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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO O INSIDER TRADING NOS TRIBUNAIS Lucas Akel Filgueiras Orientador: Prof. Associado Alessandro Hirata Ribeirão Preto 2013

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO … · que é meu anjo da guarda nesta vida. Dedico à minha irmã, Beatriz, por quem nutro imenso amor e que admiro cada vez mais

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

O INSIDER TRADING NOS TRIBUNAIS

Lucas Akel Filgueiras

Orientador: Prof. Associado Alessandro Hirata

Ribeirão Preto

2013

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LUCAS AKEL FILGUEIRAS

O INSIDER TRADING NOS TRIBUNAIS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo para a obtenção do

título de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Associado Alessandro Hirata

Ribeirão Preto

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

Filgueiras, Lucas Akel

O Insider Trading nos Tribunais. / Lucas Akel Filgueiras. -- Ribeirão

Preto, 2013.

147 p. ; 30cm

Trabalho de Conclusão de Curso -- Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Orientador: Alessandro Hirata.

1. Racionalidade limitada. 2. Contratos de soja. 3. Teoria da

Imprevisão. I. Título

CDD 3415.451

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Nome: FILGUEIRAS, Lucas Akel.

Título: O Insider Trading nos Tribunais.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito

de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ______________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

Prof. Dr. ______________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

Prof. Dr. ______________________________ Instituição:____________________________

Julgamento: ____________________________Assinatura: ___________________________

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Dedico este trabalho de forma especial aos meus avôs Mauro Barbosa Filgueiras e Akel

Nicolau Akel, que apesar de já não estarem mais entre nós nunca deixaram os corações

daqueles que os conheceram em vida. Dois anjos da guarda que tem iluminado

incansavelmente meu caminho nos últimos anos.

Dedico também às minhas avós Delzuita e Maria do Carmo, por tudo que me ensinaram e

principalmente por sua fibra e superação ao enfrentar os dissabores da vida.

Dedico da mesma forma ao meu pai, Mauro, com quem aprendi que o amor de um pai é

infinito e quem me ensinou que a família deve vir sempre em primeiro lugar.

Dedico à minha mãe, Cláudia, por todo seu carinho, amor e bondade que me fazem sentir

que é meu anjo da guarda nesta vida.

Dedico à minha irmã, Beatriz, por quem nutro imenso amor e que admiro cada vez mais por

sua coragem e força, sendo motivo de grande orgulho para mim.

Dedico, ainda, à minha companheira de todas horas, Fernanda, quem me ampara, me dá

forças e me estimula a lutar cada vez mais por meus sonhos, sem a qual não teria alcançado

nada e a quem devo muito.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente às belas lições de vida que nos foram dadas por duas mulheres de

grande personalidade e que, infelizmente, já não mais entre nós, Evellyn Schwarz e Débora

Guiomar Ramos, tendo cada uma deixado um filho como legado de sua bela trajetória, os

quais são duas das pessoas mais incríveis que já tive o prazer de conhecer, meus amigos, Yuri

e Luís Felipe.

Agradeço aos amigos Fábio Loureiro, Otávio Righetti Dal Bello e Caio César Pires por sua

força e sua luta que me inspiram todos os dias.

Agradeço aos amigos do Vaz, Barreto, Shingaki e Oioli Advogados por terem me dado uma

chance quando não me conheciam, por todas as lições da advocacia junto ao Mercado de

Capitais, e finalmente, por terem me apresentado o tema que originou este trabalho.

Agradeço, também, ao meu orientador, o Prof. Alessandro Hirata, por todo apoio ao longo

dos anos que passei na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, por ter acreditado em meu

potencial quando nem eu mesmo acreditava, e por ter me ajudado em diversas oportunidades,

a quem devo muito dos objetivos que atingir.

Agradeço, por último, a todos meus amigos e familiares por todo o apoio e por estarem

sempre ao meu lado.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13

2 O MERCADO DE CAPITAIS COMO UM DOS SEGMENTOS DO

MERCADO FINANCEIRO ............................................................................. 17

2.1 O funcionamento do Mercado Financeiro .......................................................................... 17

2.2 Subdivisões do Mercado Financeiro................................................................................... 20

3 O INSIDER TRADING ................................................................................. 34

3.1 O conceito de Insider Trading ............................................................................................ 34

3.2 Discussões acerca da proibição do uso de informações privilegiadas no Mercado de

Capitais ..................................................................................................................................... 38

3.3 Breve histórico das normas de combate ao Insider Trading nos Estados Unidos .............. 57

3.4 Breve histórico das normas de combate ao Insider Trading no Brasil ............................... 61

3.5 Regime jurídico atual do Insider Trading no Brasil ........................................................... 66

3.6 A figura do Especulador e suas diferenças em relação ao Inside Trader ........................... 71

3.7 A natureza das normas de combate ao Insider Trading ..................................................... 74

4 O CASO SADIA-PERDIGÃO ...................................................................... 92

4.1 O Insider Trading nos tribunais norte-americanos ............................................................. 92

4.2 O Insider Trading nos julgados da CVM ........................................................................... 97

4.3 Aspectos fáticos do caso Sadia-Perdigão ......................................................................... 103

4.4 O caso Sadia-Perdigão nos tribunais norte-americanos ................................................... 106

4.5 O processo administrativo perante a CVM....................................................................... 110

4.6 O caso Sadia-Perdigão no judiciário brasileiro ................................................................ 123

5 CONCLUSÃO.............................................................................................. 137

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 143

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1 INTRODUÇÃO

O Insider Trading é conduta que já há muitos anos está inserida no ambiente

financeiro, sendo tratada por muitos com normalidade, havendo os que defendam, inclusive,

que seja vista como prática normal de mercado. Seus efeitos negativos, contudo, como os

prejuízos que acarreta a investidores e consequentemente ao mercado, com fuga de capitais e

assimetria de informações, fizeram com que fossem editadas diversas normas proibitivas que

deram à conduta caráter de ilicitude.

No presente trabalho pretendemos entender o conceito de Insider Trading,

termo em inglês que significa o uso de informações privilegiadas em transações com valores

mobiliários no Mercado de Capitais, verificar os argumentos dos que defendem a

desregulação da conduta e daqueles que defendem sua proibição, bem como demais questões

que estejam relacionadas a esse comportamento.

Para tanto, verificaremos inicialmente o ambiente de realização do Insider

Trading, o Mercado de Capitais, analisando como este se insere no ambiente econômico e

financeiro, quais são suas características, quais são os títulos nele negociados, qual sua função

e de que modo está posicionado em um sistema que será responsável pela movimentação de

capital na sociedade ao permitir o contato e as trocas entre quem tem sobras e quem precisa de

mais capital do que pode gerar.

Entendidas estas questões preliminares, entraremos nos aspectos relativos à

conduta, verificando seu conceito e os argumentos favoráveis e desfavoráveis a seu combate.

Dentro desta linha, vale destacar a relevância destas questões, tantas vezes esquecida pela

doutrina brasileira, e que trazem uma nova perspectiva para quem se propõe a estudar o uso

de informações privilegiadas no Mercado de Capitais, verificando que, sob certa óptica, este

produziria também eventuais contribuições positivas ao mercado, e que pode existir muito

mais por trás das normas proibitivas ao Insider Trading do que a mera necessidade de se

evitar seus efeitos negativos.

Na sequência, serão abordadas as legislações editadas sobre o tema, desde o

momento prévio à previsão legal de sua ilicitude nos Estados Unidos, primeiro país a tratar a

conduta como ilegal, passando pelas primeiras regras naquele país e também no Brasil, com

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destaque para as alterações legislativas com o intuito de tornar cada vez mais ampla a norma

proibitiva, abrangendo uma gama maior de situações e listando como possíveis agentes uma

quantidade maior de pessoas, até chegarmos no regime jurídico atual.

Posteriormente, trataremos da diferenciação entre o Inside Trader e o

especulador, duas figuras conhecidas dos participantes do Mercado de Capitais, mas que tem

inúmeras diferenças, principalmente em relação aos efeitos de sua conduta, sendo o primeiro,

figura indesejável e que gera potencialmente prejuízos de diversas naturezas, ao passo que o

segundo constitui agente necessário para o bom funcionamento do ambiente de trocas,

trazendo efeitos positivos para o mercado.

Na sequência será enfrentada a natureza das normas referentes ao Insider

Trading, e nesse sentido, o modo como incidem sobre a conduta, tendo efeito preventivo,

impedindo que se realizem negócios motivados por informações privilegiadas, ou efeito

repressivo, servindo como uma punição para o agente que se comportar dessa maneira, e por

último, como tais normas se manifestam no ordenamento.

Passadas estas questões necessárias ao entendimento da conduta abordada por

este trabalho, procederemos à análise de casos, observando a importância da atividade

jurisdicional na construção de uma doutrina a respeito do Insider Trading, tendo em vista que

diversos aspectos, mesmo diante da legislação, foram controversos na definição do

comportamento tido como ilegal, cabendo aos julgadores responderem quais elementos

seriam essenciais e quais seriam secundários ou desnecessários para que restasse

caracterizado o uso ilícito de informações privilegiadas em negócios no Mercado de Capitais.

Nesse sentido, diversos casos nos Estados Unidos e no Brasil tiveram grande

importância por terem sido abordados aspectos até então não aceitos de forma unânime como

parte do comportamento delituoso. Dessa forma, se destacaram em território norte americano

os casos “SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.”, “Cady, Roberts Co.”, “Chiarella v. United States”,

“Blau v. Lehman”, “United States v. Carpenter” e “United States v. O’Hagan”, dentre outros.

No Brasil, destacaram-se casos como “Servix” e “Petrobrás”, primeiros

analisados pela CVM, tendo sido debatidos em ambos questões referentes à caracterização de

fato relevante, tão importante à disciplina do Insider Trading. Diversos outros casos julgados

em território nacional também foram importantes, representando a jurisprudência da CVM

uma fonte essencial na elaboração dos critérios relativos à conduta delituosa.

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Por fim, chegaremos ao caso Sadia-Perdigão, no qual executivos da primeira

teriam realizado negócios envolvendo ADRs de emissão da segunda na bolsa de Nova York,

anteriormente ao anúncio ao mercado pela Sadia de uma oferta pública de aquisição de ações

que lhe dessem o controle da Perdigão, de cuja preparação os potenciais Insiders haveriam

participado.

Este caso mostrou-se extremamente relevante não só por sua atualidade, tendo

sido decido pelo judiciário brasileiro em segunda instância no ano de 2013, ainda cabendo

recursos aos tribunais superiores, mas também pelas questões que foram suscitadas, muitas

das quais ainda não enfrentadas pelos órgãos julgadores, bem como pela proporção que

tomou, tendo em vista que em virtude das negociações terem sido realizadas em território

norte americano, houve investigações não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos.

Nesse sentido, foi proposta ação civil pela Securities and Exchange Comission

(“SEC”) na corte distrital de Columbia contra os acusados, assim como Processo

Administrativo Sancionador (PAS) pela Comissão de Valores Mobiliários e ação penal pelo

Ministério Público Federal, estes últimos no Brasil.

Os efeitos decorrentes dessa multiplicidade de acusações e o enfrentamento de

demais questões controversas levantadas ao longo dos processos serão vistos no penúltimo

capítulo desse trabalho. Destaca-se aqui a existência de situações que não corresponderiam à

doutrina clássica de Insider Trading, como o vínculo dos acusados com companhia diversa

daquela cujos títulos foram negociados.

Outros pontos interessantes debatidos no caso que será estudado são a eventual

ocorrência de “Bis in Idem” em razão da condenação em múltiplas instâncias judicantes, a

competência da Comissão de Valores Mobiliários e da justiça federal brasileira para julgar

conduta supostamente realizada no exterior, a ausência de ofensa ao bem jurídico tutelado

pelas normas brasileiras proibitivas de Insider Trading e a inexistência de prejuízos aos

investidores do Mercado de Capitais brasileiro.

Conforme veremos, este caso também revela grande importância em virtude de

ter sido a primeira vez em que o judiciário pátrio enfrentou o ajuizamento de uma ação penal

de “uso indevido de informação privilegiada”, conduta tipificada pelo art. 27-D da Lei

6.385/76, inserido pela Lei 10.303/01. No caso, foi desenvolvida relevante jurisprudência

quanto ao tema, elucidando-se questões até então debatidas apenas pela doutrina,

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principalmente no tocante à caracterização dos elementos do tipo penal previsto em nosso

ordenamento para a conduta combatida de Insider Trading.

Ainda, destacar-se-á também o debate acerca da necessidade de garantia dos

direitos difusos e coletivos dos investidores no Mercado de Capitais, tendo em vista que

determinadas condutas delitivas, como o Insider Trading, muitas vezes não trazem prejuízos

quantificáveis, senão dano generalizado ao mercado e aos investidores que nele depositam

suas poupanças. Nestas situações, conforme aconteceu no caso Sadia-Perdigão, verificaremos

como é possível que se proteja os direitos transindividuais daqueles que participam do

Mercado de Capitais.

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2 O MERCADO DE CAPITAIS COMO UM DOS SEGMENTOS DO

MERCADO FINANCEIRO

2.1 O funcionamento do Mercado Financeiro

Para que uma economia se dinamize e, consequentemente, se desenvolva, é

preciso que todos os agentes possam ter acesso à capital, tendo em vista que a atividade

produtiva depende de investimentos de diversas naturezas, seja em matéria prima, mão de

obra, equipamentos, etc. Muitos agentes não conseguem, contudo, cobrir seus investimentos

com capital próprio, seja por questões de falha de planejamento, de alto custo de matéria

prima, ou mesmo em função da natureza da atividade.

Diante dessa situação, para que não se interrompa a atividade produtiva, com o

intuito de preservação da economia e até mesmo dos benefícios sociais proporcionados pela

atuação dos agentes econômicos, desenvolveu-se o sistema financeiro, que tem no Mercado

Financeiro seu ambiente de funcionamento.

Neste, agentes deficitários, os quais despendem em consumo e investimento

valores superiores à renda por ele geradas, encontram agentes superavitários, os quais

geraram mais riquezas do que consumiram e investiram1 e, assim, pretendem obter alguma

remuneração a partir da aplicação deste excedente capital.

Dessa maneira, os agentes que tem poupança disponibilizam certo montante de

capital para os agentes que tem custos de produção maiores do que podem pagar ou que

pretendem realizar investimentos superiores à sua capacidade de geração de riquezas. Estes

deverão, contudo, arcar com uma remuneração por aquele capital, o que ocorrerá por meio do

pagamento de juros, de dividendos ou de qualquer outra forma estabelecida pelas partes.

Paralelamente a isso, poderá haver um prazo para a devolução do capital à seu

proprietário, existindo, entretanto, situações em que o capital cedido pelo agente superavitário

permanecerá por tempo indefinido ou de forma perpétua em poder do agente deficitário.

1 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2012, p. 38. Optamos no presente

trabalho por adotar o método de citações bibliográficas do professor Titular da FD-USP Eduardo C. Silveira

Marchi, Guia de Metodologia Jurídica- Teses, Monografias e Artigos, 2a ed., São Paulo, Saraiva Jurídico, 2009.,

por acreditarmos ser o mais adequado às produções científicas de cunho jurídico.

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Nessa situação, o primeiro fará jus à remuneração referente aos recursos cedidos enquanto

estes não lhes forem devolvidos ou enquanto não alienar os títulos que recebeu em virtude do

capital ofertado.

Assim, o sistema financeiro terá a função de fornecer os canais adequados

mediante os quais os agentes deficitários possam captar os recursos necessários para a

realização de seus projetos de investimento e para que os agentes superavitários possam

aplicar suas poupanças2.

A relação entre os agentes que precisam de capital e aqueles que o ofertam no

Mercado Financeiro pode ser direta ou indireta. A relação direta é aquela que não ocorre por

meio de um intermediário, de forma que as partes negociam entre si com base em seus

interesses, muitas vezes amparadas por intermediários obrigatórios que apenas seguem suas

ordens, levando à cessão onerosa dos recursos financeiros, conforme ocorre no Mercado de

Capitais, uma das subdivisões do Mercado Financeiro.

A relação indireta desenvolve-se quando os agentes superavitários e

deficitários não transacionam entre si, mas através de um intermediário que segue interesses

próprios. Este intermediário negocia com cada um dos agentes de maneira autônoma, obtendo

recursos com os poupadores e emprestando esses recursos obtidos àqueles que demandam

capital, atuando como autêntico “intermediário do crédito”, de maneira habitual e

profissional3. Essa atividade de intermediação é realizada pelas instituições financeiras e

ocorre, por exemplo, no Mercado de Crédito, uma outra subdivisão do Mercado Financeiro.

Ainda quanto à relação indireta, vale ressaltar que nas negociações entre

superavitários e deficitários, muitas vezes não há coincidência entre o valor disponibilizado

por poupadores e o valor demandado pelos tomadores. Como forma de equilibrar tal situação,

os intermediários financeiros captam recursos de uma série de ofertadores, obtendo volumes

suficientes de recursos para distribuírem entre seus clientes demandantes segundo suas

necessidades4.

Vista a razão de existência e a forma de funcionamento do Mercado

Financeiro, pode-se perceber sua importância para o desenvolvimento econômico de um país.

2 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais- Regime Jurídico, 3ªed., Rio de Janeiro, Renovar, 2011, p.2. 3 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 2. 4 PINHEIRO, Juliano Lima, Mercado de Capitais, 6ª ed., São Paulo, Atlas, 2012, p. 30.

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Seu bom funcionamento, contudo, não dependerá exclusivamente da abundância de recursos

que eventualmente existam no mercado à disposição dos tomadores, mas também de

condições que garantam a segurança das transações nele realizadas.

Nesse sentido, deve-se garantir aos agentes superavitários mecanismos que

possibilitem conhecer os agentes deficitários ou os intermediários para os quais cedem seu

capital excedente, bem como que possibilitem a recuperação do capital cedido, caso aqueles

não devolvam o montante principal ou não o remunerem conforme pactuado.

Da mesma forma, deve-se garantir aos agentes deficitários o acesso a capital

sob condições que não os onerem excessivamente, com o intuito de que estes ao se dirigirem

ao mercado em busca dos recursos para investir em sua atividade não comprometam seu

planejamento financeiro.

Esta última condição decorre das demais, visto que a existência de informações

sobre os agentes do mercado, bem como a tutela eficiente do direito ao cumprimento das

obrigações pactuadas torna desnecessária a exigência excessiva de remunerações e garantias,

características de negócios em que há grande risco de inadimplemento, insuficiência de

informações e insegurança jurídica.

Assim, a maturidade do Mercado Financeiro de um país influenciará

diretamente o desenvolvimento de sua economia, tendo em vista que seu bom funcionamento

atrairá cada vez mais poupadores, dispostos a obter lucros a partir da disponibilização de seus

excedentes a agentes deficitários mediante intermediários e instrumentos financeiros5. Do

mesmo modo, seu bom funcionamento atrairá cada vez mais agentes deficitários dispostos a

tomar recursos para cobrir seus investimentos. Em virtude desse processo de distribuição de

recursos que se evidenciam as funções econômica e social do sistema financeiro6.

Nesse ambiente estruturado de negociação e de grande circulação de capitais a

economia se torna cada vez mais dinâmica e eficiente, visto que os agentes que geraram mais

riquezas do que consumiram não as retirarão do mercado, mas disponibilizarão esse excedente

a agentes que as demandam, fornecendo, portanto, recursos para o fomento de atividades que

não conseguiriam se desenvolver apenas com ativos próprios.

5 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 39.

6 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 39.

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Havendo grande oferta de recursos, abundância de informações sobre os

agentes do mercado, segurança jurídica na elaboração dos negócios e condições equitativas

nas negociações, tende o Mercado Financeiro a alavancar o desenvolvimento econômico,

fomentando a atividade produtiva e remunerando o capital excedente produzido pelos agentes

superavitários.

2.2 Subdivisões do Mercado Financeiro

O Mercado Financeiro é um macrossistema, configurando um ambiente

extremamente amplo que abrange operações de diversas naturezas. Em função dessa

amplitude, existem enormes dificuldades para conceituá-lo ou restringir seu campo de

existência, de maneira que a compreensão de sua dinâmica decorre da compreensão de sua

função, qual seja criar um ambiente em que agentes demandantes de recursos, de um lado, e

agentes poupadores, de outro, possam se encontrar e tornar produtivo um excedente de capital

que não foi consumido por quem o gerou.

Entretanto, tendo em vista a necessidade de divisão de competência regulatória

e da existência de regras claras incidentes sobre operações específicas, além da estruturação

do sistema para fins acadêmicos de ensino e de pesquisa, procurou-se estabelecer subdivisões

do Mercado Financeiro, dividindo-o em mercados menores com base em traços característicos

de diferentes operações financeiras.

Alguns autores procuram subdividir o Mercado Financeiro com base em sua

finalidade, de forma que este estaria dividido em: a) Mercado de Crédito propriamente dito ou

Mercado Financeiro; e b) Mercado de Valores Mobiliários ou Mercado de Capitais7. Nessa

classificação, a diferença entre as duas categorias reside no tipo de relação estabelecida entre

os agentes tomadores e os agentes poupadores.

No primeiro segmento, a relação entre agentes superavitários e deficitários é

intermediada por uma instituição financeira, a qual, motivada por interesses próprios, pegaria

recursos com os poupadores e os forneceria aos demandantes, obtendo uma remuneração

7Confrontar dentre outros, MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário e Tributação da Moeda, São

Paulo, Dialética, 2006, p. 80 e YAZBEK, Otavio, Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais, 2ª ed., Rio

de Janeiro, Elsevier, 2008, p. 126.

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decorrente da diferença entre os custos suportados na captação e os custos cobrados no

fornecimento destes recursos, remuneração esta denominada spread.8

Dessa maneira, a instituição financeira figura como tomadora de recursos

quando negocia com agentes superavitários, retendo seu capital em troca do pagamento de

juros e da devolução do montante principal em prazo determinado pelas partes, assumindo,

portanto, o papel de devedora e ocupando o polo passivo da relação obrigacional.

Quando, porém, a instituição financeira negocia o empréstimo dos recursos

captados para os agentes deficitários em troca do pagamento de juros e da devolução do

montante principal também em prazo determinado, esta atua como credora e ocupa,

consequentemente, o polo ativo da obrigação. A partir disso, surgem as chamadas operações

passivas e ativas das instituições financeiras9.

Em sentido oposto, no Mercado de Capitais ocorre um contato direto entre

quem oferece os recursos e quem busca captá-los, de maneira que o primeiro adquire um

título ofertado pelo segundo em troca do fornecimento de um montante de capital, podendo

este título ser representativo de uma dívida, como as debêntures, ou de uma propriedade, caso

de ações emitidas pelas companhias.

Para que se tenha acesso a esse mercado, deve-se, entretanto, contratar uma

instituição que nele esteja autorizada a operar, caso das corretoras, que atuarão, contudo,

conforme as ordens emitidas pelo agente contratante, não podendo movimentar os recursos

obtidos junto a este segundo interesses próprios. A remuneração dessas instituições decorrerá

do preço cobrado pela prestação dos serviços decorrentes das ordens que receber dos agentes

que efetivamente negociam neste mercado.

Nesse sentido, também para este tipo de mercado são formadas estruturas de

intermediação, tanto para as operações financeiras quanto para permitir a aproximação

eficiente entre os agentes interessados. Neste caso, porém, os intermediários são meros

intervenientes, e não mais contrapartes, prestando serviços de aproximação, de representação

ou de liquidação de operações para seus clientes, as partes reais10

.

8 YAZBEK, Otavio, Regulação do Mercado cit., p. 126.

9 MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário cit., p. 86.

10 YAZBEK, Otavio, Regulação do Mercado cit., p. 126.

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Apesar dos méritos da subdivisão acima abordada, esta deixa de abranger

aspectos relevantes do Mercado Financeiro que não podem ser incluídos nos dois segmentos

listados. Em virtude disso, foi desenvolvida uma outra proposta de divisão adotada por

juristas e economistas11

que tem atendido melhor ao objetivo de englobar a vasta gama de

operações financeiras possíveis, que por sua complexidade, acabam muitas vezes sendo

enquadradas em mais de um dos mercados existentes.

Esta classificação, que tem como base a necessidade dos participantes do

Mercado Financeiro em cada transação realizada12

, divide-o em quatro segmentos: a)

Mercado Monetário; b) Mercado de Crédito; d) Mercado cambial; e d) Mercado de Capitais.

O Mercado Monetário funciona como um ambiente regulador da quantidade de

moeda em circulação e, consequentemente, do nível de liquidez da economia. São negociados

nesse mercado principalmente títulos emitidos pelo tesouro nacional, mas também títulos

públicos emitidos pelos estados e municípios13

, os quais não podem ser classificados como

valores mobiliários, conforme disposição do art. 2º, §1º, I da Lei 6.385/76, demandando

mercado próprio de negociação, visto que não podem ser negociados no Mercado de Capitais,

também conhecido como Mercado de Valores Mobiliários14

. São negociados no Mercado

Monetário também alguns títulos emitidos por instituições privadas como o Certificado de

Depósitos Interfinanceiros (CDI) e o Certificado de Depósito Bancário (CDB).

O Banco Central atua no Mercado Monetário vendendo títulos de dívida do

Governo Federal com o intuito de retirar moeda da economia, quando pretende reduzir sua

liquidez, ou então comprando títulos que tenham sido emitidos pelo tesouro nacional, quando

pretende colocar mais moeda em circulação e aumentar, dessa forma, a liquidez existente no

mercado.

Cumpre destacar que todos os papéis negociados nesse mercado tem prazo

curto ou curtíssimo de vencimento, o que significa que pouco tempo após sua emissão poderá

o proprietário do título resgatar o capital investido, auferindo, também, o rendimento

incidente sobre esse capital. Paralelamente a isso, cumpre ressaltar que títulos emitidos pelo

Governo Federal são naturalmente dotados de alta liquidez, visto ter o tesouro nacional a

11 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 60. EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.;

PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p.7. 12 PINHEIRO, Juliano Lima, Mercado de Capitais cit., p. 99-100. 13 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 60-61. 14 MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário cit., p. 90.

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prerrogativa de emitir moeda, o que gera a presunção de existência de recursos para

cumprimento da obrigação quando de seu vencimento.

Da mesma forma, os papéis emitidos por instituições financeiras também tem

grande aceitação no mercado, de maneira que, por serem instituições que dependem de

credibilidade no cumprimento de transações envolvendo capital, dificilmente deixarão de

cumprir a obrigação na data de vencimento.

Assim, percebe-se que os títulos negociados no Mercado Monetário tem

grande liquidez, o que lhes confere uma conotação de “quase-moeda”, em virtude de sua alta

aceitação e credibilidade, não operando, contudo, como meio geral de troca e instrumento de

quitação de obrigações pecuniárias, características próprias da moeda, por faltar-lhe uma

atribuição legal nesse sentido15

.

O Mercado Monetário também é conhecido como open market ou mercado

aberto tendo em vista a dinâmica de negociação dos títulos emitidos pelo tesouro nacional

nele negociados. Os títulos são colocados no mercado através de “leilões primários”, também

conhecidos como “venda primária”, organizados pelos dealers, instituições financeiras

escolhidas pelo Banco Central para representá-lo. Nestes leilões, os dealers recebem ofertas

de outras instituições financeiras pelos títulos, as quais podem ser aceitas ou não pelo Banco

Central16

.

A instituição financeira que adquirir os títulos no leilão primário pode

renegociá-los, o que será feito em um ambiente de transações denominada “mercado

secundário”, cujo instrumento de operação é o open market. Neste, as instituições financeiras

vão vender os títulos com o compromisso de recomprá-los futuramente, antes de seu

vencimento17

. É no mesmo ambiente que o Banco Central atua comprando e vendendo títulos

públicos com o intuito de regular a liquidez da economia segundo critérios de sua política

monetária.

O Mercado de Crédito é caracterizado principalmente pela intermediação,

realizada pelas instituições financeiras, entre poupadores e captadores, obtendo recursos junto

aos primeiros e repassando-os aos segundos através de empréstimos e financiamentos de curto

e médio prazo.

15 MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário cit., p. 90 – 91. 16 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 66. 17 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 66.

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Assim, ao tomar capital junto aos poupadores a entidade financeira torna-se

devedora da obrigação de restituí-lo na forma e no tempo combinados. Em sentido oposto, ao

emprestá-lo aos demandantes, torna-se credora da obrigação, aguardando o pagamento do

crédito fornecido na forma e no tempo combinados. Em função disso, uma característica

própria desse mercado é assunção do risco de crédito pelas instituições financeiras18

.

A atividade de intermediação no Mercado de Crédito é realizada tipicamente

por instituições financeiras bancárias, bancos comerciais e múltiplos19

. Estas atuarão seguindo

seus próprios interesses econômicos, não estando vinculadas a ordens recebidas dos

poupadores quanto ao fim que será dado aos recursos captados junto a esses. A única

exigência a que os agentes superavitários terão direito é a devolução do capital cedido à

instituição financeira no prazo combinado, bem como o pagamento da remuneração

estipulada, caso a essa faça jus.

Assim, tais instituições se propõem a custodiar certo montante de capital detido

pelos agentes superavitários com o intuito de que, em posse desses recursos, possam oferecê-

los a agentes que os demandem, obtendo sua remuneração a partir da diferença entre os custos

arcados com a guarda e a custódia dos valores recebidos, onde inclui-se a remuneração paga

sobre o capital em alguns casos, e os custos cobrados dos agentes deficitários ao fornecer-lhes

recursos financeiros.

Dessa maneira, a função do referido mercado é abastecer as demandas de caixa

dos vários agentes econômicos, o que se realiza através do crédito ofertado às pessoas físicas,

bem como por meio de empréstimos e financiamentos às empresas.20

Nesse sentido, trata-se

da realização de operações bancárias típicas, de captação e repasse de recursos a título

oneroso, que garantirão o consumo corrente e de bens duráveis, bem como o capital de giro

das empresas21

.

A atuação do intermediário financeiro captando recursos com aqueles que têm

sobras e ofertando-os àqueles que os demandam favorece o desenvolvimento econômico ao

reduzir os custos de transação no financiamento da atividade produtiva. Isto, pois a existência

de um agente especializado na movimentação desse capital, além de agilizar e facilitar a

18

MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário cit., p. 84. 19 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 69. 20 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 69. 21 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p.7.

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disposição do crédito na economia, reduz os custos que existiriam caso os poupadores

tivessem que se dirigir individualmente ao mercado em busca de tomadores e com esses

tivessem que negociar caso a caso o fornecimento do capital22

.

Na lógica desse mercado, os agentes que tem sobra de capital a fornecem às

instituições financeiras em troca do pagamento de uma remuneração sobre o valor custodiado,

caso seja estabelecido entre as partes um prazo para resgate desse montante. Dessa maneira,

ao não poder ser exigida a devolução imediata do principal, a instituição pode emprestar parte

dos valores recebidos sem o receio de ser demandada a restituí-los, bem como poderá

empregá-los em operações de prazo mais longo, auferindo maiores lucros, conforme ocorre

com as poupanças bancárias, que podem ser classificadas como simples, vinculadas ou

trimestrais23

, e previdências privadas.

Entretanto, caso seja dado ao agente poupador a possibilidade de resgatar os

valores a qualquer momento, não há remuneração sobre o montante cedido, mas em sentido

contrário, este remunerará a instituição financeira pela custódia dos recursos e demais

serviços prestados em função de sua guarda, o que ocorre, por exemplo, no caso das contas

correntes.

A conta corrente nada mais é do que um registro na instituição financeira

relativo a créditos detidos pelo depositante, podendo incluir também obrigações para com

este, geralmente referentes à prestação de serviços. Poderá ainda ser pactuada a compensação

na própria conta entre os valores recebidos pelo depositante e as taxas cobradas pela

instituição, assim como a abertura de crédito para o depositante, quando este precisar de mais

recursos do que dispõe24

, passando, nesse caso, de superavitário para deficitário.

Em posse dos recursos obtidos junto aos agentes superavitários, as instituições

financeiras poderão fornecer parte desses recursos àqueles agentes que os demandam, sejam

pessoas físicas ou jurídicas. Cumpre ressaltar que não poderá ser emprestado o montante total

22

ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 8. 23 SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário, 1ª ed., 3ª reimpressão, São Paulo, Atlas, 2011, p. 236.

Segundo o citado autor, a poupança simples é aquela onde são admitidos saques à vista dos valores depositados;

a poupança vinculada é aquela que, tendo o prazo mínimo de 12 meses, tem a função de lastrear a concessão de

crédito para o titular do valor depositado para que este possa investir na aquisição, reforma, ampliação ou

construção de imóvel; e depósito trimestral é aquele onde haverá cálculo mensal de rendimentos, calculados a

partir da soma da Taxa Referencial com um adicional de 0,5% ao mês, os quais, entretanto, serão creditados

apenas na data do aniversário trimestral da conta. 24

SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário cit., p. 229.

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do capital obtido junto aos poupadores, parte deste deverá ser depositado junto ao Banco

Central, o qual é chamado de depósito compulsório.

O depósito compulsório tem a função de impedir que ao emprestar quantidade

excessiva do capital em seu poder as instituições financeiras não tenham recursos para saldar

eventual demanda de poupadores que, diante do transcurso do prazo acordado, havendo este,

requeiram a devolução do montante cedido àquelas, acrescido de eventuais juros que tiverem

sido pactuados.

No Mercado Cambial, por sua vez, são realizadas operações, à vista e de curto

prazo, de compra e de venda de moedas estrangeiras, as quais passam a ter um caráter de

mercadoria. Em função disso há a necessidade de ser definido para cada uma destas um valor

equivalente em moeda nacional, o qual é definido com base na cotação que o mercado lhes

atribuir, conforme ocorre no sistema adotado pelo Brasil, podendo, em outros sistemas, este

valor ser fixado pelo governo ou flutuar dentro de uma margem pré-estabelecida.

Assim, a moeda estrangeira perde o caráter de moeda, visto que não apresenta

mais as funções que o direito atribui a esta, como forma de liberação de obrigações

pecuniárias, de denominador comum de troca e de valor frente às demais coisas existentes na

natureza. Papel esse que será atribuído unicamente à moeda nacional25

.

Participam do Mercado Cambial instituições financeiras devidamente

autorizadas pelo Banco Central, entidade que não só fiscaliza o referido mercado, mas

também nele atua com o intuito de regular as reservas nacionais de moedas estrangeiras e de

proteger o valor da moeda nacional frente às estas26

.

As transações realizadas pelas instituições financeiras participantes desse

mercado permitem o fluxo de moedas pera dentro e para fora do país, possibilitando a

realização de contratos internacionais em que, sendo uma das partes de nacionalidade

brasileira, o cumprimento da obrigação ocorra através de moeda diferente do real.

Nesse sentido, em função da existência do Mercado Cambial, exportadores

brasileiros podem receber por seus produtos em moeda estrangeira e trocar os valores

recebidos por seu equivalente em moeda nacional. No mesmo sentido, os importadores podem

comprar produto estrangeiro obrigando-se ao pagamento em moeda estrangeira. Munidos de

25 MOSQUERA, Roberto Quiroga, Direito Monetário cit., p. 89. 26

ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 96.

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seu equivalente em reais estes podem trocá-los no Mercado Cambial, amparados por uma

instituição que esteja autorizada a participar do mesmo, pelo valor em moeda estrangeira que

será pago no negócio celebrado.

Vários fatores influenciam diretamente no fluxo de transações realizadas no

Mercado Cambial quanto à compra e à venda de moeda estrangeira. Dentre eles destacam-se o

nível de reservas monetárias que um governo pretende ter, a pretensão governamental por

determinada cotação do câmbio e a liquidez da economia27

.

Quando um governo pretende aumentar as reservas internas de moeda

estrangeira, este atuará no mercado comprando-a, aumentando assim a demanda por esta no

mercado e reduzindo a quantidade de moeda estrangeira disponível. Tal postura promoverá

aumento do valor do câmbio para moeda nacional, influenciando diretamente na provável

redução das importações, em função de ter tornado mais caro o valor pago em moeda

estrangeira pelo produto importado.

Em sentido contrário, quando pretende-se reduzir as reservas nacionais de

moeda estrangeira, haverá venda desta no mercado, aumentado a oferta e a quantidade de

moeda estrangeira disponível. Essa postura, por sua vez, tende a promover uma diminuição

das exportações, visto que ao desvalorizar a moeda estrangeira, torna maior o preço do

produto brasileiro custeado em moeda nacional.

Uma terceira situação ocorrerá quando o governo pretender que o valor do

câmbio se mantenha em uma determinada faixa ou valor pré-determinados. Nessa situação,

haverá transações no mercado vendendo e comprando moeda estrangeira com o intuito de,

respectivamente, aumentar ou diminuir sua oferta e a quantidade disponível, visando valorizá-

la ou desvalorizá-la, dependendo do câmbio pretendido e da cotação que estiver norteando as

operações de compra e venda.

Por último, não havendo grande liquidez na economia de um país, diminuirão

as aquisições de produtos em moeda estrangeira por falta de capital, desencadeando também

uma tendência de busca pela antecipação de vendas por parte dos exportadores, em virtude de

sua demanda por moeda estrangeira. Diante desse cenário de escassez de moeda nacional no

27

ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 97.

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mercado e havendo aumento da oferta de moeda estrangeira, tenda a haver redução da taxa de

câmbio28

. Havendo grande liquidez ocorrerá situação inversa.

A partir dos negócios celebrados no Mercado Cambial serão definidas as taxas

de câmbio referentes à cada uma das moedas estrangeiras nele negociadas. Nesse sentido, as

taxas praticadas na compra e na venda dessas moedas determinarão os índices oficiais.

Os negócios envolvendo câmbio, praticados nesse mercado, podem ser

divididos em duas modalidades, o câmbio manual e o câmbio trajetício ou sacado29

. O

primeiro é caracterizado pela troca de moeda nacional por estrangeira diretamente entre as

partes, de forma que uma parte entrega a outra um montante em moeda nacional em troca do

recebimento do equivalente em moeda estrangeira, tudo realizado no mesmo momento e no

mesmo local. Esse tipo de negócio é geralmente realizado por turistas e demais viajantes em

país estrangeiro.

Diferentemente, no câmbio trajetício ou sacado a parte que demanda moeda

estrangeira entrega à outra um montante em moeda nacional, não recebendo seu equivalente

no mesmo momento. Nessa modalidade de negócio, ocorre uma transferência do valor em

moeda estrangeira para outro país por meio de uma ordem de pagamento ou então a

contrapartida será representada por um título, como letra de câmbio ou ordens de pagamento

no exterior. Operações dessa natureza são geralmente realizadas por exportadores e

importadores com o intuito de receber e quitar, respectivamente, obrigação celebrada com

ente sediado fora de seu país.

Pode-se citar, também, como operações de câmbio trajedício o fluxo de

investimentos e de empréstimos externos que entram no mercado brasileiro, bem como o

retorno desse capital, juntamente com os rendimentos auferidos, ao seu país de origem. A

aquisição de moeda estrangeira com intuito especulativo, bem como com fim de proteção

contra flutuação de sua cotação em virtude de obrigação a ser cumprida em moeda estrangeira

também são, sob o ponto de vista técnico, operações de câmbio30

.

Sob o ponto de vista econômico existem dois diferentes Mercados de Câmbio,

o Mercado de Câmbio de taxas livres, chamado de câmbio comercial, e o Mercado de Câmbio

de taxas flutuantes, chamado de câmbio turismo. No primeiro são realizadas operações como

28

ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 97. 29 SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário cit., p. 312-313. 30

SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário cit., p. 313-314.

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de importação e exportação, pagamentos internacionais de juros e dividendos, empréstimos e

investimentos internacionais. Já no segundo mercado seriam realizadas operações de turismo

e demais despesas a estas relacionadas31

.

Em função da mencionada dicotomia, existiam no Brasil dois Mercados de

Câmbio oficiais, o Mercado de Câmbio de taxas livres e o Mercado de Câmbio de taxas

flutuantes. O primeiro teve seus princípios basicamente instituídos pela Lei nº 4.131, de 03 de

setembro de 1962, posteriormente revogada pela Resolução nº 1.690, de 18 de março de 1990,

do Conselho Monetário Nacional. Já o segundo foi instituído pela Resolução nº 1.552, de 22

de dezembro de 1988, do Conselho Monetário Nacional, a qual foi, também, posteriormente

revogada32

.

Por meio da Resolução nº 3.265, de 04 de março de 2005, o Conselho

Monetário Nacional unificou os dois mercados, instituindo a existência de apenas um

mercado oficial que seria chamado de “Mercado de Câmbio”. A regulamentação desse novo

mercado unificado foi complementada com o “Regulamento do Mercado de Câmbio e

Capitais Internacionais”- RMCCI, instituído pela Circular do Banco Central nº 3.280, de 09

de março de 200533

.

A última subdivisão do Mercado Financeiro é denominada Mercado de

Capitais, onde são negociados todos os títulos que possam ser caracterizados como valor

mobiliário, segundo critérios apresentados pelo art. 2º da Lei 6.385, de 07 de dezembro de

1976. Por tal motivo, este também é conhecido como Mercado de Valores Mobiliários.

Nesse mercado são realizados majoritariamente negócios de “participação”,

tendo em vista que o retorno obtido com os investimentos decorrerá principalmente do

resultado alcançado pela companhia que emitiu os títulos34

.

BERLE e MEANS35

ao abordarem o Mercado de Valores Mobiliários em sua

forma pública, quando os títulos são ofertados para qualquer participante, e em sua forma

privada, quando são ofertados para destinatários específicos, mencionam que apesar de suas

diferenças, o objetivo de ambas as formas é o mesmo, ser um ponto de encontro para 31

ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 97. 32 SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário cit., p. 314-315. 33 SALOMÃO NETO, Eduardo, Direito Bancário cit., p. 314-315. 34

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p.8. 35 BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation & Private Property, 3

rd printing, New

Brunswick (U.S.A.) and London (U.K.), Transaction Publishers, 1999, p. 256 – 258.

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vendedores e compradores. Na verdade, estes seriam ainda mais do que isso, seriam locais em

que existiriam compradores sempre dispostos a adquirir papéis por um determinado preço e

vendedores dispostos a vender seus títulos por um certo valor.

Em outras palavras, segundo os autores, o Mercado de Capitais seria um

ambiente em que há sempre papéis a venda por um preço estabelecido, e pessoas dispostas a

adquiri-los por um valor que lhes seja conveniente, de maneira que a extinção de um destes

dois requisitos levaria à extinção do mercado, devendo o processo ser contínuo, sendo

inconcebível que haja compradores, mas inexistam vendedores e vice e versa.

Em relação aos mercados privados, os autores mencionam, também, que são

geralmente formados por um banco de investimento que atrai compradores e vendedores. Este

tipo de mercado seria formado em função apenas de alguns valores mobiliários, de maneira

que nos locais onde estes títulos não fossem listados no mercado público, criaria-se este

mercado privado sob a promessa de sua liquidez por parte do banco, que tomaria no mais das

vezes a responsabilidade por garanti-la.

Existem, principalmente, dois sistemas no mundo quanto à caracterização de

valor mobiliário. O primeiro procura restringir essa denominação à determinados títulos,

apresentando um rol taxativo de papéis que seriam assim classificados. Esse sistema é usado,

por exemplo, na França.

Um segundo sistema, adotado nos Estados Unidos, procura apresentar

características gerais que fazem de um título um valor mobiliário, existindo, com frequência,

um rol exemplificativo de papéis que se enquadram na definição. Entretanto, qualquer título

que preencha as características estabelecidas será considerado um valor mobiliário.

Com o surgimento no Brasil da Lei 6.385/76 houve a adoção, inicialmente, do

modelo francês, existindo um rol taxativo de títulos que seriam valores mobiliários. Contudo,

a dinâmica do Mercado de Capitais e o surgimento frequente de novos títulos que deveriam

ser submetidos à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) obrigavam a

realização de alterações frequentes na legislação, com o intuito aumentar a abrangência da lei,

incluindo-os no rol de valores mobiliários.

Em virtude dessa situação, percebeu-se que seria mais prático, facilitando a

fiscalização e a organização do mercado, o estabelecimento de características gerais que

seriam próprias de valores mobiliários, de maneira que todos os títulos que nestas se

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31

enquadrassem estariam sujeitos ao crivo da CVM. Assim, através da Lei 10.198, de 14 de

fevereiro de 2001, o Brasil passou a adotar o modelo norte-americano. Reforma essa que foi

sistematizada e complementada pelas alterações na Lei 6.385/76 promovidas pela Lei 10.303,

de 31 de outubro de 200136

.

Assim, atualmente, são negociados no Mercado de Capitais brasileiros os

títulos listados pelos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385/76, dentre os quais se incluem

ações, debêntures, bônus de subscrição, notas comerciais, certificados de depósito de valores

mobiliários, cédulas de debênture, cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou

de clubes de investimento em quaisquer ativos, contratos futuros, opções, entre outros.

Considera-se também valor mobiliário, nos termos do inciso IX do mesmo

artigo, não tendo sido listados nos incisos anteriores, todos os títulos ou contratos de

investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração,

inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do

empreendedor ou de terceiro.

O mesmo artigo, ainda, exclui do rol de valores mobiliários títulos da dívida

pública federal, estadual ou municipal, os quais serão negociados no Mercado Monetário, bem

como títulos cambiais de responsabilidade de instituições financeiras, exceto as debêntures. A

combinação do §3º do art. 2º com o art. 8º, também da Lei 6.385/76, estabelece a competência

da CVM para regulamentar e fiscalizar o Mercado de Capitais, devendo garantir seu

funcionamento nos moldes estabelecido por esta lei.

Nesse mercado são realizadas operações de médio e de longo prazo, bem como

de prazo indeterminado, envolvendo títulos de propriedade, que sejam representativos do

capital de sociedades anônimas abertas, e títulos de dívida, sendo ambos negociados sem

intermediação de instituição financeira37

.

O Mercado de Capitais é considerado um mercado “de risco”, tendo em vista

que na maioria dos títulos nele negociados, títulos de participação, não há garantia de que

haverá retorno do capital investido. Nesses casos, o capital será remunerado através de

36

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., 2011, p. 57. 37 ASSAF NETO, Alexandre, Mercado Financeiro cit., p. 79.

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32

dividendos, os quais dependem diretamente da obtenção de lucro pela companhia38

. Apesar

disso, há grande liquidez nesse mercado, visto que tais títulos podem ser rapidamente

transformados em dinheiro através de negociação em bolsa de valores39

.

Cumpre ressaltar que é característica marcante do Mercado de Capitais a

negociação direta entre agentes que demandam capital e oferecem, portanto, um título no

mercado, e agentes que tem capital em excesso e pretendem comprar esses títulos com o

intuito de obter uma remuneração. As instituições financeiras atuam meramente como

intermediárias obrigatórias, seguindo apenas ordens das partes para colocar títulos à venda ou

para compra-los.

Existem dentro do Mercado de Capitais um mercado primário e um mercado

secundário. No mercado primário são realizadas emissões públicas de novos valores

mobiliários, de modo que os recursos captados com sua venda irão diretamente para a

companhia. Atende-se, assim, à finalidade principal do Mercado de Capitais, qual seja,

financiar as companhias abertas, possibilitando que estas captem recursos junto ao público, os

quais financiarão sua atividade produtiva. Em contrapartida, os agentes superavitários

participarão dos resultados financeiros obtidos com a atividade empresarial40

.

Diferentemente, no mercado secundário ocorre a negociação de valores

mobiliários que já estão no mercado há algum tempo, de modo que os recursos arrecadados

com sua venda não vão para o caixa da companhia, mas para o proprietário anterior daquele

título. Este mercado cumpre duas importantes funções, dá, primeiramente, liquidez aos títulos,

visto que seus proprietários podem facilmente se desfazer dos mesmos em troca de dinheiro, e

permite a definição de preços, os quais serão estabelecidos com base nos valores que

nortearem as operações de compra e de venda.

Por último, ao abordarem as funções do Mercado de Capitais, estabelecem

BERLE e MEANS41

que este teria três funções primordiais. A primeira seria manter um local

apropriado de encontro entre compradores e vendedores de valores mobiliários para que

pudessem negociar por meio de um mercado livre (free market).

38

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p.8 – 9. 39 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 9. 40 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 10. 41

BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation cit., p. 263.

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33

A segunda função seria fornecer uma medida de valor, de modo que os

negócios ali realizados representariam uma base para as operações de crédito e de trocas em

todo o país, formados a partir dos preços praticados no Mercado de Capitais, onde o

fornecimento adequado de informações permitiria maior embasamento na determinação do

valor dos títulos ofertados.

A terceira função seria fornecer liquidez para os títulos ali negociados. Nesse

sentido, o mercado seria o único meio substancial através do qual o investidor poderia reverter

seus investimentos em dinheiro, para realizar novos investimentos ou até mesmo para cobrir

gastos pessoais. Assim, apesar do valor dos papéis variar diariamente, não existiria nenhuma

outra forma de se conseguir transformar ativos em capital de modo tão rápido, dependendo,

todos os demais meios existentes, do mercado.

Existem ainda outras formas de subdivisão do Mercado Financeiro42

que não

serão aqui abordadas, visto que pouco acrescentariam ao cumprimento do objetivo do

presente trabalho, o estudo do tema Insider Trading.

Importante para nós é bem compreender o Mercado de Capitais, seu

funcionamento e suas características próprias dentro do sistema financeiro, tendo em vista que

é no Mercado de Capitais que ocorrem negociações com valores mobiliários motivadas por

informações privilegiadas, conduta que se pretende analisar sob aspectos de responsabilidade

administrativa, civil e penal.

42

FABOZZI, Frank J.; MODIGLIANI, Franco; FERRI, Michael G., Foundations of Financial Markets and

Institutios, New Jersey, Prentice Hall, 1998, p. 07. In: YAZBEK, Otavio, Regulação do Mercado cit., p. 128. ; e

PINHEIRO, Juliano Lima, Mercado de Capitais cit., p. 95-100.

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34

3 O INSIDER TRADING

3.1 O conceito de Insider Trading

O Insider Trading pode ser conceituado como a realização de operações com

valores mobiliários no Mercado de Capitais com a finalidade de obter lucro ou evitar perdas,

motivadas por informações privilegiadas a que o negociador teve acesso.

Nesse sentido, o agente se aproveita de determinada informação privilegiada

que conhece sobre a companhia emissora dos títulos, mas que é desconhecida de sua

contraparte na operação. Haveria, dessa maneira, uma omissão volitiva, e, portanto, um

comportamento doloso por omissão, silenciando o Insider a respeito de fato ou qualidade que

conheça, mas que a contraparte do negócio não, de modo que esta não o celebraria nas

mesmas condições pactuadas, caso também tivesse tido acesso àquela informação43

.

Para que se compreenda o que constitui uma informação privilegiada, deve-se

entender inicialmente o que representa uma informação relevante, tendo em vista que a

informação privilegiada nada mais é do que uma informação relevante que ainda não foi

divulgado ao mercado.

Informação relevante, conforme destaca o art. 2º da Instrução CVM nº 358, de

03 de janeiro de 2002, é qualquer decisão tomada no âmbito da companhia aberta, seja por

seus órgãos de administração ou por seus acionistas, ou qualquer ato ou fato ocorrido que

esteja ligado aos negócios da companhia ou a eles relacionado que possa influenciar, de

maneira representativa: a) na cotação de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a

eles referenciados; b) na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter esses valores

mobiliários; e c) na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à

condição de titular de tais valores mobiliários.

Nos incisos do art. 2º da ICVM nº 358/02 é elencado um rol exemplificativo de

situações que constituiriam fatos ou atos potencialmente relevantes, destacando-se dentre eles

a alteração de controle acionário, a realização ou alteração de acordo de acionistas que

43

COMPARATO, Fabio Konder, “Insider Trading”: Sugestões para uma moralização do nosso mercado de

capitais, “Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro”, vol. 2, São Paulo, RT, 1971, p. 46.

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35

influencie nos negócios da companhia, bem como fusões e aquisições. Pode-se, assim,

facilmente perceber que um fato relevante tem grande influência no funcionamento do

mercado, de modo que sua revelação tem sempre o condão de afetar fortemente as transações

dos títulos relacionados à companhia objeto das informações.

Em função disso, a Lei 6.404/76 estabeleceu, através do §4º do art. 15744

, o

dever dos administradores de sociedades anônimas abertas de divulgar eventuais fatos ou atos

da companhia que sejam entendidos como relevantes através da comunicação à bolsa de

valores onde esta tiver seus títulos negociados e da publicização por meio da imprensa.

Esta determinação tem como fundamento a busca por um mercado eficiente em

que os preços dos ativos reflitam em todos os momentos todas as informações existentes

relativas aos papéis negociados45

, bem como às suas emissoras. A existência de um fato

desconhecido do mercado faz com que os preços não reflitam a real situação dos títulos e das

companhias a que se referem.

Nesse sentido, a credibilidade de um Mercado de Capitais se funda na crença

de seus participantes de que terão acesso de forma ampla e completa às informações sobre os

negócios das companhias que tem seus papéis ali negociados. Dessa maneira, a

obrigatoriedade de divulgação por parte dos administradores das companhias de atos e fatos

relevantes visa exatamente propiciar a igualdade de condições para todos na decisão de

comprar ou vender um valor mobiliário46

.

Diante disso, prevalece o princípio da informação completa, previsto no art. 4º,

VI da Lei 6.385/7647

, o qual representa não apenas que o conteúdo da informação deva ser o

mais detalhado, completo e inteligível (padronizado) possível, mas também que esta deva ser

acessível a todos. Assim, só se atinge no Mercado de Capitais a antiga máxima econômica de

perfeita tradução nos preços da utilidade de cada produto se houver informação igualmente

44

§ 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a

divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia,

ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores

do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. 45

FAMA, Eugene F., Capital Markets: A Review of Theory and Empirical Work, The Journal of Finance, vol.

25, 1970, p. 383 – 417 46

AMENDOLARA, Leslie, Direito dos Acionistas Minoritários – Nova Lei das S.A., 2ª ed., São Paulo, Quartier

Latin, 2003, p. 161. 47

Art . 4º O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários exercerão as atribuições

previstas na lei para o fim de:

(...)

VI - assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários negociados e as companhias que

os tenham emitido;

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36

distribuída a todos. Dessa maneira, a proteção do fluxo de informações representa a proteção

do investimento acionário. Sem tal proteção perderia-se o estímulo à compra de ações48

.

Dessa forma, a divulgação de fatos relevantes tem o condão de evitar que, uma

vez existente uma informação nova que é de conhecimento apenas de pessoas ligadas à

companhia, estas, aproveitando-se do fato de que os demais investidores a desconhecem,

negociem no Mercado de Capitais, diretamente ou através de terceiros, valores mobiliários de

emissão da companhia ou a esses referenciados.

Nem sempre é fácil, contudo, determinar se uma informação é relevante ou

não. Em função desse tipo de situação, a jurisprudência dos tribunais norte-americanos

desenvolveu um “teste de relevância” por meio do qual seria possível identificar se

determinada informação afetaria o mercado de forma significativa49

.

Assim, segundo este teste, devem ser verificados os seguintes fatores: a) a

probabilidade de um acordo final, em virtude de negociações já realizadas; b) a existência de

decisões dos órgãos administrativos das companhias envolvidas, assim como relatórios e

pareceres de auditores externos; c) o possível impacto da operação sobre a atuação da

companhia e a cotação de suas ações50

. Desse modo, havendo grande probabilidade de

conclusão do negócio com fortes influências sobre a operação da companhia, bem como sobre

a cotação de seus valores mobiliários, já existe uma informação relevante51

.

Em alguns casos, contudo, a divulgação de informações relevantes ao mercado

poderia obstar a realização de projetos estratégicos em andamento, como uma fusão, uma

aquisição de controle ou até mesmo a aquisição de bens móveis ou imóveis que teriam grande

impacto sobre a atividade da companhia.

Para esses casos, a Lei 6.404/76 facultou aos administradores de sociedades

anônimas abertas, através do §5º do art. 15752

, caso entendam que a divulgação colocará em

48

SALOMÃO FILHO, Calixto, O Novo Direito Societário, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 154-155. 49 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 561. 50 HAZEN, Thomas Lee, The Law of Securities Regulation, 3ª ed., St. Paul, 1996. In: EIZIRIK, Nelson; GAAL,

Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 561-562. 51 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 562. 52

§ 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de divulgá-la (§

4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia, cabendo à Comissão de

Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista, ou por iniciativa própria, decidir sobre

a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso.

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risco interesse legítimo da companhia, a recusa à prestação de informações, cabendo à CVM

decidir sobre a legitimidade da recusa, podendo responsabilizá-los, caso conclua que a

divulgação deveria ter sido realizada53

.

Assim, nos casos em que existirem fatos relevantes que, se enquadrando na

hipótese do §5º do art. 157 da Lei 6.404/76, não forem divulgados ao mercado, estes serão

considerados como informações privilegiadas. Dessa forma, quem tiver conhecimento de tais

informações tem não só o dever de sigilo, como também o dever de se abster de realizar

quaisquer transações no Mercado de Valores Mobiliários em que estejam envolvidos títulos

que sua cotação seria potencialmente afetada com a divulgação de tais informações54

.

Estes deveres vêm descritos no §1º do art. 155 da Lei 6.404/7655

, de maneira

que esta norma foi adaptada da legislação sobre mercado de capitais norte-americana que

instituiu o princípio do disclosure or refrain from trading, que poderia ser traduzido como

“divulgue ou abstenha-se de negociar”56

. Dessa forma, poderão os administradores deixar de

divulgar informações relevantes da companhia em função de interesses legítimos dessa, mas

em nenhuma hipótese poderão manter sigilo e utilizar tais informações em proveito próprio57

.

Procurando melhor identificar o conceito de informação privilegiada,

EIZIRIK58

estabelece algumas características que lhes seriam próprias, de maneira que uma

informação poderia ser caracterizada como privilegiada, caso apresentasse, cumulativamente,

as seguintes particularidades: (i) tem um caráter razoavelmente preciso, ou seja, refere-se a

53

Do mesmo modo, o caput do art. 6º da ICVM 358/02, facultou aos administradores e controladores da

companhia a não divulgação de informação relevante, caso entendam que sua divulgação colocará em risco

interesse legítimo da companhia. Segue a redação da norma mencionada:

Art. 6º - Ressalvado o disposto no parágrafo único, os atos ou fatos relevantes podem, excepcionalmente, deixar

de ser divulgados se os acionistas controladores ou os administradores entenderem que sua revelação porá em

risco interesse legítimo da companhia. 54

À estas pessoas, vistas como fiduciários da companhia, cabe, em função de uma interpretação sistêmica do art.

155 da Lei 6.404/76, bem como em função do §1º do art. 6º da ICVM nº 358/02 o dever de realizar a divulgação

imediata da informação privilegiada ao mercado, caso esta escape ao controle, deixando de ser sigilosa, ou haja

oscilação atípica nas negociações de valores mobiliários de emissão da companhia ou a eles referenciados.

Conforme redação trazida abaixo:

Parágrafo único. As pessoas mencionadas no "caput" ficam obrigadas a, diretamente ou através do Diretor de

Relações com Investidores, divulgar imediatamente o ato ou fato relevante, na hipótese da informação escapar ao

controle ou se ocorrer oscilação atípica na cotação, preço ou quantidade negociada dos valores mobiliários de

emissão da companhia aberta ou a eles referenciados. 55

§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que

ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de

modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si

ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.

56 EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A Comentada. Volume II- Arts. 121 a 188, São Paulo, Quartier Latin, 2011, p.

370. 57 EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 370. 58 EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 373.

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um fato, não a meros rumores, apresentando, pois, um mínimo de materialidade; (ii) não está

disponível para o público; (iii) é tida como “price sensitive”, isto é, poderia, caso divulgada,

afetar a cotação dos títulos; e (iv) refere-se a valores mobiliários ou a seus emissores.

3.2 Discussões acerca da proibição do uso de informações privilegiadas no Mercado de

Capitais

Apesar de fortemente difundido no ordenamento de diversos países, o combate

ao Insider Trading não é unanimidade entre juristas e economistas59

. Apesar de ter diminuído

o número de defensores da inexistência de regras proibitivas à realização de Insider Trading,

com intervenção reguladora mínima do Estado e consequente permissão do uso de

informações privilegiadas, houve muitas discussões quanto à necessidade e conveniência de

se coibir tal conduta, antes que se previsse por meio de lei sua ilicitude em inúmeros países.

Para aqueles que se posicionaram contrários à vedação da conduta

característica do Insider Trading, a ideia central seria que a intervenção do Estado traria

prejuízo muito maior ao funcionamento do mercado do que a atuação de agentes movidos por

informações ainda não tornadas públicas, tendo em vista os custos e as consequências da

intervenção no livre funcionamento do mercado em comparação com as eventuais vantagens

que sua não proibição poderia trazer.

Henry G. MANNE60

é, sem dúvidas, um dos mais importantes autores norte-

americanos no que se refere às discussões sobre o Insider Trading. Este foi responsável por

reascender os debates sobre o tema na segunda metade do século XX, através da proposição

de desregulação da conduta em trabalho denominado Insider Trading and The Stock Market.

Tendo em vista que a Securities and Exchange Comission (SEC), agência

norte-americana responsável por regulamentar e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários

daquele país, já trazia regras que tinham o condão de inibir o Insider Trading desde 1934,

tendo estabelecido, portanto, que este era um mal para o Mercado de Capitais, o trabalho de

MANNE não foi muito bem recebido pela academia, tendo surgido inúmeras críticas ao que

este propunha como funcionamento ideal do mercado.

59

BAINBRIDGE, Stephen M., The Insider Trading Prohibition: A Legal and Economic Enigma, 1986. Social

Science Research Network Electronic Library. Disponível em:

http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=303880. 60

MANNE, Henry G., Insider Trading and The Stock Market, New York: The Free Press, 1966.

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Dentre as principais consequências do Insider Trading mencionadas pela

crítica que justificariam sua proibição estavam: a) o prejuízo aos investidores; b) a demora na

transmissão de informações dentro da companhia; c) o estímulo à manipulação do preço das

ações por parte dos administradores das companhias; e d) a desconfiança dos investidores

com o mercado61

.

Em trabalho posterior62

, MANNE procurou refutar esses argumentos. Quanto

ao prejuízo aos investidores, ele afirmou que a perda representada pela transação realizada

com preço de mercado, que não reflete a informação privilegiada existente e detida pelo

Insider, não poderia ser imputada a este, visto que caso a contraparte do negócio tivesse sido

qualquer outra pessoa, o prejuízo existiria da mesma forma, já que o preço teria sido definido

pelo próprio mercado.

Em relação ao atraso na transmissão de informações que poderia ser

estimulado pela desregulação do uso de informações privilegiadas, visto que isso maximizaria

o lucro de quem transaciona em função de menos pessoas conhecerem a informação,

MANNE alega que em virtude da rapidez com que ocorrem as transações no mercado

secundário, qualquer demora na transmissão de informações acabaria sendo trivial,

especialmente porque os diretores não demorariam muito para repassar as informações, tendo

em vista que dependeriam dos efeitos de sua divulgação para obter lucro com suas transações.

Quanto à alegação de que o Insider Trading promoveria incentivos aos

administradores de manipularem os preços das ações para que pudessem maximizar os lucros

obtidos em suas negociações, MANNE tenta provar que os custos necessários para que

houvesse um Compliance adequado para coibir este tipo de ação seria extremamente alto,

visto que é de difícil verificação se a variação do preço das ações decorre de manipulação ou

de movimentos naturais do mercado em reação às ações da companhia.

MANNE também não acredita que a confiança dos investidores no Mercado de

Capitais poderá ser afetada pelo Insider Trading, de maneira que este deveria ser percebido

como uma prática natural de mercado, o que poderia ser corroborado pelo tamanho do

Mercado de Capitais norte-americano, que mesmo diante da verificação de inúmeras

61

BAINBRIDGE, Stephen M., Manne on Insider Trading, 2008. Social Science Reasearch Network Electronic

Library. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1096259. 62

MANNE, Henry G., Insider Trading and the Law Professors, Vanderbilt Law Review, vol. 23, 1970, p. 547-

590. In: BAINBRIDGE, Stephen M., Manne on Insider cit.

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40

transações movidas por informações privilegiadas continuou atraindo grande número de

investidores.

Em outro artigo, publicado quase 20 anos após sua obra marcante sobre o tema,

MANNE63

se propõe a analisar se o regime de proibição ao Insider Trading realizado pela

SEC apresentaria benefícios que justificassem restrições à liberdade humana e econômica na

aplicação das normas proibitivas.

Em sentido contrário ao resto da doutrina, MANNE se mantém fiel às suas

ideias originais e defende que o regime proibitivo não poderia ser mantido com base nos

argumentos apresentados como razões de combate ao Insider Trading. Nesse sentido, ele

aponta que não haveria nenhum prejuízo efetivo aos investidores, que a desregulação da

conduta faria do mercado mais eficiente e não menos eficiente como diriam outras doutrinas,

mencionando também que os custos decorrentes da tentativa de evitar que se realizasse a

conduta não compensavam por ser extremamente altos e impedirem a formação de um

mecanismo de compensação por produtividade de informações com valor no mercado.

Além disso, MANNE apontou que a criminalização do Insider Trading faria

com que surgisse um crime sem vítimas, visto que não haveria nenhuma pessoa que tivesse

prejuízos em função dessa conduta, havendo apenas pleitos amorfos e retóricos que falavam

na preservação da integridade do mercado. Ainda, haveria um contrassenso na proibição de se

transacionar com base em informações privilegiadas, tendo em vista que o conhecimento de

tais informações também poderia ser utilizado para que se soubesse o momento certo de não

vender e de não comprar valores mobiliários, situações em que se poderia, também, auferir

muitos lucros em situação de “vantagem” em relação aos demais investidores, mas que não se

conseguiria coibir.

Outro ponto levantado refere-se ao atentado às liberdades civis. Segundo ele,

as agências tenderiam a cometer abusos em suas investigações, expondo as pessoas

investigadas, o que representaria um atentado à sua privacidade e à sua imagem, visto que a

infração ficava ligada à estas mesmo antes da condenação. Como exemplo, MANNE cita o

caso “Dick v. SEC”, em que a vida pessoal do investigado, Mr. Thayer, foi exposta quando

provou-se que ele havia recebido favores sexuais para revelar informações sigilosas.

63

MANNE, Henry G., Insider Trading and Property Rights in New Information, Cato Journal, vol. 4, n. 3, 1985,

p. 933 – 943.

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41

Uma questão também abordada é a capacidade das empresas de detectarem

desvios de conduta dentro de seu próprio ambiente, dessa forma, as regras proibitivas do

Insider Trading poderiam ter sua aplicação a cabo das próprias companhias. Entretanto, esse

modelo não seria aplicado, pois segundo a SEC, as empresas não teriam capacidade de fazê-lo

por conta própria, cabendo à este órgão cuidar do cumprimento de tais normas e aplicar as

sanções cabíveis.

O autor encerra apontando que, inobstante todos os argumentos nos campos

econômico, moral e legal existentes para que a SEC não realizasse o combate ao Insider

Trading esta o fazia mesmo assim, de modo que as razões que justificassem esta postura só

poderiam ter cunho político. Nesse sentido, aponta a existência de um interesse de banqueiros

de investimento e de seus funcionários relacionados, capazes de influenciar na avaliação dos

papéis das companhias, de captar informações que em outra situação ficariam na posse de

Insiders das companhias. Assim, essa proibição, apoiada durante muito tempo pela elite de

Wall Street, a qual dificilmente estaria interessada na “integridade do mecado”, teria o condão

justamente de proteger os players ao invés dos consumidores.

Em obra mais recente64

, o mesmo autor analisa a repercussão de seus ensaios

anteriores, principalmente as discussões surgidas a partir dos argumentos por ele levantados

em seu livro publicado em 196665

, no qual ele apresenta argumentos que justificariam a

desregulação do Insider Trading. Nesse sentido, ele reitera seus principais argumentos à

exceção de um, a defesa de que essa prática representaria uma importante modalidade de

remuneração dos diretores em função das informações por eles produzidas.

Assim, analisando todos os argumentos contrários a esse ponto, propostos por

seus críticos, MANNE admite que o Insider Trading não é uma forma perfeita de

compensação. Isto, pois pessoas que não colaboraram para a produção da informação

poderiam a partir dela obter ganhos, o valor da informação poderia não servir de medida para

o valor da contribuição de um Insider, e, em muitos casos, o valor da informação dependeria

da habilidade de negociação do Insider.

Apesar disso, MANNE chama atenção para uma nova constatação sua, a de

que os administradores das companhias, principais prejudicados pela proibição ao Insider

64

MANNE, Henry G., Insider Trading: Hayek, Virtual Markets, and the Dog that Did Not Bark, 2005. Social

Science Research Network Electronic Library. Disponível em:

http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=679662. 65

MANNE, Henry G., Insider Trading and The Stock cit.

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42

Trading, apesar de todo o controle e de todas as proibições realizados pela SEC nos Estados

Unidos, não se manifestavam contrários à essa postura, ou seja, não defendiam uma mudança

na legislação e a consequente legalização do uso de informações privilegiadas.

Para explicar esse aparente contrassenso, MANNE busca as ideias defendidas

por Friedrich HAYEK66

de que o maior desafio de uma economia não é a alocação eficiente

de bens e serviços, de maneira que, caso as informações necessárias de valores relativos a

estes bens e serviços estivessem disponíveis, os cálculos não seriam difíceis. Assim, a maior

dificuldade estaria em identificar a melhor forma de fazer com que as informações necessárias

pudessem fluir na sociedade e pudessem chegar aos seus destinatários no momento adequado.

Esta ideia poderia, assim, ser estendida à administração das grandes

companhias, de maneira que a essência do gerenciamento das grandes empresas não seria a

substancialidade das informações necessárias para a tomada das grandes decisões, mas o

processo através do qual cada uma das informações existentes chega ao tomador de decisões.

Dessa maneira, os administradores de companhias teriam acesso a uma gama

muito extensa de informações sobre a empresa e sobre seu mercado de atuação que chegariam

até eles através de relatórios textuais, de tabelas, de projeções e de inúmeras outras formas.

Essa realidade permitiria que aqueles, ao analisar estas informações pudessem perceber o que

haveria de relevante e o que não teria impacto substancial no preço das ações da companhia.

A partir dessa realidade, diante de situações em que a oscilação do preço das

ações da companhia não fosse estrondosa e não chamasse, portanto, a atenção dos reguladores

e da mídia, como ocorreria no caso de uma tentativa de tomada de controle ou do anúncio de

medidas governamentais que interferissem diretamente em seus negócios, por exemplo, tais

executivos poderiam, investindo quantidades de dinheiro também não muito volumosas, obter

ganhos substanciais constantes em função de terem a capacidade de, com base nas

informações que chegaram até eles, reconhecer em cada momento a existência de tendências

expressivas de alta ou de baixa desses preços.

Assim, sua aparente apatia frente às políticas da SEC de vedação ao Insider

Trading e a adoção pelos próprios executivos de melhores práticas de governança corporativa

nas empresas no sentido do que propugna o órgão regulador se justificariam pelo fato de que

66

HAYEK, Friedrich A., The Use of Knowledge in Society , American Economic Review, vol. 35, 1945, p. 519

– 524.

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43

esta proibição criaria uma situação em que os demais Insiders, hierarquicamente abaixo da

diretoria, se sentissem compelidos a não transacionar com base em informações privilegiadas,

os quais não teriam a mesma capacidade dos diretores de lucrar com as variações no preço das

ações, visto seu acesso a uma quantidade muito menor e menos vasta de informações que os

administradores da companhia.

Essa situação, em que a proibição ao Insider Trading beneficiaria injustamente

os altos executivos das companhias em detrimento dos demais Insiders ou quasi-Insiders,

segundo MANNE, corresponderia a um novo argumento favorável à desregulação da conduta.

Buscando avaliar se a intervenção no sentido proibitivo seria realmente

necessária, BAINBRIDGE67

analisa de maneira crítica o combate ao Insider Trading nos

Estados Unidos através do estabelecimento de um panorama das normas vigentes e a posterior

verificação de argumentos contrários e favoráveis à regulação. Assim, este parte da análise

das três teorias básicas que tornavam, no ano 2000, dentro do ordenamento norte-americano,

ilegal a realização de transações motivadas por informações privilegiadas, sendo essas,

“Disclose or Abstein Rule”, “Misappropriation Theory” e “Rule 14-e”.

A primeira, criada em função da “Section 10 (b)” da “Securities Exchange Act

of 1934” e da Regra 10b-5 do mesmo diploma normativo, teria começado a surgir no caso

“SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.”, tendo sido complementada em “Chiarella v. United States”

e em “Dirks v. SEC”. Essa teoria determina que seriam responsabilizadas por Insider Trading

aquelas pessoas que, ao negociarem valores mobiliários, tivessem um dever fiduciário, em

relação à contraparte da transação, de tornar pública informação privilegiada a que tiveram

acesso anteriormente à realização da operação.

Tal regra poderia atingir também pessoas de fora da companhia que tivessem

recebido desta informações privilegiadas, tendo em vista que em função de sua proximidade

com a primeira seriam consideradas como se de dentro da companhia fossem, sendo os

chamados “constructive insiders”, caso de advogados e consultores. Do mesmo modo, seriam

alcançadas, também, pessoas de fora da companhia que tivessem recebido de pessoas de

dentro desta ou dos “constructive insiders” informações privilegiadas.

67

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview, 2000. Social Science Research Network

Electronic Library. Disponível em : http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=132529 .

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Em ambos os casos, quem recebe tais informações, por mais que não tenha um

dever fiduciário original por ser um Outsider, passa, então, a ter um dever fiduciário de

manter confidenciais as informações recebidas.

A segunda teoria, conhecida como “Misappropiation Theory”, também

construída com base na “Section 10 (b)” da “Securities Exchange Act of 1934” e da Regra

10b-5 do mesmo diploma normativo, surgiu no caso “Chiarella v. United States”, no qual um

empregado de uma editora financeira teve acesso, em função de seus serviços de impressão de

documentos, à informações ainda não divulgadas a respeito de uma oferta pública de ações

com intuito de tomada de controle de uma companhia por outra, tendo este funcionário

negociado valores mobiliários motivado por tal informação.

Esta teoria requer também a quebra de um dever fiduciário, mas que tem

natureza diversa do dever fiduciário característico da primeira. Aqui há um dever fiduciário

com a fonte da informação e não com os investidores e com eventuais contrapartes nas

negociações.

A terceira teoria originou-se em uma resposta da SEC ao caso “Chiarella v.

United States” que foi a edição da “Rule 14e-3” que proibiu para todos de dentro da

companhia proponente de oferta pública e da companhia alvo desta oferta a divulgação de

informações confidenciais a respeito das negociações em curso às pessoas que pudessem

transacionar no mercado movidas por essas informações. Haveria, também, uma proibição de

que qualquer pessoa que possuísse informações substanciais (“material information”) a

respeito da oferta a ser feita transacionasse com papéis da empresa alvo, caso a ofertante já

tivesse dado passos efetivos no sentido da realização da oferta.

Apesar da proibição constar em texto legal norte-americano, escorando-se esta

nas três teorias mencionadas, procura o autor analisar algumas doutrinas que se posicionaram

contra a vedação ao uso de informações privilegiadas em negociações com valores

mobiliários. Nesse sentido, menciona o trabalho de MANNE68

, que propunha a desregulação

do Insider Trading. Tal posicionamento justificava-se pela crença de que a conduta

beneficiaria de duas maneiras a sociedade e a companhia que teve seus papéis negociados sob

estas condições.

68

MANNE, Henry G., Insider Trading and The Stock cit., p. 117 - 119.

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45

Primeiramente, acreditava MANNE que o Insider Trading faria com que o

preço de mercado dos valores mobiliários afetados se movesse no sentido do preço a que estes

seriam negociados caso as informações privilegiadas fossem tornadas públicas. Dessa forma,

companhia e sociedade se beneficiariam do crescimento da perfeição dos preços praticados.

Um segundo ponto seria a aceitação do Insider Trading como uma forma

eficiente de recompensar os administradores das companhias por gerarem informações. Sendo

assim, as companhias teriam benefícios diretos e a sociedade indiretos, tendo em vista que

existiria um incentivo aos administradores à geração de informações de valor para a

companhia.

Quanto à vantagem da compensação mencionada anteriormente,

BAINBRIDGE acrescenta a evolução deste ponto apresentada por CARLTON e FISCHEL69

,

segundo os quais uma das vantagens do Insider Trading é que este permite que um agente da

companhia possa revisar seu pacote de compensações sem ter de renegociar seu contrato com

esta.

Desse modo, ao realizar transações motivado por novos fatos desconhecidos

pelo mercado o agente atingiria a compensação referente à quantidade de informações por ele

produzidas, o que aumentaria seu incentivo de desenvolver informações de maior valor.

Assim, a realização de Insider Trading promoveria maiores incentivos na medida em que

garante ao agente de mercado maior certeza quanto ao recebimento de uma recompensa pela

sua atuação do que qualquer outro esquema proposto pela companhia.

Ainda na linha de um posicionamento contrário ao combate ao Insider Trading

alguns autores justificavam essa proibição como uma escolha de política pública baseada no

modelo da regulação, em que os reguladores lançam as regras, impondo-as, e os entes

regulados as adotam como se necessárias fossem.

Dentre aqueles que defenderiam esse posicionamento, menciona

BAINBRIDGE o pensamento de DOOLEY70

, para quem a proibição por meio de Lei federal

surgiria de dois fatores. Primeiramente, assim como todas as agências federais, a agência

responsável por regulamentar e fiscalizar o Mercado de Capitais, no caso dos Estados Unidos

69

CARLTON, Dennis W.; e FISCHEL, Daniel R., The Regulation of Insider Trading, Stanford Law Review,

vol. 35, 1983, p. 857-895. 70

DOOLEY, Michael P., Enforcement of Insider Trading Restrictions, Virginia Law Review, vol. 66, 1980, p.

1-89.

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46

a SEC, teria o anseio de ampliar ao máximo sua jurisdição e aumentar seu prestígio, pois,

dessa forma, seus diretores conseguiriam maximizar seus salários, seu poder e sua reputação

através do aumento do orçamento da agência reguladora.

Nesse sentido, sua atuação efetiva e vigorosa no combate ao Insider Trading

atrairia apoio político e consequente aumento do poder econômico da instituição. Atuação

esta que também teria o apoio da mídia, tendo em vista que os processos contra eventuais

condutas delitivas, em função do apoio popular à punição de infratores das normas que regem

o Mercado de Capitais, poderiam gerar material midiático com recepção certa da comunidade.

Um segundo motivo seria o desinteresse dos estados em regular o uso de

informações privilegiadas no Mercado de Capitais norte-americano. Desse modo, a SEC teria

visto nas regras de proibição ao Insider Trading uma forma de se fortalecer frente às agências

estaduais e também às demais agências federais, aumentando seu orçamento na medida em

que seu campo de atuação cresceria.

Essa atuação da SEC em todo o país teria o condão, inclusive, de comprovar

uma superioridade das leis societárias federais em relação às estaduais, demonstrando,

principalmente, a modernidade, flexibilidade e inovação das normas que passaram a regular

os valores mobiliários, normas estas que ainda eram incipientes nas legislações estaduais. Tal

situação consolidou um movimento de federalização das normas societárias, colocando a SEC

em uma posição de liderança nacional em questões dessa natureza.

Ainda nesse sentido, BAINBRIDGE traz a doutrina de HADDOCK e

MACEY71

, a qual propugnava que a proibição ao Insider Trading seria fruto da ação de

profissionais de Marketing, um grupo de interesses coeso e politicamente poderoso. Esse

pensamento partiria da premissa de que apenas Insiders e quasi-insiders, como advogados e

banqueiros da área de investimento, teriam maior acesso a informações privilegiadas das

companhias do que os profissionais de Marketing.

Dessa maneira, fundamentando a realização do Insider Trading na quebra de

um dever fiduciário e postulando que este dever fiduciário existe em relação aos Insiders e

aos quasi-insiders, mas não em relação aos profissionais de Marketing, a proibição

favoreceria a habilidade dos últimos de lucrar com novas informações a respeito das

71

HADDOCK, David D.; e MACEY, Jonathan R., Regulation on Demand: A Private Interest Model, with an

Application to Insider Trading Regulation, Journal of Law and Economics, vol. 30, 1987, p. 311-352.

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companhias. Habilidade esta que decorreria de sua especialização em adquirir e analisar

informações, o que os levaria a negociar com investidores menos bem informados ou então a

vender informações a estes.

Como contraponto aos argumentos trazidos acima, BAINBRIDGE analisa

aqueles favoráveis ao combate ao Insider Trading, baseados na eficiência do mercado, os

quais se dividiriam em três categorias ou segmentos principais, segundo as quais esta conduta:

a) promove prejuízos aos investidores e gera, portanto, desconfiança destes com o Mercado de

Valores Mobiliários; b) gera prejuízos à companhia emissora dos valores mobiliários

negociados; e c) pode ser encarada como um roubo de propriedade pertencente à companhia,

e desse modo, deve ser proibida mesmo que não haja prejuízos à companhia e aos

investidores.

No primeiro segmento defenderia-se, tradicionalmente, que os investidores são

prejudicados porque negociam valores mobiliários por um preço que não corresponde à

realidade. Uma teoria mais moderna indicaria que o prejuízo decorre do fato de que quando

há Insider Trading, os investidores são induzidos a realizarem maus negócios de compra e de

venda.

O autor questiona essa premissa alegando que quando um acionista vende

ações abaixo do preço que estas assumem quando uma informação relevante é levada ao

mercado, não apenas Inside Traders “tomaram” o sobrepreço a que teria direito, mas todas as

pessoas que com ela negociaram, independentemente de essas pessoas terem tido acesso a

informações privilegiadas72

. Nesse sentido, a assimetria de informações entre Insiders e

Outsiders existiria em função do que determina a Lei, que permite que em situações de

interesse da companhia o fato relevante deixe de ser divulgado.

Quanto à ideia de que a presença de Inside Traders levaria os investidores a

realizarem maus negócios, o autor, apoiado em MANNE73

e em DOOLEY74

, argumenta que

ocorre justamente o contrário, tendo em vista que a presença dos primeiros moveria os preços

dos ativos na direção do valor a que seriam negociados caso as informações privilegiadas

fossem públicas, fazendo, portanto, com que os investidores realizem suas transações por

preços mais próximos daqueles que seriam os corretos.

72

BAINBRIDGE, Stephen M., The Insider Trading Prohibition cit., p. 35-68. 73

MANNE, Henry G., Insider Trading and The Stock cit., p. 117 – 119. 74

DOOLEY, Michael P., Enforcement of Insider cit., p. 1-89.

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Para BAINBRIDGE o argumento de que o Insider Trading tira a confiança dos

investidores no mercado também não merece prosperar. Uma prova disso seria que após a

onda de escândalos no mercado norte-americano na década de oitenta, quando demonstrou-se

aos investidores que esta conduta consistia em uma violação comum no Mercado de Capitais,

este viveu um dos períodos mais robustos de sua história, não tendo sido abandonado por

investidores, e não tendo, portanto, perdido sua credibilidade.

Uma confirmação dessa interpretação, conforme MACEY75

, seria que Japão e

Índia passaram a regular apenas recentemente o Insider Trading em seus mercados, não sendo

suas regras, contudo, dotadas de enforcement. Outro caso relevante seria o de Hong Kong que

revogou sua proibição ao Insider Trading. Apesar de suas posturas, todos os países

mencionados teriam Mercado de Capitais vigorosos e bastante líquidos.

Quanto ao segundo argumento, pontua o autor que as consequências do Insider

Trading para a companhia emissora dos valores mobiliários podem ser nem sempre negativas,

tendo em vista que a informação constitui uma propriedade intangível que pode, portanto, ser

usada por mais de uma pessoa sem diminuir seu valor.

Entretanto, este teria o condão de afetar a companhia de forma negativa de

quatro diferentes maneiras: a) poderia atrasar a transmissão de informações, e

consequentemente, a tomada de decisões; b) poderia impedir que planos da companhia fossem

colocados em prática; c) daria aos administradores um incentivo à manipulação do preço das

ações; e d) poderia afetar a reputação da companhia.

O terceiro aspecto que justificaria o combate ao Insider Trading seria um

entendimento que a informação empresarial deveria ser regulada a partir dos direitos de

propriedade, conforme pode ser observado, por exemplo, nos casos “U.S. v. Chestman” e em

“Diamond v. Oreamuno”. Nesse sentido, a utilização de informação por pessoa que não

tivesse tais direitos sobre ela, ou seja, quem não fosse sua proprietária, deveria ser visto como

furto.

Dentro dessa lógica, a atribuição de direitos de propriedade à informação

poderia ser feita de duas formas, permitindo-se ao proprietário da informação que realizasse

transações com valores mobiliários sem ter o dever de divulgação da primeira, ou então,

75

MACEY, Jonathan R., Insider Trading: Economics, Politics, Policy, Washington D.C., American Enterprise

Institute Press, 1991, p. 44.

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proibindo àqueles que não fossem os seus proprietários de usá-la ao negociarem os valores

mobiliários. Nesse sentido, as normas de combate ao Insider Trading existentes nos Estados

Unidos teriam forte influência da segunda forma.

A corrente que propugna a regulamentação da informação por meio de direitos

de propriedade se apoiaria na atribuição de direitos de propriedade a outros bens intangíveis,

como aqueles relacionados à patente, às marcas registradas, bem como aos direitos autorais. A

partir daí, surgiria a questão relativa à quem seriam atribuídos tais direitos, ao Insider, que

gerou tal informação, ou à companhia.

Três pontos principais poderiam ser levantados, segundo BAINBRIDGE, para

determinar que a propriedade das informações não deve ser atribuída ao Insider.

Primeiramente, o Insider Trading não poderia ser visto como uma boa forma de compensação

pela geração das informações, pois os lucros auferidos muitas vezes não correspondem ao

valor da informação e ficam restritos à quantidade de valores mobiliários que poderão ser

negociados. Segundo, haveria uma grande dificuldade em restringir o direito de negociar

àqueles que produziram as informações, de modo que muitas pessoas que não a geraram

poderão obter ganhos em função de conhecê-la, sendo verdadeiros Free Riders. Terceiro, caso

o Insider Trading fosse legalizado as companhias o tomariam como parte dos rendimentos de

seus diretores. Entretanto, como os valores que serão obtidos com essas negociações não são

calculáveis anteriormente à sua realização, não haveria como garantir que a remuneração dos

administradores seria compatível com os serviços prestados.

Estes argumentos levariam ao entendimento de que os direitos de propriedade

sobre as informações geradas no interior das companhias pertenceriam à estas e não à seus

administradores, mesmo que estes às tivessem gerado. Posição que ficaria ainda mais forte

quando conjugada com a “Misappropriation Theory”, em função da qual seria difícil pensar

que o direito de propriedade sobre a informação pertenceria àquele que dela se apropria

indevidamente para obter ganhos pessoais.

O autor conclui analisando que esta questão, contudo, ainda não estaria muito

bem definida no direito norte-americano, não tendo havido decisão judicial, principal fonte do

direito na Common Law, que funcionasse como um Leading Case, esclarecendo de maneira

definitiva a questão da atribuição de direitos de propriedade à informação empresarial,

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50

determinando a quem caberiam tais direitos, apesar de existir algumas decisões judiciais

construídas com base nessa teoria76

.

Nesse sentido, caso se entendesse que tais direitos caberiam ao Insider, não

haveria razão para que se continuasse coibindo o Insider Trading, visto que o Insider se

valeria de propriedade sua. Caso predominasse, entretanto, que a propriedade sobre a

informação é da companhia, ficaria vedada sua utilização pelos Insiders, que caso a

utilizassem em suas negociações, estariam incorrendo em furto.

Mesmo que prevalecesse a segunda hipótese, haveria ainda alguns

questionamentos a serem resolvidos, conforme BAINBRIDGE, para que se pudesse

estabelecer um regime claro e efetivo, que não interferisse demasiadamente no funcionamento

do mercado, seguindo a lógica liberal norte-americana da regulação mínima. Estes seriam: a)

quais informações deveriam ser protegidas, todas ou apenas aquelas que poderiam prejudicar

a companhia caso fossem usadas pelos Insiders?; b) a proibição ao Insider Trading seria uma

proibição obrigatória ou uma recomendação?; e c) as regras sobre deveres fiduciários e furto,

normalmente de competência dos estados no direito norte-americano, seriam estabelecidas

através de legislação federal?.

Apesar das discussões trazidas acima, já em 1932, momento em que inexistia

nos Estados Unidos legislação federal coibindo o Insider Trading, BERLE e MEANS77

trouxeram à tona discussões envolvendo a extensão dos deveres fiduciários dos

administradores de companhias, e consequentemente, as condutas vedadas em função das

obrigações decorrentes destes deveres.

Para tais autores, àqueles que ocupavam posição de direção nas sociedades

abertas surgiam três regras principais de conduta nas quais o exercício de seus cargos deveria

ser pautado, sendo essas: a) aplicação de uma quantidade de atenção razoável nos negócios; b)

fidelidade aos interesses da companhia; e c) prudência razoável na realização dos negócios.

76

Na doutrina brasileira, EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de

Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 555- 556, usando como fonte SCOTT, Kenneth E., Insider Trading, Rule

10b-5, Disclosure, and Corporate Privacy,The Journal of Legal Studies, vol. 9, n. 4, The Law and Economics

Privacy, Dec. 1980, p. 801, falam na existência de uma corrente no direito norte-americano denominada business

property view desenvolvida a partir dos casos Cady, Roberts e Texas Golf Sulfphur segundo a qual as

informações relativas à atividade empresarial seriam de propriedade da companhia e não de seus Insiders, o que

levaria a uma discussão quanto a quem seriam os verdadeiros prejudicados com o Insider Trading, se os

investidores que negociaram valores mobiliários ou se a própria companhia. 77

BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation cit., p. 196 – 206.

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Ponto controverso, segundo aqueles, referia-se à aplicação de tais deveres

apenas em suas relações com a companhia ou também em suas relações com os acionistas e

stakeholders, ou seja, se os diretores seriam vistos como trustees apenas da primeira, tendo

deveres fiduciários apenas para com esta, ou se tais deveres fiduciários seriam estendidos

também aos acionistas e demais pessoas ligadas à companhia.

Segundo BERLE e MEANS, já era amplamente reconhecido pelos tribunais

que nos casos em que os administradores negociavam ações de sua propriedade com a

companhia, sem apresentar informação de que tinham conhecimento e que afetaria a cotação

das mesmas, estes seriam responsabilizados pelas perdas causadas. Tal responsabilização

decorreria do dever de lealdade dos administradores com as companhias, conforme decisões

nos casos “Aberdeen Railway Co. v. Blaikie Brothers”, “Globe Woolen Co. v. Utica Gas &

Electric Co.”, “Robotham v. Prudential Insurance Co.”, dentre outros.

Assim, apesar da ausência de normas específicas, nos casos em que as

transações realizadas por um administrador tinham como contraparte a companhia a qual este

estava vinculado, os tribunais já vinham coibindo o Insider Trading. Entretanto, conforme os

mesmo autores, quando a contraparte das negociações era algum acionista da mesma

companhia, a orientação era diferente.

Nos casos em que os diretores, motivados por informações privilegiadas a que

tiveram acesso em função de seu cargo, negociavam ações com acionistas da companhia

obtendo lucros e gerando, em consequência, perdas para sua contraparte, a maioria dos

tribunais firmava-se na ideia de que os diretores eram agentes fiduciários apenas da segunda,

não tendo deveres fiduciários para com seus acionistas, fazendo jus, assim, ao lucro obtido

através das negociações. Esta postura foi adotada em “Board of Comissioners v. Reynolds” e

em “Carpenter v. Danforth”.

Apesar disso, os aludidos autores já se manifestavam contrários a tal

entendimento, alegando que a interpretação de que os diretores eram representantes apenas do

interesse comum que forma a companhia, não tendo deveres para com seus participantes, e

podendo, portanto, causar danos patrimoniais aos segundos, como através do uso de

informações privilegiadas, não seria nem justa nem saudável para um homem da lei.

Nesse sentido, mencionam que já existia uma minoria de tribunais norte-

americanos que adotava o entendimento de que os diretores não poderiam valer-se de sua

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posição para obter vantagem para si próprio em detrimento dos acionistas. Assim, caso um

administrador pretendesse realizar qualquer operação com acionistas envolvendo valores

mobiliários da companhia, deveria revelar todas as informações relativas à esta de que tivesse

conhecimento para que as partes pudessem negociar em situação de igualdade.

Este posicionamento, conforme pode-se verificar no caso “Oliver v. Oliver”,

baseia-se na premissa de que as informações que chegam até os diretores não são de sua

propriedade e devem servir ao benefício de todos os envolvidos na corporação. Assim, os

diretores passam a ser agentes fiduciários não apenas da entidade que se convencionou

chamar de empresa, mas também de todos que a ela estão ligados. Visão essa aceita e

defendida por BERLE e MEANS.

Um posicionamento de caráter mediano também vinha surgindo nos Estados

Unidos à época, conforme mencionam os autores. Este, que vinha encontrando guarida em

tribunais federais e em alguns outros, seguia a interpretação de que em situações peculiares,

nas quais houvesse fatos especiais que tornassem injusta a transação que trouxesse ganhos aos

diretores à expensa dos acionistas, os primeiros poderiam ser responsabilizados.

Posicionamento adotado nos casos “Strong v. Repide” e em “Stewert v. Harris”.

Apesar das discussões quanto à possibilidade dos administradores

transacionarem motivados por informações privilegiadas, as primeiras limitações ao Insider

Trading, através de Lei federal, surgiram nos Estados Unidos na década de 30 do século XX,

através, principalmente, do “Securities Exchange Act of 1934”78

, em muito influenciado pelo

trabalho de BERLE e MEANS.

Estudos defendidos por outros autores também foram utilizados na construção

de argumentos desfavoráveis à prática do Insider Trading, demonstrando efeitos negativos no

Mercado de Capitais decorrentes do uso de informações privilegiadas em transações

envolvendo valores mobiliários.

78

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading”- Regime Jurídico do uso de informações privilegiadas

no mercado de capitais, São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 214.

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Um destes autores foi COASE79

, que analisou os custos envolvidos na

administração de uma companhia, desde sua organização até a chegada de seu produto no

mercado, e de que modo estes custos influenciariam no preço da mercadoria final.

Tal trabalho, que lançou as bases do estudo dos custos de transação, ofereceu

suporte teórico para que o Insider Trading fosse visto como mais um custo, e portanto, um

peso para a companhia na execução de suas atividades, tendo em vista que oferecia para seus

administradores, e também aos demais funcionários, um incentivo para que utilizassem as

informações, obtidas em função de sua atividade, em benefício próprio, deixando de trabalhar

pelo bem da empresa. Nesse sentido, a permissão da conduta seria extremamente custosa para

as companhias.

Em trabalho posterior80

, o mesmo autor concluiu, a partir da análise uma série

de casos julgados pelos tribunais norte-americanos, que as normas restritivas, e nesse sentido

a intervenção do Estado, só se justificariam caso tivessem o condão de reduzir os custos

envolvidos nas relações sociais, reduzindo os conflitos decorrentes da existência de interesses

divergentes de partes distintas.

Nesse sentido, em um mundo ideal, onde tais custos não existissem, a

regulação estatal seria desnecessária. Entretanto, no mundo real, principalmente no que

concerniria às relações estabelecidas no mercado, o surgimento de custos decorrentes de

atividades necessárias como a barganha realizada entre as partes durante as negociações e

essencial para a formação dos preços, bem como a busca incessante por informação ampla e

completa, fariam com que as normas legais se justificassem dentro de uma necessidade de

alocação eficiente de recursos e um eficiente exercício de direitos.

Outro autor que poderia ser citado é AKERLOF81

, o qual demonstrou os

prejuízos que a existência de assimetria de informações, quando estas não estão disponíveis

de maneira igualitária para todos, poderia causar ao mercado.

Segundo o autor, quando há em um mercado a celebração de negócios em que

uma das partes conhece informações ignoradas por sua contraparte, informações estas que

79

COASE, Ronald H., The Nature of The Firm, 1937. Disponível em:

http://www3.nccu.edu.tw/~jsfeng/CPEC11.pdf . 80

COASE, Ronald H., The problem of Social Cost, Journal of Law and Economics, vol. 3, October 1960, p. 1-

44. 81

AKERLOF, George A., The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and The Market Mechanism, The

Quarterly Journal of Economics, vol. 84, August 1970, p. 488 – 500.

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beneficiam a primeira e prejudicam a segunda, há uma tendência de que apenas maus

negócios sejam realizados, de modo que cada participante tentaria sempre transacionar

movido por informações a que apenas ele tem acesso, obtendo vantagem sobre os demais,

tendo em vista que seus lucros seriam muito maiores. Situação essa que poderia prejudicar

inclusive a continuação e até a existência do próprio mercado.

Situação inversa ocorreria quando a informação é ampla e disponível à todas as

partes das operações realizadas no mercado, quando, conhecendo todas as variáveis

envolvendo o objeto do negócio, as partes podem avaliar o preço que esteja mais próximo do

valor real desse objeto e realizar a transação, confiantes de que tomaram suas decisões com

base em todas as informações existentes.

Na esteira da assimetria de informações, um aspecto relevante, tratado pelo

mesmo autor, é o custo da desonestidade. Este poderia ser observado em um mercado no qual

alguns de seus membros tentam realizar transações envolvendo objetos que tem preço

superior ao seu valor real, oferecendo aos demais membros maus negócios como se boas

oportunidades fossem.

A existência de negócios com tais características tende, a exemplo do que foi

mencionado anteriormente, a tirar do mercado negócios que sejam realizados com

honestidade pelas partes, tendo em vista que aqueles proporcionam maiores ganhos e também

afastam negociadores de boa-fé que não querem ser prejudicados.

A ideias de STIGLITZ82

, em trabalho que rendeu-lhe no ano de 2001 o prêmio

Nobel de economia, teve, também, forte peso no combate ao Insider Trading. Este autor

procurou demonstrar como a informação afeta na tomada de decisões em todos os aspectos e

situações. Dessa forma, nos casos em que há assimetria de informações ou imperfeições nas

informações que são veiculadas ou conhecidas por aqueles que devem tomar uma decisão,

geralmente suas escolhas são diferentes daquelas que seriam tomadas caso houvesse perfeição

no conhecimento das informações existentes, o que acarreta prejuízos a estas pessoas.

Nesse sentido, STIGLITZ afirma que em um mercado onde exista informação

imperfeita é impossível que exista equilíbrio, de modo que um grupo terá sempre vantagem

sobre os outros, tendo em vista que terá acesso a informações desconhecidas pelos demais, o

82

STIGLITZ, Joseph E., Information and The Change in the Paradigm in Economics, 2001. Disponível em:

http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/2001/stiglitz-lecture.pdf .

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que os levará a tomar decisões que os beneficiem em maior grau, gerando muitas vezes perdas

consideráveis para o resto dos participantes desse mercado.

A partir destas constatações, permitir que os diretores das companhias

negociem valores mobiliários motivados por informações obtidas em função de seu cargo e

ainda desconhecidas do mercado seria um incentivo à geração de assimetria de informações,

pois estes deixariam de revelar ou revelariam em número muito pequeno os fatos relevantes

relativos às empresas a que estivessem vinculados.

Essa conduta se explicaria, em função de que ao divulgar fato ou ato relevante,

diminuiria o Insider consideravelmente sua possibilidade de obter ganhos vultuosos, porque o

conhecimento de evento futuro não seria mais exclusivamente seu, já tendo sido revelado ao

mercado, de modo que todos os participantes passariam a levar em conta aquela informação

no momento da celebração de novos negócios.

Do mesmo modo, SPENCE83

e AKERLOF84

também difundiram ideias que

demonstram os malefícios causados pela assimetria de informações ao mercado, tendo

recebido por seus trabalhos, assim como STIGLITZ, o prêmio Nobel de economia no ano de

2001, servindo também como base para o combate ao uso de informações privilegiadas no

Mercado de Capitais.

Na doutrina brasileira, tem prevalecido que o combate ao Insider Trading deve

ser fundamentado em razões econômicas e em razões éticas85

.

As razões econômicas estão ligadas diretamente à eficiência do mercado.

Nesse sentido, um mercado eficiente é aquele onde os preços pelos quais os títulos são

negociados refletem sempre todas as informações existentes86

em relação àqueles, seus

emissores e demais ativos em que estejam, eventualmente, referenciados.

Nesse sentido, deve-se estimular a divulgação imediata e ampla de informações

relevantes, evitando-se o surgimento de informações privilegiadas, e desse modo, garantindo

que os preços dos valores mobiliários reflitam todas as informações existentes.

83

SPENCE, Andrew Michael, Signaling in Retrospect and The Informational Structure of Markets, 2001.

Disponível em: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/2001/spence-lecture.pdf . 84

AKERLOF, George A., Behavioral Macroeconomics and Macroeconomic Behavior, 2001. Disponível em:

http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/2001/akerlof-lecture.pdf . 85

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade de administrador de companhia aberta, Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 50, RT, São Paulo, 1983, p. 43. 86

FAMA, Eugene F., Capital Markets cit., p. 383 – 417.

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Isto, pois a existência de informações relevantes que não foram divulgadas ao

mercado faz com que os preços de negociação dos ativos não correspondam à totalidade de

informações existentes, visto que estas informações ainda não estão disponíveis de forma

pública, não influenciando, portanto, vendedores e compradores das ações no momento da

formação dos preços de compra e de venda dos títulos.

Assim, caso se permitisse que um agente, conhecedor de informações

privilegiadas, negociasse valores mobiliários com os demais participantes do mercado, que as

desconhecem, o primeiro auferiria grandes ganhos às custas dos segundos, por conhecer

eventos futuros.

Estas operações não seriam celebradas, contudo, em situação de eficiência do

mercado, pois os preços praticados refletiriam também aquelas informações, que seriam

conhecidas da todos, deixando de ser interessantes para aqueles que na primeira situação

seriam Insiders da companhia, tendo em vista que perderiam sua vantagem sobre os demais.

As razões éticas se justificam pelo fato de que o Inside Trader negocia em

situação de desigualdade com os demais agentes do mercado. Tal situação decorre do

conhecimento pelo Insider de informações privilegiadas, o qual saberá, portanto, da

ocorrência evento futuro ainda não divulgado ao mercado. Assim, este orienta suas transações

com base em tais acontecimentos desconhecidos dos demais participantes do mercado, os

quais direcionarão seus negócios em função, apenas, das informações publicamente

disponíveis.

Diante desse quadro, o Insider conseguirá realizar transações em condições que

não seriam aceitas pelas pessoas que com ele transacionam caso estas tivessem conhecimento

das informações privilegiadas a que o primeiro teve acesso. Nesse sentido, percebe-se latente

desequilíbrio entre as partes, de modo que o Inside Trader tem grande vantagem em relação

àqueles que com ele transacionam valores mobiliários.

Assim, o Insider, ao realizar operações por preços que não refletem ainda os

acontecimentos futuros, que são de seu conhecimento, mas não dos demais participantes do

mercado, aufere, com frequência, grandes lucros, enquanto os demais deixam de ganhar ou

sofrem, inclusive, prejuízos. Essa desigualdade de partes constitui forte razão ética para

justificar o combate ao Insider Trading.

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3.3 Breve histórico das normas de combate ao Insider Trading nos Estados Unidos

A caracterização do Inside Trader e a extensão de sua responsabilidade

evoluíram muito ao longo dos anos, refletindo principalmente as alterações ocorridas no

direito societário quanto à proteção dos acionistas minoritários e dos chamados steakholders,

aquelas pessoas ligadas à companhia por meio de vínculos de diferentes naturezas.

Além destes aspectos, cumpre destacar um grande desenvolvimento da

preocupação com a imagem do Mercado de Capitais, de forma que pretendeu-se cada vez

mais aumentar a proteção aos investidores, visando, assim, ao aumento da credibilidade do

mercado para atrair cada vez mais pessoas dispostas a aplicar suas poupanças nos títulos ali

negociados.

Nas primeiras manifestações legais de combate ao Insider Trading, ocorridas

nos Estados Unidos no início do século XX87

, procurou-se, por meio do art. 16 do Securities

Exchange Act of 1934, imputar a conduta de Inside Trader àquelas pessoas que detinham

poder dentro das companhias, de modo que apenas aqueles que pudessem definir os rumos da

empresa poderiam ser responsabilizados. Assim, apenas acionistas com participações

relevantes, administradores e altos funcionários poderiam ser vistos como infratores nesse

sentido88

.

Outro ponto importante era a necessidade de que se auferisse lucro com as

transações motivadas por informações privilegiadas89

. Além disso, existia uma

responsabilidade objetiva dos agentes, não sendo necessária a prova da intenção de realizar

Insider Trading. Nesse sentido, existia uma presunção de ilicitude de todos os negócios de

recompra ou de revenda de ações realizados pelos possíveis Insiders dentro de seis meses a

partir da venda ou da compra anteriormente feita, devendo todo o lucro resultante dessas

operações ser revertido para a companhia.

87

Conforme PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 214, a primeira legislação estadual

coibindo o Insider Trading por parte de diretores e acionistas das companhias surgiu em 1911 no estado norte-

americano do Kansas. Entretanto, foi apenas a partir da Securities Exchange Act of 1934 que, através de uma Lei

federal, as regras proibitivas passaram a valer em todo os Estados Unidos, primeiro país a vedar legalmente o

uso de informações privilegiadas no Mercado de Capitais. 88

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, 3º vol., 4ª ed., São Paulo, Saraiva,

2009, p. 296. 89

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 215.

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58

A mesma norma trazia apenas a possibilidade de ações de responsabilidade de

caráter civil contra estes agentes pela companhia, ou por seus acionistas em nome desta, não

sendo possível a aplicação de penalidades administrativas pela Securities Exchange

Comission (SEC) norte-americana, o que fez com que esta regra fosse apelidada de crude rule

of thumb90

.

Tendo em vista que a regra prevista pelo art. 16 não previa o ressarcimento de

danos causados a acionistas e investidores nas transações com Insiders, em que estes

estivessem motivados por informações privilegiadas, passou-se a invocar o disposto no art. 10

(b) da mesma Lei com o intuito estender àqueles a proteção contra prejuízos sofridos, tendo

em vista que este artigo coibia de maneira genérica uma série de práticas tidas como

fraudulentas91

.

A regra trazida pelo art. 16, em especial por sua parte “b”, assim como o art. 10

(b) não eram autoexecutáveis, dependendo de regulamentação pela SEC, assim, foi

promulgada em 1942 a regra 10 b-5, como ato interpretativo do segundo, que estendeu aos

investidores a proteção contra práticas fraudulentas92

. Desse modo, ampliou-se a

responsabilidade dos agentes infratores além da companhia, podendo ser acionados civilmente

por qualquer particular que tivesse sido lesado pelas transações por eles realizadas

conhecendo informações privilegiadas.

Um dos objetivos deste novo dispositivo foi reprimir eventuais manipulações

que administradores e principais acionistas pudessem fazer com valores mobiliários de

emissão da companhia por meio da sonegação de informações93

. Nesse sentido, trazia a

ilegalidade da conduta de qualquer pessoa que ao negociar valores mobiliários prestasse

informações falsas ou incorretas, bem como omitisse fatos relevantes, entendidos pela

jurisprudência como qualquer fato que seria levado em consideração por um investidor médio

ao negociar ações94

.

A interpretação da norma 10 b-5 permitiu que a jurisprudência norte-americana

estendesse, a partir do caso Cady, Roberts & Co., a responsabilização por Insider Trading a

terceiros ligados aos administradores, ampliando o rol de agentes possíveis para a conduta à

90

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 45 - 46. 91

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 296. 92

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 214. 93 CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 296. 94

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 46.

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59

todos aqueles que, mesmo não vinculados funcionalmente à companhia, tivessem acesso à

suas informações privilegiadas95

.

Dessa forma, a regra 10 b-5 é bem mais abrangente do que aquela trazida pelo

art. 16 da Securities Echange Act of 1934, porque proíbe qualquer operação na qual uma das

partes não conhece uma informação que deveria ter sido divulgado pela contraparte do

negócio, abrangendo não só operações efetuadas por administradores, mas também aquelas

realizadas por pessoas vinculadas a estes, seja qual for a origem do vínculo, e ainda por

qualquer pessoa física ou jurídica que adquire a informação relevante em virtude de sua

proximidade com a companhia96

.

Essencial, também, na interpretação e consolidação da norma 10 b-5 foi o

julgamento do caso “SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.”, iniciado em 1965, no qual foram

condenadas por Insider Trading pessoas internas à companhia, bem como Outsiders em

relação a esta que receberam dos primeiros informações relevantes ainda não divulgadas.

Este caso foi importante, também, pois trouxe a conceituação de fato relevante

(material information) para o direito norte-americano. Assim, deveria ser considerada

relevante toda informação que seria levada em conta por um investidor médio, para a compra,

venda ou manutenção de ações, ou que exerceria impacto sobre o mercado. Dessa maneira, o

que se objetivava, era não só impedir que os Insiders da companhia levassem vantagem em

relação aos demais investidores em seus negócios, mas que houvesse a revelação de

informações necessárias a um investidor médio para que tivesse condições de realizar

investimentos criteriosos97

.

Em 1980, no caso “Chiarella v. United States”, a SEC buscou na justiça norte-

americana a responsabilização por Insider Trading de um funcionário de uma gráfica

contratada por uma companhia para fazer alguns prospectos a respeito de uma oferta pública

que esta realizaria à outra, tenda em vista que o referido do funcionário, ciente da oferta que

seria realizada em função de seu trabalho, comprou ações da segunda empresa vendendo-as

depois que a oferta tornou-se pública obtendo lucro razoável98

.

95

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 46- 47. 96

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal de Informações Privilegiadas – “Insider

Trading” – no Brasil e nos Estados Unidos, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.

34, RT, São Paulo, 1979, p. 39. 97

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 230. 98 EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 47.

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60

A análise do pedido da SEC resultou, em primeira instância, em condenação

por Insider Trading, a qual foi confirmada pelo tribunal de segunda instância, sob o

fundamento de que a instrução 10 b-5 objetivava abranger operações realizadas por qualquer

pessoa, e não apenas administradores, que receba regularmente informações desconhecidas do

público, ainda que sejam obtidas de fonte fora da empresa, cujos valores mobiliários são

transacionados. Agentes nestas condições configurariam Insiders do mercado (Market

Insiders), alargando, assim, significativamente o campo de incidência da norma99

.

A suprema corte norte-americana, contudo, reformou a decisão das instâncias

inferiores, isentando de responsabilidade o funcionário da gráfica, sob o argumento de que o

dever de informar, nos termos da regra 10 b-5 não surge do mero conhecimento de

“informações de mercado” confidenciais, de modo que um Insider do mercado não tem os

mesmos deveres dos Insiders da companhia100

.

Como reação quase imediata à manifestação da suprema corte no caso

“Chiarella v. United States” a SEC editou em 1982 a regra 14 e-3. Esta classificou como

ilegal o fornecimento, por Insiders da companhia, de informações sobre futuras ofertas

públicas de aquisição ainda não divulgadas ao mercado, independentemente da realização de

transações com valores mobiliários por aqueles que receberam as informações. Além disso,

impôs a qualquer pessoa que conhecesse uma informação confidencial relevante sobre uma

oferta pública vindoura, sabendo que tal informação foi obtida do ofertante, a obrigação de

revelar ou de abster-se de negociar (disclose or refrain from trading)101

.

Ainda importante foi o Insider Trading Sanctions Act of 1984, o qual aumentou

a multa civil prevista para aqueles que pudessem ser classificados como Inside Traders, bem

como aumentou a sanção penal aplicável à violação das normas do Mercado de Capitais e

expandiu a autoridade da SEC102

. Posteriormente, em 1988, entrou em vigor o Insider

Trading and Securities Fraud Enforcement Act que teve como objetivo principal a difusão de

práticas preventivas ao Insider Trading e a outras fraudes no Mercado de Capitais, impondo,

dentre elas, a adoção de Chinese Walls entre os diversos departamentos de instituições

financeiras103

.

99

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 40. 100

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 47. 101

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 47. 102

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 234. 103

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 235.

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61

Outras normas federais norte-americanas editadas pelas SEC que se destacaram

foram as regras 10 b5-1 e 10 b5-2, em 2000, que tiveram o intuito de esclarecer alguns

aspectos do Insider Trading, assim como o Regulamento FD (Fair Disclosure), também

editado no mesmo ano e que teve como intenção ampliar a divulgação de informações das

companhias104

.

Como norma relevante mais recente dos Estados Unidos no combate ao

Insider Trading, temos a Lei Sarbanes-Oxley (SOX) de 2002. Esta Lei foi aprovada e editada

pelo Congresso norte-americano em resposta a uma grave crise de governança corporativa nas

companhias, muitas das quais listadas em bolsa de valores, o que, em virtude dos sucessivos

casos de fraude e de corrupção envolvendo administradores destas empresas, havia levado a

uma crise de confiança no Mercado de Capitais105

.

A Lei SOX teve suas regras direcionadas para uma maior transparência das

companhias, com o intuito de aumentar sua credibilidade frente ao mercado, bem como frente

à população. Dentre suas regras destacam-se a responsabilidade dos administradores pelas

informações fornecidas pela companhia e o estabelecimento de regras para garantir a

idoneidade dos gatekeepers do Mercado de Capitais na análise dos dados das companhias e na

formação de suas conclusões, dentre eles auditores independentes, agências de classificação

de risco de crédito, analistas de mercado e advogados pareceristas.

3.4 Breve histórico das normas de combate ao Insider Trading no Brasil

No Brasil, o Decreto-Lei nº 2.627, de 26 de setembro de 1940, previa, em seu

art. 70, o dever de prestar informações ao público, restrito, contudo, às companhias

estrangeiras, representando, meramente, uma preocupação com o registro e a autorização de

funcionamento destas que começavam a se instalar no país106

. O Decreto-Lei era filiado à

tradição do direito continental, não contendo, portanto, combate próprio ao Insider Trading,

tendo em vista que este preceito é fruto da elaboração da common law107

.

104

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 235. 105

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 236. 106

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 274. 107

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 292.

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A Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, que foi promulgada como norma

reguladora do Mercado de Capitais, já filiada ao direito norte-americano, trouxe em seu art.

3º, X a competência do Banco Central para fiscalizar a utilização de informações não

divulgadas ao público em benefício próprio ou de terceiros, por acionistas ou pessoas que, por

força de cargos que exerçam, a elas tenham acesso108

. Assim, percebe-se que a vedação ao

Insider Trading restringia-se a acionistas, especialmente controladores, e administradores da

companhia109

.

Em 1968, o Banco Central editou a Resolução nº 88 com intuito de

regulamentar a competência que lhe foi dada pela Lei 4.728/65 de fiscalizar o uso de

informações privilegiadas. Nesse sentido, estabeleceu um dever de Disclosure das

companhias em relação às decisões tomadas pela diretoria e pela assembleia geral em relação

a dividendos, aos direitos de subscrição e à outras decisões relevantes que poderiam afetar os

preços dos títulos ou valores mobiliários de sua emissão ou influenciar a decisão dos

investidores. Enxerga-se nesse comando o nascedouro do fato relevante, nos moldes como é

previsto hoje na legislação societária110

.

Em 1976, foram promulgadas a Lei 6.404, que revogou parcialmente o

Decreto-Lei 2.627/40 e trouxe novas regras para as Sociedades Anônimas, e a Lei 6.385, que

regulou o Mercado de Valores Mobiliários e criou a CVM. No que se refere ao combate ao

Insider Trading na primeira se destacaram os artigos 153, 155 e 157, enquanto na segunda,

destacaram-se os artigos 4º e 9º.

Na exposição de motivos 196/76 do Ministro da Fazenda, referente à Lei

6.404/76, reconheceu-se que alguns dos principais objetivos da Lei eram criar a estrutura

jurídica necessária ao bom funcionamento do Mercado de Capitais, bem como regular o

108 CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 292. 109

Nesse cenário, diante da insuficiência das normas brasileiras no combate ao Insider Trading, COMPARATO,

Faio Konder, “Insider Trading”: Sugestões cit., p. 46 -47, sugeriu a adoção de regulação no país que focalizasse

principalmente os diretores, membros dos conselhos de administração, de conselhos consultivos, de conselhos

fiscais e semelhantes de sociedades cujos títulos fossem cotados em bolsa, o acionista titular de mais de 50% de

suas ações, assim como o cônjuge não separado judicialmente e seus filho menores. Nesse sentido, estaria

configurada a conduta delitiva quando: I) o contratante demandado fosse qualquer uma destas pessoas ou

sociedade da qual fossem administradores, altos funcionários, sócios controladores ou sociedade controlada pela

primeira; e II) a cotação em bolsa dos títulos ou direitos negociados teria acusado, dentro de 90 dias da

negociação, uma oscilação a 40%, ou em 120 dias, uma oscilação maior do que 50%. Ocorrendo ambos os

fatores, I e II, o contrato só deixaria de ser anulado se o demandado demonstrasse que a oscilação tivesse

decorrido de causa estranha à companhia ou então, caso tivesse decorrido de causa pertinente à companhia, que

esta não era de seu conhecimento. 110

LEÃES, Luis Gastão Paes de Barros, Mercado de Capitais e “Insider Trading”, São Paulo, RT, 1991, p. 174.

In: PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 276.

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63

comportamento e a responsabilidade dos administradores e dos controladores para com o

público investidor111

. Nesse sentido, o art. 153 trouxe o dever de diligência, o art. 155 o dever

de lealdade e, em seu §1º, o dever de sigilo, e, por último, o art. 157 trouxe o dever de

informar.

Estes artigos vedavam, a priori, a utilização de informações privilegiadas,

apenas por parte dos administradores, através de obrigações preventivas e de conduta.

Entretanto, logo após a entrada em vigor da Lei já havia interpretações de que esta obrigação

abrangia pessoas ligadas aos administradores, os chamados tippees, que concorressem para a

prática do ato violador da Lei, em função da interpretação daqueles artigos conjuntamente

com o art. 158, §5º da mesma Lei112

. Do mesmo modo, a interpretação conjunta com o art.

117 da Lei 6.404/76, que trata das responsabilidades do controlador diante do abuso de poder,

estenderia para estes a proibição do uso desleal de informações privilegiadas113

.

Seguindo interpretação ampliativa semelhante, EIZIRIK114

concluiu que, nos

moldes da redação original da Lei 6.404/76, poderiam ser classificados como Inside Traders:

a) os administradores de companhias abertas, entendidos aqui diretores, membros do conselho

de administração, do conselho fiscal, bem como membros de demais conselhos criados com

funções auxiliares; b) pessoas subordinadas aos administradores, bem como terceiros de sua

confiança115

; e c) acionistas controladores.

A Lei 6.385/76, em sua redação original, trouxe em seu art. 4º atribuições do

Conselho Monetário Nacional (CMN) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que

tinham como objetivo a proteção do Mercado de Capitais e o estímulo a sua expansão, bem

como a proteção dos investidores e de seus investimentos. O art. 9º da mesma Lei trouxe, por

sua vez, a competência da CVM para fiscalizar os participantes do Mercado de Capitais,

111 MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 43. 112

Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da

sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando

proceder:

(...)

§ 5º Responderá solidariamente com o administrador quem, com o fim de obter vantagem para si ou para outrem,

concorrer para a prática de ato com violação da lei ou do estatuto. 113 MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 45 – 46. 114

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 51. 115

Em EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 47, fundamenta-se com base no art. 155,

§2º (“§ 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de

subordinados ou terceiros de sua confiança”) a possibilidade se classificar como Insiders pessoas subordinadas

aos administradores e terceiros de sua confiança, diferentemente de MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A

Utilização Desleal cit., p. 45 – 46, que fundamenta, conforme abordamos no corpo do texto, essa possibilidade

com base no art. 158, §5º.

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podendo requisitar documentos, informações, determinar publicação de demonstrações,

relatórios, dentre outras coisas, assim como apurar e punir, mediante inquérito administrativo,

atos ilegais e práticas não equitativas.

Em 1979, a Comissão de Valores Mobiliários editou a Instrução CVM nº 8.

Esta instrução vedou em seu inciso I o uso de “práticas não equitativas”, dentre outras tidas

como maléficas ao mercado, à administradores, acionistas, intermediários financeiros e

demais participantes do Mercado de Capitais. Na alínea “d” do inciso II da mesma instrução,

prática não equitativa foi definida como aquela que resulte em posição de desigualdade ou

desequilíbrio entre as partes em negociações com valores mobiliários.

A noção de “prática não equitativa”, conforme descrita pela instrução,

transpareceu a intenção do legislador em vedar o uso de informações privilegiadas em

transações com valores mobiliários aos sujeitos mencionados, permitindo, assim, que a figura

do Inside Trader pudesse ser estendida às instituições financeiras e aos demais participantes

do mercado.

Apesar disso, houve manifestação da doutrina de que a reparação por danos

causados pelas transações realizadas por estes agentes dificilmente seria conseguida no

judiciário, tendo em vista que estes não seriam verdadeiros Insiders das companhias, não

estando sujeitos ao dever de divulgar informações relevantes ou de abster-se de negociar

valores mobiliários (disclose or refrain from trading), de modo que os prejuízos aos

investidores só poderiam ser causados pelo não cumprimento do dever de divulgação e não

pela simples negociação com ações da companhia116

.

Em 1984, a Comissão de Valores Mobiliários expediu a Instrução CVM nº 31.

Esta instrução inovou ao trazer em seu art. 1º uma definição para ato ou fato relevante,

listando em seus incisos um rol exemplificativo de situações que ensejariam o dever de

divulgação, a qual ficaria a cargo, conforme seu art. 2º, §1º, do Diretor de Relações com o

Mercado.

Outra questão de grande importância dessa instrução foi a extensão, através do

caput de seu art. 11, da vedação de negociar ações conhecendo informações privilegiadas a

todas as pessoas que a estas tiveram acesso em função de vínculo profissional com a

companhia, assim como, conforme §1º do mesmo artigo, a quem quer que seja, desde que

116

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 52.

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saiba tratar-se de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado. Desse modo,

ampliou-se o rol de possíveis Inside Traders, podendo a conduta ser imputada a qualquer

pessoa, independentemente de vínculo com a companhia, desde que existentes as condições

exigidas.

Em 2001 sobreveio a Lei 10.303, a qual alterou dispositivos da Lei 6.404/76 e

da Lei 6.385/76, promovendo modificações importantes na modernização do ordenamento

pátrio no combate ao Insider Trading.

Na Lei 6.404/76, as principais alterações foram as adições do §4º ao art. 155 e

do §6º ao art. 157. O primeiro estendeu a qualquer pessoa a proibição da utilização de

informações relevantes ainda não divulgadas, com a finalidade de auferir vantagem, no

Mercado de Capitais. Diferentemente da ICVM nº 31/84, o §4º do art. 155 não condicionou a

responsabilização por Insider Trading ao conhecimento de que a informação seria relevante e

ainda não havia sido divulgada, facilitando a imputação da conduta.

O §6º do art. 157, por sua vez, ampliou o dever de informar dos

administradores, determinando a comunicação imediata de modificações em suas posições

acionárias na companhia à CVM, às bolsas de valores e às entidades do mercado de balcão

organizado onde sejam negociados os valores mobiliários de emissão da companhia.

Quanto às alterações promovidas na Lei 6.385/76, pode-se citar,

primeiramente, a inclusão da alínea “c” no inciso IV do art. 4º, a qual inseriu entre as

finalidades das atribuições determinadas legalmente à CVM e ao CMN a proteção de

investidores e de titulares de valores mobiliários contra o uso de informações relevantes não

divulgadas no Mercado de Valores Mobiliários.

Uma segunda alteração promovida pela Lei 10.303/01 na Lei 6.385/76 e que

pode ser considerada como a alteração mais relevante, foi a inclusão do capítulo VII-B,

intitulado dos crimes contra o mercado de capitais, no qual passou a constar o art. 27-D que

criminalizou a utilização de informação relevante ainda não divulgada por quem dela tenha

conhecimento e deva manter sigilo em negociações com valores mobiliários. Assim, o Insider

Trading tornou-se conduta penalmente coibida no ordenamento brasileiro.

Em 2002, entrou em vigor a Instrução CVM nº 358, a qual revogou a ICVM nº

31/84. Esta nova instrução, em seu art. 2º, teve o condão de ampliar o conceito de informação

relevante, bem como o rol exemplificativo de situações que possivelmente ensejariam o dever

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de divulgação da companhia em função do acontecimento de ato ou fato relevante. No art. 3º,

por sua vez, determinou-se que a responsabilidade pela divulgação destas informações

relevantes passaria a caber ao Diretor de Relações com Investidores (DRI).

A mesma instrução, em seu art. 8º, estendeu o dever de sigilo, que antes

direcionava-se apenas aos administradores e ao acionista controlador, a todos os empregados

da companhia, surgindo para todos eles, adicionalmente, o dever de zelar para que seus

subordinados e terceiros de sua confiança também o cumprissem.

Dentro da mesma lógica, o art. 13 tratou das vedações à negociação de valores

mobiliários, mantendo a possibilidade, já determinada pela ICVM nº 31/84, de

responsabilização por Insider Trading de qualquer pessoa, ampliando, contudo, as situações

de seu cabimento e tentando abarcar o maior número de vínculos possíveis da pessoa com a

companhia, como listagem exemplificativa, em que esta se encontraria impedida de negociar.

A ICVM nº 358/02 foi alterada inicialmente pela Instrução CVM nº 369, de 11

de junho de 2002, que promoveu, dentre outras alterações, uma ampliação do dever de

divulgação dos administradores de sua participação no capital da companhia, bem como

alterou algumas situações de vedação a negociações em casos de alterações na estrutura da

companhia.

Por último, a ICVM nº 358/02 foi alterada pela Instrução CVM nº 449, de 15

de março de 2007, que, como alteração mais relevante no combate ao Insider Trading,

promoveu a ampliação do dever de membros de órgãos de direção e de fiscalização da

companhia, assim como daqueles com funções técnicas ou consultivas, de informar a

participação no capital da companhia e no de suas coligadas ou controladas, bem como de

informar negociações que realizarem envolvendo valores mobiliários de sua emissão.

3.5 Regime jurídico atual do Insider Trading no Brasil

Atualmente, no Brasil, qualquer pessoa, física ou jurídica, bem como a própria

companhia a que o Insider está ligado, pode pleitear civilmente a reparação dos danos que

entenda ter sofrido com a conduta. Não obstante, poderá também o órgão fiscalizador do

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Mercado de Capitais, a CVM, investigar e punir o agente, caso fique comprovado que este

realizou Insider Trading117

.

É possível haver, ainda, uma investigação de caráter penal que poderá culminar

com um processo criminal na justiça federal, em virtude da criminalização da conduta

promovida pelo art. 27-D da Lei 6.385/76, aspecto que será abordado de modo mais

aprofundado no item 3.7 deste capítulo.

Na legislação societária, o art. 155 da Lei 6.404/76 através de seus §§ 1º a 3º,

que existem desde promulgação da Lei, determinam o dever de sigilo aos administradores em

relação à fatos relevantes não divulgados, vedando-lhes valer-se destas informações para

obter vantagens, para si ou para outrem, no Mercado de Valores Mobiliários.

Além disso, estabelecem sua obrigação de zelar para que essa violação não

ocorra por meio de seus subordinados ou de terceiros de sua confiança. Determinam, ainda, o

direito de ação civil de perdas e danos por aqueles que forem prejudicados pela negociação de

valores mobiliários motivada por informações privilegiadas.

O §4º do mesmo artigo, acrescido pela Lei 10.303/01, estende a “qualquer

pessoa” a vedação que anteriormente atingia apenas os administradores de companhia aberta.

O referido dispositivo traz a seguinte redação:

§ 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por

qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem,

para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários.

De maneira complementar, o art. 13 da Instrução CVM nº 358/02, reforça a

vedação trazida pela Lei 6.404/76, estabelecendo uma restrição administrativa ao instituto, de

maneira que caberá à CVM investigar quando houver suspeita de condutas dessa natureza no

Mercado de Valores Mobiliários, conforme transcrição abaixo:

Art. 13 - antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos

negócios da companhia, é vedada a negociação com valores mobiliários de sua

emissão, ou a eles referenciados, pela própria companhia aberta, pelos acionistas

controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de

administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou

consultivas, criados por disposição estatutária, ou por quem quer que, em virtude

117

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 273- 274.

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de seu cargo, função ou posição na companhia aberta, sua controladora, suas

controladas ou coligadas, tenha conhecimento da informação relativa ao ato ou fato

relevante.

Com o intuito de ampliar a vedação aos negócios com valores mobiliários

motivados por informações privilegiadas à qualquer pessoa, tem o §1º do art. 13 o seguinte

texto:

§ 1º A mesma vedação aplica-se a quem quer que tenha conhecimento de

informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação

ainda não divulgada ao mercado, em especial àqueles que tenham relação

comercial, profissional ou de confiança com a companhia, tais como auditores

independentes, analistas de valores mobiliários, consultores e instituições

integrantes do sistema de distribuição, aos quais compete verificar a respeito da

divulgação da informação antes de negociar com valores mobiliários de emissão da

companhia ou a eles referenciados.

Como se pode observar dos dispositivos da Lei 6.404/76 e da ICVM nº 358/02

transcritos acima, o ordenamento brasileiro veda a simples negociação com valores

mobiliários motivada por informação privilegiada, não exigindo a Lei que haja sucesso nas

transações realizadas, o qual se materializaria através do lucro obtido com os negócios.

Assim, a inexistência de lucro não impede que a conduta seja caracterizada

como Insider Trading, o que demonstra que a intenção do legislador não era combater os

ganhos obtidos por quem transaciona conhecendo eventos futuros, mas evitar que esta pessoa

celebre qualquer negócio no Mercado de Capitais envolvendo títulos emitidos por companhias

das quais possui informações que não estejam disponíveis para os demais participantes.

Mesmo porque, o Insider Trading pode ocorrer também não com intenção de lucro, mas de

evitar alguma perda.

Além disso, percebe-se que não se restringiu a figura de Insider Trader a altos

funcionários da companhia, à acionistas controladores e à órgãos ou profissionais que

pudessem definir os rumos da empresa. Houve extensão da figura do possível agente não só à

acionistas minoritários, mas a qualquer pessoa que tenha conhecimento de informação

privilegiada.

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69

Em interpretação ao §4º do art. 155 da Lei 6.404/76, contudo, parte da

doutrina118

defende que apenas poderão ser qualificados como Inside Traders aquelas pessoas

que tenham um “nexo profissional” com a companhia, de modo que apenas àqueles que no

exercício de sua atividade profissional, como auditores, advogados e analistas financeiros,

têm acesso às informações privilegiadas poderá ser imputada a conduta ilegal.

Há, ainda, dentro desse posicionamento o entendimento de que deve existir um

nexo pessoal entre o administrador e terceiros que com ele tenham contato de natureza

profissional ou como controladores. Assim, no caso de vazamento de informações relevantes

além do âmbito de administradores, controladores da companhia e dos envolvidos

profissionalmente com ela, os terceiros ocasionalmente informados não poderão ser

considerados Inside Traders. Nestes casos, cabereria responsabilização do administrador por

não ter mantido a reserva necessária sobre o fato relevante ao permitir seu vazamento119

.

Esse posicionamento não merece prevalecer, de modo que a CVM ao

regulamentar o Mercado de Capitais, principalmente através da ICVM nº 31/84, já havia

disciplinado a matéria, anteriormente à reforma promovida pela Lei 10.303/01, nos moldes

pretendidos por esta Lei. Assim, ao inserir o §4º no art. 155 da Lei 6.404/76, objetivou-se

vedar a qualquer pessoa, sem qualquer limitação, a utilização de informações privilegiadas no

Mercado de Capitais, de modo que a base da legislação nessa matéria deixou de ser societária,

para ser relativa aos valores mobiliários120

.

Esta regra deve ser interpretada, contudo, de maneira restritiva. Assim, para

que uma pessoa se enquadrar na figura do Inside Trader, devem ser obedecidas duas

condições. Primeiramente, esta deve ter consciência de que a informação a que teve acesso é

privilegiada, conforme § 1º do art. 13 da ICVM nº 358/02, ou devem haver, ao menos,

elementos suficientes para que possa perceber que a informação a que teve acesso trata-se de

fato relevante não divulgado ao mercado.

Como segunda condição, deve existir algum nexo entre o Insider em potencial

e a companhia, podendo esse nexo ser direto ou indireto. No primeiro, há uma relação

profissional ou patrimonial que permite à pessoa acesso a diversas informações da empresa,

118

Conforme posicionamento manifestado em: EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 372, em

CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson, A Nova Lei das S.A., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 548-549. In:

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 291 – 293, e em CARVALHOSA, Modesto,

Comentários à Lei cit., p. 294. 119

Conforme manifesta-se CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 294 – 295. 120 PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 293.

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podendo abranger inclusive projetos e decisões estratégicas. Já o nexo indireto se constitui

quando existe um elo entre um terceiro e alguém que esteja diretamente ligado à sociedade, e

tem, portanto, acesso à suas informações sigilosas. Nesse caso, em virtude de existir uma

pessoa diretamente ligada à empresa, de onde provém possivelmente informações sigilosas,

pode-se considerar que existe um nexo indireto entre o terceiro e a companhia.

Dessa maneira, possibilitou-se a existência de dois grupos ou níveis de Inside

Traders, o Insider primário e o Insider secundário. Conforme mencionado anteriormente,

pode-se definir o Insider primário como aquele que obtém uma informação sobre um fato

relevante ainda não divulgado em sua fonte121

, em virtude de uma relação direta com a

companhia, seja através de um nexo profissional, caso de funcionários e prestadores de

serviço, ou através de um nexo patrimonial, caso dos acionistas.

Todas as pessoas que puderem ser caracterizadas como Insiders primários têm

não somente os deveres de manter sigilosas as informações privilegiadas e se abster de

negociar valores mobiliários conhecendo acontecimentos futuros, mas também serão

responsabilizados caso haja o vazamento de tais informações, para o qual tenha incorrido de

forma dolosa ou culposa.

O Insider secundário, não tem, na maioria das vezes, relação direta com a

companhia, de maneira que a informação privilegiada será obtida através de alguém que a

tenha, ou seja, que em virtude de seu nexo com a companhia teve acesso a informações

sigilosas e as repassou ao terceiro, o qual não está obrigado ao dever de sigilo122

. Este poderá

ser alguém de fora da empresa, ou até mesmo alguém que mantenha vínculo com essa, mas

que, apesar disso, não tinha conhecimento da informação privilegiada.

Caso os potenciais Insiders primários realizem negócios com valores

mobiliários que sejam indicativos de que pretendem obter lucros em função de fato relevante

que conheçam, mas que ainda não foi divulgado ao mercado, há uma presunção juris tantum

de que estes, dada a posição que ocupam, detêm a informação relevante no momento da

negociação123

, cabendo a eles fazer prova em contrário.

121

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 376. 122

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 376. 123

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 564.

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De modo diferente ocorre quanto aos potenciais Insiders secundários, de

maneira que caso haja qualquer acusação contra eles de Insider Trading, caberá àquele que os

acusar da realização de tal conduta, a CVM, no campo administrativo, qualquer pessoa, no

campo civil ou o Ministério Público Federal, no campo penal, provar que estes negociaram

valores mobiliários motivados por informações privilegiadas124

.

3.6 A figura do Especulador e suas diferenças em relação ao Inside Trader

É muito comum que se confunda duas figuras atuantes no Mercado de Capitais

que são, todavia, bem diferentes, o Inside Trader e o especulador. Essa confusão acaba

ocorrendo, muitas vezes, em função do caráter pejorativo que se deu à atuação do

especulador, de forma que, por investir com o intento de lucro a curto prazo, de maneira

rápida e mais substancial possível, acabou sendo visto como prejudicial ao mercado. Essa

premissa, contudo, é falsa, sendo o especulador uma figura essencial para o bom

funcionamento do mercado, se diferenciando substancialmente do Inside Trader.

Essa importância do especulador pode ser verificada pelo fato de que este

assume no mercado riscos que outros participantes não podem, não devem e não querem

correr125

. Movidos por suas projeções econômicas, os especuladores investem¸ com o intuito

de obter grandes lucros, em papéis que são vistos com reserva pelo mercado, em função sua

grande volatilidade. Modalidade essa de investimento que acaba sendo invariavelmente

evitada pelo investidor comum e que geram riscos que investidores institucionais não podem

correr com muita frequência.

Ao participar do mercado o especulador não tem, na maioria das vezes, a

ambição de manter um título por muito tempo em sua carteira, a não ser que esteja

convencido de que o negócio realizado lhe trará ganhos à longo prazo, de modo que valerá a

pena manter-se proprietário do mesmo por um período de tempo mais extenso. Na maioria das

vezes, os especuladores compram e vendem títulos de forma extremamente dinâmica,

contando com a diferença entre o preço pago e o preço pelo qual realizou a venda como fonte

de seus lucros.

124

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 564. 125

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 138.

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Essa postura é extremamente positiva ao mercado, tendo em vista que dá

liquidez aos papéis ali negociados. A liquidez, no Mercado de Capitais, é entendida como a

possibilidade de conversão de um bem não monetário em moeda, denotando o fluxo de

moedas em contrapartida ao fluxo de titularidade um bem não monetário, potencial ou real126

.

Assim, os títulos tem liquidez quando há facilidade em vendê-lo, ou seja,

quando há pessoas disposta a comprá-lo. Essa função será, assim, desempenhada pelos

especuladores, os quais promoverão um desenvolvimento do mercado secundário ao

comprarem títulos diversos e vendê-los em curto prazo, aumentando e facilitando sua

circulação. Nesse sentido, em mercados poucos ativos, em que os fluxos de ordens, em

volume e quantidade, são inexpressivos, há baixa liquidez127

.

Portanto, o especulador não atua movido pela mesma lógica dos demais

participantes do mercado, mas a partir de lógicas próprias, motivadas por suas projeções. Isso

faz com que, muitas vezes, suas transações não sejam compreendidas pelo investidor médio, o

qual não tem a capacidade de prever, nos mesmos níveis que o faz o especulador, os próximos

movimentos do mercado. Capacidade essa do especulador que o faz antecipar-se aos

acontecimentos relevantes, auferindo lucros de grande monta.

Dessa maneira, ao transacionar, o especulador não realiza manipulação de

preços, nem manipulação de mercados, condutas que são proibidas e devem ser punidas,

tendo em vista sua nocividade para o ambiente financeiro. O especulador usa todas as

informações públicas à disposição dos participantes do mercado e sua capacidade de análise

para, com audácia, realizar investimentos de grande risco que tem o potencial de oferecer um

retorno, quando positivo, acima da média128

.

Apesar disso, o especulador acaba sendo visto no Brasil muitas vezes com

maus olhos, especialmente no que se refere à especulação em Bolsa, tendo em vista que se

faz, muitas vezes, uma associação entre especulação e manipulação. Além disso, existe uma

crença difundida de que há sempre alguma forma de ilicitude em operações em Mercado de

Capitais que resultem em grandes lucros para o investidor. Entretanto, em sentido oposto, no

126

SZTAJN, Raquel, Conceito de Liquidez na Disciplina do Mercado de Valores Mobiliários, “Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro”, vol. 126, São Paulo, Malheiros, abril/julho 2002, p. 15. 127

SZTAJN, Raquel, Conceito de Liquidez cit., p. 16. 128

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 138.

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mercado imobiliário, ganhos vultuosos em curto período de tempo são vistos com

normalidade129

.

O especulador atuará no Mercado de Capitais com base em suas percepções, de

maneira que perceber que a compra ou a venda de determinado ativo poderá trazer lucros em

virtude de acontecimentos futuros que se acredita serem prováveis, não traz, a princípio,

qualquer irregularidade. Isso, pois os participantes do mercado que não almejam o controle

acionário ou comando de companhia aberta movimentam-se única e exclusivamente em busca

de lucro em suas operações130

.

Assim, por atuarem com base em presunções, estando sujeitos, portanto, a

equívocos, tendo em vista a impossibilidade de se prever acontecimentos futuros com

perfeição, as operações realizadas por especuladores podem ser caracterizadas como

“negócios de risco”131

. Nestes existirá sempre a possibilidade de variação negativa ou perda

do principal aplicado, de maneira que as grandes margens de lucro se justificam, e são, até

mesmo, necessárias para gerar motivação no investidor132

.

Assim, com base na análise da figura do especulador realizada anteriormente,

conclui-se que esse distingue-se do Inside Trader principalmente com base em três fatores: a)

O Inside Trader tem conhecimento de informações privilegiadas, fatos relevantes ainda não

divulgados ao mercado, enquanto o especulador conhece apenas informações que sejam

públicas; dessa maneira, b) o Inside Trader transaciona no mercado motivado pelo

conhecimento de evento futuro, enquanto o especulador transaciona motivado por suas

projeções, construídas a partir da análise de informações disponíveis; portanto, c) o Inside

Trader opera sem riscos e com grande probabilidade de lucros, enquanto o especulador opera

com riscos, podendo, na mesma proporção, auferir lucros ou sofrer perdas.

129

ADIERS, Leandro Bittencourt, Valores Mobiliários, Especulação e Consequências Jurídicas, Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 40, n. 121, Malheiros, São Paulo, 2001, p. 164 – 165. 130

ADIERS, Leandro Bittencourt, Valores Mobiliários, Especulação cit., p. 165. 131

ADIERS, Leandro Bittencourt, Valores Mobiliários, Especulação cit., p. 165. 132

ADIERS, Leandro Bittencourt, Valores Mobiliários, Especulação cit., p. 179.

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74

3.7 A natureza133

das normas de combate ao Insider Trading

Inicialmente, cumpre ressaltar que as normas incidentes sobre o Insider

Trading tem se dividido, tanto no direito pátrio quanto no direito estrangeiro, em dois grupos,

as de natureza preventiva e as de natureza repressiva134

.

As primeiras terão como meta evitar a realização de transações motivadas por

informações privilegiadas através da criação de obrigações e de deveres de conduta para

aqueles que têm acesso a tais informações, promovendo, principalmente, sua ampla

divulgação e disseminação, com o intuito de garantir a necessária visibilidade às operações no

Mercado de Capitais135

, para que exista um controle mais eficiente.

As normas de natureza repressiva trarão uma sanção àqueles que realizarem

operações no Mercado de Capitais em função de deterem informações relevantes ainda não

reveladas publicamente, tendo, portanto, intuito punitivo. Nesse sentido, os infratores poderão

sofrer, no direito brasileiro, condenações de natureza cível (reparação dos prejuízos

causados), administrativa e penal136

.

As normas de natureza preventiva se fundam nos deveres de conduta impostos

aos Insiders da companhia impostos pela ICVM nº 358/02 e pela Lei 6.404/76, mas

principalmente naqueles atribuídos aos administradores de sociedades anônimas através,

respectivamente, dos artigos 153, 155 e 157 da Lei 6.404/76.

Estes exigem dos administradores grande empenho no comando da companhia,

vedam a utilização de oportunidades comerciais em benefício próprio, determinam o dever de

sigilo dos administradores, cabendo a estes a responsabilidade de garanti-lo, bem como

exigem dos administradores que revelem sua participação no capital da companhia, e, ainda,

visam à divulgação de fatos relevantes o quanto antes e da forma mais abrangente possível.

133

A palavra “natureza” aqui utilizada trata-se de uma tradução do termo francês “nature” não tendo exatamente

o significado de natureza jurídica, funcionando mais como uma forma de classificação das normas com base na

maneira que incidem sobre a conduta, que pode ser prévia, impedindo sua ocorrência, ou posterior, punindo o

agente após sua consumação. 134

PHILIPPE, D., L’Exploitation Abusive d’Informations Privilégiées: Une Analyse Comparative, Revue Du

Droit International et Droit Comparé, Bruxelas, 1980. In: EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e

responsabilidade cit., p. 44. 135

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 44. 136

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 44.

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75

O art. 153 da Lei 6.04/76137

estabelece o dever de diligência, que, apesar de ser

originário da figura romana do vir probus, do bonus pater famílias, não pode ser visto apenas

como a atuação dos administradores como homens ativos e probos na condução dos próprios

negócios, apesar do artigo ter sido assim redigido138

. Nesse sentido, é preciso que exista

competência profissional específica, a qual envolverá escolaridade e experiência laboral que

justifiquem o exercício do cargo, o que seria reforçado, inclusive, pelo art. 152 da Lei

6.404/76 ao dispor que a remuneração do administrador será determinada com base em suas

responsabilidades, competência, reputação e tempo dedicado às funções139

.

Nesse sentido, ao falar a lei em “homem ativo e probo” ficou sua redação atrás,

inclusive, do Código Comercial, o qual ao tratar do mandato mercantil, dispunha em seu art.

142, que o mandatário deveria empregar na sua execução a mesma diligência que qualquer

comerciante ativo e probo empregaria na gerência de seus negócios140

. Assim, tendo em vista

a intenção do legislador ao estabelecer o dever de diligência, poderia esta ter sido trazida

através de redação nos mesmos termos da Lei das Sociedades Anônimas alemã que em seu

§93 (1) prevê que a conduta do administrador deve se pautar na que teria um “dirigente de

empresa consciencioso”141

.

Deve-se levar em conta, também, que o exercício da atividade de administrador

presume que haja sempre boa-fé por parte do mesmo, não sendo responsável por erros de

julgamento que tenha incorrido na administração dos negócios da companhia, a não ser que

reste comprovado que este agiu sem o devido cuidado e diligência na tomada de decisão142

.

Será este, entretanto, responsável por ilícitos cometidos por seus subordinados submitos à sua

supervisão funcional, salvo, se comprovar que os atos fraudulentos foram dele ocultados no

curso de sua execução143

.

137

Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência

que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios. 138

Analisando os adjetivos exigidos pela Lei para cumprimento do dever de diligência, quais sejam “ativo” e

“probo”, AMENDOLARA, Leslie, Direito dos Acionistas cit., p. 154, manifesta-se no sentido de que o primeiro

significação dedicação intensa às atividades, nunca deixando os negócios da companhia de lado, para cuidar de

interesses próprios, enquanto o segundo teria sentido de retidão moral e comportamento justo. Assim, o dever de

diligência representaria uma dedicação integral à companhia, realizando a função de administrador com justiça e

honradez. 139

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 272. 140

TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, O Conselho de Administração na Sociedade Anônima –

Estrutura, Funções e Poderes, Responsabilidades dos Administradores, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 1999, p. 54. 141

TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, O Conselho de Administração cit., p. 55. 142

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 273. 143

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 275.

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O art. 155 da Lei 6.404/76144

prevê aos administradores de companhia o dever

de lealdade, o qual deriva do standard of loyalty do direito norte-americano que baseia-se no

caráter fiduciário da função, determinando que os administradores não poderão buscar,

primeiramente, seus próprios interesses, senão apenas os interesses da companhia145

.

A hipóteses previstas pelo artigo como quebra do dever de lealdade não são

exaustivas, por se tratar de padrão normativo, tendo em vista que nossa legislação reproduziu

hipóteses de violação acolhidas no direito norte-americano. Dessa maneira, outras hipóteses

poderão configurar desrespeito ao dever de lealdade do administrador com a companhia,

desde que este aja movido por interesses pessoais em detrimento dos interesses da segunda146

.

Para CARVALHOSA147

, é absoluta a proibição aos administradores de utilizar

de maneira pessoal eventuais oportunidades que surjam para a companhia, não devendo-se

falar em direito de preferência ou de precedência, não sendo permitido aos administradores

fazê-lo, mesmo que a companhia não as utilize.

Nesse sentido, o caráter absoluto da proibição legal seria oriundo do fato de

que a companhia somente age por intermédio de seus administradores. Desse modo, são os

administradores quem primeiro conheceriam as oportunidades surgidas para a companhia,

pressupondo a Lei que a recusa de aproveitamento de qualquer destas ocorreria por motivos

empresariais e mercadológicos. Sendo assim, presumiria a lei que estes não podem, em

seguida, eles mesmos realizar tais negócios em benefício próprio ou de outrem, visto que a

144

Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios,

sendo-lhe vedado:

I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades

comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo;

II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para

si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;

III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta

tencione adquirir.

§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que

ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de

modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si

ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.

§ 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de

subordinados ou terceiros de sua confiança.

§ 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto

nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já

conhecesse a informação.

§ 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha

tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. 145

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 292. 146

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 301. 147

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 306.

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decisão da companhia de abster-se do negócio seria teria surgido de decisão tomada pelos

mesmos148

.

Assim, ainda que a companhia deixe de aproveitar as oportunidades negociais

que para ela surjam em função de ausência de recursos, de meios ou de capacidade instalada,

não poderão os administradores aproveitá-las em interesse próprio.

Dessa visão discorda EIZIRIK149

, que baseando-se na jurisprudência produzida

pelos tribunais norte-americanos, principalmente em testes desenvolvidos a partir do caso

“Guth v. Loft, Inc”, manifesta-se no sentido de que nem todos os caos de aproveitamento de

oportunidade comercial constituiriam infração ao dever de lealdade.

Nesse sentido, a legitimidade do aproveitamento de oportunidade deveria levar

em conta as seguintes questões: (i) a possibilidade de utilização da oportunidade por parte da

companhia; se ela não tem condições financeiras ou patrimoniais de aproveitar a

oportunidade, não há usurpação; (ii) o fato de estar, tal oportunidade, inserida na linha de

negócios da empresa, fazer parte de seu objetivo social ou, pelo menos, ser de utilidade para o

desenvolvimento de suas atividades empresariais; e (iii) o fato de poder acarretar, tal

oportunidade, um benefício ou vantagem para a companhia.

Existindo qualquer uma das situações acima, poderia se falar em uma

excludente de responsabilidade do administrador pela utilização de oportunidade surgida

inicialmente para a companhia. Nesses casos, entretanto, este deverá apresentar ao órgão

social responsável seu interesse em valer-se da oportunidade, devendo-se abster da decisão

tomada no âmbito da empresa que decidirá se esta a utilizará ou não150

.

Segundo este entendimento, portanto, a proibição de aproveitamento de

oportunidade comercial não seria absoluta, mesmo que inserida na linha de negócios da

companhia e que esta tivesse condições de aproveitá-la. Se o administrador comunicasse à

assembleia ou aos demais administradores sua intenção de se utilizar da oportunidade

comercial e não participasse da deliberação, caso o órgão social competente decidisse não

aproveitar a oportunidade, ele estaria livre para fazê-lo151

.

148

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 306. 149

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 367. 150

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 368. 151

LAZZARESCHI NETO, Lei das Sociedades por Ações Anotada, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 355. In:

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 368.

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Cumpre, ainda, aos administradores no cumprimento de seu dever de lealdade

a obrigação de manter sigilosas as informações referentes aos negócios da companhia,

devendo impedir o vazamento de informações relevantes à todas as pessoas, Insiders ou

Outsiders, que não tenham razão profissional para conhecê-las152

.

Cabe, também, aos mesmos zelar para que todas as pessoas que conheçam

informações relevantes sobre os negócios da companhia em função de vínculo profissional

guardem sigilo sobre as mesmas, evitando o seu vazamento. É dever, ainda, dos

administradores garantir que estas pessoas não se valham de tais informações, antes de sua

divulgação ao mercado, para negociar valores mobiliários. Diante de omissão no

cumprimento dessas obrigações poderá o administrador responder civil e

administrativamente153

.

Apesar de estarem previstas no art. 155 da Lei 6.404/76, intitulado como

“dever de lealdade”, entende parte da doutrina154

que as obrigações mencionadas nos dois

últimos parágrafos se referem não propriamente ao dever de lealdade dos administradores,

mas a seu dever de sigilo, o qual seria disciplinado pelos §§1º a 3º do mesmo artigo.

O art. 157 da Lei 6.404/76155

determina o dever de informar dos

administradores, podendo este ser desdobrado em três diferentes modalidades: a) dever de

152

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 312. 153

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 313. 154

TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, O Conselho de Administração cit., p. 58. 155 Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações,

bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e

de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular.

§ 1º O administrador de companhia aberta é obrigado a revelar à assembléia-geral ordinária, a pedido de

acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social:

a) o número dos valores mobiliários de emissão da companhia ou de sociedades controladas, ou do mesmo

grupo, que tiver adquirido ou alienado, diretamente ou através de outras pessoas, no exercício anterior;

b) as opções de compra de ações que tiver contratado ou exercido no exercício anterior;

c) os benefícios ou vantagens, indiretas ou complementares, que tenha recebido ou esteja recebendo da

companhia e de sociedades coligadas, controladas ou do mesmo grupo;

d) as condições dos contratos de trabalho que tenham sido firmados pela companhia com os diretores e

empregados de alto nível;

e) quaisquer atos ou fatos relevantes nas atividades da companhia.

§ 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser reduzidos

a escrito, autenticados pela mesa da assembléia, e fornecidos por cópia aos solicitantes.

§ 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo interesse da

companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem.

§ 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e

a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da

companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos

investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.

§ 5º Os administradores poderão recusar-se a prestar a informação (§ 1º, alínea e), ou deixar de divulgá-la

(§ 4º), se entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia, cabendo à Comissão de

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79

declaração no termo de posse; b) dever de revelação à assembleia geral ordinária; e c) dever

de comunicação e divulgação156

. Nas duas primeiras, as informações têm como destinatários

principais os acionistas da companhia, enquanto na última as informações dirigem-se

principalmente ao Mercado de Capitais157

.

Dessa maneira, o art. 157 da Lei 6.404/76 estabelece para as companhias

abertas o sistema de revelação completa da situação patrimonial de seus administradores, com

relação aos títulos de emissão da companhia, assim como o de revelação oportuna de fatos

negociais relevantes que possam interferir na cotação, negociação e liquidez desses mesmos

títulos no Mercado de Valores Mobiliários158

.

O dever de informar imputado aos administradores por este artigo corresponde

ao direito de ser informado dos acionistas em geral e, em especial, dos acionistas minoritários.

Tal direito inclui-se entre aqueles previstos no art. 109 da Lei 6.04/76159

tidos como

essenciais, tendo em vista que abrange a fiscalização da gestão dos negócios da companhia,

não podendo ser privado, assim como os demais ali previstos, em nenhuma hipótese160

.

Esta norma tem como função evitar o Insider Trading por parte dos

administradores, visto que ao obrigá-los a revelar os valores mobiliários que são de sua

titularidade, bem como qualquer alteração em sua carteira, cria dificuldades para que estes

negociem motivados por informações privilegiadas, tendo em vista o controle a que são

Valores Mobiliários, a pedido dos administradores, de qualquer acionista, ou por iniciativa própria, decidir sobre

a prestação de informação e responsabilizar os administradores, se for o caso.

§ 6o Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na forma

determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de

balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as

modificações em suas posições acionárias na companhia. 156

TEIXEIRA, Egberto Lacerda; e GUERREIRO, José Alexandre Tavares, Das Sociedades Anônimas no

Direito Brasileiro, 2º vol., São Paulo, José Bushatsky, 1979, p. 475. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos

Salles de, O Conselho de Administração cit., p. 63. 157 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, O Conselho de Administração cit., p. 63. 158

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 331. 159

Art. 109. Nem o estatuto social nem a assembléia-geral poderão privar o acionista dos direitos de:

I - participar dos lucros sociais;

II - participar do acervo da companhia, em caso de liquidação;

III - fiscalizar, na forma prevista nesta Lei, a gestão dos negócios sociais;

IV - preferência para a subscrição de ações, partes beneficiárias conversíveis em ações, debêntures

conversíveis em ações e bônus de subscrição, observado o disposto nos artigos 171 e 172

V - retirar-se da sociedade nos casos previstos nesta Lei. 160

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 331.

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80

submetidos ao ter de tornar públicos suas aquisições e vendas realizadas no Mercado de

Capitais161

.

Do mesmo modo, a publicização de atos162

e fatos163

relevantes impede que

informações que têm o condão de alterar a cotação dos valores mobiliários ligados à

companhia fiquem restritas ao conhecimento dos Insiders. Assim, se fornece aos investidores

informações que são essenciais para que possam avaliar mais precisamente oportunidades de

negócios envolvendo tais valores mobiliários. Uma vez tornados públicos os fato relevantes, a

responsabilidade pelos negócios realizados passa a ser inteiramente dos investidores164

.

É admitido, entretanto, com fulcro no §5º do art. 155 da Lei 6.404/76 e no

caput do art. 6º da ICVM nº 358/02165

, a recusa à prestação de informações que possam afetar

interesse legítimo da companhia, de modo que poderá a administração deixar de publicar fatos

ou atos relevantes sob fundamento de proteção dos interesses sociais, devendo, contudo,

informar a Bolsa e a CVM, caso seja solicitada166

.

Segundo CARVALHOSA167

, contudo, que tal possibilidade estaria em pleno

desuso, tendo em vista que a Comissão de Valores Mobiliários, por meio de suas instruções

normativas, têm crescentemente expedido e ampliado a imediata publicação de todos os fatos

ocorridos no seio da companhia que tenham potencialmente o poder de influenciar a cotação

de valores mobiliários negociados no Mercado de Capitais.

Desse modo, são extremamente restritas as hipóteses em que se justificaria o

sigilo de informações relevantes. Estas devem estar ligadas ao surgimento de algum prejuízo

aos negócios da companhia, de modo que sua revelação ao público beneficiaria seus

competidores ou concorrentes, principalmente no que se refere às expectativas de fato e de

161 CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 333. 162

Segundo CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 341., atos relevantes serão as deliberações da

assembléia geral e dos órgãos de admin istração da companhia. 163

Segundo CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 341., fatos relevantes serão os acontecimentos

que, independentemente dessa vontade social legitimamente manifestada, interferem de maneira decisiva nos

negócios sociais. (...) Assim, não somente os atos de terceiros que afetem direitos adquiridos ou o estado

patrimonial e negocial da companhia incluem-se entre aqueles fatos relevantes. Também as expectativas de

direito de todo gênero encontram-se entre os mais importantes fatos que podem influir no estado dos negócios

sociais. 164

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 333. 165

Conforme Nota de Rodapé do início do Capítulo, o § único do art. 6º da ICVM nº 358/02 determina que deve

haver a divulgação imediata da informação privilegiada ao mercado, caso esta escape ao controle, deixando de

ser sigilosa, ou haja oscilação atípica nas negociações de valores mobiliários de emissão da companhia ou a eles

referenciados. 166 CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., 2009, p. 340. 167 CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 341.

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direito. Entretanto, nas hipóteses em que os atos ou fatos relevantes já se tenham definido

materialmente ou constituam negócios jurídicos perfeitos e acabados, a publicização não

poderá deixar de ocorrer168

.

Sobre a situação excepcional de não divulgação de informação relevante com

base em interesse legítimo da companhia, SALOMÃO FILHO169

esclarece que esta não

diminui, nem poderia diminuir a importância da regra geral de ampla divulgação. Isto se

fundamentaria em duas razões de ordem pública que fariam com que eventual interesse social

na não divulgação não pudesse prevalecer sobre a regra geral.

Primeiramente, este postula, com base em HERTIG, KRAAKMAN e

ROCK170

, que uma política pública que obrigasse a revelação de todos os fatos relevantes,

inclusive aquelas que eventualmente pudessem ser aproveitadas por concorrentes, não traria

malefícios à companhia, tendo em vista que eventuais prejuízos decorrentes de revelações de

fatos próprios seriam compensados pelo melhor conhecimento da situação dos concorrentes.

Situação essa que só se poderia realizar, contudo, em um mercado de funcionamento ótimo.

Uma segunda questão, construída a partir do direito da concorrência, questiona

a chamada “concorrência secreta”, aquela se faz com base em pouco ou nenhum fluxo de

informação, que já há muito seria vista com maus olhos. Nesse sentido, sendo permitido

sonegar informações, o primeiro e maior prejudicado seria o consumidor, o que, diante da

possibilidade de uma ampla limitação à informação oriunda de um interesse social de

defender-se dos concorrentes, representaria uma afronta aos princípios fundamentais da

ordem econômica previstos pelo art. 170171

da Constituição Federal, de 1988, principalmente

a defesa do consumidor, prevista em seu inciso V.

168

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 345. 169

SALOMÃO FILHO, Calixto, O Novo Direito cit., p. 156 – 158. 170

HERTIG, G.; KRAAKMAN, R.; e ROCK, E., Issuers and Investor protection, In: The anatomy of corporate

law – a comparative and functional approach, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 204. In: SALOMÃO

FILHO, Calixto, O Novo Direito cit., p. 157. 171

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos

produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

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A essas questões, o autor adiciona ainda a constatação de que as informações

que interessam ao mercado não são tipicamente as mesmas informações que interessam aos

concorrentes. O primeiro estaria mais interessado nas perspectivas de rentabilidade da

companhia, enquanto aos segundos interessariam questões estratégicas da área comercial ou

industrial.

Com a conclusão de que inexistiria, então, a priori, tensão entre princípio da

informação completa e proteção frente aos concorrentes, SALOMÃO FILHO, aponta que o

interesse legítimo da companhia, ao não divulgar informações relevantes, restringiria-se,

basicamente a danos de imagem ou reputação que poderiam surgir da não-prestação de

informações.

Nesse sentido, a exceção prevista ao dever de divulgação seria interpretada de

maneira restritiva, assumindo assim sua função própria e permitindo que se desse vigência ao

princípio da informação completa no Mercado de Capitais, prevista no art. 4º, VI da Lei

6.385/76, devendo as companhias adotarem políticas de full disclosure.

De maneira complementar, as normas emanadas pela CVM também tem tido

papel importante na prevenção ao Insider Trading. A ICVM nº 358/02 estende, em seu art.

8º172

, a acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do

conselho fiscal, e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por

disposição estatutária, e empregados da companhia o dever de guardar sigilo de informações

privilegiadas a que tiveram acesso em razão de cargo ou posição, cabendo a todos estes,

também, zelar para que seus subordinados ou terceiros de confiança também o façam,

respondendo solidariamente em caso de descumprimento.

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham

sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de

autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 172

Art. 8º - Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho

fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e

empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham

acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar

para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na

hipótese de descumprimento.

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83

Às mesmas pessoas do parágrafo acima, com exceção dos empregados, caberá,

conforme o art. 3º da ICVM 358/02173

, o dever de informar ao Diretor de Relações com

Investidores (DRI) qualquer ato ou fato relevante que conheçam para que promova sua

divulgação174

, tendo em vista que o mesmo artigo determina que a este caberá o dever de

divulgar informações relevantes. Na inércia do mesmo, aqueles só se eximirão de

responsabilidades, decorrentes do uso da informação da privilegiada no Mercado de Capitais,

caso comuniquem à CVM.

A mesma instrução determina a adoção de uma séria de posturas por

administradores e pessoas ligadas à companhia, bem como a adoção de outras tantas políticas

pela sociedade aberta, tendo em vista o intuito de que a participação daqueles no capital da

companhia seja sempre conhecida e que não se valham de informações privilegiadas com

finalidade lucrativa.

As normas repressivas, por sua vez, não têm como finalidade evitar a conduta

do Inside Trader, visto que esta já se consumou, mas tem a intenção de trazer uma sanção

173

Art. 3º - Cumpre ao Diretor de Relações com Investidores divulgar e comunicar à CVM e, se for o caso, à

bolsa de valores e entidade do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da

companhia sejam admitidos à negociação, qualquer ato ou fato relevante ocorrido ou relacionado aos seus

negócios, bem como zelar por sua ampla e imediata disseminação, simultaneamente em todos os mercados em

que tais valores mobiliários sejam admitidos à negociação.

§ 1º Os acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de

quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, deverão comunicar

qualquer ato ou fato relevante de que tenham conhecimento ao Diretor de Relações com Investidores, que

promoverá sua divulgação.

§ 2º Caso as pessoas referidas no parágrafo anterior tenham conhecimento pessoal de ato ou fato relevante e

constatem a omissão do Diretor de Relações com Investidores no cumprimento de seu dever de comunicação e

divulgação, inclusive na hipótese do parágrafo único do art. 6º desta Instrução, somente se eximirão de

responsabilidade caso comuniquem imediatamente o ato ou fato relevante à CVM.

§ 3º O Diretor de Relações com Investidores deverá divulgar simultaneamente ao mercado ato ou fato relevante

a ser veiculado por qualquer meio de comunicação, inclusive informação à imprensa, ou em reuniões de

entidades de classe, investidores, analistas ou com público selecionado, no país ou no exterior.

§ 4º A divulgação deverá se dar através de publicação nos jornais de grande circulação utilizados habitualmente

pela companhia, podendo ser feita de forma resumida com indicação dos endereços na rede mundial de

computadores - Internet, onde a informação completa deverá estar disponível a todos os investidores, em teor no

mínimo idêntico àquele remetido à CVM e, se for o caso, à bolsa de valores e entidade do mercado de balcão

organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação.

§ 5º A divulgação e a comunicação de ato ou fato relevante, inclusive da informação resumida referida no

parágrafo anterior, devem ser feitas de modo claro e preciso, em linguagem acessível ao público investidor.

§ 6º A CVM poderá determinar a divulgação, correção, aditamento ou republicação de informação sobre ato ou

fato relevante. 174

Conforme AMENDOLARA, Leslie, Direito dos Acionistas cit., p. 159, este dispositivo visa evitar situações

em que os Diretores de Relações com Investidores, para se eximir de responsabilidade, alegavam que deixaram

de prestar informações porque as desconheciam, não tendo sido informados por controladores ou

administradores da companhia que as detinham, recaindo sobre esses, unicamente, a responsabilidade pela

omissão.

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para aquele que age dessa forma. O Inside Trader pode, assim, sofrer condenações em três

campos, no campo cível, no campo administrativo e no campo penal.

Na esfera cível, a condenação do Inside Trader se dará com base na

responsabilidade civil. Dessa forma, qualquer pessoa, física ou jurídica, geralmente um

participante do Mercado de Capitais, que tiver sido prejudicada pela transação realizada com

base em informações privilegiadas, pode impetrar na justiça pedido de ressarcimento por

perdas e danos, que são normalmente de cunho patrimonial, mas também pode ser um dano à

imagem, como na caso de alguma companhia que tenha seu nome vinculado a uma operação

dessa natureza.

O §3º do art. 155 da Lei 6.404/76175

trata dessa questão quando determina que

a pessoa que for prejudicada em operação de compra ou de venda de valores mobiliários terá

direito ao pedido de reparação por perdas e danos do infrator quando a transação for realizada

por administrador de sociedade anônima que desrespeitando seu dever de sigilo agiu, com o

intuito de obter vantagem patrimonial, motivado por informações privilegiadas; ou quando

esta for realizada em função do vazamento de informação privilegiada por subordinado ou

terceiro de confiança do administrador, a quem caberia o dever de garantir o sigilo da

informação. Perde-se o direito à reparação, caso a pessoa prejudicada conhecesse a

informação no momento em que realizou a operação.

A lei estabelece a responsabilidade objetiva do Inside Trader, de modo que

para sua responsabilização bastará a comprovação da existência de fato ou ato relevante não

divulgado ao mercado e a realização por este de transações envolvendo valores mobiliários

ligados à companhia em período entre o surgimento da informação relevante e sua divulgação

ao público176

. Diante dessa situação surge o dever de reparação dos danos causados à

companhia e aos investidores, não devendo falar-se, entretanto, em anulação do negócio,

tendo em vista a conturbação que traria ao Mercado de Capitais177

.

Caso o Insider Trading seja realizado por pessoa que não tem razão funcional

para conhecer informações privilegiadas da companhia, e reste comprovado que houve

vazamento de tais informações por ação ou omissão de algum de seus administradores, este

175

§ 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto

nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já

conhecesse a informação. 176

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 315. 177

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 314.

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85

(tipper) responderá solidariamente com o primeiro (tippee) pelas perdas e danos causados aos

investidores178

.

Quanto à responsabilidade civil dos Inside Traders, aqueles investidores que

conseguirem provar ter negociado títulos da companhia em momento anterior à divulgação de

fato relevante, no qual constatou-se ter havido a realização de transações motivadas pelo uso

de informações privilegiadas, terá direito a indenização por perdas e danos que consistirá na

diferença do preço dos valores mobiliários negociados e aquele preço a estes atribuídos

posteriormente à divulgação da informação relevante179

.

Em operações desta natureza não há como demonstrar que o investidor

prejudicado negociou diretamente com o Insider, tendo em vista a natureza das transações em

Mercado de Capitais, onde se desconhece, na grande maioria das vezes, a contraparte dos

negócios. O nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o dano causado aos investidores é

inferido mediante a prova de que as informações eram relevantes e privilegiadas180

.

Na esfera administrativa, a competência da CVM para regular e punir a

conduta do Inside Trader é prevista no §6º do art. 9º da Lei 6.385/76181

, o qual determina que

a autarquia será competente para apurar e punir condutas fraudulentas no Mercado de

Capitais, sempre que estas ocasionem danos a pessoas residentes no Brasil ou tenham sido

realizadas em território nacional.

Caso se entenda que com “conduta fraudulenta” quis o legislador fazer menção

à definição de “operação fraudulenta” trazida na alínea c do inciso II da Instrução CVM nº 08,

de 08 de outubro de 1979182

, é cabível, para os casos em que em a conduta investigada não se

encaixe na definição mencionada, que se entenda que a competência da autarquia decorre do

178

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 314. 179

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 374- 375. 180

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 374- 375. 181

§ 6o A Comissão será competente para apurar e punir condutas fraudulentas no mercado de valores

mobiliários sempre que:

I - seus efeitos ocasionem danos a pessoas residentes no território nacional, independentemente do local em

que tenham ocorrido; e

II - os atos ou omissões relevantes tenham sido praticados em território nacional. 182

II . Para os efeitos desta Instrução conceitua-se como:

(...)

c. operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários, aquela em que se utilize ardil ou artifício

destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de se obter vantagem ilícita de natureza

patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros.

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caput art. 11 da Lei 6.385/76183

, o qual estabelece que a CVM poderá impor aos infratores

desta Lei, da Lei 6.404/76, de suas resoluções, bem como das demais normas de cujo

cumprimento caiba à autarquia fiscalizar, as penalidades trazidas nos seus incisos deste

mesmo artigo184

.

Assim, a CVM trouxe, através do art. 13 da ICVM nº 358/02, vedação expressa

à negociação de valores mobiliários de emissão da companhia, ou a eles referenciados, pela

própria companhia e por um rol de pessoas a ela ligadas por um vínculo profissional antes da

divulgação de fato relevante ainda não divulgado do qual tenham conhecimento. Obrigação

esta que é estendida, pelo §1º do mesmo artigo, à qualquer pessoa que tenha conhecimento

daquele fato relevante e saiba tratar-se de informação ainda não divulgada ao mercado.

A responsabilidade poderá surgir, também, de forma solidária no caso de

descumprimento, por aquelas pessoas previstas no art. 8º da mesma instrução185

, do dever não

só de guardar sigilo a respeito das informações privilegiadas, mas também de garantir que

seus subordinados e terceiros de confiança também o façam e deixem de negociar no Mercado

de Capitais quando àquelas tiverem acesso.

Assim, resta claro que a CVM, diante da realização de Insider Trading, poderá

investigar os responsáveis através de um processo administrativo sancionador e aplicar a

sanção que achar cabível dentre aquelas previstas nos incisos I a VIII do caput do art. 11 da

Lei 6.385/76, sendo estas: a) advertência; b) multa; c) suspensão do exercício do cargo de

administrador ou de conselheiro fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de

distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou registro na CVM; d)

inabilitação temporária, até o máximo de vinte anos, para o exercício dos cargos referidos no

item anterior; e) suspensão da autorização ou registro para o exercício das atividades de que

183

Art . 11. A Comissão de Valores Mobiliários poderá impor aos infratores das normas desta Lei, da lei de

sociedades por ações, das suas resoluções, bem como de outras normas legais cujo cumprimento lhe incumba

fiscalizar, as seguintes penalidades:. 184 Conforme interpretação do Diretor Marcos Barbosa Pinto no Processo Administrativo Sancionador CVM nº

SP 2007/0118 em que foi julgado o Sr. Luiz Gonzaga Murat Junior por Insider Trading, conforme veremos no

último capítulo deste trabalho que analisará o caso mencionado. 185

Art. 8º - Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho

fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e

empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham

acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar

para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na

hipótese de descumprimento.

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trata a Lei 6.385/76; f) cassação de autorização ou registro, para o exercício das atividades de

que trata a Lei 6.385/76; g) proibição temporária, até o máximo de vinte anos, de praticar

determinadas atividades ou operações, para os integrantes do sistema de distribuição ou de

outras entidades que dependam de autorização ou registro na CVM; e h) proibição temporária,

até o máximo de dez anos, de atuar, direta ou indiretamente, em uma ou mais modalidades de

operação no Mercado de Valores Mobiliários.

Tendo em vista que a prática do Insider Trading tem se mostrado como uma

forma de subverter a confiança dos investidores nos agentes do mercado e nas informações

disponíveis, afastando, portanto, investimentos e impedindo a expansão do Mercado de

Capitais, tem prevalecido na CVM, assim como nas agências reguladoras de outros países,

que esta conduta deverá ser punida de forma rigorosa186

, já tendo sido definida como infração

grave pela autarquia brasileira187

.

Na esfera penal, o Insider Trading é tipificado pelo art. 27-D da Lei 6.385/76,

que tem o título de “Uso indevido de Informação Privilegiada”. Este artigo está dentro do

capítulo VII-B da Lei, denominado “Dos crimes contra o Mercado de Capitais”, no qual

constam ainda como crimes dessa natureza a “Manipulação do Mercado” e o “Exercício

Irregular de Cargo, Profissão, Atividade ou Função” previstos, respectivamente, nos arts. 27-

C e 27-E.

Este capítulo foi incluído na Lei 6.385/76 através da Lei 10.303/01, de maneira

que até o ano de 2001, o Insider Trading não era tipificado como crime no Brasil. Assim, até

a edição da Lei 10.303/01, as pessoas que negociavam no Mercado de Valores Mobiliários,

motivadas por informações privilegiadas, ficavam sujeitas apenas à investigação da CVM,

através da abertura de um Processo Administrativo Sancionador, e à responsabilização no

campo civil.

No primeiro caso, seria realizado um processo no campo administrativo, de

modo que, restando comprovada a conduta que se pretendia coibir, poderia a CVM aplicar

uma das penalidades previstas nos incisos I a VIII do caput do art. 11 da Lei 6.385/76, já

listadas anteriormente. Quanto à responsabilização civil, qualquer pessoa, física ou jurídica,

inclusive a própria companhia, poderia acionar judicialmente o Inside Trader requerendo o

ressarcimento pecuniário de eventuais perdas sofridas em virtude de sua conduta.

186

EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 375. 187

CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei cit., p. 314.

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Apesar de não haver tipificação penal própria para a realização de Insider

Trading, houve quem defendesse que seria possível a tipificação da conduta no campo

penal188

. Segundo esta interpretação, a conduta do Inside Trader levaria a uma perda no

patrimônio das pessoas que desconhecem a informação relevante, o que acarretaria um dano

de caráter patrimonial, restringindo-se a matéria, a priori, ao campo civil. Contudo, restando

comprovados o dolo e má-fé do Insider em causar o mencionado dano, criaria-se a

possibilidade de aplicação de sanção de natureza penal.

Dessa maneira, a conduta poderia ser enquadrada no art. 171 do Código

Penal189

, Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, o qual tipifica o crime de

estelionato. Nesse sentido, a realização de Insider Trading reuniria todos os requisitos do

estelionato, os quais seriam a obtenção ilegítima de uma vantagem econômica, ou não, pelo

agente, a utilização de artifício ou de meio ardil capaz de induzir a erro ou a engano o sujeito

passivo, a necessidade de que prestação feita pelo sujeito passivo seja voluntária, a exigência

de que a manobra fraudulenta tenha influência sobre a determinação do sujeito passivo e que

o sujeito passivo tenha sofrido qualquer prejuízo190

.

Restaria ainda a comprovação de que seria possível a realização de estelionato

através de omissão dolosa para que se pudesse enquadrar o Insider Trading em tal tipo penal.

Para tanto, a corrente que propôs tal interpretação recorreu à “Exposição de Motivos” do

Código Penal, relatada pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos, na qual a descrição

do crime de estelionato faz questão de deixar claro que o silêncio, quando malicioso ou

intencional, quanto à preexistente erro da vítima, seria entendido como meio fraudulento, de

modo que se caracterizaria a conduta do estelionato191

.

Apesar da tentativa de enquadramento do uso de informações privilegiadas em

Mercado de Capitais como crime de estelionato, esta interpretação não foi acatada pela

doutrina e pela jurisprudência, não tendo havido nenhuma condenação penal no judiciário

brasileiro por Insider Trading até o ano de 2011192

, quando, já em vigor o art. 27-D da Lei

188

PARENTE, Norma Jonssen, Aspectos Jurídicos do “Insider Trading”, Informativo CVM, vol. IV, ano III,

Legis Bancos, Rio de Janeiro, 1980. 189

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém

em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. 190

PARENTE, Norma Jonssen, Aspectos Jurídicos cit., p. 21-22. 191

Disponível em: http://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.php?numlink=1-96-15-1940-12-07-2848-

CP. 192

Conforme Comunicado expedido pela CVM em 04.02.2013 sob o título: PRR-3 e CVM obtêm aumento das

penas de ex-executivos da Sadia que lucraram com informações privilegiadas relacionadas à oferta hostil da

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6.404/76, executivos da Sadia foram condenados por tal conduta, caso que abordaremos em

capítulo próprio.

Com a reforma promovida pela Lei 10.303/01, o Insider Trading passou a ser

tipificado penalmente, seguindo, assim, exemplo de outros países do mundo que já

apresentavam essa tipificação penal, como França, Inglaterra e Estados Unidos193

. O art. 27-

D da Lei 6.385/76, que traz a tipificação mencionada, tem a seguinte redação:

Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que

tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou

para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de

terceiro, com valores mobiliários.

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante

da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

Assim, analisando-se a norma transcrita, pode-se perceber que para que ocorra

um ilícito penal, deve haver uma informação relevante, ou seja, capaz de influenciar a cotação

dos valores mobiliários de emissão da companhia ou a eles referenciados, a decisão dos

investidores de comprar ou vender tais valores mobiliários, bem como a opção dos

investidores de exercer quaisquer direitos inerentes á condição de titulares destes194

. Não

basta, desse modo, a existência de qualquer informação, mas de uma informação que tenha as

características mencionadas acima, a qual deverá não ter sido ainda divulgada, constituindo

uma informação privilegiada.

Não obstante a informação ser privilegiada, esta deve ser ainda capaz de

propiciar vantagem indevida para quem dela se vale ao realizar negociação com valores

mobiliários ou para qualquer terceiro. Nesse sentido, a vantagem indevida refere-se a

benefícios patrimoniais obtidos pelo agente em virtude de sua posição em relação aos demais

participantes do mercado, de modo que este realizará transações que lhes propiciarão ganhos

que não seriam por este auferidos caso não conhecesse informação relevante ainda não

revelada.

Sadia para aquisição do controle da Perdigão. Disponível em:

http://www.cvm.gov.br/port/infos/Comunicado04022013.asp. 193

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 48; e PROENÇA, José Marcelo Martins,

“Insider Trading” cit., p. 233- 234. 194

Conforme definição de Fato ou Ato Relevante do art. 2º da ICVM nº 358/02.

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90

O agente do eventual ilícito penal deve não só ter conhecimento dessa

informação privilegiada e dela fazer uso em operações envolvendo valores mobiliários, mas

deve, também, ter o dever legal de manter sigilo em relação à mesma. Assim, percebe-se que

apenas poderão ser condenados penalmente pela realização de Insider Trading aquelas

pessoas que tenham, por determinação legal, o dever de manter sigilo sobre informações

privilegiadas. Estas pessoas, que tem o dever de sigilo determinado pelo §1º do art. 155 da Lei

6.404/76 e pelo art. 8º da ICVM nº 358/02, são conhecidas como Insiders primários, os quais

serão também responsabilizados penalmente caso realizem as transações, nos mesmos termos,

através de terceiros.

A impossibilidade de que se processe penalmente por Insider Trading as

pessoas que não tem dever legal de guardar sigilo das informações referentes à companhia e à

seus valores mobiliários, conhecidas como Insiders secundários, foi alvo de críticas por parte

da doutrina, tendo em vista que isenta de responsabilização criminal aquelas que pessoas que

não tenham nenhum vínculo com a companhia, mas tenham tido acesso à informações

privilegiadas que lhes digam respeito e negociaram com base nas mesmas no Mercado de

Capitais195

.

Uma última questão que se coloca em relação à norma penal supra transcrita

diz respeito à caracterização da conduta como crime formal ou como crime material. A

interpretação da norma transcrita como crime formal, também conhecido como de “mera

conduta”, indica que a simples realização de transações com valores mobiliários,

independentemente do auferimento de lucro com as transações, já caracterizaria a conduta

delituosa.

Por outro lado, a interpretação da norma como crime material, também

conhecido como “de resultado”, exige, para que o Insider Trading se caracterize como ação

delituosa no campo penal, a materialização da lesão ao bem jurídico tutelado, de modo que

esta não se consumando, surgiria uma tentativa ou um fato penalmente indiferente196

. Desse

modo, as transações realizadas pelo agente deveriam propiciar a este a obtenção de lucro.

Esta interpretação se funda na pena determinada pela realização da conduta

combatida, a qual estabelece, além da reclusão, o pagamento de multa de até três vezes o

195

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 320 – 326. 196

HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, vol. 1, tomo 2, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, p.

20- 42. In: PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 321.

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montante da vantagem ilícita obtida, o que seria um indicativo de que a existência da conduta

criminosa ficaria dependente de que as negociações gerassem resultado lucrativo para o

agente197

. No mesmo sentido, ao exigir a norma penal que a informação seja capaz de

propiciar vantagem indevida ao negociar-se valores mobiliários, entende-se que não é

possível a caracterização da “vantagem indevida” sem a realização de um resultado198

.

No único caso analisado até agora no judiciário brasileiro referente à

responsabilização penal pela prática de Insider Trading, prevaleceu o entendimento de que o

tipo penal trata-se de crime formal, de maneira que obtenção de lucro nas transações não

configura requisito essencial para que o agente que realiza negociações motivado por

informações privilegiadas sofra sanções penais199

. Interpretação esta que também prevalece na

doutrina, que se ampara na não vinculação, pelo legislador, da consumação do tipo penal à

obtenção da vantagem almejada pelo Insider200

.

197

Conforme CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson, A Nova Lei cit., p. 548-549. In: PROENÇA, José

Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 342. 198

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 565. Segundo estes autores, da mesma opinião compartilhariam: PINTO, Frederico Lacerda da

Costa, O Novo Regime dos Crimes e Contra-Ordenações no Código dos Valores Mobiliários, Porto, Almedina,

2000, p. 81, para quem os crimes em que ocorre a negociação com utilização de informação privilegiada são de

natureza material ou “de lesão”; e CASTELLAR, João Carlos, Os Novos Crimes Societários, Dissertação de

conclusão de curso de Pós-graduação “Lato Senso” em Direito Societário do IBMEC, Rio de Janeiro, 2006, p.

114, para quem o crime será material, pois o resultado dependerá da vantagem que o agente percebe ao negociar

em posso de informação privilegiada. Em sentido contrário, estes mencionam: SACTIS, Fausto Martins de,

Punibilidade no Sistema Financeiro Nacional, Campinas, Millenium, 2003, p. 113, para quem o crime seria de

perigo abstrato, cabendo ao Ministério Público demonstrar apenas que a conduta foi realizada. 199

Conforme sentença de 1ª instância proferida em 16 de fevereiro de 2011 pelo Juiz Federal Substituto da 6ª

Vara Federal de São Paulo Sr. Marcelo Costenaro Cavali nos autos do processo nº 0005123-26.2009.403.6181

(2009.61.81.005123-4). Fundamentação esta mantida por decisão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da

3ª Região publicada em 14 de fevereiro de 2013 diante de apelação criminal apresentada no processo em função

da irresignação dos réus com a sentença de 1ª instância. 200

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 321.

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4 O CASO SADIA-PERDIGÃO

4.1 O Insider Trading nos tribunais norte-americanos

No Brasil e nos Estados Unidos, primeiro país a combater de forma ampla o

uso de informações privilegiadas no Mercado de Capitais, muitos casos envolvendo suspeitas

de Insider Trading já foram investigados por suas agências reguladoras, respectivamente, a

Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Securities Exchange Comission (SEC).

Alguns desses casos, julgados em âmbito administrativo ou em âmbito judicial,

se notabilizaram em função do precedente que geraram diante da manifestação do órgão

julgador acerca de questões que até então restavam indefinidas no que se refere a

interpretação de algum dispositivo legal, a extensão de determinadas vedações, bem como

aspectos referentes à responsabilização dos agentes e a aplicação de sanções.

Nos Estados Unidos, destacaram-se os casos decididos pelo judiciário,

principalmente por tratar-se de um país de common law, onde a principal fonte do direito são

as decisões judiciais. Muitos desses já foram mencionados anteriormente neste trabalho, de

modo que estes não serão analisados à exaustão.

Mesmo anteriormente à legislação proibitiva ao Insider Trading nos Estados

Unidos, o julgamento de alguns casos, mesmo que de forma contrária à proteção de acionistas

e investidores, já sinalizava o surgimento de uma preocupação nesse sentido, mesmo que o

judiciário ainda não entendesse dessa maneira.

Nesse sentido, no caso “Carpenter v. Danforth”, julgado em 1868, os tribunais

de Nova York manifestaram o entendimento de que os administradores eram fiduciários

apenas da companhia, não tendo nenhum dever para com os acionistas individualmente,

podendo transacionar ações com este sem precisar revelar nenhuma informação que conheça e

que colocaria o acionista em uma posição de desvantagem no negócio201

.

Posicionamento mediano surgiu em “Strong v. Repide” e em “Stewert v.

Harris”, no qual os tribunais norte americanos reconheceram, tendo sido posteriormente

201

BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation cit., p. 287.

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confirmado pela Suprema Corte, que em situações peculiares, circunstâncias especiais fariam

com que os administradores pudessem ser responsabilizados por transacionarem ações

obtendo lucros às custas dos stockholders202

. Decisão minoritária ocorreu em “Oliver v.

Oliver” em que manifestou-se um posicionamento ainda minoritário de que os

administradores respondiam por danos causados aos investidores e acionistas não podendo

transacionar ações com estes sem revelar informações que os colocassem em posição

desvantajosa no negócio203

.

No caso “Blau v. Lehman”, a Suprema Corte norte-americana, promoveu uma

ampliação no conceito de administrador trazido pela norma 16 (b) do “Securities and

Exchange Act of 1934” de modo que foram abrangidos também aqueles que agem por e para

outra pessoa na administração da empresa, permitindo a existência de uma relação contratual

(agency) que no direito brasileiro se aproximaria da figura do mandato204

.

Na aplicação da mesma regra procurou-se ampliar também o conceito de

acionista controlador, com o intuito de abranger todos aqueles que pudessem tirar proveito de

sua condição de acionista. Nesse sentido, no caso “Whiting v. Dow Chemical Company” a

mulher de um administrador foi considerada controladora indireta das ações de propriedade

de seu marido. Desse modo, ao analisar uma unidade familiar, o tribunal concluiu que as

ações de um cônjuge podem ser consideradas controladas indiretamente pelo outro, se os

frutos da propriedade são usufruídos por ambos205

.

Já no caso “Reliance Electric Company v. Emerson Electric Company” a

Suprema Corte norte-americana entendeu que a presunção de ilicitude das operações de

acionistas com percentual superior a 10% dentro do período legal de seis meses não é

absoluta. Nesse sentido, entendeu aquela que deve-se diferenciar investidores, que pretendem

participar efetivamente da direção da companhia e tem, por consequência, maior propensão a

ter acesso a informações privilegiadas, de especuladores, que adquirem ações da companhia

com a intenção de lucrar em função da diferença entre o preço de compra e o preço de venda

dos títulos, não se envolvendo nos negócios sociais206

.

202

BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation cit., p. 201 e 289. 203

BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., The Modern Corporation cit., p. 201 e 289. 204 MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 35. 205

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 35. 206

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 36.

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Outro caso no mesmo sentido, que indica que a Suprema Corte norte-

americana passou a relativizar o mandamento legal, foi “Kern Couty Land Co. v. Petroleum

Corp.”, no qual analisou-se as razões subjetivas das partes envolvidas nas transações com

valores mobiliários como fundamento para verificar se houve ou não o uso desleal de

informações privilegiadas207

, abrindo um precedente para que a responsabilização dos

Insiders tivesse sempre cunho objetivo.

No caso “TSC Industries Inc. v. Northway”, quando já vigorava a regra 10 b-5,

a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu um teste padrão para verificar se

determinadas informações seriam relevantes ou privilegiadas. Este determina que um fato

omitido é relevante, se existe uma probabilidade substancial de que um acionista mediano o

consideraria importante no momento de tomar qualquer deliberação. Apesar do teste ter sido

elaborado para o ambiente de votações nas assembleias gerais, este passou a ser largamente

usado pela Suprema Corte, também, em caso de decisões envolvendo compra e venda de

valores mobiliários208

.

O caso “Cady, Roberts Co.” permitiu que a definição de Insider, trazida pela

regra 10 b-5, pudesse abranger também terceiros (tippees) vinculados aos administradores.

Nesse caso, Roberts, sócio de uma corretora, vendeu ações, de propriedade sua, de sua esposa

e de outros, da empresa “Curtiss-Wright Corporation” poucos dias após saber do diretor da

companhia que esta reduziria seus dividendos trimestrais, informação que só foi publicamente

divulgada pelos jornais dias após a transação209

.

Nesse caso, a SEC emitiu parecer no sentido de que poderiam ser enquadrados

como Insiders, além de funcionários, administradores e controladores da companhia, todas as

pessoas que, não vinculadas funcionalmente à companhia, tivessem acesso privilegiado a

informações. Desse modo, a obrigação trazida pela regra 10 b-5 seria fundamentada em dois

elementos: a) a existência uma relação qualquer que permitisse livre acesso, direto ou

indireto, a informações que deveriam estar ou publicamente disponíveis ou mantidas em

absoluto sigilo; e b) a deslealdade envolvida, pela qual uma das partes leva vantagem na

207

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 38. 208

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 36. 209

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 46.

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transação unicamente por conhecer a informação, sabendo que não estará disponível para a

outra parte210

.

Posteriormente, seguindo a mesma linha, no caso “SEC v. Texas Gulf Sulphur

Co.”, a companhia encontrou um valioso depósito de minerais no Canadá, e antes que a

informação fosse divulgada, Insiders da companhia e pessoas a eles ligadas transacionaram

quantias vultuosas em valores mobiliários de sua emissão. Nesse caso, restou estabelecido,

com base em uma política de acesso igualitário às informações, que qualquer pessoa que

possuísse informações relevantes não publicadas estava obrigada a revelá-las ou abster-se de

negociar valores mobiliários da companhia a que se referiam as informações211

.

Sobre a ação de responsabilidade com base na regra 10 b-5, a Suprema Corte

decidiu em “Ernst & Ernst v. Hochfelder” que deve-se provar que os réus agiram com dolo.

Isto, pois quando a lei utiliza termos específicos que são comuns na atribuição de dolo a uma

conduta, como manipular, simular ou fraudar, e quando a história legislativa não reflete

nenhuma intenção para a norma seja expandida, apenas nas hipóteses de dolo deveria ser

aplicada a regra 10 b-5212

.

Um outro caso importante que poderia ser mencionado é “Chiarella v. United

States”, o qual foi abordado e explicado no capítulo anterior. Este caso, ao ter as decisões de

primeira e segunda instâncias reformadas pela Suprema Corte, sob o argumento de que

supostos “Insiders do mercado” não tem os mesmos deveres que “Insiders da companhia”, foi

essencial para a expansão do dever disclose or refrain from trading a todos aqueles que

conhecessem informações privilegiadas, promovida pela regra 14 e-3, editada como uma

resposta à decisão final proferida.

Tanto no caso “Chiarella v. United States” como no caso “Dirks v. SEC” a

Suprema Corte norte-americana rejeitou a política do acesso igualitário às informações. Em

ambos os casos ficou determinado que só poderia haver responsabilização do agente por

Insider Trading caso exista para a esse, anteriormente à transação, o dever de revelar. Assim,

os Insiders não poderiam ser condenados por ter mais informações do que os demais

participantes do mercado, mas por quebrar um dever fiduciário pré-existente para com quem

210

EIZIRIK, Nelson, “Insider Trading” e responsabilidade cit., p. 46 – 47. 211

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview cit. 212

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 41.

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estes negociaram valores mobiliários213

. Posicionamento esse contrário ao que vinha sendo

adotada pelos tribunais, como no caso “SEC v. Texas Gulf Sulphur Co.”, e que foi derrubado

posteriormente pela regra 14 e-3, que instituiu legalmente princípio do acesso igualitário às

informações.

Em “Diamond v. Oreamuno”, “Freeman v. Decio” e “U.S. v. Chestman” o uso

de informações privilegiadas passou a ser discutido sob uma nova perspectiva, a da aplicação

de direitos de propriedade sobre as informações geradas no interior de uma companhia.

Apesar de ter surgido uma tendência jurisprudencial de que, sob a perspectiva do direito das

coisas, as informações seriam propriedade da companhia e seu uso pelos Insiders poderia

configurar furto, ainda existem muitas questões que precisam ser resolvidas para elaboração

de uma doutrina nesse sentido214

.

Em “United States v. Carpenter”, analisado em 1986, um funcionário do jornal

The Wall Street Journal, que escrevia uma coluna de grande influência, participava de um

esquema em que este transmitia para alguns participantes do Mercado de Capitais

informações que seriam publicadas por ele sobre as companhias e que teriam peso suficiente

para causar algum impacto no mercado, mas que eram mantidas em sigilo pelo jornal até sua

efetiva publicação. Neste caso, a despeito do jornalista não ser um Insider corporativo, não

negociar em nome de seu empregador e nem comprar ações na bolsa, este foi condenado,

assim como seus comparsas, com base na interpretação abrangente da regra 10 b-5215

.

No caso “United States v. O’Hagan”, julgado em 1992, James O’Hagan era

sócio de um escritório de advocacia em Minneapolis que foi contratado pela companhia

Grand Metropolitan PLC para estruturar uma oferta de aquisição do controle da companhia

Pillsbury Company. Apesar do Sr O’Hagan não estar envolvido na operação, este tomou

conhecimento da mesma e comprou grande volume de ações e de opções de compra da

Pillsbury Company, vendendo todos os títulos adquiridos no momento em que a oferta foi

tornada pública, realizando lucros superiores a US$ 4,3 milhões de dólares.

A Suprema Corte confirmou a condenação atribuída ao Sr O’Hagan em

instâncias inferiores por violação à regra 10 (b) da “Securities and Exchange Act of 1934” e à

norma 10 b-5, por negociar com informação privilegiada da qual havia se apropriado

213

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview cit. 214

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview cit. 215

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 240.

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indevidamente, e por violação à norma 14 e-3, por ter realizado transações em posse de

informação privilegiada relativa a uma oferta pública. No caso, a Suprema Corte entendeu

válida a acusação de apropriação indevida de informação216

sob a interpretação de que esta

serviria para a proteção da integridade do Mercado de Capitais contra abusos por Outsiders às

companhias que tem acesso a informações que podem afetar os preços dos títulos por esta

emitidos, mas que não tem dever de lealdade ou outro dever qualquer para com seus

acionistas217

.

4.2 O Insider Trading nos julgados da CVM

No Brasil, destacam-se, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, as

decisões proferidas pelo órgão administrativo, a Comissão de Valores Mobiliários,

responsável por regulamentar o Mercado de Capitais brasileiro e por investigar e punir

infrações às leis e aos regulamentos incidentes sobre os participantes desse mercado. Vale

destacar que poucos casos de relevo foram levados ao judiciário com pedidos de reparação de

danos ou de revisão da decisão proferida pelo órgão administrativo.

No caso “Petrobrás”, decidido logo após a entrada em vigor da Lei 6.404/76,

quando a CVM, recém-criada pela Lei 6.385/76, confrontou pela primeira vez questões

relativas ao uso de informações privilegiadas no Mercado de Capitais, restou decidido que no

direito brasileiro não havia a presunção, vigente no ordenamento norte-americano, de que

operações de recompra ou revenda de ações, com a obtenção de lucro, dentro de um termo

legal seriam motivadas pelo conhecimento de informações privilegiadas (short swing profit

prohibition provision). O órgão, entretanto, sinalizou que uma norma nesse sentido deveria

surgir em um futuro próximo218

.

Outra questão importante analisada pela CVM no julgamento do caso

“Petrobrás”, foi a confirmação do alcance limitado da vedação ao Insider Trading à época, de

maneira que, de acordo com a redação original dos arts. 155 e 157 da Lei 6.404/76, apenas

administradores estariam sujeitos à proibição, ainda que seus subordinados ou terceiros de sua

216

Trata-se aqui da doutrina do “Missappropriation Theory”, surgido no caso “Chiarella v. United States”. 217

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview cit. 218

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 44.

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confiança tivessem utilizado deslealmente informações relevantes, afetando os preços do

Mercado de Valores Mobiliários219

.

Logo em seguida, a CVM analisou o caso “Servix” no qual manifestou-se no

sentido de que em nenhuma situação seria permitido a um administrador negociar ações

quando, em virtude de seu cargo, estivesse em posse de informações que a contraparte no

negócio não conhecesse. O órgão fixou, ainda, que nestes casos não seria necessário

demonstrar que o administrador agiu com dolo, bastando que este tivesse negociado ações,

conhecendo informação relevante que a outra parte não estivesse a par, para que fosse

passível de ser punido pela CVM220

.

Ainda nesse caso, a posição da CVM demonstrou que quando evidências

apontassem a conduta ilegal do administrador, qualquer investidor cujos valores mobiliários

estivessem envolvidos na operação, teria o direito de ser indenizado por perdas e danos, visto

que a responsabilidade do primeiro surgiria da realização de operações em posição desleal.

No caso “Servix”, assim como no caso “Petrobrás”, ficou estabelecido, também, que havendo

dúvidas sobre a oportunidade de divulgação de uma informação, esta deveria ser revelada ao

mercado imediatamente221

.

Apesar da importância das questões analisadas pela CVM no caso “Servix” e

da decisão proferida no caso que teve o condão de demonstrar seu posicionamento a respeito

de diversos aspectos relativos à legislação sobre Insider Trading, sendo verdadeiro leading

case em matéria de punição disciplinar administrativa, o julgamento proferido foi anulado em

função de recurso interposto ao Conselho Monetário nacional. O caso foi ainda levado ao

judiciário, que se manifestou sobre o caso duas vezes, divergindo os julgamentos222

.

No “Processo Administrativo nº 04/86” restou decidido que é considerada

informação relevante a realização pela companhia de um prejuízo substancial, como a metade

do lucro obtido no exercício anterior, auferível em função do valor envolvido. No mesmo

caso foram consideradas como práticas características de Insider Trading a realização de

219 MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 44. 220

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 44. 221

MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel, A Utilização Desleal cit., p. 44 e 46. 222

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 299.

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transações com valores mobiliários por administradores antes da publicação das

demonstrações listando estes prejuízos223

.

Nos “Processos Administrativos nº 29/82, nº 24/83, nº 03/79 e nº 07/91” a

CVM discutiu a relação da vantagem obtida, através das transações irregulares, com a

determinação da punição. No primeiro caso, entendeu-se que seria irrelevante a obtenção do

ganho, mesmo se inexpressivo. No segundo caso, porém, decidiu-se que sendo o pequeno o

montante de ações negociadas, somado a outros fatores, não haveria que se falar em Insider

Trading. No terceiro caso, estabeleceu-se que não seria relevante para a análise da conduta a

destinação dada aos recursos gerados pelas negociações. No último caso, absolveu-se o

administrador da companhia, pois este destinou os recursos obtidos irregularmente à própria

empresa, evitando sua falência, sobrepondo-se o dever do acionista de preservar a companhia

à prática de Insider Trading224

.

Nos “Processos Administrativos nº 29/82 e nº 31/93” discutiu-se a eventual

descaracterização da infração em função da ausência de prejuízo. Nestes casos, houve

declaração do investidor, contraparte nas negociações com o Insider, de que não havia se

sentido prejudicado pela conduta do segundo, o que foi entendido, contudo, como mera

renúncia ao direito de pleitear perdas e danos, não afastando o prejuízo materializado no

mercado225

.

No “Processo Administrativo nº 05/83” o argumento de manutenção do sigilo

acerca de informações relevantes referentes a tratativas ou intenções de negócios foi aceito em

virtude da possibilidade de sua divulgação ocasionar desordens e tumultos no mercado. Foi

estabelecido, entretanto, que a divulgação deveria ser imediata diante de vazamento ou

rumores. De maneira geral, entendeu-se essa situação como excepcional, restando pontuado

que o dever de informar deveria suplantar o dever de sigilo226

.

Sobre o mesmo tema, a CVM manifestou-se no “Processo Administrativo nº

09/92” no sentido de que a manutenção do sigilo não desfaz a vedação à administradores,

223

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 300. 224

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 300 – 301. 225

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 302. 226

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 302.

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100

controladores e até mesmo à própria companhia de negociarem valores mobiliários, enquanto

a informação não for tornada pública227

.

A realização de transações por parte dos tippees, terceiros ligados aos

administradores, foi analisada pela CVM nos “Processos Administrativos nº 14/88 e nº

04/85”, de modo que, no primeiro caso, ficou estabelecido que, para que possa haver sua

responsabilização, é necessária a prova do efetivo acesso à informação por parte deste terceiro

ou de obtenção de vantagem por este. No segundo caso, admitiu-se que após a vigência da

ICVM nº 31/84, tornou-se necessária a prova de que a participação do terceiro no ilícito tenha

sido consciente228

.

No “Processo Administrativo nº 04/86” foram enumerados os elementos que

seriam caracterizadores do Insider Trading, sendo estes, o conhecimento da informação pelos

administradores, a ausência de divulgação dessa informação, a relevância da informação e a

realização de negócios nesse período pelos administradores229

.

A compra de ações de empresa controlada, que deixou de divulgar fato

relevante, por sua controladora foi entendida como Insider Trading no “Processo

Administrativo nº 09/92”, uma vez que os administradores da segunda eram os mesmos da

primeira, os quais eram acionistas controladores da empresa controladora e detinham,

também, participação no capital social da empresa controlada. Neste caso, os administradores

agiram em nome da companhia buscando ganhos para eles mesmos, gerando prejuízos

efetivos para os minoritários da controladora e prejuízo potencial para o mercado230

.

No “Processo Administrativo nº 13/00” a CVM decidiu que uma relação tênue

de parentesco e um pequeno lucro em uma operação compatível com os volumes

normalmente negociados pela companhia não seriam suficientes para fundamentar uma

condenação por Insider Trading de tippee ou de Insider de mercado231

. Restou determinado,

também, que o ônus da prova de que o Insider secundário teve acesso à informação

227

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 302. 228

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 302- 303. 229

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 303. 230

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 304. 231

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 305.

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101

privilegiada cabe à própria autarquia, o que, por não ter sido provado, impediu a aplicação de

penalidades no caso232

.

No “Processo Administrativo nº 24/00” a Diretora Norma Parente, referindo-se

à importância dos indícios na investigação do Insider Trading, tendo em vista ser

praticamente impossível a prova direta da conduta, manifestou-se no sentido de que a “prova

indiciária” autorizaria a condenação desde que presentes indícios graves, precisos e concretos.

Nesse sentido, essa modalidade constituiria uma prova indireta, circunstancial, de inferências,

partindo de dados e circunstâncias conhecidos e, portanto, provados, para os fatos

desconhecidos, através de um raciocínio de lógica formal233

.

No “Processo Administrativo nº 32/00” manifestou-se a CVM no sentido de

que não comprovada a existência de informação relevante, não cabe exigência de sua

revelação. Essa decisão foi proferida diante de notícia divulgada em jornal de grande

circulação de que determinada companhia auferiria vultuosos lucros naquele exercício. A

companhia, entretanto, recusou-se a confirmar a informação sob a alegação de não ter sido

encerrado o procedimento de apuração do resultado no momento da divulgação da notícia

pelo jornal, recusa essa amparada pela CVM234

.

No “Processo Administrativo nº 18/01”, de relatoria do Diretor Eli Loria, o

Presidente da CVM à época, Marcelo Fernandez Trindade, em seu voto mencionou que o

Insider Trading inclui-se entre as infrações mais graves ao Mercado de Capitais porque o

subverte naquilo que teria de mais fundamental, a confiança nos agentes e nas informações

disponíveis. Dessa maneira, deveriam ser aplicadas punições graves, como multas pecuniárias

máximas e suspensão de autorização de exercício da função de administrador aos agentes

infratores, impostos no caso a funcionários de uma corretora.

Quanto ao conceito de fato relevante, a CVM entendeu, no “Processo

Administrativo nº 2002/1822”, que a verificação da relevância de uma informação deverá ser

feita a partir da avaliação de sua repercussão no valor da companhia, não importando que

figure no rol exemplificativo da ICVM nº 358/02235

.

232

Conforme nota de rodapé nº 60 em: EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES,

Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 564. 233

Conforme nota de rodapé nº 694 em: EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A cit., p. 377. 234

PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading” cit., p. 305 – 306. 235

Conforme nota de rodapé nº 50 em: EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES,

Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 559 – 560.

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Ainda sobre informações relevantes, no “Processo Administrativo nº 04/04”, o

Presidente da CVM, Marcelo Fernandez Trindade, manifestou em seu voto, em compasso

com o que foi decido no caso, que em se tratando de ofertas públicas, na pendência de sua

divulgação, os deveres impostos aos Insiders deveriam levar em conta não apenas o evento

em si, mas o processo em que se insere sua formação. Assim, a relevância da informação não

está condicionada, nesses casos, à que a decisão de realizar a oferta esteja perfeita e acabada,

bastando que esteja em curso o processo de sua efetivação, para que caracterize a informação

privilegiada236

.

No mesmo processo foi decidido, com menção aos debates no julgamento do

Inquérito Administrativo nº 17/02 no mesmo sentido, que a obtenção de lucro não constituiu

elemento do tipo previsto no art. 155 §1º a 4º da Lei 6.404/76 e no art. 13 da ICVM nº 358/02,

de modo que o agente deve ter uma expectativa de ganho pecuniário com a realização das

transações com valores mobiliários, mas não seria necessário que estes ganhos fossem

efetivamente auferidos para que a violação aos artigos mencionados pudesse ser reconhecida.

Muitos casos envolvendo Insider Trading, apreciados por órgãos

administrativos ou judiciais, foram extremamente relevantes para o estudo da matéria e para a

consolidação de entendimentos na construção de uma doutrina e de um regime jurídico

aplicáveis à conduta. Dentre estes, muitos foram mencionados acima e outros tantos ainda

aguardam manifestação do órgão julgador a que foram submetidos.

Alguns casos, entretanto, são verdadeiros Leading cases, destacando-se por

levarem o órgão julgador a manifestar-se acerca de questões que restavam, até o momento,

controversas ou ainda não apreciadas. Nesse sentido, o caso Sadia-Perdigão, analisado pela

CVM em 2008237

, pela justiça federal em 1ª instância em 2011 e em grau recursal em 2013,

representou a primeira condenação, pelo judiciário, por Insider Trading em processo

criminal238

com fundamento no art. 27-D da Lei 6.385/76, instituído pela Lei 10.303/01.

236

Conforme nota de rodapé nº 53 em: EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES,

Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 560 – 561. 237

Tendo em vista que três pessoas foram acusadas de Insider Trading no caso “Sadia-Perdigão” a CVM julgou

suas condutas através dos Processos Administrativos Sancionadores CVM nº 2007/0117, nº 2007/0118 e nº

2007/0119, que levaram a duas condenações, nos dois primeiros, e à celebração de um Termo de Compromisso,

no último. 238

Conforme Comunicado expedido pela CVM em 04.02.2013 sob o título: PRR-3 e CVM obtêm aumento das

penas de ex-executivos da Sadia que lucraram com informações privilegiadas relacionadas à oferta hostil da

Sadia para aquisição do controle da Perdigão. Disponível em:

http://www.cvm.gov.br/port/infos/Comunicado04022013.asp.

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4.3 Aspectos fáticos do caso Sadia-Perdigão

No primeiro semestre do ano de 2006, a empresa Sadia S.A. (“Sadia”) deu

início a conversas internas, entre seus diversos setores, com o intuito de projetar uma oferta

pública de aquisição de ações (OPA) direcionada aos acionistas da companhia Perdigão S.A.

(“Perdigão”) objetivando adquirir 50% mais uma de suas ações com direito a voto, assumindo

assim, o controle da companhia.

As conversas avançaram internamente envolvendo setores que seriam

estratégicos para a concretização da oferta e levaram, visto a percepção da viabilidade do

negócio, à contratação de assessoria externa pela Sadia, que passou a estruturar sua oferta

pública de aquisição de ações com o acompanhamento de escritórios de advocacia de grande

porte e do Banco ABN AMRO REAL S/A.

No dia 16 de julho de 2006, uma segunda-feira, a Sadia realizou a oferta

pública de aquisição de ações de emissão da companhia Perdigão nos moldes que havia

planejado, oferecendo o preço de R$ 27,88 por ação, 21,22% superior ao preço de fechamento

do último pregão da BOVESPA, que havia ocorrido dia 14 de julho, uma sexta-feira.

No dia seguinte, dia 18 de julho, a Perdigão divulgou fato relevante

informando que detentores de 55,38% de suas ações votantes haviam recusado a proposta

feita pela Sadia, o que por si só já inviabilizaria o negócio, tendo em vista que a segunda

almejava adquirir quantidade de ações suficientes para que pudesse assumir o controle da

primeira, e assim, comprar número menor de ações que lhe confeririam apenas o status de

acionista minoritária não lhe interessava.

Com isso, a Sadia, em 20 de julho, refez sua oferta aumentando o preço

oferecido por cada ação da Perdigão para R$ 29,00. A Perdigão, entretanto, divulgou no dia

seguinte ter recebido manifestações de recusa do novo preço mais uma vez por 55,38% dos

detentores das ações votantes, o que novamente inviabilizaria o negócio. Diante dessa

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104

segunda negativa da Perdigão, a Sadia retirou, em 21 de julho de 2006, sua oferta de

aquisição239

.

Após os acontecimentos descritos acima, a CVM, através de sua Gerência de

Acompanhamento de Mercado-2 (GMA-2), verificou que houve aumento do volume e

oscilação de preços nos negócios envolvendo ações ordinárias de emissão da companhia

Perdigão na BOVESPA nos dias 12, 13 e 14 de julho de 2006, dias que antecederam a

primeira oferta pública de aquisição feita pela empresa Sadia, gerando suspeita de prática de

Insider Trading.

A Perdigão tinha ações negociadas na BOVESPA, assim como ADRs

negociadas na New York Stock Exchange (NYSE), de modo que o preço dos títulos no Brasil

e daqueles nos Estados Unidos eram fortemente correlacionados240

. Em função disso, ao

perceber anormalidades nas transações envolvendo títulos da companhia na BOVESPA na

véspera da OPA realizada pela Sadia, a CVM solicitou informações da Securities Exchange

Comission (SEC)241

acerca das negociações realizadas com ADRs da Perdigão na NYSE no

mesmo período.

Com o avanço das investigações, foram chamados pela CVM para prestar

esclarecimentos sobre as suspeitas o Sr. Romano Ancelmo Fontana Filho, membro do

Conselho de Administração da Sadia, o Sr. Luiz Gonzaga Murat Júnior, Diretor de Finanças e

Relações com Investidores da Sadia, bem como o Sr. João Roberto Gonçalves Teixeira, vice-

presidente do banco ABN AMRO REAL S.A..

Foram solicitadas, também, à Sadia S.A. informações sobre a OPA, como data

de início e término dos trabalhos de análise, as instituições contratadas e as pessoas

239

Todas as datas, valores e porcentagens, bem como demais informações referentes ao caso, trazidas neste item

3.1 (aspectos fáticos do caso Sadia-Perdigão), foram descritas nos Termos de Acusação (TA) formalizados

contra os acusados de Insider Trading pela CVM, tendo sido trazidas no voto do Diretor-Relator Eli Loria no

Processo Administrativo Sancionador CVM nº SP 2007/0117, no voto do Diretor-Relator Marcos Barbosa Pinto

no Processo Administrativo Sancionador CVM nº SP 2007/0118 e no “Parecer do Comitê de Termo de

Compromisso” proferido em referência ao Processo Administrativo Sancionador nº SP 2007/0119. 240

Conforme gráfico comparativo apresentado pela Superintendência de Relações com o Mercado e

Intermediários (SMI) da CVM em seus Termos de Acusação (TA) nos Processos Administrativos Sancionadores

nº 2007/0117, nº 2007/0118 e nº 2007/0119. 241

Com amparo no Memorandum of Understanding (MoU) assinado em 01/07/1988 com a Securities Exchange

Comission (SEC) em que os órgãos reguladores do Mercado de Capitais no Brasil e nos Estados Unidos se

comprometiam a colaborar um com o outro na proteção dos investidores e da integridade do mercado, enviando

informações e atendendo demais solicitações que tivessem como intuito investigar suspeitas de práticas

irregulares e esclarecer outras questões inerentes ao bom funcionamento do mercado.

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envolvidas no processo, bem como cópias de atas de reuniões do conselho de administração,

do estatuto da companhia e demais informações relevantes para as investigações.

A Sadia informou à CVM que haviam ocorrido algumas reuniões, para tratar

da possibilidade de realização da OPA, entre administradores da companhia e executivos do

banco ABN AMRO REAL S.A., tendo participado, algumas vezes, membros dos escritórios

de advocacia que assessorava juridicamente a construção da oferta.

Em um destes encontros, um dos advogados que acompanhavam a preparação

da OPA, segundo relatou o Sr. Romano Ancelmo Fontana Filho à CVM em seus

esclarecimentos, orientou os participantes da reunião a não negociarem ações da Sadia e da

Perdigão em virtude do andamento dos trabalhos envolvendo a projeção de uma oferta pública

de aquisição de ações.

Apesar da orientação mencionada, as investigações concluíram que o Sr. Luiz

Gonzaga Murat Júnior, à época Diretor de Finanças e de Relações com Investidores da Sadia,

em 07 de abril de 2006, após participar de reunião em que estavam, também, o presidente da

companhia e executivos do banco ABN AMRO REAL S.A., na qual se concluiu pela

viabilidade da OPA direcionada à ações de emissão da Perdigão, comprou 15.300 ADRs da

Perdigão na NYSE, pagando US$ 23,06 por cada um.

Algum tempo depois, em 29 de junho do mesmo ano, havia comprado mais

30.600 ADRs de emissão da mesma companhia, pagando o preço de US$ 19,17 por ADR,

tendo gasto no total US$ 939.708,00. Entretanto, em 21 de julho de 2006, dia em que os

acionistas da Perdigão recusaram pela segunda vez a oferta de aquisição feita pela Sadia, o Sr.

Luiz Gonzaga Murat Júnior vendeu 15.300 ADRs da Perdigão por US$ 23,00 cada, recebendo

o valor de US$ 351.976,00 pelos títulos.

Restou comprovado, também, que o Sr. Romano Ancelmo Fontana Filho, à

época membro do Conselho de Administração da Sadia, comprou na NYSE nos dias 05, 07 e

12 de julho de 2006, respectivamente, 10.000 ADRs da Perdigão a US$ 19,30 cada, 5.000

ADRs da Perdigão a US$ 19,00 cada e 3.000 ADRs da Perdigão a US$ 18,70 cada, tendo

gasto no total US$ 344.100,90. Posteriormente, assim como no caso anterior, em 21 de julho,

alienou todos os ADRs de emissão da Perdigão que havia adquirido ao preço de US$ 26,84

por ADR, obtendo um ganho de US$ 139.114,50 com a operação.

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106

As investigações demonstraram, do mesmo modo, que o Sr. Alexandre Ponzio

de Azevedo, à época Superintendente Executivo de Empréstimos do banco ABN AMRO

REAL S.A, comprou, em 20 de junho de 2006, 14.000 ADRs de emissão da Perdigão na

NYSE, tendo utilizado um financiamento junto à corretora “Charles Schwab & Co.”, que

executou a ordem de compra, para liquidar quase o valor total da transação, a qual teve o

custo de US$ 269.919,95.

Em 17 de julho do mesmo ano, logo após o anúncio da primeira OPA feita pela

Sadia, o Sr. Alexandre Ponzio de Azevedo determinou a venda de 10.500 ADRs a um preço

aproximadamente US$ 4,95 mais caro do que aquele pago pelos títulos, recebendo em torno

de US$ 254.406,90 pela venda. As demais 3.500 ADRs foram vendidas apenas em 18 de

outubro de 2006 pelo preço de US$ 23,50 cada. Dessa maneira, o resultado das transações de

compra e de venda das 14.000 ADRs foi um lucro efetivo de US$ 66.683, 94.

Em vista desses fatos, a Superintendência de Relações com o Mercado e

Intermediários (SMI) da CVM formalizou os seguintes Termos de Acusação (TA): I) por

infração ao disposto no art. 155, §1º da Lei 6.404/76, em face do Sr. Luiz Gonzaga Murat

Júnior; II) por infração ao art. 155, §1º da Lei 6.404/76, em face do Sr. Romano Ancelmo

Fontana Filho; e c) por infração ao art. 155, §4º da Lei 6.404/76, em face do Sr. Alexandre

Ponzio de Azevedo.

Tendo em vista que o Insider Trading é tipificado como crime desde 2001, no

art. 27-D da Lei 6.385/76, a autarquia notificou o Ministério Público Federal sobre o caso

para que tomasse eventuais medidas judiciais cabíveis, caso entendesse ter havido crime,

diante da investigação realizada e das provas produzidas.

Pelas condutas mencionadas, os acusados também foram investigados pela

Securities Exchange Comission (SEC), tendo em vista que os negócios aconteceram em

território norte-americano, com títulos negociados na bolsa de Nova York. Em função do

resultado de suas investigações, que aconteceram em cooperação com as da CVM, a SEC

impetrou ações civis na corte distrital de Columbia contra os três mesmos acusados.

4.4 O caso Sadia-Perdigão nos tribunais norte-americanos

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107

Em relação ao Sr. Luiz Gonzaga Murat Júnior, a SEC iniciou ação civil em 21

de fevereiro de 2007 alegando ter havido, por parte deste, apropriação indevida de

informações com quebra do dever de lealdade e de confiança que tinha para com a

companhia. Nesse sentido, observa-se a utilização por parte da SEC, em sua acusação, da

“Misappropriation Theory”, surgida no caso “Chierella v. United States”, segundo a qual o

Insider quebra um dever fiduciário que tem com a fonte da informação e não com a

contraparte do negócio, o qual será, em função do descumprimento de um dever, ilegal242

.

Dessa maneira, a SEC alegou que o acusado havia violado a regra 10 (b) da

“Securities and Exchange Act of 1934” e a norma 10 b-5, em virtude de ter realizado Insider

Trading em conexão com compra ou venda de valores mobiliários243

, assim como a regra 14

(e) da “Securities and Exchange Act of 1934” e a norma 14 e-3, em função da realização de

Insider Trading em conexão com uma oferta pública de aquisição244

.

Em sua manifestação, a SEC requereu à corte distrital de Columbia a proibição

de que o Sr. Luiz Gonzaga Murat Júnior violasse as regras 10 (b), 10 b-5, 14 (e), e 14 e-3,

acima mencionadas, bem como, fosse proibido de atuar como administrador ou diretor de

companhias que estivessem sob sua fiscalização e devessem cumprir seus regulamentos, fosse

condenado a devolver todos os ganhos conseguidos indevidamente através das operações

ilícitas, acrescidos de juros, fosse condenado ao pagamento de penalidades civis, previstas na

seção 21A da “Exchange Act”, e sofresse demais condenações que a corte entendesse

cabíveis.

Diante de negociações com a agência, entretanto, o acusado aceitou a

assinatura de um “Consent Decree”, mecanismo próximo ao Termo de Compromisso

existente hoje nos processos movidos administrativamente pela CVM, de maneira que, sem

confirmar ou negar as acusações, o acusado aceitaria cumprir algumas condições com o

intuito de encerrar o processo judicial movido contra ele com a retirada das acusações.

Assim, no “Consent Decree” assinado pelo Sr Luiz Gonzaga Murat Júnior, este

comprometeu-se a: a) Não violar mais as regras 10 (b) e 14 (e) da “Securities and Exchange

242

BAINBRIDGE, Stephen M., Insider Trading: An Overview cit.. 243

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with Purchase or Sale of a Secutiry”, que violou, segundo

a acusação da SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 10(b) [15 U.S.C. § 78j(b)] and Exchange

Act Rule 10b-5 thereunder [17 C.F.R. § 240.10b-5]. 244

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with a Tender Offer”, que violou, segunda a acusação da

SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 14(e) [15 U.S.C. § 78n(e)] and Exchange Act Rule 14e-3

thereunder [17 C.F.R. § 240.14e-3].

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108

Act of 1934”, bem como as normas 10 b-5 e 14 e-3; b) não ocupar nos cinco anos seguintes o

cargo de diretor ou administrador de companhias abertas fiscalizadas pela autarquia; c) pagar

a quantia de US$ 184.028,12 como restituição dos ganhos auferidos indevidamente; e d)

pagar a quantia de US$ 180.404,00 a título de penalidade civil.

Por sua vez, a ação movida pela SEC contra o Sr Alexandre Ponzio de

Azevedo também foi iniciada em 21 de fevereiro de 2007. Nesta, o órgão alegou, seguindo,

do mesmo modo, a corrente da “Misappropriation Theory”, que o acusado havia se apropriado

indevidamente da informação relevante (material information) não divulgada ao mercado de

que a Sadia pretendia realizar uma oferta pública de aquisição de ações da Perdigão, a qual

havia sido confiada a ele em virtude de seu trabalho no banco ABN AMRO Real S.A., que

estava envolvido na preparação da oferta com o intuito de prover os recursos necessários à

companhia para cobrir os custos que surgiriam da eventual concretização do negócio.

Dessa maneira, ao realizar transações com valores mobiliários, ADRs de

emissão da Perdigão na NYSE, motivado por informação relevante que ainda não estava

disponível ao mercado, o acusado, que teria obtido ganhos indevidos com as operações, havia

ferido, segundo a SEC, a regra 10 (b) da “Securities and Exchange Act of 1934” e a norma 10

b-5, em virtude de ter realizado Insider Trading em conexão com compra ou venda de valores

mobiliários245

, assim como a regra 14 (e) da “Securities and Exchange Act of 1934” e a norma

14 e-3, diante da realização de Insider Trading em conexão com uma oferta pública de

aquisição246

.

Assim, a SEC solicitou à corte distrital de Columbia a proibição de que o Sr.

Alexandre Ponzio de Azevedo violasse novamente as regras 10 (b) e 14 (e) da “Securities and

Exchange Act of 1934” e as normas 10 b-5 e 14 e-3, assim como, fosse condenado a devolver

todos os ganhos auferidos em função das transações ilícitas, acrescidos de juros, fosse

condenado ao pagamento de penalidades civis, previstas na seção 21A do “Exchange Act”,

bem como sofresse demais condenações que a corte entendesse cabíveis.

245

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with Purchase or Sale of a Secutiry”, que violou, segundo

a acusação da SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 10(b) [15 U.S.C. § 78j(b)] and Exchange

Act Rule 10b-5 thereunder [17 C.F.R. § 240.10b-5]. 246

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with a Tender Offer”, que violou, segunda a acusação da

SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 14(e) [15 U.S.C. § 78n(e)] and Exchange Act Rule 14e-3

thereunder [17 C.F.R. § 240.14e-3].

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109

Com o intuito de encerrar o processo movido contra ele na corte distrital de

Columbia e evitar futuras condenações civis nos Estados Unidos por Insider Trading, o Sr

Alexandre Ponzio de Azevedo celebrou um “Consent Decree” com a SEC, no qual, sem negar

ou confirmar as acusações apresentadas contra ele, se propunha a: a) Não violar mais as

regras 10 (b) e 14 (e) da “Securities and Exchange Act of 1934”, bem como as normas 10 b-5

e 14 e-3; b) pagar a quantia de US$ 68.215,45 a título de restituição dos ganhos

indevidamente auferidos; c) pagar a quantia de US$ 67.165,00 como penalidade civil; e d)

não associar-se a qualquer broker ou dealer que atuasse no mercado norte-americano pelo

período de três anos.

Por último, a ação movida pela SEC contra o Sr Romano Ancelmo Fontana

Filho foi iniciada apenas em 19 de junho de 2007. A agência alegou em sua acusação que o

réu apropriou-se indevidamente da informação de que a Sadia projetava a realização de uma

oferta de compra direcionada à ações de emissão da Perdigão, informação esta que já poderia

ser considerada relevante, e ainda não havia sido divulgada ao mercado, no momento em que

o acusado negociou títulos da segunda na bolsa de Nova York.

Tendo em vista que o acusado tinha conhecimento da informação em virtude

de sua posição de diretor da companhia ofertante, teria havido, desse modo, quebra dos seus

deveres de lealdade e de confiança para com a companhia. Assim como nos dois casos

anteriores, houve a adoção pela SEC da “Misappropriation Theory” como forma de

caracterizar a ilegalidade da conduta.

Em virtude do acusado ter realizado operações com ADRs de emissão da

Perdigão na bolsa de Nova York, inobstante ter participado de diversas reuniões em que se

discutiu a realização da OPA, conforme confirmado em depoimentos do mesmo à CVM,

tendo assinado, inclusive, documento de confidencialidade com a companhia quanto a

realização da oferta247

, a SEC alegou que houve violação da regra 10 (b) da “Securities and

Exchange Act of 1934” e da norma 10 b-5, ao ter o acusado realizado Insider Trading em

conexão com compra ou venda de valores mobiliários248

, assim como da regra 14 (e) da

247

Conforme consta da narração dos fatos na peça de acusação apresentada pela SEC como manifestação inicial

no processo movido contra o Sr Romano Ancelmo Fontana Filho na corte distrital de Columbia. 248

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with Purchase or Sale of a Secutiry”, que violou, segundo

a acusação da SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 10(b) [15 U.S.C. § 78j(b)] and Exchange

Act Rule 10b-5 thereunder [17 C.F.R. § 240.10b-5].

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110

“Securities and Exchange Act of 1934” e da norma 14 e-3, em função da realização de Insider

Trading em conexão com uma oferta pública de aquisição249

.

Em vista disso, requereu a SEC à corte distrital de Columbia que o Sr Romano

Ancelmo Fontana Filho fosse proibido de violar as regras 10 (b) e 14 (e) da “Securities and

Exchange Act of 1934” e as normas 10 b-5 e 14 e-3, bem como, fosse proibido de ocupar

função de diretor ou de administrador de companhias que estivessem sob sua fiscalização e se

submetessem aos seus regulamentos, fosse condenado ao pagamento dos valores auferidos

indevidamente com as transações, acrescidos de juros, fosse condenado ao pagamento de

penalidades civis, previstas na seção 21A do “Exchange Act”, e fosse condenado às demais

penalidades que a corte entendesse cabíveis.

Sem negar ou confirmar os fatos a ele imputados, o Sr Romano Ancelmo

Fontana Filho celebrou um “Consent Decree” com a SEC, no qual, em troca do fim das

acusações de natureza civis movidas contra ele, comprometeu-se a: a) não mais violar as

seções 10 (b) e 14 (e) da “Securities and Exchange Act of 1934” e as normas 10 b-5 e 14 e-3;

b) pagar a quantia de US$ 142.848,95 como devolução dos ganhos alcançados ilicitamente; c)

pagar 1,25 vezes a multa civil de valor US$ 173.893,13; e d) não atuar nos cinco anos

seguintes como diretor ou administrador de companhia aberta fiscalizada pela SEC.

4.5 O processo administrativo perante a CVM

A apresentação de Termos de Acusação pela Superintendência de Relações

com o Mercado e Intermediários (SMI) pelos mesmos fatos e em relação aos mesmos

acusados pela SEC nos Estados Unidos, gerou, no Brasil, o surgimento de três Processos

Administrativos Sancionadores (PAS) perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM),

sendo estes o PAS CVM nº SP2007/0117, em relação ao Sr Romano Ancelmo Fontana Filho,

o PAS CVM nº SP2007/0118, quanto ao Sr Luiz Gonzaga Murat Junior, e o PAS CVM nº

SP2007/0119, referente ao Sr Alexandre Ponzio de Azevedo.

249

Tradução livre para “Insider Trading in Connection with a Tender Offer”, que violou, segunda a acusação da

SEC, os seguintes dispositivos: Exchange Act Section 14(e) [15 U.S.C. § 78n(e)] and Exchange Act Rule 14e-3

thereunder [17 C.F.R. § 240.14e-3].

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111

Na apresentação de sua defesa nos autos do PAS CVM nº SP2007/0119, o Sr

Alexandre Ponzio de Azevedo noticiou sua demissão por justa causa do banco ABN AMRO

Real S.A. em função da conduta ilícita a ele imputada, bem como apresentou os termos do

“Consent Decree” que havia assinado com a SEC com o intuito de demonstrar que já havia

sido punido pelos fatos investigados pela autarquia brasileira. Paralelamente a isso, houve

apresentação pelo acusado de proposta de Termo de Compromisso (TC).

A assinatura de Termo de Compromisso é faculdade concedida à CVM pelo

§5º do art. 11 da Lei 6.385/76250

, conforme redação dada pelo Decreto nº 3.995/01, de modo

que o processo administrativo por esta conduzido poderá ser suspenso a qualquer momento,

caso o interesse público permita e haja legalidade no termo proposto, o que é analisado pela

Procuradoria Federal Especializada (“PFE”) da autarquia, desde que o acusado se obrigue a

cessar a prática ilícita que gerou a instauração da investigação, condição aplicável apenas a

delitos continuados, e corrija as irregularidades e prejuízos oriundos da conduta ilícita.

A assinatura do Termo de Compromisso não gera confissão do acusado quanto

à matéria de fato, e tampouco o reconhecimento da ilicitude da conduta investigada.

Cumprindo o acusado o compromisso assinado com a CVM o processo será arquivado, mas

caso não haja o cumprimento da obrigação no prazo pactuado, a CVM dará continuidade ao

processo. Diferentemente da multa, prevista como penalidade aplicável pela autarquia no

inciso II do art. 11 da Lei 6.385/76251

, o valor do Termo de Compromisso não sofre nenhuma

limitação, devendo ser suficiente para corrigir os prejuízos gerados pela conduta investigada.

Nesse sentido, o Sr Alexandre Ponzio de Azevedo argumentou pela

possibilidade de celebração do Termo de Compromisso em virtude da cessação da conduta

ilícita e da correção das irregularidades e dos prejuízos, tendo em vista que a prática a ele

imputada não seria continuada e por não ter restado comprovada a ocorrência de prejuízos que

250

§ 5o A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, se o interesse público permitir,

suspender, em qualquer fase, o procedimento administrativo instaurado para a apuração de infrações da

legislação do mercado de valores mobiliários, se o investigado ou acusado assinar termo de compromisso,

obrigando-se a:

I - cessar a prática de atividades ou atos considerados ilícitos pela Comissão de Valores Mobiliários; e

II - corrigir as irregularidades apontadas, inclusive indenizando os prejuízos. 251

A aplicação da multa como penalidade aos infratores da Lei 6.385/76, da Lei 6.404/76, das resoluções da

CVM, bem como das demais normas cujo cumprimento caiba à CVM fiscalizar, sofrerá as limitações previstas

pelo § 1º do art. 11 da Lei 6.385/76, segundo o qual, esta não poderá ser superior ao maior dos seguintes valores:

I) R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais); II) cinquenta por cento do valor da emissão ou operação irregular; ou

III) três vezes o montante da vantagem econômica obtida ou a perda evitada em decorrência do ilícito. Nos casos

de reincidência, o §2º, permite a aplicação de multa de até três vezes o montante dos valores mencionados nas

hipóteses de “I” a “III”.

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112

devessem ser indenizados. Além disso, deveriam ser levadas em conta as penalidades que o

acusado já havia sofrido, como a demissão de seu emprego e a repercussão negativa das

investigações em sua vida profissional, bem como o pagamento de vultuosas quantias à SEC,

acordadas na assinatura do “Consent Decree”.

Dessa maneira, o acusado apresentou à autarquia a proposta de Termo de

Compromisso no qual este pagaria à CVM o valor de R$ 70.000,00 em até cinco dias da

assinatura do termo para que houvesse suspensão do processo administrativo.

A Procuradoria Federal Especializada da autarquia manifestou-se pela

legalidade da proposta, de modo que inexistiria óbice à sua celebração no campo normativo.

Entretanto, esta discordou da alegação do acusado de que não haveria prejuízo a ser

indenizado, em virtude da existência de danos difusos ao Mercado de Valores Mobiliários

decorrentes de sua conduta ilícita.

Nesse sentido, argumentou o órgão que a prática de Insider Trading levaria à

quebra da isonomia existente entre os participantes do mercado, de maneira que diante da

assimetria de informações gerada pela conduta investigada, seria inegável que demais

investidores teriam operado em desvantagem em relação ao acusado, sendo, entretanto,

extremamente difícil identificar os agentes efetivamente lesados e quantificar suas eventuais

perdas.

Conforme a Deliberação CVM nº 390, de 08 de maio de 2001, que dispõe

sobre a celebração de Termo de Compromisso, a aceitação ou recusa do termo cabe

exclusivamente ao colegiado da CVM, após manifestação do Comitê de Termo de

Compromisso (“Comitê”), formado para majorar o valor das perdas decorrentes da conduta

bem como verificar a conveniência e a oportunidade de celebração do acordo.

Dessa maneira, o Comitê, seguindo a manifestação da PFE, manifestou-se pela

existência de dano objetivamente considerado decorrente da conduta do Sr Alexandre Ponzio

de Azevedo, o qual deveria ser levado em consideração para fins de atendimento do requisito

de correção de irregularidades e indenização de prejuízos. Nesse sentido, levou-se em conta

também a orientação do colegiado da autarquia que vinha decidindo que além do

cumprimento dos requisitos estabelecidos em lei, as obrigações decorrentes do Termo de

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113

Compromisso deveriam ser suficientes para desestimular o acusado a praticar futuramente

conduta semelhante252

.

Assim, com o intuito de garantir a indenização por todos os prejuízos

potencialmente suportados pelos investidores e de ter caráter preventivo ao inibir o agente a

praticar novamente a conduta ilícita ou outra próxima àquela, bem como levando em conta o

art. 9º da Deliberação CVM nº 390/01253

, que determina que devem ser analisados na

celebração do Termo de Compromisso a natureza e a gravidade das infrações, os antecedentes

do acusado e a efetiva possibilidade de punição, o Comitê propôs a alteração do montante

oferecido inicialmente para R$ 238.000,00, valor que foi aceito pelo acusado e pelo

Colegiado da autarquia. Desse modo, o Termo de Compromisso foi assinado em 19 de maio

de 2008, tendo sido cumprido, o que levou ao arquivamento do processo.

No PAS CVM nº SP2007/0117 e no PAS CVM nº SP2007/0118, entretanto,

não houve a celebração de Termo de Compromisso, de maneira que os processos correram até

a prolação de decisão de mérito pela autoridade administrativa, no caso, o colegiado da CVM.

Tendo em vista que o fundamento jurídico para os dois processos foi o mesmo,

infração ao art. 155, §1º da Lei 6.404/76, que determina o dever de sigilo dos administradores

e veda a estes negociações com valores mobiliários motivadas por informações privilegiadas

conhecidas em razão de seu cargo, as alegações em ambos os foram extremamente

semelhantes, destacando-se cinco pontos comuns que deram a tônica dos principais debates.

Um primeiro ponto que merece ser destacado foi argumentação preliminar de

ambos os acusados de que a CVM não seria competente para investigar e punir sua conduta,

tendo em vista a inaplicabilidade do §6º do art. 9º da Lei 6.385/76254

, o qual trata da

competência da autarquia.

252

Nesse sentido as negociações de celebração do Termo de Compromisso no PAS CVM nº RJ2001/4474, e no

PAS CVM nº 15/2004, anteriores aos processos analisados no caso, assim como as manifestações recentes no

PAS CVM nº RJ2012/10487 e no PAS CVM nº RJ2012/5036. 253

Art. 9º A proposta de celebração de termo de compromisso será submetida à deliberação do Colegiado, que

considerará, no seu exame, a oportunidade e a conveniência na celebração do compromisso, a natureza e a

gravidade das infrações objeto do processo, os antecedentes dos acusados e a efetiva possibilidade de punição,

no caso concreto.

Parágrafo único. O Colegiado poderá suspender o andamento do processo, após a apresentação da proposta

completa de termo de compromisso, ficando suspenso o processo pela prazo necessário para a sua apreciação,

não superior a sessenta dias. 254

§ 6o A Comissão será competente para apurar e punir condutas fraudulentas no mercado de valores

mobiliários sempre que:

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114

Nesse sentido, houve a alegação, inicialmente, de que tal norma seria

inconstitucional, visto que foi inserida na lei 6.385/76 através do Decreto nº 3.995/01, apesar

do art. 84, VI, “a” da Constituição Federal de 1988255

determinar que Decretos Presidenciais

poderiam dispor apenas sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na

qual se inclui a CVM, não abrindo essa possibilidade para disposições sobre sua

competência.

Como segundo argumento dentro da inaplicabilidade do §6º do art. 9º da Lei

6.385/76, alegaram os acusados que o caput desta norma determina que a autarquia é

competente para fiscalizar e punir condutas fraudulentas no Mercado de Valores Mobiliários,

de maneira que o conceito de “operação fraudulenta” descrito no inciso II, alínea “c” da

ICVM nº 8/79256

, deveria ser observado nos casos em apreço para determinar a extensão da

competência da CVM.

Desse modo, conforme alegavam as defesas, com base na definição de

“operação fraudulenta”, a conduta dos acusados não poderia ser classificada como tal, visto a

inexistência de cunho ardil ou de artifício para enganar terceiro, o que não poderia ser

caracterizado pela simples quebra do dever de lealdade para com a companhia, de modo que

se poderia falar no máximo em posição de desigualdade com os demais investidores,

enxergando-se na conduta “prática não equitativa”, que não seria abrangida pela norma

questionada.

Por último, o §6º do art. 9º da Lei 6.385/76 deveria ser afastado, segundo os

acusados, pois mesmo que se entendesse cabível o enquadramento das condutas em prática

fraudulenta, os incisos deste diploma determinam que a CVM é competente para apurar e

punir as práticas que gerem dano a residentes no Brasil e aquelas que tenham sido cometidas

em território nacional. Assim, o fato das condutas investigadas terem sido realizadas na bolsa

I - seus efeitos ocasionem danos a pessoas residentes no território nacional, independentemente do local em

que tenham ocorrido; e

II - os atos ou omissões relevantes tenham sido praticados em território nacional 255

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

VI - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem

criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; 256

c. operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários, aquela em que se utilize ardil ou artifício

destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de se obter vantagem ilícita de natureza

patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros;

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115

de Nova York seria suficiente para afastar a competência da autarquia nesse sentido, tendo em

vista que não ocorreram no Brasil e, em virtude disso, tampouco teriam gerado prejuízos aos

residentes no país.

Em ambos o processos administrativos o primeiro argumento foi refutado com

base na impossibilidade dos órgãos administrativos afastarem a aplicação de qualquer norma

com base em sua inconstitucionalidade, estando estes vinculados ao princípio da legalidade

que rege a administração pública, devendo aplicar as leis e normas incidentes em cada caso

até que haja manifestação do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de

constitucionalidade ou através de súmula vinculante, determinando sua não aplicação257

.

A questão da incompetência da CVM para processar os casos em função da

impossibilidade de se caracterizar as condutas investigadas como fraudulentas, o segundo

argumento apresentado dentro do primeiro ponto, foi refutada com base em fundamentos

diferentes pelo Diretor-Relator Eli Loria no PAS CVM nº SP2007/0117 e pelo Diretor-

Relator Marcos Barbosa Pinto no PAS CVM nº SP2007/0118.

No primeiro caso, o Diretor-Relator Eli Loria entendeu que não seria possível o

entendimento de que a conduta do acusado, Sr Romano Ancelmo Fontana Filho, não seria

fraudulenta por não se encaixar na definição de “operação fraudulenta” da ICVM nº 8/79.

Para aquele a conduta fraudulenta, mencionada no §6º do art. 9º da Lei 6.385/76, teria amplo

alcance, não se restringindo, portanto, ao conceito mencionado, e assim, traria a ideia de ação

praticada com má-fé, abuso de confiança ou clandestinidade.

Nesse sentido, apresentou o Diretor-Relator o art. 422 do Código Civil258

como

fundamento para demonstrar que a fraude, no campo civil, seria a negação da boa-fé, que

assim como a probidade, deve ser guardada pelos contratantes em todas as fases contratuais,

tanto no momento da celebração como no da execução do contrato.

257

Nesse sentido, no PAS CVM nº SP2007/0117 o Diretor-Relator Eli Loria cita a manifestação do Sr Ministro

Gilmar Mendes no Mandado de Segurança nº 25888 no qual este relata que até o advento da Emenda

Constitucional nº 16, de 1965, que introduziu o controle concentrado de constitucionalidade no ordenamento

brasileiro, admitia-se a recusa por parte de órgãos não-jurisdicionais à aplicação de normas entendidas como

inconstitucionais. Entretanto, diante de grande ampliação promovida pelo Constituição Federal de 1988 da

possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade, legitimando uma grande quantidade de entes a

apresentar uma extensa gama de situações ao controle por parte do Supremo Tribunal Federal, acabou o

constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. 258

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os

princípios de probidade e boa-fé.

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116

Do mesmo modo, no campo penal, a fraude apareceria diversas vezes, como

elemento e qualificadora de diversas condutas típicas, bem como no título de capítulos do

Código Penal, como o capítulo VI, intitulado “Do estelionato e outras fraudes”. Esta

apareceria também na Lei 7.492/86, que define os crimes contra o Sistema Financeiro

Nacional, em seu art. 4º, gestão fraudulenta, e no art. 19, obter mediante fraude financiamento

em instituição financeira. Podendo ser entendida, assim, como mecanismo de obtenção de

vantagem ilícita através do engano de terceiro, induzindo-o em erro.

Dessa maneira, a expressão contida no §6º do art. 9º da Lei 6.385/76 deveria

ser tomada de maneira abrangente, como gênero, de modo que a conduta do agente poderia,

inegavelmente, nela encaixar-se, visto que o Insider atuaria de forma consciente utilizando a

informação privilegiada para negociar de forma livre com os demais investidores que a

desconhecem, de modo que o primeiro transaciona na certeza da obtenção de lucros, enquanto

os demais, por não conhecerem o evento futuro, de que tem consciência o primeiro,

certamente contabilizarão prejuízos.

No segundo caso, o Diretor-Relator Marcos Barbosa Pinto apesar de concordar

que a expressão “condutas fraudulentas” não estaria restrita à definição de “operação

fraudulenta” presente na ICVM nº 8/79, tendo a primeira sentido genérico, interpretou que o

tipo legal imputado ao acusado, Sr Luiz Gonzaga Murat Junior, de quebra do dever de

lealdade, não poderia ser considerado como uma conduta fraudulenta, de maneira que o §6º

do art. 9º da Lei 6.385/76 não seria, de fato, aplicável ao caso.

Entretanto, na visão do Diretor-Relator o dispositivo mencionado seria uma

norma especial não exaustiva, de maneira que não abrangeria toda a competência da CVM, a

qual não ficaria restrita, portanto, aos casos ali listados, definindo, apenas, a competência da

autarquia para alguns casos em particular, quais sejam, aqueles em que a conduta do agente

fosse fraudulenta.

Nesse sentido, para os casos de quebra do dever de lealdade, a competência da

CVM seria definida pelo art. 11 da Lei 6.385/76, o qual, em seu caput, determina que a

autarquia pode impor aos infratores da Lei 6.385/76, da Lei 6.404/76, de suas resoluções, bem

como de outras normas legais que o cumprimento lhe incumbe fiscalizar, as penalidades

listadas nos incisos I a VIII seguintes.

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Nesse sentido, teria restado comprovada a violação pelo acusado da Lei

6.404/76, mais especificamente de seu art. 155, §1º, o qual, dentro do dever de lealdade dos

administradores, trata do seu dever de sigilo, bem como veda a realização de transações com

valores mobiliários valendo-se de informações privilegiadas que conhecem em virtude de seu

cargo na companhia.

Desse modo, visto que o art. 11 da Lei 6.385/76 conferiria competência à

CVM para investigar e punir os administradores que violassem os dispositivos da Lei

6.404/76 sempre que esta fosse aplicável, ainda que a infração fosse cometida fora do

território nacional, e como a companhia a que o acusado estava vinculado preencheria os

requisitos necessários para a aplicação da segunda, sendo estes sede e administração no país,

logo a CVM seria competente para investigar e punir o Sr Luiz Gonzaga Murat Junior em

função de sua conduta.

Quanto à alegação de incompetência da CVM fundada na falta das condições

previstas nos incisos I e II do §6º do art. 9º da Lei 6.385/76, quais sejam, dano a investidores

brasileiros e conduta praticada no Brasil, em ambos os processos esta foi refutada com base

nos mesmos fundamentos.

Conforme entenderam os diretores, estas condições foram satisfeitas tendo em

vista, primeiramente, que teria havido inegável dano à imagem da companhia com o

surgimento das acusações envolvendo seus administradores, bem como prejuízos a seus

acionistas com eventuais perdas do valor de suas ações e também de maneira indireta

decorrentes da quebra do dever de lealdade dos diretores.

As consequências para os investidores do mercado de capitais brasileiro

poderia, inclusive, ser demonstrada através da tabela comparativa trazida nos Termos de

Acusação, que expõe como o preço das ADRs de emissão da Perdigão negociadas na NYSE e

o preço das ações da companhia negociadas no Brasil estariam intimamente relacionados, de

maneira que alterações nos valores dos papéis e no volume das transações envolvendo títulos

da Perdigão em qualquer um desses mercados teriam o condão de influenciar diretamente os

títulos negociados no outro.

Realidade esta derivada da possibilidade de realização da operação de

arbitragem no Mercado de Capitais, que ocorre quando títulos equivalentes, referentes à

mesma companhia, são negociados em diferentes mercados por preços diferentes, o que,

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118

tendo em vista que ambos tem a mesma natureza e garantem para seus titulares os mesmos

direitos, trata-se de situação transitória, de maneira que a normalidade do mercado é que

tenham preços equivalentes.

A situação de normalidade será atingida através da operação de arbitragem,

onde o agente compra aqueles títulos no mercado em que seu preço estiver mais baixo e

vende os equivalentes no mercado onde estes estiverem sendo negociados por preço maior,

auferindo lucro e influenciando diretamente no valor dos negócios envolvendo aqueles títulos,

puxando o preço para baixo, onde estiverem sendo vendidos mais caro, e elevando o preço,

onde estiverem sendo vendidos por valor menor.

Nesse sentido, a inexistência ou até impossibilidade de quantificação destes

danos não significaria que não estivessem comprovados ou até que não existiriam, pelo

contrário, seriam piores do que eventuais prejuízos quantificáveis, visto que atingiram a

confiança na transparência e eficiência do mercado como um todo, desestimulando os

investidores de realizar transações, bem como afastando potenciais novos participantes.

Em relação ao local de realização das condutas ilícitas, as investigações teriam

demonstrado que as ordens de compra e de venda de ADRs de emissão da Perdigão na bolsa

de Nova York partiram do Brasil, de modo que a conduta teria ocorrido, no todo ou em parte,

em território nacional. Dessa maneira, o fato das ordens terem sido executadas em bolsa

estrangeira não teria o condão de retirar da CVM a competência para analisar a conduta dos

acusados, devendo ser assegurados os meios necessários para que a autarquia possa atingir a

consecução de seus objetivos institucionais, previstos no art. 4º da Lei 6.385/76259

.

259

Art . 4º O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários exercerão as atribuições

previstas na lei para o fim de:

I - estimular a formação de poupanças e a sua aplicação em valores mobiliários;

II - promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações, e estimular as

aplicações permanentes em ações do capital social de companhias abertas sob controle de capitais privados

nacionais;

III - assegurar o funcionamento eficiente e regular dos mercados da bolsa e de balcão;

IV - proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores do mercado contra:

a) emissões irregulares de valores mobiliários;

b) atos ilegais de administradores e acionistas controladores das companhias abertas, ou de administradores

de carteira de valores mobiliários.

c) o uso de informação relevante não divulgada no mercado de valores mobiliários

V - evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar condições artificiais de

demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários negociados no mercado;

VI - assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários negociados e as companhias

que os tenham emitido;

VII - assegurar a observância de práticas comerciais equitativas no mercado de valores mobiliários;

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Um segundo ponto, comum aos dois processos, foi a alegação de que uma

eventual condenação pela CVM representaria “Bis In Idem” tendo em vista que os acusados

já haviam respondido pelos mesmos fatos juntamente à SEC nos Estados Unidos, obrigando-

se ao pagamento de vultuosos valores a título de restituição de ganhos auferidos ilicitamente e

também de penalidades civis, bem como ao cumprimento de outras condições para

encerramento dos processos judiciais movidos pela agência norte-america.

Em resposta a estas alegações, os diretores manifestaram-se no sentido de que

a aplicação do “Bis in Idem” deve ser feita de maneira restritiva no campo administrativo, de

forma que órgãos administrativos com diferentes competências podem penalizar o

administrado pela mesma conduta, conforme decisões do Supremo Tribunal Federal260

.

Ainda, no Direito Penal, conforme mencionou o Diretor Marcos Barbosa Pinto

no PAS CVM nº SP2007/0118, onde o “Bis in Idem” é expressamente acolhido na legislação,

este deve ser visto como princípio geral e não como regra absoluta, de maneira que o artigo 8º

do Código Penal trata da pena cumprida no estrangeiro por conduta também condenada no

Brasil, caso em que a pena cumprida fora atenuará a imposta em território nacional, quando

diferentes, ou será nela computada, quando idênticas.

Além disso, a assinatura do “Consent Decree” pelos acusados com a SEC, por

ser mero acordo e não uma sanção, não teria o condão de impedir a investigação pela CVM e

a aplicação das penalidades que entendesse cabíveis, até mesmo porque, conforme

manifestado pelo Diretor Eli Loria em seu voto no PAS CVM nº SP2007/0117, constava do

“Consent Decree” a previsão de que as investigações por parte da CVM continuariam.

Não obstante isso, como o acordo com a SEC teria ocorrido para impedir o

prosseguimento de ação judicial contra os acusados, este não poderia impedir o andamento do

processo administrativo no Brasil, tendo em vista tratar-se de vias de naturezas distintas.

Dessa maneira, a valoração das obrigações assumidas no acordo celebrado nos Estados

Unidos como penalidades já sofridas teria o condão apenas de ser levada em conta pelo

julgador no momento de fixação da sanção administrativa em território nacional, mas não de

impedir sua aplicação.

VIII - assegurar a observância no mercado, das condições de utilização de crédito fixadas pelo Conselho

Monetário Nacional. 260

Nesse sentido, as decisões do STF no MS nº 23796/DF, no MS 23728/PR e no HC 61480/DF, conforme

trazido pelo Diretor Marcos Barbosa Pinto em sua manifestação de voto no PAS CVM nº SP2007/0117, de

relatoria do Diretor Eli Loria.

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120

Um terceiro ponto levantado em ambos os processos foi a alegação, por parte

dos acusados, de que no momento da realização das transações, classificadas como Insider

Trading, as informações a respeito da preparação pela Sadia de oferta pública de aquisição de

ações que lhe dessem o controle da Perdigão ainda não eram concretas e, portanto, não

poderiam ser consideradas relevantes. Nesse sentido, os acusados não teriam agido motivados

por informações privilegiadas, mas movidos por outras questões de mercado, visto que ainda

não seria possível saber se a oferta de fato ocorreria.

Em relação a este ponto, manifestaram-se os diretores no sentido que o

requisito para violação do art. 155, §1º da Lei 6.404/76 não é relativo ao grau de certeza da

informação, mas à sua capacidade de influir de modo ponderável na cotação de valores

mobiliários. Nesse sentido, o simples vazamento da informação de que a Sadia estudava a

viabilidade da realização de uma OPA com o intuito de adquirir o controle da Perdigão já

seria suficiente para alterar a cotação dos títulos de ambas as companhias.

Quanto ao momento em que uma informação deixa de ser comum e passa a ser

relevante, conforme estudado no capítulo 3 deste trabalho, não depende, de fato, de seu grau

de concretude, ou seja, se há certeza quanto à sua realização. Nesse sentido, estabeleceu a

CVM, inicialmente através da ICVM nº 31/84 e posteriormente através da ICVM nº 358/02,

critérios objetivos para a identificação de um ato ou fato relevante, apresentando, inclusive,

um rol exemplificativo de situações as quais, com frequência, configurariam informação

relevante.

Os critérios elaborados pela CVM para verificar a relevância de uma

informação estão diretamente relacionados à sua influência na decisão dos investidores de

comprar, de vender, de estabelecer o preço e de exercer direitos em relação aos valores

mobiliários261

. Há ainda, a possibilidade de determinar através de um teste de relevância262

, a

261

Art. 1º - Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução, qualquer deliberação da assembléia geral ou

dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato ocorrido nos seus negócios que

possa influir de modo ponderável:

I. na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta; ou

II. na decisão dos investidores em negociar com aqueles valores mobiliários; ou

III. na determinação de os investidores exercerem quaisquer direitos inerentes à condição de titular de

valores mobiliários emitidos pela companhia. 262

Um dos testes mais importantes da doutrina brasileira é aquele apresentado em: EIZIRIK, Nelson, A Lei das

S/A cit., p. 373, segundo o qual, uma informação será privilegiada quando: (i) tem um caráter razoavelmente

preciso, ou seja, refere-se a um fato, não a meros rumores, apresentando, pois, um mínimo de materialidade; (ii)

não está disponível para o público; (iii) é tida como “price sensitive”, isto é, poderia, caso divulgada, afetar a

cotação dos títulos; e (iv) refere-se a valores mobiliários ou a seus emissores.

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partir de qual momento uma informação passa a ter importância no mercado, ensejando o

estrito cumprimento dos deveres por parte dos administradores e de seus subordinados para

evitar seu vazamento e garantir o desfecho mais favorável à companhia de qualquer ato ou

fato relevante que tenha surgido em seu interior.

Um quarto ponto defendido pelos acusados, e que está intimamente ligado com

o terceiro, acima abordado, é que no momento em que foi dada a ordem de venda das ADRs

na bolsa de Nova York, já era pública a oferta de aquisição da Sadia por ações da Perdigão

que lhe dessem o controle da companhia, de maneira que não se poderia mais falar em

informação privilegiada. Dessa maneira, procuraram os acusados afastar a acusação de Insider

Trading sob a alegação de que no momento de compra dos títulos as informações não eram

concretas, conforme o ponto anterior, e no momento das vendas, as informações já não eram

privilegiadas, mas públicas.

Os diretores entenderam que essa alegação, mesmo que verdadeira, não teria o

condão de tornar a conduta dos acusados regular, de maneira que a venda das ADRs

anteriormente à divulgação do fato relevante, referente à intenção de aquisição do controle de

uma companhia por outra, seria um agravante, mas sua ausência não a tornaria lícita.

A ilicitude decorrente da infração ao art. 155, §1º, imputada aos acusados,

decorreria não da simples compra ou venda de valores mobiliários por diretor de companhia

em momento anterior à divulgação de fato relevante, mas da negociação destes títulos,

motivada por informação relevante ainda não divulgada ao mercado, com o único intuito de

auferir vantagem patrimonial, independentemente da efetiva obtenção desses ganhos

pecuniários, conforme precedentes da CVM263

, conduta realizada pelos acusados, como teria

restado comprovado pelas investigações.

Um quinto ponto relevante levantado pela defesa na esfera administrativa foi a

inaplicabilidade do art. 155,§1º ao caso, em virtude da inexistência de vínculo funcional dos

263

Nesse sentido o Processo Administrativo Sancionador CVM nº 22/04, julgado em 20.06.2007, no qual o

Presidente da autarquia, na ocasião Relator do processo, manifestou o entendimento de que a obtenção de lucro

não constitui elemento do tipo Insider Trading, citando trecho de seu voto no Processo Administrativo

Sancionador CVM nº 04/04, julgado em 28.06.2006, no qual estabeleceu que “a finalidade obter vantagem

constitui elemento subjetivo do tipo, que o faz doloso, e que se traduz na intenção do agente de produzir um

resultado. A produção do resultado, em si mesma – isto é, no caso concreto, a efetiva obtenção da vantagem

visada – é elemento objetivo, não se confunde com a finalidade (que é a intenção do agente), e não integra a

conduta descrita nos arts. §§ 1º a 4º da Lei das S.A., e no art. 13 da Instrução 358/02”, ocasião em que

mencionou precedente no mesmo sentido, qual seja, o julgamento do Inquérito Administrativo nº 17/02, julgado

em 25.10.2005.

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acusados com a emissora dos valores mobiliários por estes negociados, o que levaria ao não

surgimento de um dever de lealdade dos mesmos para com a companhia, de maneira que seria

incabível, portanto, a afirmação de que sua conduta teria levado à quebra de um dever que não

teria sequer nascido.

Os diretores entenderam, entretanto, que a Lei não restringe a realização de

Insider Trading por administrador à negociação com ações de emissão da companhia a que

este esteja vinculado, de modo que o legislador teria levado em conta que este pode, em

função de seu vínculo funcional, ter acesso a informações capazes de alterar a cotação de

títulos emitidos por outras companhias, abrangendo a vedação a realização de operações no

Mercado de Capitais também a esta hipótese.

Não obstante isso, a quebra do dever de lealdade com a companhia estaria

relacionada, também, ao prejuízo que a conduta do Insider poderia gerar àquela, prejudicando

a conclusão de negócios importantes ao promover, por exemplo, a alteração de preço de

ativos que a companhia pretendia adquirir, e até mesmo gerando dano à sua imagem ao

vinculá-la a condutas ilícitas praticadas por seus administradores no mercado, conforme teria

ocorrido no caso analisado.

Além disso, o Diretor Eli Loria argumentou no PAS CVM nº SP2007/0117

dentro da lógica que propõe a doutrina norte-americana da “Missaproppriation Theory”264

, no

sentido de que as informações referentes à oferta que a Sadia pretendia fazer direcionadas ao

controle da Perdigão pertenceriam a primeira, e os diretores, delas tendo conhecimento em

virtude de vínculo laboral se apropriaram das mesmas e as utilizaram em benefício próprio,

prejudicando não só a imagem da companhia, mas diminuindo a confiança dos investidores

em seus administradores e do mercado em geral, havendo efetiva quebra do dever de lealdade.

Enfrentados os principais argumentos trazidos pela defesa dos acusados no

Processo Administrativo Sancionador CVM nº SP2007/0117 e no Processo Administrativo

Sancionador CVM nº SP2007/0118, respectivamente, Sr. Romano Ancelmo Fontana Filho e

Sr Luiz Gonzaga Murat Junior, o colegiado decidiu, em ambos os casos, pela condenação à

pena de inabilitação temporária pelo prazo de cinco anos para o exercício do cargo de

264

O Diretor-Relator Eli Loria, para fundamentar seu posicionamento, menciona, em nota de rodapé, a

jurisprudência norte-americana, em especial o caso “US v. O’Hagan”, no qual um advogado externo de uma

companhia foi condenado pela Suprema Corte por violação das disposições norte americanas que vedam o

Insider Trading por negociar ações e opções de compra de uma empresa que seria alvo de oferta pública de

aquisição que seria realizada pela companhia para a qual o advogado prestava serviços.

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administrador ou conselheiro fiscal de companhia aberta, prevista no art. 11, IV da Lei

6.385/76.

A análise da penalidade imposta pela CVM aos acusados permite concluir que

houve, por parte da autarquia, consideração quanto às obrigações que estes assumiram perante

a SEC nos Estados Unidos. Nesse sentido, percebe-se que não houve aplicação de multa,

possibilidade prevista no inciso II do art. 11 da Lei 6.385/76, apesar da autarquia ter

reconhecido no julgamento a ocorrência de danos efetivos ao mercado, muito provavelmente

porque os acusados já haviam se comprometido a pagar somas vultuosas ao órgão norte-

americano.

Também quanto à dosimetria da inabilitação temporária, apesar da Lei permitir

que seja aplicada até vinte anos, sendo vedada a inabilitação perpétua ou que tenha efeitos de

perpetuidade265

, a autarquia aplicou apenas um quarto da pena máxima, ou seja, cinco anos.

Apesar disso, deve ser levado em consideração que a inabilitação temporária trata-se de

penalidade extremamente severa, cabendo sua aplicação apenas nos casos de violação dolosa

às normas disciplinadoras do Mercado de Capitais266

.

4.6 O caso Sadia-Perdigão no judiciário brasileiro

Tendo em vista a existência de indícios de ocorrência de crime de “Uso

Indevido de Informação Privilegiada”, previsto no art. 27-D da Lei 6.385/76, foi enviada

comunicação ao Ministério Público Federal para que, caso entendesse cabível, iniciasse

processo penal, visto que o ilícito em que os supostos agentes teriam incorrido é de ação penal

pública incondicionada.

Assim, após analisar o caso com base nas investigações que haviam sido feitas

e nas provas que tinham sido produzidas ao longo destas, o Ministério Público Federal pediu,

no ano de 2009, a abertura de ação penal contra os Srs Luiz Gonzaga Murat Junior e Romano

265

Caso de acusado de idade avançada em que se infere que provavelmente não viverá suficientemente para

poder exercer novamente o cargo para o qual foi inabilitado, conforme EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.;

PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de Capitais cit., p. 344. 266

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 343.

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Ancelmo Fontana Filho, ex-executivos da Sadia, e contra o Sr Alexandre Ponzio de Azevedo,

ex-funcionário do banco ABN AMRO Real S.A, tendo sido a primeira denúncia oferecida

pelo órgão no país com base no crime previsto pelo art. 27-D da Lei 6.385/76267

.

O processo, de numeração 0005123-26.2009.403.6181 (2009.61.81.005123-4),

tramitou na 6ª Vara Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e

Lavagem de Valores da Justiça Federal de São Paulo e contou com a atuação da CVM como

assistente de acusação, conforme previsão do art. 26 da Lei 7.492, de 16 de junho de 1986268

.

Em relação ao acusado Sr Alexandre Ponzio de Azevedo, o Ministério Público

Federal entendeu que este preenchia os requisitos necessários para a concessão do benefício

da suspensão condicional do processo, previsto pelo art. 89 da Lei 9.099, de 26 de setembro

de 1995, quais sejam, pena mínima cominada do crime ser igual ou inferior a um ano, não

estar sendo processo ou ter sido condenado por outro crime, bem como que o processado não

seja reincidente em crime doloso, que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a

personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias da conduta autorizem a concessão do

benefício e não seja indicado ou cabível a substituição da pena privativa de liberdade por

outra restritiva de direito, sendo estes três últimos requisitos oriundos da suspensão

condicional da pena, mas necessários também na suspensão condicional do processo.

Assim, ao Sr Alexandre Ponzio de Azevedo foi proposto acordo pelo

Ministério Público Federal, de maneira que caso aceitasse cumprir algumas condições,

previstas nos parágrafos do art. 89 supra citado269

, seria promovida a suspensão do processo

267

Conforme notícia veiculada pela Assessoria de Comunicação da Procuradoria da República em São Paulo no

sítio do Ministério Público Federal na internet, em 06.05.2009, intitulada MPF-SP oferece primeira denúncia de

Insider Trading no Brasil. 268

Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante

a Justiça Federal.

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no art. 268 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-

lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, será admitida a assistência da Comissão de Valores Mobiliários - CVM,

quando o crime tiver sido praticado no âmbito de atividade sujeita à disciplina e à fiscalização dessa Autarquia, e

do Banco Central do Brasil quando, fora daquela hipótese, houver sido cometido na órbita de atividade sujeita à

sua disciplina e fiscalização. 269

§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá

suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - proibição de freqüentar determinados lugares;

III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

§ 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao

fato e à situação pessoal do acusado.

§ 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime

ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.

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penal em relação a ele. Tendo aceitado o acordo, o acusado obrigou-se a comparecer em juízo

bimestralmente ao longo de três anos, período pelo qual o processo ficaria suspenso, bem

como a prestar serviços a comunidade por 4 horas semanais durante 6 meses. Verificado o

cumprimento pelo acusado de todas as condições acordadas ao final o período de suspensão

processual de três anos, este seria arquivado, conforme, de fato, ocorreu.

O mesmo benefício foi solicitado pelos demais processados, não tendo sido,

entretanto, apresentada nenhuma proposta de acordo pelo Ministério Público Federal que

levasse à suspensão condicional do processo também em relação a estes, para os quais a ação

penal seguiu normalmente.

No âmbito do judiciário debateu-se, como questão preliminar, a competência

da justiça federal para processar e julgar os acusados pela conduta que lhes estava sendo

imputada. Questionaram os réus acerca da possibilidade do inciso VI do art. 109 Constituição

Federal de 1988 restringir a competência da justiça federal atribuída pelo inciso IV do mesmo

artigo.

Nesse sentido, o segundo atribuiria competência à justiça federal para apreciar

as infrações em detrimento de bens, serviços e interesses da União, incluídas suas autarquias e

empresas públicas, enquanto o inciso VI, ao mencionar que esta justiça seria competente para

processar e julgar, nos casos determinados por lei, crimes contra o Sistema Financeiro

Nacional e contra a ordem econômico-financeira, teria restringido sua competência, nos

crimes de natureza financeira, aos casos em que a lei tivesse dito expressamente tratar-se de

crime contra o Sistema Financeiro Nacional ou contra a ordem econômica-financeira270

.

§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por

contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.

§ 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.

§ 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

§ 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores

termos. 270

Nesse sentido o voto do Ministro do STF Marco Aurélio no RE 198.488, transcrito em parte pelo Sr. Juiz

Federal Substituto Marcelo Costenari Cavali em sua sentença no processo analisado. Segue trecho do voto o

Ministro Marco Aurélio: No tocante à segunda parte, o nobre Relator percebeu bem, sob o ângulo da

especialidade, a regra do inciso VI do artigo 109, ao colocar em segundo plano a norma geral do inciso IV

desse mesmo artigo. Por esta última, temos que compete à Justiça Federal julgar demandas em que se tenha a

prática do ato em detrimento de bens, serviços ou interesses da União. E aqui potencializo o vocábulo interesse.

Não é interesse comum, genérico; é um interesse todo, próprio, direto; interesse jurídico da União. Já a regra

aplicável à espécie, o inciso VI, revela que o exame dos crimes contra a organização do trabalho de

competência, independentemente de lei, da Justiça Federal e, aí sim, também nos casos determinados por lei,

contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira. Indaga-se: para o tipo que cogita o processo, tem-

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Esse argumento não foi acatado, contudo, pelo juiz da causa que entendeu que

o inciso VI seria norma ampliativa da competência prevista pelo inciso IV, de maneira que

não restringiria a competência da justiça federal para analisar infrações financeiras apenas

para os casos previstos em lei como tal, mas teria o condão de trazer para a justiça federal o

processamento e julgamento de crimes que, a priori, seriam apreciados pela justiça

estadual271

.

Dentro desse entendimento, não caberia à justiça federal a apreciação de todos

os crimes financeiros, mas apenas daqueles que trouxessem prejuízos para bens, interesses ou

serviços da União, de suas autarquias e empresas públicas, cabendo à justiça estadual, por sua

vez, processar e julgar os crimes financeiros que não fossem previstos em lei como tal e que

não trouxessem prejuízos à União.

Assim, para que ficasse atestada a competência da justiça federal no caso

analisado, procurou-se observar se a conduta típica prevista no art. 27-D da Lei 6.385/76,

“Uso Indevido de Informação Privilegiada”, imputada aos acusados no processo, apesar de

não ser descrita como crime contra o Sistema Financeiro Nacional, mas como crime contra o

Mercado de Capitais, seria, na prática, um crime financeiro e se a conduta prevista geraria

danos à bens, serviços ou interesses da União.

O art. 1º da Lei 7.492/86272

, que trata dos crimes contra o Sistema Financeiro

Nacional, incluiu dentre as atividades de instituição financeira a custódia, emissão

se uma regra prevendo de maneira incisiva, direta e frontal a competência da Justiça Federal? Não. E não

havendo, logicamente, cai-se na vala comum da competência da justiça do Estado. 271

Nesse sentido o voto do Ministro do STF Sepúlvida Pertence no RE nº 502.915-8, transcrito em parte pelo Sr.

Juiz Federal Substituto Marcelo Costenari Cavali em sua sentença no processo analisado. Segue trecho do voto

mencionado: Data vênia, contudo, estou convencido de que o art. 109, VI não esgota a disciplina quanto à

competência da Justiça Federal relativamente quanto aos crimes contra o sistema financeiro nacional e a ordem

econômico-financeira. Referido inciso, na verdade, antes amplia do que restringe a competência da Justiça

Federal: possibilita ele, com efeito, que as peculiaridades de determinadas condutas lesivas ao sistema

financeiro e à ordem econômico-financeira, possa a legislação ordinária subtrair da Justiça Estadual a

competência para julgar causas que se recomenda sejam apreciadas pela Justiça Federal, mesmo que não

abrangidas pelo artigo 109, VI, da Constituição. Do contrário, poderiam surgir situações em que o crime seria

julgado pela Justiça Estadual mesmo que cometido contra bens, serviços e interesses, por exemplo do Banco

Central, com repercussões quiçá em toda a ordem econômico-financeira brasileira. Seria impingir ao inciso VI

o sentido diametralmente oposto ao que se extrai da interpretação sistemática e teleológica dos demais

dispositivos relativos à competência da Justiça Federal. 272

Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou

privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou

aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão,

distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:

I - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de

poupança, ou recursos de terceiros;

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distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários, atividades

estas realizadas tipicamente no Mercado de Capitais. Dessa maneira, concluiu o magistrado

não haver dúvidas de que o Mercado de Capitais é parte integrante do Sistema Financeiro

Nacional e que, portanto, os crimes contra este mercado constituem também delitos contra o

Sistema Financeiro Nacional, afetando interesse direto da União.

Nesse sentido, até a entrada em vigor da Lei nº 10.303/01, os ilícitos contra o

Mercado de Capitais, até então tidos como infrações apenas de natureza administrativa,

tornaram-se ilícitos penais previstos nos arts. 27-C, “Manipulação de Mercado”, 27-D, “Uso

Indevido de Informação privilegiada”, e 27-E, “Exercício Irregular de Cargo, Profissão,

Atividade ou Função”, da Lei 6.385/76. Assim, ao promover a inserção desses dispositivos,

teria o legislador visado suprir uma lacuna na Lei 7.492/86, que ao disciplinar os crimes

contra o Sistema Financeiro Nacional, não incriminou as condutas ocorridas especificamente

no Mercado de Capitais273

.

Quanto a seu potencial ofensivo aos bens, serviços e interesses da União,

concluiu o magistrado que o comportamento desleal dos Inside Traders prejudicaria não

somente os demais investidores, naturalmente desprotegidos frente aos grandes acionistas e

outros detentores de informações privilegiadas, mas teria, também, o condão de prejudicar o

mercado, afetando diretamente a confiança e a lisura de suas atividades.

Nesse sentido, a ofensa à bem ou interesse da União seria frontal, porquanto a

conduta dos acusados despertaria a desconfiança em todos os atores do mercado, o que

poderia implicar na alteração dos investimentos realizados, com prejuízos evidentes ao país e

ao serviço de fiscalização do Mercado de Capitais brasileiro, realizado pela CVM, que teria

como objetivo a preservação de um ambiente hígido e eficiente.

Além dos argumentos mencionados acima, o magistrado trouxe, ainda,

precedente do STJ274

em um conflito de competência no qual este decidiu pela competência

II - a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual. 273

EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B.; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas, Mercado de

Capitais cit., p. 538. 274

PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. INTERESSE

DA UNIÃO NA HIGIDEZ, CONFIABILIDADE E EQUILÍBRIO DO SISTEMA FINANCEIRO. LEI 6.385/76,

ALTERADA PELA LEI 10.303/01. AUSÊNCIA DE PREVISÃO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA

FEDERAL. ART. 109, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. APLICAÇÃO. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO

E INTERESSE DIRETO DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

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da justiça federal para processar e julgar processo penal que tinha como objeto infração ao art.

27-C da Lei 6.385/76, de modo que os fundamentos usados seriam igualmente aplicáveis ao

art. 27-D da mesma Lei. Dessa maneira, restou decidido pela competência da justiça federal

para analisar as acusações imputadas ao Srs. Luiz Gonzaga Murat Junior e Romano Ancelmo

Fontana Filho.

Outra questão relevante debatida no processo, dessa vez quanto ao mérito, diz

respeito ao bem jurídico tutelado pelo art. 27-D da Lei 6.385/76, bem como aos elementos

que compõem o tipo penal previsto por este artigo. Nessa matéria, os acusados alegaram que

não haviam ofendido o bem jurídico protegido pela norma tendo em vista que negociaram

títulos na bolsa de Nova York, de modo que as transações realizadas não teriam afetado o

mercado de capitais brasileiro, bem como alegaram não terem auferido lucro com as

negociações.

Quanto à definição do bem jurídico tutelado pela norma, o magistrado, apoiado

no entendimento de alguns doutrinadores275

, entendeu tratar-se da proteção à confiança dos

investidores na transparência das informações existentes no Mercado de Capitais, a qual seria

1. O fato de tratar-se do sistema financeiro ou da ordem econômico-financeira, por si só, não justifica a

competência daJustiça Federal, embora a União tenha interesse na higidez,confiabilidade e equilíbrio do sistema

financeiro.

2. A Lei 6.385/76 não prevê a competência da Justiça Federal, porém é indiscutível que, caso a conduta possa

gerar lesão ao sistema financeiro nacional, na medida em que põe em risco a confiabilidade dos aplicadores no

mercado financeiro, a manutenção do equilíbrio dessas relações, bem como a higidez de todo o sistema, existe o

interesse direto da União.

3. O art. 109, VI, da Constituição Federal não tem prevalência sobre o disposto no seu inciso IV, podendo ser

aplicado à espécie, desde que caracterizada a relevância da questão e a lesão ao interesse da

União, o que enseja a competência da Justiça Federal.

4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do

Estado de São Paulo, um dos suscitados.

(CC 82961/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, Terceira Seção,

julg. 27.05.2009, DJe 22.06.2009) 275

Conforme citado na decisão: PROENÇA, José Marcelo Martins, “Insider Trading”- Regime Jurídico do uso

de informações privilegiadas no mercado de capitais, Quartier Latin, São Paulo, 2005, p. 322, para quem o bem

jurídico protegido é “a confiabilidade e, por corolário, a confiança do mercado”. BTTENCOURT, César

Roberto; BREDA, Juliano José, Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e contra o Mercado de Capitais,

Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 368, por sua vez acreditam que o tipo penal “protege as relações de

confiança, transparência e lealdade entre todos os participantes do mercado de capitais, espaço que deve se

qualificar pela igualdade de oportunidades oferecida aos investidores”. SANCTIS, Fausto Martin de,

Punibilidade no Sistema Financeiro Nacional, Campinas, Millenium, 2003, p. 107, defende que a norma visa a

proteger “aconfiança no mercado de valores mobiliários”. PAULA, Áureo Natal de, Crimes contra o Sistema

Financeiro Nacional e o Mercado de Capitais, 3ª ed., Curitiba, Juruá, 2008, p. 27 menciona que a norma pretende

garantir o “regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários de mercadorias e de futuros, no mercado

de balcão ou no mercado de balcão organizado, que não pode ser ilaqueado na fé pública que merece”.

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tutelada pela adoção no ordenamento brasileiro do princípio do full and fair disclosure,

desenvolvido nos Estados Unidos276

.

Esse regime se justificaria, pois a realização de transações motivadas por

informações privilegiadas, não disponíveis, portanto, para todos os investidores, promoveria

uma grande distorção econômica, abalando a credibilidade, estabilidade e eficiência do

Mercado de Capitais, minando o interesse das pessoas em investir sua poupança em

companhias que, com tais recursos, poderiam produzir e crescer, podendo, assim, gerar

desenvolvimento para o país.

Assim, o argumento dos acusados de que não teriam ofendido o bem jurídico

da norma em virtude de não terem negociados títulos no mercado brasileiro não foi aceito,

portanto, pelo magistrado. Nesse sentido, a existência de transações, ordenadas no Brasil, com

uso de informações privilegiadas referentes à companhias brasileiras e obtidas em função de

vínculo funcional com uma destas já seriam suficientes para levar desconfiança aos

investidores a respeito da completude e da confiabilidade das informações disponíveis,

ficando, assim, menos propensos a investir suas reservas no Mercado de Capitais, restando,

assim, configurada a ofensa ao bem jurídico protegido pelo art. 27-D da Lei 6.385/76.

Houve manifestação do juízo, também, no sentido de que apenas seria possível

que se discutisse a inexistência de influências negativas ao Mercado de Capitais brasileiro

caso os acusados estivessem sendo processados com fulcro no delito previsto pelo art. 27-C

da mesma Lei, “Manipulação do Mercado”, situação inaplicável em relação ao delito de

Insider Trading, visto a diferença de natureza dos delitos, de modo que no primeiro seria

necessária a comprovação de alterações nos preços dos valores mobiliários no mercado

nacional para que pudesse ser atestada a ofensa ao bem jurídico tutelado.

Apesar da desnecessidade de comprovação de danos efetivos ao mercado

brasileiro para que se reconhecesse a ofensa ao bem jurídico tutelado pelo art. 27-D pela

conduta dos acusados, a CVM, que atuava como assistente de acusação, demonstrou, através

de gráfico comparativo, que o preço dos ativos de emissão da Perdigão negociados na NYSE

276

Conforme mencionado na decisão do caso, esse princípio teria sido explicado no Brasil em COMPARATO,

Fábio Konder, A regra do sigilo absoluto nas ofertas públicas de aquisição de ações, “Revista de Direito

Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro”, vol. 49, São Paulo, RT, jan/mar 1983, p. 58, como “a profilaxia

do mercado, por meio da mais ampla e completa informação ao público”, de modo que se partia do pressuposto

de que “o investidor é bastante adulto para, uma vez adequadamente informado, tomar as decisões econômicas

que julgar melhores, segundo seus próprios interesses, dos quais é o único juiz competente”

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e daqueles negociados na BOVESPA estavam intimamente relacionados, de maneira que

alterações em um destes teria o condão de afetar diretamente o outro.

O magistrado valeu-se, ainda, do princípio da ubiquidade trazido pelo art. 6º do

Código Penal277

para justificar que independentemente da compra e venda de ADRs ter se

realizado nos Estados Unidos, a realização de atos executórios em território nacional e a

ocorrência do resultado no país seriam suficientes para que fosse a conduta abrangida pelo

ordenamento pátrio.

Quanto à caracterização do tipo penal, observou o magistrado, a partir da

análise do art. 27-D, que o agente deve ter uma obrigação de manter sigilo, deve deter uma

informação relevante ainda não revelada ao mercado, e deve, ainda, utilizar, em nome próprio

ou de terceiros, aquela informação relevante em negócios envolvendo valores mobiliários.

Em relação ao primeiro elemento, observadas as normas incidentes sobre o

dever de sigilo aplicáveis ao caso, qual sejam a ICVM nº 358/01 e o art. 155 da Lei 6.404/76,

restou indubitável o dever dos acusados de manter sigilosas as informações a que tinham

acesso em função de seu vínculo com a companhia, tendo em vista que eram administradores

desta, respondendo inclusive pelo seu vazamento através de seus subordinados e de pessoas

de sua confiança.

O segundo elemento, a posse de informação relevante ainda não divulgada,

também teria sido comprovada no processo, tendo em vista que a relevância de uma

informação dependeria de sua capacidade de alterar a decisão de investimento (compra, venda

ou manutenção) de um investidor racional, de modo que a intenção de uma das maiores

companhias nacionais realizar uma OPA direcionada ao controle de outra gigante do mesmo

setor teria esse potencial de mexer diretamente com o mercado. Nesse sentido, entendeu-se

que no âmbito de verificação da prática de Insider Trading, a mera expectativa de realização

de um negócio vultuoso já deveria ser considerada um fato relevante.

Assim, teriam os acusados quebrado um dever de lealdade existente com a

companhia em função de caber ao administrador uma postura rígida diante da constatação de

que algum fato ou ato, ainda que sujeito a diversos condicionantes, fosse passível de ser

277

Art. 6º - Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte,

bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.

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considerado relevante, devendo abster-se de negociar valores mobiliários que pudessem ter a

cotação afetada por sua divulgação ao mercado.

A ocorrência do terceiro elemento também estaria presente no caso analisado,

de modo que as investigações teriam comprovado que no momento de aquisição de ADRs da

Perdigão na bolsa de Nova York os acusados já conheciam a informação acerca da possível

oferta planejada pela Sadia, principalmente porque ambos eram diretores da companhia, tendo

participado inclusive de reuniões que envolveram a preparação da oferta.

O caráter delituoso da conduta, nesse sentido, poderia ser reforçado com a

constatação de que os acusados até o momento das primeiras negociações nunca haviam

comprado ADRs da Perdigão na NYSE, o que indicaria que seus atos foram orientados pelas

informações referentes à OPA.

Quanto à necessidade de obtenção de lucro nas transações, manifestou-se o

magistrado no sentido de que este não deveria ser visto como um dos elementos do tipo penal

do Insider Trading, o qual seria, na verdade, crime formal, de maneira que a obtenção de

ganhos pecuniários indevidos com as transações constituiria mero exaurimento do delito.

Apesar disso, por tratar-se de crime doloso, a intenção do agente em obter lucro com as

negociações deveria estar presente.

Os acusados alegaram também que a condenação pelo judiciário brasileiro

representaria “Bis in Idem” tendo em vista que já haviam sido condenados

administrativamente pela CVM e haviam assinado “Consent Decree” nos Estados Unidos

com a SEC.

Quanto à primeira situação, o “Bis in Idem” foi afastado em função da

possibilidade prevista no ordenamento brasileiro da incidência de sanções civis,

administrativas e penais cumulativamente, conforme precedente do STJ278

.

O segundo ponto também foi afastado com base no art. 8º do Código Penal279

e

na jurisprudência do STJ280

, que demonstrariam não haver nenhum óbice ao julgamento no

278

Conforme trecho do julgado “REsp 677.585, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julg. 06.12.2005., DJe

13.02.2006” , trazido na sentença, que diz: Inexiste violação ao princípio do ne bis in idem, tendo em vistaa

possibilidade de instauração concomitante de ação civil pública ede processo administrativo, in casu, perante a

SDE – Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Ministério da Justiça, para investigação e punição de um

mesmo fato, porquanto as esferas de responsabilização civil, penal e administrativa são independentes .

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Brasil de caso já apreciado pelo judiciário estrangeiro. Essa possibilidade ficaria ainda mais

clara no caso analisado, tendo em vista a ausência de manifestação do poder judiciário norte-

americano na esfera penal e também na esfera civil, na qual o processo foi encerrado pelo

acordo entre as partes por meio do “Consent Decree”.

Assim, foi prolatada sentença em primeira instância na justiça federal em

16.02.2011, na qual o Sr Luiz Gonzaga Murat Junior foi condenado ao cumprimento da pena

privativa de liberdade de 1 ano e 9 meses de reclusão, em regime inicial aberto, a qual foi

substituída pela prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, com proibição

do exercício de cargo de administrador e/ou conselheiro fiscal de companhia aberta pelo prazo

de seu cumprimento. Além disso, foi condenado, também, à pena de multa no valor de R$

349.711,53.

O Sr Romano Ancelmo Fontana Filho, por sua vez, foi condenado à pena

privativa de liberdade de 1 ano 5 meses e 15 dias de reclusão, em regime inicial aberto, a qual

foi substituída pela prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, com a

proibição do exercício de cargo de administrador e/ou conselheiro fiscal de companhia aberta

pelo prazo de seu cumprimento. Foi condenado, também, ao pagamento de multa no valor de

R$ 374.940,52.

Da sentença de primeiro grau recorreram tanto os acusados quanto o Ministério

Público Federal e a CVM. Os primeiros não concordaram com os fundamentos da sentença

279

Art. 8º - A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando

diversas, ou nela é computada, quando idênticas. 280

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. APLICAÇÃO DA LEI BRASILEIRA. COMPETÊNCIA

JURISDICIONAL. CRIME INICIADO EM TERRITÓRIO NACIONAL. SEQÜESTRO OCORRIDO EM

TERRA. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME PROBATÓRIO. CONDUÇÃO DA VÍTIMA PARA

TERRITÓRIO ESTRANGEIRO EM AERONAVE. PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE. LUGAR DO

CRIME - TEORIA DA UBIQÜIDADE. IRRELEVÂNCIA QUANTO AO EVENTUAL PROCESSAMENTO

CRIMINAL PELA JUSTIÇA PARAGUAIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. ORDEM

DENEGADA.

1. Aplica-se a lei brasileira ao caso, tendo em vista o princípio da territorialidade e a teoria da ubiqüidade

consagrados na lei penal.

2. Consta da sentença condenatória que o início da prática delitiva ocorreu nas dependências do aeroporto de

Tupã/SP, cuja tese contrária exigiria exame profundo do acervo fático-probatório, incabível em sede de habeas

corpus, sendo assegurado ao acusado o reexame das provas quando do julgamento de recurso de apelação

eventualmente interposto, instrumento processual adequado para tal fim.

3. Afasta-se a competência da Justiça Federal, pela não-ocorrência de quaisquer das hipóteses previstas no art.

109 da Constituição Federal, mormente pela não-configuração de crime cometido a bordo de aeronave.

4. Não existe qualquer óbice legal para a eventual duplicidade de julgamento pelas autoridades judiciárias

brasileira e paraguaia, tendo em vista a regra constante do art. 8º do Código Penal.

5. Ordem denegada. (HC 41892/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julg 02.06.2005, DJe

22.08.2005)

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que gerou sua condenação e pretendiam rediscutir suas alegações em segunda instância. Já a

acusação discordou das penas aplicadas, requerendo em segundo grau o aumento destas em

razão dos cargos ocupados pelos acusados na Sadia, de modo que teriam não só o dever de

não se utilizar das informações privilegiadas, mas também de proteger o mercado de seu uso

indevido por terceiros. Em virtude do descumprimento desse dever em relação ao mercado

requereu a acusação, também, a condenação dos acusados ao pagamento de dano moral

coletivo.

Os recursos foram julgados pela quinta turma do Tribunal Regional Federal da

3ª região, de modo que a decisão de segunda instância rechaçou os argumentos da defesa com

os mesmos fundamentos apresentados pela sentença de primeira instância, citando-a e

transcrevendo trechos desta em diversos momentos.

Dessa maneira, as multas aplicadas aos acusados foram mantidas, tendo o

tribunal determinado, com fulcro no art. 49 do Código Penal281

e no art. 2º, V da Lei

Complementar 74, de 07 de janeiro de 1994282

, que o valor arrecadado com as penalidades

pecuniárias fosse destinado ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), uma vez que

inexistiria previsão na Lei 6.385/76 determinando o destino das multas.

As penas privativas de liberdade, por sua vez, foram aumentadas em função do

entendimento de que condenações em outras searas, como no campo administrativo, não

deveriam ser levadas em conta no momento da dosimetria, em virtude da independência de

uma em relação às demais, bem como da ausência de prova das críticas aos acusados pela

mídia especializada e pelos pares no meio empresarial. Assim, o Sr Luiz Gonzaga Murat

Junior foi condenado à pena de 2 anos 6 meses e 10 dias de reclusão, em regime aberto, e o Sr

Romano Ancelmo Fontana Filho foi condenado à pena de 2 anos e 1 mês de reclusão, também

em regime aberto.

A grande inovação, promovida pela decisão de segunda instância, foi a

condenação dos acusados ao pagamento de dano moral coletivo, conforme havia sido

281

Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e

calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

§ 1º - O valor do dia-multa será fixado pelo juiz não podendo ser inferior a um trigésimo do maior salário

mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes esse salário.

§ 2º - O valor da multa será atualizado, quando da execução, pelos índices de correção monetária. 282

Art. 2º Constituirão recursos do FUNPEN:

(...)

V - multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado;

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requerido pela acusação. Segundo entenderam os desembargadores seria interessante ao

Estado tutelar interesses difusos de diversos investidores que aplicam seus recursos no

Mercado de Capitais, sendo seu correto funcionamento essencial para o desenvolvimento

econômico e social de um país. Dessa maneira, as regras básicas desse ambiente financeiro

consistiriam no nivelamento de informações entre os investidores e na transparência das

negociações, sendo de interesse público a defesa da regularidade e do bom funcionamento do

Mercado de Valores Mobiliários.

A proteção coletiva dos participantes do Mercado de Capitais tornou-se

possível por meio da Lei 7.913, de 07 de dezembro de 1989, que, ao instituir a ação civil

pública de responsabilidade por danos causados aos investidores desse mercado, garantiu

tutelas de diferentes naturezas, uma direcionada a impedir a ocorrência de irregularidades

potencialmente danosas e outra direcionada ao ressarcimento dos danos sofridos de forma

individual pelos investidores em virtude de tais irregularidades, sendo aplicável diante de

ilicitudes dentre as quais se destaca o Insider Trading283

.

Nesse sentido, as ações dos acusados teriam afetado diretamente os diversos

participantes do Mercado de Capitais, visto que não só teriam incorrido na conduta prevista

pelo art. 27-D da Lei 6.385/76, mas também teriam violado os arts. 153 e 155 da Lei 6.404/76

e o art. 1º, I e II da Lei 7.913/89284

.

Dessa forma, com o intuito de reparar os danos promovidos aos direitos

transindividuais dos investidores e com fulcro no art. 387, IV do Código de Processo Penal285

,

283

ZACLIS, Lionel, Proteção Coletiva dos Investidores no Mercado de Capitais, São Paulo, RT, 2007, p. 150 –

152. 284

Art. 1º Sem prejuízo da ação de indenização do prejudicado, o Ministério Público, de ofício ou por solicitação

da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou

obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado,

especialmente quando decorrerem de:

I - operação fraudulenta, prática não eqüitativa, manipulação de preços ou criação de condições artificiais de

procura, oferta ou preço de valores mobiliários;

II - compra ou venda de valores mobiliários, por parte dos administradores e acionistas controladores de

companhia aberta, utilizando-se de informação relevante, ainda não divulgada para conhecimento do mercado,

ou a mesma operação realizada por quem a detenha em razão de sua profissão ou função, ou por quem quer que

a tenha obtido por intermédio dessas pessoas;

III - omissão de informação relevante por parte de quem estava obrigado a divulgá-la, bem como sua

prestação de forma incompleta, falsa ou tendenciosa. 285

Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:

(...)

IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos

sofridos pelo ofendido.

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no art. 6º, VI e VII da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990286

, (Código de Defesa do

Consumidor), no art. 1º, caput e IV da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985287

, (Lei da Ação

Civil Pública), bem como na Lei 7.913/89288

foram os acusados condenados à reparação de

danos morais coletivos. Nesse sentido, os valores das penalidades dessa natureza foram

calculados com base no art. 11, §1º, III da Lei 6.385/76289

que dispõe sobre o cálculo da multa

aplicada pela CVM às infrações administrativas no Mercado de Capitais.

Assim, a título de dano moral coletivo, o Sr Luiz Gonzaga Murat Junior foi

condenado ao pagamento de R$ 254.335,66, enquanto o Sr Romano Ancelmo Fontana Filho

foi condenado ao pagamento de R$ 305.036,36, não se confundindo estes valores com as

multas já instituídas aos acusados, constituindo condenações de naturezas diversas, sendo

ambas exigíveis, conforme determinado no acórdão.

Os valores decorrentes do pagamento do dano moral coletivo pelos acusados

seriam destinados à CVM, com base no art. 13, caput da Lei 7.347/85290

e no art. 2º, §2º da

Lei 7.913/89291

, que, conforme determinação do tribunal, deveria empregá-los na promoção

286

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos

patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica

aos necessitados. 287

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade

por danos morais e patrimoniais causados:

(...)

IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. 288

Conforme TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de, A Lei 7.913, de 7 de Dzembro de 1989 – A tutela

judicial do mercado de valores mobiliários, Revista dos Tribunais, ano 80, vol. 667, maio de 1991, p. 70- 71, a

promulgação da Lei 7.913/89 foi importante marco na disciplina do Mercado de Capitais brasileiro, porque,

primeiramente, atestou a existência de interesses metaindividuais nesse campo, reconhecendo o legislador que as

relações estabelecidas no Mercado de Valores Mobiliários transcendem os interesses imediatos e diretos dos

investidores, das empresas e dos agentes do mercado. Segundo, ao listar o Ministério Público como parte

legítima ativa, ainda que não exclusiva, na ação civil pública dessa natureza reconheceu a existência de interesse

público dentro desse mercado. Por último, reconheceu o legislador a insuficiência da enumeração contida no art.

1º da Lei 7.347/85, que deixaria ao desabrigo o interesse de diversos grupos, dentre eles os investidores do

Mercado de Capitais. 289

Art. 11. A Comissão de Valores Mobiliários poderá impor aos infratores das normas desta Lei, da lei de

sociedades por ações, das suas resoluções, bem como de outras normas legais cujo cumprimento lhe incumba

fiscalizar, as seguintes penalidades:

(...)

§ 1º - A multa não excederá o maior destes valores:

(...)

III - três vezes o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência do ilícito. 290

Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por

um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e

representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados. 291

Art. 2º As importâncias decorrentes da condenação, na ação de que trata esta Lei, reverterão aos investidores

lesados, na proporção de seu prejuízo.

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de eventos educativos, bem como na edição de material informativo com o intuito de

conscientizar os investidores quanto aos malefícios da prática de Insider Trading.

(...)

§ 2º Decairá do direito à habilitação o investidor que não o exercer no prazo de 2 (dois) anos, contado da data

da publicação do edital a que alude o parágrafo anterior, devendo a quantia correspondente ser recolhida como

receita da União.

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5 CONCLUSÃO

No presente trabalho procurou-se analisar diversos aspectos que permeiam a

conduta de Insider Trading, o ambiente onde se consuma, os elementos que o caracterizam,

seus eventuais efeitos positivos e negativos para o mercado, a legislação incidente, suas

diferenças em relação a outras figuras, bem como características das normas que regulam a

conduta para que se pudesse, finalmente, analisar julgados proferidos pelo judiciário e por

órgãos administrativos, muitos destes essenciais para a formação de uma doutrina sobre o

tema, dentre os quais destacamos o caso Sadia-Perdigão por ter levantado questões que até

então restavam controversas.

Inicialmente, procurou-se demonstrar de modo sistêmico o funcionamento do

Mercado de Capitais, local onde ocorre o uso de informações privilegiadas em negócios

envolvendo valores mobiliários, partindo-se do todo onde este está inserido, o Mercado

Financeiro, para que se pudesse entender de qual forma o primeiro se situa na conexão entre

agentes deficitários e superavitários que permite o desenvolvimento da economia, e de qual

maneira essa conexão seria promovida pelo Mercado de Capitais.

Visto isso, abordou-se o Insider Trading em diversos aspectos, onde foram

estabelecidas premissas necessárias para o estudo de casos que seria realizado no capítulo

seguinte. No conceito, determinou-se o significado de informação privilegiada, tomada muitas

vezes como sinônimo de informação relevante, sendo a primeira, em verdade, uma

informação relevante ainda não divulgada ao mercado.

Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários procurou desde a ICVM nº

31/84 determinar o momento em que uma informação passaria a ser relevante, surgindo

assim, o dever de ser revelada ao mercado, exceto nos casos em que sua divulgação pudesse

trazer prejuízo a interesse legítimo da companhia.

Apesar da existência dos critérios listados pela CVM e da criação de testes pela

doutrina para que se pudesse verificar se determinada informação é relevante, sua

caracterização como tal ainda é extremamente subjetiva, dependendo da análise de seu

potencial de influenciar a decisão de investidores de comprar ou vender determinados valores

mobiliários, bem como de exercer direitos de titularidade em relação a estes.

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Em função da inexistência de critérios objetivamente apuráveis para a

caracterização de determinada informação como relevante, pode-se constatar, a partir da

análise de casos que é recorrente a alegação pelos acusados de Insider Trading que a

informação supostamente utilizada para justificar transações com valores mobiliários não era

relevante à época dos negócios, visto que não se tratava de uma decisão concreta da

companhia, faltando, naquele momento, certeza quanto à sua efetiva realização.

Como uma possível solução para esta questão, no sentido do que vem

decidindo a CVM em seus Processos Administrativos Sancionadores e no do que foi

manifestado na sentença judicial no caso Sadia-Perdigão, a informação deveria ser vista como

relevante a partir do primeiro momento em que a companhia trata-la como um acontecimento

possível.

Nesse sentido, a partir do momento em que um ato ou fato fosse abordado

como viável em reunião interna ou externa da companhia, ficando registrado em ata ou

qualquer outro documento oficial que a possibilidade de seu acontecimento foi verificada por

seus Insiders ou por alguns destes com agentes externos que poderiam auxiliar em sua

ocorrência, como advogados e bancos de investimento, a informação já deveria ser tratada

como relevante, ficando vedada, às pessoas abrangidas pela Lei, negociar valores mobiliários

que teriam sua cotação alterada caso aquela informação fosse tornada pública, mesmo como

mera especulação.

Assim, por exemplo, no caso de uma companhia que resolva verificar a

viabilidade de uma oferta pública de aquisição do controle de outra do mesmo setor, a

informação acerca dessa intenção da companhia já poderia ser considerada relevante desde a

primeira reunião que tratou de sua realização, ficando seus administradores impedidos de

negociar valores mobiliários de emissão de qualquer companhia que pudesse ter seu preço

afetado pela divulgação de que a primeira pretenderia adquirir o controle da segunda, mesmo

que ainda não fosse certa a realização da oferta. Os mesmos administradores passariam,

também, a ser responsáveis nesse momento pelo sigilo da informação, garantindo que esta não

vazasse nem fosse utilizada por seus subordinados e por terceiros de sua confiança.

Dentro dessa lógica a informação deixaria de ser encarada como relevante no

momento em que houvesse manifestação formal da companhia, mesmo que no ambiente

interno de sua administração, determinando a impossibilidade de realização de um ato

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relevante ou de ocorrência de um fato relevante, o que poderia ser registrado, por exemplo,

através da ata de uma reunião em que essa impossibilidade tivesse restada demonstrada ou

decida.

Na ausência desta decisão em sentido negativo, a inércia da companhia em

seguir com a realização da informação também poderia ser tomada como elemento

descaracterizante de sua relevância. Nesse sentido, entendemos como tempo razoável o prazo

de 1 ano, equivalente à duração de um exercício social, sem manifestação favorável da

companhia à sua efetivação, ou seja, não havendo nenhum documento nesse período que

demonstrasse sua intenção em realizar determinada informação potencialmente relevante, esta

se tornaria uma informação comum.

Outro tema importante que foi tratado no presente trabalho foram as discussões

a respeito dos efeitos produzidos pelo uso de informações privilegiadas no Mercado de

Capitais, dentro dos debates a respeito do combate ou não à conduta. Questão comumente

deixada de lado pela doutrina pátria, não é, ainda hoje, pacífica a proibição ao Insider

Trading, havendo autores, principalmente norte-americanos que a contestam por diferentes

motivos, conforme vimos.

Apesar do aparente espanto que possa trazer para muitos a existência de

doutrinas que defendem a desregulação da conduta, as críticas feitas à proibição tem grande

relevância para o aperfeiçoamento da disciplina. Nesse sentido, por exemplo, o Insider

Trading é prática de mercado há muito inserida no ambiente financeiro e extremamente difícil

de ser combatida. Diariamente milhares de informações são produzidas pelas companhias,

passando pelo conhecimento de muitas pessoas, sendo, portanto, muito complicado

determinar quais informações devem ser protegidas e quais condutas são de fato delituosas.

Apesar disso, as distorções que o uso de informações privilegiadas acarretam

ao mercado justificam, ao final, a criação de normas que tornem ilícito este comportamento.

Nesse sentido, a existência de assimetria de informações no Mercado de Capitais cria grandes

óbices ao seu desenvolvimento, não só afastando investidores, temerosos de perder o capital

investido, mas fazendo com que sejam celebrados negócios ruins em que uma das partes

perde muito dinheiro para que outra possa ganhar quantias vultuosas.

A ocorrência de transações desta natureza contraria o ideal de mercado de que

para que este se desenvolva é preciso que ambas as partes ganhem com a transação, de

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maneira que quanto mais bons negócios estejam disponíveis e sejam realizados diariamente,

mais capital e novos bons negócios serão atraídos para aquele mercado, enquanto a existência

de negócios ruins, em que uma das partes transaciona sabendo que a prestação que oferece

não vale a contraprestação que receberá, mas o faz para maximizar seus ganhos em

detrimento da outra, conforme demonstrou AKERLOFF292

, afasta os bons negócios do

mercado, atraindo transações cada vez piores, podendo levar à extinção daquele mercado.

Dessa maneira, concordamos com o combate ao Insider Trading, mas as

doutrinas que defendem sua desregulação ou alterações no modo como a conduta é coibida

devem ser cada vez mais observadas, pois trazem sempre uma crítica ao modelo existente, o

que pode levar ao seu aperfeiçoamento com o menor prejuízo possível ao mercado, tendo em

vista que restrições geradas à determinadas práticas em prol do combate à comportamentos

indesejados afetam, muitas vezes, a eficiência de seu funcionamento.

O estudo do tema nos permitiu perceber como a jurisprudência ocupa papel de

destaque na construção de uma doutrina do Insider Trading. A prática da análise de

jurisprudência, incomum no direito brasileiro, mas que vem se tornando cada vez mais

importante em território nacional, foi essencial para perceber que em momento anterior à

existência de leis amplas que vedassem o uso de informações privilegiadas, os tribunais,

administrativos no Brasil e judiciais nos Estados Unidos, perceberam os efeitos negativos da

conduta aos mercados, investidores e acionistas das próprias companhias a que estava ligado

o Insider e deram à normas existentes interpretação protetiva.

Dessa maneira, diversos aspectos relativos à conduta delitiva foram

determinados em julgados sobre o tema, como por exemplo, a desnecessidade de obtenção de

lucro com as transações, conforme decisões reiteradas da CVM nesse sentido, a possibilidade

de responsabilização administrativa dos Insiders secundários, bem como a existência de

deveres fiduciários dos administradores para com os acionistas, e não só em relação à

companhia, e a possibilidade do Insider de sofrer sanções em diferentes searas em função da

mesma conduta.

Observada a importância dos casos julgados envolvendo o uso de informações

privilegiadas no Mercado de Capitais, o caso Sadia-Perdigão se destaca por ter sido a primeira

292

AKERLOF, George A., The Market for “Lemons” cit., p. 488 – 500.

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vez que o judiciário brasileiro se manifestou a respeito do crime de Insider Trading, presente

em nosso ordenamento por meio do art. 27-D da Lei 6.385/76, inserido pela Lei 10.303/01.

Vale ressaltar que este caso é extremamente atual, tendo em vista que ainda há

a possibilidade dos acusados recorrem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) da decisão

condenatória de segunda instância proferida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª região

(TRF-3) em recurso de apelação, publicada em 15.02.2013, em relação a qual foram opostos

embargos de declaração, ainda não apreciados até o fechamento deste trabalho.

A conduta dos acusados, por ter sido efetivada em território norte-americano,

tendo em vista que foram negociados valores mobiliários de emissão de companhia brasileira

na bolsa de Nova York, gerou investigações tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos,

levando a abertura de processo administrativo e de processo judicial no primeiro e ao

oferecimento de ação civil pela SEC no segundo. Em vista destas consequências, este caso é

relevante em diversos aspectos.

Primeiramente, destacou-se decisão proferida tanto pela CVM quanto pelo

judiciário brasileiro no sentido de que os acordos realizados pelos réus em território

estrangeiro para encerrar processos judiciais nos quais eram acusados pela mesma conduta

não teriam o condão de impedir o prosseguimento dos processos no Brasil, tendo em vista que

o “Consent Decree” celebrado fora do país não teria natureza punitiva, mas meramente

obrigacional, não configurando sua eventual condenação em “Bis in Idem”.

Uma segunda questão relevante foi a análise pela CVM de que sua

competência para investigar e punir condutas no Mercado de Capitais, atribuída a princípio

pelo §6º do art. 9º da Lei 6.385/76, não se restringe àquelas que se encaixem no conceito de

“operação fraudulenta”, trazida pelo inciso II da ICVM nº 8/79, apesar do primeiro mencionar

que a autarquia combaterá condutas fraudulentas, devendo esta expressão ser interpretada,

contudo, de maneira ampla.

Como terceira questão relevante, houve o reconhecimento de que o art. 155, §§

1º e 4º da Lei 6.404/76 não restringem a realização da conduta delituosa de Insider Trading à

negociação de títulos emitidos pela companhia a que o Insider está ligado. Nesse sentido, a

previsão legal abrangeria a utilização de qualquer informação privilegiada obtida em virtude

do vínculo laboral com uma companhia.

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Um quarto ponto relevante foi o reconhecimento da competência da justiça

federal para processar e julgar o crime de Insider Trading. Assim, apesar dos crimes contra o

Mercado de Capitais não serem previstos legalmente como crimes contra o Sistema

Financeiro Nacional, estes seriam, na realidade, crimes desta natureza, entendendo o julgador,

por meio de uma interpretação sistêmica dos incisos IV e VI do art. 109 da Constituição

Federal, que caberia à justiça federal apreciar delitos que gerassem dano à bens, serviços e

interesses da União, mesmo que sua competência para o julgamento de conduta dessa

natureza não fosse prevista expressamente em Lei.

Como quinto fator relevante, destacou-se a determinação dos elementos que

compõem o tipo penal do “uso indevido de informação privilegiada”, no qual apenas poderão

incorrer pessoas que tiverem um dever de sigilo em relação às informações privilegiadas

conhecidas em função de vínculo com a companhia, as quais deverão conhecer informação

relevante e utilizá-la para transacionar valores mobiliários com a intenção de auferir

acréscimo patrimonial. Nesse sentido a obtenção de lucro com as transações não seria

elemento do tipo, mas mero exaurimento do delito, o qual se caracterizaria, portanto, como

crime formal.

Como sexta contribuição de relevo promovida pelo caso Sadia-Perdigão, e

última aqui listada, a condenação dos acusados pela decisão de segundo grau do judiciário ao

pagamento de dano moral coletivo consistiu em verdadeira inovação no campo da proteção

aos direitos difusos dos investidores do Mercado de Capitais.

Esta possibilidade, já prevista desde promulgação da Lei 7.913/89, ainda não

vinha sendo reconhecida pela praxis como sanção cabível aos acusados da realização de

práticas danosas ao mercado que não atingissem exclusivamente determinados agentes, mas

que afetassem a coletividade, gerando prejuízos de difícil quantificação.

O mecanismo de condenação em dano moral coletivo constitui importante

instrumento, nesse sentido, para promover o desenvolvimento do Mercado de Capitais

brasileiro, tendo em vista que dá maior segurança aos investidores quanto à proteção de seu

capital e serve também como inibidor de comportamentos indesejados, visto que seus agentes

sofrerão condenações pecuniárias que terão a função de reparar violações aos direitos

transindividuais dos participantes do mercado, apesar de não ser possível verificar o prejuízo

exato gerado por sua conduta.

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