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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO O DIREITO DISCIPLINAR DA FUNÇÃO PÚBLICA Volume I Ana Fernanda Neves Dissertação de Doutoramento Ciências Jurídico-Políticas Docente / Orientador: Professor Doutor Paulo Otero Lisboa 2007

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE DIREITO

    O DIREITO DISCIPLINAR DA FUNO PBLICA

    Volume I

    Ana Fernanda Neves

    Dissertao de Doutoramento Cincias Jurdico-Polticas

    Docente / Orientador: Professor Doutor Paulo Otero

    Lisboa

    2007

  • O DIREITO DISCIPLINAR

    DA FUNO PBLICA

    Volume I

  • Agradecimentos

    Agradeo ao Senhor Professor Doutor Paulo Otero a disponibilidade e a inestimvel orientao e preciosa ajuda com que pude contar na elaborao da presente dissertao. Agradeo aos meus irmos Lena e Filipe toda a dedicao e a inexcedvel ajuda que me deram na parte mais difcil do trabalho. Agradeo ainda ao Jorge pelo que ensinou. Mais agradeo Maria Elisa Morgado todo o apoio.

  • ABREVIATURAS AAFDL Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa Ac. Acrdo AD Acrdos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo AJDA Actualit juridique - Droit administratif ATC Auto del Tribunal Constitucional BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra BFDUL Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa BMJ Boletim do Ministrio da Justia Bul. Crim. Bulletin criminel de la Cour de Cassation BOE Boletn Oficial del Estado BVerfGE Entscheidungen des Bundesverfassungserichts Cass. crim. Chambre criminelle de la cour de cassation CC Cdigo Civil CE Conseil dtat CEDH Conveno Europeia para a proteco dos Direitos do Homem e Liberdades Fundadamentais CJA Cadernos de Justia Administrativa CPA Cdigo de Procedimento Administrativo CPC Cdigo de Processo Civil CPP Cdigo de Processo Penal CPTA Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos CRP Constituio da Repblica Portuguesa DAC Dirio da Assembleia Constituinte DAR Dirio da Assembleia da Repblica DJAP Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica d.p.r. Decreto del Presidente della Repubblica DR Dirio da Repblica ED Estatuto Disciplinar Gazz. Uff Gazzetta Ufficiale della Republlica Italiana IGAI Inspeco-Geral da Administrao Interna INA Instituto Nacional de Administrao INCM Imprensa Nacional Casa da Moeda LAL Lei das Autarquias Locais LAU Lei da Autonomia Universitria PGR Procuradoria-Geral da Repblica PL Proposta de Lei RC Reviso Constitucional RD/PSP Regulamento Disciplinar da Polcia de Seguran Pblica RLJ Revista de Legislao e de Jurisprudncia RMP Revista do Ministrio Pblico STA Supremo Tribunal Administrativo RTDP Rivista trimestrale di diritto pubblico STJ Supremo Tribunal de Justia STC Sentencia del Tribunal Constitucional espaol STS Sentencia del Tribunal Supremo TAR Tribunal amministrativo regionale TC Tribunal Constitucional TCA Tribunal Central Administrativo TCE Tratado da Comunidade Europeia TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias

  • NDICE GERAL

    Volume I

    Introduo

    1 Nota prvia

    2 Delimitao do objecto

    3 Metodologia e objectivos

    4 Plano de trabalho

    Captulo I O conceito de Direito disciplinar da funo pblica

    Seco I Delimitao negativa

    Seco II O Direito disciplinar da funo pblica

    Volume II

    Captulo II O exerccio do poder disciplinar

    Seco I O poder disciplinar

    Seco II Os limites do poder disciplinar

    Seco III O procedimento disciplinar

    Seco IV As sanes disciplinares

    Seco V As garantias de controlo

    Captulo III A natureza da actividade disciplinar do empregador

    pblico e o princpio da separao de poderes

    Seco I O princpio da separao de poderes

    Seco II A natureza jurdica da actividade disciplinar

  • Introduo 7 ________________________________________________________________________________________

    Introduo

    1 Nota prvia

    2 Delimitao do objecto

    3 Metodologia e objectivos

    4 Plano de trabalho

  • 8 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    Introduo

    I Nota prvia

    1. A relao jurdica de emprego pblico1 um dos domnios do Direito Administrativo

    menos estudado enquanto subsistema2. Talvez se deva dizer igualmente pouco

    sedimentado. A tal no alheia a sua juventude cronolgica: a constituio de uma

    burocracia profissional contempornea (e contribuinte) da formao do Estado

    moderno3, um dos seus fundamentos4; , contudo, no sculo XIX que se entende que o

    emprego pblico nasce como instituto jurdico5. Antes, os que trabalhavam nos ofcios

    pblicos eram prestadores de servio; est[avam] ligados por relaes de direito privado

    comum ou de direito privado especial mandato, representao ou delegao coroa,

    ou ao ofcio (quando este objecto de concesso) ou directamente ao titular do mesmo,

    1. A locuo relao jurdica de emprego pblico tem hoje maiores virtualidades tcnicas do que a expresso funo pblica. Por um lado, porque esta ltima frequentemente conotada como abrangendo apenas parte das relaes de trabalho na Administrao Pblica; e, por outro lado, porque a percepo legislativa, jurisprudencial e dogmtica , como deve ser, a percepo laboral, a do estudo das relaes jurdicas de trabalho estabelecidas com uma pessoa colectiva pblica e no o da relao de um sujeito, que juridicamente se dilui, ao servio de um superior hierrquico ou da comunidade abstractamente considerada. Assim, sem abandonar a locuo funo pblica, muito enraizada nos discursos jurdicos e no jurdicos vrios, a nossa preferncia vai para a locuo relao jurdica de emprego pblico.

    2. Entre ns, no entanto, at ao Manual de Direito Administrativo (cuja 1. edio de 1937), a matria dos agentes e funcionrios foi sempre () uma das mais tratadas pelos administrativistas no conjunto das matrias objecto da ateno do Direito Administrativo. Cfr. Freitas do Amaral, Marcello Caetano: o grande construtor do Direito Administrativo portugus, in Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano, No Centenrio do seu Nascimento, Volume I, FDUL, Coimbra Editora, Novembro de 2006, p. 329.

    3. Diz Max Weber no s os germens da formao dos Estados modernos na Idade Mdia surgiram em todas as partes com o desenvolvimento das organizaes burocrticas, mas tambm foram as formas polticas burocraticamente mais desenvolvidas as que, finalmente, desagregaram aqueles conglomerados essencialmente baseados num estado de equilbrio instvel (Economa Y Sociedad, IV, Fondo de Cultura Econmica, Mxico, p. 99). Como refere Garca Pelayo, o nascimento do Estado Moderno, ou do Estado sem adjectivao, e da burocracia ocidental so termos correlativos (apud Funcin Publica y Poder Disciplinario del Estado, Federico Castillo Blanco, Cemci (Centro de Estudios Municipales Y de Coordinacin Interprovincial), editorial Civitas, 1992, p. 161). Ainda, Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revoluo, Fragmentos, 1989, p. 33, 3, p. 42, 3, p. 47, 4, p. 48, 1 e 3, p. 72, 6, p. 93, Brigitte Basdevant-Gaudemet, Puissance publique et Fonction publique chez Charles Loyseau, Revue historique de droit franais et tranger, n. 3, juillet-septembre 2002, pp.285 e 286, e Eduardo Sebastio Vaz de Oliveira, A Funo Pblica Portuguesa. Estatuto Novo ou Nova Poltica?, Cadernos de Cincia e Tcnica Fiscal, Centro de Estudos da Direco-Geral das Contribuies e Impostos, Ministrio das Finanas, Lisboa, 1996, Separata da revista n. 122, 1969, p. 102 (referindo-se juventude do direito da funo pblica).

    4. Mencionando o exemplo da Repblica de Veneza, Ivone Cacciavillani assinala que se assentava numa eficientssima burocracia, o verdadeiro fundamento do assetto estatal. Cfr. Il Diritto Disciplinare, Cedam, 1994, Padova, p. 62, nota 3.

  • Introduo 9 ________________________________________________________________________________________

    caso em que, efectiva e juridicamente, a relao se estabelece entre privados6. Tirando

    este ltimo caso, na medida em que se reconhece a existncia de trabalhadores ao servio

    de estruturas pblicas, apesar da sua conformao privatstica, esboa-se a existncia de

    emprego pblico. No , no entanto, ainda o emprego pblico (a individualidade) das

    coordenadas com que se tece nos Estados demo-representativos, ou seja, as da insero

    orgnica/organizacional, imparcialidade, continuidade, estabilidade, competncia tcnica,

    da igualdade, designadamente, no acesso7.

    A juventude tambm conceptual8. Pelo continuum do espraiado do seu corpus

    (normativo); pela prolixa e avulsa produo normativa, os vrios ttulos ou formas de

    conformao jurdica das relaes de trabalho na Administrao Pblica e o nmero ainda

    maior de regimes jurdicos correspondentes. E pela manifestao e chamamento

    assistmico, pelos operadores jurdicos, ao terreno do emprego pblico, de normas e

    institutos, principalmente, do Direito civil, do Direito penal e do Direito do trabalho.

    Sob influncia destes, da sua filiao histrica, e num contexto de atraco do Direito

    administrativo pelo Direito privado, e tambm de parificao do Direito administrativo9

    5. Massimo Severo Giannini, Impiego Pubblico, Enciclopedia del Diritto, XX, Giuffr Editore, p.

    293. 6. Massimo Severo Giannini, Impiego Pubblico, Enciclopedia del Diritto, XX, Giuffr Editore, p.

    294, Miguel Snchez Morn, El rgimen juridico del personal al servicio de la Administracin Pblica (Rgimen estatutario y laboralizacin), in Derecho Pblico e Derecho Privado en la Actuacin de la Administracin Pblica, Institut dEstudis Autonomics, Marcial Pons, Madrid, 1999, p. 71, Le Droit Public de lEmpire Allemand, Bibliothque Internationale de Droit Public, Paris, V. Giand & Brire, 1901, cit., pp. 114 e 115, e Ordenaes do Senhor Rei D. Manuel, Livro II, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, Ano de 1797, edio da Fundao Calouste Gulbenkian, reproduo fac-simile; v. g., pp. 120 e 121.

    7. Massimo Severo Giannini, Impiego Pubblico, cit., p. 295. Permanece actual a referncia, em 1955, de Vtor Manuel Lopes Dias (em anotao ao artigo 1. do

    Decreto-Lei n. 32.659, de 9 de Fevereiro de 1943 (que aprovou o estatuto disciplinar dos funcionrios civis do Estado) ao conceito de direito disciplinar [como um conceito que] est ainda em elaborao na doutrina e jurisprudncia, que atravs de uma actividade constante caminham para a sua determinao (Regime Disciplinar dos Funcionrios Civis e Administrativos, edio do autor, depositrio Coimbra Editora, Lda., p. 7).

    8. A lentido da sua maturao subsiste da prpria cincia do direito administrativo em Portugal. Sobre a evoluo deste, ver Maria da Glria Ferreira Dias Garcia, Da Justia Administrativa, Sua origem e evoluo, Universidade Catlica Portuguesa, Lisboa, 1994, pp. 581 a 588.

    9. As relaes entre administrao e administrados so desde ento concebidas sobre um modelo bem menos inigualitrio, numerosas prerrogativas da administrao so ento contestadas e progressivamente limitadas, os administrados transformam-se em cidados - Fabrice Melleray, Lexorbitance du droit administratif en question(s), in AJDA, de 3 de Novembro de 2003, p. 1963 (tambm, p. 1964). Ver, tambm, Regard sur les volutions du droit administratif italien. A propos du Trait de droit administratif dirig par

  • 10 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    e, noutra feita, marcado por preocupaes garantsticas, duas concepes se fazem

    presentes no emprego pblico. Fundamentalmente, so construdas duas identidades ou

    continuidades: a identidade do gnero relao jurdica de emprego e, no que respeita

    punio disciplinar, a identidade com o complexo sancionatrio jurdico-penal.

    A primeira conceptualiza (privatisticamente) a relao de emprego sem espcie ou

    especificidade: conotando a relao jurdica de emprego pblico como uma relao jurdica

    estatutria estrita, faz a desconstruo desta, para pr de p ou afirmar a existncia apenas

    do gnero relao jurdica de trabalho, dando-lhe, porm, uma matriz privada e no a

    qualidade de um modelo jurdico que toma feitio (ou no) em objectos (em

    natureza, postos ou constitudos10) distintos11.

    A segunda pensa o universo disciplinar da relao jurdica de emprego pblico como

    participando da identidade de natureza com o universo penal e, portanto, com referncia

    aos princpios e s garantias materiais e processuais do Direito Penal e Processual Penal12.

    2. Etimologicamente derivado do latim discere (aprender; da o discipulus), o vocbulo

    disciplina assume os significados gerais de complexo de regras ordenadoras de certo

    objecto de conhecimento ou actividade, o de habitus ordenador, de direco do

    comportamento13 e o de conjunto de leis ou ordens que regem certas colectividades14 e

    a relao de um indivduo nas suas relaes com outros indivduos15.

    Sabino Cassese, de Delphine Costa, AJDA, n. 37/2004, de 1 de Novembro de 2004, p. 2031.

    10. Os objectos do Direito mais do que dados parecem ser constitudos ou postos pela cultura, pensamento e poltica jurdicas. Sobre o problema no que respeita formao dos conceitos da hiptese legal, ver Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, traduo de Baptista Machado, do original alemo Einfhrung in das Juristische Denken, Lisboa, s/data, p. 29.

    11. Sobre as relaes entre o Direito administrativo e o Direito privado e os arqutipos jurdicos, digamos, neutros, ver Afonso Queir, Lies de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp. 184 a 191, maxime, pp. 189 e 190.

    12. No existe uma natureza distinta, mas a interveno de um sujeito especfico, a Administrao, para modelar a aplicao dos princpios penais ao Direito Administrativo sancionador (p. 47), pelo que no h nenhuma possibilidade de tentar justificar uns pressupostos princpios substantivos do mesmo (p.45) - Garca de Enterra. Cfr. Funcin Publica y Poder Disciplinario del Estado, Federico Castillo Blanco, Cemci; ver tambm Adolfo Merkl, Teora General del Derecho Administrativo, Editorial Comares, S. L., 2004, Granada, traduo espanhola do original de 1927, edio ao cuidado de Jos Luis Monereo Prez, pp. 348, 349 e 351. Embora no reconhea uma diferena de natureza, admite que a sua formulao legal diferenciada se justifique atendendo aos diversos fins prosseguidos e escolha legislativa por vias processuais distintas (p. 359).

    13. Guido Landi, Disciplina (Diritto Pubblico), in Enciclopedia del Diritto, XII, Giuffr Editore, p. 17.

  • Introduo 11 ________________________________________________________________________________________

    A disciplina sempre relacional e, as mais das vezes, organizacional ou grupal. A

    intersubjectividade resulta do facto de, de um lado, haver um sujeito sobre quem impende

    respeit-la e, do outro, existir um sujeito que pretende a respectiva observncia, sejam

    autnomos ou heternomos os interesses desse pretender. A dimenso relacional aparece,

    frequentemente, enquadrada pela dimenso organizacional: uma exigncia para a

    harmonia e o adequado funcionamento de qualquer grupo minimamente organizado16,

    delimita ou define a deverosidade que liga uma pessoa fsica a uma instituio, a qual

    no implica necessariamente uma subordinao jurdica, sequer hierrquica, para com a

    instituio ou pessoa que juridicamente a personaliza17. Mas pressupe, como se verifica,

    uma relao jurdica que assessoreia e garante e/ou uma relao institucional (a insero

    de uma pessoa fsica numa instituio)18. um instrumento de garantia das suas

    finalidades (ambas as relaes).

    Apenas mediatamente pode relevar para a explicao do seu fundamento e finalidade o

    ordenado funcionamento da organizao19. que a relao disciplinar pode no ter um

    enquadramento organizacional e, mesmo quando este existe, no consuma a razo de ser da

    disciplina. A prov-lo est o facto de a mesma no aparecer com a mesma fcies (ou

    incolor) nos mltiplos universos onde se faz presente.

    Quando se fala de disciplina relativamente relao jurdica de emprego pblico um duplo

    aspecto delimitador se faz presente: o aspecto relacional e o aspecto funcional-institucional.

    14. Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa, Coordenao de Jos Pedro Machado, Vol. IV, Amigos do

    Livro Editores, 1981, p. 268. Compreende a ordenao... de todas as situaes... em que s de uma verdadeira e rigorosa ordem

    [pode]... resultar a satisfao ou a realizao de fins colectivos - Vtor Antnio Duarte Faveiro, Esquema de uma teoria geral da infraco disciplinar, in Cincia e Tcnica Fiscal, Boletim da Direco-Geral das Contribuies e Impostos, Srie A, 2. Semestre de 1961, n.s 31 a 36, p. 854.

    15. Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos (Fundamentos y regulacin sustantiva), editorial Lex Nova, Valladolid, 1999, p. 27.

    16. Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., p. 27. 17. Salvatore Terranova, Il Rapporto di Pubblico Impiego, Milano - Dott. A. Giuffr Editore, 1991, p.

    199, e Jean-Michel de Forges, Droit de la fonction publique, P.U.F., 1986, p. 167 (: "Toda a instituio, publica, como privada, submete os seus membros a um regime disciplinar.").

    18. Salvatore Terranova, Il Rapporto di Pubblico Impiego, cit., pp. 201 e 202. 19. Em sentido diverso se pronuncia Beln Marina Jalvo, para quem o bem jurdico protegido pela

    disciplina o ordenado funcionamento da organizao e a pressuposta coeso interna, embora reconhea que em ltima instncia sirva para alcanar os fins assinalados organizao - Beln Marina Jalvo, El Rgimen Disciplinario de los Funcionarios Pblicos, cit., pp. 28 e 29.

  • 12 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    Por um lado, a disciplina vai referida a uma relao intersubjectiva, entre um sujeito que

    pretende a observncia de uma regra e um outro que est obrigado a respeit-la: ... existe

    uma situao jurdica activa, o poder disciplinar, e uma situao jurdica passiva, a sujeio

    ou responsabilidade disciplinar; o fenmeno disciplinar interessa e analisa-se enquanto

    relao disciplinar, entre sujeitos activos e passivos da disciplina20.

    O poder disciplinar o poder de actuar a disciplina. O sujeito activo exerce um poder

    funcional e no um direito: age no em razo de um interesse prprio, mas para um

    interesse pblico cuja prossecuo lhe foi conferida por uma norma jurdica21. O interesse

    pblico o interesse imediato da garantia da operacionalidade da relao jurdica de

    emprego pblico: a relao jurdica disciplinar subjaz quela em potncia, como seu

    garante, qual alter ego, na procura de uma maior racionalidade da actividade

    administrativa e do reforo dos direitos fundamentais, seja dos trabalhadores pblicos, seja

    dos prprios cidados administrados (interesse pblico mediato e precpuo).

    3. A disciplina prpria de instituies como, por exemplo, as foras armadas, as prises, a

    escola. Surge aqui como a diferena especfica da relao jurdico-administrativa entre a

    instituio e o particular.

    A disciplina pode tambm surgir sob a forma de auto-regulao do exerccio de certas

    profisses. Temos aqui o modelo das associaes pblicas e, em particular, das ordens

    profissionais.

    A disciplina surge tambm como forma de regulao estadual de certos sectores ou

    esferas da vida econmico e social22. o caso da regulao do mercado de valores

    mobilirios, da concorrncia, do mercado de energia elctrica, dos audiovisuais23.

    20. Guido Landi, Disciplina (Diritto Pubblico), in Enciclopedia del Diritto, XII, Giuffr Editore, p. 18. 21. Guido Landi, Disciplina (Diritto Pubblico), cit., p. 20. 22. A palavra disciplina, aplicada referida regulao estadual, ainda que assente no princpio da

    legitimidade tcnica ou meritocrtica, de esferas da vida social e econmica, aparece aqui num sentido imprprio, porque, em Estado de Direito, no h que impor uma disciplina numa actividade de raiz de no pblica. A regulao tem que ter um valor ou ttulo jurdico-constitucional preponderante para intervir em reas que so reas de liberdade.

    23. Jolle Pralus-Dupuy, Les tendances contemporaines de la rpression disciplinaire, Revue de Science Criminelle et Droit Pnal Compar, n. 3, Jul.-Sept., 2000, pp. 545 a 550. A extenso do domnio da represso disciplinar consequenciou a aplicao de sanes a pessoas colectivas, o acrscimo de sanes pecunirias e da interveno pblica na regulao do exerccio do poder disciplinar (idem, pp. 545 a 552).

    A multiplicao das autoridades administrativas independentes fez ressurgir, em Frana, o problema da

  • Introduo 13 ________________________________________________________________________________________

    De todo o modo, sobre o poder disciplinar (da funo pblica) no se pode dizer o mesmo

    que sobre o poder sancionatrio administrativo em geral se tem afirmado, isto , que

    cresceu de forma exorbitante, e que uma das actividades em que parece mais empenhada a

    Administrao em sancionar os cidados (Parada Vzquez)24. Convoco antes, no tocante

    funo pblica, Franois Gazier, quando escreve que a responsabilidade disciplinar tende

    a ser mais terica do que prtica e a manifestar-se sob formas no nomeadas: "os

    funcionrios no so demandados pela via disciplinar, mas todavia tenta-se por vezes puni-

    los de uma maneira mais obscura, sem lhes dizer e sem lhes permitir que se defendam, o

    que muito mau: aquando de uma promoo, de uma mutao [ou situao de mobilidade],

    de uma escolha feita subsequentemente, aplica-se uma espcie de sano disciplinar

    disfarada e sem quaisquer garantias"25. Na verdade, por um lado, h uma espcie de

    distino entre rgos administrativos e rgos jurisdicionais. Concretamente, o facto de desempenharem, por vezes, funes de regulao de litgios administrativos e/ou de controlo da Administrao, colocou-as sob a alada da aplicao em certas circunstncias do artigo 6. da Conveno Europeia de Proteco dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais - Jean-Bernard Auby, La bataille de San Romano, LActualit juridique - Droit Administratif, n. 11/2001, de 20 de Novembro de 2001, pp. 919 e 920.

    As entidades administrativas independentes so aqui instituies administrativas reguladoras de certos sectores de actividade, em que no est em causa um corpo de profissionais e a coeso do prosseguimento de fins comuns, mas a coeso da complementaridade de diferentes corpos profissionais considerados pelo sector de actividade e o enquadramento por padres de actuao mais ou menos funcionais.

    24. Apud Federico A. Castillo Blanco, Funcin Publica y Poder Disciplinario del Estado, Cemci (Centro de Estudios Municipales Y de Coordinacin Interprovincial), editorial Civitas, 1992, p. 23.

    Vicente Gimeno Sendra afirma ter crescido de forma exorbitante o poder sancionatrio da Administrao, em qualidade, em resultado da transformao em ilcitos administrativos de certos crimes, e em quantidade, pela maior gravidade de certas sanes administrativas face s sanes penais. Ver Prlogo obra de Jos Garber Llobregat El Procedimiento administrativo sancionador, comentarios al ttulo ix de la Ley 30/1992 y al Reglamento del Procedimiento para el ejercicio de la potestad sancionadora de la Administracin (Real Decreto 1398/1993), 2. Edicin, Tirant lo Blanch, Valencia, 1996, p. 55.

    Cfr. Mireille Delmas-Marty e Catherine Teitgen-Colly, Punir Sans Juger? De la rpression administrative au droit administratif pnal, Ed. Economica, 1992, p. 154 (Tendo reduplicado nos anos 80 por intermdio das AAI, a represso administrativa ultrapassou o campo da represso disciplinar, deixou o sancionamento disciplinar e fiscal que constituram os seus terrenos de eleio; tornou-se uma forma sancionatria por excelncia em matria econmica) e Paule Quilichini, Rguler nest pas juger. Rflexions sur la nature du pouvoir de sanction des autorits de rgulation conomique, AJDA, n. 20/2004, 24 Mai, p. 1060 ("la fonction rpressive de ladministration a t renouvel avec lmergence dautorits de rgulation dotes progressivement dun pouvoir de sanction. ).

    25. Franois Gazier, La Fonction Publique dans le Monde, Bibliothque de lInstitut International dAdministration Publique, Editions Cujas, 1972, p. 170.

    uma realidade que vrios autores destacam e perceptvel, como dizem Giustina Noviello e Vito Tensore (La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico Impiego Privatizzato, Giuffr Edittore, Milano, 2002, p. XVI), a quem tenha tido um mnimo de experincia de trabalho na administrao pblica.

    Alejandro Nieto destaca-o, desde logo, nas pginas iniciais do seu Problemas capitales del derecho disciplinario a inoperncia do Direito Disciplinar, na dupla vertente garantstica e funcional - in Revista de

  • 14 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    anomia disciplinar ou inibio do exerccio jurdico da autoridade26. Podem-no explicar,

    designadamente, a ausncia de um interesse directo dos titulares dos rgos que corporizam

    o empregador pblico, no exacto e exigvel cumprimento dos deveres e obrigaes da

    relao de emprego; o facto de a Administrao agir, em regra, em situao de no

    concorrncia com as entidades privadas, assim como as respectivas entidades pblicas entre

    si, com desconsiderao ou menor ateno aos resultados27; a proximidade entre os agentes

    da aco disciplinar e o trabalhador (por vezes, o colega)28, o formalismo procedimental

    e a complexidade tcnica do Direito disciplinar, a que se justa a preparao no suficiente

    daqueles que o aplicam29.

    Administracin Publica, n. 63, Septiembre-Diciembre, pp. 39 a 43. Miguel Snchez Morn tambm observa que sempre foi (e continua a ser) difcil sancionar o funcionrio incumpridor, salvo se intercederem graves razes de ordem pblica ou de natureza poltica ou em funo de animosidades pessoais - Prlogo ao El Rgimen Disciplinario de los Funcionrios Pblicos, de Beln Marina Jalvo, cit., p. 16. J sobre a autonomia disciplinar universitria, Rute Leito, refere-se ao seu estiolamento. Cfr. Rute Leito, A autonomia disciplinar das Universidades: Uma autonomia a descobrir, uma avaliao a fazer (Estudo sobre a consolidao da legislao do ensino superior: avaliao e reviso da legislao em vigor, de 2003), Legislao, Cadernos de Cincia de Legislao, n. 37, Abril-Junho, 2004, INA, p. 32.

    Jean-Michel de Forges diz que o receio da sano existe pouco na funo pblica e [que] os chefes hesitam em iniciar procedimentos sempre longos e complexos. Cfr. Droit de la fonction publique, P.U.F., 1986, p. 167.

    26. Como observa Jean Choussat no normal que as sanes disciplinares mais elementares - a censura e a advertncia - sejam raramente aplicadas, e tanto mais raras quando se considera a insatisfao geral e, em particular do pessoal dirigente, relativamente qualidade do trabalho e ao comportamentos de certos funcionrios - La modernisation au milieu du gu, AJDA, n. 6, 20 de Junho de 1994, p. 423.

    27. Pier Giorgio Lignani, La responsabilit disciplinare dei dipendenti dell Amministrazione Statale, in La Responsabilit Pubbliche, Civile, administrativa, disciplinare, penale, dirigenziale, a cura di Domenico Soace, Cedam, 1998, pp. 381 e 382.

    28. Por um lado, preciso no esquecer que o exerccio de um cargo dirigente importa a assuno da qualidade de titular de um rgo administrativo mas no obnubila a dimenso da relao de trabalho (mesmo quando o trabalhador exerce as suas responsabilidades pblicas e toma decises pela administrao, presidindo sua actividade, ele trabalha, oferece a sua colaborao que tem o seu ttulo e depende da relao de emprego; mesmo quando no previamente parte numa relao jurdica de emprego, o exerccio do cargo dirigente envolve a constituio de uma relao jurdica nos termos do qual exerce os poderes pblicos do cargo e trabalhador da Administrao. Ver Enico Gragnoli, Rapporto di Lavoro Pubblico e Inquadramento Professionale, Cedam, 1992, pp. 91 e 92). Na primeira hiptese, no termo do perodo de provimento no cargo dirigente, aquele que o exerceu reassume, a ttulo exclusivo, a sua qualidade de apenas trabalhador. Da a expresso colega usada por Virga e a referncia que faz ausncia de um patro zeloso - apud Giustina Noviello e Vito Tensore (La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico Impiego Privatizzato, cit., p. XVI).

    29. Giustina Noviello e Vito Tensore com referncia ao caso italiano criticam a falta de agilidade do figurino procedimental, uma incompleta (ou talvez pouco clara) formulao textual, a difusa incerteza interpretativa de alguns preceitos, em parte fomentada por uma jurisprudncia oscilante sobre pontos nevrlgicos do iter sancionatrio e a insuficiente articulao, na nova disciplina privatstica e, em parte significativa, de raiz contratual, entre o procedimento disciplinar e o processo penal. Criticam ainda o carcter marcadamente sindical da composio dos rgos arbitrais de disciplina e o seu pendor decisrio

  • Introduo 15 ________________________________________________________________________________________

    Acresce que a actuao limitada da responsabilidade disciplinar face ao universo dos

    trabalhadores e face ao universo das sanes faz com que, nalguns casos, a punio de certo

    comportamento - face a um quadro de normalidade de comportamentos ilcitos idnticos

    - surja sob suspeita de arbitrariedade, de que a iniciativa responde a fins diversos dos

    institucionais ou funcionais (Pier Giorgio Lignani)30.

    No quadro das razes expostas, possvel perceber tambm o facto de o poder disciplinar

    formalizado, rectius juridificado, parecer ceder passo, por vezes, s formas informais de

    sancionamento. No sistema das relaes de emprego na Administrao Pblica, o que tende

    a existir, algumas vezes, uma realidade disciplinar fctica no ordenada e formas no

    enunciadas de exerccio de poder disciplinar31. Parecem, assim, pertinentes, por

    contraponto, as palavras de Castanheira Neves quando atenta que s estaremos perante o

    direito () se vigorar no apenas intencionalmente, mas como dimenso constitutiva da

    prtica social e por esta for efectivamente assumida32. No entanto, como salienta Ren

    Chapus, h tambm que considerar que a maior parte dos agentes pblicos se conduz sem

    desrespeito da respectiva disciplina laboral33.

    A juridificao do poder disciplinar releva no plano (da eficcia) do seu correcto exerccio

    e a garantia da relao jurdica de emprego pblico. Postula o aprofundamento dogmtico excessivamente generoso-garantistico, ademais pouco cuidadoso do ponto de vista da observncias dos trmites procedimentais Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico Impiego Privatizzato, cit., pp. XVII a XXI.

    30. Pier Giorgio Lignani, La responsabilit disciplinare dei dipendenti dell Amministrazione Statale, in La Responsabilit Pubbliche, Civile, administrativa, disciplinare, penale, dirigenziale, a cura di Domenico Soace, Cedam, 1998, pp. 381 e 382.

    31. significativo, e um entre muitos, o caso a que reporta o Acrdo de 2 de Junho de 1999 do STA (Processo 042116), cujo sumrio se transcreve: I A colocao de militares por imposio de servio, processada por motivos cautelares, prevista no artigo 57, n. 1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republica (EMGNR), aprovado pelo DL n. 265/93, de 31 de Julho, no podendo ser utilizada como forma de camuflar solues sancionatrias revelia do procedimento disciplinar prprio, e do reconhecimento das garantias a ele inerentes. II A aplicao de uma medida sancionatria sem instaurao de processo disciplinar viola o direito de defesa constitucionalmente garantido (artigo 269., n. 3, da CRP), sendo, assim, nula por ofender o contedo essencial de um direito fundamental (artigo 133., n. 1, al. d), do CPA) (itlico nosso). Ilustrativo tambm o Acrdo de 9 de Junho de 1992 (Processo 030574) do STA, in www.dgsi.pt.

    32. A. Castanheira Neves, Fontes do Direito, in Fontes do Direito, Curso de Introduo ao Estudo do Direito, Relatrio. O sentido do direito. O pensamento moderno iluminista como factor determinante do positivismo jurdico. Fontes do Direito. Interpretao jurdica, Coimbra, 1976, pp. 2 e 3.

    Parece haver, no Direito disciplinar, um problema de eficcia da dogmtica jurdica. Cfr. Niklas Luhmann, Sistema Jurdico y Dogmatica Jurdica, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, traduo de Ignacio de Otto Pardo, pp. 15 e segs.

  • 16 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    das categorias do poder disciplinar. Trata-se tambm de uma manifestao de potestas34.

    Interessa, pois, a sua caracterizao e o seu modo de exerccio.

    A anlise da jurisprudncia administrativa permite afirmar que o nmero das controvrsias

    relativas s sanes disciplinares no pouco significativo no conjunto do contencioso do

    Direito da funo pblica, o que se fica a dever, segundo se cr, sobretudo, aos efeitos

    jurdicos sobre os direitos e interesses remuneratrios do trabalhador e s dificuldades

    tcnicas no apuramento disciplinar, juridicamente sem mcula35.

    4. O nascimento do Direito disciplinar dos funcionrios pblicos parece andar

    historicamente associado ao privilgio da inamovibilidade (surgida, tambm, como uma

    forma de reter os melhores funcionrios). A sua formalizao primeira noticiada como

    tendo ocorrido em 1529: o prncipe Elector deixou expresso, no documento de nomeao

    do Canciller Kettwich, que no o despedir sem que seja ouvido para que se explique.

    Um sculo mais tarde essa formalizao assumiu a expresso de uma disposio-tipo, nos

    termos da qual o prncipe contratava os servios dos seus servidores por tempo indefinido,

    mas durante beneplacito nostro seu quamdiu te bene gesseris. Ainda que no sem

    dificuldades, veio a impor-se a interpretao do beneplacitum como arbitrium boni viri, o

    que concitava a necessidade de uma ex grave et legitima causa e de um procedimento

    para que o funcionrio fosse despedido. O passo seguinte foi o da delimitao dessas

    causas, primeiro nos prprios contratos e actos de nomeao e depois as tentativas de

    sistematizao enunciativa genrica (: aqui destacada a clusula geral formulada por

    Kress, em 1732, de excessus sive malversatio in genere o excessus formal e von

    33. Droit administratif gnral, tome 2, 5.e dition, Montchrestien, 1991, p. 259. 34. Uma manifestao de poder que implica o exerccio de autoridade, isto , a possibilidade de limitar

    a liberdade dos particulares por razes de interesse geral Manlio Mazziotti di Celso, Lezioni di Diritto Costituzionale, Parte I, Nozioni Generali Sul Diritto e Sullo Stato, Milano Dott. A. Giuffr Editore, 1993, p. 111.

    35. Giustina Noviello e Vito Tensore, relativa jurisprudncia italiana em matria de emprego pblico, registam existir uma notvel incidncia estatstica das controvrsias relativas s sanes disciplinares e suspenses cautelares no conjunto do contencioso laboral em matria submetida ao juiz administrativo. Identificam sete causas explicativas, das quais as duas enunciadas no texto so, segundo cremos, comuns realidade portuguesa (La Responsabilit e il Procedimento Disciplinare nel Pubblico Impiego Privatizzato, cit., pp. 474 a 478).

  • Introduo 17 ________________________________________________________________________________________

    Kreittmayer, que falou nos delicta innominata, abrindo a discusso sobre se seriam

    delitos criminais ou infraces disciplinares)36.

    5. Esta gnese permitir explicar, em parte, a estigmatizao da cessao da relao

    jurdica de emprego pblico em torno dos motivos disciplinares. Em Portugal, a relao

    funcionarial s pode cessar por iniciativa do empregador pblico pela prtica de certas

    infraces disciplinares37. A incompetncia profissional releva, para efeitos de cessao da

    relao jurdica de emprego, apenas em sede disciplinar: qualificada (em si e no em

    manifestaes avulsas) como ilcito disciplinar susceptvel da aplicao da sano de

    demisso ou de aposentao compulsiva38. Este quadro coloca a questo da pertinncia ou

    necessidade da atribuio da qualidade de ilcito disciplinar a certas condutas e da razo da

    sua no relevncia como possvel causa autnoma de cessao da relao jurdico de

    emprego. Diversamente, no Direito do trabalho, a par da cessao do contrato individual de

    trabalho resultante de despedimento por justa causa promovido pela entidade

    36. Alejandro Nieto, Problemas capitales del derecho disciplinario, in Revista de Administracin

    Publica, n. 63, Septiembre-Diciembre, 1970, pp. 44 a 52. 37. Cfr. artigos 28. e 30. do Decreto-Lei n. 427/89, de 7 de Dezembro, e artigos 11., n. 1, als. e) e f),

    e artigo 13., n.s 10 e 11, e 26. do estatuto disciplinar dos funcionrios e agentes da Administrao Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n. 24/84, de 16 de Janeiro, objecto de rectificao publicada no DR, I Srie, n. 100, 3. Suplemento, de 30 de Abril de 1984), doravante Estatuto disciplinar de 1984. O regime mantm-se fundamentalmente o mesmo no novo regime jurdico das relaes de trabalho na Administrao Pblica para os trabalhadores com o vnculo jurdico da nomeao (artigo 32.) e para os que, transitando para o regime do contrato de trabalho, mantm o regime jurdico de cessao (artigo 88., n. 4). Cfr. PL 316/2007, de 12 de Junho (www.financas.pt/inf_geral/ProjectoVinculosCarreirasRem_vfinal.pdf).

    No obstante, o prembulo daquele texto, noticiando a futura reviso do Estatuto Disciplinar, refere que no mesmo prever-se- a cessao por insuficincia de desempenho, revelada na atribuio de avaliaes negativas em dois anos consecutivos que, mediante verificao em processo de natureza disciplinar, consubstanciem violao grave e reiterada de deveres profissionais.

    38. Cfr. artigo 26., n.s 3 e 5, do Estatuto disciplinar de 1984. Sem prejuzo, durante o perodo probatrio, o funcionrio nomeado provisoriamente se no revelar

    aptido para o desempenho de funes pode ser exonerado a todo o tempo, por despacho da entidade que o tiver nomeado (artigo 6., n. 10, do Decreto-Lei n. 427/89, de 7 de Dezembro; Acrdo do STA, 1. Seco, de 20.11.1997, P. 39 512, in Cadernos de Justia Administrativa n. 10, Julho/Agosto. 1998, acrdo a anotado por Maria Francisco Portocarrero, sob o ttulo Discricionariedade e conceitos imprecisos: ainda far sentido a distino?) e o agente administrativo, no termo do perodo de estgio de ingresso na carreira, se no for aprovado neste (simultaneamente formativo e avaliativo), pode ver cessar a respectiva relao jurdica de emprego (artigo 15., n. 2, al. c), artigo 16., n.s 2 e 3, do Decreto-Lei n. 427/89, de 7 de Dezembro, e artigo 5., n. 1, als. e) a g), do Decreto-Lei n. 268/88, de 28.07). De acordo com o previsto no PL 316/2007, de 12 de Junho, o perodo probatrio, redesignado de perodo experimental da nomeao definitiva, torna-se mais exigente do ponto de vista da avaliao necessria para a sua concluso com xito, assemelhando-se ao perodo de estgio, que deixa de ter previso com a no incluso do contrato administrativo de provimento entre a tipologia dos vnculos das relaes de trabalho na Administrao Pblica.

  • 18 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    empregadora39, destacam-se como causas de cessao a extino de postos de trabalho por

    causas objectivas de ordem estrutural, tecnolgica ou estrutural relativas empresa40, e a

    inadaptao do trabalhador ao posto de trabalho na sequncia de modificaes introduzidas

    nestes, resultantes de novos processos de fabrico, de novas tecnologias ou equipamentos

    baseados em diferente ou mais complexa tecnologia41.

    Refira-se a este propsito que, no direito italiano da funo pblica (no sentido estrito), por

    exemplo, a par da aplicao da sano de demisso (destituzione) pela prtica dos mais

    graves ilcitos disciplinares, realizado que seja o correspondente procedimento disciplinar,

    possvel a extino, sem carcter sancionatrio, da relao jurdica de emprego pblico por

    acertamento de superveniente inidoneidade do trabalhador (decadenza), resultante,

    por exemplo, da verificao da falsidade de documentos comprovativos do no

    preenchimento de requisitos de admisso, como as habilitaes literrias legalmente

    exigidas para o exerccio do cargo, ou por dispensa em virtude de incapacidade absoluta

    e permanente para desenvolver as funes para cujo exerccio o trabalhador foi admitido ou

    em virtude de escasso ou insuficiente rendimento, explicitado em despacho ministerial

    fundamentador, aps procedimento prprio, com garantia do contraditrio42.

    6. O constitucionalismo e com ele o princpio da separao de poderes vai colocar o jovem

    direito disciplinar, cuja vida at ento tinha sido pacfica (Alejandro Nieto) sob um

    desassossego que ainda hoje o acompanha, expresso nas interrogaes de Sierra Pambley,

    nas Cortes (espanholas) de 1820: No caso de haver causa para proceder contra um

    empregado, o expediente para o determinar a quem cabe, perante quem se realizar, quem o

    39. Cfr. artigos 396. e segs. do Cdigo do Trabalho, aprovado pela Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto,

    artigos 9. e segs. do Decreto-Lei n. 64-A/89, de 27.02 (revogado cfr. artigo 21., n. 1, alnea m), daquela Lei: entre o elenco exemplificativo dos comportamentos integrativos de justa causa figura o desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligncia devida, das obrigaes inerentes ao exerccio do cargo ou posto de trabalho (artigo 9., n. 2, al. d), do segundo diploma e artigo 396., n. 3, alnea d), do primeiro) e as redues anormais de produtividade (artigo 9., n. 2, al. m), do primeiro e artigo 396., n. 3, alnea m), do segundo.

    40. Cfr. artigos 402. a 404. do Cdigo do Trabalho, artigo 3., n. 2, al. f), e artigo 16. e segs. do Decreto-Lei n. 64-A/89, de 27.02, citado.

    41. Cfr. artigos 405. e segs. do Cdigo do Trabalho e Decreto-Lei n. 400/91, de 16.10 (revogado pelo artigo 21., n. 1, alnea p), da Lei n. 99/2003, de 27 de Agosto).

    42. Cfr. Pietro Virga, Il Pubblico Impiego, Milano, Dott. A. Giuffr Editore, 1991, p. 211, 349, 356 a 359; e Salvatorre Terranova, Il Rapporto di Pubblico Impiego, Milano, Dott. A. Giuffr Editore, 1991, pp. 227 a 231, 408 a 410, 413 a 415, 420 a 426.

  • Introduo 19 ________________________________________________________________________________________

    decidir: o poder executivo? Os secretrios de despacho? E estes no interferiro, deste

    modo, nas atribuies do poder judicial43?

    O acto sancionatrio disciplinar e a preparao deste relevam para o interesse pblico, para

    a unidade e eficcia da actividade administrativa (artigo 266., n. 1, e artigo 267., n. 2, da

    CRP). uma prerrogativa da Administrao Pblica; importa saber se o pela sua prpria

    natureza ou se tal resulta de uma razo pragmtica. Por outro lado, trata-se de um poder

    cuja incidncia na esfera jurdica dos trabalhadores da Administrao Pblica deveras

    gravosa, sendo de perguntar sobre o ttulo do exerccio de um tal poder: exercido numa

    ptica de deverosidade em face de um empregador ou numa ptica de punio por um

    ilcito em ordem reintegrao do ordenamento jurdico violado ou mesmo a retribuio

    pela ofensa de interesses pblicos ponderosos?

    O poder sancionatrio disciplinar como que parece oscilar entre uma espcie de justia

    domstica e uma justia jurisdicional. Nesta dualidade ou entremeio, ou em funo do

    lugar das decises disciplinares, pode ser necessrio reajustar as garantias e as vias

    administrativas ou extrajudiciais e jurisdicionais de resoluo dos respectivos diferendos. A

    indici-lo a observao, de Miguel Snchez Morn, segundo a qual principiou-se a falar

    de conciliao, mediao e arbitragem na funo pblica desde que, em tempos recentes, o

    seu regime comeou a aproximar-se do das relaes laborais44.

    2 Delimitao do objecto

    1. O presente estudo pretende surpreender a relao jurdica de emprego pblico no seu

    aspecto disciplinar, autonomizar a relao jurdica disciplinar na sua dinmica, numa

    reflexo que se reconduz s perguntas de Sierra Pambley.

    2. Num primeiro momento, cuida-se da disciplina em si e da eventual identidade do Direito

    disciplinar no particularizado ou sem espcie, isto , trata-se de saber se existem princpios

    caracteriolgicos de um Direito que versa sobre a disciplina.

    3. No presente trabalho no se pretende estudar a temtica do Direito disciplinar em Direito

    administrativo. Apenas uma sua pequena parte - o Direito disciplinar da funo pblica. E

    43. Alejandro Nieto, Problemas capitales del derecho disciplinario, in Revista de Administracin Publica, cit., pp. 55 e 56.

  • 20 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    neste, somente o da funo pblica em geral e no o relativo a mbitos subjectivos

    especiais ou relaes jurdicas de emprego pblico em particular. Considera-se somente a

    funo pblica civil, e no tambm o direito disciplinar militar45, cujo cdigo de

    disciplina constitui uma componente estruturante de uma fora armada46.

    Para operar esta delimitao, traar a compreenso do fenmeno disciplinar nesse mbito,

    conhecer as suas propriedades ou possibilidades de ocorrncia em estados de coisas47,

    atenderemos aos Direitos disciplinares de que se aproxima ou cuja anlise contribui para o

    seu recorte. Trata-se da considerao excludente de outros Direitos disciplinares, o das

    ordens profissionais, o dos estabelecimentos prisionais, no que toca s pessoas recludas, o

    das escolas pblicas, no que atm ao poder disciplinar em face dos alunos, o das relaes

    jus-laborais privadas e o relativo aos juzes e magistrados do Ministrio Pblico.

    Quanto ao Direito disciplinar nas relaes jus-laborais privadas, tem-se presente a

    aproximao que quele decorre da assimilao conceptual que alguns fazem da relao

    jurdica de emprego pblico48 e a adopo, em crescendo, das formas jurdicas privadas

    para conformar as relaes de trabalho na Administrao Pblica, na perspectiva de a

    surpreender singularidades da relao jurdica de emprego pblico, seja de recorte

    constitucional ou variveis segundo o tipo de vnculo jurdico laboral49.

    44. Derecho de la Funcin Pblica, tercera edicin, Tecnos, Madrid, 2002, p. 319. 45. Disciplina militare, in Enciclopedia del Diritto, Vol. XIII, Giuffr Editore, pp. 37 e segs. 46. Segundo Juzes M. ODonoghue e Mme Pedersen a disciplina uma componente vital e intrnseca,

    indispensvel mesmo sobrevivncia de uma fora armada, instituio inteiramente diferente de todo outro corpo ou grupo que pretenda submeter os seus membros a uma certa disciplina. Cfr. voto de vencido ao Acrdo do TEDH proferido no caso Engel et outros contra a Holanda, de 8 de Junho de 1976, p. 38 e 39 (http://cmiskp.echr.coe.int/). Cfr., tambm, o voto de vencido da juza Mme Bindschedler-Robert, p. 41 (: a disciplina militar exige em particular medidas e sanes rpidas e eficazes, adaptadas a cada situao, e que devem poder ser tomadas pelo superior hierrquico) e do juiz Verdross (p. 34).

    Ver Jos Vicente Gomes de Almeida, Recomendao sobre a legalidade de no instaurar procedimento em vez de suspender o procedimento instaurado. Processo n. 112/99, Parecer n. 2/2002, in Controlo Externo da Actividade Policial e dos Servios Tutelados pelo MAI, Vol. II, Anos 1998-2002, Inspeco-geral da Administrao Interna, p. 304 (sobre o princpio da unidade do procedimento disciplinar militar, segundo o qual as violaes da disciplina militar so de idntica natureza, sancionveis, em sede de procedimento disciplinar ou criminal, segundo um critrio de gravidade do ilcito).

    47. Proposio 2.0123 e 2.01 de Ludwig Wittgenstein, Tratado Lgico-Filosfico, Investigaes Filosficas, Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, 2. edio, p. 31.

    48. Francisco Liberal Fernandes, Antonomia Colectiva dos Trabalhadores da Administrao. Crise do Modelo Clssico de Emprego Pblico, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1995.

    49. Silvia del Saz, La privatizacin de las relaciones laborales en las administraciones Pblicas e Ana

  • Introduo 21 ________________________________________________________________________________________

    Fora de mbitos jurdico-relacionais especficos, dentro do Direito administrativo, no qual

    referenciado o Direito disciplinar da funo pblica, cabe fazer a respectiva delimitao

    face ao direito sancionatrio administrativo, por violao da ordem policial ou da

    ordenao externa da vida comunitria50.

    Na circunscrio do Direito disciplinar da funo pblica importa atender ao poder

    sancionatrio penal, a partir do qual feito muitas vezes o seu estudo, arvorado a direito

    sancionatrio comum ou de referncia51, ou integrado aquele no seu mbito material ou

    num mesmo gnero substancial.

    4. Depois do paralelo e contraponto da delimitao que antecede, segue-se o apuramento

    pela positiva daqueles conceitos, numa perspectiva esttica e numa perspectiva evolutiva e

    comparada.

    O estudo da dimenso disciplinar da funo pblica requer, em primeiro lugar, a

    demarcao material do conceito de funo pblica e a sua compreenso no quadro

    funcional e institucional de insero52. As relaes jurdicas de emprego na Administrao

    Pblica tm conexo com a variedade e a complexidade das suas funes e estruturas

    organizacionais. A Administrao Pblica o instrumento fundamental da realizao dos Fernanda Neves, A privatizao das relaes de trabalho na Administrao Publica, in Os Caminhos da Privatizao da Administrao Pblica, IV Colquio Luso-espanhol de Direito Administrativo, Stvdia Ivridica 60, Colloquia 7, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, respectivamente, pp. 147 a 162 e 163 a 192.

    50. Direito Criminal, de Eduardo Correia, com a colaborao de Figueiredo Dias, Livraria Almedina, Coimbra, 1971, p. 23.

    51. Federico A. Castillo Blanco, Funcin Publica y Poder Disciplinario del Estado, Cemci (Centro de Estudios Municipales Y de Cooperacin Interprovincial), editorial Civitas, 1992, p. 31, e Fausto de Quadros, Os Conselhos de Disciplina na Administrao Consultiva Portuguesa, Cadernos de Cincia e Tcnica Fiscal, DGCI, 1974, p. 110 (a matria disciplinar considerada uma zona onde o Direito Administrativo se enlaa com outros sectores do firmamento jurdico, mais acentuadamente com o Direito Criminal).

    52. S numa certa concepo da relao jurdica de emprego pblico faz sentido, por exemplo, cominar a sano de demisso para os funcionrios, empregados ou salariados do Estado ou dos corpos administrativos, seja qual for a sua categoria e a natureza dos servios que prestam que se coliguem para a cessao do trabalho ou faam greve (artigo 10. do Decreto de 6 de Dezembro de 1910) - Marcello Caetano, a propsito do dever de assiduidade, debrua-se (Do Poder Disciplinar, Coimbra, Imprensa Universitria, 1932, pp. 64 e 65) sobre a greve de funcionrios, cujo carcter de infraco disciplinar enfatiza: entende que o decreto n. 13 138, de 15.02.1927 - cujo artigo 3. revogara o decreto de 6 de Dezembro de 1910 que para cessao do trabalho regulou o exerccio de se coligarem (sic) operrios e patres - no revogara o artigo 10 do decreto de 6 de Dezembro de 1910, visto nele se conter uma sano disciplinar e no qualquer norma que regulamentasse o exerccio do direito de greve e acrescenta que mesmo que no se concorde com essa interpretao, no pode haver dvida sobre constituir a greve de funcionrios uma gravssima falta

  • 22 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    fins do Estado. A comunidade poltica dota-se de uma organizao que permite prover s

    necessidades colectivas, as quais correspondem realizao dos direitos fundamentais dos

    cidados. A dignidade constitucional dos princpios conformadores da organizao e da

    actividade da Administrao Pblica resulta de uma deciso constituinte. Esta deciso

    assume um modelo normativo de Administrao alicerado na tradio do Estado de

    Direito, reflectido no princpio da subordinao da actividade administrativa lei, no

    princpio da unidade e eficcia da aco do Estado, no princpio da descentralizao, da

    participao dos administrados na formao das decises que lhe dizem directamente

    respeito, do princpio do controlo jurisdicional das decises (artigo 266., n. 2, da CRP,

    artigo 267. e 268., n. 4 e n. 5).

    Neste quadro, o emprego pblico um instrumento de realizao do programa

    constitucional e de estruturao da organizao do Estado53. Por isso, tem sido ele prprio

    objecto de especfica previso constitucional: todas as Constituies portuguesas chamaram

    a si a indicao ou a disciplina de alguns aspectos de princpio do seu regime e ordenao.

    5. Delimitados os conceitos de disciplina e Direito disciplinar da funo pblica, o segundo

    percurso do trabalho procura apreender a dinmica da aco disciplinar, ou seja, o

    exerccio do poder disciplinar54, na sua iniciativa e desenvolvimento (Captulo II).

    conhecido o contributo de Feliciano Benvenuti na compreenso dos conceitos de funo

    administrativa, procedimento e processo. Releva aqui a considerao do procedimento

    como a forma de uma funo, a manifestao significativa da funo, o modo de

    externao isto de fazer-se do acto (...) a histria da transformao do poder em acto (...)

    abrangida pela definio do artigo 5. do regulamento, tal valendo para os funcionrios de concessionrios do servio pblico.

    53. significativa a passagem de Alexis Tocqueville, in O Antigo Regime e a Revoluo, onde refere que as vrias revolues que desde 1789 mudaram de alto a baixo toda a estrutura do governo (...) mal foram sentidas pela maior parte da nao, por vezes mal foram notadas. que, desde 89, a constituio administrativa ficou sempre de p no meio da runa das constituies polticas. Mudava-se a pessoa do prncipe ou as formas do poder central, mas o correr dirio dos assuntos no era nem interrompido nem perturbado; cada um continuava a permanecer submetido, nas pequenas questes que lhe interessavam particularmente, s regras e aos usos que conhecia; dependia dos poderes secundrios aos quais sempre tivera o hbito de dirigir-se, e vulgarmente tinha de tratar com os mesmos agentes; porque se a cada revoluo a administrao era decapitada, o seu corpo permanecia intacto e vivo; as mesmas funes eram exercidas pelos mesmos funcionrios; estes transportavam atravs da diversidade das leis polticas o seu esprito e a sua prtica (172 e 173).

    54. Marcello Caetano, Do Poder Disciplinar, cit., p. 168.

  • Introduo 23 ________________________________________________________________________________________

    o fenmeno que se produz em cada explicitao de uma funo. O processus , assim,

    instrumental ou mediatizador da realizao de uma funo e o acto a manifestao do

    resultado da funo55.

    No procedimento disciplinar, temos uma sucesso ordenada de actos e formalidades, com

    a participao de mais do que um rgo e agentes, tendo em vista a determinao da

    existncia de uma infraco disciplinar, a sua precisa identificao, a dos trabalhadores

    causadores ou responsveis, a aferio da necessidade de uma sano e a escolha da sano

    disciplinar adequada. Esta determinao importa a investigao e anlise da materialidade

    fctica, a realizao de exames, a audio de testemunhas, peritos e a audio do

    trabalhador que surge como infractor, em suma, a prtica de actos e o cumprimento de

    formalidades significativamente articulados e ordenados ao acertamento da existncia e

    qualificao da infraco disciplinar e ao acertamento do trabalhador ou trabalhadores

    responsveis e deciso em consequncia (punitiva ou no).

    Acolhendo a ideia de relao entre processus e a funo que explicita, e de que , em

    princpio, traduo a dependncia entre o processo e o seu objecto (Spiegel)56 e tendo

    presente os interesses que prossegue57, por um lado; e, por outro, que de reservar

    substantivamente o termo procedimento para o processus administrativo e o termo

    processo para o processus jurisdicional, enquanto expresso de um actuar e de uma

    funo diferentes58; que a prpria Constituio, no artigo 269., n. 3, fala em processo

    disciplinar e, bem assim, a exigncia e mincia processual que caracteriza o procedimento

    55. In Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1977, Anno XXVII, p. 128. 56. Apud Afonso Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., p. 172. 57. Lembre-se, por exemplo que Benvenuti distingue, segundo um critrio subjectivo, o procedimento

    em sentido estrito do processo. Caracteriza o primeiro a unidade de direco dos vrios actos de trmite, ainda que da autoria de vrios rgos, pela ordenao satisfao em primeira linha de um mesmo interesse substancial, o interesse do autor do acto, com o que a definio revela o ajustamento do procedimento para designar a forma da funo administrativa, em que est em causa a satisfao dos interesses da Administrao (pp. 130 a 134). A nota caracterstica do processo residiria no facto de a transformao do poder em acto visar um interesse substancial que no o interesse do autor do acto mas o dos seus destinatrios (p. 135).

    58. Rogrio Ehrhardt Soares, A propsito dum projecto legislativo: o chamado Cdigo do Processo Administrativo Gracioso, in Revista de Legislao e Jurisprudncia, Ano 115., n. 3702, p. 264, e 3703, p. 295 (: O percurso da actuao dum juiz e o dum administrador exprimem uma funo diferente e manifestam uma estrutura desigual) e p. 296. Como nota Figueiredo Dias, imps-se no nosso pas a expresso procedimento administrativo para designar a tramitao que tem lugar para a formao das decises administrativas e ficando a expresso processo administrativo circunscrita aos verdadeiros processos, a

  • 24 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    disciplinar, onde maior a proximidade reguladora da lei59, e estreita a significatividade

    material da forma60, justifica-se a anlise do modus procedendi disciplinar.

    6. Depois de analisado o exerccio do poder disciplinar61, em sequncia, o terceiro

    percurso do trabalho procura a sua localizao no quadro do princpio da separao de

    poderes, no que respeita separao e interdependncia entre poder administrativo e poder

    jurisdicional.

    O exerccio do poder punitivo disciplinar pode dar lugar aplicao de sanes. Estas

    consubstanciam uma interveno autoritria pblica ablativa na esfera jurdica dos

    particulares, podendo corresponder ou no restrio de direitos fundamentais. Ora,

    consistindo a funo jurisdicional, segundo o artigo 202., n. 2, da CRP, em dirimir

    litgios62, reprimir a violao da ordem jurdica democraticamente instituda63 e

    assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidados, coloca-se a

    questo de saber se a actividade sancionatria disciplinar no integra o ncleo material da

    funo jurisdicional, o fazer jurisdicional, aquilo que intencionalidade material da

    prpria jurisdio como jurisdio e, consequentemente, perguntar se, atendendo ao

    serem julgados por rgos imparciais e inoficiosos - Enquadramento do procedimento disciplinar na ordem jurdica portuguesa, in Boletim do Ministrio da Justia, n. 73, 1997, p. 184.

    59. Afonso Queir refere, a propsito da aproximao do processo administrativo ao processo contencioso ou jurisdicional, por um lado, que, no primeiro, a legalidade cujo cumprimento deve ser processualmente observada uma legalidade entendida de uma forma cada vez mais requintada e exigente (p. 172) e, por outro, a submisso do prprio exerccio do poder discricionrio a princpios de imparcialidade e justia.

    60. So pertinentes as seguintes palavras de Rogrio Ehrhardt Soares: Ao lado da regulamentao do procedimento geral, poder depois aparecer uma srie de procedimentos especiais, esses sim, mais sobrecarregados com exigncias formais indispensveis ao bom xito material da aco administrativa. Porque bvio que o procedimento para a passagem duma certido ou o procedimento disciplinar no reclamam a mesma formalizao (itlico nosso - A propsito dum projecto legislativo: o chamado Cdigo do Processo Administrativo Gracioso, in Revista de Legislao e Jurisprudncia, Ano 115., n. 3702, p.263).

    61. Marcelo Caetano, Do Poder Disciplinar, cit., 1932, p. 168. 62. uma actividade pr-ordenada resoluo de uma lide (Parecer da PGR, n. 104/90, publicado no

    DR., II Srie, n. 196, de 27.8.91, p. 8690-(49), que teleolgico-objectivamente consiste na resoluo de uma controvrsia sobre pretenses conflituantes ou sobre a verificao ou no verificao em concreto de uma ofensa ou violao da ordem jurdica (Afonso Rodrigues Queir, Lies de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, p. 51, 43 e 44).

    63. Na expresso Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, p. 792. Cfr. igualmente Afonso Rodrigues Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., p. 22.

  • Introduo 25 ________________________________________________________________________________________

    sentido que ela assume e realiza64 e atendendo reserva da funo jurisdicional aos

    tribunais (artigo 202., n.s 1 e 2, da CRP), pode integrar ou no o elenco dos poderes da

    Administrao e a que ttulo. Do ponto de vista dos interesses em causa, no se afigurariam

    o processo e a estrutura dos rgos jurisdicionais mais adequados a uma actividade que na

    sua substncia consiste em apurar factos, aferir a culpa e determinar a sano

    proporcionada? A procura da maior eficcia na realizao do interesse pblico subjacente

    disciplina dos trabalhadores com a melhor garantia possvel dos respectivos direitos

    fundamentais no sairia reforada com a aplicao do princpio da reserva jurisdicional em

    matria de direito sancionatrio?

    Sendo o princpio da separao de poderes um princpio organicamente referenciado e

    funcionalmente orientado65, numa funcionalidade [orgnica] primordial66, densificado

    pelos critrios de adequao estrutural e processual, bem como de legitimao, de

    responsabilidade e de eficincia67, a justia do processo e a justia do resultado, da

    deciso, so aqui importantes elementos de ponderao.

    A idoneidade do ttulo de legitimao do procedimento administrativo dada pelos seus

    princpios estruturantes, cujo leit-motiv a conciliao sopesada da eficcia e unidade da

    aco administrativa e da garantia dos particulares. A estrutura do procedimento disciplinar

    extravasa, prima facie, a estrutura dialctica do processo jurisdicional acusatrio. O

    princpio do inquisitrio, como princpio procedimental que serve a deverosidade da aco

    administrativa, acresce s garantias de defesa, dando lugar a formas de controlo inter-

    orgnico. O princpio da oportunidade, assumindo significado diverso daquele que ocorre

    no processo penal, no remete para o arbtrio do empregador: o apuramento rigoroso dos

    factos decorre do dever de boa administrao.

    64. A. Castanheira Neves, Entre o legislador, a sociedade e o juiz, funo e problema - os

    modelos actualmente alternativos da realizao jurisdicional do direito, in Boletim do Ministrio da Justia, n. 74, 1998, pp. 3 e 4.

    65. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, Coimbra Editora, 1997, p. 20, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3. ed., p. 497, e Afonso Rodrigues Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., p. 10 (: a cada especial complexo de rgos do estado, indicados na Constituio, passou a ser primordialmente confiada a realizao da sua funo) e pp. 84 e 85.

    66. Afonso Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., p. 85. 67. Nuno Piarra, A Separao dos Poderes como Doutrina e Princpio Constitucional, Um contributo

    para o estudo das suas origens e evoluo, Coimbra Editora, Limitada, 1989, p. 263.

  • 26 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    3 Metodologia e objectivos

    1. A mutao legislativa no plano da relao jurdica do emprego pblico, a vagueza e

    indeterminao das normas disciplinares conteudificadas em funo das concepes

    dominantes em cada poca, a noo do processo disciplinar como um procedimento

    gracioso interno resultante de uma justia domstica, a falta de autonomizao

    dogmtica, curricular, pedaggica e processual da matria da funo pblica em relao

    parte geral do Direito Administrativo, a escassez de tratamento cientfico, explicam uma

    certa desvalorizao do afinamento dogmtico das categorias pertinentes e da juridicidade

    no exerccio do poder disciplinar. O material jurdico disciplinar na relao jurdica de

    emprego pblico , em primeiro lugar, um problema da sua elaborao dogmtica, na

    perspectiva de dar-lhe- uma estruturao interna, que postule a derivao lgica das

    categorias, a integrao no sistema de novos problemas e o apuramento das decises

    segundo um princpio de congruncia e segundo critrios de relao68. Por exemplo, a

    aproximao do procedimento disciplinar ao procedimento administrativo geral ou ao

    processo penal, tendo consequncias prticas, o resultado de uma opo fundamentada ao

    nvel constitucional e no plano da dogmtica69.

    2. A elaborao dogmtica tem um arrimo necessrio no direito vigente, na realidade

    normativa70, no complexo de dados jurdico-positivos71, presentes e passados. Os

    68. Mediante a dogmatizao do material jurdico o que antes de todo quer dizer elaborao

    conceptual e classificadora consegue-se que aquele ir e vir da relao entre normas e factos, tantas vezes descrito, no fique sujeito situao a decidir, mas tambm ao sistema jurdico, que no se aparte do ordenamento jurdico - Niklas Luhmann, Sistema Jurdico y Dogmtica Jurdica, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, pp. 33 e 29.

    Sobre o Direito pblico, em 1888, Jos Frederico Laranjo, escrevia: O direito pblico s modernamente comeou a encontrar as condies necessrias para se poder desenvolver como cincia; como direito constitudo faltam-lhe muitas vezes garantias de realizao, s se tem codificado numa pequena parte das matrias que abrange; no resto, discute-se at se a codificao seria conveniente. Cfr. Princpios e Instituies de Direito Administrativo, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888, p. 7.

    69. Ver Jos Eduardo Figueiredo Dias, Enquadramento do procedimento disciplinar na ordem jurdica portuguesa, in Boletim do Ministrio da Justia, n. 73, 1997, e, em termos gerais, Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Duckworth, 1977, pp. 106 e segs.

    70. J. da Silva Cunha, Direito Internacional Pblico, Introduo e Fontes, Almedina, Coimbra, 1991, 5. ed., p.173; Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, traduo de Baptista Machado, pp. 363 e 379; Marcello Caetano, Princpios Fundamentais de Direito Administrativo, Reimpresso da edio Brasileira de 1977, 1. Reimpresso Portuguesa, Livraria Almedina, pp. 18 e 20, e

  • Introduo 27 ________________________________________________________________________________________

    textos, em si mesmos, so factos sociais historiveis (Antnio Hespanha)72. Neles se

    condensa preferentemente, no Estado moderno, o querer jurdico, as solues gerais dadas

    aos conflitos de interesses73, o resultado de certos elementos jurdico-causais

    determinantes74, as articulaes de exigncias, no necessariamente conflituantes, mas

    passveis de realizao segundo diversos termos e a actualizar, sob pena de se estiolarem,

    no momento da realizao. O querer jurdico , de outro modo, de aferir numa unidade

    conceptual e face a princpios gerais da sua identidade ou identificativos75. A justia da

    tutela dos interesses, no que respeita matria de emprego pblico, passa, em muito, por

    um continuado de coerncia e fidedignidade conceptual (com sentido) - e pela sua

    expresso numa linguagem certa76 -, uma espcie de conduta (lugar de caminho) da

    igualdade, da justia, da confiana, do servio pblico, dos valores ordenadores do

    Direito77.

    No desfiar da normatividade, do seu contedo, dos seus limites, da sua abrangncia, um

    importante papel cabe casustica: a normatividade vai sendo problematizada,

    Maria do Rosrio Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmtica do Direito do Trabalho, Almedina, Setembro de 2000, pp. 2 e 19.

    71. A cuja sistematizao, enquadramento ordenador e explicativo e potenciao resolutiva de problemas se dirige parte fundamental da construo e apuramento de conceitos. Neste sentido, ver Vital Moreira, Administrao Autnoma e Associaes Pblicas, Coimbra Editora, 1997, p. 22.

    Expressivas so as palavras de Alfredo Gallego Anabitarte, in Presentacin del libro formacin y enseanza del derecho pblico en Espaa (1769-2000). Un ensayo crtico en el ilustre colegio de abogados de Madrid, in Revista de Administracin Pblica, n. 163, Enero/Abril, 2004, p. 537: Una ancdota: Los Principios de Derecho administrativo, de S. Cuesta Catedrtico de la disciplina Derecho Poltico y Administrativo -, publicados en 1894, son ms de 300 pginas dedicadas a la organizacin y jerarqua administrativas, fines de la Administracin, etc., sin citar un solo precepto de derecho positivo.

    72. Antnio Manuel Hespanha, Da Iustitia Disciplina, Textos, Poder e Poltica Penal no Antigo Regime, in Justia e Litigiosidade: Histria e Prospectiva, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 291.

    73. Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, cit., p. 370. 74. Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, cit., p. 377. 75. Sobre a referncia aos princpios gerais de direito como o esprito das leis, ver Michel

    Stassinopoulos, Le Droit de la Dfense Devant les Autorits Administratives, Librairie Gnrale de Droit et de Jurisprudence, 1976, pp. 34 e 40.

    76. A linguagem corporiza as prprias ideias, viabilizando-as, condicionando-as ou detendo-as na fonte - o prprio esprito humano - facultando a sua aprendizagem e divulgao e abrindo as portas crtica e s reformulaes. Cfr. Antnio Menezes Cordeiro, na Introduo edio portuguesa de Pensamento Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito, de Claus-Wilhem Canaris, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989, p. XLIII.

    77. Sobre os valores ou certos valores como elementos ordenadores do Direito, H. Coing apud Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, cit., p. 378.

  • 28 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    concretamente determinada e aumentada na sua intencionalidade e possibilidades de

    deciso78.

    Acresce que o conhecimento e ponderao dos efeitos das decises, conduzindo o

    intrprete-aplicador a pensar em consequncias, permite a considerao mais realista dos

    conceitos, prosseguir [na expresso de Menezes Cordeiro], na vida jurdica, a realizao

    integral do Direito, evitando o irrealismo metodolgico79.

    No conhecer e na organizao de um campo jurdico, perguntar pelos seus problemas e

    pelas perspectivas de apreenso pelas quais se oferece tem o carcter de uma abordagem

    primria, mas no de apreenso inicial. abrangente mas limitado. Pensar os problemas em

    cada momento da realizao do direito (da sua formao e enunciao sua aplicao)

    apoia-a, uma conduta dessa realizao. Mas no dispensa o trilhar de outros

    caminhos para as respostas primeiras e para aquelas que a actividade jurdica, a

    reflexo e aplicao do direito vai revelando80 81.

    3. A Constituio o parmetro jurdico organizativo do poltico, do Estado e da

    Sociedade, para alm da variao nos seus contedos; bem assim do Direito, como

    referente lgico-jurdico e de validade das demais normas jurdicas82. tambm a

    referncia sentido de uma ordem; corporiza um complexo valorativo segundo uma ideia

    de Direito que difunde como estruturante sistemtico, no quadro de um Estado de direito

    material83.

    78. Niklas Luhmann, Sistema Jurdico y Dogmatica Jurdica, Centro de Estudios Constitucionales,

    Madrid, 1983, pp. 33 e 34, e A. Castanheira Neves, Fontes de Direito, in Curso de Introduo ao Estudo do Direito, Relatrio. O sentido do direito. O pensamento moderno iluminista como factor determinante do positivismo jurdico. Fontes do Direito. Interpretao jurdica, Coimbra, 1976, pp. 42 e 43. Na experincia jurdica jurisdicional, o direito constitui-se e manifesta-se enquanto se realiza (p. 41).

    79. Lei (aplicao da), in Polis, Enciclopdia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 3, p. 1061. 80. Karl Engish, Introduo ao Pensamento Jurdico, cit., p. 384. 81. Aplicao do Direito e desenvolvimento do Direito caminham a par e passo - Karl Larenz,

    Metodologia da Cincia do Direito, traduo portuguesa de Jos Lamego, Fundao Calouste Gulbenkian, 2. edio a partir da 5. edio alem de 1983, Lisboa, 1989, p. 265.

    82. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Constituio e Inconstitucionalidade, 3. ed., Coimbra Editora, 1996, pp. 10 e segs., maxime, pp. 10, 21 e 19; Afonso Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., pp. 159.

    83. Como diz Rogrio Soares, um Estado cujo fim a criao e manuteno de uma situao jurdica materialmente justa (A propsito dum projecto legislativo: o chamado Cdigo de Processo Administrativo Gracioso, in Revista de Legislao e Jurisprudncia, ano 115, 1983, n. 3694, p. 18.

  • Introduo 29 ________________________________________________________________________________________

    Neste enquadramento, a relao entre o Direito administrativo e o Direito constitucional

    cedo foi percebida como uma ligao estreita e a extenso e os termos da relao foram

    sendo desfiados. J em 1832, Mouzinho da Silveira, no Relatrio que introduz os Decretos

    n.s 22, 23 e 24, dizia que as leis administrativas so complemento da Lei orgnica

    fundamental, ou da Carta. As leis administrativas so Leis pblicas (...) A Lei fundamental

    das garantias das pessoas e das propriedades, em matria de Administrao, bem como da

    organizao administrativa... vem da regra constitucional. As Leis regulamentares, ou os

    modos de executar as Leis fundamentais, podem ser alteradas, mas nunca sem se consultar

    o interesse comum, que o esprito da Carta, ao qual devem seguir. (...) O modo do

    estabelecimento da administrao, sendo medida poltica deduzida da organizao da

    Sociedade, na sua base instituda pela Carta, a qual abrange a totalidade dos

    estabelecimentos necessrios vida poltica da Sociedade; e por isso a Lei da organizao

    administrativa no mais que um desenvolvimento da mesma Carta84. Esta afirmao

    colhe, ainda hoje, uma importante parcela de verdade, mas, no obstante, foi para alm

    dela. De forma linear, o Direito administrativo nacional tem tambm o encargo de tutelar

    interesses pblicos comunitrios, por ser a Administrao Pblica de cada um dos

    Estados-membros simultaneamente Administrao comunitria85 86.

    Cfr. igualmente Paulo Otero, O Poder de Substituio em Direito Administrativo. Enquadramento

    Dogmtico-Constitucional, Vol. I, Lex, Lisboa, 1995, pp.124 e segs. Sobre o desenvolvimento do conceito de sistema a partir das ideias de adequao valorativa e unidade

    interna da ordem jurdica, ver Claus-Wilhem Canaris, Pensamento Sistemtico e Conceito de Sistema na Cincia do Direito, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989, traduo de Antnio Menezes Cordeiro, pp. 66 e segs.

    84. Colectnea de Decretos e Regulamentos, 1. Semestre, de 16 de Maio de 1832, p. 62 e 63 (itlico nosso).

    No basta... - nas palavras de Almeida Garrett, datadas de 1827 - que o corpo social tenha uma Carta na qual estejam consignados os seus elementos constitutivos; se as leis orgnicas no so conformes queles elementos, falta a harmonia das partes secundrias com os princpios fundamentais, e ficam estes sem se desenvolverem devidamente. pois absolutamente preciso que se procure consumar a obra da nossa regenerao poltica dando vida ao corpo social com a sano das leis regulamentares, que lhe faltam (O Cronista, n. 19 [8-14 de Jul., Lisboa], Vol. II, in Obra Poltica, Doutrinao da Sociedade Liberal, 1827, editorial estampa, p. 214.

    85. Paulo Otero, A Administrao Pblica nacional como Administrao comunitria: os efeitos internos da execuo administrativa pelos Estados-Membros do Direito Comunitrio, in Estudos em Homenagem Professora Doutora Isabel de Magalhes Collao, Vol. I, Separata, Almedina, s/data, p. 822.

    86. O controlo poltico-administrativo (e jurisdicional) comunitrio no colide com a qualidade constitucional do Governo como rgo superior da Administrao Pblica (artigo 182. da Administrao Pblica). Antes o princpio da autonomia de cada Estado-membro na definio das estruturas decisrias

  • 30 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    No plano nacional, podemos dizer, de forma abrangente, que o Direito administrativo

    relaciona-se com a Constituio em termos de concretizao, integrao e incorporao.

    Concretiza a Constituio porque reflecte os seus valores e opes fundamentais e porque

    materializa e desenvolve os seus programas e a disciplina que estabelece87. H integrao

    porque a concretiza, porque nela encontra o seu referente de valor e legitimidade e

    parmetros para a sua prpria compreenso e realizao88.

    Se o Direito administrativo, como outros ramos de direito, encontra na Constituio uma

    espcie de introduo, se, quer na parte organizatria quer na parte substantiva ou

    material, tem na Constituio os seus pressupostos89, tambm verdade que a

    Constituio incorpora Direito administrativo no materialmente constitucional, ou seja,

    Direito Administrativo constitucionalizado. Entre este, esto, segundo Freitas do Amaral,

    as normas relativas ao emprego pblico90 91. Tal no o caso da norma do n. 2 do artigo

    internas e dos procedimentos administrativos aptos implementao do Direito Comunitrio (autonomia institucional e autonomia procedimental) assegura aquela qualidade. O princpio da cooperao, lealdade ou fidelidade implicando a observncia rigorosa ou fidedigna das obrigaes comunitrias no preenche o espao ou todo o espao da autonomia. Por outro lado, os mecanismos comunitrios de controlo, preocupando-se com o cumprimento daquelas obrigaes, no deixam de passar pela garantia da prprio cumprimento do papel do Governo como rgo superior da Administrao Pblica - sobre os princpios enunciados e sobre a articulao dos referidos mecanismos de controlo com a afirmao do Governo como rgo superior da Administrao Pblica, ver Paulo Otero, A Administrao Pblica nacional como Administrao comunitria: os efeitos internos da execuo administrativa pelos Estados-Membros do Direito Comunitrio, cit., pp. 817 e segs., maxime, pp. 819 a 823 e 830 e 831.

    87. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Livraria Almedina, 1999, p. 171. 88. Como destaca Vasco Pereira da Silva se h uma dependncia constitucional do Direito

    Administrativo, a afirmao inversa igualmente verdadeira: existe tambm uma dependncia administrativa do Direito Constitucional (O contencioso administrativo como direito constitucional concretizado ou ainda por concretizar?, in Direito e Cidadania, III, Nov. 99-Fev. 2000, p. 212).

    O Direito Administrativo deve perceber-se integrado nos conjuntos mais vastos do Direito constitucional. A sobrevivncia das normas jurdicas que regulam a actividade administrativa s mudanas de axiologia poltica, de ideias e valores polticos,..., em suma s reformas constitucionais e s revolues no as desliga da ordem constitucional vigente em cada momento - Afonso Queir, A funo administrativa, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIV, Janeiro-Setembro, n.s 1-2-3, pp. 44 a 46.

    O enunciado desta relao entre o Direito constitucional e o Direito administrativo foi j expressivamente feita por Jos Frederico Laranjo, in Princpios e Instituies de Direito Administrativo, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888, pp. 10 e 11: este fornece uma parte importante dos meios necessrios para a realizao daquele; e no direito constitucional, como diz Ducrop, que se encontram o comeo dos captulos e as bases do direito administrativas; em poucas palavras: o direito administrativo uma prolongao do direito constitucional, determinada pela aco especial do poder executivo e das agregaes pblicas locais.

    89. Afonso Queir, Lies de Direito Administrativo, cit., pp. 161, 166 e 167. 90. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, cit., pp. 171 e 172. 91. A atribuio de sentido a certos preceitos constitucionais no pode desconsiderar, em certos casos,

  • Introduo 31 ________________________________________________________________________________________

    47. e as normas do artigo 269. e do artigo 266., n. 2, da CRP, que estabelecem

    princpios materiais informadores da funo pblica, constituindo Direito Constitucional

    material92.

    O sentido de uma identidade conceptual do emprego pblico est expresso na Constituio.

    Encontra nela uma unidade e um mnimo denominador comum de regime, mas encontra

    tambm nela a enunciao do lugar da sua relevncia no seio da Administrao Pblica,

    dentro da organizao poltica do Estado (Ttulo IX da Parte III, da CRP) e do cumprimento

    do programa constitucional dos fins do Estado (artigo 2. e 9. da CRP).

    A ateno ao tema tem sido uma constante nas Constituies portuguesas. Nas quatro

    primeiras, no que respeita igualdade dos cidados no acesso aos cargos pblicos, sem

    outra distino que no seja a das suas virtudes e dos seus talentos93 - numa manifestao

    por excelncia do iderio constitucional e democrtico (artigo 6., 2. parte, da Declarao

    Universal dos Direitos do Homem e do Cidado) -; no que respeita responsabilidade pelos

    erros de ofcio e abusos do poder e omisses no exerccio de funes (salvo a

    Constituio de 1911)94; e repartio de competncia entre o parlamento e o executivo (:

    reserva parlamentar da criao e supresso de empregos e ofcios pblicos e do

    estabelecimento dos seus ordenados e o cometimento ao executivo do seu provimento)95.

    Em sede de garantias fundamentais, a Constituio de 1933 afirmou o direito ao

    provimento nos cargos pblicos segundo os critrios da capacidade ou o dos servios conceitos e institutos forjados no Direito Administrativo e, em particular, no Direito da funo pblica. Pode ser o caso do conceito de funcionrio pblico e de processo disciplinar. Os direitos perifricos ou de primeira linha podem ter uma funo de interpelao e de preciso de preceitos constitucionais.

    92. Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa, cit., em anotao ao artigo 269., p. 944, e Jos Eduardo, Figueiredo Dias, Enquadramento do procedimento disciplinar na ordem jurdica portuguesa, cit., pp. 188 e 189.

    93. Cfr. ponto 13. das Bases da Constituio de 1822 e, nesta, o ttulo I (Dos direitos e deveres individuais dos portugueses), os artigos 12. e 13.; na Carta Constitucional, cfr., no Ttulo VIII (Das disposies gerais e garantias dos direitos civis e polticos dos cidados portugueses), o artigo 145., 13.; na Constituio de 1838, no ttulo III (Dos direitos e garantias dos portugueses), o artigo 30., com o aditamento da referncia ao mrito, ao talento e s virtudes, como nicos ttulos legitimadores de distines. Na Constituio de 1911, no ttulo II, em sede de Direitos e garantias individuais, regista-se, no artigo 3., ponto 32., a garantia do emprego pblico durante o servio militar obrigatrio.

    94. Cfr. artigo 14. da Constituio de 1822; artigo 145., 27, da Carta Constitucional e artigo 26. da Constituio de 1838.

    95. Cfr. respectivamente, artigo 103., XIII e XV, e artigo 123., IV (1822), artigo 15., 14, e artigo 75., 4 (1826), artigo 37., XVI, e artigo 82., II (1838), artigo 26./7., artigo 47./4., e artigo 48. (1911), tendo sido o artigo 47. recebido nova redaco com Lei n. 891, de 22.09.1919.

  • 32 Direito disciplinar da funo pblica ________________________________________________________________________________________

    prestados, mas limitou-o, no que toca s mulheres, em nome da natureza e do bem da

    famlia e admitia privilgios com base na raa96. Relevante o facto de ter autonomizado o

    tratamento do emprego pblico, dedicando-lhe no ttulo que versa sobre a ordem

    administrativa, poltica e civil, quatro dos seus sete artigos, chamando a si o

    estabelecimento de aspectos bsicos do respectivo regime97.

    A Constituio de 1976 aquela que mais longe leva o tratamento constitucio