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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL A ORNAMENTALIDADE DOS MOSAICOS DE RAVENA (SÉCULOS V E VI) NÍVEL: DOUTORADO Mariana Pincinato Quadros de Souza Orientador: Prof.ª Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

A ORNAMENTALIDADE DOS MOSAICOS DE RAVENA (SÉCULOS V E VI)

NÍVEL: DOUTORADO

Mariana Pincinato Quadros de Souza

Orientador: Prof.ª Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira

2017

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1. Apresentação do Tema e Justificativa Teórica/Historiográfica

O presente projeto tem como objeto de estudo o conjunto de mosaicos

encontrados na cidade de Ravena, na região da Emilia-Romagna, norte da Itália.

Produzidos entre os séculos V e VI, esses mosaicos decoram o interior de importantes

edificações sagradas na cidade, como mausoléus, batistérios e igrejas. Apesar de

produzidas em diferentes momentos e espaços físicos, todas essas obras apresentam

características em comum, a começar pela sua materialidade: o mosaico. A grande

variedade de matizes utilizados para efeito de volume nas vestimentas dos personagens,

animais e paisagens, assim como o detalhamento e contorno das figuras também são

fortes pontos em comum entre elas. No entanto, o que nos chama mais a atenção é a

enorme quantidade de elementos não-figurativos (motivos abstratos, geométricos, por

exemplo) utilizados para preencher os espaços que separam as imagens figurativas

(como seres humanos, objetos e animais que compõem uma determinada cena). Esses

elementos ornamentais, que muitas vezes são desprezados na análise do conjunto

pictórico ou são simplesmente tidos como decorativos (no sentido de enfeitar ou

embelezar), demandam, a nosso ver, um tipo específico de estudo. Desse modo,

analisaremos, em nossa pesquisa, o conjunto de mosaicos de Ravena a partir da teoria

da ornamentalidade, discutindo os usos e funções dos ornamentos e o modo de

funcionamento ornamental das imagens medievais.

Entre o fim do século III e início do século IV, Roma deixou de exercer o papel

de única metrópole do Império Romano. O imperador Constantino (247-337), que havia

declarado, pelo Édito de Milão de 313, tolerância em relação ao culto cristão, deu início

no ano de 324 à reconstrução da antiga cidade grega de Bizâncio, que passou a ser

chamada Constantinopla. Após quase dois séculos, depois da morte do Imperador

Teodósio (395), o Império Romano encontrava-se dividido em duas grandes áreas: a

região oriental, cuja capital era Constantinopla, e a região ocidental, cujo centro político

era Milão. No ano de 402, entretanto, a transferência da capital do Império Romano do

Ocidente para Ravena, muito próxima à costa do mar Adriático, facilitou a ligação com

Bizâncio. Além disso, a cidade se situava em uma região pantanosa e era naturalmente

protegida dos invasores germânicos, que já ameaçavam a região de Milão1.

1 BUSTREO, Federica. Guida ai capolavori di Ravenna. Firenze: Scala, 2013, p. 12.

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Remanescentes desse período, encontramos em Ravena dois monumentos decorados

com mosaicos: o Batistério Neoniano (Fig. 1) e o Mausoléu de Gala Placídia (Fig. 2).

Considerado o monumento mais antigo da cidade, o Batistério Neoniano, ou Batistério

dos Ortodoxos, foi construído entre o fim do século IV e início do século V2. Em

formato octogonal, como todos os batistérios paleocristãos, possui o interior e a cúpula

preenchidos com mosaicos, que datam da metade do século V e foram produzidos sob o

comando do bispo Neone (do qual provém o nome do lugar)3. Construído no mesmo

período, o Mausoléu de Gala Placídia abriga a sepultura da irmã do imperador romano

Onório, que assumiu como regente em 423, após a morte do irmão. Apresenta uma

planta em formato de cruz e o interior completamente decorado com mosaicos da

mesma época4.

Ravena permaneceu como capital do Império Romano ocidental até sua queda

em 476, tornando-se em seguida capital do reino ostrogodo de Teodorico. Dos

monumentos produzidos nesse período, destacam-se três: a Basílica de Sant’Apollinare

Nuovo (Fig. 3), o Batistério dos Arianos (Fig. 4) e a Capela do Arcebispo (Fig. 5). A

Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, inicialmente dedicada ao Cristo Redentor, foi

construída entre o fim do século V e início do século VI, destinada ao culto ariano

(durante a dominação bizantina, quando todos os edifícios da cidade foram

reconciliados à ortodoxia cristã, foi dedicada a São Martinho de Tours e,

posteriormente, a Santo Apolinário, primeiro bispo de Ravena5). Os mosaicos nas

laterais da nave remontam ao período de Teodorico e são divididos em três registros. No

final do século V, quando Teodorico já havia consolidado seu poder e o arianismo era a

religião oficial da corte, foi construído o Batistério dos Arianos. Os mosaicos que

decoram a cúpula não foram alterados e permanecem os originais da época. O único

edifício erguido no período de Teodorico e destinado ao culto ortodoxo é a Capela do

Arcebispo, construída no início do século VI. Com a finalidade de oratório privado do

bispo Pietro II, possui a decoração em mosaico da mesma época, cuja iconografia e

inscrições reafirmam a clara oposição ao culto ariano.

2 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 8. 3 DEMUS, Otto. Byzantine mosaic decoration: aspects of monumental art in Byzantium. Boston: Boston

Book & Art Shop, 1964, p. 46. 4 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 14. 5 Ibid., p. 35.

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Após a conquista pelo imperador bizantino Justiniano6, no ano 540, a cidade

tornou-se capital do Exarcado de Ravena, sustentando um papel preeminente, porém

subalterno em relação à Constantinopla. Desse período, encontramos dois edifícios

amplamente decorados com mosaicos: a Basílica de San Vitale (Fig. 6) e a Basílica de

Sant’Apollinare em Classe (Fig. 7). Consagrada em 548 pelo bispo Maximiano, a

Basílica de San Vitale deve sua particular planta arquitetônica ao bispo Eclésio, que deu

início às obras em 525 a partir de referências de Constantinopla, onde passou um longo

período. Os mosaicos que decoram o presbitério remontam ao segundo quarto do século

VI e reforçam as intenções do imperador bizantino Justiniano (retratado na lateral do

altar) de recriar a antiga grandiosidade do Império Romano7. Por fim, um pouco distante

de Ravena, na cidade de Classe foi erguida a Basílica de Sant’Apollinare em Classe,

consagrada em 549 pelo bispo Maximiano. Seguindo a tradição bizantina, o seu exterior

é simples e revestido com tijolos. Em seu interior, encontramos a abside do altar

totalmente revestida com mosaicos originais da época8.

Todos esses monumentos de Ravena fazem parte da lista de Patrimônios

Mundiais da UNESCO desde 19969. Diante de sua importância histórica e cultural, não

encontramos dificuldade em acessar muitas obras a respeito da história de Ravena que

citam e descrevem minuciosamente os painéis em mosaico.

Entre essa bibliografia, encontramos, por exemplo, a obra de Otto Demus

Byzantine Mosaic Decoration: Aspects of Monumental Art in Byzantium10. O autor,

historiador da arte e especialista na arte bizantina no Ocidente, traça nessa obra um

panorama das diferentes manifestações bizantinas em território ocidental,

principalmente nas regiões do Vêneto e no sul da Itália, como ícones, mosaicos e

afrescos. Ao abordar os mosaicos de Ravena, Demus faz comparações nas mudanças

iconográficas ocorridas com o passar dos diferentes poderes em Ravena. Descrições

precisas também podem ser encontradas na obra Tesori d’Arte Cristiana11, do crítico de

arte italiano Stefano Bottari. Nesse livro, o autor dedica dois capítulos à Basílica de San

Vitale e ao Mausoléu de Gala Placídia, contando sua história e estabelecendo relações

entre a iconografia dos mosaicos e o momento político de Ravena. Contudo, não

6 NICOL, Donald M. Byzantium and Venice: a study in diplomatic and cultural relations. Cambridge:

Cambridge University Press, 1988, p. 2. 7 DEMUS, Otto. Op. cit., p. 49. 8 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 88. 9 Cf. <http://whc.unesco.org/en/list/788>. Acesso em 10/02/2017. 10 DEMUS, Otto. Op. cit. 11 BOTTARI, Stefano. Tesori d’Arte Cristiana. Milano: Garzanti, 1963.

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encontramos estudos acerca das imagens que vão além das descrições iconográficas ou

das relações entre a iconografia e o momento histórico/político da época. Os

componentes não figurativos das obras, ou seja, motivos geométricos e vegetais que

muitas vezes são reproduzidos repetidamente ao redor das cenas, o que chamamos de

motivos ornamentais, são praticamente excluídos dessas análises. O ineditismo de nossa

pesquisa, portanto, se dá nas análises e comparações das imagens em sua totalidade,

levando em consideração o conjunto e não tratando os elementos isoladamente, como se

o figurativo e o ornamental formassem categorias distintas ou como se a imagem como

um todo não pudesse ser o próprio ornamento.

Um dos principais autores que nos sustentam teoricamente, Jean-Claude

Schmitt12, propõe que os historiadores se afastem das tradicionais teorias da História da

Arte para analisar as imagens medievais em toda sua complexidade, indo além da

representação iconográfica, e atentando para seus usos, funções e modos de

funcionamento. Todos os elementos que compõem as imagens devem ser analisados

como essenciais. O estudo das imagens medievais deve desafiar a perspectiva da

História da Arte tradicional, que procura uma objetividade nas obras de arte por meio de

preceitos e valores formalistas. A busca por uma classificação estilística, ou a

expectativa de que a obra possa ser explicada numa lógica única e linear, não se

enquadra na análise das imagens medievais.

Jérôme Baschet, formulando o termo “imagem-objeto” (a imagem também

vista como um objeto engajado nas práticas sociais, às quais empresta suas

funcionalidades) e definindo a noção de “modos de funcionamento” das imagens,

amplia as possibilidades de análise das imagens medievais, que podem ser pensadas a

partir da multiplicidade de funções, de sua produção e também de sua recepção. O autor

afirma que “não existe imagem na Idade Média que seja uma pura representação”; essas

imagens são objetos com usos e funções intimamente ligados a uma multiplicidade de

outras imagens, objetos e ao próprio lugar, inseridas na lógica do cristianismo13.

Esses autores nos apontam a impossibilidade de se estabelecer um sentido pré-

definido na análise de imagens, pois estas são formadas por uma complexidade de

relações e nunca apresentam um sentido fechado, estando também sujeitas à ação

interpretativa dos espectadores, e agem como ligação entre o mundo humano e o divino.

12 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na idade Média. São

Paulo: Edusc, 2007. 13 BASCHET, Jérôme. "Introduction: l'image-objet". In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme.

L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996, p. 9-10.

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Uma das vias possíveis de construção de análise das imagens medievais recai

justamente sobre um tema que, muito frequentemente, sofre descaso devido aos

preconceitos construídos pela visão de arte atual: o ornamento. A ideia de ornamentação

como algo supérfluo, desnecessário, muitas vezes sinônimo de enfeite, foi herdada de

um ponto de vista originado nos séculos XIX e XX. O teórico da arte francês Hubert

Damisch14 nos mostra como essa visão, construída desde o Iluminismo, é potencializada

no Modernismo, tendo como indício a abolição da moldura, ou seja, o desprezo do

ornamento que seria causa do desvio da atenção do que realmente importa. O arquiteto

vienense Adolf Loos, por exemplo, no início do século XX, escreve o texto Ornamento

e crime, sintetizando a visão da ornamentação como um gasto desnecessário, ligado ao

luxo, que deve ser deixado de lado ou que é secundário15.

Desse modo, essa teoria muito contribuiu para a atual visão negativa sobre a arte

medieval. Na Idade Média, pelo contrário, a ornamentação é fundamental e está muito

presente nas imagens. Assim, ela não deve ser estudada apenas em termos estilísticos,

como em geral ocorre, sendo vista apenas como indício útil com a finalidade de datação

ou estabelecimento de procedência, por exemplo.

Faz-se necessária, portanto, uma operação teórico-metodológica para se repensar

a ideia de ornamentação nas imagens medievais. Jean-Claude Bonne propõe16, nessa

perspectiva, conceitos que se afastam dessa concepção preconceituosa, sendo assim

nossa principal referência teórica. Pensar ornamento na Idade Média é pensar não um

simples acréscimo a um objeto, mas algo que lhe é necessário, pois faz parte de seu

funcionamento.

O termo “ornamento” tem origem latina, ornatus, e possuía dois significados no

período medieval: poderia ter o sentido de um objeto ou paramento, que cumpria uma

função ritual as regalia ou ornamenta ecclesia , e também significava a maneira

como algo deveria ser ornamentado, o que se aproximaria do nosso sentido atual de

“decoração”. O primeiro sentido foi perdido, mas este último ainda perdura17.

14 DAMISCH, Hubert. “Ornamento”. In: Enciclopedia Einaudi. Lisboa: Casa da Moeda, 1995, vol. 20, p.

323-331. 15 Ibidem, p. 323. 16 BONNE, Jean-Claude. “De l’ornamental das l’art medieval (VIIè-XII`siècle). Le modèle insulaire”. In:

BASCHET, Jérôme et SCHMITT, Jean-Claude (org). L’image. Fonctions et usages des images dans

l’Occident medieval. Paris, Le Léopard d’Or, 1996, pp. 201-249. 17 SANTOS, Aline Benvegnú dos. A ornamentalidade dos capitéis do claustro Sant Benet de Bages: as

funções do decor na arte românica. 2014. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 6.

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A ornamentação na arte medieval traz consigo a noção de beleza, mas não se

destina, pois, apenas a agradar o olhar. Não é um simples acréscimo, que desvia a

atenção do espectador, mas é integrado à figura justamente por ser fundamental, por

direcionar o olhar do espectador, fazendo com que se atente ao conjunto da imagem. Tal

beleza conferida ao objeto é uma homenagem que deve corresponder a um acréscimo de

valor ao próprio objeto. Essa é a concepção do decor, aquilo que deve ser conveniente

para a eminência de um objeto que se busca honrar. Assim explica Bonne:

Em latim, decor designa o que é belo juntamente com a ideia de que essa

beleza deve convir (em latim decet) esteticamente ao objeto ou à pessoa em

questão, para estar de acordo com a dignidade de sua função ou de seu

estatuto – dignidade que conota o termo decus18.

Dessa maneira, Bonne propõe, para a análise das imagens medievais, que

passemos dos termos “ornamento” e “ornamentação” para ornamental e

ornamentalidade, para que se destaque o seu modus operandi, ou seja, o seu modo de

funcionamento efetivo. Assim, a ornamentalidade funciona como um advérbio, algo que

modula os efeitos do objeto que é seu suporte, sendo assim um complemento

necessário, que determina modos de funcionamento distintos de acordo com o que

objetiva o criador19. A partir dessa perspectiva, estudaremos de que forma os mosaicos

de Ravena honram seus lugares e como atuam em suas funções ornamentais.

2. Delimitação do Tema, Hipóteses e Objetivos

Através das perspectivas teóricas acima referidas, esta pesquisa se centrará no

tema da ornamentalidade para analisar os mosaicos de Ravena. Tal escolha se justifica

pela diversidade de elementos figurativos e abstratos que compõem as imagens e

proporcionam grandes possibilidades de investigação, porém cujos modos de

funcionamento nunca foram estudados.

O teto do Mausoléu de Gala Placídia (Fig. 8), por exemplo, é todo composto de

um fundo azul sobre o qual são reproduzidas sistematicamente formas circulares que

remetem a um motivo floral, às vezes em branco e amarelo, às vezes com tons de verde

18 BONNE. Art et environemment. Entre art médiéval et art contemporain, 2009. Tradução de Maria

Eurydice de Barros Ribeiro. Artigo inédito, p. 8. 19 BONNE. "De l'ornement à l'ornementalité. La mosaïque absidiale de San Clement de Rome", In: Le

rôle de l'ornement dans la peinture murale du Moyen Âge. Actes du Colloque International, Saint-Lizier,

1-4 juin 1995. Poitiers: Université de Poitiers, 1997. p.106.

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e laranja. Nas voltas dos arcos, a decoração é feita com temas geométricos, com linhas

retas que se cruzam perpendicularmente, preenchidos com diversas cores. Faixas

preenchidas com vermelho escuro e formas quadradas e arredondadas, que lembram

gemas de pedras preciosas com ouro, são encontradas decorando mais de um edifício

em Ravena. É o caso, por exemplo, de Sant’Apollinare em Classe (Fig. 9), circundando

a volta do arco do altar e a cruz ao centro da abside. Ou da moldura do retrato de

Justiniano em San Vitale. Nessa mesma Basílica, motivos vegetais e florais preenchem

toda a abóbada do presbitério, envolvendo a cena do Agnus Dei (Fig. 10). Um fundo

sólido azul recoberto com formas que lembram estrelas, com quatro linhas retas que se

cruzam, é encontrado na pequena abside da Capela do Arcebispo (Fig. 11), que

apresenta uma cruz dourada ao centro. O mesmo fundo “estrelado” também aparece no

Agnus Dei de San Vitale e em volta da cruz sobre o altar de Sant’Apollinare em Classe.

Estes são poucos exemplos da enorme variedade de ornamentos produzidos nos

mosaicos paleocristãos de Ravena.

Assim, pretendemos analisar como a ornamentação desempenha funções

fundamentais para a constituição dos mosaicos, que vão muito além do simples

“embelezar” o local sagrado, demonstrando sua complexidade enquanto modo de

pensamento. Partimos, como base para a hipótese, dos pressupostos de Jérôme Baschet

em Le lieu rituel et son décor20. O autor nos mostra que, ao analisar as imagens,

devemos considerar que sua materialidade está relacionada aos objetos e lugares nos

quais se inserem. A imagem que Baschet chama de “imagem-lugar” deve ser

considerada como décor de um edifício, noção que engloba aspectos iconográficos e

ornamentais, os quais atuam simultaneamente na função da imagem. Assim, décor é

aquilo que convém ao lugar ritual e honra convenientemente sua eminência sagrada21.

A partir de tais pressupostos, temos o objetivo de analisar de que forma os

elementos ornamentais dos mosaicos, juntamente com os elementos iconográficos,

constituem seu décor, sendo fundamentais para sua definição enquanto lugar sagrado,

dando a honra devida àquele lugar, sendo um mausoléu, um batistério ou uma basílica.

Uma das hipóteses por nós levantadas, portanto, relaciona-se com o poder e

prestígio dos lugares para os quais foram produzidos os mosaicos de Ravena. O

20 BASCHET, J., "Le lieu rituel et son décor". In : Id. L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008. 21 O termo decor, latino, faz referência à ideia medieval do que é necessário para que algo funcione bem.

Já o termo francês décor se refere ao conceito definido por Baschêt, que se refere à ornamentação

medieval.

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mosaico, por si só, já é considerado uma obra de prestígio por seu alto valor material.

Além disso, possui vida indeterminada pela resistência da matéria-prima. Portanto,

investigaremos, nos três grandes momentos de produção de nosso conjunto

comparativo, ou seja, quando capital do Império Romano do Ocidente, quando capital

do reino ostrogodo e quando sede do governo bizantino, as possíveis funções dessas

imagens, que sempre nos apresentam cores vibrantes contrastando com o valioso

dourado do fundo, e suas relações com o poder (político e religioso) que ajudavam a dar

a ver nesses edifícios. Trabalharemos, dessa forma, em conjunto os elementos

ornamentais e figurativos dessas imagens.

3. Metodologia e Fontes

Para o desenvolvimento desta pesquisa, é necessário partir de pressupostos

metodológicos específicos à história das imagens medievais e à história da arte.

Partimos, dessa maneira, das propostas de Jean-Claude Schmitt22, Daniel Arasse23 e

Jean-Claude Bonne24. Consideraremos, pois, as imagens não apenas como obras de arte,

mas pensando suas funções e as possibilidades diversas de funcionamento. Para isso,

precisamos compreender as especificidades de cada imagem e os seus conteúdos, assim

como suas relações com o conjunto imagético do interior dos locais para os quais foram

produzidas.

Primeiramente, faremos um levantamento bibliográfico sobre os temas

principais envolvidos em nossa pesquisa: o conceito de ornamentalidade; a função das

imagens dentro do edifício religioso; a história da região de Ravena no período tardo-

antigo e medieval; o estilo bizantino nas pinturas e mosaicos.

Além da leitura e fichamento da bibliografia levantada, a pesquisa se centrará

na análise das imagens: os mosaicos encontrados no Batistério Neoniano, no Mausoléu

de Gala Placídia, na Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, no Batistério dos Arianos, na

Capela do Arcebispo, na Basílica de San Vitale em Ravena e na Basílica de

Sant’Apollinare em Classe – com reproduções obtidas por meio de livros ou

disponibilizadas na internet e por fotos tiradas in loco. Analisaremos, assim, a estrutura

interna dos locais sagrados e as lógicas que presidem a organização e a criação das

22 SCHMITT, Jean-Claude. "Le miroir du canoniste. Les images et le texte dans un manuscrit médiéval".

Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 48e année, N.6, 1993. 23 ARASSE, Daniel. Le Détail, pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flammarion, 2008. 24 BONNE, Jean-Claude. Op. Cit.

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imagens, dentro dos diferentes contextos. Também serão úteis os procedimentos

comparativos: entre as produções da mesma época em Ravena, entre todas as produções

da cidade em diferentes tempos e entre imagens produzidas em Bizâncio. Estudaremos,

juntamente, as características formais dos motivos ornamentais, a partir de bibliografia

específica, para compreender a concepção das imagens e suas relações com o contexto.

Jean-Claude Schmitt enfatiza a necessidade da elaboração de métodos próprios

para a análise e interpretação das imagens medievais pela história social e cultural.

Essas imagens, em geral, têm a característica de serem seriais, ou seja, estarem inseridas

em um conjunto dentro do qual podemos procurar diversas subséries e possibilidades de

relações. Montaremos assim uma série inicial de imagens comparativas, como citado

anteriormente. Tal metodologia se baseia numa análise minuciosa que, a princípio,

procura analisar todos os elementos de cada imagem: a estrutura, a disposição relativa

dos elementos figurados, os personagens e suas relações, ou seja, uma análise que

chamamos de “interna” a cada imagem.

Após a análise feita individualmente, só podemos chegar a pressupostos mais

conclusivos com a comparação de todas as imagens do mesmo conjunto:

Somente a comparação pode, de fato, revelar os traços recorrentes ou, ao

contrário, as variações que deveremos explicar. É na comparação que se

amaram a interpretação, a análise das imagens e a história social: sua

perturbação, a ruptura de uma tradição iconográfica, a discordância

inesperada na relação semântica entre texto e imagem, para trazer questões

fundamentais da função social da obra e dos motivos ideológicos de suas

características originais25.

Também tomamos como base metodológica Daniel Arasse, em Le Détail, pour

une histoire rapprochée de la peinture. Em decorrência da necessidade da criação de

categorias mais refinadas, que permitam uma análise da complexidade de estruturas

singulares de cada imagem, o estudo dos detalhes da obra torna-se imprescindível. Para

o autor, a observação paciente da pintura dá ao leitor (ou o contemplador da obra)

algumas “recompensas”, quando consegue identificar e isolar certos detalhes, que

passam despercebidos aos olhos apressados. Essas recompensas causam efeito não só

25 « Seule la comparaison peut en effet révéler les traits récurrents ou au contraire les variations qu’il

faudra expliquer. C’est là que se nouent l’interprétation, l’analyse des images et l’histoire sociale: sa

perturbation, la rupture d’une tradition iconographique, la discordance inattendue dans le rapport

sémantique entre texte et image, ramènent aux questions fondamentales de la fonction sociale de l’œuvre

et des motifs idéologiques de ses caractères originaux ». SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 1472.

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sobre a relação que o espectador tem com a obra, mas sobre a compreensão que este

pode ter dela26. Os detalhes de uma imagem, recortados do conjunto, podem colocar em

questão as categorias estabelecidas pela história da arte.

No entanto, não podemos deixar de lado o conjunto, pois a ornamentalidade

perpassa por todos os elementos da imagem. Jean-Claude Bonne, em De l'ornement à

l'ornementalité: La mosaïque absidiale de San Clement de Rome, nos fala sobre a

ordenação da composição: a ornamentalidade concerne à orquestração do conjunto da

obra, à questão da organização da composição. Ela se caracteriza por sua

transversalidade, por sua capacidade de afetar intimamente os mais diferentes níveis de

uma obra. Assim, a obra como um todo também pode ser entendida como ornamento.

4. Cronograma de atividades

A seguir, apresentamos o cronograma de trabalho, organizado em oito semestres, de

2017 a 2020:

Atividades: 1º

Sem.

Sem.

Sem.

Sem.

Sem.

Sem.

Sem.

Sem.

Leitura de bibliografia X X X X X X X

Realização de créditos

disciplinares X X

Viagem para concluir

o corpus de imagens e

para levantamento

complementar de

bibliografia

X

Análise das imagens X X

Análise conjunta das

imagens e da

bibliografia

X X X

Redação do relatório

de qualificação

X X

Qualificação X

Redação da tese X X

Depósito X

Defesa X

26 ARASSE, Daniel. Op. cit., p. 8.

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5. Imagens

Fig. 1 – Batistério Neoniano

Fig. 2 – Mausoléu de Gala Placídia

Fig. 3 – Sant’Apollinare Nuovo

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Fig. 4 – Batistério dos Arianos

Fig. 5 – Capela do Arcebispo

Fig. 6 – San Vitale

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Fig. 7 – Sant’Apollinare em Classe

Fig. 8 – Teto do Mausoléu de Gala Placídia

Fig. 9 – Detalhe da volta do arco de Sant’Apollinare em Classe

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Fig. 10 – Agnus Dei de San Vitale

Fig. 11 – Detalhe da Capela do Arcebispo

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