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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
ANDERSON ROBERTI DOS REIS
A COMPANHIA DE JESUS NO MXICO:
EDUCAO, BOM GOVERNO E GRUPOS LETRADOS
(SCULOS XVI-XVII)
Verso Corrigida
So Paulo
2011
ANDERSON ROBERTI DOS REIS
A Companhia de Jesus no Mxico:
educao, bom governo e grupos letrados
(sculos XVI-XVII)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria Social do Departamento de Histria
da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo para a
obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Orientadora:
Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva
Verso corrigida
De acordo:
Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva
So Paulo
2011
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho,
por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo
e pesquisa, desde que citada a fonte.
REIS, Anderson R. dos. A Companhia de Jesus no Mxico: educao, bom
governo e grupos letrados (sculos XVI e XVII). Tese apresentada
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias da Universidade de So Paulo para
a obteno do ttulo de Doutor em Histria.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. __________________________ Instituio: _________________
Julgamento: _________________ Assinatura: _______________________
RESUMO
REIS, Anderson R. dos. A Companhia de Jesus no Mxico: educao, bom governo e
grupos letrados (sculos XVI e XVII). 2011. 280 f. Tese (Doutorado) Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.
Esta tese pretende analisar as particularidades que envolveram a organizao da viagem, a
instalao e o incio das misses da Companhia de Jesus no Mxico a partir de 1572.
Tendo em vista a dedicao dos jesutas educao e s atividades urbanas durante as trs
primeiras dcadas aps a sua chegada, o presente estudo examina os fundamentos que
nortearam os projetos de ensino nos colgios da Ordem na capital do vice-reino. Parte-se
da premissa que aqueles religiosos compartilhavam certa noo de bom governo que
embasava suas prticas educativas e missionrias. Valendo-se de tal princpio, prope-se
aqui uma reflexo a respeito da participao e influxo dos jesutas na sociedade mexicana
dos sculos XVI e XVII por meio de suas atividades citadinas, como jurisconsultos, e
colegiais, como professores e formadores de grupos letrados.
Palavras-chave: Companhia de Jesus; Mxico; Educao; Amrica Colonial.
ABSTRACT
REIS, Anderson R. dos. The Society of Jesus in Mexico: education, good government
and literate groups (16th
and 17th
centuries). 2011. 280 f. Tese (Doutorado) Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.
This thesis aims to analyze the peculiarities involved in the organization of the trip, the
installation and the beginning of the missions of the Jesuits in Mexico since 1572. Given
the dedication of Jesuit towards education and urban activities during the first three
decades after their arrival, this study examines the rationale that guided the teaching
projects in their colegios in the capital of the viceroyalty. We start with the premise that
those religious shared a certain notion of good government that supported their
educational and missionary practices. Drawing on this principle, we propose here a
reflection on the participation and influence of the Jesuits in Mexican society in the
sixteenth and seventeenth centuries through their urban activities, as lawyers, and
collegians, as teachers and forgers of literate groups.
Key-words: Society of Jesus; Mexico; Education; Colonial America.
AGRADECIMENTOS
Profa. Dra. Janice Theodoro da Silva, antes de qualquer coisa, pela acolhida
na USP e pela orientao precisa e paciente: muito obrigado! S quem teve a oportunidade
de trocar ideias com a Janice sabe o quanto uma conversa pode ser inspiradora. E imaginar
que perdi a conta das vezes em que me reuni com ela para bater papo. Sinto-me
privilegiado por ter sido seu aluno e compartilhado a elaborao deste trabalho com ela.
Cabe lembrar, contudo, que os possveis defeitos desta tese so de minha responsabilidade.
Aos doutores Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron e Jos Alves de Freitas
Neto pelas valiosas crticas e sugestes feitas no exame de qualificao. Tive a sorte de
contar com leituras rigorosas e arguies elegantes. Aproveito, tambm, para agradecer ao
Zeron pela generosidade de ter compartilhado alguns livros sobre os jesutas na Amrica
que, sabemos, s ele possui. E ao Z Alves, parceiro em numerosos projetos e utopias,
trs palavras que conseguem apenas resumir a minha gratido: muito obrigado, amigo!
Ao Prof. Dr. Leandro Karnal pela amizade e interlocuo ao longo dos ltimos
oito anos. Boa parte do meu interesse pelo estudo da Companhia de Jesus no Mxico se
deve s diversas vezes em que conversamos sobre as trajetrias da evangelizao na
Amrica. O Karnal tambm dono de uma riqussima biblioteca muitas vezes desfalcada
em razo dos longos emprstimos que fiz. Mea culpa... E muito obrigado!
Nos ltimos cinco anos, tive a oportunidade e o prazer de conhecer diferentes
pessoas que colaboraram para a realizao desta tese. A todos sou muito grato. Ao Prof.
Dr. Jean-Claude Laborie, da Universit Jean-Moulin Lyon 3, pelas ideias propostas ainda
na fase inicial da pesquisa. Ao Prof. Dr. Federico Navarrete Liares, da Universidad
Nacional Autnoma de Mxico, e a sua esposa, Edith Llamas, da Universidad
Iberoamericana, pelo auxlio e dicas ao longo do perodo em que estive no Mxico para
pesquisar. Por intermdio de Edith Llamas, conheci o Prof. Dr. Alfonso Mendiola Meja e
o Pe. Rafael Ignacio Rodrguez Jmenez, S. J., que me franqueou o acesso ao Archivo
Histrico de la Provincia Mexicana de la Compaa de Jess na Cidade do Mxico. Por
fim, agradeo Profa. Dra. Antonella Romano, do European University Institute,
Florence, pelas sugestes oferecidas durante curso ministrado na Universidade de So
Paulo, em agosto de 2009.
Os amigos que ganhei no perodo da ps-graduao compensaram as longas
jornadas de estudo (quase sempre solitrio) e as agruras da pesquisa acadmica e da
burocracia universitria. Com eles, dividi no apenas o transporte e as dirias em viagens e
congressos, mas tambm sonhos e ideias. Por isso, agradeo ao Duda (que alguns teimam
em chamar de Luiz Estevam) pelo companheirismo e pelos projetos que partilhamos nos
ltimos anos. Saudades, meu caro, de nossa estada no Mxico e das infinitas conversas
regadas a rocknroll. O Marcus Vincius, outro integrante da trupe que foi ao Mxico
mgico em 2007, um dos caras mais engraados que conheci, daqueles que do leveza
at mesmo a visita a um archivo. Obrigado, Marquinhos, por nossas conversas e pelo
convvio, com os quais aprendi bastante. O Lus Guilherme Kalil tambm da turma
daqueles que, apesar de srios, fazem rir e com quem vale a pena conversar, de poltica a
futebol. Valeu, Kalil! Estamos juntos...
Profa. Cida Baslio, do Grupo Drummond, que compreendeu o meu
afastamento das salas de aula ao longo dos anos nos quais minha pesquisa foi financiada.
Obrigado pela ateno e generosidade.
Car Murgel, pelo auxlio com as questes operacionais na Unicamp durante
os meses em que redigi a tese. Sem seu traquejo e esprito prtico para resolver impasses,
eu teria enlouquecido antes do ponto final.
Aos amigos de toda hora, que, de to presentes nos ltimos anos, so a famlia
de que no abro mo: Andrezo, Edu, Fbio, Joel, Mrcio, Montanha, Piu, Rodrigo, Will,
Z Cludio... Gente da melhor qualidade. Ao Rafael, que tambm desta estirpe, pelas
constantes palavras de apoio e pelas discusses sobre a contemporaneidade que sempre
me fizeram pensar e ir alm.
rapaziada do futebol, que nem parece varziano tamanha a organizao. Para
no correr o risco de, trado pela memria, ser injusto, estendo o meu muito obrigado a
todo o pessoal do Porto (V. Galvo) e do Razes (Jd. Cabuu) pela amizade e
camaradagem s quartas e aos domingos, chova ou faa sol. Eles me chamam de
professor, mas, em geral, quem aprende sou eu.
Mara, com quem partilhei os meus segredos nos ltimos anos. Obrigado
pelo carinho, amor e compreenso, linda! Pessoas especiais, como ela, tm linhagem. O
Favali, a Ivete e o Johnny so sinnimos de encontros divertidos, regados a bom papo,
bohemia e, o principal, carinho. Gracias, amigos...
Faltam-me palavras para descrever a minha gratido D. Maria, minha me.
Talvez dizer que agradeo por tudo seja o mais simples e adequado a fazer aqui, ciente de
que tudo ainda insuficiente para externar o quanto devo a ela. Se pude seguir adiante e
alcanar meus objetivos porque sei que posso contar com ela para o que der e vier.
Muitssimo obrigado, me!
Fundao de Apoio Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) pelo
financiamento desta pesquisa durante trs anos. A bolsa e a reserva tcnica me deram a
tranquilidade de que precisava para fazer a tese e participar de reunies acadmicas.
Obrigado.
memria da tia Avelina, que, de to prxima,
foi muitas vezes minha segunda me.
[...]
Porque sei que o tempo sempre o tempo
E que o espao sempre o espao apenas
E que o real somente o dentro de um tempo
E apenas para o espao que o contm
Alegro-me de serem as coisas o que so
E renuncio face abenoada
E renuncio voz
Porque esperar no posso mais
E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar
De que me possa depois rejubilar
T.S. Eliot, Quarta-feira de Cinzas, 1930.
SUMRIO
INTRODUO 13
PARTE I RECORTES HISTORIOGRFICOS 24 CAPTULO 1 RUPTURAS E CONTINUIDADES: REFLEXES E INTERPRETAES
SOBRE A HISTRIA ECLESISTICA NA NOVA ESPANHA 25
A construo da ruptura...................................................................................................... 26
Outros ngulos, novas perspectivas.................................................................................... 38
Sobre a ruptura e a Companhia de Jesus............................................................................ 51
PARTE II A COMPANHIA DE JESUS NO MXICO 56 CAPTULO 2 O CONCERTO DA VIAGEM E A INSTALAO NO VICE-REINO 57
Os jesutas requisitados na Nova Espanha antes de 1572.................................................. 57
Amarrando os fios............................................................................................................... 67
Rumo ao Mxico................................................................................................................. 76
CAPTULO 3 IMPASSES NA PROVNCIA MEXICANA: COLGIOS OU MISSES? 91
As circunstncias mexicanas............................................................................................. 104
PARTE III EDUCAO E BOM GOVERNO 111
CAPTULO 4 OS JESUTAS E O BOM GOVERNO NO MXICO 112
Os sentidos do bom governo............................................................................................... 114
Os significados do bom governo nas ndias....................................................................... 120
Aspectos da organizao jurdica na Nova Espanha.......................................................... 131
Os jesutas como jurisconsultos.......................................................................................... 135
CAPTULO 5 LETRAS Y VIRTUDES NOS COLGIOS JESUTAS 157
Aspectos da educao na Nova Espanha............................................................................ 158
As latinidades nos colgios jesutas do Mxico................................................................. 170
PARTE IV EDUCAO JESUTICA E UNIVERSO LETRADO 193
CAPTULO 6 OS JESUTAS E A FORMAO DE GRUPOS LETRADOS NO MXICO 194
A Ciudad Letrada: contribuies para um debate.............................................................. 195
Os egressos de San Ildefonso nos sculos XVI e XVII...................................................... 205
CONCLUSO 222
FONTES E BIBLIOGRAFIA 229
APNDICE 265
13
INTRODUO
As misses jesuticas so, decerto, um dos temas mais estudados pelos
historiadores interessados em histria moderna e/ou no perodo colonial do continente
americano. Contudo, poucos trabalhos monogrficos foram escritos em lngua portuguesa
sobre a Companhia de Jesus na Nova Espanha, vice-reino que, junto com o Peru, ocupou
um lugar central entre as regies que atraram a ateno dos pesquisadores estrangeiros. A
fim de contribuir com as reflexes mais amplas a respeito da presena jesutica na
Amrica, esta tese tem por objetivo analisar as particularidades da chegada, da instalao e
das misses dessa ordem religiosa no Mxico1 entre o final do sculo XVI e o incio do
XVII. E, mais especificamente, o presente estudo pretende examinar as questes ligadas
educao e s atividades urbanas a ela relacionadas.
Desde sua fundao, a Companhia havia se lanado em vrias direes do
globo: da Europa, passando pela sia e frica, at a Amrica. No continente americano,
porm, os domnios espanhis permaneceram desconhecidos dos padres at meados dos
anos 1560, quando os religiosos iniciaram as primeiras misses na Flrida (1566), seguidas
pela instalao no Peru (1568) e no Mxico (1572). Se considerarmos que essas regies
eram povoadas por leigos e missionrios havia pelo menos quatro dcadas, e que a
Companhia de Jesus se estabelecera na Amrica portuguesa em 1549, poderemos concluir
que se tratava de uma chegada tardia da Ordem. Da curiosidade sobre esse atraso,
principalmente no caso mexicano, nasceram os primeiros interesses pelo tema desta
pesquisa. Afinal de contas, logo aps a conquista de Hernn Corts, sucessivas levas de
espanhis e de outros estrangeiros desembarcaram na Nova Espanha, acompanhados por
religiosos de diversos ramos. Os franciscanos, por exemplo, estavam no Mxico desde
1523, pioneirismo que dividiram com dominicanos (1526) e agostinianos (1533).
A instalao dos jesutas no Mxico em 1572 foi marcada por algumas
particularidades. Em primeiro lugar, havia uma questo de natureza espacial: onde fixar
residncia, considerando a presena dos demais grupos religiosos que j se encontravam
1 A utilizao do termo Mxico neste estudo refere-se cidade que se tornou a capital do vice-reino da
Nova Espanha durante o perodo colonial.
14
naquela cidade? No se tratava de falta de opes ou de solares2 disponveis, mas de uma
negociao que envolvia os interesses das ordens religiosas pioneiras, dispostas a manter
suas reas de influncia na capital do vice-reino muitas delas delineadas desde os anos
1520. Em segundo lugar, o comeo efetivo das misses era dificultado por determinados
obstculos iniciais: se o Mxico estava povoado por religiosos, por onde comear as
atividades pastorais? Em geral, a leitura de qualquer manual de histria eclesistica novo-
hispnica nos permite saber que a resposta a essa pergunta enfatizou a dedicao dos
jesutas educao dos jovens crioulos da capital e s misses entre os indgenas nas
regies ao norte do vice-reino.
A terceira especificidade que caracterizou a acomodao da Ordem aps 1572
refere-se justamente ocupao principal dos padres. Em menos de uma dcada, os
jesutas eram responsveis por quatro convictorios, abrigos de jovens estudantes no
Mxico, e ministravam aulas de gramtica latina, humanidades, retrica, artes e teologia no
Colgio Mximo e em outros colgios fundados em cidades vizinhas. A maior parte dos
religiosos da Companhia de Jesus na Nova Espanha desempenhava funes vinculadas
vida citadina e educao dos adolescentes e jovens crioulos nos colgios. Diferentemente
das demais ordens mendicantes, os jesutas comeavam seu apostolado nas reas centrais,
urbanizadas e tomando como ponto de partida a organizao de uma rede de colgios. A
experincia acadmica dos padres que chegaram sucessivamente ao Mxico, muitos deles
notveis telogos provenientes dos principais colgios da Ordem ou de universidades
europeias, certamente contribuiu para a expanso das atividades educativas em detrimento
das misses entre os indgenas. Se pretendemos, pois, compreender como a Companhia
chegou ao Mxico e se instalou nessa capital, devemos examinar o processo que resultou
nessa escolha inicial.
H, por fim, outra particularidade que envolveu a gnese dos projetos
missionrios jesuticos no Mxico. Trata-se da proximidade temporal entre a chegada da
Ordem e outros eventos ligados organizao eclesistica novo-hispnica. Entre outros
acontecimentos, convm sublinhar a instalao do Tribunal do Santo Ofcio (1571), a
nomeao do diocesano Pedro Moya de Contreras ao arcebispado (1573) e a reiterao do
Real patronato (1574) por Felipe II, que tambm enviou cronistas oficiais ao vice-reino e
confiscou alguns relatos elaborados por frades franciscanos em 1577. Como veremos
2 Conforme seus usos no perodo colonial, o termo solar pode indicar tanto o terreno quanto a prpria
edificao.
15
adiante, interpretou-se com frequncia que a presena dos jesutas coincidia com o
surgimento de um novo projeto, evidenciado por aqueles eventos. Desse modo, a
instalao da Companhia no Mxico inseria-se no panorama mais amplo das mudanas de
planos capitaneadas pela Coroa espanhola, que, alegando as clusulas do Padroado,
interferia cada vez mais na administrao da Igreja.
Observando esses pormenores, podemos esboar o seguinte quadro, sobre o
qual nos debruaremos a fim de oferecer contornos mais precisos. Aps desembarcar em
San Juan de Ula, os jesutas dedicaram-se inicialmente s atividades nos colgios e,
apenas em pequena escala, s misses entre os indgenas em razo de sua chegada tardia
ao Mxico, cuja Igreja havia sido estruturada pelas ordens mendicantes, mas enfrentava um
perodo de mudanas que apontavam o enfraquecimento do clero regular. Essa afirmao
sintetiza o consenso que pretendemos examinar, em detalhe, ao longo deste estudo. Isto :
os argumentos que sugerem a coincidncia entre a presena jesutica e o surgimento de um
novo projeto para a Igreja novo-hispnica; os motivos que impulsionaram e viabilizaram a
viagem daqueles religiosos ao Mxico em 1572; as razes que conduziram os padres
sobretudo para os colgios, em detrimento das misses durante as primeiras dcadas; e os
sentidos e os impactos da educao administrada pela Companhia de Jesus.
A HIPTESE, O RECORTE E AS PRINCIPAIS FONTES
Tendo em vista as particularidades que nos motivaram inicialmente,
formulamos a hiptese ampla que d corpo a este estudo e que foi desdobrada nas quatro
partes que compem a tese. Qual seja: a educao jesutica no Mxico e as atividades
urbanas a ela relacionadas na transio do sculo XVI para o XVII no se restringiam a
projetos e interesses da Coroa, mas decorriam, tambm, de circunstncias e demandas
locais prprias da organizao eclesistica novo-hispnica. Nesse sentido, os ministrios
ligados ao ensino e s obras de misericrdia e reconciliao significavam a primeira
participao da Companhia de Jesus na sociedade mexicana, no para pr em marcha um
projeto previamente estabelecido, mas para conformar uma noo de bom governo,
entendido como um conjunto de normas, valores e prticas morais que deveriam conduzir
os homens ao bem comum.
Com base em tal premissa, quisemos enfrentar o debate sobre os resultados
iniciais da presena jesutica no Mxico, sobretudo em razo da dedicao dos padres
16
educao e s misses urbanas. Embora se tenha anunciado, faz algum tempo, que j
hora de evitar a radicalizao da oposio entre jesuitismo e antijesuitismo 3, parece-
nos que parte da produo historiogrfica sobre a presena da Companhia no Mxico
continuou pendendo para um lado ou outro nas ltimas dcadas, renovando interpretaes
consagradas ou por literaturas apologticas ou detrativas. Estamos nos referindo tanto a
estudos que vincularam as misses jesuticas regenerao moral da Igreja e s bases da
formao da nao mexicana (CUEVAS, 1992) como quelas leituras que tenderam a
conceber a presena da Ordem no vice-reino como uma extenso das medidas repressoras
da Coroa (CHOCANO MENA, 2000b). Veremos, ao longo deste estudo, exemplos de uma
e outra vertente.
O recorte temtico do item bom governo para examinar a fundao dos
colgios jesuticos no Mxico pareceu-nos duplamente adequado para tal tarefa. Em
primeiro lugar, porque se tratava de um termo cujo uso era corrente entre os religiosos nos
sculos XVI e XVII. Notamos que, a despeito das diferentes apropriaes daquela
expresso na Nova Espanha, o bom governo apareceu sempre vinculado ao exerccio de
governana que tinha por objetivo ltimo alcanar o bem comum. Ou seja, a governana
resultava de uma prtica moral que visava tranquilidade pblica, s solues justas e
salvao da alma e no de um exerccio tautolgico do poder, para utilizar a expresso de
Michel Senellart (2006).
Em segundo lugar, porque a noo de bom governo, do modo como a
definimos, polissmica e no est atrelada a um juzo de valor. Se afirmamos, por
exemplo, que as atividades jesuticas nos colgios organizavam-se com base na ideia de
bom governo, no estamos sustentando que elas eram boas. De outro modo, ao
procedermos assim, argumentamos que elas partiam da premissa de que aquela ao (a
instruo dos jovens nas escolas) conduziria os sujeitos envolvidos realizao do bem
comum por meio de solues justas e virtuosas aos impasses da vida em sociedade.
Entretanto, conforme observamos, nem sempre houve consenso a respeito do que era o
3 Jos Ignacio Palencia decretou o fim das abordagens apologticas. E o fez, curiosamente, num artigo que
integra a coleo dirigida por Manuel Ignacio Prez Alonso (1975), por ocasio das comemoraes dos
quatro sculos de labor cultural dos jesutas no Mxico: Ha pasado ya el tiempo de la historiografa
apologtica, sea elega, panegrica, o pica; slo la crtica en cuanto es un esfuerzo consciente por trascender
el nivel de la crnica, nos permite, a la vez que rescatar, en cuanto posible, el pasado, apropiarnos de alguna
manera de l, y asumir el presente de un modo consciente con proyeccin al futuro [...] (PALENCIA, 1975,
p. 379). No tomo 120 da Revue de Synthse, Pierre-Antoine Fabre e Antonella Romano (1999) fazem um
balano bibliogrfico e refletem sobre a posio dos historiadores frente s leituras mais apologticas ou mais
crticas Companhia de Jesus.
17
bem comum em determinadas situaes. Questionava-se, por exemplo, se a defesa da
legitimidade dos repartimientos, com os quais se prorrogava o trabalho compulsrio dos
indgenas, era uma medida relativa ao bom governo. A resposta dependia da forma pela
qual se vinculava, necessariamente, o repartimento realizao do bem pblico. Outra
indagao possvel dizia respeito estrutura legal: desobedecer a uma lei qualquer,
adaptando-a a circunstncias especficas, indicava a boa governana? Caso essa infrao
implicasse o ajuste em busca da soluo adequada e do bem comum situao, a resposta
poderia ser positiva.
Assim, ao escolher o bom governo como porta de entrada para a reflexo
sobre a presena da Companhia de Jesus no Mxico, optamos por valorizar a lgica que era
prpria queles religiosos, bem como as tenses que resultavam das disputas em torno dos
sentidos cabveis a cada termo utilizado na definio daquela ideia. Distanciamo-nos,
portanto, das interpretaes que relacionaram indistintamente as iniciativas jesuticas,
sobretudo aquelas desenvolvidas no mbito da educao, aos interesses da Coroa
espanhola, da Igreja, do vice-rei, do bispo ou de qualquer outro projeto definido de modo
prvio. O bem comum almejado poderia coincidir muitas vezes com o bem da
monarquia, com o zelo pela Fazenda Real, como ressaltou Mario Gngora (1951). Em
outras ocasies, entretanto, ele poderia ser diferente ou mesmo contrrio, conforme se
notou nas diversas circunstncias em que os interesses se opuseram no vice-reino,
provocando atritos entre jesutas, bispos e vice-reis.
A utilizao dessa lgica da governana tambm nos permite sugerir outras
leituras a respeito do universo letrado que se vinculava e, em muitos casos, se originava
nas redes de colgios e seminrios da Companhia. Seguindo a trilha do bom governo,
podemos indagar acerca da relao entre o ensino jesutico, os jovens egressos e seus
destinos profissionais, a fim de refletir sobre o impacto da educao administrada pela
Ordem no Mxico. E, nesse passo, a anlise dos fundamentos da formao desses jovens
talvez seja to relevante quanto a apreciao de suas carreiras e suas possveis inseres na
administrao pblica do vice-reino. Independentemente de seu destino profissional, o
jovem instrudo nas clases da Companhia havia compartilhado, por anos, certo conjunto de
saberes responsveis por sua formao em sentido lato. Logo, podemos sugerir que se
observem os vnculos entre a educao jesutica e os grupos letrados no Mxico menos
pelo ngulo das elites, polticas, econmicas ou intelectuais, e mais pela senda dos
operrios, aqueles sujeitos que, apesar de no ocuparem postos nos altos escales do
18
governo, contriburam para a governana por meio da participao em diferentes
corporaes4.
O recorte cronolgico mais amplo deste estudo est enunciado em seu ttulo:
sculos XVI e XVII. Dedicaremos, no entanto, maior ateno ao perodo que vai de 1572
dcada de 1600, quando a Companhia de Jesus se institucionalizou no vice-reino aps a
fundao dos principais colgios no Mxico, da Casa Professa e das residncias e misses
pelas regies norte e noroeste da Nova Espanha. Pouca coisa mudou em relao
organizao geogrfica e institucional da Ordem no decorrer do sculo XVII. Como em
muitas ocasies nossa argumentao retroage s dcadas anteriores a 1570 e avana at o
final dos Seiscentos, optamos por apontar no ttulo o recorte mais amplo, embora devamos
ressalvar que no examinamos, ano por ano at 1700, todos os processos relativos s
misses jesuticas ou a suas atividades educativas. O ttulo da pesquisa tambm aponta
para os limites geogrficos da tese: abordaremos basicamente as aes dos padres no
Mxico, capital e sede das principais instituies polticas e eclesisticas do vice-reino.
Para atender hiptese e aos recortes definidos, utilizamos principalmente
quatro conjuntos documentais: o jesutico, composto pela correspondncia trocada entre os
padres e por outros papis ligados organizao da Ordem; o das crnicas religiosas; o das
cartas, documentos e memoriais diversos, referentes administrao poltica e eclesistica
do vice-reino; e, por fim, uma relao de alunos egressos do colgio de S. Ildefonso
elaborada pelo Dr. Flix Osores no incio do sculo XIX. Isolada ou simultaneamente,
esses grupos documentais sustentam as reflexes elaboradas nas partes que compem esta
tese, conforme se poder perceber.
AS PARTES DA TESE
Esta pesquisa est dividida em quatro partes; cada uma delas se assenta sobre
argumentos especficos. Na parte I, Recortes historiogrficos, nosso principal objetivo
analisar aquilo que denominamos a construo da ruptura. Isto , a operao
historiogrfica, para recorrermos expresso consagrada por Michel De Certeau (2002),
decorrente de interpretaes que argumentaram em favor da existncia de uma ruptura
4 Referimo-nos, indiretamente, doutrina jurdica dos corpora, assentada na convergncia da tradio
aristotlico-tomista com a afonsina, segundo a qual o reino (e, em nosso caso, o vice-reino) era um corpo
poltico constitudo por comunidades que contribuam para o bom governo. Esse tema ser esquadrinhado na
parte III.
19
decisiva na histria mexicana localizada na dcada de 1570. Baseamo-nos na premissa de
que a compreenso que se tem das misses jesuticas no Mxico relaciona-se diretamente
ao modo como foi construda e concebida a periodizao da histria eclesistica do vice-
reino. Nesse sentido, entendemos que, antes de examinar o processo de institucionalizao
da Companhia, necessrio questionar os critrios que fundamentaram a construo da
ruptura.
O gesto de criar perodos, eras ou idades muitas vezes acompanhados de
adjetivos, a exemplo das j famosas trevas medievais resulta de selees, comparaes
e valoraes feitas pelo historiador, que, desde seu lugar no presente, observa e l o
passado. Instados a lidar com materiais e fontes que se inscrevem em determinados
lugares de memria para utilizar a expresso consagrada por Pierre Nora (1989) , os
estudiosos escolhem, interpretam, contestam ou revalidam os elementos que consideram
pertinentes e os fixam em novas narrativas, que, ao longo do tempo, tambm comporo
outros suportes de memria5. Essa constatao est na base do argumento que organiza a
primeira etapa da tese, qual seja: boa parte da produo historiogrfica do sculo XX
reforou a periodizao referente ao sculo XVI legada pela memria construda,
sobretudo, pelos cronistas. Tanto as matrizes jesuticas como as franciscanas da
historiografia dos ltimos 100 anos como veremos compartilharam o mesmo princpio
da ruptura, embora lhe atribussem sentidos diferentes. E, ao revalidarem tal periodizao,
essas matrizes reforaram a memria da ruptura, que, conforme nossa hiptese, condiciona
a interpretao do significado das misses jesuticas no Mxico.
Cientes da subjetividade inerente ao gesto de estabelecer perodos, queremos
indagar as razes e os critrios que fundamentaram o consenso acerca da ruptura em 1570.
Veremos que outros recortes e ngulos so plausveis. Para atender s exigncias desse
debate, dialogamos com algumas das principais obras produzidas sobre a histria
eclesistica mexicana tais quais os textos j clssicos de Mariano Cuevas (1992) e de
5 Para a concepo imediata de memria, e sem a pretenso de entrar em seu debate mais terico e amplo,
tomamos emprestada a formulao de Leandro Karnal (2010, p. 557-558): No trabalho com o conceito
clssico de ideologia, de uma memria utilizada para encobrir uma relao de dominao, mesmo que essa
dominao exista. Trabalho com um conceito de memria como combinao de elementos conscientes e
inconscientes, pictricos e de retrica tradicional, combinados ou fragmentados, que fundem, omitem,
redefinem, aprofundam, alegorizam, metaforizam ou simplesmente criam uma viso que estabelea uma
ponte orgnica e instauradora de sentido, combinando os documentos disponveis com a necessidade
institucional do momento. Em suma, utilizo memria num leque amplo de significados e funes, mas
sempre garantindo que esses sentidos no remetam a conceitos de falso/verdadeiro.
20
Robert Ricard (2005) , entrecruzando-as com relatos de cronistas e com outros
documentos (cartas, memoriais) cujos temas relacionavam-se construo da ruptura.
A parte II, A Companhia de Jesus no Mxico, dedicada s anlises sobre a
viagem, a instalao e os impasses entre os jesutas que integraram as misses durante as
trs primeiras dcadas no vice-reino. Ns a dividimos em dois captulos: o captulo 2 trata
da organizao e das razes que impulsionaram a Ordem rumo Nova Espanha em 1572,
ao passo que o terceiro captulo aborda os debates em torno da finalidade das misses
jesuticas. Ambos os captulos valem-se do seguinte argumento: a presena da Companhia
e o desenvolvimento de suas atividades no Mxico resultaram tambm de demandas e
circunstncias locais, prprias da organizao eclesistica encontrada pelos padres, e,
portanto, no se limitavam a projetos definidos a priori. A trajetria da institucionalizao
da Ordem evidenciava, sob vrios aspectos, a distncia existente entre o que se
determinava na Europa e suas apropriaes pelos padres na Nova Espanha; entre as normas
expedidas em Roma ou Madri e as prticas americanas. E, nesse sentido, as condies
mexicanas que no eram as mesmas da China ou do Brasil tornam-se um fator crucial
compreenso das escolhas feitas por provinciais, reitores e padres em geral.
A argumentao desse captulo construda, quase que integralmente, com
base na correspondncia trocada entre os religiosos no Mxico e em Roma. exceo da
anlise sobre o modo pelo qual os cronistas construram certa memria da organizao da
misso e de algumas referncias a outros documentos, as cartas reunidas na Monumenta
Mexicana6 constituem nossa matria-prima principal. J se escreveu sobre a importncia
que tinha a instituio epistolar na estrutura e no funcionamento da Companhia de Jesus7.
Vrias vezes foram destacadas as particularidades de cada tipo de carta, as distines entre
as hijuelas e as edificantes8, as caractersticas das nuas e a relevncia da escrita de
maneira geral para a Ordem.
6 A fim de facilitar a leitura, a citao dos textos (introdues e notas) e dos documentos que integram a
Monumenta Mexicana respeitar o seguinte padro: MM, nmero do volume, nmero do documento, nmero
da pgina. Nas referncias bibliogrficas encontram-se os anos de cada volume, bem como o nome dos
editores. 7 A ttulo de exemplo, podemos citar os seguintes fragmentos: A Companhia de Jesus nasceu e se estendeu
no sculo XVI a quatro continentes sob o domnio da escrita (LONDOO, 2002, p. 13). Os discpulos de
Incio de Loyola permanecem os mais interessantes [missionrios], espalhando-se sobre todas as terras e,
sobretudo, organizando paralelamente aos seus deslocamentos fsicos um sistema de correspondncia nico e
extremamente sofisticado, que se estendia escala do mundo conhecido (LABORIE, 2005, p. 12). A
instituio epistolar era a espinha dorsal da empresa missionria jesutica no sculo XVI (EISENBERG,
2000, p. 49). 8 As edificantes eram endereadas tanto ao pblico interno quanto ao externo Ordem e tinham a pretenso
de relatar as notcias importantes das misses e, principalmente, o desenvolvimento das virtudes decorrente
21
Diante disso, convm sublinhar duas questes relativas correspondncia, de
modo geral, e Monumenta Mexicana, especificamente Tomados os cuidados para
identificar o tipo de documento, analisamos as cartas assim como as demais fontes com
base na premissa de que elas representam uma determinada viso, construda desde um
lugar especfico, e destinada a certo pblico. Em cada caso, embora nem sempre
enunciemos, buscamos compreender o que significavam os vocbulos determinada,
especfico e certo que serviram para generalizar a afirmao anterior. Esse exerccio
tem o mrito de afastar nossa anlise da perspectiva do testemunho daquilo que realmente
aconteceu medida que nos aproxima de conceitos como os de representao e lugares de
produo9. Isto , os textos produzidos por missionrios, bispos e vice-reis expressavam
sua percepo sobre algum evento e/ou processo, construindo uma ideia (ou imagem) que
deveria representar aquela realidade ante os olhos de seus leitores. Nesse passo, a
identificao do lugar que, sabemos, extrapola a dimenso geogrfica onde foram
gestadas tais representaes tambm crucial interpretao, pois ela que permite
atribuir sentidos aos processos descritos. Diferentes dos corpos flutuantes a que se
referiu Michel De Certeau (2002), as representaes esto ligadas a um lugar de produo
e s prticas que o constituem, no como reflexo da realidade, mas influenciando-os e
sendo por eles influenciadas. A anlise dos impasses existentes entre as normas expedidas
em Roma pelo Pe. Geral Claudio Aquaviva e os modos como elas foram apropriadas no
Mxico pode exemplificar tal procedimento.
Ao utilizar os volumes da Monumenta Mexicana, estamos cientes da lgica que
presidiu sua organizao. Trata-se, como a etimologia de seu nome sugeria, de uma
coleo dedicada construo e perpetuao de uma determinada memria sobre as
dos trabalhos da Companhia de Jesus. As hijuelas continham informaes e comunicaes internas e podiam
veicular, portanto, outros assuntos ligados aos problemas, s dificuldades e s divergncias entre os
inacianos. Para uma anlise interessante a esse respeito, ver Eisenberg (2000). 9 Sobre a noo de representao, importante remarcar a definio apresentada por Roger Chartier (1988, p.
23). O historiador enfatiza que ela permite articular trs modalidades da relao com o mundo social: em
primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais
mltiplas, atravs dos quais a realidade contraditoriamente constituda pelos diferentes grupos;
seguidamente, as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de
estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio; por fim, as formas institucionalizadas
e objectivadas graas s quais uns representantes (instncias colectivas ou pessoas singulares) marcam de
forma visvel e perpetuada a existncia do grupo, da classe ou da comunidade. Quanto ideia de lugar de
produo, ns a utilizamos semelhana de Michel De Certeau, que, ao refletir sobre a elaborao do
discurso historiogrfico, enfatizou a impossibilidade, ou pelo menos imprudncia, de analisar os textos como
se fossem corpos flutuantes, pois, nesse caso, eles seriam a-histricos. Para torn-los histricos e, por
conseguinte, objetos de estudo do historiador, seria necessrio pensar que eles s tm valor medida que so
entrecruzados com as prticas sociais (da a necessidade de se examinar o lugar de produo da fala e as
relaes de poder envolvidas) das quais eles resultam (DE CERTEAU, 2002, p. 32).
22
misses no Mxico que integra o conjunto Monumenta Historica Societatis Iesu,
composto por dezenas de tomos com documentos relativos s atividades jesuticas nas
diversas partes do mundo entre os sculos XVI e XVII. O Pe. Flix Zubillaga dedicou-se
por cerca de quatro dcadas edio daquela obra, cujo oitavo volume foi organizado em
1991 por Miguel ngel Rodrguez, que substituiu Zubillaga, recentemente falecido. O
trao monumental desse tipo de coleo exigia cuidados e ponderaes medida que
indicava determinada seleo, entre um sem-nmero de documentos, daquilo que deveria
ser reunido e publicado organicamente. Contudo, se complementada e limitada por
outras fontes, tal qual procuramos fazer neste estudo, a Monumenta pode ser uma
ferramenta til ao historiador, ainda que este se encontre diante de um lugar de memria
cuja organizao pressupe uma coerncia cuidadosamente construda.
Dividimos a parte III, Educao e bom governo, em dois captulos: Os
jesutas e o bom governo no Mxico (captulo 4) e Letras y virtudes nos colgios
jesutas (captulo 5). Neles, examinamos as questes conceituais referentes noo de
bom governo e a suas representaes na Amrica espanhola, alm de testarmos o
argumento que sustenta a terceira parte desta tese. Qual seja, logo aps se instalar no vice-
reino, a Companhia de Jesus participou da conformao do bom governo no Mxico de
duas formas principais. Primeiramente, pela atuao dos padres como jurisconsultos,
mediando conflitos, solucionando contendas, advogando nos tribunais, elaborando
pareceres e ajustando as normas expedidas pela Coroa a situaes especficas vivenciadas
no Mxico. Em segundo, pelas atividades educativas, ensinando letras y virtudes aos
jovens por meio de um plano curricular metdico que privilegiava o estudo de gramtica,
humanidades e retrica nos cinco primeiros anos aps o ingresso. Veremos como a
centralidade das lies de latinidades na formao dos alunos implicava os termos letras,
virtudes e bom governo.
Para analisar os dois casos, buscamos dialogar com as tradies do pensamento
filosfico e teolgico s quais se vinculavam os padres. Retomamos, entre outras,
premissas aristotlicas, ciceronianas, tomistas e humanistas a fim de examinar o modo pelo
qual aqueles religiosos compreendiam suas atividades nas reas urbanas e em seus
colgios. Quanto s fontes, recorremos basicamente s cartas nuas e a documentos
institucionais. Pela anlise daquelas, pretendemos perceber como seus autores, em geral
os padres provinciais, construram a imagem dos jesutas como conciliadores, manejando
as concepes de bom governo e bem comum. Com a apreciao dos documentos,
23
notadamente das Constituies da Companhia de Jesus e da Ratio Studiorum, desejamos
entender a organizao, seus mtodos e o funcionamento dos planos de ensino jesuticos,
bem como os valores atribudos a cada parte do currculo, especialmente s classes
inferiores.
Por fim, a parte IV, Educao jesutica e universo letrado, aborda as relaes
entre a rede de colgios administrada pela Companhia no Mxico e a formao de grupos
letrados. Estruturamos a argumentao do ltimo captulo sobre a seguinte premissa: sob a
lgica do bom governo, os colgios jesuticos formaram grupos letrados cujos destinos
profissionais poucas vezes coincidiram com postos e cargos no alto escalo do governo
civil ou eclesistico. Nesse sentido, questionamos os vnculos estabelecidos por alguns
historiadores entre a educao jesutica, as elites letradas e intelectuais e os crculos de
poder, da Ciudad letrada, de ngel Rama (1985), Fortaleza docta, de Magdalena
Chocano Mena (2000b).
Alm de nos valermos dos debates historiogrficos, construmos o captulo 6,
Os jesutas e a formao de grupos letrados no Mxico, com base nas Noticias bio-
bibliogrficas de alumnos distinguidos del Colegio de San Pedro, San Pablo y San
Ildefonso de Mxico. Trata-se de uma listagem elaborada no incio do sculo XIX pelo
erudito e ex-aluno daquele colgio, Dr. Flix Osores, com os dados relativos aos egressos
de S. Ildefonso, o principal seminrio jesutico da capital do vice-reino. Esse documento
nos permitiu mapear os destinos dos jovens formados pelos jesutas no Mxico, entre os
sculos XVI e XVII, e propor algumas reflexes acerca do impacto da educao oferecida
pela Companhia e da constituio de grupos letrados.
24
PARTE I
RECORTES HISTORIOGRFICOS
25
CAPTULO 1
RUPTURAS E CONTINUIDADES: REFLEXES E INTERPRETAES
SOBRE A HISTRIA ECLESISTICA NA NOVA ESPANHA
Como estabelecer periodizaes sem ser arbitrrio ou sem partir de critrios
parcialmente subjetivos? Essa uma das questes com as quais se enfrentam os
historiadores em seu ofcio, sobretudo ao determinar recortes analticos ou tpicos
organizadores de sua escrita. A ideia de que se pode medir, mapear e definir perodos,
idades ou eras to presunosa quanto necessria. Afinal de contas, trata-se de um
instrumento de trabalho do historiador, impossibilitado de observar toda a histria e
ansioso por interpretar desde seu prprio lugar um determinado perodo previamente
escolhido. Convm lembrar, aqui, as palavras de Michel de Certeau a respeito dos recortes
no tempo feitos pelo historiador:
Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porm,
repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compe
de perodos (por exemplo Idade Mdia, Histria Moderna, Histria
Contempornea) entre os quais se indica sempre a deciso de ser outro ou
de no ser mais o que havia sido at ento (Renascimento, a Revoluo).
Por sua vez, cada tempo novo deu lugar a um discurso que considera
morto aquilo que o precedeu, recebendo um passado j marcado
pelas rupturas anteriores. Logo, o corte o postulado da interpretao
(que se constri a partir de um presente) e seu objeto (as divises
organizam as representaes a serem reinterpretadas). O trabalho
determinado por este corte voluntarista. (DE CERTEAU, 2002, p. 15-
16, grifo do autor)
Essa passagem dA escrita da histria conhecida, pois nela De Certeau
consagrou a noo da escrita como um discurso de separao. Separao, disjuno,
diviso e corte que, segundo o autor, so postulados da interpretao e pertencem,
portanto, ao mbito da operao historiogrfica ligada a um determinado lugar de
produo do conhecimento. Se os recortes integram a prtica do historiador e no so,
pois, elementos dados pela natureza, como pode parecer em alguns casos , necessrio
analisar quais so os parmetros que permitiram s tradies historiogrficas criar,
valendo-se da escrita, um tempo histrico (as eras, as idades) com base em cortes feitos no
26
tempo cronolgico. E exatamente esta a proposta deste captulo: examinar como alguns
historiadores interpretaram a histria do Mxico no sculo XVI e, mais particularmente,
como eles estabeleceram cortes no tempo cronolgico, sobretudo na dcada de 1570, a fim
de construir determinadas interpretaes dos eventos anteriores e posteriores quela data.
A historiografia, grosso modo, quase sempre recortou a histria mexicana do
sculo XVI em duas etapas: a primeira, a era das ordens mendicantes e das misses, que
ia dos anos 1520 s dcadas de 1560/70; e a segunda, a fase da consolidao da Igreja e
do fortalecimento do clero secular, que se iniciava nas quatro dcadas finais do sculo XVI
e se estendia pelo XVII. Se lembrarmos que os jesutas chegaram ao Mxico em 1572,
teremos motivos suficientes para, de um lado, esmiuar as interpretaes historiogrficas a
respeito desse corte e, de outro, examinar as mudanas ocorridas na Nova Espanha,
sobretudo no que concernia s misses e administrao eclesistica mexicanas. Sem
esses dois exerccios analticos, acreditamos que estaria incompleto o esforo para
compreender a presena da Companhia de Jesus no Mxico, bem como sua instalao e
suas atividades educativas, objeto desta pesquisa.
A CONSTRUO DA RUPTURA
Vrias narrativas sobre a histria mexicana do sculo XVI estabeleceram
dois recortes cronolgicos que se tornaram cannicos e muitas vezes naturais. O primeiro,
localizado em 1521, referia-se concretizao da conquista militar e, pois, ao fim da
poca indgena, que era, tambm, o incio do perodo colonial. O segundo, que nos
interessa aqui, incidia na dcada de 1570 e indicava um momento de inflexo na
administrao civil e na eclesistica marcado pelos impulsos centralizadores da Coroa e da
Igreja Catlica. As principais evidncias desse corte estavam nas restries autonomia
das ordens religiosas mendicantes (franciscanos, dominicanos e agostinianos), que
deveriam ento se submeter ao clero secular e alinhar-se s demandas castelhanas. Alguns
aspectos, tomados de maneira geral, sustentavam esse ponto de vista: a instalao do
Tribunal do Santo Ofcio (1571); a presena do diocesano Pedro Moya de Contreras no
arcebispado da Nova Espanha (1573); o envio de cronistas oficiais e o confisco de crnicas
produzidas pelos frades (1577); a reafirmao do Real patronato (1574); a passagem dos
padres jesutas ao Mxico (1572), entre outros. Como se pode notar, esses eventos se
sucederam num curto perodo, sinalizando mudanas.
27
A percepo de que havia cmbios significativos foi acompanhada pelo
esforo, por parte dos historiadores, para estabelecer o sentido daquelas alteraes.
Portanto, alm de evidenciar as transformaes, os estudiosos se dedicaram a compreender
e definir os significados desses processos. Essa atividade interpretativa o que chamamos
aqui de a construo da ruptura, que se d por meio da adjetivao dos processos
histricos sobre os quais se construram aquelas leituras. Por exemplo, se afirmamos que, a
partir de 1570, iniciou-se um perodo de regenerao da Igreja no Mxico, insinuamos
ento que se tratava de uma melhora em relao aos anos antecedentes. Pelo contrrio, se
defendemos que aquela dcada significava o fim de certa idade de ouro, sugerimos, pois,
que o perodo subsequente no poderia ser melhor. Em ambos os casos, deparamo-nos com
valoraes elaboradas com base no sentido que se atribuiu ruptura. Se lembrarmos que os
jesutas desembarcaram na costa da Nova Espanha justamente nesse momento de
transformaes, concluiremos que convm analisar quais foram os significados atribudos
a tal ruptura. Para tanto, selecionamos trs perspectivas para focalizar esse tema: a dos
historiadores de matriz jesutica; a dos pesquisadores de matriz franciscana; e a das
anlises que partilharam a hiptese da crise da Nova Espanha.
Matrizes jesuticas
A Historia de la Iglesia en Mxico (1921), de Mariano Cuevas10
,
indubitavelmente uma das principais referncias, tanto pelo pioneirismo como pela
influncia que exerceu sobre os demais historiadores do sculo XX interessados nos
assuntos relativos histria eclesistica. Publicada no incio da dcada de 1920, ela foi
dividida em trs tomos. O primeiro deles (que veio luz em 1921) dedicou-se s origens
da Igreja e cobria o perodo de 1511 a 1548, anos em que as atividades missionrias das
ordens religiosas eram predominantes. O segundo tomo (de 1922) propunha dois recortes:
1548-1572, considerado o momento da consolidao e das atividades das instituies
fundadoras; e 1572-1600, vista como a poca dos elementos regeneradores. O ltimo
volume (publicado em 1924) tratava do sculo XVII, abordando as instituies e trabalho
da Igreja organizada, alm das misses e seus frutos naquela centria.
10
Mariano Cuevas era jesuta e, segundo nos informam suas notcias biogrficas na apresentao da obra,
membro da Sociedad Mexicana de Geografa y Estadstica e da Academia Mexicana de la Historia.
28
Amparando-se nas crnicas coloniais e na correspondncia trocada entre os
religiosos (na Amrica e na Europa), Cuevas props aquela que se tornou a principal
sntese da histria eclesistica mexicana. Os recortes cronolgicos que organizaram a
narrativa de sua Historia de la Iglesia pautaram invariavelmente os historiadores que o
sucederam, em especial as ideias constantes das subdivises destacadas no tomo II.
Acreditamos que Cuevas foi o primeiro a delimitar com clareza a ruptura nos anos 1570.
No prlogo ao segundo volume, o jesuta escreveu:
Se impone la subdivisin cronolgica de este gran perodo en las dos
partes que hemos adoptado, no ya tan slo por razones de metodologa y
usanza, sino por la misma objetividad de las instituciones y sucesos que
presentamos: como que todo pareci cambiarse radical y sbitamente, en
el gran y memorable ao de 1572. (CUEVAS, 1922, t. II, p. 10)
No por acaso, a Companhia de Jesus instalou-se no Mxico no memorvel
ano de 1572, quando tudo parecia mudar radical e repentinamente. O autor fez questo de
explicitar que o recorte no se justificava tanto pelo mtodo ou pela usanza da obra, mas
sim pela objetividade das instituies e pelos sucessos prprios daquela poca. Sob o ponto
de vista de Cuevas, quais eram o cerne e o sentido das alteraes em curso nos anos 1570?
De acordo com o religioso, tratava-se da passagem de um perodo, carcomido por mil
dolencias, para outro, cuja vida se renovava:
Hasta entonces la historia de nuestra sociedad es la de un organismo,
joven s, pero por mil dolencias carcomido; desde 1572, su historia es la
de la vida que vuelve. En efecto, sus elementos primitivos de civilizacin
cristiana: los obispos con cabildo y clero, los religiosos franciscanos,
dominicos y agustinos, haban actuado hasta entonces con un trabajo de
conjunto, laudable ciertamente y eficaz, mayormente entre los indios,
pero ya era insuficiente para lo que con urgencia requera la sociedad
como la de entonces tan compleja y tan aviesa. Haca falta inyeccin de
vida nueva, una mano enrgica que desarraigase tanta maleza, y nuevos
sembradores de la via del Seor. (CUEVAS, 1922, t. II, p. 10, grifo do
autor)
Est claro, pois, qual era o sentido conferido pelo Pe. Cuevas ruptura
sublinhada em sua narrativa. A metfora utilizada bastante elucidativa: a sociedade era
at ento um corpo doente que comeava a recuperar sua sade a partir de 1572. A
interpretao oferecida por esse autor para os processos histricos do sculo XVI estava
nitidamente marcada por suas convices a respeito do estado da Igreja e da sociedade
mexicanas do incio do sculo XX. Segundo Cuevas (1922, t. II, p. 9):
En la actualidad crece de punto la importancia del periodo que ahora
historiamos por la semejanza de nuestra situacin, con las de aquellos
29
antepasados de a mediados del siglo XVI: decadente y ruinosa. Ojal
que reaccionando como ellos, serenndonos, ordenndonos y trabajando
como ellos hicieron, lograsen nuestros esfuerzos restauracin social tan
slida y verdadera, como la que nos leg la valiente generacin de las
postrimeras de la dcima sexta centuria.
A referncia feita pelo autor nuestra situacin decadente e ruinosa ecoava as
circunstncias desfavorveis pelas quais passavam a Igreja mexicana e a Companhia de
Jesus no incio do sculo XX, especialmente aps as reformas de Benito Jurez e os
desdobramentos constitucionais da Revoluo Mexicana11
. As injunes do presente
marcaram as interpretaes do passado e possibilitaram a Cuevas sobrepor seus anseios
como padre do sculo XX narrativa acerca do XVI. Desse modo, as memrias
consagradas nas crnicas jesuticas (que examinaremos na prxima parte) lhe eram teis,
em especial aquelas que apontavam a regenerao do corpo doente a partir de 1572.
Cuevas esperava que ocorresse em 1920 aquilo que sucedera com as diversas misses da
Companhia no Mxico havia mais de 300 anos.
As instituies responsveis pela regenerao, segundo a Historia de la Iglesia,
eram trs: o Santo Ofcio, a Real Universidade12
e a Companhia de Jesus. Cada uma delas
teria seu papel na sociedade, embora todas las nuevas fuerzas estivessem direcionadas
para uma reforma moral, inclusive no interior do clero. A vigilncia inquisitorial e as
misses jesuticas no Mxico e nas reas ao norte da capital eram sopros de nova vida no
vice-reino. E, como os religiosos participavam ativamente das ctedras, a Universidade
tambm se tornou ao longo da segunda metade do sculo XVI, de acordo com o Pe.
Cuevas, mais um canal de influncia da Igreja sobre a sociedade que deveria ser renovada.
O quadro esboado por Mariano Cuevas na dcada de 1920 estabeleceu uma
espcie de interpretao cannica entre outros historiadores jesutas que escreveram
posteriormente. Gerard Decorme, por exemplo, apropriou-se nos anos 1940 da proposio
esboada por Cuevas: a decadncia teria sido sucedida por um movimento de regenerao
a partir da presena jesutica no Mxico. Ao explicar por que a Companhia havia se
instalado na Nova Espanha, Decorme escreveu:
Quien quiere tener idea exacta de la oportunidad de la venida de los
Jesuitas le en Alegre el estado de ignorancia religiosa del pueblo, la
11
Segundo Leandro Karnal (2010, p. 558), os jesutas preocuparam-se em defender a memria da Companhia
de Jesus contra os ataques e as crticas constantemente direcionados Ordem no incio do sculo XX,
procedentes das ondas de laicizao presentes na sociedade mexicana desde meados do sculo XIX e
reforadas pela Constituio de 1917. 12
A Real Universidade do Mxico foi fundada em 1551, mas s iniciou suas atividades acadmicas em 1553.
30
insuficiencia del clero secular y regular y, a pesar de la naciente
Universidad, la carencia de establecimientos de educacin y de enseanza
y, finalmente, la poca frecuencia de sacramentos en aquellos trabajosos
aos de la formacin de la nacionalidad mexicana. (DECORME, 1941, t.
I, p. 8)
Tal como Cuevas, Decorme se baseou nas crnicas do perodo colonial e, nesse
caso especfico, naquela composta pelo Pe. Francisco Javier Alegre nos anos 1760
enquanto os jesutas enfrentavam as tenses com a Coroa espanhola. Dessa maneira, a
narrativa de Decorme tambm enfatizava a descontinuidade entre um perodo de ausncia,
de vazios, que terminava nos anos 1570, e as dcadas seguintes, marcadas pela presena,
pela renovao. No por acaso, os historiadores jesutas posteriores a Cuevas utilizaram
com frequncia os verbos e substantivos com o prefixo re, indicando repetio e reforo:
regenerar, renovar, reformar, reconstruir. Os padres Leon Lopetegui e Flix Zubillaga
(1965, p. 570-571), ambos jesutas, referiram-se mais de uma vez aos colgios jesutas
como factores de renovacin espiritual e como promotores do processo de regeneracin
y reconstruccin moral que penetrava nas famlias dos estudantes.
Essas obras de sntese formaram um trip que serviu de referncia a quase
todos os estudos e pesquisas sobre a histria cultural e social mexicana sobretudo quando
o objeto de anlise era a Companhia de Jesus. improvvel encontrar um opsculo sequer
sobre a histria eclesistica do Mxico colonial que no tenha pelo menos um desses livros
em suas referncias bibliogrficas. Editadas e reimpressas em momentos diferentes,
aquelas obras contriburam para a construo da ruptura no sculo XVI. A dcada de
1570 havia sido decisiva para a histria novo-hispnica, pois representava a
descontinuidade entre dois perodos: o anterior a ela, marcado pela decadncia de um
organismo doente; e o que a ela se seguia, sintetizado pelas noes de regenerao,
reforma e renovao. No primeiro, as aes estiveram sob a responsabilidade das ordens
religiosas pioneiras, que gozaram de grande autonomia. No segundo, os principais atores
eram os jesutas, o clero secular renovado e as instituies regeneradoras. Em suma,
esse foi o panorama desenhado pelos historiadores que compartilharam aquilo que
chamamos aqui de matrizes jesuticas.
31
Matrizes franciscanas
Uma dcada aps a publicao da Historia de la Iglesia en Mxico, do Pe.
Cuevas, o religioso francs Robert Ricard apresentou sua tese de doutorado na Sorbonne
sobre a conquista espiritual do Mxico. Nela, o autor dedicou-se ao apostolado das ordens
mendicantes entre 1523 e 1572, consagrando a expresso conquista espiritual para
nomear o processo de fundao da Igreja no Mxico e de evangelizao dos indgenas. A
obra de Ricard tomou como fonte privilegiada os cronistas do sculo XVI e, quase sempre,
os franciscanos erro que o prprio autor reconheceu no prlogo segunda edio em
espanhol (RICARD, 2005, p. 27).
Apresentada em 1933 e impressa em espanhol no Mxico pela primeira vez em
1947, La conquista espiritual lanou as bases daquilo que denominamos matrizes
franciscanas no que concerne s percepes dos recortes temporais na histria eclesistica
mexicana. Como se pode notar j no subttulo da obra, Ensayo sobre el apostolado y los
mtodos misioneros de las rdenes mendicantes en la Nueva Espaa de 1523-1524 a
1572, Ricard delimitou o perodo de sua pesquisa entre os anos de 1523 e 1572. O
primeiro par de datas refere-se ao momento em que os primeiros missionrios franciscanos
chegaram ao Mxico: trs irmos em 1523; e os doze frades pioneiros em 1524. Nos anos
seguintes, religiosos dominicanos (1526) e agostinianos (1533) tambm aportaram no vice-
reino. A outra ponta do fio temporal que se inicia na dcada de 1520 encontra-se em 1572,
quando os jesutas se juntaram queles frades. Tal como o Pe. Cuevas, Ricard identificava
nesse ano sinais que apontavam para a descontinuidade na histria da Igreja novo-
hispnica:
En la historia de la Iglesia en Mxico el ao 1523 inaugura el periodo
que, por tradicin ya, se llama periodo primitivo. Periodo que viene a
cerrarse en el ao 1572 con el advenimiento de los primeros padres de la
Compaa de Jess. Raro ser hallar en la historia una etapa definida
cronolgicamente con tanta naturalidad y claridad. (RICARD, 2005, p.
34)
Para o religioso francs, tratava-se de uma etapa definida cronologicamente
com naturalidad y claridad. Os jesutas, continuava Ricard:
[] traen un espritu distinto y preocupaciones propias: no que dejen a
un lado a los indios, pero s en Nueva Espaa la Compaa habr de
consagrarse con especial esmero a la educacin y robustecimiento
32
espiritual de la sociedad criolla, un tanto descuidada por los mendicantes,
as como a la elevacin en todos sentidos del clero secular, cuyo nivel era
ms que mediocre. En tal sentido, la actividad de los hijos de San Ignacio
habr de contribuir a la preparacin necesaria para que las parroquias de
indios sean progresivamente entregadas al clero secular, y con ello, las
rdenes primitivas eliminadas y forzadas a dejar el ministerio parroquial
para recluirse en sus conventos, o bien, para emprender la evangelizacin
de remotas regiones an paganas. Ninguna arbitrariedad hay, por
consiguiente hasta donde es posible que divisiones de esta ndole
puedan no serlo , en tomar el radicarse de los jesuitas en Mxico, en
1572, como clausura de un periodo y puerta de otro nuevo. [...] El ao
1572 nos da una nueva muestra que las rdenes mendicantes ceden el
lugar, pues llega a la sede metropolitana un arzobispo del clero secular,
don Pedro Moya de Contreras. En resumen: estudiamos en este trabajo la
edad de oro de los religiosos mendicantes. (RICARD, 2005, p. 34-35)
A longa citao se justifica porque esse fragmento evidencia as principais
ideias do autor com relao ao recorte de sua pesquisa e, igualmente importante, ao sentido
que ele atribuiu ruptura identificada em 1572. Em primeiro lugar, Ricard assume para si a
perspectiva consolidada pelos cronistas e pela historiografia jesutica de que os filhos de
Ignacio de Loyola tinham preocupaes prprias, especialmente aquelas consoantes
educao e ao robustecimiento espiritual dos crioulos13
sem discutir se isso era parte de
um projeto da Companhia anterior s misses mexicanas ou fruto das circunstncias do
vice-reino na dcada de 1570. Em segundo lugar, o autor estabelece qual era a alterao
capital que sinalizava a ruptura: com a chegada dos jesutas, as ordens mendicantes
perderam o lugar que ocupavam na sociedade na administrao das parquias indgenas e
da Igreja , ao passo que o clero secular e os padres da Companhia de Jesus ascenderam.
Por fim, o mais importante desse trecho: cabe perguntar pelo sentido atribudo por Robert
Ricard a essas mudanas.
Como se quisesse se opor s proposies de Mariano Cuevas14
, o autor de La
conquista espiritual considerava as dcadas entre 1523 e 1572 como a edad de oro das
13
O termo criollo remete, inicialmente, aos espanhis nascidos na Amrica. Porm, j faz algum tempo que
essa noo foi ampliada e passou a definir tambm aqueles peninsulares que se fixaram deste lado do
Atlntico: Por otra parte, no hay que fiarse demasiado del concepto tradicional de criollo que los caracteriza
como espaoles nacidos en Amrica, concepto cuestionado ya varias veces, pero que se sigue utilizando. Ms
razonable parece la definicin que caracteriza al criollo como persona cuyo centro de vida social y
econmica estaba en Amrica. Segn esta otra definicin, tambin los funcionarios nacidos en la pennsula,
pero residentes ya mucho tiempo en Amrica, casados aqu, a veces en cargos permanentes de la burocracia
por ejemplo como oidor de audiencia u oficial de una caja real y sin muchas perspectivas de ascenso y
traslado, pasaran por criollos (PIETSCHMANN, 1994, p. 88). De nossa parte, utilizaremos o termo crioulo
de maneira geral, apontando, caso seja necessrio, para distines dessa natureza. 14
Ricard conhecia e recorreu diversas vezes Historia de la Iglesia en Mxico. Em uma apreciao
respeitosa, porm crtica, o religioso francs escreveu que ya es tiempo de hacer resaltar la importancia de la
33
ordens mendicantes. A Igreja primitiva mexicana vislumbrada por Ricard, semelhana
daquela narrada na Bblia, no comportava os elementos decadentes sugeridos pelo autor
jesuta. Pelo contrrio, como idade de ouro, aquela etapa significava o auge de um
perodo, cuja fase subsequente, portanto, tendia a ser pior. Segundo Robert Ricard, a
predominncia dos mendicantes em relao aos diocesanos se justificava quantitativa e
qualitativamente:
Y como en Mxico los religiosos eran mucho ms numerosos que los
clrigos sometidos a los obispos; como tenan ms disciplina y mejor
organizacin; como, en fin, representaban un nivel intelectual y hasta
moral muy superior, no hay por qu sorprenderse de que, mirado el
conjunto de las cosas, su accin haya aventajado a la de los obispos y
hasta la haya oscurecido en muchos casos, y resulta natural, por lo tanto,
que una historia de la fundacin de la Iglesia mexicana se reduzca
esencialmente al estudio de los mtodos misionales de las rdenes
mendicantes. (RICARD, 2005, p. 22)
O sentido dado descontinuidade claro: tratava-se de uma Igreja
administrada por ordens religiosas que tiveram sua idade de ouro at a dcada de 1570
substituda por outra comandada pelo clero secular a partir da presena jesutica. A
primeira era a Igreja primitiva, fruto da fundao liderada pelos doze apstolos
franciscanos que desembarcaram em 1524 em San Juan de Ula; a segunda era um
desdobramento prateado, resultado da marginalizao dos frades em seus conventos ou em
misses entre indgenas de regies distantes. A interpretao de Ricard, nesse passo,
contrape-se s ideias de Mariano Cuevas, embora os dois autores concordem quanto
existncia de uma ruptura decisiva na histria religiosa do Mxico.
O recorte e o sentido apresentados em La conquista espiritual perpassaram as
anlises de outros historiadores que, de maneira geral, tomaram para si aquela perspectiva.
Devemos lembrar, a ttulo de exemplo, do estudo de John Leddy Phelan sobre os
franciscanos do Mxico e, em particular, a respeito da obra de frei Mendieta. Escrito em
1956 e editado em espanhol em 1972, The millenial kingdom of the franciscans in the New
World assumiu o recorte implcito na crnica do frade15
e reverberado pelas anlises de
Ricard como a idade de ouro da Igreja indiana:
Mendieta reconstructed the history of the New World around three
organizing ideas. One was that the inner meaning of New World history
was eschatological. The second idea was that the period between the
Historia de la Iglesia en Mxico, del padre Cuevas, S. J., tentativa de sntesis, cuyos defectos no deben
llevarnos a desconocer su verdadera utilidad (RICARD, 2005, p. 42). 15
Trata-se da Historia Eclesistica Indiana (1993).
34
arrival of the twelve Franciscan apostles in 1524 and the death of
Viceroy Lus de Velasco the Elder in 1564 was the Golden Age of the
Indian Church. His third idea was that the decades between 1564 and
1596 (when he stopped writing) were the great time of troubles for the
new Church. (PHELAN, 1970, p. 41)
Apesar de antecipar o momento de ruptura para 1564, Phelan adotava o mesmo
princpio exposto em La conquista espiritual. Isto , uma alterao na administrao do
vice-reino, com a morte de Lus de Velasco, implicava o fim da golden age e o incio da
silver age. Passava-se de uma idade para outra, e o perodo posterior, marcado por
problemas, era qualitativamente pior. Em linhas gerais, esse o mesmo princpio da
organizao cronolgica de Utopa y historia en Mxico (1983), do historiador Georges
Baudot, publicado em francs em 1977. Baudot, porm, debruava-se sobre a crnica de
frei Motolina16
um dos 12 franciscanos que chegaram Nova Espanha em 1524
definindo, assim, o ano de sua morte, 1569, como o limite da primeira etapa da histria
religiosa mexicana que complementada em 1591, quando outro franciscano,
Bernardino de Sahagn, faleceu. Encontramos abordagem semelhante no artigo do
Fernando Ansa (1993), para quem o perodo entre 1513 e 1577 foi o da utopa emprica
del cristianismo social, marcado, sobretudo, pelas atividades apostlicas das ordens
mendicantes no Mxico.
A obra de Robert Ricard e suas releituras e apropriaes ao longo do sculo
XX conformaram aquilo que nomeamos matrizes franciscanas da construo da ruptura
no sculo XVI. Elas partiram das crnicas produzidas pelos religiosos17
(especialmente os
franciscanos do sculo XVI e incio do XVII) para situar um pouco antes ou depois de
1570 o momento de ciso na histria eclesistica do vice-reino. Entretanto, diferentemente
das matrizes jesuticas, essas interpretaes inverteram os valores e os sentidos atribudos
quela descontinuidade: em vez da decadncia, que deveria ser superada pela regenerao
e pela reforma moral, tratava-se de um perodo dourado que estava sendo substitudo por
outro, prateado. E, num caso ou noutro, o quadro delineado mostrava que as ordens
religiosas pioneiras perdiam seu espao em razo da ascenso do clero secular e da
chegada dos jesutas.
16
Com o ttulo de Historia de los indios de la Nueva Espaa (2001). 17
Conforme notou Antonio Rubial Garca (2001, p. 258), os cronistas das ordens mendicantes tendiam a
descrever a Igreja primitiva como quase perfeita em seus relatos escritos no final do sculo XVI e incio do
XVII. Tratava-se de um recurso para exaltar a trajetria de seus confrades e enfrentar os desafios e as
restries que lhes estavam sendo impostos pela Coroa espanhola.
35
Os aspectos sociais e a crise na Nova Espanha
Alm das matrizes jesuticas e franciscanas, outras interpretaes foram
elaboradas nas ltimas duas dcadas para explicar a ruptura na histria mexicana no sculo
XVI. Entre as novas leituras, lanou-se luz sobre as alteraes na sociedade virreinal que
ajudariam a compreender a troca de comando na Igreja por volta de 1570. De maneira
geral, afirma-se que, conforme o tempo passava, a sociedade mexicana ganhava novas
feies menos favorveis ao trabalho missionrio das ordens religiosas. Um dos aspectos
considerados a diminuio da populao indgena e o crescimento do nmero de crioulos
e espanhis no tero final do sculo XVI. Como os religiosos haviam se dedicado
exclusivamente aos nativos, seus espaos de atuao se tornavam cada vez menores.
Segundo Solange Alberro (1999, p. 77 e ss.), a sociedade mexicana passava por
transformaes significativas, s quais os mendicantes no eram capazes de atender. Os
crioulos ganhavam corpo e precisavam ser integrados sociedade e vida civil e
eclesistica. Nesse sentido, o clero secular se abriu primeiro entrada dos crioulos, alm
de ter mantido relaes mais amigveis com os peninsulares e com as autoridades civis.
Assim, os diocesanos puderam desfrutar de maior prestgio social nas ltimas dcadas do
sculo XVI, enquanto os regulares viam reduzir seu espao de atuao na capital do vice-
reino (CHOCANO MENA, 2000b, p. 25-28). s transformaes sociais e ao prestgio do
clero secular, a historiadora Solange Alberro acrescentou outro elemento para explicar as
mudanas na Amrica: a emergncia de um novo projeto poltico para a Nova Espanha que
prescindia dos regulares. Segundo essa autora:
Pero si la Nueva Espaa de las ltimas dcadas del siglo XVI tena poco
que ver con la de las primeras, tambin haba cambiado el proyecto
poltico original que la monarqua haba concebido e impuesto a los
reinos americanos. Terminadas en sus fases principales la conquista
militar y espiritual, el conquistador y el fraile se volvieron obsoletos,
cuando no indeseables. [...] Slo en las regiones apartadas y an
indmitas se consenta la presencia del guerrero, el misionero y el
encomendero, porque resultaban insustituibles y, por tanto,
imprescindibles en las primeras etapas de la penetracin hispana. Pero en
la mayor parte del Mxico central tuvieron que ceder el lugar a los
funcionarios reales y al clero secular. (ALBERRO, 1999, p. 78)
Conforme se nota, Alberro entende que as dcadas finais separaram duas
etapas: a primeira, da conquista espiritual e militar, era caracterizada pela fora dos
36
conquistadores e pela presena dos encomenderos e dos frades; a segunda, quando se
alterou o projeto poltico da Coroa, era marcada pela influncia dos funcionrios reais e do
clero secular. A historiadora assume, assim, a perspectiva mais ampla da conquista
espiritual de Robert Ricard e ratifica o fim da edad de oro nas ltimas trs dcadas do
sculo XVI. Em tom dramtico, Alberro (1999, p. 79) conclui que los frailes de las tres
primeras rdenes tuvieron que abandonar a quienes consideraban como sus hijos queridos
al clero secular, que chegara tarde ao vice-reino e era ignorante, quando no indiferente,
em relao ao mundo indgena. No se tratava, porm, de disputas meramente
eclesisticas, mas de contendas que envolviam outros elementos, como as alteraes
sociais e os projetos polticos coordenados desde a Espanha a fim de levar adiante o
processo de secularizao18
. Parte dessas mudanas, sublinha Solange Alberro, expressava-
se por meio de dois acontecimentos decisivos para os rumos da jovem Igreja e, em
particular, dos religiosos: a introduo do Tribunal do Santo Ofcio, em 1571, e a chegada
dos jesutas, em 1572.
Mara Alba Pastor (1999) compartilha o ponto de vista de Solange Alberro a
respeito do surgimento de um novo projeto poltico para a Nova Espanha. A tese central
de Pastor a de que a sociedade novo-hispnica enfrentou um perodo de crise e
recomposio social durante a transio do sculo XVI para o XVII, entre 1570 e 1630. A
crise e as mudanas por ela impulsionadas teria sido provocada por diversos fatores,
tais como a desestruturao das sociedades indgenas e de suas tradies, as reformas na
Igreja, o surgimento de um novo quadro de valores com a Contrarreforma e o aumento do
nmero de imigrantes europeus e africanos. Para superar tal crise19
e reorganizar a
18
Partilhando de ponto de vista semelhante, Ernesto de la Torre Villar escreveu um interessante artigo sobre
a administrao pblica e o governo civil e eclesistico no Mxico. Nesse texto, Torre Villar (1985) trata da
administracin casuista y rigurosa de Felipe II e da tendncia secularizadora, entendida como a maior
participao do Estado nos assuntos da Igreja, sobretudo pelo crescente aumento da autoridade dos bispos. 19
A autora utiliza o conceito de crise para explicar e significar um perodo marcado por mudanas
estruturais na sociedade mexicana do final do sculo XVI. importante lembrar, porm, que a palavra
crise com o sentido empregado por Mara Alba Pastor no era usada correntemente at o sculo XVII.
Como bem notou Jos Antonio Maravall, em seu clssico A Cultura do Barroco (1997, p. 67), a palavra
crise surgiu muito antes, no terreno da medicina, e seu derivado, o adjetivo crtico, que s vezes
substantivado e assim se fala da pessoa do crtico , comea a ser empregado no comeo do sculo XVII,
ou seja, durante o perodo que pretendemos estudar. Porm, est longe esse vocbulo de significar os estados
sociais de perturbao a que nos vimos referindo. No entanto, embora falte a palavra, no falta a conscincia
para perceber a presena desses momentos da vida social, anormais, desfavorveis, especialmente
convulsionados, aos quais chamaremos crise. Tal como Maravall, Pastor conceitua os momentos
especialmente convulsionados da sociedade mexicana da virada do sculo XVI como crise, embora, ao
contrrio do que faz o historiador espanhol, ela no evidencie qual era a conscincia que aquela sociedade
tinha da crise.
37
sociedade novohispana, surgiram, segundo a autora, duas propostas, concorrentes e
complementares.
primeira, ela deu o nome de contrarreformista y monrquica. Seria uma
combinao de esforos da Igreja ps-tridentina e do Estado espanhol sob Felipe II. De
acordo com Pastor, os principais objetivos desse projeto eram disciplinar e unificar as
mltiplas culturas diversas; combater o relaxamento moral; catequizar os nativos e
combater as idolatrias e heresias; impulsionar a educao; difundir a arte maneirista;
estabelecer o Tribunal do Santo Ofcio; reorganizar e controlar a cobrana de dzimos; e
ampliar o clero secular (PASTOR, 1999, p. 8-11). A autora caracterizou a segunda
proposta como criolla. Esse projeto nascia como uma espcie de contrapartida do primeiro,
que, com seu af de controlar e centralizar o poder, atingia os interesses dos crioulos,
limitando-os s margens da vida poltica e social do vice-reinado. Desse modo, seguindo a
argumentao de Pastor, os espanhis nascidos no Mxico se organizaram a fim de formar
seus prprios poderes locais, aliando-se s famlias de boa posio e burocracia urbana;
buscar alianas matrimoniais que lhes favorecessem maior circulao e prestgio social;
ingressar nos centros educativos, sobretudo naqueles administrados pela Companhia de
Jesus; se colocar frente das empresas da Nova Espanha, como as casas de comrcio, de
finanas e de exportao20
.
medida que esses dois projetos eram colocados em prtica, segundo Mara
Alba Pastor, as ordens religiosas pioneiras perdiam ainda mais espao. Observadas em
conjunto, as propostas no favoreciam em nada o trabalho dos mendicantes. As decises de
centralizar e uniformizar as aes eram opostas s prticas dos regulares, que atuavam,
quase sempre, de modo independente e descentralizado. O aumento da populao crioula e
sua participao na sociedade quase no diziam respeito s atividades missionrias dos
frades, que haviam se dedicado exclusivamente aos indgenas at os anos 1570. Alm
disso, Pastor chama a ateno para o fato de que os mendicantes enfrentavam dificuldades
internas, provocadas por certo debilitamento e perda de autoridade:
Durante el proceso de crisis y recomposicin se puso en evidencia la
prdida del lugar central que haban ocupado las rdenes mendicantes
durante la primera mitad del siglo XVI. Desde la dcada de los sesenta de
ese siglo, las actas capitulares y otros documentos religiosos lamentaban
el progresivo debilitamiento de la obediencia y la autoridad, la prdida
del significado de la pobreza misional y el abandono de las funciones
religiosas de los mendicantes. Entre sbditos y superiores se haba
20
Para os detalhes dos dois projetos, ver os captulos II (Los valores de la Contrarreforma, p. 55 e ss.) e V
(Las conductas criollas, p. 197 e ss.).
38
generado un clima de mutua desconfianza. Los frailes abusaban de los
obsequios de los indios, malversaban los fondos de las cajas de las
comunidades, negociaban con libros, misas y estipendios, les concedan
beneficios a sus familiares, ignoraban el voto de castidad y mostraban
gusto por la comodidad y la ostentacin. A pesar del aumento del
personal eclesistico, la asistencia indgena a la Iglesia haba declinado
desde 1550. (PASTOR, 1999, p. 171)
Havia, pois, um choque entre o projeto contrarreformista e monrquico, cujo
eixo estava nas propostas de centralizar, reformar, reordenar, reorganizar e disciplinar, e as
prticas relaxadas dos mendicantes, debilitadas e carentes de autoridade. Do mesmo
modo, as propostas crioulas no se alinhavam s perspectivas dos missionrios, que
ignoravam aquela parcela da sociedade. Ao definir esse impasse para os frades, Pastor
aproxima-se bastante da concepo de ruptura esboada entre os historiadores de matriz
jesutica, segundo a qual a descontinuidade indicava o incio de um perodo de
regenerao, de reforma. Nesse sentido, o declnio das ordens religiosas e a ascenso de
novos grupos (como os diocesanos e os jesutas) no eram processos aleatrios ou isolados,
mas, pelo contrrio, integravam um projeto mais amplo (com suas faces monrquicas e
crioulas) que estava sendo posto em prtica desde os anos 1570 para superar o perodo de
crise.
OUTROS NGULOS, NOVAS PERSPECTIVAS
As interpretaes acima, espraiadas pelos ltimos 100 anos, partilharam a
noo de que houve uma ruptura na histria da Igreja mexicana, localizada geralmente na
dcada de 1570, que resultou em alteraes na administrao eclesistica e na separao de
duas etapas. Conquanto concordassem em tal ponto, as trs matrizes historiogrficas
atriburam, como vimos, sentidos distintos quele recorte: ora a fissura indicava o princpio
de uma fase de regenerao, ora o final de uma idade dourada ou, ento, um perodo de
crise. Contudo, o consenso acerca da ruptura persistia de tal forma que possvel encontrar
seus reflexos em estudos to diferentes entre si quanto o manual assinado por James
Lockhart e Stuart B. Schwartz (2002)21
e o ensaio de Jacques Lafaye acerca de
21
Para Schwartz e Lockhart (2002, p. 156), iniciou-se nas ltimas dcadas do sculo XVI o perodo de
maturidade do vice-reinado: Como comeamos a dizer no final do captulo anterior, as leis e instituies
tomaram forma no incio do perodo maduro, duraram tanto tempo quanto a poca e ajudaram a defini-la. As
prticas que a haviam desenvolvido gradualmente no comrcio, na navegao e no artesanato encontraram
expresso constante nas guildas de mercadores e artesos e nas frotas transatlnticas, elaboradamente
39
Quetzalcatl y Guadalupe (1992)22
; ou ento entre a obra monogrfica de Alicia Mayer
sobre Lutero en el Paraiso (2008)23
e a tese de Marcelo Rocha a respeito das carreiras
jurdicas na Nova Espanha (2010)24
. Em lngua espanhola, inglesa, francesa ou portuguesa,
a concluso parecia ser a mesma.
Na maioria dessas anlises, os historiadores repisaram os mesmos aspectos
para atestar o corte em 1570. O Santo Ofcio, os jesutas, o novo arcebispo mexicano, o
Real patronato, o sequestro das crnicas dos mendicantes, o III Conclio Provincial:
todos esses elementos respaldavam a construo da ruptura na histria eclesistica. Afinal
de contas, eles indicavam o fim da era das ordens religiosas e o incio da fase dos bispos; o
trmino da descentralizao e da autonomia dos frades e o princpio da uniformizao e da
hierarquizao das prticas religiosas; o outono das utopias mendicantes e a primavera do
pragmatismo diocesano e jesutico. Acreditamos, no entanto, que vale a pena questionar
algumas dessas concluses a fim de, seno refut-las, oferecer outras leituras para esse
debate.
O primeiro aspecto para o qual gostaramos de chamar a ateno a
compreenso que se tem da presena do terceiro arcebispo mexicano, D. Pedro Moya de
Contreras. Esse religioso foi o primeiro diocesano a ocupar o cargo, que havia ficado
anteriormente sob responsabilidade de homens procedentes das ordens mendicantes:
Francisco de Zumrraga, franciscano, e Alonso de Montfar, dominicano. Como o
financiadas, organizadas em comboios e programadas, e as duas, guildas e frotas, sobreviveram quase da
mesma forma at sofrerem vrios tipos de crise no final do perodo [sculo XVIII]. Do mesmo modo, a
funo inquisitorial da igreja, que tinha sido executada pela hierarquia comum, veio a ser incorporada ao
autnomo Tribunal da Inquisio. Os mosteiros e conventos se expandiram, multiplicando-se e subdividindo-
se para representar comunidades recm-reconhecidas e consolidadas do mundo his