74
Universidade de Lisboa Faculdade de Letras A Construção do Trágico em A Sereia, de Camilo Castelo Branco Jorge Filipe de Araújo da Ressurreição Dissertação Mestrado em Estudos Românicos Literatura Portuguesa 2014

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras - repositorio.ul.ptrepositorio.ul.pt/bitstream/10451/15694/1/ulfl174689_tm.pdf · entre almas sublimes e almas vulgares2. Deparamos então

  • Upload
    lythuan

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Universidade de Lisboa

    Faculdade de Letras

    A Construo do Trgico em A Sereia,

    de Camilo Castelo Branco

    Jorge Filipe de Arajo da Ressurreio

    Dissertao

    Mestrado em Estudos Romnicos

    Literatura Portuguesa

    2014

  • 2

    Universidade de Lisboa

    Faculdade de Letras

    A Construo do Trgico em A Sereia,

    de Camilo Castelo Branco

    Jorge Filipe de Arajo da Ressurreio

    Dissertao orientada pela

    Professora Doutora Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

    Pimentel e pela

    Prof. Doutora Serafina Maria Grazina Martins

    Mestrado em Estudos Romnicos

    2014

  • 3

    minha av Joaquina,

    por tudo e muito mais.

  • 4

    NDICE

    Agradecimentos ........................................................................................................................ 5

    Resumo ...................................................................................................................................... 6

    Abstract ..................................................................................................................................... 7

    Introduo ................................................................................................................................. 9

    Captulo I A tragdia e o trgico: alguns aspectos para a sua caracterizao ............ 12

    1. A tragdia e o trgico: a tradio grega ............................................................................ 12

    2. A tragdia e o trgico: a tradio romntica ..................................................................... 23

    Captulo II A Sereia: a construo do trgico ................................................................. 28

    1. O autor textual e a construo do trgico ......................................................................... 31

    2. Joaquina Eduarda: o canto da Sereia ................................................................................ 38

    3. As categorias trgicas na construo dA Sereia .............................................................. 44

    3.1 O conflito .................................................................................................................... 44

    3.2 A liberdade e a necessidade ........................................................................................ 53

    3.3 A culpa ........................................................................................................................ 61

    3.4 O conhecimento e a ignorncia ................................................................................... 66

    Concluso ................................................................................................................................ 70

    Bibliografia ............................................................................................................................. 72

  • 5

    Agradecimentos

    s Professoras Doutoras Maria Cristina Pimentel e Serafina Martins, agradeo no

    apenas as discusses de orientao e a inmera bibliografia, mas tambm a pacincia, a fora,

    a coragem que me transmitiram ao longo de todo o tempo de trabalho.

    s Professoras Doutoras Maria Alzira Seixo, Maria de Lourdes A. Ferraz, Maria Isabel

    Rocheta, Irene Fialho e aos Professores Doutores Aires A. Nascimento, Arnaldo do Esprito

    Santo, Jos Pedro Serra e Rodrigo Furtado, uma palavra de apreo pelos esclarecimentos de

    dvidas sobre pontos concretos do trabalho.

    Aos familiares e amigos, devo tambm uma palavra de gratido: aos meus pais, Rosa e

    Jorge, e ao meu irmo, Joo, que, mesmo nos momentos mais complicados, partilharam os

    meus sorrisos e as minhas lgrimas; minha prima Snia Prata, pela motivao dada nos

    momentos de desistncia; Cludia Canastra e Joana Martins pela assdua e incalculvel

    amizade; ao David Mota Veiga, Marta Romano e Sara Romano pela vida em comum; ao

    Sempre Mais Alto, nomeadamente Catarina Pato, ao Rui Moniz e ao Tiago Santos, pelo

    companheirismo, pela amizade e pela orao.

    Aos que partiram ao longo desta caminhada: que este trabalho seja tambm deles.

  • 6

    Resumo

    A Sereia uma das vrias novelas passionais escritas por Camilo Castelo Branco. Este

    tipo de narrativa camiliana caracterizado pelo conflito entre os protagonistas que pretendem

    viver o seu direito a amar e as regras impostas quer pela famlia, quer pela sociedade, quer

    mesmo pela religio. Daqui resulta uma narrativa plena de processos que visam demonstrar e

    intensificar o sofrimento resultante da situao, que no raro termina com a morte dos heris.

    A Sereia tem ainda a caracterstica de ter como fonte um manuscrito do sculo XVIII,

    descoberto no princpio do sculo XX. O objectivo do nosso trabalho analisar a construo

    do trgico nesta novela, no descurando nem a tradio grega, nem a tradio romntica da

    tragdia.

    O estudo encontra-se estruturado em dois captulos fundamentais: no primeiro, ter-se-

    em conta as questes tericas do estudo da tragdia e do trgico, na tradio grega e na

    tradio romntica, separadamente; no segundo captulo, a ateno recair sobre o estudo dA

    Sereia. Atentar-se- primeiramente no narrador, bem como na conduo de leitura que este

    realiza e os processos utilizados para comprovar a verdade do que narra. Outros elementos

    exteriores s categorias trgicas, mas que auxiliam na construo do trgico, sero analisados,

    como os paratextos da novela camiliana. Seguidamente, analisaremos quatro categorias

    trgicas e a construo destas na novela dada estampa em 1865.

    Palavras-chave: Camilo Castelo Branco, trgico, categorias trgicas, Romantismo.

  • 7

    Abstract

    A Sereia is one of the several passion novels written by Camilo Castelo Branco. This

    kind of camilian narrative is characterized by the conflict among its characters, wishing to live

    their right to love and the rules imposed either by relatives, the society or religion. Based on

    this arises a narrative filled with processes which aim to demonstrate and intensify the

    suffering of the situation, that most of the times ends with the death of the main characters. A

    Sereia has also the peculiar aspect of having as source a manuscript of the 18th century, found

    in the beginning of the 20th century. The goal of this essay is to analyse the building of the

    tragedy in this novel, without forgetting neither the Greek, nor the Romantic tragedy.

    The essay is structured in two main chapters: on the first, we will take into account,

    theoretical aspects regarding the study of the tragedy and tragic, both in the Greek and

    Romantic tradition separately; on the second chapter, our attention will focus on the study of

    A Sereia. We will concentrate our interest on the narrator, as well as on the way he leads the

    reading and the processes used to prove that what he says is true. Other unconnected aspects

    with the tragic categories, but which help in the construction of tragic, will be taken into

    account, as paratexts of the camilian novel. Afterwards, we will analyse four tragic categories

    and their construction in Camilos novel.

    Keywords: Camilo Castelo Branco, tragic, tragic categories, Romanticism.

  • 8

  • 9

    Introduo

    No Prlogo que antecede a biografia de Camilo Castelo Branco intitulada O

    Penitente, de Teixeira de Pascoaes, o escritor afirma: Se existe em Camilo um escritor

    romntico [...], existe nele tambm o ser humano ou metafsico, o interrogador da vida e da

    morte, e o terrvel juiz da Providncia (Pascoaes 2002, 26). Podemos alargar a assero de

    Pascoaes dizendo que existe um Camilo que espalha pelas pginas das suas obras um

    Romantismo em voga, mostrando, a par disso, o mais profundo da alma humana. E foi esta a

    base deste estudo. Na verdade, parece-nos que o trgico dos romances camilianos ainda no

    est suficientemente estudado. Se esse trgico aproveitado de uma escola literria que o

    alimentava, Camilo aproveita-o tambm para colocar nas suas obras os protagonistas perante

    sofrimentos que fazem questionar a condio humana, sobre esse martrio que nos parece ser

    imerecido, enfim, sobre essa morte que arranca da vida seres de excepo.

    A produo camiliana vasta e, tendo em conta a tipologia estabelecida por Jacinto do

    Prado Coelho (2001), a novela passional , sem dvida, o tipo de obra que Camilo mais

    produziu. Segundo o mesmo autor, a primeira, Carlota ngela, surge poucos anos depois da

    sua estreia como romancista. J nela, possvel verificar um aspecto sistemtico da sua

    escrita passional: o sofrimento atroz que recai sobre os protagonistas por verem negado o

    direito de amar. Os motivos que levaro os protagonistas das vrias novelas a este martrio

    podero ser diferentes; no entanto, este sofrimento ser uma constante ao longo de toda a

    produo camiliana.

    No raro, o sofrimento causado pelos familiares das personagens principais que, por

    questes de heranas, patrimnio, numa palavra, dinheiro, lhes negam o amor e a surge o

    conflito entre seres de excepo e familiares endinheirados e gananciosos.

    Por isto, acreditmos que a melhor maneira de compreender o trgico camiliano era

    estudando-o a partir das categorias da tragdia grega. Tivemos sempre presente a distncia

    que afasta a poca grega da poca camiliana e, consequentemente, os seus contextos culturais

    e religiosos. No entanto, ainda que o trgico possa ser transmitido de formas diversas (na

    Grcia antiga atravs do texto dramtico e da sua encenao; no Romantismo,

    primordialmente atravs do texto narrativo), cremos, como ser demonstrado no captulo A

    tragdia e o trgico: alguns aspectos para a sua caracterizao, que no difere o modo como

    o ser humano o vivencia ou o sente, isto , seja qual for a poca histrico-cultural, o cerne do

    trgico no muda; aquilo que difere e que tivemos em conta o quadro cultural e religioso em

    que o sujeito no qual recai a tragdia se insere.

  • 10

    Assim, nosso objectivo analisar a construo do trgico nesta novela, no descurando

    nem a tradio grega, nem a tradio romntica da tragdia, e fazendo, nas partes que assim o

    justificarem, um estudo comparativo entre A Sereia e a narrativa que encontramos no j

    referido manuscrito do sculo XVIII.

    O estudo encontra-se estruturado em dois captulos. No primeiro, teremos em conta as

    questes tericas do estudo da tragdia e do trgico, na tradio grega e na tradio romntica,

    separadamente. De facto, para o estudo da construo do trgico na novela camiliana,

    interessa-nos perceber a tragdia grega e os conceitos que dela derivam. Assim, centraremos o

    nosso estudo em quatro categorias trgicas: o conflito, a liberdade e a necessidade, a culpa, e

    o conhecimento e a ignorncia. De seguida, e uma vez que estas categorias trgicas a ele

    dizem respeito, atentaremos na figura do heri trgico enquanto sujeito sobre quem recai a

    tragdia. Outros elementos, ainda que brevemente, sero tidos em conta neste primeiro

    captulo pois nos pareceu serem importantes para o estudo que nos propusemos. Desta feita,

    referiremos tambm a importncia do coro trgico, da t e dos elementos que formam

    uma aco complexa: peripcia, reconhecimento e sofrimento.

    Posto isto, observaremos a importncia do trgico no Romantismo. De facto, ao ter

    como caracterstica a afirmao do sujeito enquanto tal, o Romantismo ope o heri

    sociedade, na qual ele no se insere. Consequentemente, atentaremos no heri e no narrador

    romnticos pois neles, de formas diversas, se exprime o trgico da poca.

    No captulo II da dissertao, a nossa ateno recair sobre o estudo dA Sereia.

    Atentaremos primeiramente no narrador, bem como na conduo de leitura que este realiza e

    nos processos utilizados para comprovar a verdade do que narra. Outros elementos exteriores

    s categorias trgicas, mas que auxiliam na sua construo, sero tidos em conta, como os

    paratextos da novela camiliana.

    Seguidamente, faremos um estudo comparativo entre a obra de Camilo e o manuscrito

    do sculo XVIII que lhe serviu de fonte, no que categoria trgica do conflito diz respeito.

    Aps isto, analisaremos as restantes categorias do trgico presentes em A Sereia. Na verdade,

    ao faz-lo, compreenderemos como Camilo constri o trgico da sua novela a partir das

    formas supremas de o dizer.

    Para o nosso estudo, utilizaremos a edio da novela A Sereia editada pela Lello &

    Irmo Editores. Para limpar o texto de repetidas referncias bibliogrficas a esta obra,

    utilizamos apenas a inicial da novela, seguida da pgina em que a citao se encontra

    exemplo: (S: 46). Quando tal acontece, referimo-nos sempre a Castelo Branco 1986.

  • 11

    O mesmo no que diz respeito edio utilizada do manuscrito do sculo XVIII.

    Utilizaremos a inicial, seguida da pgina respeitante citao exemplo: (M: 23). Ao faz-

    lo, referimo-nos sempre a Costa 1930. Ainda sobre o manuscrito acrescente-se que foi

    mantida a ortografia original da edio utilizada.

    Importa ainda salientar que optmos por referir sempre a abreviatura e a pgina de onde

    retirada a citao, no tendo seguido o critrio usado para as outras obras citadas em que so

    empregues as abreviaturas id. e ibid.

  • 12

    Captulo I A tragdia e o trgico: alguns aspectos para

    a sua caracterizao

    1. A tragdia e o trgico: a tradio grega

    Camilo Castelo Branco, nas suas novelas passionais, pe em evidncia uma mundiviso

    que, no raro, se centra no amor. Como prprio do Romantismo literrio1, o sublime e o

    grotesco surgem nas suas narrativas, opondo-se e criando, desta maneira, um conflito entre os

    que se sentem no direito de amar e os que vem no patrimnio familiar e no dinheiro (que, do

    ponto de vista camiliano, so grotescos) as foras que regem a sociedade. Ou seja, um embate

    entre almas sublimes e almas vulgares2.

    Deparamos ento com o conflito (cujo eixo o amor) que parece ser o tema central das

    novelas passionais camilianas. Contudo, o conflito no a nica forma de expressar o trgico,

    podendo ser apenas um dos meios para o fazer. Para alm disso, para um conflito ser trgico,

    os seus dois plos tm de estar ao mesmo nvel de exequibilidade e no se podem solucionar

    um ao outro. Ou seja, no possvel escolher os dois plos, em vez de apenas um. Diz Goethe

    que [t]oda a tragdia depende de um conflito insolvel. Assim que a harmonia obtida ou se

    torna possvel, a tragdia desaparece (apud Serra 2006: 56).

    Como iremos demostrar adiante, no s no conflito se manifesta o trgico dos textos

    literrios. Admitimos que ser o seu lado mais visvel; contudo, outros aspectos h a ter em

    conta.

    O tema central deste estudo a construo trgica realizada por Camilo na novela A

    Sereia. Os processos so variados, sendo indispensvel, para posteriormente os analisarmos,

    fazermos breves consideraes sobre a tragdia e o trgico.

    Para se estudar a tragicidade, temos de recuar, inevitavelmente, tragdia grega.

    Contudo, mesmo a leitura das tragdias que chegaram aos nossos dias dos seus trs maiores

    autores (squilo, Sfocles e Eurpides) no faculta de modo transparente uma definio de

    trgico. Esta dificuldade em definir o trgico advm do facto de cada obra literria (e

    centremo-nos apenas na literatura) o exprimir de diferentes maneiras, uma vez que o trgico

    nos d a possibilidade desta amplitude. Assim, na trilogia Oresteia, de squilo, o trgico

    exprime-se atravs de, pelo menos, quatro modos, que Jos Pedro Serra (2006: 14) denomina

    como categorias trgicas: o dilema/conflito de Agammnon, a deciso de Agammnon, o

    1 Cf. Rocheta 1987: 25. 2 Cf. Coelho 2001: 239 e Ferraz 2011: 192-193.

  • 13

    conhecimento de Cassandra e o conflito de Orestes. Se o conflito de Orestes diz respeito

    segunda tragdia da trilogia, As Coforas, o conflito e a deciso de Agammnon, bem como o

    conhecimento de Cassandra, tm que ver com a primeira, Agammnon. Esta simples

    observao permite-nos concluir que o trgico se pode traduzir, no mesmo texto, mediante

    mltiplas categorias.

    Quando decidimos reflectir sobre a tragdia e o trgico, tnhamos j conscincia do

    problema com que amos deparar. De facto, a definio de trgico continua a levantar

    questes e a suscitar debates entre os estudiosos. Tragdia, a nosso ver, a corporizao do

    trgico. Corporizao que ganhar diferentes contornos dependendo da poca em que se

    localiza. Assim, a forma da tragdia grega3 no ser igual da tragdia latina, renascentista ou

    romntica. Alis, no perodo romntico, o trgico pode assumir a forma de texto narrativo em

    vez do habitual texto dramtico4. Contudo, o maior problema reside na definio desse

    trgico. No o facto de uma pea de teatro ter coro, dois ou trs actores, entre outras

    caractersticas formais da tragdia grega, que faz com que ela seja uma tragdia. O trgico no

    reside na forma mas sim no contedo, que explana uma forma de olhar e ver o mundo: uma

    mundividncia trgica. No podemos, porm, negar que h caractersticas formais da tragdia

    que, aliando-se s categorias trgicas, traduzem esse modo especfico de ver o mundo.

    Recusamo-nos a tentar encontrar uma frmula que defina o trgico. A sua complexidade

    e a sua abrangncia impedem-nos de tal. Pretendemos, no entanto, formular um pensamento,

    abarcando os tpicos essenciais para a compreenso do trgico. E esse pensamento ter

    sempre de comear nos textos da Grcia antiga.

    Segundo Albin Lesky (2003: 23), [d]esde que modernamente nos de novo possvel

    considerar a Ilada e a Odisseia como aquilo que realmente so, ou seja, como obras de arte,

    [...] suscita-se com crescente vivacidade a questo relativa aos germes do trgico nas duas

    epopeias. Depois de um captulo significativamente intitulado Homero, precursor dos

    trgicos, tambm Antnio Freire, S. J. (1963: 53) coloca nos poemas do pico grego o incio

    desse esprito trgico, declarando que, [e]mbora directamente originria de uma das

    modalidades do lirismo e ditirambo, sobretudo na estrutura pica dos poemas homricos que

    entronca a dramaturgia grega. Jacqueline de Romilly (2008: 22) vai mais longe e afirma o

    seguinte:

    3 Mesmo na tragdia grega, h diferenas, quanto forma, nos textos dos trs principais tragedigrafos. 4 Devemos tambm admitir, uma vez que o trgico no se identifica com um conjunto de convenes teatrais,

    que aquele possa ter uma expresso para alm dos limites restritos da representao dramtica, quer noutros

    gneros literrios, como no romance, quer nas artes plsticas ou na msica, quer ainda na filosofia. esta, de

    resto, a razo, aliada perda de fulgor do teatro, pela qual, por exemplo, so hoje frequentes os estudos sobre a

    viso trgica de certos romancistas ou de certos romances (Serra 2006: 67).

  • 14

    Apresentar o sentimento da vida, inspirar terror e piedade, obrigar a partilhar um

    sofrimento ou uma ansiedade a epopeia fizera-o sempre e ensinou os trgicos a faz-

    -lo. Poderamos, ainda, dizer que, se a festa [em honra de Dioniso] criou o gnero trgico,

    foi a influncia da epopeia que fez dele um gnero literrio.

    De facto, no s na epopeia homrica que tal acontece. Avanando at literatura

    latina, vemos na Eneida, de Verglio, em vrios momentos, o trgico a unir-se ao pico.

    Mltiplos exemplos h, mas apontemos apenas dois. A histria de amor vivida por Eneias e a

    rainha de Cartago, Dido, culminando no suicdio desta, suscita no leitor vrios sentimentos

    que so fruto de uma certa ironia trgica: sabemos de antemo que o guerreiro troiano no

    pode viver o amor que sente por Dido, uma vez que a sua misso, outorgada pelos deuses,

    seguir em busca da terra que lhe tinha sido prometida. Desta forma, levantada tambm a

    questo, que retomaremos adiante, da fora do destino em luta com o livre arbtrio do ser

    humano. Outro exemplo, na epopeia vergiliana, o da morte de Turno, ou melhor dizendo, o

    momento de hesitao por que passa Eneias quando o inimigo j se encontra por terra sua

    merc. Vale a pena reler o passo de Verglio (Aen. XII, 938-952):

    Eneias, enrgico sob as suas armas, estava imvel, volvendo o olhar para um lado e para

    o outro, e susteve a dextra. E j as palavras [de Turno] comeavam a demov-lo e

    hesitava cada vez mais, quando o funesto cinturo comeou a despontar no cimo do

    ombro e a refulgir com os pregos familiares. Era o cinto do jovem Palante, que Turno

    vencera e prostrara com um golpe e que trazia aos ombros como trofu inimigo. Aquele,

    ao ver aqueles despojos, que faziam recordar um acerbo desgosto, inflamado pelas Frias

    e terrivelmente encolerizado, bradou:

    Pois hs-de tu escapar-me, tu que envergas os despojos dos meus? Palante que

    com este golpe te imola, Palante quem te faz expiar o teu castigo com o teu criminoso

    sangue!

    Com estas palavras, frvido de ira, enterra-lhe a espada no peito. O corpo entorpece-lhe

    com o frio da morte; a vida, com um gemido, foge indignada para as sombras. (Verglio

    2011: 336)

    Um dado significativo ainda sobre estes traos da epopeia na tragdia grega tem que ver

    com o que contado em ambas. De facto, se a tragdia [se] associou[...] sempre aos mesmos

    mitos que a epopeia (Romilly 2008: 20-21), aquela mostrava o que esta apenas contava e a

    tragdia podia assim retirar dos factos picos um efeito mais imediato e uma lio mais

    solene (ibid.: 23). A autora exemplifica o que afirma com o caso da famlia de Agammnon:

    o assassnio do Atrida s mos da mulher ou do amante desta e a vinda de Orestes para vingar

    o pai so factos que Homero j narrava na Odisseia5, tema retomado por squilo na trilogia

    trgica Oresteia.

    5 Hom., Od., I, 29-43: Pois ao corao lhe vinha a memria do irrepreensvel Egisto, / a quem assassinara

    Orestes, filho de Agammnon. / A pensar nele se dirigiu assim aos outros imortais: // Vede bem como os

    mortais acusam os deuses! / De ns (dizem) provm as desgraas, quando so eles, / pela sua loucura, que

  • 15

    De facto, a origem da tragdia grega, que teve o seu apogeu no sculo V a. C., ainda

    uma incgnita para os estudiosos. No havendo nada de substancial que confirme a teoria da

    etimologia, h contudo quem explique a origem desse gnero dramtico atravs dela. Sobre

    este assunto, Jacqueline de Romilly (ibid.: 17) informa que primeiro, existe este termo a

    trag-dia que significa o canto do bode. (...) A hiptese mais difundida consiste em

    aproximar o bode dos stiros, associados normalmente ao culto de Dioniso. A autora

    acrescenta, mais adiante, que desde a Antiguidade, alguns preferiram interpretar de outra

    forma o nome da tragdia. Pensaram que o bode era ou a recompensa oferecida ao melhor

    participante, ou a vtima oferecida em sacrifcio (ibid.: 18).

    Jos Pedro Serra (2006: 25), depois de referir esta etimologia e voltando questo da

    essncia do trgico, lembra, contudo, que o sentido etimolgico de tragdia no s no

    acrescenta qualquer luz aos textos dos tragedigrafos, revelando-se marginal, como tambm

    no nos d qualquer indicao para melhor agarrarmos o mago do trgico.

    O estilo nobre e grandioso, o final infeliz, a grandeza, a queda, o heri, o sofrimento, a

    origem da tragdia, a catarse, as correntes filosficas e morais dos comentadores, bem como

    os elementos formais da representao trgica so alguns dos conceitos de que se socorreram

    os estudiosos que tentaram definir a tragdia e o trgico.

    Como referimos anteriormente, aquilo que diz o trgico so as categorias trgicas.

    Definidas por Jos Pedro Serra (ibid.: 191-192), estas so:

    formas primeiras de dizer o trgico, gneros supremos, cada um deles englobando vrias

    concretizaes, expresses da tragdia, mas eles prprios no subordinados a nenhum

    gnero superior. Enquanto gneros supremos, as categorias so irredutveis entre si,

    oferecendo focagens diferentes do trgico. Tal facto no significa que as categorias no se

    relacionem entre si []

    Torna-se necessrio referir de que modo as categorias que mencionmos transmitem o

    trgico. Jos Pedro Serra (ibid.: 15), quando se prope caracterizar as categorias, nota que

    obrigado a admitir a possibilidade de o estudo exaustivo e pormenorizado de todas as

    tragdias gregas exigir a integrao de mais uma ou outra categoria trgica. Deste modo,

    torna-se claro que, para o autor, aquilo que realmente diz o trgico no so elementos

    sofrem mais do que deviam! / Como agora Egisto, alm do que lhe era permitido, / do Atrida desposou a mulher,

    matando Agammnon / sua chegada, sabendo bem da ngreme desgraa / pois lha tnhamos predito ao

    mandarmos / Hermes, o vigilante Matador de Argos: / que no matasse Agammnon nem lhe tirasse a esposa, /

    pois pela mo de Orestes chegaria a vingana do Atrida, / quando atingisse a idade adulta e saudades da terra

    sentisse. / Assim lhe falou Hermes; mas seus bons conselhos o esprito / de Egisto no convenceram. Agora

    pagou tudo de uma vez. (Homero 2008: 26). Cf. tambm Hom., Od., III, 193-198 e 254-312; IV, 519-547.

    Nestes passos, Homero refere sempre Egisto como o assassino de Agammnon. Contudo, em Hom., Od., XI,

    452-453, Agammnon parece afirmar ter sido Clitemnestra a sua matadora: Mas a mulher no me deixou saciar

    os olhos / com a vista do meu filho; antes disso me matou (ibid.: 193).

  • 16

    exteriores a essa maneira prpria de ver o mundo e a vida; as tcnicas do escritor, ao construir

    a aco, podem contribu[ir] para a manifestao do trgico (ibid.: 195), mas no devem ser

    tomadas por categorias (ibid.: 194) porque esses processos no nos do o cerne do trgico.

    Este s est espelhado no contedo da representao do mundo que dessa mesma tragdia

    emana (id., ibid.). Jos Pedro Serra (ibid.: 196) acaba por identificar as categorias que dizem

    o trgico: o conflito, o destino e a liberdade, a culpa, o conhecimento e a ignorncia.

    Tentaremos agora sintetizar de que modo estas quatro categorias transmitem o trgico,

    recorrendo ao pormenorizado estudo de Jos Pedro Serra sobre o tema.

    O conflito ser, porventura, a categoria que mais correntemente tem sido identificada

    com o cerne do trgico. De facto, autores houve que viram nele a principal caracterstica da

    tragdia. Contudo, se assim o tomssemos, excluiramos tragdias em que no se apresenta

    qualquer conflito. O que est em causa no a importncia do conflito insolvel como forma

    de o trgico se expressar; o que interessa salientar que no ser o nico meio para transmitir

    a tragicidade de um texto. Jos Pedro Serra (2006: 198) define desta maneira a categoria

    trgica do conflito:

    Uma oposio torna-se conflituosa quando princpios opostos exigem, simultaneamente

    para um mesmo objecto ou situao, determinaes ou solues contraditrias e

    inconciliveis. Compreende-se assim que o conflito trgico, em lugar de uma harmoniosa

    unidade de contrrios, traga consigo uma perturbao da ordem do real, ou, pelo menos,

    uma sria ameaa de desordem. O conflito apresenta-se na tragdia grega como algo

    dissonante, como um elemento de fractura na ordenao e estabilidade csmicas,

    entrevendo-se neste facto a sua natureza especificamente trgica.

    Este conflito, contudo, pode surgir de duas maneiras distintas: seja sob a forma de um

    confronto entre personagens, seja como um dilema que se ergue perante uma das

    personagens6. Deste modo, somos capazes de perceber a diferena entre o conflito que surge

    na tragdia Antgona, de Sfocles, e aquele que aparece em As Suplicantes, de squilo. Se no

    primeiro destes textos o que vemos um embate entre Antgona e Creonte pois aquela

    sepulta o irmo, contra as ordens do rei da cidade , no texto esquiliano estamos perante um

    dilema Pelasgo ou acolhe as suplicantes e, deste modo, se coloca a si e cidade numa

    guerra violenta contra os filhos do Egipto ou, ao invs, recusa proteger as Danaides,

    esquivando-se guerra mas aceitando o castigo a que a sua cidade ser sujeita por no

    cumprir o grande dever religioso de Zeus, Protector dos Suplicantes.

    Outro aspecto a que o ensasta d importncia tem que ver com a estrutura da aco. Na

    verdade, [a]s tragdias que nos apresentam uma situao conflituosa estruturam-se em volta

    6 Cf. Serra 2006: 199.

  • 17

    do conflito que, desta forma, ocupa o lugar central a partir do qual se pode compreender a

    sequncia dos acontecimentos que constituem a aco da tragdia (id., ibid.),

    denominando o autor estes textos como tragdias de conflito. No deixa o autor, porm, de

    lembrar que importa atentar no conflito central do texto trgico e no nos que surgem como

    consequncias daquele7.

    Ainda hoje, em pleno sculo XXI, o Homem se questiona sobre a existncia de um

    destino que se encontra previamente traado e ao qual ele no pode fugir. Segundo Celeste

    Brasil Soares Malpique (2012: 80), o heri muitas vezes uma personagem que, embora

    forte e corajosa, no parece usufruir de livre arbtrio; um predestinado a feitos gloriosos,

    quantas vezes um predestinado ao sofrimento. Assim, a tragdia diz-se tambm mediante

    a liberdade e a fatalidade, da tenso que entre ambas se cria (Serra 2006: 287). Por isto, a

    tenso entre a necessidade e a escolha outra das categorias que transmitem o trgico.

    Ser o Homem livre o suficiente para escolher os caminhos da sua vida? Ou, pelo

    contrrio, apenas uma marioneta nas mos de uma entidade superior? Estas posies so

    extremas. De facto, o homem trgico sabe que o lugar da sua habitao ainda o lugar de

    habitao dos deuses, terra de cultivo e de culto, e, por isso, sabe tambm que a sua sorte est

    nas mos dos deuses (ibid.: 292). Porm, este pensamento ingnuo, s por si, faria com que

    os gestos humanos dos mais gloriosos aos mais cobardes se perdessem na bruma do que

    emprestado pelas foras superiores que regem o Homem8. Por isso, o Homem trgico no

    pode ser simples marioneta, sem alma nem voz. No um ser que sofre passivamente o

    destino que lhe est guardado porque, segundo Serra (ibid.: 293), a tragdia introduz um

    elemento essencial, a conscincia:

    nem no auge da dor, quando a necessidade cumpre implacavelmente os seus austeros

    decretos, a tragdia reduz o homem condio de manipulado ttere. Na aparente

    desordem de uma sorte funesta, ou na destruio do heri pela fora da incontornvel

    necessidade, mesmo a, permanece a conscincia, foco de rebeldia contra um

    aniquilamento mudo e informe.

    Mais do que isso, o heri trgico sabe-se herdeiro do heri pico, tem conscincia de

    que, tal como ele, est sob o olhar atento dos deuses. No entanto, sabe tambm ser diferente

    do seu antecessor, na medida em que este no tem noo do que seja reflectir ou pensar sobre

    o que fazer. Ele simplesmente faz. No caso do heri trgico, h uma demora perante as

    situaes que lhe so postas no seu caminho. Esta demora, porm, no para reflectir ou

    7 Na Antgona de Sfocles, a sequncia do prlogo e dos episdios revela vrios conflitos: entre Antgona e

    Ismena, entre Hmon e Creonte, entre Creonte e Tirsias; tais conflitos, porm, so adjacentes e derivam do

    conflito central que, a propsito da sepultura de Polinices, ope Antgona a Creonte. sobre este ltimo, para

    uma compreenso do conflito trgico na Antgona, que nos devemos debruar (id., ibid.). 8 Cf. ibid.: 288-289.

  • 18

    decidir pois o homem trgico continua com a conscincia de que habitado por foras

    exteriores a ele e de que o lugar [...] onde a tenso de foras acontece (ibid.: 304). uma

    demora por se saber destoante do mundo em que habita. E nisto reside a ambiguidade do

    homem trgico: sabe-se subjugado aos deuses mas sente-se diferente da ordem universal.

    Outra das categorias trgicas estudada por Jos Pedro Serra a culpa, que est

    intimamente ligada falta ou erro trgico. Deste modo, para compreender esta categoria na

    sua essncia preciso compreender tambm onde erra e como erra a personagem.

    Uma das vertentes que distingue a culpa trgica da culpa no trgica tem que ver com o

    alcance que aquela adquire, isto , a culpa, na tragdia, atinge no s o sujeito como aquilo

    que o rodeia: A culpa vai muito alm dos limites individuais, envolve a famlia e a , e a

    vai muito alm de uma andina e inconsequente desobedincia a uma qualquer

    norma (ibid.: 343-344). Na verdade, a hamartia e a consequente culpa adquirem um lugar

    central numa cadeia de factos que se inicia no crime que exige um castigo, uma expiao,

    nica forma de reposio da ordem; este ciclo de crime e castigo integra, naturalmente, os

    sofrimentos e as infelicidades que pesam sobre os mortais (ibid.: 344).

    Directamente relacionada com esta, encontra-se a categoria trgica do conhecimento ou

    falta dele. De facto, [n]o raras vezes a falta e a culpa aparecem como o resultado de uma

    incapacidade de previso, ela prpria derivada de um conhecimento limitado (ibid.: 395).

    Mas, mais do que isto, a categoria trgica em apreo ganha autonomia, pois casos h em que o

    conhecimento ou a ignorncia, no causando erros, adquirem um grande pendor trgico. Um

    dos exemplos o caso de Cassandra da tragdia Agammnon de squilo, pois so dois os

    aspectos eminentemente trgicos na [sua] interveno []: um consiste na posse de um

    conhecimento certo, mas sem crdito; o outro consiste na irremissibilidade da conscincia,

    ainda que impotente (ibid.: 397).

    As categorias trgicas, por serem a forma suprema de dizer o trgico, recaem, todavia,

    no raro, sobre o heri. A primeira reflexo feita sobre este tipo de personagem foi a de

    Aristteles na Potica. De facto, Aristteles afirma: Uma vez que quem imita representa os

    homens em aco, foroso que estes sejam bons ou maus [...] e melhores do que ns ou

    piores ou tal e qual somos (1448a)9, esclarecendo pouco depois que a tragdia se distingue

    da comdia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela superiores aos da

    realidade (1448a). Mais adiante, o filsofo afirma que os heris trgicos so aqueles que

    9 As citaes da Potica de Aristteles referem-se a Aristteles 2011.

  • 19

    no se distinguem nem pela sua virtude nem pela justia; to-pouco caem no infortnio

    devido sua maldade ou perversidade, mas em consequncia de um qualquer erro (1453a).

    Sabendo ento que a tragdia a imitao de uma aco elevada (1449b), que o

    homem trgico deve ser superior, mas que tambm no se deve distinguir nem pela sua

    virtude nem pela justia (1453a), torna-se fcil concluir que o heri trgico tem de ser uma

    personagem que, simultnea e paradoxalmente, seja igual ao espectador da tragdia, de modo

    a que aquele consiga suscitar neste os sentimentos de compaixo e temor aquela diz

    respeito ao homem que infeliz sem o merecer, e este aos que se mostram semelhantes a ns

    (1453a) , mas tambm superior a ele. Assim, a aco elevada que cabe ao homem trgico

    deve situar-se acima da vulgaridade, alm do agir comum do homem banal, e as aces

    devem ser desenhadas de acordo com o esprito superlativo dos homens que as praticam

    (Serra 2006: 156). Importa notar que a superioridade do heri trgico no tem que ver com o

    seu estatuto social mas antes com a dimenso tica da sua aco10. Assim:

    As personagens da tragdia devem ser superiores quanto grandeza do gesto e

    linguagem, porventura quanto prosperidade, como as personagens da epopeia, mas

    devem ser como ns quanto compreenso da nossa experincia tica e quanto s

    condies de fragilidade e instabilidade em que vivemos. As personagens da tragdia

    representam-nos na dimenso mais significativa, e por isso mais grandiosa, de ns

    prprios. (ibid.: 157)

    Para Maria do Cu Fialho (1977: 381), o heri trgico tambm representa o que de mais

    profundo h na humanidade:

    A experincia trgica do Homem, dissemos ns, acontece em dor e em tenso: em dor,

    uma vez que, levando-o a conhecer-se at aos seus limites, o leva a experimentar a sua

    grandeza e a sua limitao por via de uma situao que a isto o apele, isto , uma situao

    que o ultrapasse, que ultrapasse a sua capacidade de resposta de modo a provocar a ida

    at aos confins de si mesmo. Assim, o trgico pode valer como teste de profundidade das

    personagens ou, generalizando, da profundidade humana: quanto mais profundo, mais

    trgico.

    Numa perspectiva semelhante, encontramos a definio dada por Pedro Balaus Custdio

    (1997: 1002; itlico original), afirmando que a tragdia pe em palco o H[eri] no momento

    mais pattico da aco, quando sobre ele se abatem os infortnios e os cruis desgnios do

    destino, isolando-o e obrigando-o a pesados e insuportveis sacrifcios.

    Num estudo que se afasta em parte da literatura para se centrar na psicologia do ser

    humano em relao com mitos e heris, Celeste Brasil Soares Malpique (2012: 80) define no

    10 O essencial parece estar [...] no valor da aco, no alto significado tico que esta tem de assumir para que o

    se torne grave e srio (Serra 2006: 156).

  • 20

    s o conceito de Heri11, como faz a distino entre heri pico e heri trgico. Se quele se

    atribuem feitos extraordinrios, coragem e argcia que os torna capazes de vencer obstculos

    at ento intransponveis, a este esto reservadas as subtilezas e conflitos da alma humana:

    ele vive no seu interior a luta, o conflito, e debate-se com a tragdia da sua condio

    humana, isto , entre sentimentos contraditrios, entre o amor e o dio, entre os impulsos de

    vingana e a culpa, entre o desejo e a impotncia face aos impulsos (ibid.: 81).

    Paralelamente ao heri trgico, outra personagem adquire um especial relevo na

    tragdia tica: o coro. No que a este diz respeito, Aristteles, na Potica, chama a ateno

    para a sua importncia pois o coro no s deve ser considerado como um dos actores, mas

    tambm ser uma parte do todo e participar na aco (1456a).

    Mas como participa o coro da aco trgica? Qual a razo para que o coro seja

    considerado como um dos actores, tendo assim tanta importncia como as outras

    personagens? O coro era o elemento mais importante da tragdia, no seu incio, e como

    exemplo para esta relevncia encontramos certas tragdias que eram intituladas com os nomes

    dos coros12. Isto acontecia porque, na origem, o coro tinha um papel preponderante no curso

    da tragdia (Romilly 2008: 29). O destino dele dependia do destino das outras personagens e,

    por isso, compreendemos que ele tenha que intervir, suplicar, esperar, e que, enfim, as suas

    emoes marquem o compasso, de um extremo ao outro, das diversas etapas da aco (ibid.:

    30).

    Contudo, o coro impotente. De facto, s resta, ao coro trgico, esperar sem nada fazer,

    lamentando-se apenas, suplicando por vezes. A sua sorte ser decidida pela aco das outras

    personagens e nunca pela dele. Por isso, diversas vezes, encontramos um coro constitudo por

    mulheres ou ancios que no podem combater ou defender-se13.

    Voltemos um pouco atrs e lembremos o que Aristteles disse sobre os heris trgicos:

    no se distinguem nem pela sua virtude nem pela justia; to-pouco caem no infortnio

    devido sua maldade ou perversidade, mas em consequncia de um qualquer erro (1453a).

    A traduo do termo por erro no de todo despropositada. De facto, se o vocbulo

    grego poderia ser traduzido tambm por falta ou falha, a opo escolhida mostra a

    11 Tem pois coerncia falar aqui de Heris, como figuras arquetpicas dotadas de atributos excepcionais para

    confrontar a Natureza e superar a morte (Malpique 2012: 79). 12 Os Persas, As Suplicantes, As Coforas, As Eumnides, incluem-se nestes casos; e tambm, para Eurpides,

    As Troianas ou As Bacantes. Acontece mesmo que o ttulo tenha sido dado deste modo, quando a natureza do

    coro j no permitia definir o contedo da tragdia como com As Traqunias, de Sfocles, ou As Fencias, de

    Eurpides (Romilly 2008: 28). 13 os ancios dos Persas e os do Agammnon so exemplos bem claros; e os do Agammnon at se lamentam,

    no incio da pea (ibid.: 30).

  • 21

    interpretao que de se tem vindo a adoptar14. Jos Pedro Serra (2006: 160) chama a

    nossa ateno para o facto de a oscilao entre erro moral e erro intelectual [ser] grande,

    dependendo das pocas e dos autores. Entre estes dois plos interpretativos do vocbulo

    grego surge outro: defeito de carcter. Deste modo, deparamos com trs interpretaes

    possveis: falha moral, defeito de carcter, e erro intelectual15.

    A primeira destas interpretaes tem, antes de mais, um fundo lingustico: de facto, o

    termo foi traduzido para o latim cristo por peccatum, assumindo na Idade Mdia o

    sentido moral que ainda hoje lhe atribudo16. O que de falha moral se conclui tem ento que

    ver com um erro cometido em conscincia, ou seja, um pecado, um crime:

    Por detrs dessa equivalncia [de hamartia a culpa] est implcita uma moralizao da

    arte, nomeadamente dramtica, no sentido de substituir a causalidade de uma cadeia

    factual pela de uma cadeia tica, isto , a queda do heri seria o resultado dos seus

    peccata, na relao de castigo e culpa, testemunho de uma justia universal e

    transcendente (Fialho 1977: 384).

    O mesmo, embora de uma outra forma, acontece com a interpretao de por

    defeito de carcter. De facto, subjacente a este conceito est o facto de o erro ser cometido em

    conscincia tal como na de falha moral. Contudo, aqui, o que leva o heri a cometer a falta

    um trao da sua personalidade, seja a raiva ou o cime, entre outros. No entanto, Jos Pedro

    Serra (2006: 164-165) adverte: Tornou-se, todavia, comum perguntar aos defensores desta

    tese se o que consideram defeito de carcter no apenas o sinal da sua diferena, do estatuto

    de seres de excepo, e como tal condio da sua elevao. Na verdade, habitualmente, o

    heri excepcional por se revoltar, de alguma maneira, contra uma ordem instituda e nessa

    revolta estar sempre uma imperfeio que o excepcionaliza.

    No entanto, como referimos anteriormente, a interpretao do termo grego como erro

    intelectual tem sido a preferida actualmente. Mesmo Aristteles afirma explicitamente o facto

    de os heris no ca[r]em no infortnio devido sua maldade ou perversidade, mas em

    consequncia de um qualquer erro (1453a), isto , no resvalam da felicidade para a

    infelicidade por culpa de um erro cometido em conscincia, mas sim de um erro cometido em

    ignorncia. E esta a interpretao de como erro intelectual: Privado de

    conhecimento, tendo dos factos uma viso incompleta, o homem erra e a desgraa acontece

    como o prolongamento dos limites humanos (Serra 2006: 165).

    14 Cf. Sad 1978: 13 e Serra 2006: 165. 15 Cf. Serra 2006: 165. Suzanne Sad (1978: 11-16), no seu estudo La Faute Tragique, tem um subcaptulo

    significativamente intitulado La faute tragique: crime, erreur ou dfaut?. 16 O cristianismo entendeu e usou num sentido vincadamente moral, traduzindo o termo grego por

    peccatum, e designando o pecado, no seu sentido mais grave e pleno, a recusa livre, radical e consciente de

    seguir a vontade de Deus, especial e gratuitamente revelada na Sua Palavra (Serra 2006: 161).

  • 22

    Se estas so trs interpretaes que se apartam umas das outras, aparecendo cada uma

    delas em textos e autores diferentes, Maria do Cu Fialho (1977: 383-384) interpreta todavia o

    termo de uma forma geral e que nos parece ser a mais correcta:

    aparece como constante a hamartia que no culpa, nem dor, nem erro, mas incapacidade

    de atingir algo, incapacidade do Homem de coincidir com os seus prprios fins, o que o

    transformaria de mortal em deus; hamartia a prpria limitao constitucional do

    Homem finitude que pode englobar culpa, dor ou erro (ou ser actualizada numa ou

    vrias dessas formas) mas que as ultrapassa para significar um dos aspectos da prpria

    condio humana.

    Outros conceitos tm tambm de ser explicados por terem que ver com o enredo da

    tragdia. Aristteles diferencia a aco simples da aco complexa. Para o filsofo, a primeira

    aquela que [...] coerente e una e em que a mudana de fortuna se produz sem peripcias

    nem reconhecimento (1452a). Logo, a aco complexa acontece quando a mudana for

    acompanhada de reconhecimento ou peripcias ou ambas as coisas (id., ibid.).

    Interessa-nos ento entender o que so estes elementos e

    que tornam uma aco complexa.

    Aristteles, ainda no pargrafo antes citado, tambm na Potica, define estas duas

    partes do enredo trgico:

    Peripcia [...] a mudana dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como

    costumamos dizer, de acordo com o princpio da verosimilhana e da necessidade. [...]

    Reconhecimento, como o nome indica, a passagem da ignorncia para o

    conhecimento, para a amizade ou para o dio entre aqueles que esto destinados

    felicidade ou infelicidade. O reconhecimento mais belo aquele que se opera

    juntamente com a peripcia [...].

    Dadas as definies aristotlicas, torna-se fcil perceber a importncia destes dois

    elementos na aco trgica. Sem eles, no haveria enredo que pudssemos designar como

    trgico.

    Vejamos ento o que em torno destes conceitos tm dito os estudiosos da tragdia

    grega. Segundo Jacqueline de Romilly (cf. 2008: 47), as peripcias e o reconhecimento da

    aco surgem como concluso de dois processos usados pelos tragedigrafos para tornar as

    situaes patticas. Assim, os dois processos usados com esse fim so: levar uma situao

    ameaadora at ao seu limite extremo e at ao momento em que o desastre tem que se

    realizar e tornar esta situao particularmente horrvel, supondo na sua origem um erro da

    pessoa (id., ibid.). Do primeiro, resultar que a situao termina com aquilo a que

    chamamos um golpe de teatro (id., ibid.), ou seja, uma peripcia; no segundo, a situao

    termina com um reconhecimento podendo o reconhecimento por vezes, mas nem sempre,

    apresentar-se como um golpe de teatro (id., ibid.). Para a autora, estes dois processos, aliados

  • 23

    s personagens e situaes patticas, aumentam o sofrimento daquelas e o patetismo de toda a

    aco17.

    Na sua anlise, Jos Pedro Serra (2006: 152-153) vai mais ao fundo do que a essncia

    destes elementos da aco trgica. No que peripcia diz respeito, o autor informa:

    A peripcia, implicando uma revelao inesperada que altera radicalmente a compreenso

    dos acontecimentos, supe um abismo entre as intenes, as convices, as motivaes

    que levam o homem a agir e a provisoriamente acolher-se no aparente sentido da aco, e

    o sentido real e ltimo, cruel seara de dor que o homem colhe ao tomar conscincia da

    amplitude e das consequncias incalculveis, mas irremediveis e irrefutveis, da sua

    aco.

    Deste modo, percebemos a dimenso trgica que a peripcia acarreta: porque o [...]

    olhar [do homem] parcial e o entendimento limitado, ou porque presa s mos do destino e

    jogo s mos dos deuses, o fruto da sua aco o reverso do sonhado (ibid.: 153).

    Assim, Serra (id., ibid.) chama a ateno para o ntimo relacionamento entre peripcia e

    reconhecimento: A inesperada mudana no sentido da aco supe uma ruptura na habitual

    compreenso dos factos e a irrupo de uma nova conscincia de onde deriva, impondo-se, o

    novo e decisivo sentido dos acontecimentos. Por isso, Aristteles revela a sua predileco

    pela aco complexa18 uma vez que s nesta o recndito se mostra patente e o homem ganha

    uma conscincia mais funda e completa daquilo que uma ilusria veste cobria (id., ibid.).

    Tendo esta conscincia, o autor no hesita em afirmar, sobre o sofrimento, que [d]or,

    luto, infelicidade coroam o que nasceu dos melhores propsitos, das mais belas esperanas,

    das mais nobres convices (id., ibid.)19.

    2. A tragdia e o trgico: a tradio romntica

    A complicada definio de Romantismo tem como base as muitas e vincadas diferenas

    entre os Romantismos que surgiram na Europa entre finais do sculo XVIII e meados do

    sculo XIX. De facto, cada pas, cada cultura, cada literatura apropriou-se dessa nova

    concepo de arte, reconfigurando-a em funo do seu contexto sociocultural. Importa,

    porm, notar que h caractersticas que, unificando as vrias expresses deste perodo

    literrio, fazem com que autores como Oflia Paiva Monteiro (2001: 965) ou Vtor Manuel de

    Aguiar e Silva (2010: 542) defendam o uso do termo Romantismo em detrimento do plural

    17 Este pattico, preparado deliberadamente por meio de uma aco mais desenvolvida, uma das tendncias

    essenciais da tragdia tal como Eurpides a praticou. E ento aparecem um certo nmero de procedimentos que

    podiam servir para este fim (Romilly 2008: 46). 18 Dado que a composio da tragdia mais perfeita no deve ser simples, mas complexa (1452b). 19 O sofrimento , segundo Aristteles, a terceira parte do enredo: o sofrimento um acto destruidor ou

    doloroso, tal como as mortes em cena, grandes dores e ferimentos e coisas deste gnero (1452b).

  • 24

    Romantismos, vocbulo empregue por Arthur Lovejoy para designar a poca em questo,

    dadas as assincronias e disparidades que se verificam, nos vrios espaos culturais europeus,

    quanto s manifestaes a ter em conta (Monteiro 2001: 965).

    Com efeito, a caracterstica basilar de todo o Romantismo europeu, e da qual todas as

    outras derivam, tem que ver, como assinala Aguiar e Silva (2010: 543), com uma nova

    concepo do eu, uma forma nova de Weltanschauung, radicalmente diferentes da concepo

    do eu e da Weltanschauung tpicas do racionalismo iluminista. Este novo entendimento do

    sujeito como ser nico20 acarreta consigo, inevitavelmente, um outro conceito de grande

    importncia neste perodo: a conscincia. Desta forma, o indivduo tomar conscincia

    daquilo que e, na sua busca pelo infinito, ter a trgica conscincia da sua finitude:

    O esprito humano, para os romnticos, constitui uma entidade dotada de uma actividade

    que tende para o infinito, que aspira a romper os limites que o constringem, numa busca

    incessante do absoluto, embora este permanea sempre como um alvo inatingvel.

    Energia infinita do eu e anseio do absoluto, por um lado; impossibilidade de transcender

    de modo total o finito e o contingente, por outra banda eis os grandes plos entre os

    quais se desdobra a aventura do eu romntico. (ibid.: 544)

    No custa assim compreender que o romntico encontre no trgico a melhor forma para

    escrever sobre o sujeito que se encontra em permanente conflito.

    Maria Isabel Rocheta (1987: 27), numa afirmao muitssimo pertinente, declara que

    alguns dos aspectos mais significativos da mundiviso romntica esto prximos de

    elementos fundamentais do trgico. Segundo a mesma autora, esta afirmao do eu como

    ser nico de que falmos tem o seu aspecto trgico no conflito constante entre a sua vontade,

    o [seu] querer [...] e o dever imposto pela sociedade (id., ibid.).

    Mas o aspecto que a autora ressalta como o grande tema do Romantismo o amor,

    enquanto afirmao do direito a sentir (ibid.: 28). E isto torna-se relevante para o nosso

    estudo, principalmente por Camilo ter escrito de facto sobre este tema. Na verdade, os seus

    heris passionais lutam e enfrentam as foras que lhes so contrrias, demonstrando assim os

    direitos do corao. Veremos adiante como a herona dA Sereia afirma, mesmo pela maneira

    como morre, o seu direito de amar.

    No Romantismo, vemos, no raro, esta concepo do amor como paixo que implica a

    dor e a morte (ibid.: 29). O patetismo que explanado na literatura da poca tem

    essencialmente que ver com a atraco pelo sofrimento, a vontade e a capacidade de o

    entender e de o exprimir (id., ibid.) que o escritor tem, muitas vezes, como atributos.

    20 O ressurgimento do Eu no Romantismo implica, decisivamente, a recuperao da ideia renascentista do

    homem como unidade de poder e de impotncia, de conhecimento e de enigma, de subjectividade e de natureza

    (Argullol 2009: 25).

  • 25

    As noes expressas anteriormente, no que dizia respeito tragdia grega, de ,

    de queda, de e mesmo de culpa tero de ser analisadas luz do contexto histrico-

    cultural cristo do Romantismo portugus. Segundo Maria Isabel Rocheta (ibid.) nos informa

    e os textos mostram, o sentimento religioso bem caracterstico, como sabido, da literatura

    romntica. Se na tragdia grega, como vimos, a a maioria das vezes interpretada

    como um erro intelectual, nas obras romnticas, vemo-la, diversas vezes, ser entendida como

    falha moral, como pecado. Contudo, a obra camiliana no deixa de plasmar a falta trgica

    como defeito de carcter ou como erro intelectual. Exemplos disso so os casos de Simo de

    Amor de Perdio21 e de Brs e Josefa de O Olho de Vidro, respectivamente.

    Tambm como na tragdia tica, estes conceitos s tero fora e tragicidade, no

    Romantismo, ao serem vividos pelos heris romnticos. Se, tal como no heri trgico,

    podemos observar, em relao ao espectador/leitor, a igual conscincia da fragilidade

    humana, a superioridade no que diz respeito dimenso do seu acto e a profundidade da dor,

    no heri romntico h algo a ter em conta que o diferencia daquele: o Absoluto, esse infinito

    romntico que o heri tenta alcanar.

    O heri romntico tem como principal caracterstica a excepcionalidade, em relao s

    restantes personagens do texto. Deste modo, o heri tem ideais que no se coadunam com os

    da sociedade em que se insere e, por isso, tenta infringir as regras e/ou leis desta. Diversas

    vezes, o amor, enquanto afirmao do direito a sentir (ibid.: 28), o ideal que os heris

    tentam em vo enaltecer, facto que no cabe nas regras sociais vigentes22.

    Como podemos facilmente verificar, o heri romntico por excelncia aquele que

    apresenta sempre em si as caractersticas trgicas que no o deixam viver harmoniosamente

    na sociedade em que se insere. De facto, aquilo a que aspira, o Absoluto que pretende, no lhe

    dado na vida terrena, encontrando, no raro, apenas na morte a soluo para tal conflito.

    Assim, para o romntico, a morte aparece como um horizonte fixo, mas s como culminao

    de um processo em que o morrer uma operao lenta e no isenta de gozo (Argullol 2009:

    317). E esta mesma morte mais no do que libertao (Ferraz 2011: 193) ou reafirmao

    da essncia da vida ante o vazio da existncia, ou seja a angstia do ser-para-a-morte

    transforma-se no ambguo gozo de morrer-para-ser (Argullol 2009: 317). Consequentemente,

    21 A diegese entra, assim, em nova fase: o protagonista age, agora, sob o poder do temperamento, ainda quando

    isso implica renunciar ao seu projecto. Ele poderia, aparentemente, adiar a vingana para no comprometer o seu

    futuro com Teresa. Mas no pode faz-lo: a sua personalidade arrasta-o a perder-se (Rocheta 1987: 156; itlicos

    originais). 22 Cf. Custdio 1997: 1001 e Reis e Lopes 2007: 194.

  • 26

    perceber-se- que Pedro Balaus Custdio (1997: 1003) afirme que [n]o h um H. onde no

    haja tambm enormidade e excesso.

    Como veremos, na construo do trgico dA Sereia, h outra instncia narrativa que

    preciso ter em conta: o autor textual. Isto porque, sendo parte da diegese, o autor textual

    fortalece tambm essa construo trgica da intriga.

    O narrador surge, no Romantismo, como autor textual, entidade fictcia a quem, no

    cenrio da fico, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicao

    narrativa (Reis e Lopes 2007: 257). Helena Carvalho Buescu, de modo a ter uma

    perspectiva lata deste conceito no Romantismo literrio portugus, comea por se ocupar de

    dois dos escritores que mais sistematicamente fizeram uso deste processo: Almeida Garrett e

    Camilo Castelo Branco. Assim, a autora explicita as estratgias que ambos os escritores

    utilizam de maneira a haver uma identificao entre o autor (emprico) e o narrador

    (personagem ficcional)23. No que a Camilo diz respeito, Helena Carvalho Buescu (1997: 29)

    estrutura a presena deste autor textual em trs grupos:

    o primeiro, aquele em que se realiza a figurao de um autor-personagem, cuja

    centralidade organizadora para a obra em questo nunca de mais sublinhar; com esta

    figurao se articula ainda aquilo a que chamarei a fico do editor [] e tambm a

    estratgia preferencial do manuscrito encontrado []. O segundo grupo aquele em

    que se manifesta a representao de um autor-carreira []. Finalmente, o terceiro

    grupo [] constitudo por sries romanescas que entretecem, no seu interior, relaes

    intertextuais cuja consistncia central para o entendimento do universo romanesco nele

    proposto.

    O narrador-autor, longe de se manter distncia daquilo que narra, surge intimamente

    ligado diegese, dando a conhecer, atravs do seu discurso, aquilo que a histria narrada lhe

    faz sentir24. No raro, conduz o leitor a juzos de valor que so dele mas que,

    consequentemente, passam a ser os de quem l. Maria de Lourdes A. Ferraz (2011: 248)

    afirma:

    no so nem a sua figura fsica nem os seus traos psicolgicos que as definem [s

    personagens camilianas], mas os sentimentos do autor relativamente empatia que revela

    na prpria descrio com que as apresenta, no modo mais ou menos directo ou indirecto

    que utiliza para as dar a ver.

    Deste modo, fica perceptvel que o autor textual auxilia na construo trgica da intriga

    pois, sendo um narrador subjectivo, ao dar a conhecer a sua perspectiva de leitura e os seus

    23 Cf. Buescu 1997: 28-29. Exemplos destas estratgias garrettianas so as referncias a si prprio como autor de

    outros livros (associando-se figura do autor-carreira), as referncias elogiosas annimas, menes de

    episdios autobiogrficos e, talvez a mais importante, quando o autor se veste do papel de editor da obra de

    outrem (Lrica de Joo Mnimo, a novela inserida nas Viagens na Minha Terra ou O Arco de SantAna, cujo

    subttulo , a este respeito, de grande importncia: Crnica Portuense manuscrito achado no convento dos

    Grilos, no Porto, por um soldado do Corpo Acadmico). 24 Cf. Coelho 2001: 397.

  • 27

    juzos de valor, aproxima-se do papel do coro trgico, apesar das particularidades de cada um.

    O autor textual, tal como o coro, interfere na intriga mas, tambm como ele, impotente

    perante o sofrimento que recai sobre os heris. Resta-lhes, ao coro e ao autor textual, lamentar

    a sorte das personagens.

  • 28

    Captulo II A Sereia: a construo do trgico

    Anbal Pinto de Castro (1991: 254), investigador que muito se dedicou passagem da

    realidade fico na novela camiliana, afirmava que era chegado o tempo de avaliar as

    vrias funes do real na constituio de um universo diegtico de ndole intrinsecamente

    romntica, ou, sobretudo, de determinar o papel e a importncia da imaginao na criao

    daquele universo fictcio, a partir de uma realidade histrica, porque acontecida. A novela A

    Sereia continua a ser a nica da qual se conhece o texto que lhe serviu de base, dando ensejo

    ao autor de escrever, aps os tercetos que a abrem: Num livro manuscrito, e datado de 1768,

    os encontrei. Em cinquenta pginas de prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos

    versos (S: 4). Contudo, s no ltimo pargrafo da novela Camilo oferece ao leitor mais

    pormenores sobre este manuscrito: Ora, Joo de Melo e Npoles, o salvador do cadver de

    Joaquina Eduarda, morreu na flor dos anos, depois de haver escrito os apontamentos

    essenciais desta histria, que foram encontrados na livraria do baro de Prime, fidalgo de

    Viseu, falecido h poucos anos (S: 159).

    De facto, o tpico do manuscrito encontrado regular no s em Camilo, mas no

    Romantismo em geral. O que torna notvel o caso d'A Sereia o facto de haver um

    manuscrito que acreditamos ser o usado por Camilo como base para a escrita desta novela25.

    Dissemos manuscrito usado como base para a escrita da novela. A tradio dos

    palimpsestos vem de longe. Sabemos que palimpsesto um manuscrito cujo texto os copistas

    medievais eliminavam atravs da lavagem ou, mais tarde, de raspagem com pedra-pomes para

    depois o reutilizarem na cpia de um novo texto. Utilizando assim este termo num sentido

    figurado, Grard Genette (1982) adoptou-o como ttulo da sua obra sobre as relaes de

    hipertextualidade na literatura. Contudo, no podemos afirmar ser a novela camiliana um

    hipertexto em relao ao hipotexto, que seria, neste caso, o manuscrito que lhe serviu de base,

    sem justificar a nossa posio. Nesse sentido, cabe agora atentar na teoria da hipertextualidade

    defendida por Genette e perceber de que modo ela se relaciona com os textos que aqui esto

    em causa. E essa relao s se poder perceber demonstrando, numa primeira fase, a nossa

    convico de que estamos perante um texto que serviu de base a outro, ou seja, de que

    estamos perante um hipertexto e um hipotexto.

    Genette (ibid.: 7) define a transtextualidade como tout ce qui le met [o texto] en

    relation, manifeste ou secrte, avec dautres textes, afirmando adiante haver cinco tipos de

    25 Cf. Martins 2005: 11.

  • 29

    relaes transtextuais: a intertextualidade, a paratextualidade, a metatextualidade, a

    hipertextualidade e a arquitextualidade (ibid.: 8-11).

    Para o objectivo do nosso trabalho, importa atentar no quarto tipo, ou seja, na

    hipertextualidade. A primeira definio dada pelo autor simples e parece ser a mais

    adequada: Jentends par l [hypertextualit] toute relation unissant un texte B (que

    jappellerai hypertexte) un texte antrieur A (que jappellerai, bien sr, hypotexte) sur lequel

    il se greffe dune manire qui nest pas celle du commentaire (ibid.: 11-12).

    Porm, esta relao, segundo Genette (ibid.: 12) pode ser de duas ordens distintas:

    lordre, descriptif et intellectuel, o un mtatexte [...] parle dun texte ou de uma outra

    ordem:

    Elle peut tre dun autre ordre, tel que B ne parle nullement de A, mais ne pourrait

    cependant exister tel quel sans A, dont il rsulte au terme dune opration que je

    qualifierai, provisoirement encore, de transformation, et quen consquence il voque

    plus ou moins manifestement, sans ncessairement parler de lui et le citer.

    Como j afirmmos, acreditamos estar perante um hipotexto e um hipertexto. Castelo

    Branco Chaves (1968: 16-17), depois de resumir a histria do manuscrito, faz uma breve

    comparao entre as personagens, deixando subentendido, na forma como o faz, que acredita

    estar perante o texto que serviu de base a Camilo: O leitor da novela entra logo, ao primeiro

    cotejo entre a narrativa do manuscrito e a histria contada pelo novelista, a aperceber-se de

    que Camilo deu aos seus personagens estatura sentimental, moral e social muito mais

    elevadas (ibid.: 16).

    Por sua vez, Jacinto do Prado Coelho (2001: 448) levanta a hiptese de Camilo ter tido

    acesso histria pelo manuscrito, no deixando por isso de fazer uma breve comparao entre

    a aco de ambas as narrativas e mostrando que, na primeira parte da novela, h numerosas e

    flagrantes coincidncias com a verso do citado manuscrito. Demonstra tambm, a partir

    dessa comparao, que a verso camiliana segue um caminho em grande parte independente,

    logo a pouca distncia do comeo (ibid.: 449).

    Tambm Serafina Martins (2005: 13) deixa claro na sua comparao o facto de acreditar

    ser o manuscrito o hipotexto da novela:

    No que respeita meramente intriga, so muitas as semelhanas entre os dois textos;

    temos, por exemplo, o nascimento das duas sereias em Viana do Castelo, a composio

    do crculo familiar (uma irm e um irmo, ambos mais velhos, com a diferena de que a

    protagonista do manuscrito ainda tem me, o que no sucede com a Joaquina Eduarda

    camiliana), o papel tutelar do irmo, eclesistico nos dois casos, a residncia em Barcelos,

    a ida para o convento (embora por motivos distintos), a ligao amorosa com um

    estudante, a fuga de ambos para Sevilha, o abandono/afastamento por parte do amante

  • 30

    (tambm quanto ao motivo que leva a esse afastamento os textos se apartam), o facto de

    em ambas as narrativas a figura masculina seguir vida religiosa.

    Num estudo intitulado Retrica da Fico: a construo da narrativa camiliana, Joo

    Paulo Braga Correia da Silva (2011: 212), ao analisar a transformao a que Camilo

    submeteu essa fonte na construo da diegese apresentada em A Sereia, conclui que,

    [a]proveitando as personagens da histria original, o autor enriqueceu e tornou mais

    complexa a estrutura dramtica da intriga.

    Numa tentativa de organizao das matrias a serem exploradas de modo a perceber a

    construo do trgico nA Sereia, faremos uma anlise da obra, estruturando-a a partir dos

    conceitos trabalhados no captulo referente ao trgico e tragdia.

    Assim, analisaremos, em primeiro lugar, o papel do narrador. O autor textual camiliano

    uma entidade que, a vrios nveis, se exibe no discurso e que, por isso, configura, mediante

    vrios processos, o trgico presente na obra. Assim, atentaremos na conduo de leitura feita

    por esse autor textual que a todo o momento faz ver o seu querer26, bem como nos processos

    de comprovao da verdade que usa para dar a sua histria como acontecida.

    De seguida, analisaremos de que modo se constroem as categorias trgicas na novela

    camiliana, tendo em conta o texto que est na sua base. O conflito, como vimos, acontece

    quando duas entidades opostas exigem solues diversas para uma mesma situao,

    provocando assim uma ameaa de desordem, uma perturbao. Iremos analisar de que modo

    construdo o conflito principal ao longo da narrativa de Camilo.

    Embora relacionando-se com a anterior, atentaremos depois na categoria trgica que

    tem que ver com o destino em oposio ao livre arbtrio humano. De facto, o destino uma

    constante nas obras de Camilo. A fora que rege os Homens e que, de vez em quando, parece

    estar associada Divina Providncia trgica por si s, se pensarmos que ela rege as

    personagens camilianas sem que estas tenham a liberdade de escolher o caminho a seguir.

    Contudo, para melhor entender se, de facto, no h opo de escolha para as personagens de

    Camilo e se elas so apenas guiadas por uma fora que as transcende, analisaremos a obra sob

    este ponto de vista, realando os passos em que as personagens parecem escolher o caminho

    que querem para si.

    Apesar de nos encontrarmos perante uma obra em que o trgico se diz mais

    profundamente atravs do conflito e do destino, no deixaremos de atentar nas restantes

    26 Baseados em Maria Isabel Rocheta (1987), o querer do autor textual tem que ver com a leitura que ele quer

    que os leitores faam das suas narrativas, mostrando-o quer no lxico utlizado, quer mediante asseres

    opinativas sobre as personagens e as situaes.

  • 31

    categorias trgicas. Assim, a anlise da culpa enquanto categoria trgica ajudar a entender a

    dicotomia destino/escolha, pois, em nosso entender, s quando a entendida como

    falha moral se pode considerar que haja culpa; s quando as personagens efectivamente

    escolhem que se pode falar numa culpa que lhes possa ser atribuda ou at por elas

    percebida. Como tambm j ficou expresso anteriormente, a culpa trgica caracteriza-se pelo

    alcance que esta adquire, no recaindo as consequncias apenas sobre o culpado.

    Neste seguimento, resta-nos, no que s categorias trgicas diz respeito, a do

    conhecimento e ignorncia. Neste caso, analisaremos pressgios, sonhos e outros elementos

    que, de alguma maneira, trazem para o presente das personagens o futuro que lhes est

    reservado.

    1. O autor textual e a construo do trgico

    Conhecida a mxima que Camilo Castelo Branco (1959: 7) diz ser a sua logo no incio

    da novela Carlota ngela (1858):

    VERDADE, NATURALIDADE, E FIDELIDADE

    a minha divisa, e s-lo- enquanto este globo se no reconstruir feio do disparate

    com que uns o alindam e outros o desfeiam.

    De facto, esta vontade de contar a verdade, sendo natural e fiel, ser uma preocupao

    que autor demonstrar ao longo da sua produo romanesca. Por isto, Anbal Pinto de Castro

    (1976: 18) afirma:

    Pela sua permanente preocupao de naturalidade e de verdade ou melhor, de

    verosimilhana Camilo capricha em procurar uma ligao to estreita quanto possvel

    entre o narrador e a diegese, mesmo quando se serve de um narrador heterodiegtico,

    variando embora os subterfgios a que lana mo para estabelecer essa ligao ou

    aproximao.

    No ser ento de estranhar ver o autor textual camiliano ser personagem, que

    testemunha daquilo que conta. As narrativas so validadas por este narrador homodiegtico

    que participa da diegese, mantendo com o leitor um pacto de autenticao (Silva 2011: 38),

    seja por o narrador ser amigo e confidente de personagens, seja por ter acesso histria

    atravs de outras formas27. Disto decorre que as histrias contadas pelos narradores

    homodiegticos de Camilo so altamente subjectivizadas porque a construo da narrao

    nestes moldes torna [...] o narrador no s num mediador de informao, mas tambm um

    mediador de sentimentos (ibid.: 39).

    27 Cf. Silva 2011: 32-36.

  • 32

    No hipotexto e no hipertexto, encontramos, pelo menos, trs estatutos diferentes de

    narrador. O manuscrito consiste numa Carta de um amigo a outro escrita do Porto ou istria

    da vida de D. Joachina Antonia chamada A Sereia. A primeira parte da carta consiste numa

    introduo, tendo por narrador F., assinante da carta, que conta como travou conhecimento

    com Joaquina e como esta lhe contou a sua histria (M: 17-21). No entanto, outra voz se

    impe. O narrador da primeira parte d voz prpria Joaquina para ser ela a narrar os

    sucessos da sua vida: Como era preciso fazer horas para esperar pelos companheiros, pedi-

    lhe que, em tanto que eles no vinham, me contasse a sua vida, ao que ela, depois de alguma

    repugnancia, satisfez deste modo (M: 21). Podemos ento verificar que existem dois

    narradores neste manuscrito e, em nosso entender, com estatutos diferentes: um narrador

    homodiegtico (F.) e um narrador autodiegtico (Joaquina).

    Por outro lado, na novela A Sereia, o autor textual, mesmo no atribuindo a si prprio o

    estatuto de editor do manuscrito encontrado, assume-se como construtor da histria nele

    relatada. Ele assume ter encontrado os versos que a abrem e a histria que os acompanham

    num livro manuscrito, e datado de 1768, livro com cinquenta pginas de prosa (S: 4). Ora,

    se daqui se poderia depreender que a novela seria uma cpia exacta do referido manuscrito,

    logo se repara que o nmero de pginas dA Sereia no condiz com o nmero de pginas que

    o autor textual diz ter o manuscrito de onde retira a histria. Contudo, s no final da novela o

    autor textual se assume como construtor da diegese pois, no manuscrito, no encontrou mais

    do que apontamentos essenciais desta histria (S: 159), da autoria de Joo de Melo e

    Npoles.

    Desde o incio da obra at ao penltimo pargrafo, o leitor tem diante si uma histria

    alegadamente verdadeira que Camilo quis dar a conhecer. S no ltimo pargrafo Camilo

    parece acrescentado mais informao ao que tinha afirmado anteriormente, dando a entender

    que construiu a linha dramtica que une os pontos essenciais da diegese. Assim, ao comparar

    os textos do manuscrito e da novela, vemos vrios episdios da vida de Joaquina serem

    suprimidos por no se enquadrarem no querer do autor. Neste conjunto, podemos dar os dois

    exemplos mais significativos: o caso amoroso entre Joaquina Antnia e outra freira do

    convento onde se encontra e a sua vida como prostituta.

    No nos parece difcil perceber que o estatuto do narrador camiliano aqui em causa est

    intimamente ligado com outros aspectos, como a conduo da leitura, os paratextos, os

    processos de veridio sendo os paratextos apenas uma vertente destes ou a ironia trgica.

    Para alm disso, como referimos, o narrador camiliano est tambm intimamente

    ligado com a diegese, no sendo apenas a entidade que transmite o discurso. Ele sente o que a

  • 33

    histria lhe d a sentir, transmite esses sentimentos e reflecte sobre eles e sobre o percurso das

    personagens. Deste modo, o narrador-autor conduz, inevitavelmente, a uma leitura que a sua

    mas que ele quer que seja tambm a de quem l.

    A conduo de leitura principia em formas paratextuais da novela. Na verdade, o ttulo

    da obra A Sereia pode j dar ao leitor informaes sobre a histria que vai ler. Ao ser

    mitolgico associa-se, inevitavelmente, o seu canto: canto que enlouquece, que leva morte.

    Curiosamente, Joaquina (a Sereia) lana-se ao mar, onde morre. O canto adquire, assim, um

    valor trgico por se relacionar com o ser mitolgico conhecido pelo seu cantar de perdio,

    bem como com o elemento da natureza onde as sereias habitam28. Esse elemento natural o

    mar est, por sua vez, intimamente ligado morte, uma vez que nele que a protagonista

    se suicida depois de um grande perodo de loucura. O canto de Joaquina ser analisado no

    terceiro ponto deste captulo. Por agora, interessa-nos apenas compreender aquilo que o ttulo

    nos pode informar sobre a protagonista da novela.

    A construo de Joaquina Eduarda inicia-se logo no poema que abre a novela camiliana.

    Como j foi referido, Camilo diz ter encontrado os tercetos no manuscrito que serve de base

    escrita de A Sereia. Quando, em 1925, Jlio Dias da Costa depara com o manuscrito, logo

    nota que o poema no consta dele. Deste modo, coloca-se a questo da autoria das estrofes.

    J em 1930, quando publicou o texto do manuscrito, Jlio Dias da Costa afirma, tendo

    em conta tambm a ausncia da data que Camilo igualmente declara estar no manuscrito, que

    a falta de data e a ausncia dos versos nada significam, pois bem podia, uma e outros, a data

    e os tercetos, ser produto da fantasia camiliana, que todos sabem como era rica (M: 9-10).

    Na Nota Preliminar da edio de 1968 da novela, Castelo Branco Chaves (1968: 8)

    interpreta a inveno dos versos, dizendo que os tercetos com que se inicia a novela foram

    compostos e ali colocados por Camilo para, desde o incio, dar ao leitor a ambincia

    melanclica e fatdica em que vai decorrer a narrativa. Concordando com os dois ensastas

    quanto autoria dos versos, resta-nos explorar a afirmao deste ltimo, acrescentando algo a

    que no faz meno: porque ter Camilo atribudo a autoria do poema ao autor do manuscrito

    e no se assumiu como tal? O objectivo da presena dos tercetos sairia malogrado se assim

    tivesse feito? E qual o objectivo concreto da presena do poema? Apenas dar ao leitor a

    ambincia melanclica e fatdica em que vai decorrer a narrativa?

    Analisemos o ambiente que transparece dos versos. A lua cheia mencionada duas

    vezes, sendo logo a primeira no verso inicial do poema e a segunda no primeiro verso do

    28 Note-se que as sirenes da Odisseia, de Homero, no so descritas, apresentando-se, contudo, intimamente

    ligadas ao mar; j as das Metamorfoses, de Ovdio, apresentam-se como sendo seres voadores.

  • 34

    penltimo terceto. Significa isto que, pelo menos, at penltima estrofe tudo o que dito

    est cercado pela atmosfera que a lua cheia propicia. [M]elanclicos tercetos (S: 4), chama-

    lhes o autor. Este ambiente de melancolia facilmente se torna num ambiente soturno pelas

    variadas aluses morte. Na verdade, em todos os tercetos referida a morte da Sereia: J se

    no ouve o cantar; J sobre ti se fecharam / Os abismos desta vida!; Choras tu na

    sepultura / Daquela pobre Sereia?; Em que finar se vo findos; pudeste, / [...] mat-la, /

    Matar a pomba celeste!; no voltas / Desses abismos da morte! (S: 3; itlicos originais);

    E tu no voltas, Sereia! e Sobre a tua sepultura (S: 4; itlicos originais).

    No poema h tambm a construo da personagem feminina, qual Serafina Martins

    (2005: 13) faz meno dizendo que os tercetos cantam a beleza sublime de uma figura

    feminina, enfatizam o seu destino trgico e antecipam o desenlace. De facto, desde estas

    primeiras linhas da novela assoma um ser do sexo feminino a Sereia. O leitor, neste

    momento da narrativa, ainda no tem acesso personagem que ser denominada de Sereia,

    porm o autor faculta-lhe de imediato uma construo dessa personagem que a construo

    que ele quer que acompanhe o leitor. Vislumbramos, no modo como o autor se refere

    Sereia, uma caracterizao com grande carga negativa: triste sereia, pobre moa cada,

    pobre Sereia e pobre anjo da m sorte (S: 3; itlicos originais). Nesta ltima expresso,

    no adjectivo cada no est s patente a carga negativa que referimos. Figuradamente, o

    adjectivo poder significar triste. A ns se nos afigura, porm, que o adjectivo ganha uma

    dupla significao: alm de triste, cada parece-nos que remete para a queda que se d

    aps a , ou seja, a falta trgica.

    Resta uma expresso com que o autor se refere figura feminina: pomba celeste.

    Aqui no encontramos a carga negativa presente nas outras expresses. Encontramos antes

    uma angelizao da Sereia. Informa-nos tambm o poema que a personagem tem Aqueles

    cabelos d'ouro / Aqueles olhos to lindos! e logo na estrofe seguinte somos inteirados de que

    To linda e nova (S: 3; itlicos originais). No nos descrevendo, na sua totalidade, a

    Sereia, chegam-nos estes versos para percebermos a beleza de que ela possuidora. Estamos

    tambm conscientes de um atributo que ela detinha, e que dever ter importncia, uma vez

    que referido duas vezes: o canto J se no ouve o cantar (S: 3; itlico original); Para

    ouvir teus cantares (S: 4; itlico original).

    O ambiente trgico, o desenlace desde logo desvendado, a caracterizao negativa e

    angelizadora da figura feminina, a sua beleza e o seu cantar, bem como a referncia a uma

    queda, so os elementos que o autor quer que acompanhem o leitor desde o primeiro contacto

    com o seu texto. A partir da leitura do poema, toda a novela estar sombra destes elementos

  • 35

    que faro com que o ambiente trgico dos tercetos se estenda pela novela. Assim, caso no

    tenha sido compreendida no ttulo a perdio a que as personagens estaro sujeitas, o

    narrador, com os tercetos, d logo ao leitor os elementos necessrios para saber mesmo antes

    de a novela se iniciar que nada do que a protagonista poder fazer para atingir a liberdade

    amorosa resultar. S a liberdade da morte que se enuncia logo no poema colocado antes do

    primeiro captulo. A ironia trgica estende-se assim pela novela, fazendo com que o leitor no

    tenha a iluso de que o casal poder viver o seu amor.

    Tambm a epgrafe, retirada da Elegada de Lus Pereira, apresenta um verso que

    poderia conduzir o leitor na sua leitura da novela: Castigos justamente merecidos. Contudo,

    este paratexto, mais do que ser um condutor de leitura, serve para autenticar a histria que

    ser narrada: Verdades... dinas de memria, / Castigos justamente merecidos, / No fabulosa,

    ou sonhada estria / Que engana peitos, e embaraa ouvidos.

    De facto, os processos de veridio so uma constante em Camilo. A sua preocupao

    em mostrar ao leitor como reais os factos que conta nas suas narrativas faz com que se afirme

    que este efeito de verdade seja um dos princpios basilares na inventio camiliana (Silva

    2011: 17), bem como que seja um dos tpicos centrais no discurso metanarrativo do

    narrador (id., ibid.). No incio deste captulo, transcrevemos o passo mais clebre da obra

    camiliana sobre este assunto. Mas, ao longo da sua obra, muitos so os processos de que o

    autor se serve para que as fronteiras entre realidade e fico se esfumem.

    No caso da novela que aqui nos ocupa e para o objectivo do nosso trabalho, interessa

    olhar estes processos do ponto de vista da construo trgica. Na verdade, os processos de

    veridio auxiliam nesta construo pois, ao dar a intriga como alegadamente verdadeira,

    Camilo pretende que o trgico que nela se diz emocione os seus leitores, tal como na tragdia

    grega acontecia com a suscitao dos sentimentos de compaixo e temor.

    Vimos j que estes processos se iniciam logo na escolha da epgrafe do livro. Camilo

    escolhe um passo da autoria de Lus Pereira em que se fala da veracidade do que se conta em

    detrimento do poder da imaginao No fabulosa, ou sonhada estria.

    Contudo, no breve texto que se encontra depois dos tercetos que o autor revela a fonte

    da diegese da novela: Estes melanclicos tercetos, escritos h cem anos, que significao

    tiveram? / Num livro manuscrito, e datado de 1768, os encontrei. Em cinquenta pginas de

    prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos (S: 4). Esta informao

    completada no ltimo pargrafo do texto: Ora, Joo de Melo e Npoles, o salvador do

    cadver de Joaquina Eduarda, morreu na flor dos anos, depois de haver escrito os

    apontamentos essenciais desta histria, que foram encontrados na livraria do baro de Prime,

  • 36

    fidalgo de Viseu, falecido h poucos anos (S: 159). Assim, o leitor informado no incio e

    relembrado no final da novela da veracidade da histria. Notrio se torna o facto de apenas no

    incio e no final da obra Camilo fazer referncia ao manuscrito de onde provinha a intriga.

    Noutras novelas suas, o autor faz continuamente referncias ao manuscrito onde encontrou a

    narrao. No caso de Estrelas Funestas, o narrador, ao finalizar a segunda parte da novela,

    exclama:

    S nestes conflitos que eu avalio os tesouros da imaginao, e o segundo fiat de

    mundos morais que a magnanimidade divina concede aos romancistas.

    Nesta histria queria, e no posso. Estou coacto, e manietado s gramalheiras da notcia,

    que me foi ministrada por pessoa, que me obrigou a juramento de no falsear a verdade.

    (Castelo Branco 1979: 158)

    Outro processo que o autor utiliza nA Sereia, para comprovao da verdade, tem que

    ver com o primeiro captulo, que serve para inserir a intriga num contexto histrico, sendo

    descritos alguns pormenores sobre esse tempo. Como afirma Serafina Martins (2005: 9), este

    captulo exibe o gosto camiliano de ancorar os seus textos numa factualidade histrica que

    traria crdito fico. Tal acontece pelo facto de Camilo inserir o primeiro encontro entre

    Joaquina e Gaspar num momento e num facto histrico precisos a inaugurao do teatro

    lrico do Porto a 15 de Maio de 1762.

    J no segundo captulo da novela, o narrador interrompe a narrao para nos dar conta

    de alguns pormenores da famlia de Antnio de Sousa, cunhado de Joaquina. Um desses

    pormenores tem que ver com a genealogia de Joaquina Eduarda:

    Ferno Casado Godim [pai de Joaquina], neto do doutor Maral Casado, o qual fora

    irmo duma celebrada viva de quem rezam as crnicas dos herosmos de portuguesas.

    Costumava Ferno mostrar a quantas pessoas se honravam com a sua amizade um livro

    impresso em 1625, e escrito pelo padre Bertolameu Guerreiro, da Companhia de Jesus,

    no qual livro vinha contada a faanha de sua tia-av (S: 13; itlico original).

    De seguida, transcreve o autor o dito passo. Este processo serve para ancorar a

    protagonista e a sua famlia numa genealogia realmente existente e referida no livro

    mencionado como comprova a nota de rodap do autor. Mais uma vez, Camilo d ao leitor

    uma prova da veracidade da sua histria. H, contudo, que referir que Joo Rosa de Arajo,

    investigando sobre esta genealogia de Joaquina, descobre a sua falsidade, concluindo que

    Camilo, sabendo da existncia do dr. Casado e da me do capito da nau S. Bom Homem,

    forjou, sem peias, o enredo do romance [na parte respeitante genealogia de Joaquina],

    ajuntando algumas notas que lera no livro sobre a vida de Frei Bartolomeu dos Mrtires

    (Arajo 1947: 2).

  • 37

    Ainda quanto comprovao da verdade, no captulo X, o autor textual faz a seguinte

    interveno: Entre parntesis: a narrativa de Gaspar no era assim minudenciosa; mas o rigor

    cronolgico requer que eu, neste lano, adicione as minhas informaes particulares concisa

    notcia do acadmico (S: 48). Ora, este excerto parece apenas servir para o autor textual dar a

    conhecer ao leitor que teve acesso ao escrito em que se encontrava a narrativa de Gaspar e que

    os pormenores foram colhidos em fontes no precisadas pelo narrador. Assim mesmo,

    segundo o que aqui dito, haveria fontes que ajudaram o autor na construo da histria

    verdica que se prope contar.

    Tal como j referimos, o efeito de verdade um dos principais temas dos excursos

    metanarrativos do narrador camiliano. Tambm em