UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, … · Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    ANDERSON ROBERTI DOS REIS

    A COMPANHIA DE JESUS NO MXICO:

    EDUCAO, BOM GOVERNO E GRUPOS LETRADOS

    (SCULOS XVI-XVII)

    Verso Corrigida

    So Paulo

    2011

  • ANDERSON ROBERTI DOS REIS

    A Companhia de Jesus no Mxico:

    educao, bom governo e grupos letrados

    (sculos XVI-XVII)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Histria Social do Departamento de Histria

    da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo para a

    obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Orientadora:

    Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva

    Verso corrigida

    De acordo:

    Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva

    So Paulo

    2011

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho,

    por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo

    e pesquisa, desde que citada a fonte.

  • REIS, Anderson R. dos. A Companhia de Jesus no Mxico: educao, bom

    governo e grupos letrados (sculos XVI e XVII). Tese apresentada

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias da Universidade de So Paulo para

    a obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

    Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________

    Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________

  • RESUMO

    REIS, Anderson R. dos. A Companhia de Jesus no Mxico: educao, bom governo e

    grupos letrados (sculos XVI e XVII). 2011. 280 f. Tese (Doutorado) Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    Esta tese pretende analisar as particularidades que envolveram a organizao da viagem, a

    instalao e o incio das misses da Companhia de Jesus no Mxico a partir de 1572.

    Tendo em vista a dedicao dos jesutas educao e s atividades urbanas durante as trs

    primeiras dcadas aps a sua chegada, o presente estudo examina os fundamentos que

    nortearam os projetos de ensino nos colgios da Ordem na capital do vice-reino. Parte-se

    da premissa que aqueles religiosos compartilhavam certa noo de bom governo que

    embasava suas prticas educativas e missionrias. Valendo-se de tal princpio, prope-se

    aqui uma reflexo a respeito da participao e influxo dos jesutas na sociedade mexicana

    dos sculos XVI e XVII por meio de suas atividades citadinas, como jurisconsultos, e

    colegiais, como professores e formadores de grupos letrados.

    Palavras-chave: Companhia de Jesus; Mxico; Educao; Amrica Colonial.

  • ABSTRACT

    REIS, Anderson R. dos. The Society of Jesus in Mexico: education, good government

    and literate groups (16th

    and 17th

    centuries). 2011. 280 f. Tese (Doutorado) Faculdade

    de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    This thesis aims to analyze the peculiarities involved in the organization of the trip, the

    installation and the beginning of the missions of the Jesuits in Mexico since 1572. Given

    the dedication of Jesuit towards education and urban activities during the first three

    decades after their arrival, this study examines the rationale that guided the teaching

    projects in their colegios in the capital of the viceroyalty. We start with the premise that

    those religious shared a certain notion of good government that supported their

    educational and missionary practices. Drawing on this principle, we propose here a

    reflection on the participation and influence of the Jesuits in Mexican society in the

    sixteenth and seventeenth centuries through their urban activities, as lawyers, and

    collegians, as teachers and forgers of literate groups.

    Key-words: Society of Jesus; Mexico; Education; Colonial America.

  • AGRADECIMENTOS

    Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva, antes de qualquer coisa, pela acolhida

    na USP e pela orientao precisa e paciente: muito obrigado! S quem teve a oportunidade

    de trocar ideias com a Janice sabe o quanto uma conversa pode ser inspiradora. E imaginar

    que perdi a conta das vezes em que me reuni com ela para bater papo. Sinto-me

    privilegiado por ter sido seu aluno e compartilhado a elaborao deste trabalho com ela.

    Cabe lembrar, contudo, que os possveis defeitos desta tese so de minha responsabilidade.

    Aos doutores Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron e Jos Alves de Freitas

    Neto pelas valiosas crticas e sugestes feitas no exame de qualificao. Tive a sorte de

    contar com leituras rigorosas e arguies elegantes. Aproveito, tambm, para agradecer ao

    Zeron pela generosidade de ter compartilhado alguns livros sobre os jesutas na Amrica

    que, sabemos, s ele possui. E ao Z Alves, parceiro em numerosos projetos e utopias,

    trs palavras que conseguem apenas resumir a minha gratido: muito obrigado, amigo!

    Ao Prof. Dr. Leandro Karnal pela amizade e interlocuo ao longo dos ltimos

    oito anos. Boa parte do meu interesse pelo estudo da Companhia de Jesus no Mxico se

    deve s diversas vezes em que conversamos sobre as trajetrias da evangelizao na

    Amrica. O Karnal tambm dono de uma riqussima biblioteca muitas vezes desfalcada

    em razo dos longos emprstimos que fiz. Mea culpa... E muito obrigado!

    Nos ltimos cinco anos, tive a oportunidade e o prazer de conhecer diferentes

    pessoas que colaboraram para a realizao desta tese. A todos sou muito grato. Ao Prof.

    Dr. Jean-Claude Laborie, da Universit Jean-Moulin Lyon 3, pelas ideias propostas ainda

    na fase inicial da pesquisa. Ao Prof. Dr. Federico Navarrete Liares, da Universidad

    Nacional Autnoma de Mxico, e a sua esposa, Edith Llamas, da Universidad

    Iberoamericana, pelo auxlio e dicas ao longo do perodo em que estive no Mxico para

    pesquisar. Por intermdio de Edith Llamas, conheci o Prof. Dr. Alfonso Mendiola Meja e

    o Pe. Rafael Ignacio Rodrguez Jmenez, S. J., que me franqueou o acesso ao Archivo

    Histrico de la Provincia Mexicana de la Compaa de Jess na Cidade do Mxico. Por

    fim, agradeo Profa. Dra. Antonella Romano, do European University Institute,

    Florence, pelas sugestes oferecidas durante curso ministrado na Universidade de So

    Paulo, em agosto de 2009.

  • Os amigos que ganhei no perodo da ps-graduao compensaram as longas

    jornadas de estudo (quase sempre solitrio) e as agruras da pesquisa acadmica e da

    burocracia universitria. Com eles, dividi no apenas o transporte e as dirias em viagens e

    congressos, mas tambm sonhos e ideias. Por isso, agradeo ao Duda (que alguns teimam

    em chamar de Luiz Estevam) pelo companheirismo e pelos projetos que partilhamos nos

    ltimos anos. Saudades, meu caro, de nossa estada no Mxico e das infinitas conversas

    regadas a rocknroll. O Marcus Vincius, outro integrante da trupe que foi ao Mxico

    mgico em 2007, um dos caras mais engraados que conheci, daqueles que do leveza

    at mesmo a visita a um archivo. Obrigado, Marquinhos, por nossas conversas e pelo

    convvio, com os quais aprendi bastante. O Lus Guilherme Kalil tambm da turma

    daqueles que, apesar de srios, fazem rir e com quem vale a pena conversar, de poltica a

    futebol. Valeu, Kalil! Estamos juntos...

    Profa. Cida Baslio, do Grupo Drummond, que compreendeu o meu

    afastamento das salas de aula ao longo dos anos nos quais minha pesquisa foi financiada.

    Obrigado pela ateno e generosidade.

    Car Murgel, pelo auxlio com as questes operacionais na Unicamp durante

    os meses em que redigi a tese. Sem seu traquejo e esprito prtico para resolver impasses,

    eu teria enlouquecido antes do ponto final.

    Aos amigos de toda hora, que, de to presentes nos ltimos anos, so a famlia

    de que no abro mo: Andrezo, Edu, Fbio, Joel, Mrcio, Montanha, Piu, Rodrigo, Will,

    Z Cludio... Gente da melhor qualidade. Ao Rafael, que tambm desta estirpe, pelas

    constantes palavras de apoio e pelas discusses sobre a contemporaneidade que sempre

    me fizeram pensar e ir alm.

    rapaziada do futebol, que nem parece varziano tamanha a organizao. Para

    no correr o risco de, trado pela memria, ser injusto, estendo o meu muito obrigado a

    todo o pessoal do Porto (V. Galvo) e do Razes (Jd. Cabuu) pela amizade e

    camaradagem s quartas e aos domingos, chova ou faa sol. Eles me chamam de

    professor, mas, em geral, quem aprende sou eu.

    Mara, com quem partilhei os meus segredos nos ltimos anos. Obrigado

    pelo carinho, amor e compreenso, linda! Pessoas especiais, como ela, tm linhagem. O

    Favali, a Ivete e o Johnny so sinnimos de encontros divertidos, regados a bom papo,

    bohemia e, o principal, carinho. Gracias, amigos...

  • Faltam-me palavras para descrever a minha gratido D. Maria, minha me.

    Talvez dizer que agradeo por tudo seja o mais simples e adequado a fazer aqui, ciente de

    que tudo ainda insuficiente para externar o quanto devo a ela. Se pude seguir adiante e

    alcanar meus objetivos porque sei que posso contar com ela para o que der e vier.

    Muitssimo obrigado, me!

    Fundao de Apoio Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo

    financiamento desta pesquisa durante trs anos. A bolsa e a reserva tcnica me deram a

    tranquilidade de que precisava para fazer a tese e participar de reunies acadmicas.

    Obrigado.

  • memria da tia Avelina, que, de to prxima,

    foi muitas vezes minha segunda me.

  • [...]

    Porque sei que o tempo sempre o tempo

    E que o espao sempre o espao apenas

    E que o real somente o dentro de um tempo

    E apenas para o espao que o contm

    Alegro-me de serem as coisas o que so

    E renuncio face abenoada

    E renuncio voz

    Porque esperar no posso mais

    E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar

    De que me possa depois rejubilar

    T.S. Eliot, Quarta-feira de Cinzas, 1930.

  • SUMRIO

    INTRODUO 13

    PARTE I RECORTES HISTORIOGRFICOS 24 CAPTULO 1 RUPTURAS E CONTINUIDADES: REFLEXES E INTERPRETAES

    SOBRE A HISTRIA ECLESISTICA NA NOVA ESPANHA 25

    A construo da ruptura...................................................................................................... 26

    Outros ngulos, novas perspectivas.................................................................................... 38

    Sobre a ruptura e a Companhia de Jesus............................................................................ 51

    PARTE II A COMPANHIA DE JESUS NO MXICO 56 CAPTULO 2 O CONCERTO DA VIAGEM E A INSTALAO NO VICE-REINO 57

    Os jesutas requisitados na Nova Espanha antes de 1572.................................................. 57

    Amarrando os fios............................................................................................................... 67

    Rumo ao Mxico................................................................................................................. 76

    CAPTULO 3 IMPASSES NA PROVNCIA MEXICANA: COLGIOS OU MISSES? 91

    As circunstncias mexicanas............................................................................................. 104

    PARTE III EDUCAO E BOM GOVERNO 111

    CAPTULO 4 OS JESUTAS E O BOM GOVERNO NO MXICO 112

    Os sentidos do bom governo............................................................................................... 114

    Os significados do bom governo nas ndias....................................................................... 120

    Aspectos da organizao jurdica na Nova Espanha.......................................................... 131

    Os jesutas como jurisconsultos.......................................................................................... 135

  • CAPTULO 5 LETRAS Y VIRTUDES NOS COLGIOS JESUTAS 157

    Aspectos da educao na Nova Espanha............................................................................ 158

    As latinidades nos colgios jesutas do Mxico................................................................. 170

    PARTE IV EDUCAO JESUTICA E UNIVERSO LETRADO 193

    CAPTULO 6 OS JESUTAS E A FORMAO DE GRUPOS LETRADOS NO MXICO 194

    A Ciudad Letrada: contribuies para um debate.............................................................. 195

    Os egressos de San Ildefonso nos sculos XVI e XVII...................................................... 205

    CONCLUSO 222

    FONTES E BIBLIOGRAFIA 229

    APNDICE 265

  • 13

    INTRODUO

    As misses jesuticas so, decerto, um dos temas mais estudados pelos

    historiadores interessados em histria moderna e/ou no perodo colonial do continente

    americano. Contudo, poucos trabalhos monogrficos foram escritos em lngua portuguesa

    sobre a Companhia de Jesus na Nova Espanha, vice-reino que, junto com o Peru, ocupou

    um lugar central entre as regies que atraram a ateno dos pesquisadores estrangeiros. A

    fim de contribuir com as reflexes mais amplas a respeito da presena jesutica na

    Amrica, esta tese tem por objetivo analisar as particularidades da chegada, da instalao e

    das misses dessa ordem religiosa no Mxico1 entre o final do sculo XVI e o incio do

    XVII. E, mais especificamente, o presente estudo pretende examinar as questes ligadas

    educao e s atividades urbanas a ela relacionadas.

    Desde sua fundao, a Companhia havia se lanado em vrias direes do

    globo: da Europa, passando pela sia e frica, at a Amrica. No continente americano,

    porm, os domnios espanhis permaneceram desconhecidos dos padres at meados dos

    anos 1560, quando os religiosos iniciaram as primeiras misses na Flrida (1566), seguidas

    pela instalao no Peru (1568) e no Mxico (1572). Se considerarmos que essas regies

    eram povoadas por leigos e missionrios havia pelo menos quatro dcadas, e que a

    Companhia de Jesus se estabelecera na Amrica portuguesa em 1549, poderemos concluir

    que se tratava de uma chegada tardia da Ordem. Da curiosidade sobre esse atraso,

    principalmente no caso mexicano, nasceram os primeiros interesses pelo tema desta

    pesquisa. Afinal de contas, logo aps a conquista de Hernn Corts, sucessivas levas de

    espanhis e de outros estrangeiros desembarcaram na Nova Espanha, acompanhados por

    religiosos de diversos ramos. Os franciscanos, por exemplo, estavam no Mxico desde

    1523, pioneirismo que dividiram com dominicanos (1526) e agostinianos (1533).

    A instalao dos jesutas no Mxico em 1572 foi marcada por algumas

    particularidades. Em primeiro lugar, havia uma questo de natureza espacial: onde fixar

    residncia, considerando a presena dos demais grupos religiosos que j se encontravam

    1 A utilizao do termo Mxico neste estudo refere-se cidade que se tornou a capital do vice-reino da

    Nova Espanha durante o perodo colonial.

  • 14

    naquela cidade? No se tratava de falta de opes ou de solares2 disponveis, mas de uma

    negociao que envolvia os interesses das ordens religiosas pioneiras, dispostas a manter

    suas reas de influncia na capital do vice-reino muitas delas delineadas desde os anos

    1520. Em segundo lugar, o comeo efetivo das misses era dificultado por determinados

    obstculos iniciais: se o Mxico estava povoado por religiosos, por onde comear as

    atividades pastorais? Em geral, a leitura de qualquer manual de histria eclesistica novo-

    hispnica nos permite saber que a resposta a essa pergunta enfatizou a dedicao dos

    jesutas educao dos jovens crioulos da capital e s misses entre os indgenas nas

    regies ao norte do vice-reino.

    A terceira especificidade que caracterizou a acomodao da Ordem aps 1572

    refere-se justamente ocupao principal dos padres. Em menos de uma dcada, os

    jesutas eram responsveis por quatro convictorios, abrigos de jovens estudantes no

    Mxico, e ministravam aulas de gramtica latina, humanidades, retrica, artes e teologia no

    Colgio Mximo e em outros colgios fundados em cidades vizinhas. A maior parte dos

    religiosos da Companhia de Jesus na Nova Espanha desempenhava funes vinculadas

    vida citadina e educao dos adolescentes e jovens crioulos nos colgios. Diferentemente

    das demais ordens mendicantes, os jesutas comeavam seu apostolado nas reas centrais,

    urbanizadas e tomando como ponto de partida a organizao de uma rede de colgios. A

    experincia acadmica dos padres que chegaram sucessivamente ao Mxico, muitos deles

    notveis telogos provenientes dos principais colgios da Ordem ou de universidades

    europeias, certamente contribuiu para a expanso das atividades educativas em detrimento

    das misses entre os indgenas. Se pretendemos, pois, compreender como a Companhia

    chegou ao Mxico e se instalou nessa capital, devemos examinar o processo que resultou

    nessa escolha inicial.

    H, por fim, outra particularidade que envolveu a gnese dos projetos

    missionrios jesuticos no Mxico. Trata-se da proximidade temporal entre a chegada da

    Ordem e outros eventos ligados organizao eclesistica novo-hispnica. Entre outros

    acontecimentos, convm sublinhar a instalao do Tribunal do Santo Ofcio (1571), a

    nomeao do diocesano Pedro Moya de Contreras ao arcebispado (1573) e a reiterao do

    Real patronato (1574) por Felipe II, que tambm enviou cronistas oficiais ao vice-reino e

    confiscou alguns relatos elaborados por frades franciscanos em 1577. Como veremos

    2 Conforme seus usos no perodo colonial, o termo solar pode indicar tanto o terreno quanto a prpria

    edificao.

  • 15

    adiante, interpretou-se com frequncia que a presena dos jesutas coincidia com o

    surgimento de um novo projeto, evidenciado por aqueles eventos. Desse modo, a

    instalao da Companhia no Mxico inseria-se no panorama mais amplo das mudanas de

    planos capitaneadas pela Coroa espanhola, que, alegando as clusulas do Padroado,

    interferia cada vez mais na administrao da Igreja.

    Observando esses pormenores, podemos esboar o seguinte quadro, sobre o

    qual nos debruaremos a fim de oferecer contornos mais precisos. Aps desembarcar em

    San Juan de Ula, os jesutas dedicaram-se inicialmente s atividades nos colgios e,

    apenas em pequena escala, s misses entre os indgenas em razo de sua chegada tardia

    ao Mxico, cuja Igreja havia sido estruturada pelas ordens mendicantes, mas enfrentava um

    perodo de mudanas que apontavam o enfraquecimento do clero regular. Essa afirmao

    sintetiza o consenso que pretendemos examinar, em detalhe, ao longo deste estudo. Isto :

    os argumentos que sugerem a coincidncia entre a presena jesutica e o surgimento de um

    novo projeto para a Igreja novo-hispnica; os motivos que impulsionaram e viabilizaram a

    viagem daqueles religiosos ao Mxico em 1572; as razes que conduziram os padres

    sobretudo para os colgios, em detrimento das misses durante as primeiras dcadas; e os

    sentidos e os impactos da educao administrada pela Companhia de Jesus.

    A HIPTESE, O RECORTE E AS PRINCIPAIS FONTES

    Tendo em vista as particularidades que nos motivaram inicialmente,

    formulamos a hiptese ampla que d corpo a este estudo e que foi desdobrada nas quatro

    partes que compem a tese. Qual seja: a educao jesutica no Mxico e as atividades

    urbanas a ela relacionadas na transio do sculo XVI para o XVII no se restringiam a

    projetos e interesses da Coroa, mas decorriam, tambm, de circunstncias e demandas

    locais prprias da organizao eclesistica novo-hispnica. Nesse sentido, os ministrios

    ligados ao ensino e s obras de misericrdia e reconciliao significavam a primeira

    participao da Companhia de Jesus na sociedade mexicana, no para pr em marcha um

    projeto previamente estabelecido, mas para conformar uma noo de bom governo,

    entendido como um conjunto de normas, valores e prticas morais que deveriam conduzir

    os homens ao bem comum.

    Com base em tal premissa, quisemos enfrentar o debate sobre os resultados

    iniciais da presena jesutica no Mxico, sobretudo em razo da dedicao dos padres

  • 16

    educao e s misses urbanas. Embora se tenha anunciado, faz algum tempo, que j

    hora de evitar a radicalizao da oposio entre jesuitismo e antijesuitismo 3, parece-

    nos que parte da produo historiogrfica sobre a presena da Companhia no Mxico

    continuou pendendo para um lado ou outro nas ltimas dcadas, renovando interpretaes

    consagradas ou por literaturas apologticas ou detrativas. Estamos nos referindo tanto a

    estudos que vincularam as misses jesuticas regenerao moral da Igreja e s bases da

    formao da nao mexicana (CUEVAS, 1992) como quelas leituras que tenderam a

    conceber a presena da Ordem no vice-reino como uma extenso das medidas repressoras

    da Coroa (CHOCANO MENA, 2000b). Veremos, ao longo deste estudo, exemplos de uma

    e outra vertente.

    O recorte temtico do item bom governo para examinar a fundao dos

    colgios jesuticos no Mxico pareceu-nos duplamente adequado para tal tarefa. Em

    primeiro lugar, porque se tratava de um termo cujo uso era corrente entre os religiosos nos

    sculos XVI e XVII. Notamos que, a despeito das diferentes apropriaes daquela

    expresso na Nova Espanha, o bom governo apareceu sempre vinculado ao exerccio de

    governana que tinha por objetivo ltimo alcanar o bem comum. Ou seja, a governana

    resultava de uma prtica moral que visava tranquilidade pblica, s solues justas e

    salvao da alma e no de um exerccio tautolgico do poder, para utilizar a expresso de

    Michel Senellart (2006).

    Em segundo lugar, porque a noo de bom governo, do modo como a

    definimos, polissmica e no est atrelada a um juzo de valor. Se afirmamos, por

    exemplo, que as atividades jesuticas nos colgios organizavam-se com base na ideia de

    bom governo, no estamos sustentando que elas eram boas. De outro modo, ao

    procedermos assim, argumentamos que elas partiam da premissa de que aquela ao (a

    instruo dos jovens nas escolas) conduziria os sujeitos envolvidos realizao do bem

    comum por meio de solues justas e virtuosas aos impasses da vida em sociedade.

    Entretanto, conforme observamos, nem sempre houve consenso a respeito do que era o

    3 Jos Ignacio Palencia decretou o fim das abordagens apologticas. E o fez, curiosamente, num artigo que

    integra a coleo dirigida por Manuel Ignacio Prez Alonso (1975), por ocasio das comemoraes dos

    quatro sculos de labor cultural dos jesutas no Mxico: Ha pasado ya el tiempo de la historiografa

    apologtica, sea elega, panegrica, o pica; slo la crtica en cuanto es un esfuerzo consciente por trascender

    el nivel de la crnica, nos permite, a la vez que rescatar, en cuanto posible, el pasado, apropiarnos de alguna

    manera de l, y asumir el presente de un modo consciente con proyeccin al futuro [...] (PALENCIA, 1975,

    p. 379). No tomo 120 da Revue de Synthse, Pierre-Antoine Fabre e Antonella Romano (1999) fazem um

    balano bibliogrfico e refletem sobre a posio dos historiadores frente s leituras mais apologticas ou mais

    crticas Companhia de Jesus.

  • 17

    bem comum em determinadas situaes. Questionava-se, por exemplo, se a defesa da

    legitimidade dos repartimientos, com os quais se prorrogava o trabalho compulsrio dos

    indgenas, era uma medida relativa ao bom governo. A resposta dependia da forma pela

    qual se vinculava, necessariamente, o repartimento realizao do bem pblico. Outra

    indagao possvel dizia respeito estrutura legal: desobedecer a uma lei qualquer,

    adaptando-a a circunstncias especficas, indicava a boa governana? Caso essa infrao

    implicasse o ajuste em busca da soluo adequada e do bem comum situao, a resposta

    poderia ser positiva.

    Assim, ao escolher o bom governo como porta de entrada para a reflexo

    sobre a presena da Companhia de Jesus no Mxico, optamos por valorizar a lgica que era

    prpria queles religiosos, bem como as tenses que resultavam das disputas em torno dos

    sentidos cabveis a cada termo utilizado na definio daquela ideia. Distanciamo-nos,

    portanto, das interpretaes que relacionaram indistintamente as iniciativas jesuticas,

    sobretudo aquelas desenvolvidas no mbito da educao, aos interesses da Coroa

    espanhola, da Igreja, do vice-rei, do bispo ou de qualquer outro projeto definido de modo

    prvio. O bem comum almejado poderia coincidir muitas vezes com o bem da

    monarquia, com o zelo pela Fazenda Real, como ressaltou Mario Gngora (1951). Em

    outras ocasies, entretanto, ele poderia ser diferente ou mesmo contrrio, conforme se

    notou nas diversas circunstncias em que os interesses se opuseram no vice-reino,

    provocando atritos entre jesutas, bispos e vice-reis.

    A utilizao dessa lgica da governana tambm nos permite sugerir outras

    leituras a respeito do universo letrado que se vinculava e, em muitos casos, se originava

    nas redes de colgios e seminrios da Companhia. Seguindo a trilha do bom governo,

    podemos indagar acerca da relao entre o ensino jesutico, os jovens egressos e seus

    destinos profissionais, a fim de refletir sobre o impacto da educao administrada pela

    Ordem no Mxico. E, nesse passo, a anlise dos fundamentos da formao desses jovens

    talvez seja to relevante quanto a apreciao de suas carreiras e suas possveis inseres na

    administrao pblica do vice-reino. Independentemente de seu destino profissional, o

    jovem instrudo nas clases da Companhia havia compartilhado, por anos, certo conjunto de

    saberes responsveis por sua formao em sentido lato. Logo, podemos sugerir que se

    observem os vnculos entre a educao jesutica e os grupos letrados no Mxico menos

    pelo ngulo das elites, polticas, econmicas ou intelectuais, e mais pela senda dos

    operrios, aqueles sujeitos que, apesar de no ocuparem postos nos altos escales do

  • 18

    governo, contriburam para a governana por meio da participao em diferentes

    corporaes4.

    O recorte cronolgico mais amplo deste estudo est enunciado em seu ttulo:

    sculos XVI e XVII. Dedicaremos, no entanto, maior ateno ao perodo que vai de 1572

    dcada de 1600, quando a Companhia de Jesus se institucionalizou no vice-reino aps a

    fundao dos principais colgios no Mxico, da Casa Professa e das residncias e misses

    pelas regies norte e noroeste da Nova Espanha. Pouca coisa mudou em relao

    organizao geogrfica e institucional da Ordem no decorrer do sculo XVII. Como em

    muitas ocasies nossa argumentao retroage s dcadas anteriores a 1570 e avana at o

    final dos Seiscentos, optamos por apontar no ttulo o recorte mais amplo, embora devamos

    ressalvar que no examinamos, ano por ano at 1700, todos os processos relativos s

    misses jesuticas ou a suas atividades educativas. O ttulo da pesquisa tambm aponta

    para os limites geogrficos da tese: abordaremos basicamente as aes dos padres no

    Mxico, capital e sede das principais instituies polticas e eclesisticas do vice-reino.

    Para atender hiptese e aos recortes definidos, utilizamos principalmente

    quatro conjuntos documentais: o jesutico, composto pela correspondncia trocada entre os

    padres e por outros papis ligados organizao da Ordem; o das crnicas religiosas; o das

    cartas, documentos e memoriais diversos, referentes administrao poltica e eclesistica

    do vice-reino; e, por fim, uma relao de alunos egressos do colgio de S. Ildefonso

    elaborada pelo Dr. Flix Osores no incio do sculo XIX. Isolada ou simultaneamente,

    esses grupos documentais sustentam as reflexes elaboradas nas partes que compem esta

    tese, conforme se poder perceber.

    AS PARTES DA TESE

    Esta pesquisa est dividida em quatro partes; cada uma delas se assenta sobre

    argumentos especficos. Na parte I, Recortes historiogrficos, nosso principal objetivo

    analisar aquilo que denominamos a construo da ruptura. Isto , a operao

    historiogrfica, para recorrermos expresso consagrada por Michel De Certeau (2002),

    decorrente de interpretaes que argumentaram em favor da existncia de uma ruptura

    4 Referimo-nos, indiretamente, doutrina jurdica dos corpora, assentada na convergncia da tradio

    aristotlico-tomista com a afonsina, segundo a qual o reino (e, em nosso caso, o vice-reino) era um corpo

    poltico constitudo por comunidades que contribuam para o bom governo. Esse tema ser esquadrinhado na

    parte III.

  • 19

    decisiva na histria mexicana localizada na dcada de 1570. Baseamo-nos na premissa de

    que a compreenso que se tem das misses jesuticas no Mxico relaciona-se diretamente

    ao modo como foi construda e concebida a periodizao da histria eclesistica do vice-

    reino. Nesse sentido, entendemos que, antes de examinar o processo de institucionalizao

    da Companhia, necessrio questionar os critrios que fundamentaram a construo da

    ruptura.

    O gesto de criar perodos, eras ou idades muitas vezes acompanhados de

    adjetivos, a exemplo das j famosas trevas medievais resulta de selees, comparaes

    e valoraes feitas pelo historiador, que, desde seu lugar no presente, observa e l o

    passado. Instados a lidar com materiais e fontes que se inscrevem em determinados

    lugares de memria para utilizar a expresso consagrada por Pierre Nora (1989) , os

    estudiosos escolhem, interpretam, contestam ou revalidam os elementos que consideram

    pertinentes e os fixam em novas narrativas, que, ao longo do tempo, tambm comporo

    outros suportes de memria5. Essa constatao est na base do argumento que organiza a

    primeira etapa da tese, qual seja: boa parte da produo historiogrfica do sculo XX

    reforou a periodizao referente ao sculo XVI legada pela memria construda,

    sobretudo, pelos cronistas. Tanto as matrizes jesuticas como as franciscanas da

    historiografia dos ltimos 100 anos como veremos compartilharam o mesmo princpio

    da ruptura, embora lhe atribussem sentidos diferentes. E, ao revalidarem tal periodizao,

    essas matrizes reforaram a memria da ruptura, que, conforme nossa hiptese, condiciona

    a interpretao do significado das misses jesuticas no Mxico.

    Cientes da subjetividade inerente ao gesto de estabelecer perodos, queremos

    indagar as razes e os critrios que fundamentaram o consenso acerca da ruptura em 1570.

    Veremos que outros recortes e ngulos so plausveis. Para atender s exigncias desse

    debate, dialogamos com algumas das principais obras produzidas sobre a histria

    eclesistica mexicana tais quais os textos j clssicos de Mariano Cuevas (1992) e de

    5 Para a concepo imediata de memria, e sem a pretenso de entrar em seu debate mais terico e amplo,

    tomamos emprestada a formulao de Leandro Karnal (2010, p. 557-558): No trabalho com o conceito

    clssico de ideologia, de uma memria utilizada para encobrir uma relao de dominao, mesmo que essa

    dominao exista. Trabalho com um conceito de memria como combinao de elementos conscientes e

    inconscientes, pictricos e de retrica tradicional, combinados ou fragmentados, que fundem, omitem,

    redefinem, aprofundam, alegorizam, metaforizam ou simplesmente criam uma viso que estabelea uma

    ponte orgnica e instauradora de sentido, combinando os documentos disponveis com a necessidade

    institucional do momento. Em suma, utilizo memria num leque amplo de significados e funes, mas

    sempre garantindo que esses sentidos no remetam a conceitos de falso/verdadeiro.

  • 20

    Robert Ricard (2005) , entrecruzando-as com relatos de cronistas e com outros

    documentos (cartas, memoriais) cujos temas relacionavam-se construo da ruptura.

    A parte II, A Companhia de Jesus no Mxico, dedicada s anlises sobre a

    viagem, a instalao e os impasses entre os jesutas que integraram as misses durante as

    trs primeiras dcadas no vice-reino. Ns a dividimos em dois captulos: o captulo 2 trata

    da organizao e das razes que impulsionaram a Ordem rumo Nova Espanha em 1572,

    ao passo que o terceiro captulo aborda os debates em torno da finalidade das misses

    jesuticas. Ambos os captulos valem-se do seguinte argumento: a presena da Companhia

    e o desenvolvimento de suas atividades no Mxico resultaram tambm de demandas e

    circunstncias locais, prprias da organizao eclesistica encontrada pelos padres, e,

    portanto, no se limitavam a projetos definidos a priori. A trajetria da institucionalizao

    da Ordem evidenciava, sob vrios aspectos, a distncia existente entre o que se

    determinava na Europa e suas apropriaes pelos padres na Nova Espanha; entre as normas

    expedidas em Roma ou Madri e as prticas americanas. E, nesse sentido, as condies

    mexicanas que no eram as mesmas da China ou do Brasil tornam-se um fator crucial

    compreenso das escolhas feitas por provinciais, reitores e padres em geral.

    A argumentao desse captulo construda, quase que integralmente, com

    base na correspondncia trocada entre os religiosos no Mxico e em Roma. exceo da

    anlise sobre o modo pelo qual os cronistas construram certa memria da organizao da

    misso e de algumas referncias a outros documentos, as cartas reunidas na Monumenta

    Mexicana6 constituem nossa matria-prima principal. J se escreveu sobre a importncia

    que tinha a instituio epistolar na estrutura e no funcionamento da Companhia de Jesus7.

    Vrias vezes foram destacadas as particularidades de cada tipo de carta, as distines entre

    as hijuelas e as edificantes8, as caractersticas das nuas e a relevncia da escrita de

    maneira geral para a Ordem.

    6 A fim de facilitar a leitura, a citao dos textos (introdues e notas) e dos documentos que integram a

    Monumenta Mexicana respeitar o seguinte padro: MM, nmero do volume, nmero do documento, nmero

    da pgina. Nas referncias bibliogrficas encontram-se os anos de cada volume, bem como o nome dos

    editores. 7 A ttulo de exemplo, podemos citar os seguintes fragmentos: A Companhia de Jesus nasceu e se estendeu

    no sculo XVI a quatro continentes sob o domnio da escrita (LONDOO, 2002, p. 13). Os discpulos de

    Incio de Loyola permanecem os mais interessantes [missionrios], espalhando-se sobre todas as terras e,

    sobretudo, organizando paralelamente aos seus deslocamentos fsicos um sistema de correspondncia nico e

    extremamente sofisticado, que se estendia escala do mundo conhecido (LABORIE, 2005, p. 12). A

    instituio epistolar era a espinha dorsal da empresa missionria jesutica no sculo XVI (EISENBERG,

    2000, p. 49). 8 As edificantes eram endereadas tanto ao pblico interno quanto ao externo Ordem e tinham a pretenso

    de relatar as notcias importantes das misses e, principalmente, o desenvolvimento das virtudes decorrente

  • 21

    Diante disso, convm sublinhar duas questes relativas correspondncia, de

    modo geral, e Monumenta Mexicana, especificamente Tomados os cuidados para

    identificar o tipo de documento, analisamos as cartas assim como as demais fontes com

    base na premissa de que elas representam uma determinada viso, construda desde um

    lugar especfico, e destinada a certo pblico. Em cada caso, embora nem sempre

    enunciemos, buscamos compreender o que significavam os vocbulos determinada,

    especfico e certo que serviram para generalizar a afirmao anterior. Esse exerccio

    tem o mrito de afastar nossa anlise da perspectiva do testemunho daquilo que realmente

    aconteceu medida que nos aproxima de conceitos como os de representao e lugares de

    produo9. Isto , os textos produzidos por missionrios, bispos e vice-reis expressavam

    sua percepo sobre algum evento e/ou processo, construindo uma ideia (ou imagem) que

    deveria representar aquela realidade ante os olhos de seus leitores. Nesse passo, a

    identificao do lugar que, sabemos, extrapola a dimenso geogrfica onde foram

    gestadas tais representaes tambm crucial interpretao, pois ela que permite

    atribuir sentidos aos processos descritos. Diferentes dos corpos flutuantes a que se

    referiu Michel De Certeau (2002), as representaes esto ligadas a um lugar de produo

    e s prticas que o constituem, no como reflexo da realidade, mas influenciando-os e

    sendo por eles influenciadas. A anlise dos impasses existentes entre as normas expedidas

    em Roma pelo Pe. Geral Claudio Aquaviva e os modos como elas foram apropriadas no

    Mxico pode exemplificar tal procedimento.

    Ao utilizar os volumes da Monumenta Mexicana, estamos cientes da lgica que

    presidiu sua organizao. Trata-se, como a etimologia de seu nome sugeria, de uma

    coleo dedicada construo e perpetuao de uma determinada memria sobre as

    dos trabalhos da Companhia de Jesus. As hijuelas continham informaes e comunicaes internas e podiam

    veicular, portanto, outros assuntos ligados aos problemas, s dificuldades e s divergncias entre os

    inacianos. Para uma anlise interessante a esse respeito, ver Eisenberg (2000). 9 Sobre a noo de representao, importante remarcar a definio apresentada por Roger Chartier (1988, p.

    23). O historiador enfatiza que ela permite articular trs modalidades da relao com o mundo social: em

    primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais

    mltiplas, atravs dos quais a realidade contraditoriamente constituda pelos diferentes grupos;

    seguidamente, as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de

    estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio; por fim, as formas institucionalizadas

    e objectivadas graas s quais uns representantes (instncias colectivas ou pessoas singulares) marcam de

    forma visvel e perpetuada a existncia do grupo, da classe ou da comunidade. Quanto ideia de lugar de

    produo, ns a utilizamos semelhana de Michel De Certeau, que, ao refletir sobre a elaborao do

    discurso historiogrfico, enfatizou a impossibilidade, ou pelo menos imprudncia, de analisar os textos como

    se fossem corpos flutuantes, pois, nesse caso, eles seriam a-histricos. Para torn-los histricos e, por

    conseguinte, objetos de estudo do historiador, seria necessrio pensar que eles s tm valor medida que so

    entrecruzados com as prticas sociais (da a necessidade de se examinar o lugar de produo da fala e as

    relaes de poder envolvidas) das quais eles resultam (DE CERTEAU, 2002, p. 32).

  • 22

    misses no Mxico que integra o conjunto Monumenta Historica Societatis Iesu,

    composto por dezenas de tomos com documentos relativos s atividades jesuticas nas

    diversas partes do mundo entre os sculos XVI e XVII. O Pe. Flix Zubillaga dedicou-se

    por cerca de quatro dcadas edio daquela obra, cujo oitavo volume foi organizado em

    1991 por Miguel ngel Rodrguez, que substituiu Zubillaga, recentemente falecido. O

    trao monumental desse tipo de coleo exigia cuidados e ponderaes medida que

    indicava determinada seleo, entre um sem-nmero de documentos, daquilo que deveria

    ser reunido e publicado organicamente. Contudo, se complementada e limitada por

    outras fontes, tal qual procuramos fazer neste estudo, a Monumenta pode ser uma

    ferramenta til ao historiador, ainda que este se encontre diante de um lugar de memria

    cuja organizao pressupe uma coerncia cuidadosamente construda.

    Dividimos a parte III, Educao e bom governo, em dois captulos: Os

    jesutas e o bom governo no Mxico (captulo 4) e Letras y virtudes nos colgios

    jesutas (captulo 5). Neles, examinamos as questes conceituais referentes noo de

    bom governo e a suas representaes na Amrica espanhola, alm de testarmos o

    argumento que sustenta a terceira parte desta tese. Qual seja, logo aps se instalar no vice-

    reino, a Companhia de Jesus participou da conformao do bom governo no Mxico de

    duas formas principais. Primeiramente, pela atuao dos padres como jurisconsultos,

    mediando conflitos, solucionando contendas, advogando nos tribunais, elaborando

    pareceres e ajustando as normas expedidas pela Coroa a situaes especficas vivenciadas

    no Mxico. Em segundo, pelas atividades educativas, ensinando letras y virtudes aos

    jovens por meio de um plano curricular metdico que privilegiava o estudo de gramtica,

    humanidades e retrica nos cinco primeiros anos aps o ingresso. Veremos como a

    centralidade das lies de latinidades na formao dos alunos implicava os termos letras,

    virtudes e bom governo.

    Para analisar os dois casos, buscamos dialogar com as tradies do pensamento

    filosfico e teolgico s quais se vinculavam os padres. Retomamos, entre outras,

    premissas aristotlicas, ciceronianas, tomistas e humanistas a fim de examinar o modo pelo

    qual aqueles religiosos compreendiam suas atividades nas reas urbanas e em seus

    colgios. Quanto s fontes, recorremos basicamente s cartas nuas e a documentos

    institucionais. Pela anlise daquelas, pretendemos perceber como seus autores, em geral

    os padres provinciais, construram a imagem dos jesutas como conciliadores, manejando

    as concepes de bom governo e bem comum. Com a apreciao dos documentos,

  • 23

    notadamente das Constituies da Companhia de Jesus e da Ratio Studiorum, desejamos

    entender a organizao, seus mtodos e o funcionamento dos planos de ensino jesuticos,

    bem como os valores atribudos a cada parte do currculo, especialmente s classes

    inferiores.

    Por fim, a parte IV, Educao jesutica e universo letrado, aborda as relaes

    entre a rede de colgios administrada pela Companhia no Mxico e a formao de grupos

    letrados. Estruturamos a argumentao do ltimo captulo sobre a seguinte premissa: sob a

    lgica do bom governo, os colgios jesuticos formaram grupos letrados cujos destinos

    profissionais poucas vezes coincidiram com postos e cargos no alto escalo do governo

    civil ou eclesistico. Nesse sentido, questionamos os vnculos estabelecidos por alguns

    historiadores entre a educao jesutica, as elites letradas e intelectuais e os crculos de

    poder, da Ciudad letrada, de ngel Rama (1985), Fortaleza docta, de Magdalena

    Chocano Mena (2000b).

    Alm de nos valermos dos debates historiogrficos, construmos o captulo 6,

    Os jesutas e a formao de grupos letrados no Mxico, com base nas Noticias bio-

    bibliogrficas de alumnos distinguidos del Colegio de San Pedro, San Pablo y San

    Ildefonso de Mxico. Trata-se de uma listagem elaborada no incio do sculo XIX pelo

    erudito e ex-aluno daquele colgio, Dr. Flix Osores, com os dados relativos aos egressos

    de S. Ildefonso, o principal seminrio jesutico da capital do vice-reino. Esse documento

    nos permitiu mapear os destinos dos jovens formados pelos jesutas no Mxico, entre os

    sculos XVI e XVII, e propor algumas reflexes acerca do impacto da educao oferecida

    pela Companhia e da constituio de grupos letrados.

  • 24

    PARTE I

    RECORTES HISTORIOGRFICOS

  • 25

    CAPTULO 1

    RUPTURAS E CONTINUIDADES: REFLEXES E INTERPRETAES

    SOBRE A HISTRIA ECLESISTICA NA NOVA ESPANHA

    Como estabelecer periodizaes sem ser arbitrrio ou sem partir de critrios

    parcialmente subjetivos? Essa uma das questes com as quais se enfrentam os

    historiadores em seu ofcio, sobretudo ao determinar recortes analticos ou tpicos

    organizadores de sua escrita. A ideia de que se pode medir, mapear e definir perodos,

    idades ou eras to presunosa quanto necessria. Afinal de contas, trata-se de um

    instrumento de trabalho do historiador, impossibilitado de observar toda a histria e

    ansioso por interpretar desde seu prprio lugar um determinado perodo previamente

    escolhido. Convm lembrar, aqui, as palavras de Michel de Certeau a respeito dos recortes

    no tempo feitos pelo historiador:

    Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porm,

    repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compe

    de perodos (por exemplo Idade Mdia, Histria Moderna, Histria

    Contempornea) entre os quais se indica sempre a deciso de ser outro ou

    de no ser mais o que havia sido at ento (Renascimento, a Revoluo).

    Por sua vez, cada tempo novo deu lugar a um discurso que considera

    morto aquilo que o precedeu, recebendo um passado j marcado

    pelas rupturas anteriores. Logo, o corte o postulado da interpretao

    (que se constri a partir de um presente) e seu objeto (as divises

    organizam as representaes a serem reinterpretadas). O trabalho

    determinado por este corte voluntarista. (DE CERTEAU, 2002, p. 15-

    16, grifo do autor)

    Essa passagem dA escrita da histria conhecida, pois nela De Certeau

    consagrou a noo da escrita como um discurso de separao. Separao, disjuno,

    diviso e corte que, segundo o autor, so postulados da interpretao e pertencem,

    portanto, ao mbito da operao historiogrfica ligada a um determinado lugar de

    produo do conhecimento. Se os recortes integram a prtica do historiador e no so,

    pois, elementos dados pela natureza, como pode parecer em alguns casos , necessrio

    analisar quais so os parmetros que permitiram s tradies historiogrficas criar,

    valendo-se da escrita, um tempo histrico (as eras, as idades) com base em cortes feitos no

  • 26

    tempo cronolgico. E exatamente esta a proposta deste captulo: examinar como alguns

    historiadores interpretaram a histria do Mxico no sculo XVI e, mais particularmente,

    como eles estabeleceram cortes no tempo cronolgico, sobretudo na dcada de 1570, a fim

    de construir determinadas interpretaes dos eventos anteriores e posteriores quela data.

    A historiografia, grosso modo, quase sempre recortou a histria mexicana do

    sculo XVI em duas etapas: a primeira, a era das ordens mendicantes e das misses, que

    ia dos anos 1520 s dcadas de 1560/70; e a segunda, a fase da consolidao da Igreja e

    do fortalecimento do clero secular, que se iniciava nas quatro dcadas finais do sculo XVI

    e se estendia pelo XVII. Se lembrarmos que os jesutas chegaram ao Mxico em 1572,

    teremos motivos suficientes para, de um lado, esmiuar as interpretaes historiogrficas a

    respeito desse corte e, de outro, examinar as mudanas ocorridas na Nova Espanha,

    sobretudo no que concernia s misses e administrao eclesistica mexicanas. Sem

    esses dois exerccios analticos, acreditamos que estaria incompleto o esforo para

    compreender a presena da Companhia de Jesus no Mxico, bem como sua instalao e

    suas atividades educativas, objeto desta pesquisa.

    A CONSTRUO DA RUPTURA

    Vrias narrativas sobre a histria mexicana do sculo XVI estabeleceram

    dois recortes cronolgicos que se tornaram cannicos e muitas vezes naturais. O primeiro,

    localizado em 1521, referia-se concretizao da conquista militar e, pois, ao fim da

    poca indgena, que era, tambm, o incio do perodo colonial. O segundo, que nos

    interessa aqui, incidia na dcada de 1570 e indicava um momento de inflexo na

    administrao civil e na eclesistica marcado pelos impulsos centralizadores da Coroa e da

    Igreja Catlica. As principais evidncias desse corte estavam nas restries autonomia

    das ordens religiosas mendicantes (franciscanos, dominicanos e agostinianos), que

    deveriam ento se submeter ao clero secular e alinhar-se s demandas castelhanas. Alguns

    aspectos, tomados de maneira geral, sustentavam esse ponto de vista: a instalao do

    Tribunal do Santo Ofcio (1571); a presena do diocesano Pedro Moya de Contreras no

    arcebispado da Nova Espanha (1573); o envio de cronistas oficiais e o confisco de crnicas

    produzidas pelos frades (1577); a reafirmao do Real patronato (1574); a passagem dos

    padres jesutas ao Mxico (1572), entre outros. Como se pode notar, esses eventos se

    sucederam num curto perodo, sinalizando mudanas.

  • 27

    A percepo de que havia cmbios significativos foi acompanhada pelo

    esforo, por parte dos historiadores, para estabelecer o sentido daquelas alteraes.

    Portanto, alm de evidenciar as transformaes, os estudiosos se dedicaram a compreender

    e definir os significados desses processos. Essa atividade interpretativa o que chamamos

    aqui de a construo da ruptura, que se d por meio da adjetivao dos processos

    histricos sobre os quais se construram aquelas leituras. Por exemplo, se afirmamos que, a

    partir de 1570, iniciou-se um perodo de regenerao da Igreja no Mxico, insinuamos

    ento que se tratava de uma melhora em relao aos anos antecedentes. Pelo contrrio, se

    defendemos que aquela dcada significava o fim de certa idade de ouro, sugerimos, pois,

    que o perodo subsequente no poderia ser melhor. Em ambos os casos, deparamo-nos com

    valoraes elaboradas com base no sentido que se atribuiu ruptura. Se lembrarmos que os

    jesutas desembarcaram na costa da Nova Espanha justamente nesse momento de

    transformaes, concluiremos que convm analisar quais foram os significados atribudos

    a tal ruptura. Para tanto, selecionamos trs perspectivas para focalizar esse tema: a dos

    historiadores de matriz jesutica; a dos pesquisadores de matriz franciscana; e a das

    anlises que partilharam a hiptese da crise da Nova Espanha.

    Matrizes jesuticas

    A Historia de la Iglesia en Mxico (1921), de Mariano Cuevas10

    ,

    indubitavelmente uma das principais referncias, tanto pelo pioneirismo como pela

    influncia que exerceu sobre os demais historiadores do sculo XX interessados nos

    assuntos relativos histria eclesistica. Publicada no incio da dcada de 1920, ela foi

    dividida em trs tomos. O primeiro deles (que veio luz em 1921) dedicou-se s origens

    da Igreja e cobria o perodo de 1511 a 1548, anos em que as atividades missionrias das

    ordens religiosas eram predominantes. O segundo tomo (de 1922) propunha dois recortes:

    1548-1572, considerado o momento da consolidao e das atividades das instituies

    fundadoras; e 1572-1600, vista como a poca dos elementos regeneradores. O ltimo

    volume (publicado em 1924) tratava do sculo XVII, abordando as instituies e trabalho

    da Igreja organizada, alm das misses e seus frutos naquela centria.

    10

    Mariano Cuevas era jesuta e, segundo nos informam suas notcias biogrficas na apresentao da obra,

    membro da Sociedad Mexicana de Geografa y Estadstica e da Academia Mexicana de la Historia.

  • 28

    Amparando-se nas crnicas coloniais e na correspondncia trocada entre os

    religiosos (na Amrica e na Europa), Cuevas props aquela que se tornou a principal

    sntese da histria eclesistica mexicana. Os recortes cronolgicos que organizaram a

    narrativa de sua Historia de la Iglesia pautaram invariavelmente os historiadores que o

    sucederam, em especial as ideias constantes das subdivises destacadas no tomo II.

    Acreditamos que Cuevas foi o primeiro a delimitar com clareza a ruptura nos anos 1570.

    No prlogo ao segundo volume, o jesuta escreveu:

    Se impone la subdivisin cronolgica de este gran perodo en las dos

    partes que hemos adoptado, no ya tan slo por razones de metodologa y

    usanza, sino por la misma objetividad de las instituciones y sucesos que

    presentamos: como que todo pareci cambiarse radical y sbitamente, en

    el gran y memorable ao de 1572. (CUEVAS, 1922, t. II, p. 10)

    No por acaso, a Companhia de Jesus instalou-se no Mxico no memorvel

    ano de 1572, quando tudo parecia mudar radical e repentinamente. O autor fez questo de

    explicitar que o recorte no se justificava tanto pelo mtodo ou pela usanza da obra, mas

    sim pela objetividade das instituies e pelos sucessos prprios daquela poca. Sob o ponto

    de vista de Cuevas, quais eram o cerne e o sentido das alteraes em curso nos anos 1570?

    De acordo com o religioso, tratava-se da passagem de um perodo, carcomido por mil

    dolencias, para outro, cuja vida se renovava:

    Hasta entonces la historia de nuestra sociedad es la de un organismo,

    joven s, pero por mil dolencias carcomido; desde 1572, su historia es la

    de la vida que vuelve. En efecto, sus elementos primitivos de civilizacin

    cristiana: los obispos con cabildo y clero, los religiosos franciscanos,

    dominicos y agustinos, haban actuado hasta entonces con un trabajo de

    conjunto, laudable ciertamente y eficaz, mayormente entre los indios,

    pero ya era insuficiente para lo que con urgencia requera la sociedad

    como la de entonces tan compleja y tan aviesa. Haca falta inyeccin de

    vida nueva, una mano enrgica que desarraigase tanta maleza, y nuevos

    sembradores de la via del Seor. (CUEVAS, 1922, t. II, p. 10, grifo do

    autor)

    Est claro, pois, qual era o sentido conferido pelo Pe. Cuevas ruptura

    sublinhada em sua narrativa. A metfora utilizada bastante elucidativa: a sociedade era

    at ento um corpo doente que comeava a recuperar sua sade a partir de 1572. A

    interpretao oferecida por esse autor para os processos histricos do sculo XVI estava

    nitidamente marcada por suas convices a respeito do estado da Igreja e da sociedade

    mexicanas do incio do sculo XX. Segundo Cuevas (1922, t. II, p. 9):

    En la actualidad crece de punto la importancia del periodo que ahora

    historiamos por la semejanza de nuestra situacin, con las de aquellos

  • 29

    antepasados de a mediados del siglo XVI: decadente y ruinosa. Ojal

    que reaccionando como ellos, serenndonos, ordenndonos y trabajando

    como ellos hicieron, lograsen nuestros esfuerzos restauracin social tan

    slida y verdadera, como la que nos leg la valiente generacin de las

    postrimeras de la dcima sexta centuria.

    A referncia feita pelo autor nuestra situacin decadente e ruinosa ecoava as

    circunstncias desfavorveis pelas quais passavam a Igreja mexicana e a Companhia de

    Jesus no incio do sculo XX, especialmente aps as reformas de Benito Jurez e os

    desdobramentos constitucionais da Revoluo Mexicana11

    . As injunes do presente

    marcaram as interpretaes do passado e possibilitaram a Cuevas sobrepor seus anseios

    como padre do sculo XX narrativa acerca do XVI. Desse modo, as memrias

    consagradas nas crnicas jesuticas (que examinaremos na prxima parte) lhe eram teis,

    em especial aquelas que apontavam a regenerao do corpo doente a partir de 1572.

    Cuevas esperava que ocorresse em 1920 aquilo que sucedera com as diversas misses da

    Companhia no Mxico havia mais de 300 anos.

    As instituies responsveis pela regenerao, segundo a Historia de la Iglesia,

    eram trs: o Santo Ofcio, a Real Universidade12

    e a Companhia de Jesus. Cada uma delas

    teria seu papel na sociedade, embora todas las nuevas fuerzas estivessem direcionadas

    para uma reforma moral, inclusive no interior do clero. A vigilncia inquisitorial e as

    misses jesuticas no Mxico e nas reas ao norte da capital eram sopros de nova vida no

    vice-reino. E, como os religiosos participavam ativamente das ctedras, a Universidade

    tambm se tornou ao longo da segunda metade do sculo XVI, de acordo com o Pe.

    Cuevas, mais um canal de influncia da Igreja sobre a sociedade que deveria ser renovada.

    O quadro esboado por Mariano Cuevas na dcada de 1920 estabeleceu uma

    espcie de interpretao cannica entre outros historiadores jesutas que escreveram

    posteriormente. Gerard Decorme, por exemplo, apropriou-se nos anos 1940 da proposio

    esboada por Cuevas: a decadncia teria sido sucedida por um movimento de regenerao

    a partir da presena jesutica no Mxico. Ao explicar por que a Companhia havia se

    instalado na Nova Espanha, Decorme escreveu:

    Quien quiere tener idea exacta de la oportunidad de la venida de los

    Jesuitas le en Alegre el estado de ignorancia religiosa del pueblo, la

    11

    Segundo Leandro Karnal (2010, p. 558), os jesutas preocuparam-se em defender a memria da Companhia

    de Jesus contra os ataques e as crticas constantemente direcionados Ordem no incio do sculo XX,

    procedentes das ondas de laicizao presentes na sociedade mexicana desde meados do sculo XIX e

    reforadas pela Constituio de 1917. 12

    A Real Universidade do Mxico foi fundada em 1551, mas s iniciou suas atividades acadmicas em 1553.

  • 30

    insuficiencia del clero secular y regular y, a pesar de la naciente

    Universidad, la carencia de establecimientos de educacin y de enseanza

    y, finalmente, la poca frecuencia de sacramentos en aquellos trabajosos

    aos de la formacin de la nacionalidad mexicana. (DECORME, 1941, t.

    I, p. 8)

    Tal como Cuevas, Decorme se baseou nas crnicas do perodo colonial e, nesse

    caso especfico, naquela composta pelo Pe. Francisco Javier Alegre nos anos 1760

    enquanto os jesutas enfrentavam as tenses com a Coroa espanhola. Dessa maneira, a

    narrativa de Decorme tambm enfatizava a descontinuidade entre um perodo de ausncia,

    de vazios, que terminava nos anos 1570, e as dcadas seguintes, marcadas pela presena,

    pela renovao. No por acaso, os historiadores jesutas posteriores a Cuevas utilizaram

    com frequncia os verbos e substantivos com o prefixo re, indicando repetio e reforo:

    regenerar, renovar, reformar, reconstruir. Os padres Leon Lopetegui e Flix Zubillaga

    (1965, p. 570-571), ambos jesutas, referiram-se mais de uma vez aos colgios jesutas

    como factores de renovacin espiritual e como promotores do processo de regeneracin

    y reconstruccin moral que penetrava nas famlias dos estudantes.

    Essas obras de sntese formaram um trip que serviu de referncia a quase

    todos os estudos e pesquisas sobre a histria cultural e social mexicana sobretudo quando

    o objeto de anlise era a Companhia de Jesus. improvvel encontrar um opsculo sequer

    sobre a histria eclesistica do Mxico colonial que no tenha pelo menos um desses livros

    em suas referncias bibliogrficas. Editadas e reimpressas em momentos diferentes,

    aquelas obras contriburam para a construo da ruptura no sculo XVI. A dcada de

    1570 havia sido decisiva para a histria novo-hispnica, pois representava a

    descontinuidade entre dois perodos: o anterior a ela, marcado pela decadncia de um

    organismo doente; e o que a ela se seguia, sintetizado pelas noes de regenerao,

    reforma e renovao. No primeiro, as aes estiveram sob a responsabilidade das ordens

    religiosas pioneiras, que gozaram de grande autonomia. No segundo, os principais atores

    eram os jesutas, o clero secular renovado e as instituies regeneradoras. Em suma,

    esse foi o panorama desenhado pelos historiadores que compartilharam aquilo que

    chamamos aqui de matrizes jesuticas.

  • 31

    Matrizes franciscanas

    Uma dcada aps a publicao da Historia de la Iglesia en Mxico, do Pe.

    Cuevas, o religioso francs Robert Ricard apresentou sua tese de doutorado na Sorbonne

    sobre a conquista espiritual do Mxico. Nela, o autor dedicou-se ao apostolado das ordens

    mendicantes entre 1523 e 1572, consagrando a expresso conquista espiritual para

    nomear o processo de fundao da Igreja no Mxico e de evangelizao dos indgenas. A

    obra de Ricard tomou como fonte privilegiada os cronistas do sculo XVI e, quase sempre,

    os franciscanos erro que o prprio autor reconheceu no prlogo segunda edio em

    espanhol (RICARD, 2005, p. 27).

    Apresentada em 1933 e impressa em espanhol no Mxico pela primeira vez em

    1947, La conquista espiritual lanou as bases daquilo que denominamos matrizes

    franciscanas no que concerne s percepes dos recortes temporais na histria eclesistica

    mexicana. Como se pode notar j no subttulo da obra, Ensayo sobre el apostolado y los

    mtodos misioneros de las rdenes mendicantes en la Nueva Espaa de 1523-1524 a

    1572, Ricard delimitou o perodo de sua pesquisa entre os anos de 1523 e 1572. O

    primeiro par de datas refere-se ao momento em que os primeiros missionrios franciscanos

    chegaram ao Mxico: trs irmos em 1523; e os doze frades pioneiros em 1524. Nos anos

    seguintes, religiosos dominicanos (1526) e agostinianos (1533) tambm aportaram no vice-

    reino. A outra ponta do fio temporal que se inicia na dcada de 1520 encontra-se em 1572,

    quando os jesutas se juntaram queles frades. Tal como o Pe. Cuevas, Ricard identificava

    nesse ano sinais que apontavam para a descontinuidade na histria da Igreja novo-

    hispnica:

    En la historia de la Iglesia en Mxico el ao 1523 inaugura el periodo

    que, por tradicin ya, se llama periodo primitivo. Periodo que viene a

    cerrarse en el ao 1572 con el advenimiento de los primeros padres de la

    Compaa de Jess. Raro ser hallar en la historia una etapa definida

    cronolgicamente con tanta naturalidad y claridad. (RICARD, 2005, p.

    34)

    Para o religioso francs, tratava-se de uma etapa definida cronologicamente

    com naturalidad y claridad. Os jesutas, continuava Ricard:

    [] traen un espritu distinto y preocupaciones propias: no que dejen a

    un lado a los indios, pero s en Nueva Espaa la Compaa habr de

    consagrarse con especial esmero a la educacin y robustecimiento

  • 32

    espiritual de la sociedad criolla, un tanto descuidada por los mendicantes,

    as como a la elevacin en todos sentidos del clero secular, cuyo nivel era

    ms que mediocre. En tal sentido, la actividad de los hijos de San Ignacio

    habr de contribuir a la preparacin necesaria para que las parroquias de

    indios sean progresivamente entregadas al clero secular, y con ello, las

    rdenes primitivas eliminadas y forzadas a dejar el ministerio parroquial

    para recluirse en sus conventos, o bien, para emprender la evangelizacin

    de remotas regiones an paganas. Ninguna arbitrariedad hay, por

    consiguiente hasta donde es posible que divisiones de esta ndole

    puedan no serlo , en tomar el radicarse de los jesuitas en Mxico, en

    1572, como clausura de un periodo y puerta de otro nuevo. [...] El ao

    1572 nos da una nueva muestra que las rdenes mendicantes ceden el

    lugar, pues llega a la sede metropolitana un arzobispo del clero secular,

    don Pedro Moya de Contreras. En resumen: estudiamos en este trabajo la

    edad de oro de los religiosos mendicantes. (RICARD, 2005, p. 34-35)

    A longa citao se justifica porque esse fragmento evidencia as principais

    ideias do autor com relao ao recorte de sua pesquisa e, igualmente importante, ao sentido

    que ele atribuiu ruptura identificada em 1572. Em primeiro lugar, Ricard assume para si a

    perspectiva consolidada pelos cronistas e pela historiografia jesutica de que os filhos de

    Ignacio de Loyola tinham preocupaes prprias, especialmente aquelas consoantes

    educao e ao robustecimiento espiritual dos crioulos13

    sem discutir se isso era parte de

    um projeto da Companhia anterior s misses mexicanas ou fruto das circunstncias do

    vice-reino na dcada de 1570. Em segundo lugar, o autor estabelece qual era a alterao

    capital que sinalizava a ruptura: com a chegada dos jesutas, as ordens mendicantes

    perderam o lugar que ocupavam na sociedade na administrao das parquias indgenas e

    da Igreja , ao passo que o clero secular e os padres da Companhia de Jesus ascenderam.

    Por fim, o mais importante desse trecho: cabe perguntar pelo sentido atribudo por Robert

    Ricard a essas mudanas.

    Como se quisesse se opor s proposies de Mariano Cuevas14

    , o autor de La

    conquista espiritual considerava as dcadas entre 1523 e 1572 como a edad de oro das

    13

    O termo criollo remete, inicialmente, aos espanhis nascidos na Amrica. Porm, j faz algum tempo que

    essa noo foi ampliada e passou a definir tambm aqueles peninsulares que se fixaram deste lado do

    Atlntico: Por otra parte, no hay que fiarse demasiado del concepto tradicional de criollo que los caracteriza

    como espaoles nacidos en Amrica, concepto cuestionado ya varias veces, pero que se sigue utilizando. Ms

    razonable parece la definicin que caracteriza al criollo como persona cuyo centro de vida social y

    econmica estaba en Amrica. Segn esta otra definicin, tambin los funcionarios nacidos en la pennsula,

    pero residentes ya mucho tiempo en Amrica, casados aqu, a veces en cargos permanentes de la burocracia

    por ejemplo como oidor de audiencia u oficial de una caja real y sin muchas perspectivas de ascenso y

    traslado, pasaran por criollos (PIETSCHMANN, 1994, p. 88). De nossa parte, utilizaremos o termo crioulo

    de maneira geral, apontando, caso seja necessrio, para distines dessa natureza. 14

    Ricard conhecia e recorreu diversas vezes Historia de la Iglesia en Mxico. Em uma apreciao

    respeitosa, porm crtica, o religioso francs escreveu que ya es tiempo de hacer resaltar la importancia de la

  • 33

    ordens mendicantes. A Igreja primitiva mexicana vislumbrada por Ricard, semelhana

    daquela narrada na Bblia, no comportava os elementos decadentes sugeridos pelo autor

    jesuta. Pelo contrrio, como idade de ouro, aquela etapa significava o auge de um

    perodo, cuja fase subsequente, portanto, tendia a ser pior. Segundo Robert Ricard, a

    predominncia dos mendicantes em relao aos diocesanos se justificava quantitativa e

    qualitativamente:

    Y como en Mxico los religiosos eran mucho ms numerosos que los

    clrigos sometidos a los obispos; como tenan ms disciplina y mejor

    organizacin; como, en fin, representaban un nivel intelectual y hasta

    moral muy superior, no hay por qu sorprenderse de que, mirado el

    conjunto de las cosas, su accin haya aventajado a la de los obispos y

    hasta la haya oscurecido en muchos casos, y resulta natural, por lo tanto,

    que una historia de la fundacin de la Iglesia mexicana se reduzca

    esencialmente al estudio de los mtodos misionales de las rdenes

    mendicantes. (RICARD, 2005, p. 22)

    O sentido dado descontinuidade claro: tratava-se de uma Igreja

    administrada por ordens religiosas que tiveram sua idade de ouro at a dcada de 1570

    substituda por outra comandada pelo clero secular a partir da presena jesutica. A

    primeira era a Igreja primitiva, fruto da fundao liderada pelos doze apstolos

    franciscanos que desembarcaram em 1524 em San Juan de Ula; a segunda era um

    desdobramento prateado, resultado da marginalizao dos frades em seus conventos ou em

    misses entre indgenas de regies distantes. A interpretao de Ricard, nesse passo,

    contrape-se s ideias de Mariano Cuevas, embora os dois autores concordem quanto

    existncia de uma ruptura decisiva na histria religiosa do Mxico.

    O recorte e o sentido apresentados em La conquista espiritual perpassaram as

    anlises de outros historiadores que, de maneira geral, tomaram para si aquela perspectiva.

    Devemos lembrar, a ttulo de exemplo, do estudo de John Leddy Phelan sobre os

    franciscanos do Mxico e, em particular, a respeito da obra de frei Mendieta. Escrito em

    1956 e editado em espanhol em 1972, The millenial kingdom of the franciscans in the New

    World assumiu o recorte implcito na crnica do frade15

    e reverberado pelas anlises de

    Ricard como a idade de ouro da Igreja indiana:

    Mendieta reconstructed the history of the New World around three

    organizing ideas. One was that the inner meaning of New World history

    was eschatological. The second idea was that the period between the

    Historia de la Iglesia en Mxico, del padre Cuevas, S. J., tentativa de sntesis, cuyos defectos no deben

    llevarnos a desconocer su verdadera utilidad (RICARD, 2005, p. 42). 15

    Trata-se da Historia Eclesistica Indiana (1993).

  • 34

    arrival of the twelve Franciscan apostles in 1524 and the death of

    Viceroy Lus de Velasco the Elder in 1564 was the Golden Age of the

    Indian Church. His third idea was that the decades between 1564 and

    1596 (when he stopped writing) were the great time of troubles for the

    new Church. (PHELAN, 1970, p. 41)

    Apesar de antecipar o momento de ruptura para 1564, Phelan adotava o mesmo

    princpio exposto em La conquista espiritual. Isto , uma alterao na administrao do

    vice-reino, com a morte de Lus de Velasco, implicava o fim da golden age e o incio da

    silver age. Passava-se de uma idade para outra, e o perodo posterior, marcado por

    problemas, era qualitativamente pior. Em linhas gerais, esse o mesmo princpio da

    organizao cronolgica de Utopa y historia en Mxico (1983), do historiador Georges

    Baudot, publicado em francs em 1977. Baudot, porm, debruava-se sobre a crnica de

    frei Motolina16

    um dos 12 franciscanos que chegaram Nova Espanha em 1524

    definindo, assim, o ano de sua morte, 1569, como o limite da primeira etapa da histria

    religiosa mexicana que complementada em 1591, quando outro franciscano,

    Bernardino de Sahagn, faleceu. Encontramos abordagem semelhante no artigo do

    Fernando Ansa (1993), para quem o perodo entre 1513 e 1577 foi o da utopa emprica

    del cristianismo social, marcado, sobretudo, pelas atividades apostlicas das ordens

    mendicantes no Mxico.

    A obra de Robert Ricard e suas releituras e apropriaes ao longo do sculo

    XX conformaram aquilo que nomeamos matrizes franciscanas da construo da ruptura

    no sculo XVI. Elas partiram das crnicas produzidas pelos religiosos17

    (especialmente os

    franciscanos do sculo XVI e incio do XVII) para situar um pouco antes ou depois de

    1570 o momento de ciso na histria eclesistica do vice-reino. Entretanto, diferentemente

    das matrizes jesuticas, essas interpretaes inverteram os valores e os sentidos atribudos

    quela descontinuidade: em vez da decadncia, que deveria ser superada pela regenerao

    e pela reforma moral, tratava-se de um perodo dourado que estava sendo substitudo por

    outro, prateado. E, num caso ou noutro, o quadro delineado mostrava que as ordens

    religiosas pioneiras perdiam seu espao em razo da ascenso do clero secular e da

    chegada dos jesutas.

    16

    Com o ttulo de Historia de los indios de la Nueva Espaa (2001). 17

    Conforme notou Antonio Rubial Garca (2001, p. 258), os cronistas das ordens mendicantes tendiam a

    descrever a Igreja primitiva como quase perfeita em seus relatos escritos no final do sculo XVI e incio do

    XVII. Tratava-se de um recurso para exaltar a trajetria de seus confrades e enfrentar os desafios e as

    restries que lhes estavam sendo impostos pela Coroa espanhola.

  • 35

    Os aspectos sociais e a crise na Nova Espanha

    Alm das matrizes jesuticas e franciscanas, outras interpretaes foram

    elaboradas nas ltimas duas dcadas para explicar a ruptura na histria mexicana no sculo

    XVI. Entre as novas leituras, lanou-se luz sobre as alteraes na sociedade virreinal que

    ajudariam a compreender a troca de comando na Igreja por volta de 1570. De maneira

    geral, afirma-se que, conforme o tempo passava, a sociedade mexicana ganhava novas

    feies menos favorveis ao trabalho missionrio das ordens religiosas. Um dos aspectos

    considerados a diminuio da populao indgena e o crescimento do nmero de crioulos

    e espanhis no tero final do sculo XVI. Como os religiosos haviam se dedicado

    exclusivamente aos nativos, seus espaos de atuao se tornavam cada vez menores.

    Segundo Solange Alberro (1999, p. 77 e ss.), a sociedade mexicana passava por

    transformaes significativas, s quais os mendicantes no eram capazes de atender. Os

    crioulos ganhavam corpo e precisavam ser integrados sociedade e vida civil e

    eclesistica. Nesse sentido, o clero secular se abriu primeiro entrada dos crioulos, alm

    de ter mantido relaes mais amigveis com os peninsulares e com as autoridades civis.

    Assim, os diocesanos puderam desfrutar de maior prestgio social nas ltimas dcadas do

    sculo XVI, enquanto os regulares viam reduzir seu espao de atuao na capital do vice-

    reino (CHOCANO MENA, 2000b, p. 25-28). s transformaes sociais e ao prestgio do

    clero secular, a historiadora Solange Alberro acrescentou outro elemento para explicar as

    mudanas na Amrica: a emergncia de um novo projeto poltico para a Nova Espanha que

    prescindia dos regulares. Segundo essa autora:

    Pero si la Nueva Espaa de las ltimas dcadas del siglo XVI tena poco

    que ver con la de las primeras, tambin haba cambiado el proyecto

    poltico original que la monarqua haba concebido e impuesto a los

    reinos americanos. Terminadas en sus fases principales la conquista

    militar y espiritual, el conquistador y el fraile se volvieron obsoletos,

    cuando no indeseables. [...] Slo en las regiones apartadas y an

    indmitas se consenta la presencia del guerrero, el misionero y el

    encomendero, porque resultaban insustituibles y, por tanto,

    imprescindibles en las primeras etapas de la penetracin hispana. Pero en

    la mayor parte del Mxico central tuvieron que ceder el lugar a los

    funcionarios reales y al clero secular. (ALBERRO, 1999, p. 78)

    Conforme se nota, Alberro entende que as dcadas finais separaram duas

    etapas: a primeira, da conquista espiritual e militar, era caracterizada pela fora dos

  • 36

    conquistadores e pela presena dos encomenderos e dos frades; a segunda, quando se

    alterou o projeto poltico da Coroa, era marcada pela influncia dos funcionrios reais e do

    clero secular. A historiadora assume, assim, a perspectiva mais ampla da conquista

    espiritual de Robert Ricard e ratifica o fim da edad de oro nas ltimas trs dcadas do

    sculo XVI. Em tom dramtico, Alberro (1999, p. 79) conclui que los frailes de las tres

    primeras rdenes tuvieron que abandonar a quienes consideraban como sus hijos queridos

    al clero secular, que chegara tarde ao vice-reino e era ignorante, quando no indiferente,

    em relao ao mundo indgena. No se tratava, porm, de disputas meramente

    eclesisticas, mas de contendas que envolviam outros elementos, como as alteraes

    sociais e os projetos polticos coordenados desde a Espanha a fim de levar adiante o

    processo de secularizao18

    . Parte dessas mudanas, sublinha Solange Alberro, expressava-

    se por meio de dois acontecimentos decisivos para os rumos da jovem Igreja e, em

    particular, dos religiosos: a introduo do Tribunal do Santo Ofcio, em 1571, e a chegada

    dos jesutas, em 1572.

    Mara Alba Pastor (1999) compartilha o ponto de vista de Solange Alberro a

    respeito do surgimento de um novo projeto poltico para a Nova Espanha. A tese central

    de Pastor a de que a sociedade novo-hispnica enfrentou um perodo de crise e

    recomposio social durante a transio do sculo XVI para o XVII, entre 1570 e 1630. A

    crise e as mudanas por ela impulsionadas teria sido provocada por diversos fatores,

    tais como a desestruturao das sociedades indgenas e de suas tradies, as reformas na

    Igreja, o surgimento de um novo quadro de valores com a Contrarreforma e o aumento do

    nmero de imigrantes europeus e africanos. Para superar tal crise19

    e reorganizar a

    18

    Partilhando de ponto de vista semelhante, Ernesto de la Torre Villar escreveu um interessante artigo sobre

    a administrao pblica e o governo civil e eclesistico no Mxico. Nesse texto, Torre Villar (1985) trata da

    administracin casuista y rigurosa de Felipe II e da tendncia secularizadora, entendida como a maior

    participao do Estado nos assuntos da Igreja, sobretudo pelo crescente aumento da autoridade dos bispos. 19

    A autora utiliza o conceito de crise para explicar e significar um perodo marcado por mudanas

    estruturais na sociedade mexicana do final do sculo XVI. importante lembrar, porm, que a palavra

    crise com o sentido empregado por Mara Alba Pastor no era usada correntemente at o sculo XVII.

    Como bem notou Jos Antonio Maravall, em seu clssico A Cultura do Barroco (1997, p. 67), a palavra

    crise surgiu muito antes, no terreno da medicina, e seu derivado, o adjetivo crtico, que s vezes

    substantivado e assim se fala da pessoa do crtico , comea a ser empregado no comeo do sculo XVII,

    ou seja, durante o perodo que pretendemos estudar. Porm, est longe esse vocbulo de significar os estados

    sociais de perturbao a que nos vimos referindo. No entanto, embora falte a palavra, no falta a conscincia

    para perceber a presena desses momentos da vida social, anormais, desfavorveis, especialmente

    convulsionados, aos quais chamaremos crise. Tal como Maravall, Pastor conceitua os momentos

    especialmente convulsionados da sociedade mexicana da virada do sculo XVI como crise, embora, ao

    contrrio do que faz o historiador espanhol, ela no evidencie qual era a conscincia que aquela sociedade

    tinha da crise.

  • 37

    sociedade novohispana, surgiram, segundo a autora, duas propostas, concorrentes e

    complementares.

    primeira, ela deu o nome de contrarreformista y monrquica. Seria uma

    combinao de esforos da Igreja ps-tridentina e do Estado espanhol sob Felipe II. De

    acordo com Pastor, os principais objetivos desse projeto eram disciplinar e unificar as

    mltiplas culturas diversas; combater o relaxamento moral; catequizar os nativos e

    combater as idolatrias e heresias; impulsionar a educao; difundir a arte maneirista;

    estabelecer o Tribunal do Santo Ofcio; reorganizar e controlar a cobrana de dzimos; e

    ampliar o clero secular (PASTOR, 1999, p. 8-11). A autora caracterizou a segunda

    proposta como criolla. Esse projeto nascia como uma espcie de contrapartida do primeiro,

    que, com seu af de controlar e centralizar o poder, atingia os interesses dos crioulos,

    limitando-os s margens da vida poltica e social do vice-reinado. Desse modo, seguindo a

    argumentao de Pastor, os espanhis nascidos no Mxico se organizaram a fim de formar

    seus prprios poderes locais, aliando-se s famlias de boa posio e burocracia urbana;

    buscar alianas matrimoniais que lhes favorecessem maior circulao e prestgio social;

    ingressar nos centros educativos, sobretudo naqueles administrados pela Companhia de

    Jesus; se colocar frente das empresas da Nova Espanha, como as casas de comrcio, de

    finanas e de exportao20

    .

    medida que esses dois projetos eram colocados em prtica, segundo Mara

    Alba Pastor, as ordens religiosas pioneiras perdiam ainda mais espao. Observadas em

    conjunto, as propostas no favoreciam em nada o trabalho dos mendicantes. As decises de

    centralizar e uniformizar as aes eram opostas s prticas dos regulares, que atuavam,

    quase sempre, de modo independente e descentralizado. O aumento da populao crioula e

    sua participao na sociedade quase no diziam respeito s atividades missionrias dos

    frades, que haviam se dedicado exclusivamente aos indgenas at os anos 1570. Alm

    disso, Pastor chama a ateno para o fato de que os mendicantes enfrentavam dificuldades

    internas, provocadas por certo debilitamento e perda de autoridade:

    Durante el proceso de crisis y recomposicin se puso en evidencia la

    prdida del lugar central que haban ocupado las rdenes mendicantes

    durante la primera mitad del siglo XVI. Desde la dcada de los sesenta de

    ese siglo, las actas capitulares y otros documentos religiosos lamentaban

    el progresivo debilitamiento de la obediencia y la autoridad, la prdida

    del significado de la pobreza misional y el abandono de las funciones

    religiosas de los mendicantes. Entre sbditos y superiores se haba

    20

    Para os detalhes dos dois projetos, ver os captulos II (Los valores de la Contrarreforma, p. 55 e ss.) e V

    (Las conductas criollas, p. 197 e ss.).

  • 38

    generado un clima de mutua desconfianza. Los frailes abusaban de los

    obsequios de los indios, malversaban los fondos de las cajas de las

    comunidades, negociaban con libros, misas y estipendios, les concedan

    beneficios a sus familiares, ignoraban el voto de castidad y mostraban

    gusto por la comodidad y la ostentacin. A pesar del aumento del

    personal eclesistico, la asistencia indgena a la Iglesia haba declinado

    desde 1550. (PASTOR, 1999, p. 171)

    Havia, pois, um choque entre o projeto contrarreformista e monrquico, cujo

    eixo estava nas propostas de centralizar, reformar, reordenar, reorganizar e disciplinar, e as

    prticas relaxadas dos mendicantes, debilitadas e carentes de autoridade. Do mesmo

    modo, as propostas crioulas no se alinhavam s perspectivas dos missionrios, que

    ignoravam aquela parcela da sociedade. Ao definir esse impasse para os frades, Pastor

    aproxima-se bastante da concepo de ruptura esboada entre os historiadores de matriz

    jesutica, segundo a qual a descontinuidade indicava o incio de um perodo de

    regenerao, de reforma. Nesse sentido, o declnio das ordens religiosas e a ascenso de

    novos grupos (como os diocesanos e os jesutas) no eram processos aleatrios ou isolados,

    mas, pelo contrrio, integravam um projeto mais amplo (com suas faces monrquicas e

    crioulas) que estava sendo posto em prtica desde os anos 1570 para superar o perodo de

    crise.

    OUTROS NGULOS, NOVAS PERSPECTIVAS

    As interpretaes acima, espraiadas pelos ltimos 100 anos, partilharam a

    noo de que houve uma ruptura na histria da Igreja mexicana, localizada geralmente na

    dcada de 1570, que resultou em alteraes na administrao eclesistica e na separao de

    duas etapas. Conquanto concordassem em tal ponto, as trs matrizes historiogrficas

    atriburam, como vimos, sentidos distintos quele recorte: ora a fissura indicava o princpio

    de uma fase de regenerao, ora o final de uma idade dourada ou, ento, um perodo de

    crise. Contudo, o consenso acerca da ruptura persistia de tal forma que possvel encontrar

    seus reflexos em estudos to diferentes entre si quanto o manual assinado por James

    Lockhart e Stuart B. Schwartz (2002)21

    e o ensaio de Jacques Lafaye acerca de

    21

    Para Schwartz e Lockhart (2002, p. 156), iniciou-se nas ltimas dcadas do sculo XVI o perodo de

    maturidade do vice-reinado: Como comeamos a dizer no final do captulo anterior, as leis e instituies

    tomaram forma no incio do perodo maduro, duraram tanto tempo quanto a poca e ajudaram a defini-la. As

    prticas que a haviam desenvolvido gradualmente no comrcio, na navegao e no artesanato encontraram

    expresso constante nas guildas de mercadores e artesos e nas frotas transatlnticas, elaboradamente

  • 39

    Quetzalcatl y Guadalupe (1992)22

    ; ou ento entre a obra monogrfica de Alicia Mayer

    sobre Lutero en el Paraiso (2008)23

    e a tese de Marcelo Rocha a respeito das carreiras

    jurdicas na Nova Espanha (2010)24

    . Em lngua espanhola, inglesa, francesa ou portuguesa,

    a concluso parecia ser a mesma.

    Na maioria dessas anlises, os historiadores repisaram os mesmos aspectos

    para atestar o corte em 1570. O Santo Ofcio, os jesutas, o novo arcebispo mexicano, o

    Real patronato, o sequestro das crnicas dos mendicantes, o III Conclio Provincial:

    todos esses elementos respaldavam a construo da ruptura na histria eclesistica. Afinal

    de contas, eles indicavam o fim da era das ordens religiosas e o incio da fase dos bispos; o

    trmino da descentralizao e da autonomia dos frades e o princpio da uniformizao e da

    hierarquizao das prticas religiosas; o outono das utopias mendicantes e a primavera do

    pragmatismo diocesano e jesutico. Acreditamos, no entanto, que vale a pena questionar

    algumas dessas concluses a fim de, seno refut-las, oferecer outras leituras para esse

    debate.

    O primeiro aspecto para o qual gostaramos de chamar a ateno a

    compreenso que se tem da presena do terceiro arcebispo mexicano, D. Pedro Moya de

    Contreras. Esse religioso foi o primeiro diocesano a ocupar o cargo, que havia ficado

    anteriormente sob responsabilidade de homens procedentes das ordens mendicantes:

    Francisco de Zumrraga, franciscano, e Alonso de Montfar, dominicano. Como o

    financiadas, organizadas em comboios e programadas, e as duas, guildas e frotas, sobreviveram quase da

    mesma forma at sofrerem vrios tipos de crise no final do perodo [sculo XVIII]. Do mesmo modo, a

    funo inquisitorial da igreja, que tinha sido executada pela hierarquia comum, veio a ser incorporada ao

    autnomo Tribunal da Inquisio. Os mosteiros e conventos se expandiram, multiplicando-se e subdividindo-

    se para representar comunidades recm-reconhecidas e consolidadas do mundo his