram, de forma errada, a considerar todas as idealidades do mundo da vida como

objetivas. A consequência deste salto, é que uma gigantesca estrutura conceitual do

mundo acabou sendo construída a partir do paradigma das ciências matemáticas.

Para Husserl, este processo de idealização, tem como maior exemplo a

“matematização galileana” da natureza que de certa forma é o resultado de uma

subjetividade pensante. A noção de que o mundo da vida é o fundamento das ciências

objetivas tem uma estreita relação com a imagem de mundo construído à luz da teoria

de Galileu sobre a natureza, já que desde o advento de Galileu a ciência desconhece

o caráter metodológico de sua atuação ao pretender captar sistematicamente o

mundo por detrás de nossa experiência cotidiana subjetiva.

A estrutura do mundo vida, não é só o mundo experimentado pelo homem,

com toda a exuberância e complexidade da realidade oriunda da elaboração do

homem, mas além disso, “o lebenswelt, é constituído pela história, linguagem,

cultura, valores...”(Zilles, 1997,p.46).

Tal experiência do homem no mundo da vida, não se trata sobremaneira,

da atitude empírica e procedimental das ciências da natureza, aplicadas ao mundo

sensível. Estas se desenvolvem primeiramente a partir de uma atitude natural diante

da via, em que as concepções do mundo são estabelecidas a partir do que é factual

e empírico. Ao adotar uma postura puramente objetivista, se afastam da perspectiva

fundamental e perdem o status de uma ciência rigorosa. A experiência no mundo da

vida é uma experiência pré-científica. É uma experiência da subjetividade. É neste

50

sentido que a experiência da subjetividade proposta pelo método fenomenológico não

pode ser confundida e tampouco reduzida ao mundo das ciências de fato. O salto

então que Husserl propõe, ainda no caminho da subjetividade, é uma experiência

para além da experiência da natureza imposta pelas ciências objetivas, como Zilles,

comenta:

Assim o lebenswelt e um apriori das ciências, cujos resultados passarão a integrar o mesmo, que traduz as condições de possibilidade de um mundo como mundo histórico, com suas tradições, com seu presente e horizonte aberto ao futuro (Zilles, 1997,p.46).

A ciência objetiva é, portanto, um aspecto do mundo da vida. Emerge

deste, repercute em sua totalidade e influência de forma a contaminar o mundo da

vida, com todo um conjunto de enunciados e pressupostos científicos. Sendo a

ciência, essa modulação do mundo da vida, carregada de cientificismo, pode se dizer,

conforme Zilles1997, que a constituição da ciência objetiva implica uma constituição

particularmente científica do mundo da vida.

Integrando sujeito-objeto na subjetividade, Husserl coloca o mundo da vida

como horizonte e suporte das ciências objetivas. Aqui sujeito-objeto, diferentemente

do modo científico e objetivo de enxergar o mundo. São estruturas conectadas e

envolvidas pelo mundo e pelo processo histórico do mundo, isto é, são englobados

pelo próprio mundo da vida. Entre o mundo da vida e o mundo das ciências objetivas

insinuam-se pressuposições que revelam uma significativa descaracterização da

realidade do mundo da vida, e de certa forma até mesmo um empobrecimento deste.

3.3 . O Mundo da vida teleológico

Ao entendermos que o mundo da vida representa uma dimensão interna

do sujeito e de certa forma do processo histórico, é que podemos também entender

o teor e os diferentes aspectos da crítica que Husserl direciona às ciências objetivas.

Primeiramente faz uma crítica ao esquecimento do sujeito e de todo o seu mundo

51

originário, depois questiona a perda da dimensão ética, que no objetivismo é

renunciada no sentido em que as ciências matemáticas e lógicas jamais tomam

posição com relação a ética. No mundo da vida, o homem retorna ao centro,

reconfigurando uma clara pretensão ao humanismo perdido com a investida da

ciência moderna e com o desvio total para o objetivismo. De certa forma, as ciências

humanas, e particularmente o psicologismo, não conseguiram dar uma resposta

significativa ao objetivismo, pelo fato de que ao trocar o objetivismo por um

subjetivismo cético alimentaram o desenvolvimento de uma filosofia ideológica, ou

seja, interpretam ideias como fatos. Não obstante, para a fenomenologia, ser o sujeito

transcendental, não significa o homem em sua totalidade. O sujeito transcendental é

apenas um modo particular do sujeito humano existir durante o seu processo de

desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e reflexivas.

É através dessa geração anônima do mundo da vida que se cristaliza e se

torna perceptível a práxis humana. O fluir de todas as coisas do mundo da vida

permite ao homem fazer uma conexão entre as várias dimensões do próprio mundo

da vida, ou seja, uma conexão entre a ciência, a ética e a própria vida, já que todas

elas são constituídas no mundo da vida.

A grande realização da ciência objetivista, na forma de uma razão

moderna, que alcançou os mais variados produtos e feitos no campo da ciência e da

tecnologia se esqueceu totalmente destas outras modalidades do mundo da vida. Se

esqueceram do mundo dos homens em si, de seu cotidiano e de suas realizações

mais simples.

Quando Husserl propõe a estrutura do mundo da vida, como um mundo

pré-científico e um mundo de onde emerge todas as estruturas das ciências e do

próprio sujeito transcendental, está na verdade apresentando à filosofia a dimensão

do mundo da vida, já que é por detrás das concretizações que se revelam toda a

atividade e criatividade intencional da subjetividade. Quando avança filosoficamente

através de uma proposta de autêntica análise da consciência, Husserl percebe que a

própria consciência é a chave para uma interpretação e compreensão da própria vida

da consciência.

52

Edmund Husserl, portanto, não construiu o arcabouço fenomenológico

para sustentar uma crítica às aplicações técnicas e aos métodos das ciências

modernas. Sua intenção, antes de tudo é questionar as opiniões subjacentes e

oriundas da atividade científica como tal e até de seu próprio desenvolvimento

enquanto ciência. É neste ponto que Husserl compreende a importância da história

enquanto dimensão do mundo da vida. Procura mostrar que toda a história do

pensamento da modernidade está profundamente vinculada a uma busca do sentido

da vida, ou seja uma teleologia, pois:

A humanidade psíquica nunca foi acabada e nunca o será. O télos espiritual da humanidade europeia, no qual está compreendido o télos particular das nações singulares e dos homens individuais, situa-se num infinito, é uma ideia infinita, para a qual tende, por assim dizer, o vir-a-ser espiritual global. A medida que, no próprio desenvolvimento, se toma consciente como télos, toma-se também meta prática da vontade (Willensziel), iniciando com isso uma nova forma de evolução, colocada sob direção de normas e ideias normativas (Husserl, 1935, p.67).

Para Husserl, o verdadeiro significado de se falar em crise das ciências

modernas, é exatamente falar de crise de sentido. A falta de fundamentação trazida

pelo objetivismo é um problema que se refere ao verdadeiro sentido desta crise para

a vida humana. A proposta objetivista afastou o mundo científico e toda a estrutura

do o pensamento científico da proposta ético-politica, que de certa forma representa

um projeto de vida. A ciência foi sumariamente separada da vida concreta. Toda a

técnica que seria uma técnica para algo ou para algum fim específico se converteu

em técnica dirigida exclusivamente para os meios e procedimentos. Esse foi o

caminho do objetivismo que levou a crise da humanidade europeia, a perda da

teleologia e como consequência mais drástica a perda do sentido da vida.

O que Husserl enxergou então, na fenomenologia, foi a possibilidade de

uma intervenção. Foi a importância de seu método como uma forma radical de

reconciliar a ciência e sua técnica com o mundo da vida por meio da teleologia. Não

há dúvida, de que no seio da humanidade ocidental, de forma originária já se fazia

presente uma concepção filosófica teleológica e de uma intencionalidade teleológica.

A perda desta teleologia intrínseca ao mundo da vida deve então ser corrigida com a

53

intervenção de um método que devolva, de certa forma, à modernidade o sentido da

vida.

Quando Husserl defende a importância e a urgência de um profundo

conhecimento da crise, é simplesmente porque enxergava na consciência da crise a

grande oportunidade para superar a ingenuidade da ciência moderna. Para Husserl,

o pensamento fenomenológico tem estreitos vínculos com a história a partir do

sentido da vida guiado pelo télos. São a história e teleologia os suportes para a

intencionalidade, pois a condição temporal e o sentido do mundo da vida refletem

tanto a liberdade das escolhas na própria subjetividade, quando o sentido da própria

vida no mundo da vida. Isto demonstra que a fenomenologia Husserliana da história

tem como base de sustentação a ideia de finalidade. Uma finalidade que ao longo

dos anos orienta a própria história da humanidade europeia e configura “o télos

espiritual da humanidade europeia, no qual está compreendido o télos particular das

nações singulares e dos homens individuais, situa-se num infinito, é uma ideia infinita,

para a qual tende, por assim dizer, o vir-a-ser espiritual global" (Husserliana VI, p.

320-321).

Assim, o sentido de uma análise histórica representa uma orientação para

fatos filosóficos e científicos da modernidade, que de uma certa forma se encontram

subjacentes no mundo da vida e ao próprio télos originário, que foi esquecido pela

ciência e pela técnica. Desta forma a recuperação e reconfiguração do sentido da

ciência originária, e radical, passa antes de qualquer coisa por um retorno da estrutura

teleológica do mundo da vida. E tal perspectiva, se aplica ainda ao sujeito

transcendental, que ao encontrar a teleologia do mundo da vida, também encontra

sua própria orientação, primeiramente em si mesmo, para a verdade de si mesmo, e

posteriormente para a própria evidência do mundo na dinâmica e tendência à

perfeição e ao infinito.

A Europa a que Husserl se refere e de certa forma relaciona com a crise

de sentido da vida e com a total ausência de um télos, não é a Europa geográfica,

espacial e territorial, trata-se de um espaço humano constituído de um modo de vida

e uma possibilidade humana. Mas quem é o humano, o homem deste espaço

Humano definido por um modo de vida peculiar? Segundo Husserl, este humano é

exatamente aquele projeto de humanidade originário da antiga Grécia. Assim, ao

dedicar sua análise ao projeto europeu de humanidade, fica claro no desenvolvimento

54

da fenomenologia que a ideia de télos, como forma de dar sentido à vida cumpre

exatamente a intenção filosófica, de buscar a plenitude universal como finalidade e

projeto último do sujeito transcendental. E é exatamente por esse motivo que Husserl

considera a Europa como um projeto de racionalidade universal, em que o espírito

europeu, pode, por assim dizer executar o exercício de uma racionalidade livre no

seio de sua comunidade, como expressão de uma filosofia universal.

O grande alcance da fenomenologia para Husserl, é que essa permitirá

não apenas à humanidade europeia, mas toda a humanidade, entrar em uma nova

etapa de sua história. Isto se dará, então quando a humanidade alcançar a etapa de

uma racionalidade construída na autoconsciência. Neste caso, a filosofia em

particular, por via dos filósofos autênticos, deverá se colocar a serviço desta virada

filosófica, que representa, da mesma forma, para Husserl, uma virada para a

humanidade.

Ao colocar a fenomenologia como carro chefe desta mudança e desta

virada, Husserl pondera que é preciso que se tenha consciência do objetivismo e de

suas estruturas arraigadas, que distanciaram o espirito europeu da subjetividade

transcendental. Para pensar na mudança, é preciso questionar os fundamentos de

uma ciência que reduziu o saber humano às coisas. Enxergar o objetivismo como

uma interpretação psicofísica do mundo, é um passo para além de vê-lo como uma

evidencia aparente. É compreender que o mesmo significa, na verdade, uma

unilateralidade ingênua. Depois disso, o salto para uma atitude subjetivista se dá com

a superação de um racionalismo ingênuo e objetivista, recuperando em última análise

o racionalismo autêntico como único meio seguro de levar o homem a uma plena

compreensão dos problemas do espirito. Esta plena compreensão se resolve

exatamente com a concepção do mundo da vida, situada em uma experiência pré-

científica. Enquanto a ciência tem como premissas um mundo já constituído, a

experiência do mundo da vida tem como ponto de partida o mundo pré-científico. E é

esta esfera do que é dado no mundo pré-científico que Husserl quer recuperar. Tal

atitude permite criar uma consciência de que o conhecimento é apenas mais uma das

dimensões do mundo da vida. Isto demonstra que o saber cientifico e objetivista não

representa a totalidade das explicações e conjecturas possíveis do mundo da vida.

São apenas aspectos e modalidade de um mundo que é muito mais amplo e

abrangente. Ao fundamentar as ciências, será possível, portanto abrir um campo de

evidências apodíticas que constituem em última análise o mundo da vida.

55

A conclusão que Husserl retira desta constatação, é que as ciências

objetivas, manifestam-se como meras elaborações de evidências originarias do

próprio mundo da vida. O conhecimento cientifico é um processo de idealização da

realidade cuja consciência se constata no mundo da vida. Em síntese a crise é na

verdade uma redução objetivista, que desvinculou a atividade cientifica do mundo

concreto do homem. A separação do homem e suas criações cotidianas, culturais,

teleológicas e emancipatórias da ciência objetiva, abriu espaço para a crise da

modernidade europeia. A filosofia não pode se dar ao luxo de admitir o formalismo

científico. É preciso superá-lo radicalmente de forma a se reaproximar dos problemas

típicos da existência humana, constituintes do mundo da vida. O efeito da

formalização e da matematização da ciência moderna não se apresenta

negativamente apenas sobre a humanidade como um todo. Mas se mostra

extremamente nociva à própria filosofia.

Segundo a fenomenologia Husserliana, é necessário destituir a ciência de

suas pretensões unificadoras que conduzem a uma redução físico-matemática do ser,

da racionalidade e da verdade, pois “...A redução do psíquico ao físico implica uma

total dependência do primeiro em relação ao segundo. Com isso aliena-se o mundo

do sujeito no mundo do objeto. O psicólogo converte-se em físico da alma (psiqué) “

(Zilles, 1997,p.52).

É nesta perspectiva e contexto que Husserl percebe o papel da

fenomenologia como forma de recuperar a instância transcendental. Sem esta atitude

radical não é possível superar a crise das ciências e da civilização moderna. Somente

o desenvolvimento de um saber capaz de interpretar a realidade e a si mesmo, com

base em vivências originárias do próprio sujeito transcendental, é que se reconhece

por sua vez a razão e a liberdade como atributos da subjetividade e que se torna

possível a emancipação humana dos processos objetivantes da modernidade.

Não há dúvida, de que a cultura europeia ocidental, representada pelo

espirito europeu, realiza-se através da teleologia. É exatamente na convergência

entre o sentido, o télos histórico, e a razão que dão consistência à essência humana

e suas realizações pessoais. E essa união e reunião continua sendo transpassada

pela intencionalidade que gera o sentido da vida. Aqui, não é a metodologia e

tampouco o universo de idealidades que conferem significação e sentido às ciências

modernas, mas a atitude pré-científica do mundo da vida enquanto suporte para as

56

atividades práticas e teóricas, pois é exatamente no mundo da vida do sujeito

transcendental o local onde este poderá encontrar sentido e finalidade ao agir e ser.

Enquanto o homem não alcançar o sentido para suas ações e para a sua

própria existência vai se distanciar ainda mais da humanidade verdadeira e das práxis

humanas. É no princípio teleológico que a humanidade se realiza enquanto

civilização. E para Husserl a garantia de tal realização, só pode ser encontrada no

princípio que estabelece Deus. Tanto na prática quanto na teoria, a orientação

teleológica desenvolvida pelo homem se concretiza quando este toma consciência de

sua potencialidade ou finalidade racional. Neste caso, Deus é o fundamento desta

finalidade, que como um conceito-limite, se converte no fundamento do mundo da

vida. Ao expandir a redução transcendental efetua-se um passo significativo para o

absoluto incondicionado. De uma certa forma, Husserl já havia se referido a Deus,

como uma consequência da atividade constituinte e doadora da consciência. É neste

caráter transcendental que a ideia de Deus encontra espaço na fenomenologia não

apenas como conceito-limite, e tampouco como um princípio regulador, mais do que

isto ainda, Deus é para a fenomenologia uma “substância absoluta” que só pode ser

encontrada como finalidade última da redução transcendental. Não se trata de

nenhuma concepção mística ou metafisica. Deus é neste sentido tratado em uma

acepção puramente ontológica e real. Uma orientação ao infinito, que comunica

evidências puras e estabelece critérios de moralidade como a voz de uma consciência

pura. Como a voz de Deus.

É nesta concepção de Deus na filosofia Husserliana que reside o princípio

teleológico da racionalidade de todo o espírito humano em seu percurso histórico.

Para Husserl, a questão de Deus agora jaz no domínio da cosmovisão, pois se como

filósofo se retrai, pessoalmente como sujeito transcendental, se preocupa com a

realidade quase factual de experimentar Deus através do amor, que se irradia em sua

vida, e de certa forma também opera no destino da humanidade.

57

CONCLUSÃO

Ao longo do primeiro capítulo o que se percebe é que ao apresentar a crise

das ciências da modernidade europeia, Husserl está preparando o caminho para se

opor a esta crise. Estruturando um modelo de filosofia científica e radical, a partir de

evidências puras, estabelece os princípios do método fenomenológico. Nesta

perspectiva discute fundamentalmente a dupla oposição objetivismo naturalista e

subjetivismo transcendental. Aqui objetivismo naturalista é entendido como uma

proposta ingênua frente ao subjetivismo, pois se baseia em um conjunto de

pressuposições e rótulos estabelecidos por uma ciência que carece de fundamentos.

Tais fundamentos só podem ser estabelecidos, via de regra, por meio de uma ciência

vinculada à subjetividade e a uma visão de essências infinitas e universais. A

naturalização da vida e do espirito originário europeu significa a consolidação do

conhecimento baseado em uma perspectiva psicofísica e lógico-matemática do

mundo.

No segundo capítulo, através de uma discussão em torno da teoria do

conhecimento Husserliana, em Meditações Cartesianas acompanhamos a

fundamentação de uma ciência rigorosa e da experiência transcendental baseada em

uma evidência vivida, ou seja uma evidência apodítica e universal.

De certa forma, a teoria do conhecimento em Husserl, entende que

concepção do senso comum é chamada de atitude natural. Em oposição a esta

perspectiva ingênua de conhecimento baseada no factual, Husserl opõe a atitude

fenomenológica, segundo a qual o mundo é simplesmente o que ele é para a

consciência, ou seja, fenômeno. Verifica-se então que se, por um lado, a atitude

fenomenológica não nega o mundo, apenas não se preocupa com respostas

relacionadas à realidade ou não do mundo.

Sendo epoqué, a redução fenomenológica ou transcendental que

significava "suspensão do julgamento" na filosofia grega. Para isso, deve se levar em

conta que o que está sendo referido no conceito da redução fenomenológica é o

método básico da investigação fenomenológica, tal como Husserl o desenvolveu.

Assim, podemos perceber que Husserl desenvolveu dois modos de redução que são

58

o ontológico e o cartesiano. Na redução fenomenológica, suspendemos nossas

crenças na tradição e nas ciências, com tudo que possam ter de importante, que são

colocados entre parêntesis, juntamente com quaisquer concepções, e também todas

as crenças acerca da existência externa dos objetos da consciência. É importante

destacar que o mundo natural não fica negado, nem se duvida de sua existência.

Destacamos também que a redução fenomenológica não se compara nem com a

dúvida cartesiana, nem com a negação da realidade.

Finalmente, no terceiro capitulo, tendo a crise estruturada como crise de

fundamentos nas ciências modernas, E. Husserl apresenta a fenomenologia como

uma resposta a esta crise. Assim, no segundo capítulo discorremos sobre a teoria do

conhecimento de Husserl, fundamentada primeiramente a partir de um rigoroso

caráter apodítico, para depois avançar na construção de uma filosofia transcendental

embrionária do pensamento cartesiano, e que com o mundo da vida pré-científico dá

sustentação ao subjetivismo transcendental em resposta direta ao objetivismo

naturalista.

Ao assumir o mundo da vida como suporte tanto das ciências modernas,

quanto do próprio espírito europeu originário, revela definitivamente a ingenuidade do

objetivismo frente a amplitude filosófica do subjetivismo transcendental. Ao construir

as bases de sua filosofia sobre o conceito do mundo da vida, inicia uma resposta

radical a esta crise de fundamentos. Aponta não apenas o aspecto originário da crise,

mas descreve o processo histórico de formação do espírito europeu, que envolve a

cultura, a ética e a vida cotidiana, em toda a sua simplicidade e exuberância. Ao

apresentar o mundo da vida como o suporte para todas as experiências da

humanidade em mundo pré-científico abre caminho para o subjetivismo

transcendental como autêntica resposta ao objetivismo naturalista, que afastou a

ciência e o pensamento científico do cotidiano e do fazer humano propriamente dito.

Descreve a fenomenologia como o recurso necessário, onde por meio do esforço da

própria filosofia, será possível aproximar o espirito humano da humanidade europeia

ao mundo da vida.

Finalmente, apontamos o conceito teleológico de Husserl, como elemento

unificador do espírito humano na busca de uma finalidade e um sentido para a vida

com o mundo da vida em sí. É no mundo da vida que o sujeito transcendental e a

59

própria identidade coletiva da Europa moderna podem agora, despidos da

ingenuidade objetivista, se aproximarem da plenitude do infinito, que tem, em última

instância Deus como finalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao percorrer a trajetória que E. Husserl faz desde a concepção das

evidências apodíticas como fundamento de uma filosofia radical até a sua visão do

munda da vida e filosofia acerca de Deus, não só pudemos ter acesso à filosofia

transcendental, como também compreender o esforço do pensamento filosófico

contemporâneo em torno de um problema.

Tal esforço se concentra na condução da filosofia e do pensamento

filosófico em direção ao ego transcendental, pois Husserl entende a filosofia

transcendental como um método de realizar a ideia-fim universal, e de provocar o

reencontro do verdadeiro espirito humano e europeu, originário e pré-científico com o

mundo da vida.

Quanto ataca o dualismo característico do pensamento cartesiano,

estabelece a intencionalidade de forma que a relação sujeito-objeto seja vista,

finalmente como um entrelaçamento em uma mesma dimensão. A consciência aqui,

é a consciência de algo. Portanto articula o problema do dualismo dentro de uma

perspectiva puramente fenomenológica, ou seja, onde as vivências e a constituição

dos objetos são dados na consciência, em uma atitude subjetivamente

transcendental.

Quando estabelece essa linha de construção, fica evidente que a relação

clássica de sujeito-objeto perde o sentido e dá lugar à subjetividade que não admite

mais o dualismo. Aqui o pensamento de Husserl dá um salto em direção a uma plena

compressão da subjetividade transcendental e do próprio mundo da vida como

suporte para uma filosofia radical diante da crise da humanidade europeia.

Husserl não apenas faz um diagnóstico criterioso da crise, que segundo

ele se trata de uma crise de fundamentos das ciências modernas, mas também

60

desenvolve uma proposta radical e original no sentido de pensar a fenomenologia

como um método em busca de uma resposta à crise. Tal proposta, surge como um

modelo de superação que antes de tudo, consiga restaurar a confiança naquele

projeto teórico e político originário.

Com a fenomenologia do mundo da vida pretende resgatar do mundo

formalizado do objetivismo científico o mundo pré-científico das experiências

originarias. Quando entende o afastamento das ciências modernas, e neste caso as

ciências da matemática e a lógica por um lado, e as ciências humanas por outro, do

seu caminho originário e da composição histórica do espirito europeu originário,

Husserl vê no método fenomenológico o embrião de uma ciência fundante.

Neste sentido a proposta de um subjetivismo transcendental em oposição

ao objetivismo naturalista, significa antes de tudo a busca de uma filosofia primeira,

que afinal de contas possa servir de parâmetro para todas as outras ciências. Ao

fundar os parâmetros para as outras ciências, Husserl entende que automaticamente

estará restituindo o espirito europeu, que pensa a filosofia como um sentido para a

vida e para o encontro definitivo com o télos, finalidade última do subjetivismo

transcendental.

É essa subjetividade transcendental a matriz originária de toda a

intencionalidade e sentido das criações, possibilidades do sujeito transcendental.

Nada pode emergir no seio deste espírito humano que não tenha como suporte o

mundo da vida. O objetivismo característico das ciências modernas é na verdade,

segundo Husserl, apenas uma modalidade do mundo da vida e não a totalidade

objetiva do mundo. O afastamento do mundo cientifico e técnico de sua

fundamentação pré-científica é o que criou e deu suporte à crise que a fenomenologia

tem o dever de elucidar.

O esclarecimento em torno da crise, leva Husserl a buscar compreender o

fenômeno Europa em si, a saber, o núcleo de sua identidade em sua perspectiva

histórica e a partir de uma atitude puramente pré-científica. O entendimento da crise,

e toda a sua anormalidade leva exatamente ao télos do mundo da vida e da razão

universal como pressuposto para uma nova humanidade. Tal crise então, é na

verdade um completo fracasso da racionalidade como criação da modernidade.

61

Quando Husserl, ciente do problema da modernidade, compartilha a crise

com companheiros de sua época, busca antes de tudo, esclarecer ao contexto

filosófico o quanto é urgente uma virada filosófica, pois para ele:

"O maior perigo que ameaça a Europa é o cansaço. Lutemos contra este perigo como bons europeus com aquela valentia que não se rende nem ante uma luta infinita. Então ressuscitará do incêndio destruidor da incredulidade, do fogo no qual se consome toda a esperança na missão humana do Ocidente, das cinzas do enorme cansaço, a fênix de uma nova interioridade de vida e de espiritualização, como garantia de um futuro humano grande e duradouro pois só o espirito é imortal" (HUSSERL, 1935, p.85).

.

62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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