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Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Comunicações e Artes
Coleta, classificação e análise de dados para o projeto
“A produção de sentido por meio da linguagem televisual:
gêneros discursivos na minissérie Capitu”
Relatório final
01/08/11 – 01/08/2012
Aluna: Carolina de Castro Linhares
Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Palma Mungioli
Agosto de 2012
2
SUMÁRIO
Resumo do Projeto.....................................................................................................3
Introdução..................................................................................................................3
Objeto.........................................................................................................................3
Justificativa................................................................................................................5
Objetivo.....................................................................................................................5
Metodologia...............................................................................................................6
Cronograma...............................................................................................................6
Quadro Teórico..........................................................................................................7
Resultados.................................................................................................................23
Considerações Finais................................................................................................24
Referências bibliográficas .......................................................................................25
3
Resumo do Projeto
O projeto se propôs à análise da repercussão e da especificidade da minissérie Capitu
(Rede Globo, de 09 a 13.12.2008) no gênero televisivo da ficção. Assim, foi possível
analisar e discutir sob a orientação docente a produção de sentidos da linguagem
televisual no gênero minissérie brasileira e adquirir competências concomitantes ao
curso de graduação.
O referencial para análise e discussões foi fornecido pela Análise do Discurso (de
origem francesa), pelos estudos de Bakhtin (2002, 2003) acerca da linguagem e dos
gêneros do discurso e pelos estudos acerca das possibilidades e das dificuldades de
interatividade no gênero da telenovela brasileira (Fechine e Figueirôa).
Introdução
Este relatório é referente às atividades relacionadas ao projeto de iniciação científica
“Coleta, classificação e análise de dados para o projeto ‘A produção de sentido por
meio da linguagem televisual: gêneros discursivos na minissérie Capitu’”
desenvolvidas durante os meses de agosto de 2011 a julho de 2012. O projeto é
financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e orientado
pela Profª. Drª Maria Cristina Palma Mungioli.
O projeto teve como objetivo a coleta e análise de dados veiculados nos diversos meio
de comunicação referentes à minissérie Capitu, exibida pela Rede Globo, de 09 a
13.12.2008, para subsidiar o projeto “A produção de sentido por meio da linguagem
televisual: gêneros discursivos na minissérie Capitu”. A partir da sistematização dos
dados, o estudo discutiu a produção de sentidos da linguagem televisual, tendo em vista
que a teledramaturgia brasileira é bastante importante em nosso cenário social.
Objeto
A minissérie Capitu foi uma produção da Rede Globo de Televisão, exibida em cinco
capítulos, às 23h, do dia 9 de dezembro ao dia 13 de dezembro de 2008. A obra é uma
adaptação do célebre romance Dom Casmurro, de Machado de Assis cujo centenário de
morte se deu naquele ano e que motivou várias produções, inclusive Capitu, como
forma de comemorar a data.
4
A minissérie foi escrita por Euclydes Marinho, com colaboração de Daniel Piza, Luís
Alberto de Abrei e Edna Palatnik. O autor preservou o texto machadiano, de forma que,
apesar de alguns cortes, o enredo do clássico Dom Casmurro se mantém. Todavia “a
minissérie vai além de uma simples transposição de um suporte para outro” (Memória
Globo1
), ou seja, a minissérie não é simplesmente a reprodução do livro na televisão.
Houve um trabalho de adaptação por parte do diretor Luiz Fernand Carvalho, que levou
a uma releitura moderna do clássico. Uma das características dos trabalhos de Carvalho
é procurar manter o diálogo entre a literatura e a linguagem audiovisual em suas
produções.
Segundo Carvalho, a minissérie é “um ensaio sobre a dúvida” porque nela permanece a
incerteza maior da literatura brasileira: Capitu traiu ou não traiu Bento Santiago?
“Na recriação do diretor, Dom Casmurro contracenava com os acontecimentos de sua memória como se entrasse no cenário de seu passado. Para Carvalho, seu relato procura dar conta de como lidar com as fantasmagorias, memórias, emoções e dúvidas que carrega. Dom Casmurro é o narrador inconfiável definido por Machado de Assis, que tem o olhar transfigurado por não conseguir juntar as duas pontas de sua vida.” (Memória Globo1)
Na Rede Globo, Carvalho dirigiu as minisséries Os Maias (2001), escrita por Maria
Adelaide Amaral baserada na obra de Eça de Queiroz, e A Pedra do Reino (2007),
produção de estreia do projeto Quadrante, escrita a partir da obra de Ariano Suassuna.
No cinema, dirigiu o longa metragem Lavoura Arcaica (adaptado do livro de Raduan
Nassar) em 2001.
A maior preocupação de Carvalho ao dirigir a minissérie foi aproximá-la de gerações
mais jovens, para quebrar o preconceito que separa a juventude dos clássicos da
literatura brasileira. Ao longo dos capítulos, aparecem referências atuais que aproximam
a história do século XIX da modernidade. No primeiro capítulo, por exemplo, o trem
que Bento Santiago toma para retornar a sua casa no Engenho Novo é um trem
contemporâneo. Já na cena do baile, os casais usam aparelhos de MP3 para ouvir a
valsa, embora estejam vestidos com trajes da época. “O tempo é tratado como
personagem, e não apenas como elemento narrativo” (Memória Globo1).
1 Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-268970,00.html
5
Justificativa
A televisão é o meio de comunicação de massa de maior penetração no Brasil. Dessa
forma, o estudo e a compreensão da produção de sentido que se constrói por meio dos
programas de televisão e, em especial, dos programas de ficção (entre os quais se
destacam telenovelas, minisséries e séries) podem fornecer elementos importantes para
compreender a sociedade brasileira. Mesmo com a grande expansão das novas mídias
digitais, a televisão se mantém como um meio de destaque na comunicação, atingindo
96% da população brasileira2
. As novas formas de comunicação audiovisual mediadas
pela tecnologia (rádio, televisão, internet) caracterizam-se não pela exclusão, mas pela
adição, complementaridade e hibridização de gêneros discursivos Bakhtin (2002) em
sua linguagem. Em Capitu, vemos essa hibridização como uma marca da inovação
estética do diretor Luiz Fernando Carvalho para atrair a audiência de um público jovem,
ou seja, a obra se revela um objeto rico para os estudos da produção de sentidos na
ficção televisual brasileira.
Com base na relevância da ficção televisiva e dos discursos por ela produzidos para a
construção simbólica do imaginário e da identidade brasileiros, compreender os
processos de produção de sentido se torna, atualmente, fundamental para o comunicador
e encontramos na Análise de Discurso um aliado para a compreensão destes elementos.
Objetivo
Este projeto teve como objetivo fornecer elementos para a formação discente
principalmente no que diz respeito à análise e compreensão dos mecanismos de
produção de sentido existentes no gênero minissérie brasileira, tomando como objeto de
pesquisa a minissérie Capitu. Constituiu ainda objetivo deste projeto orientar o discente
na perspectiva de propiciar-lhe formação teórico-metodológica para reflexão em torno
de questões relativas à linguagem verbal, em geral, e à linguagem televisual, em
particular.
O objetivo da coleta de dados midiáticos acerca da minissérie foi embasar a análise dos
gêneros discursivos em Capitu, tendo em vista o referencial teórico fornecido pela
2 Segundo o IBGE divulgou na PNAD 2009. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1708
6
Análise do Discurso (de origem francesa) e pelos estudos de Bakhtin (2002, 2003)
acerca da linguagem e dos gêneros do discurso. A fundamentação teórica também
incluiu bibliografia específica sobre a minissérie e pesquisas referentes à produção
teleficcional desenvolvidas pelos investigadores ligados à Escola de Comunicações e
Artes da USP.
Metodologia
O projeto de pesquisa envolveu inicialmente a pesquisa bibliográfica (para
fundamentação teórica), pesquisa videográfica e pesquisa midiática. Para a análise dos
processos de produção de sentido na minissérie Capitu, foi preciso conceituar o discurso
como constituinte do gênero televisivo e o próprio gênero dentro da perspectiva da
intertextualidade que se estabelece entre os produtos simbólicos audiovisuais.
A pesquisa bibliográfica buscou contemplar os estudos acerca da linguística (Mikhail
M. Bakhtin), análise do discurso (Maria Helena N. Brandão, Dominique Maingueneau,
Mikhail Bakhtin, e Eni Orlandi) e do gênero de ficção televisiva (Maria Cristina P.
Mungioli, Maria de Lourdes Motter).
A primeira aproximação com o objeto de estudo foi através da coleta do material
divulgado na mídia a respeito da minissérie. Como se trata de trabalhar com um
produto da indústria cultural cujas repercussões extrapolam a esfera estritamente
acadêmica, foi necessário comparar dados e informações constantes em diversos
veículos de comunicação, principalmente em jornais e revistas de circulação nacional
com os trabalhos acadêmicos publicados. Em seguida, foi feita a análise documental do
material coletado.
Cronograma
Durante os doze meses de trabalho, construímos uma estrutura teórica para desenvolver
uma linha de raciocínio que possibilitasse a análise da produção de significado e dos
gêneros do discurso em Capitu. Ademais, foi realizada a pesquisa midiática e a
elaboração da análise a respeito da produção e da transmidiação na minissérie.
Para tanto, a leitura de Bakhtin e Maingueneau colaboraram para o desenvolvimento da
minha base teórica, e a leitura dos artigos desenvolvidos por pesquisadores da Escola de
7
Comunicações e Artes possibilitaram o meu entendimento acerca do gênero telenovela e
minissérie. Ademais, a participação no III Encontro OBITEL Nacional dos
Pesquisadores de Ficção Televisiva no Brasil, promovido pelo Centro de Estudos de
Telenovela da ECA-USP (CETVN) e Globo Universidade, foi crucial para definir um
recorte de abordagem do meu objeto de estudo. Para concluir minhas atividades,
apresentarei os resultados da minha pesquisa no SIICUSP em 2012.
O resumo das atividades realizadas está descrito abaixo:
MÊS ago Set out nov dez jan fev mar abr mai jun jul out
ATIVIDADE
I - Leitura bibliográfica X X X X X X X X
II – Sistematização teórica
X X X X
III- Pesquisa Midiática X X X X X X
IV- Sistematização da
Pesquisa Midiática
X X X X X X X
V – Relatórios (parcial e
final)
X X X X X
VII – Inscrição e
apresentação no
SIICUSP
X X
Quadro teórico
A primeira telenovela brasileira foi ao ar em 1951 e, até 2010, a Rede Globo havia
produzido 252 telenovelas e 66 minisséries. Ao longo dos anos, as novelas se tornaram
um produto de consumo da cultura de massa e constituem gêneros do do discurso, sob a
perspectiva de Bakhtin (2002), uma vez que, segundo a definição do autor, os gêneros
do discurso decorrem de condições sócio-históricas e se firmam como modelos de
expressão e guias dos processos de significação.
Antes, porém, é preciso conceituar o discurso em Bakhtin, já que ancorados em seus
estudos, porém questionando a dicotomia sausseriana, temos a linguística e as questões
de linguagem ampliadas pelas perspectivas ideológica e social. O discurso aparece,
portanto, como o ponto de articulação entre os processos ideológicos e os fenômenos
8
linguísticos. São fruto de interações sociais, nos são dados e, ao mesmo tempo, são
construídos por nós. Nos meios de comunicação, por meio da linguagem verbal e não e
verbal, os valores ideológicos do signo são construídos e compreendidos segundo as
relações humanas.
De acordo com essa perspectiva, os enunciados só ganham significação q uando
situados em circunstâncias de comunicação, ou seja, quando se inserem em um gênero
do discurso. É por meio dos gêneros do discurso que se constroem sentidos, eles agem
de forma prescritiva para os sujeitos e interlocutores da comunicação (ou da
enunciação), são um guia de produção e de interpretação de sentidos,
Assim, a linguagem trabalhada na televisão, sobretudo na ficção, por meio das novelas e
minisséries, é também um gênero do discurso. É, portanto, resultado das relações sócio-
históricas, de onde emergem significações.
Vistos, dessa forma, os gêneros medeiam nossa concepção de mundo ao mesmo tempo em que organizam nossa vida, uma vez que estão impregnados de/em nossa cultura. Aliás, com base nessa interpretação, poderíamos dizer até que os gêneros são a própria cultura (principalmente a chamada cultura de massa). (Luís Gustavo Oliveira Coutinho3
)
Nesse processo de significação, a palavra é fundamental para a concepção e a
interpretação de um discurso, uma vez que a palavra é o signo por excelência.
Mas esse aspecto semiótico e esse papel contínuo da comunicação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (Bakhtin, 2002)
Em seu artigo, “Telenovela: do analfabetismo visual à alfabetização pela palavra”,
Maria de Lourdes Motter, partindo dessa concepção bakhtiniana, vê o quanto a
interpretação e a compreensão de uma telenovela passam pela palavra. Sem a reflexão
necessária, um telespectador comum da telenovela é um “analfabeto visual”, e somente
a palavra pode nos fazer ler e analisar uma obra audiovisual.
3 Orientando do Projeto Ensinar com Pesquisa: A produção de sentido por meio da linguagem televisual: gêneros discursivos na minissérie Queridos Amigos
9
Temos hoje no Brasil uma geração dependente da imagem constituída pelos filhos da TV. Milhões de pessoas cresceram em meio à profusão de imagens que ela difunde e aprenderam a conhecer um mundo costruído segundo os cânones dos arquitetos dessa indústria cultural cuja preocupação é promover a voracidade do consumo. (Motter, 2005)
Para Motter, é essa profusão de imagens que nos torna “analfabetos visuais”, ou seja,
“leitores de primeiro nível”, conforme teoriza Umberto Eco (2003), que se preocupam
em assistir à telenovela para acompanhar a trama. Como veremos adiante, os leitores de
segundo nível são aqueles que percebem as nuances de significação e referências que
foram pensadas na produção de uma novela.
Considero que podemos ser capazes de entender boa parte do que vemos. Nossa limitação está relacionada com nossa dificuldade de atribuir sentido, de contextualizar para interpretar o que vemos, ou seja, transpor o limiar do estímulo visual para transformá-lo em linguagem e assim submetê-lo a um processo analítico para alcançar a leitura crítica das imagens que desfilam diante dos nossos olhos. (Motter, 2005)
Vale salientar que, quando falamos em “telenovela brasileira”, assim como Yvana
Fechine e Alexandre Figueirôa, em seu artigo “Trasmidiação: explorações conceituais a
partir da telenovela brasileira”, “estamos nos referindo [...] ao padrão de teledramaturgia
alcançado e popularizado pela Rede Globo, principal produtora desse tipo de ficção
seriada no Brasil e uma das mais bem-sucedidas no mercado internacional de televisão
[..]”. (Fechine e Figueirôa, 2011)
Atualmente, portanto, a telenovela faz parte do cotidiano e da história da família
brasileira e Motter relembra essa trajetória do gênero até a sua consagração atual.
Em nosso país, convivemos com a telenovela há quarenta anos. No início elas não eram diárias, nem havia videoteipe. Hoje, apenas em uma rede de televisão temos cinco novelas diárias. Nós aprendemos a entender a telenovela nesse longo percurso em que ela própria foi se construindo como gênero nacional. Acompanhamos cada mudança introduzida pelos avanços da tecnologia, cada ajuste que ela sofreu para atravessar os anos de ditadura, depois, para iniciar sua participação no mundo globalizado, assegurar seu fluxo de exportação. Hoje, a telenovela brasileira compete com produções de outros países ao mesmo tempo em que compõe parcerias e experimenta novos formatos para atender ao mercado internacional. (Motter, 2005)
Assim, a cada nova novela, o público aprofunda seu entendimento do gênero e, ao
mesmo tempo, constrói uma intimidade com a nova narrativa e com os novos
personagens que lhe são colocados.
No início sabemos pouco desses seres, dos espaços por onde circulam, das relações de conflito ou das parcerias que mantêm entre si. Depois de um mês de convivência já estabelecemos com
10
as personagens uma familiaridade que vai crescer, transformar-se em sentimentos de admiração, de amor, ódio, desprezo ou mesmo de indiferença - o que é menos comum. (Motter, 2005)
No caso da minissérie Capitu, uma produção da Rede Globo de Televisão, dirigida por
Luiz Fernando Carvalho, exibida em cinco capítulos, às 23h, do dia 9 de dezembro ao
dia 13 de dezembro de 2008, tivemos uma obra adaptada de Dom Casmurro de
Machado de Assis, livro considerado uma das obras primas da literatura brasileira.
Sendo assim, o romance de Capitu e Bentinho e a grande questão “Capitu traiu ou não
traiu” já eram conhecidos - ainda que não por todos - pelo público.
Assim, nessa minissérie, mais do que uma familiarização com os personagens em si, os
telespectadores se tornaram íntimos com a releitura dos personagens Capitu, Bento, José
Dias, dona Glória e muitos outros, pensados por Carvalho, que desenvolveu um trabalho
de autoria em Capitu e deixou sua marca na produção. Se somos íntimos da Capitu de
Machado de Assis, o desafio da minissérie foi fazer com que nós conhecêssemos a
Capitu de Carvalho. Portanto, em Capitu, não valeram as perguntas do público
apontadas por Motter em relação à telenovela como “quem são os personagens?” ou
“qual é a história”, pois a questão não foi “o que”, mas “como” Carvalho trabalhou a
sua adaptação.
Outro traço distintivo de Capitu foi o fato de ter sido uma minissérie de apenas cinco
capítulos. Em relação às novelas, as minisséries, por terem menor duração, costumam
ter mais tempo de pesquisa e produção, além de maior investimento em qualidade,
criação e experimentação, já que esse tipo de produção geralmente retrata passagens
históricas e adaptações literárias e tem mais liberdade para mesclar linguagens e se
aproximar do cinema.
É destrinchando essa produção que chegamos à significação da obra audiovisual. Para
Motter, uma das maneiras de aprender a analisar as criações televisuais é estudando o
seu processo de feitura para apreender os sentidos que são pensados na fase de produção
da obra.
Pôr em destaque alguns procedimentos numa sequência longa de produção da telenovela visa alertar o leitor quanto à carpintaria que se oculta sob o produto bem acabado que sugere, com sua lógica ficcional, uma realidade linear que se deixou fixar pela câmera de televisão. (Motter, 2005)
11
Essa “carpintaria” é estudada muitos meses antes da estreia de uma telenovela, como
discute a própria autora:
“[O trabalho de produção] começa muitos meses antes da primeira gravação: pesquisas, construção de cidade cenográfica, produção de figurinos, escalação de atores. Cerca de 2000 profissionais são envolvidos nesse trabalho. Essa etapa é precedida de ampla discussão envolvendo custos, viabilidade, oportunidade, interesse, o que acompanha a decisão de eleger aquele roteiro, daquele gênero, daquele autor, para um determinado horário. A escolha ou a definição da história ocorre cerca de um ano antes de seu anúncio para o público”. (Motter, 2005)
A minissérie Capitu, em especial, foi fruto de uma intensa pesquisa de pré-produção e o
resultado é uma minissérie que, devido as suas particularidades artísticas, foge da ordem
das telenovelas produzidas em série para o consumo. Em entrevista ao Estadão5
, o
diretor afirma que sua linguagem vai na “contra-mão” da indústria:
O público de TV aberta está preparado para sua linguagem? Infelizmente, o nível educacional e cultural do povo tem sido rebaixado no que chamam de indústria cultural, que quer produtos para o consumo imediato. Pensei em fazer uma versão de Machado para os jovens e incultos. Mas você concorda que faz parte dessa indústria? Sim, mas não concordo (com ela). Participo na contramão. Quase é uma guerra santa. Existe alguma expectativa de audiência? Eu nunca penso no Ibope. Quero é comunicar. Você pode ter 30 pontos de audiência e as pessoas estarem anestesiadas diante da TV. Essa apatia do espectador não me interessa. O que qualquer artista busca é uma reação.
Sobre o diretor, a matéria diz ainda que “Ele é dos poucos na TV que desfruta de um
ano inteiro para se dedicar a um único projeto. E, apesar de ser e extremamente
exigente, os atores ficam em polvorosa para participar, nem que seja por uma ponta, de
seus trabalhos”.
A reportagem de 2007 da IstoÉ6
, publicada após a exibição de A Pedra do Reino,
também ressalta a especificidade do trabalho de Carvalho:
5 Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,participo-(da-industria)-na-contramao,285884,0.htm 6 Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/8184_UM+ESTILO+DIFERENTE?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage
12
“Há momentos em que o público estranha a sofisticação do diretor, como aconteceu com a
minissérie Os Maias (Eça de Queirós), cujo Ibope não foi dos maiores, apesar de ter sido
aplaudida pela crítica. Já na estreia, A Pedra do Reino assustou a Globo: cravou apenas uma
média de 12 pontos no Ibope, deixando o primeiro lugar para a Record em São Paulo. O
presidente da Fundação Biblioteca Nacional, sociólogo e estudioso de televisão, Muniz Sodré,
diz que isso é normal porque ‘o público está acostumado a facilidades’".
A ousadia estética de Carvalho revelou sua intenção de quebrar o preconceito do
público com o clássico Machado de Assis, apresentando Dom Casmurro de outra
maneira. Para isso, em Capitu, cenário, elenco e figurinos foram pensados em detalhes
pela equipe de produção para atender aos objetivos de Carvalho com a obra. O
orçamento total foi de cerca de R$ 5 milhões7
. Os cenários da minissérie se
encontravam dentro de um único local: a sede do Automóvel Club do Brasil, no centro
do Rio de Janeiro.
“O prédio em ruínas foi apontado pelo diretor como o lugar perfeito para contar a história de um
homem em ruínas, que não consegue resgatar o que perdeu”.
(Memória Globo1)
O cenário foi minimalista, não havia paredes e poucos eram os objetos em cena. O chão
foi pintado de preto e o muro que divide as casas de Bentinho e Capitu foi, então,
desenhado com giz. Segundo Memória Globo, as camas, bem como cortinas, são feitas
de jornal, como uma forma de homenagear o cronista Machado de Assis e o próprio ato
de escrever. O diretor de arte de Capitu, o artista plástico Raimundo Rodriguez, também
trabalhou em outros trabalhos de Carvalho como Hoje é Dia de Maria (2005) e A Pedra
do Reino (2007).
7 Segundo o portal G1. Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL915667-7084,00-CAPITU+CHEGA+A+TELEVISAO+EM+VERSAO+POP.html
13
O figurino ficou a cargo de Beth Filipecki, que trabalhou também em Os Maias (2001)
e no longametragem de Carvalho, Lavoura Arcaica (2001). A vestimenta dos
personagens condisse com sua época – o século XIX.
“Recursos visuais do teatro orientaram o desenho das roupas e a escolha das cores, valorizando
elementos que dessem o tom e o ritmo do teatro operístico”.
(Memória Globo1)
A intenção foi provocar o espectador com vestimentas que ganham diferentes formas
segundo o movimento dos atores e da câmera. Segundo a figurinista, a forma mais
arredondada facilitou a fusão das diferentes épocas de Bentinho criança e adulto, então,
para que a unidade da produção não fosse comprometida, o ângulo reto não foi usado. O
guarda-roupa de Capitu foi especialmente pensado para combinar com seu olhar oblíquo
de cigana: são vestidos volumosos cujas saias chegam a quatro metros de diâmetro.
Quando menina, os vestidos de Capitu são claros, com folhas e flores, até a tatuagem
de flor da atriz Letícia Persiles, que interpreta Capitu menina, foi usada para representar
as flores de seu quintal. Já adulta, Capitu usa cores fortes e quentes. Beth Filipecki
frisou que suas roupas nunca são simétricas: “Para cada ângulo que o telespectador
olhar, terá uma visão diferente”.
A escolha do elenco também foi estudada. Carvalho queria atores desconhecidos do
grande público vivendo os protagonistas de Dom Casmurro. As atrizes mais conhecidas
eram a protagonista Maria Fernanda Cândido e Eliane Giardini, que viveu Dona Glória.
Foi a segunda vez que Maria Fernanda viveu Capitu. A primeira vez foi em 2003, no
14
filme Dom, uma versão contemporânea de Dom Casmurro, dirigida por Moacyr Góes. E
Michel Melamed foi um nome que esteve presente desde o início da concepção da
minissérie, conforme a reportagem da IstoÉ8
:
“Numa tarde ensolarada, o diretor Luiz Fernando Carvalho recebeu em sua casa, na Gávea, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, o autor teatral e ator Michel Melamed. Depois de um caloroso cumprimento, Melamed notou que o amigo escondia algo às suas costas. Assim que entrou na sala, Carvalho revelou o mistério: mostrou a ele o livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. ‘E aí? Vamos fazer?’, disse o diretor. Começava ali, num papo que durou cinco horas, o projeto de levar à tevê o principal romance do escritor brasileiro que é considerado o maior de todos os tempos. Mais de um ano depois, o resultado dessa ousadia vai ao ar a partir de terça-feira 9, na minissérie Capitu, da Rede Globo” .
Para viver Dom Casmurro, Michel Melamed teve aulas de clown com Rodolfo Vaz, do
grupo teatral de pesquisa Galpão. A estreante Letícia Persiles foi a escolhida para
interpretar Capitu em sua primeira fase. A vocalista do grupo Manacá foi escolhida por
Carvalho por causa de seus “olhos de ressaca”. Sua tatuagem de um pássaro e uma
bromélia no braço foi mantida e reproduzida em Maria Fernanda Cândido.
César Cordeiro vive Bentinho na primeira fase. O elenco contou ainda com Pierre
Baitele (Escobar), Rita Elmôr (Prima Justina), Sandro Christopher (Tio Cosme), Charles
Fricks (Sr Pádua), Bellatrix Serra (Sancha), Izabella Bicalho (Dona Fortunata), Antônio
Karnewale (José Dias), Emílio Pitta (Padre Cabral), Thelmo Fernandes (Sr. Gurgel),
Vitor Facchinetti (Dandi do Cavalo-Alazão), Alan Scarpari (Ezequiel Santiago), Jacy
Marques e Gabriela Luiz foram as escravas.
Segundo Memória Globo1, o trabalho de estudo e composição dos personagens durou
três meses. O elenco teve aulas de movimento com a coreógrafa Denise Stutz, de
técnicas de sensibilização e respiração com Lúcia Cordeiro, de preparação vocal e
práticas de musicalização com Agnes Moço. Desde Hoje é Dia de Maria, a preparadora
de corpo Tiche Vianna trabalha com Carvalho. Ela fez com que Letícia Persiles e Maria
Fernanda Cândido imaginassem atitudes felinas para compor a protagonista. Os olhos
da personagem ganharam atenção especial. Segundo Tiche Viana, o eixo das atrizes
deveria estar no olhar: o corpo não poderia fazer movimento sem que os olhos
reagissem primeiro.
8 Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/948_CAPITU+E+UM+LUXO?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage
15
Além disso, foram feitas oficinas com especialistas em história, comunicação e
psicanálise, como o pesquisador e escritor Antônio Edmilson Martins Rodrigues; os
psicanalistas Carlos Byington, Luiz Alberto Pinheiro de Freitas e Maria Rita Kehl; o
jornalista e escritor Daniel Piza; e os ensaístas Gustavo Bernardo e Sergio Paulo
Rouanet. Os temas abordados nas oficinas foram as questões que aparecem na obra
machadiana, tornando-a polêmica e atual: amor, ciúme, feminilidade, modernidade,
homoafetividade, crueldade, dúvida, costumes.
Outra característica marcante da produção foi a ação dividida em cenas curtas e densas,
como em uma ópera. Os capítulos, como no livro, foram divididos por títulos curtos,
além de anunciados em cartelas, proferidos como nas antigas radionovelas. Elementos
modernos pincelaram ainda as cenas e o resultado foi uma obra bastante diferente
daquilo que o telespectador de telenovela costuma encontrar, como ressalta a resenha de
Fernanda Furquim, para Veja9
, na ocasião do lançamento do DVD:
‘Capitu’ é uma apaixonante versão para a TV embalada por uma maravilhosa fotografia e direção de arte, sensível, inteligente e funcional. As imagens traduzem sentimentos, opiniões, referências e metáforas dando à adaptação o status de um oásis em meio à pobreza artística na produção televisiva brasileira. [...] Em uma narrativa clownesca Bentinho, adulto, espia seu passado, contando em livro e em filme a trajetória de seu amor por Capitu. Com base no visual de teatro, a adaptação explora elementos do cinema, do rádio, da literatura e da imaginação humana narrando uma história atemporal que se repete dia-a-dia.
O diretor Luis Fernando Carvalho busca nessas interrelações evocar os gêneros do
discurso que significam, mas também são ressignificados no contexto da obra pelos
espectadores, em um processo de construção discursiva do qual o interlocutor participa,
conforme a perspectiva de Bakhtin sobre a linguagem e os gêneros do discurso. Essa
inovação de Carvalho na linguagem televisual escancara a dicotomia antigo/atual
explorada por ele como uma forma de mostrar que o universo do século XIX contido
em Dom Casmurro em relação a temas como a luta de classes, a mentira, o ciúme, a
família, o casamento, as convenções sociais ainda permanece na atualidade.
9 Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/temporadas/livros/review-capitu-minisserie-em-dvd/
16
Quando falamos de Capitu, a significação emerge dessa teia de gêneros que constitui a
obra e das condições sócio-históricas de sua produção sendo que, pelo fato de a
minissérie ter sido uma obra quase inédita na TV, em termos de estilo e linguagem, há
muito mais a construção do espectador do que a identificação de um discurso dado.
Maria de Lourdes Motter mostra como o audiovisual é o campo ideal para essa mescla
de gêneros e estilos:
O audiovisual traz a complexidade de ser o resultado da interrelação de várias linguagens: a imagem, com toda a técnica e arte possíveis (cortes, enquadramentos, encadeamentos, etc); a palavra que pode aparecer sob a forma escrita, mas principalmente como fala (com todos os seus recursos de interpretação do locutor ou ator): os sons diversos que vão dos ruídos às trilhas sonoras, às sonoridades incidentais, às canções-tema de personagens. Cada uma dessas linguagens, ou dos discursos de cada um desses sistemas semióticos ou códigos, age sobre as outras e vice-versa modificando-se e modificando de tal forma que as partes que o resultado não é mera soma das partes, mas um todo sincrético. Deve-se advertir, todavia, que a obtenção de tal resultado está na dependência do grau de elaboração artística alcançada. Não é qualquer telenovela, por exemplo, que mantém o alto nível de consonância a que nos referimos. Essa integração é mais facilmente alcançável nas minisséries, por sua menor duração e maior investimento em qualidade. (Motter, 2005)
Como vimos, a produção esconde a “carpintaria” da obra e, em Capitu, Carvalho deixa
claro que suas escolhas de estilo são uma estratégia de alcançar o público jovem e
aproximar a nova geração de clássicos como Machado de Assis. Para tanto, ele
reinventa o clássico dando lhe certa modernidade, sem perder a fidelidade à obra
original, como mostra a matéria do G110
, na qual o diretor afirma que “O texto é
Machado de Assis vírgula por vírgula, mas queria acabar com o preconceito que os
jovens têm em relação a esse autor, só porque ele costuma ser empurrado pela goela
abaixo nas escolas. Quero mostrar que Machado está vivo e é pop”.
Portanto, é através dessa estética de contraposição reforçada pelo aspecto carnavalesco
da minissérie, no que diz respeito não só à caracterização dos personagens, que a
intenção do diretor de educar ao aproximar a literatura clássica e o público – em
especial os jovens – transparece. Sendo assim, como mostra o artigo desenvolvido de
Maria Cristina Mungioli, “Entre o ético e o estético: o carnavalesco e o cronotopo na
construção do narrador da minissérie Capitu”11
10 Disponível em
, fica evidenciada em Capitu a relação
http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL915667-7084,00-CAPITU+CHEGA+A+TELEVISAO+EM+VERSAO+POP.html 11 Trabalho apresentado no GT 14 – Discurso y comunicación do XI Congreso Latinoamericano de investigadores de Comunicación, realizado em Montevideo de 09 a 11 de maio de 2012. Disponível em http://alaic2012.comunicacion.edu.uy/content/entre-o-%C3%A9tico-e-o-est%C3%A9tico-o-carnavalesco-e-o-cronotopo-na-constru%C3%A7%C3%A3o-do-narrador-da-miniss%C3%A9
17
indissolúvel entre ética e estética conforme propõe Bakhtin, de forma que a obra de
Carvalho se caracteriza como um ato responsável por vincular à atividade artística, a
responsabilidade e a responsividade.
Assim, voltando a Eco (2003), a minissérie Capitu apresenta vários níveis de leitura,
segundo o que se apreende dessa arquitetura desenhada por Carvalho. É interessante
pontuar, portanto, que não poderia ser diferente uma vez que Capitu é adaptação de
Dom Casmurro, uma obra literária que tem infinitos níveis de leitura no que diz respeito
à percepção e interpretação. Maria de Lourdes explica o que são os leitores modelo de
Eco quando formula hipóteses para explicar o nosso analfabetismo visual.
Se um dos problemas em compreender é a desatenção que caracteriza nosso modo de ver televisão ou, no caso presente, telenovela, o outro, já mencionado é a excessiva preocupação com os acontecimentos da história. Umberto Eco, pensando no problema da leitura, postula que um texto narrativo tende a construir um duplo leitor modelo. ‘Ele dirige-se’, diz ele, ‘sobretudo a um leitor modelo que de primeiro nível, que chamamos de semântico, o qual deseja saber se (e justamente) como a história vai acabar [...] Mas o texto dirige-se também a um leitor modelo de segundo nível, que chamaremos de semiótico ou estético, o qual se pergunta que tipo de leitor aquele conto pede que ele seja, e quer descobrir como procede o autor modelo que o instrui passo a passo. Em outras palavras, o leitor de primeiro nível quer saber o que acontece, aquele de segundo nível como aquilo foi narrado. Para saber como a história acaba, geralmente basta ler uma única vez. Para transformar-se em leitor de segundo nível é preciso ler muitas vezes, e certas histórias deve-se lê-las ao infinito..(Motter, 2005)
Para captar a intencionalidade de Carvalho, o telespectador de Capitu tem que, como
um leitor de segundo nível, estar atento as instruções do autor (ou do diretor, no caso)
para ter “condições de perceber as solicitações que lhe são dirigidas para preencher,
com seu conhecimento, os espaços do texto apenas pontuados com sugestões de
sentido”. (Motter, 2005)
Outra característica que a minissérie apresenta notadamente na intenção de atrair seu
público alvo são as estratégias de transmidiação, ou seja, a convergência de conteúdo
em múltiplas plataformas, preponderantemente a internet, além da própria televisão.
A transmidiação na telenovela foi o tema do III Encontro OBITEL Nacional dos
Pesquisadores de Ficção Televisiva no Brasil, promovido pelo Centro de Estudos de
Telenovela da ECA-USP (CETVN) e Globo Universidade, o qual tive a oportunidade
de acompanhar. O volume II da Coleção Teledramaturgia, “Ficção televisiva
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transmidiática no Brasil: plataformas, convergência, comunidades virtuais”, traz em sua
apresentação uma definição escrita pela professora Maria Immacolata Vassallo de
Lopes, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP (CETVN) e do
Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (OBITEL):
Resumidamente, a transmidiação ancora-se em termos de criação e desenvolvimemnto narrativo numa matriz de conteúdo que é disseminado em múltiplas plataformas midiáticas e comunicacionais com o consequente engajamento dos telespectadores em práticas criativas e participativas igualmente através de diferentes plataformas. O conjunto de todos esses processos é o que denominamos ficção televisiva transmidiática (numa aproximação ao termo inglês transmedia storytelling). (p.11)
Os estudos desse fenômeno da convergência dos meios e, sobretudo, a definição teórica
da transmedia storytelling aparecem em Henry Jenkins, no livro Cultura da
Convergência (2009). Transmedia storytelling é, segundo o autor, um processo no qual
um conjunto de elementos de uma ficção estão dispersos sistematicamente por múltiplas
plataformas com o propósito de criar uma experiência unificada e coordenada de
entretenimento. Os exemplos podem ser encontrados nos seriados americanos como
Lost, que desenvolveu uma narrativa que não se limitava aos episódios semanais, mas
que seguia na internet com conteúdo exclusivo, sites fictícios, comunidades de fãs,
configurando o chamado universo transmídia. No entanto, a transmidiação, embora
tenha ganhado ênfase nos últimos anos, já aparece há mais tempo na indústria de
entretenimento norte-americana, em Star Wars, por exemplo, uma produção de
Hollywood da década de 70 cuja narrativa começou no cinema, continuou na TV e
depois migrou para internet.
As produções, pensadas de maneira transmidiática, constroem ambientes ficcionais
multiplataformas, ou seja, apresentam “universos ficcionais ou “mundos” narrativos
possíveis” como mostra o artigo de Yvana Fechine e Alexandre Figueirôa,
“Transmidiação: explorações conceituais a partir da telenovela brasileira”. Essas
possibilidades da narrativa são aproveitadas em relatos desenvolvidos de maneiras
distintas para a televisão, para a internet ou para o cinema, mas tudo surge dessa
construção de “mundos” que é a característica básica e primeira para a constituição do
universo transmídia, onde cada plataforma tem a sua autonomia e contribui com o cerne
geral da narrativa. O leitor ou telespectador, que também podemos denominar
19
consumidor como veremos a seguir, não deve ter a compreensão da história
comprometida dependendo da sua plataforma de entrada no universo.
O universo transmídia “constrói-se, a partir dessa circulação de conteúdos, associados,
um “ambiente” explorado pelas distintas mídias a partir de suas especificidades e com
forte apelo à participação/intervenção do espectador”. (Fechine e Figueirôa, p.27, 2011)
A transmídia, em oposição a cross-mídia, que se caracteriza pela utilização de diferentes
plataformas na divulgação de um conteúdo, diz respeito a estratégias de
desenvolvimento de conteúdos a partir justamente desse uso de distintas mídias. Sendo
assim, podemos dizer que se trata de um modelo de produção e, portanto, de consumo,
conforme propõe o artigo.
Agora, o público não apenas acompanha com uma postura mais contemplativa os desdobramentos narrativos de um meio a outro, mas é, também, um participante inserido em novas práticas de consumo de mídias que configuram o que se convencionou chamar de cultura participativa em função das possibilidades abertas aos consumidores de maior acesso, produção e colocação em circulação de conteúdos midiáticos, a partir da convergência dos meios. (Fechine e Figueirôa, p.25, 2011)
O artigo mostra como a transmidiação acontece (ou não acontece) no gênero telenovela.
A infinidade de possibilidades de entretenimento, sobretudo os canais de televisão a
cabo, interferiram na audiência das telenovelas, que é cada vez mais instável. Para se
adaptar a nova realidade e para conquistar seu público de volta, a produção acrescentou
estratégias de transmidiação nas telenovelas já em 2007. No entanto, foi em 2009 que
esse tipo de ação ganhou força na Rede Globo.
Como parte do esforço para manter e atrair públicos, as grandes emissoras de televisão começam a tirar proveito da convergência, investindo mais fortemente no emprego articulado de outras mídias para a expansão da experiência televisiva, adotando um conjunto de estratégias conhecidas como transmidiação. [...] Os estudos na Central Globo de Desenvolvimento Artístico (CGDA) para uma implantação de uma estrutura própria de produção transmídias focada também nas telenovelas ganham fôlego em 2007. Foi em 2009, com as telenovelas Caminho das Índias e Viver a Vida, que a Globo começou, no entanto, a reunir, de modo mais regular e articulado essas iniciativas - até então mais pontuais de desdobramentos de conteúdos da TV para Internet - começando a explorar, sobretudo, blogs com temas relacionados ao enredo. Todas essas experiências culminaram, em 2010, com a implantação, a partir da CGDA, de uma estrutura operacional destinada exclusivamente ao desenvolvimento de projetos transmídias envolvendo, a partir daí, todas as telenovelas levadas ao ar. (Fechine e Figueirôa, p.45, 2011)
No entanto, o artigo aponta algumas dificuldades de implementação de estratégias
transmídia no gênero da telenovela, como a sua periodicidade diária e a curta duração
20
em comparação com seriados americanos. A primeira barreira, contudo, é o fato de que
o público que acompanha as novelas não costuma ter o hábito de utilizar a internet ou as
redes sociais. Segundo dados do OBITEL sobre a audiência dos dez títulos de
teledramaturgia brasileira mais vistos em 2009, a porcentagem de pessoas acima de 50
anos era de 30,4% e a porcentagem de pessoas de 35 a 49 anos era de 23,9%.
Essa composição do público é, sem dúvida, um elemento inibidor na adoção de estratégias que exijam uma busca complexa de conteúdos fora da TV. Por outro lado, as ações transmídias podem ser também um meio de atração de um público mais jovem para as telenovelas [...]. (Fechine e Figueirôa, p. 34, 2011)
Em seu intuito de conquistar os jovens, a minissérie Capitu adota ações transmídia na
sua divulgação e nem tanto ao decorrer da exibição, já que a sua curta duração (apenas
cinco capítulos) não permite a criação de um universo transmídia no qual o público
interaja com a garantia de uma continuidade.
Além do site com vídeos e episódios, Capitu explorou a cultura participativa dos meios
digitais com o Projeto Mil Casmurros. O Projeto realizou a leitura coletiva do livro
Dom Casmurro na web. A obra foi dividida em mil trechos que foram disponibilizados
no site www.milcasmurros.com.br. Os internautas escolhiam um trecho (era possível
reservá-lo, inclusive) e faziam a leitura registrando através de uma webcam. O vídeo
ficava guardado no site. Muitos atores da Rede Globo participaram lendo trechos,
inclusive Fernanda Montenegro. Além do site, a ação tinha ainda um blog que
divulgava as leituras mais interessantes e um twitter que atualizava e divulgava a
quantidade de trechos gravados. A leitura começou no dia 20 de novembro e os mil
trechos foram completados na madrugada do dia 09 de dezembro, dia da estreia da
minissérie. O twitter12
@milcasmurros publicou:
“4h44 da manhã e temos o imenso prazer de anunciar: ACABOU! Edu Rox
encarou o trecho 688, e virou o casmurro mil”.
No blog13
12
, o post do dia 15 de dezembro diz:
https://twitter.com/milcasmurros 13 http://www.milcasmurros.com.br/blog/
21
“Conseguimos! Completamos os Mil Casmurros praticamente no mesmo instante
em que o primeiro capítulo de Capitu ia ao ar. Foi uma sincronicidade que só
acontece quando as pessoas querem muito uma mesma coisa boa. Coisas que só
parecem acontecer no cinema ou na TV”.
Merece atenção também a ação “Capitucrossing”14
ou “Passe Capitu adiante” que
funcionou como um teaser da minissérie. Dias antes da estreia na TV, foram espalhados
DVDs com um trailler inédito da minissérie nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte e Recife. Dois mil exemplares foram espalhados por praças, pontos de
ônibus e estações de metrô. Aqueles que encontraram um DVD receberam as instruções
de assisti-lo, deixar um comentário no site e abandoná-lo em algum lugar público para
que outra pessoa o encontre.
Passe Capitu Adiante e Mil Casmurros foram ações criadas pela LiveAd15
, empresa que
existe há três anos e tem foco no desenvolvimento de estratégias que coloquem o
consumidor como participante ativo da divulgação.
Segundo a agência, a mídia espontânea gerada pelo projeto Mil Casmurros pode ser
calculada em 6,7 milhões de dólares. O reconhecimento pela ação veio com a conquista
pela Rede Globo do prêmio Leão de Relações Públicas no Festival de Publicidade de
Cannes, na categoria Novas Mídias em 2009.
Resultados
O material midiático analisado foi dividido nas seguintes categorias:
I. Prêmios: notícias de divulgação dos prêmios que a minissérie recebeu, a saber:
Melhor Fotografia: Prêmio ABC 2009; Best in book: Creative Review 2009; Design &
Art Directors 2009; Cannes Lions RP Digital Mil Casmurros 2009.
II. Trilha Sonora: notícias relacionadas principalmente ao sucesso da canção Elephant
Gun, da banda Beirut. Até hoje, algumas notícias de divulgação de shows e trabalhos da
banda fazem referência à minissérie.
14 http://tvg.globo.com/programas/capitu/capitu-crossing/platb/ 15 http://livead.com.br/#trabalhos
22
III. Atores: reúne entrevistas com os atores e também notícias de divulgação de outros
trabalhos posteriores de tais atores que relembram sua participação na minissérie.
IV. Diretor: reúne entrevistas com o diretor ou perfis do diretor. Há também matérias
sobre outros trabalhos posteriores que mencionam seu trabalho em Capitu.
V. Produtos/Estratégias de Marketing: além de matérias sobre o lançamento do DVD
da minissérie, temos as notícias de divulgação das iniciativas da própria produção da
Rede Globo, como a distribuição de DVD’s e o Projeto Mil Casmurros.
VI. Divulgação: notícias que anunciaram a estreia da minissérie.
VII. Audiência: notícias divulgando a audiência alcançada pela minissérie, após cada
episódio.
VIII. Resenhas: matérias mais embasadas e até análises da obra da minissérie em
relação à linguagem, adaptação, atuação, cenário, atuação, figurino, proposta.
IX. Repercussão: notícias que trazem opiniões de leitores sobre a minissérie.
Portanto, nota-se que a exibição da minissérie Capitu, em dezembro de 2008,
repercutiu na mídia e seu anúncio aparece ainda em 200716
Das 122 matérias publicadas pelos veículos Estado de São Paulo, Folha de São
Paulo, G1, UOL, IstoÉ, Época, Veja e O Globo, a maior parte (30,33%) são entrevistas
com os atores principais como Michel Melamed, Maria Fernanda Cândido e Letícia
Persiles. A pesquisa demonstra, portanto, um direcionamento da cobertura midiática ao
entretenimento dos bastidores da vida das celebridades. De fato, as reportagens com
análise crítica da obra dentro do contexto televisivo e social do Brasil, definidas pela
pesquisa como resenhas, aparecem em 13,11% do material analisado. Todavia, as
resenhas concentram-se na descrição da linguagem inovadora do diretor Luis Fernando
Carvalho, identificando as referências e relações que aparecem mescladas na minissérie.
Um exemplo é o texto de Luiz Zanin Oricchio, publicado no Estado de São Paulo em 23
de julho de 2009
com matérias de divulgação,
que apresentam o projeto do diretor Luis Fernando Carvalho.
17
16 A matéria do UOL Entretenimento que já anunciava a minissérie em junho de 2007 está disponível no link
, na ocasião do lançamento do DVD da minissérie:
http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2007/06/12/capitu-baseada-em-dom-casmurro-e-a-proxima-adaptacao-do-projeto-quadrante.jhtm 17 Matéria completa disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,olhos-de-cigana-obliquos-e-dissimulados-olhos-de-ressaca,407040,0.htm
23
Nessa versão para a TV, Carvalho exacerba o aspecto operístico. [...] Há um certo barroquismo, no sentido de uma estética do exagero, que sugere um diálogo com Fellini, mas esta seria apenas uma das referências. [...] Na verdade, Carvalho toma seu ponto de partida, o livro, como inspiração, e abre-se a uma multiplicidade de influências que estão presentes tanto em seu trabalho na TV como no cinema.
No entanto, não há necessariamente nas resenhas um aprofundamento na
intencionalidade do diretor no desenvolvimento de sua estética; sua visão sobre a obra
fica restrita as suas entrevistas que correspondem a 9,84% do material. Na mesma
quantidade, estão reunidas as matérias a respeito da audiência e da trilha sonora da
minissérie. Em menor quantidade, estão as matérias sobre produtos (como DVD e
livro), repercussão geral e prêmios que a Capitu recebeu.
Considerações Finais
A realização da pesquisa proporcionou desenvolvimento intelectual e acadêmico como
consequência do trabalho metodológico de análise midiática e audiovisual.
O trabalho na reunião e sistematização de artigos e reportagens publicados sobre a
minissérie revelou a especificidade de Capitu no conjunto de obras audiovisuais da
televisão brasileira. A minissérie Capitu constrói sua linguagem através de relações e
referências a outros elementos como o teatro, o romance machadiano, o cinema mudo e a
ópera.
Através dos textos teóricos sobre o gênero da telenovela e sobre os gêneros do discurso,
é possível destrinchar a produção da minissérie e notar a intencionalidade do diretor
Luis Fernando Carvalho ao construir essa narrativa que evoca vários estilos e forma
uma rede de significação. Para Carvalho, a mistura de um romance clássico como Dom
Casmurro com os elementos modernos presentes na minissérie foi a chave para atrair o
público jovem.
No entanto, esse vínculo entre a atividade artística, a responsabilidade e a
responsividade praticado por Carvalho, não é o tema preponderante quando a mídia
aborda a minissérie. A análise crítica da obra, na mídia, é focada apenas na estética de
Carvalho, que choca e se diferencia das produções do gênero minissérie anteriores
24
justamente devido a sua intencionalidade inicial, que é abordada de forma superficial
nas entrevistas com o diretor.
Sendo assim, a pesquisa proporcionou as ferramentas necessárias para a interpretação da
obra audiovisual no sentido de compreender os mecanismos que relacionam produção e
intencionalidade, conhecimento útil e necessário para o profissional da comunicação
social e, em especial, do jornalista.
Referências Bibliográficas
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LOPES, M. I. V. (org). Ficção televisiva transmidiática no Brasil: plataformas, convergências, comunidades virtuais. Porto Alegre: Meridional, 2011. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez,
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Encontro Anual da Compós, 2009.
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construção do narrador da minissérie Capitu. Trabalho apresentado no GT 14 –