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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
A ORNAMENTALIDADE DOS MOSAICOS DE RAVENA (SÉCULOS V E VI)
NÍVEL: DOUTORADO
Mariana Pincinato Quadros de Souza
Orientador: Prof.ª Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira
2017
2
1. Apresentação do Tema e Justificativa Teórica/Historiográfica
O presente projeto tem como objeto de estudo o conjunto de mosaicos
encontrados na cidade de Ravena, na região da Emilia-Romagna, norte da Itália.
Produzidos entre os séculos V e VI, esses mosaicos decoram o interior de importantes
edificações sagradas na cidade, como mausoléus, batistérios e igrejas. Apesar de
produzidas em diferentes momentos e espaços físicos, todas essas obras apresentam
características em comum, a começar pela sua materialidade: o mosaico. A grande
variedade de matizes utilizados para efeito de volume nas vestimentas dos personagens,
animais e paisagens, assim como o detalhamento e contorno das figuras também são
fortes pontos em comum entre elas. No entanto, o que nos chama mais a atenção é a
enorme quantidade de elementos não-figurativos (motivos abstratos, geométricos, por
exemplo) utilizados para preencher os espaços que separam as imagens figurativas
(como seres humanos, objetos e animais que compõem uma determinada cena). Esses
elementos ornamentais, que muitas vezes são desprezados na análise do conjunto
pictórico ou são simplesmente tidos como decorativos (no sentido de enfeitar ou
embelezar), demandam, a nosso ver, um tipo específico de estudo. Desse modo,
analisaremos, em nossa pesquisa, o conjunto de mosaicos de Ravena a partir da teoria
da ornamentalidade, discutindo os usos e funções dos ornamentos e o modo de
funcionamento ornamental das imagens medievais.
Entre o fim do século III e início do século IV, Roma deixou de exercer o papel
de única metrópole do Império Romano. O imperador Constantino (247-337), que havia
declarado, pelo Édito de Milão de 313, tolerância em relação ao culto cristão, deu início
no ano de 324 à reconstrução da antiga cidade grega de Bizâncio, que passou a ser
chamada Constantinopla. Após quase dois séculos, depois da morte do Imperador
Teodósio (395), o Império Romano encontrava-se dividido em duas grandes áreas: a
região oriental, cuja capital era Constantinopla, e a região ocidental, cujo centro político
era Milão. No ano de 402, entretanto, a transferência da capital do Império Romano do
Ocidente para Ravena, muito próxima à costa do mar Adriático, facilitou a ligação com
Bizâncio. Além disso, a cidade se situava em uma região pantanosa e era naturalmente
protegida dos invasores germânicos, que já ameaçavam a região de Milão1.
1 BUSTREO, Federica. Guida ai capolavori di Ravenna. Firenze: Scala, 2013, p. 12.
3
Remanescentes desse período, encontramos em Ravena dois monumentos decorados
com mosaicos: o Batistério Neoniano (Fig. 1) e o Mausoléu de Gala Placídia (Fig. 2).
Considerado o monumento mais antigo da cidade, o Batistério Neoniano, ou Batistério
dos Ortodoxos, foi construído entre o fim do século IV e início do século V2. Em
formato octogonal, como todos os batistérios paleocristãos, possui o interior e a cúpula
preenchidos com mosaicos, que datam da metade do século V e foram produzidos sob o
comando do bispo Neone (do qual provém o nome do lugar)3. Construído no mesmo
período, o Mausoléu de Gala Placídia abriga a sepultura da irmã do imperador romano
Onório, que assumiu como regente em 423, após a morte do irmão. Apresenta uma
planta em formato de cruz e o interior completamente decorado com mosaicos da
mesma época4.
Ravena permaneceu como capital do Império Romano ocidental até sua queda
em 476, tornando-se em seguida capital do reino ostrogodo de Teodorico. Dos
monumentos produzidos nesse período, destacam-se três: a Basílica de Sant’Apollinare
Nuovo (Fig. 3), o Batistério dos Arianos (Fig. 4) e a Capela do Arcebispo (Fig. 5). A
Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, inicialmente dedicada ao Cristo Redentor, foi
construída entre o fim do século V e início do século VI, destinada ao culto ariano
(durante a dominação bizantina, quando todos os edifícios da cidade foram
reconciliados à ortodoxia cristã, foi dedicada a São Martinho de Tours e,
posteriormente, a Santo Apolinário, primeiro bispo de Ravena5). Os mosaicos nas
laterais da nave remontam ao período de Teodorico e são divididos em três registros. No
final do século V, quando Teodorico já havia consolidado seu poder e o arianismo era a
religião oficial da corte, foi construído o Batistério dos Arianos. Os mosaicos que
decoram a cúpula não foram alterados e permanecem os originais da época. O único
edifício erguido no período de Teodorico e destinado ao culto ortodoxo é a Capela do
Arcebispo, construída no início do século VI. Com a finalidade de oratório privado do
bispo Pietro II, possui a decoração em mosaico da mesma época, cuja iconografia e
inscrições reafirmam a clara oposição ao culto ariano.
2 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 8. 3 DEMUS, Otto. Byzantine mosaic decoration: aspects of monumental art in Byzantium. Boston: Boston
Book & Art Shop, 1964, p. 46. 4 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 14. 5 Ibid., p. 35.
4
Após a conquista pelo imperador bizantino Justiniano6, no ano 540, a cidade
tornou-se capital do Exarcado de Ravena, sustentando um papel preeminente, porém
subalterno em relação à Constantinopla. Desse período, encontramos dois edifícios
amplamente decorados com mosaicos: a Basílica de San Vitale (Fig. 6) e a Basílica de
Sant’Apollinare em Classe (Fig. 7). Consagrada em 548 pelo bispo Maximiano, a
Basílica de San Vitale deve sua particular planta arquitetônica ao bispo Eclésio, que deu
início às obras em 525 a partir de referências de Constantinopla, onde passou um longo
período. Os mosaicos que decoram o presbitério remontam ao segundo quarto do século
VI e reforçam as intenções do imperador bizantino Justiniano (retratado na lateral do
altar) de recriar a antiga grandiosidade do Império Romano7. Por fim, um pouco distante
de Ravena, na cidade de Classe foi erguida a Basílica de Sant’Apollinare em Classe,
consagrada em 549 pelo bispo Maximiano. Seguindo a tradição bizantina, o seu exterior
é simples e revestido com tijolos. Em seu interior, encontramos a abside do altar
totalmente revestida com mosaicos originais da época8.
Todos esses monumentos de Ravena fazem parte da lista de Patrimônios
Mundiais da UNESCO desde 19969. Diante de sua importância histórica e cultural, não
encontramos dificuldade em acessar muitas obras a respeito da história de Ravena que
citam e descrevem minuciosamente os painéis em mosaico.
Entre essa bibliografia, encontramos, por exemplo, a obra de Otto Demus
Byzantine Mosaic Decoration: Aspects of Monumental Art in Byzantium10. O autor,
historiador da arte e especialista na arte bizantina no Ocidente, traça nessa obra um
panorama das diferentes manifestações bizantinas em território ocidental,
principalmente nas regiões do Vêneto e no sul da Itália, como ícones, mosaicos e
afrescos. Ao abordar os mosaicos de Ravena, Demus faz comparações nas mudanças
iconográficas ocorridas com o passar dos diferentes poderes em Ravena. Descrições
precisas também podem ser encontradas na obra Tesori d’Arte Cristiana11, do crítico de
arte italiano Stefano Bottari. Nesse livro, o autor dedica dois capítulos à Basílica de San
Vitale e ao Mausoléu de Gala Placídia, contando sua história e estabelecendo relações
entre a iconografia dos mosaicos e o momento político de Ravena. Contudo, não
6 NICOL, Donald M. Byzantium and Venice: a study in diplomatic and cultural relations. Cambridge:
Cambridge University Press, 1988, p. 2. 7 DEMUS, Otto. Op. cit., p. 49. 8 BUSTREO, Federica. Op. cit., p. 88. 9 Cf. <http://whc.unesco.org/en/list/788>. Acesso em 10/02/2017. 10 DEMUS, Otto. Op. cit. 11 BOTTARI, Stefano. Tesori d’Arte Cristiana. Milano: Garzanti, 1963.
5
encontramos estudos acerca das imagens que vão além das descrições iconográficas ou
das relações entre a iconografia e o momento histórico/político da época. Os
componentes não figurativos das obras, ou seja, motivos geométricos e vegetais que
muitas vezes são reproduzidos repetidamente ao redor das cenas, o que chamamos de
motivos ornamentais, são praticamente excluídos dessas análises. O ineditismo de nossa
pesquisa, portanto, se dá nas análises e comparações das imagens em sua totalidade,
levando em consideração o conjunto e não tratando os elementos isoladamente, como se
o figurativo e o ornamental formassem categorias distintas ou como se a imagem como
um todo não pudesse ser o próprio ornamento.
Um dos principais autores que nos sustentam teoricamente, Jean-Claude
Schmitt12, propõe que os historiadores se afastem das tradicionais teorias da História da
Arte para analisar as imagens medievais em toda sua complexidade, indo além da
representação iconográfica, e atentando para seus usos, funções e modos de
funcionamento. Todos os elementos que compõem as imagens devem ser analisados
como essenciais. O estudo das imagens medievais deve desafiar a perspectiva da
História da Arte tradicional, que procura uma objetividade nas obras de arte por meio de
preceitos e valores formalistas. A busca por uma classificação estilística, ou a
expectativa de que a obra possa ser explicada numa lógica única e linear, não se
enquadra na análise das imagens medievais.
Jérôme Baschet, formulando o termo “imagem-objeto” (a imagem também
vista como um objeto engajado nas práticas sociais, às quais empresta suas
funcionalidades) e definindo a noção de “modos de funcionamento” das imagens,
amplia as possibilidades de análise das imagens medievais, que podem ser pensadas a
partir da multiplicidade de funções, de sua produção e também de sua recepção. O autor
afirma que “não existe imagem na Idade Média que seja uma pura representação”; essas
imagens são objetos com usos e funções intimamente ligados a uma multiplicidade de
outras imagens, objetos e ao próprio lugar, inseridas na lógica do cristianismo13.
Esses autores nos apontam a impossibilidade de se estabelecer um sentido pré-
definido na análise de imagens, pois estas são formadas por uma complexidade de
relações e nunca apresentam um sentido fechado, estando também sujeitas à ação
interpretativa dos espectadores, e agem como ligação entre o mundo humano e o divino.
12 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na idade Média. São
Paulo: Edusc, 2007. 13 BASCHET, Jérôme. "Introduction: l'image-objet". In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme.
L'image. Fonctions et usages des images dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996, p. 9-10.
6
Uma das vias possíveis de construção de análise das imagens medievais recai
justamente sobre um tema que, muito frequentemente, sofre descaso devido aos
preconceitos construídos pela visão de arte atual: o ornamento. A ideia de ornamentação
como algo supérfluo, desnecessário, muitas vezes sinônimo de enfeite, foi herdada de
um ponto de vista originado nos séculos XIX e XX. O teórico da arte francês Hubert
Damisch14 nos mostra como essa visão, construída desde o Iluminismo, é potencializada
no Modernismo, tendo como indício a abolição da moldura, ou seja, o desprezo do
ornamento que seria causa do desvio da atenção do que realmente importa. O arquiteto
vienense Adolf Loos, por exemplo, no início do século XX, escreve o texto Ornamento
e crime, sintetizando a visão da ornamentação como um gasto desnecessário, ligado ao
luxo, que deve ser deixado de lado ou que é secundário15.
Desse modo, essa teoria muito contribuiu para a atual visão negativa sobre a arte
medieval. Na Idade Média, pelo contrário, a ornamentação é fundamental e está muito
presente nas imagens. Assim, ela não deve ser estudada apenas em termos estilísticos,
como em geral ocorre, sendo vista apenas como indício útil com a finalidade de datação
ou estabelecimento de procedência, por exemplo.
Faz-se necessária, portanto, uma operação teórico-metodológica para se repensar
a ideia de ornamentação nas imagens medievais. Jean-Claude Bonne propõe16, nessa
perspectiva, conceitos que se afastam dessa concepção preconceituosa, sendo assim
nossa principal referência teórica. Pensar ornamento na Idade Média é pensar não um
simples acréscimo a um objeto, mas algo que lhe é necessário, pois faz parte de seu
funcionamento.
O termo “ornamento” tem origem latina, ornatus, e possuía dois significados no
período medieval: poderia ter o sentido de um objeto ou paramento, que cumpria uma
função ritual as regalia ou ornamenta ecclesia , e também significava a maneira
como algo deveria ser ornamentado, o que se aproximaria do nosso sentido atual de
“decoração”. O primeiro sentido foi perdido, mas este último ainda perdura17.
14 DAMISCH, Hubert. “Ornamento”. In: Enciclopedia Einaudi. Lisboa: Casa da Moeda, 1995, vol. 20, p.
323-331. 15 Ibidem, p. 323. 16 BONNE, Jean-Claude. “De l’ornamental das l’art medieval (VIIè-XII`siècle). Le modèle insulaire”. In:
BASCHET, Jérôme et SCHMITT, Jean-Claude (org). L’image. Fonctions et usages des images dans
l’Occident medieval. Paris, Le Léopard d’Or, 1996, pp. 201-249. 17 SANTOS, Aline Benvegnú dos. A ornamentalidade dos capitéis do claustro Sant Benet de Bages: as
funções do decor na arte românica. 2014. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 6.
7
A ornamentação na arte medieval traz consigo a noção de beleza, mas não se
destina, pois, apenas a agradar o olhar. Não é um simples acréscimo, que desvia a
atenção do espectador, mas é integrado à figura justamente por ser fundamental, por
direcionar o olhar do espectador, fazendo com que se atente ao conjunto da imagem. Tal
beleza conferida ao objeto é uma homenagem que deve corresponder a um acréscimo de
valor ao próprio objeto. Essa é a concepção do decor, aquilo que deve ser conveniente
para a eminência de um objeto que se busca honrar. Assim explica Bonne:
Em latim, decor designa o que é belo juntamente com a ideia de que essa
beleza deve convir (em latim decet) esteticamente ao objeto ou à pessoa em
questão, para estar de acordo com a dignidade de sua função ou de seu
estatuto – dignidade que conota o termo decus18.
Dessa maneira, Bonne propõe, para a análise das imagens medievais, que
passemos dos termos “ornamento” e “ornamentação” para ornamental e
ornamentalidade, para que se destaque o seu modus operandi, ou seja, o seu modo de
funcionamento efetivo. Assim, a ornamentalidade funciona como um advérbio, algo que
modula os efeitos do objeto que é seu suporte, sendo assim um complemento
necessário, que determina modos de funcionamento distintos de acordo com o que
objetiva o criador19. A partir dessa perspectiva, estudaremos de que forma os mosaicos
de Ravena honram seus lugares e como atuam em suas funções ornamentais.
2. Delimitação do Tema, Hipóteses e Objetivos
Através das perspectivas teóricas acima referidas, esta pesquisa se centrará no
tema da ornamentalidade para analisar os mosaicos de Ravena. Tal escolha se justifica
pela diversidade de elementos figurativos e abstratos que compõem as imagens e
proporcionam grandes possibilidades de investigação, porém cujos modos de
funcionamento nunca foram estudados.
O teto do Mausoléu de Gala Placídia (Fig. 8), por exemplo, é todo composto de
um fundo azul sobre o qual são reproduzidas sistematicamente formas circulares que
remetem a um motivo floral, às vezes em branco e amarelo, às vezes com tons de verde
18 BONNE. Art et environemment. Entre art médiéval et art contemporain, 2009. Tradução de Maria
Eurydice de Barros Ribeiro. Artigo inédito, p. 8. 19 BONNE. "De l'ornement à l'ornementalité. La mosaïque absidiale de San Clement de Rome", In: Le
rôle de l'ornement dans la peinture murale du Moyen Âge. Actes du Colloque International, Saint-Lizier,
1-4 juin 1995. Poitiers: Université de Poitiers, 1997. p.106.
8
e laranja. Nas voltas dos arcos, a decoração é feita com temas geométricos, com linhas
retas que se cruzam perpendicularmente, preenchidos com diversas cores. Faixas
preenchidas com vermelho escuro e formas quadradas e arredondadas, que lembram
gemas de pedras preciosas com ouro, são encontradas decorando mais de um edifício
em Ravena. É o caso, por exemplo, de Sant’Apollinare em Classe (Fig. 9), circundando
a volta do arco do altar e a cruz ao centro da abside. Ou da moldura do retrato de
Justiniano em San Vitale. Nessa mesma Basílica, motivos vegetais e florais preenchem
toda a abóbada do presbitério, envolvendo a cena do Agnus Dei (Fig. 10). Um fundo
sólido azul recoberto com formas que lembram estrelas, com quatro linhas retas que se
cruzam, é encontrado na pequena abside da Capela do Arcebispo (Fig. 11), que
apresenta uma cruz dourada ao centro. O mesmo fundo “estrelado” também aparece no
Agnus Dei de San Vitale e em volta da cruz sobre o altar de Sant’Apollinare em Classe.
Estes são poucos exemplos da enorme variedade de ornamentos produzidos nos
mosaicos paleocristãos de Ravena.
Assim, pretendemos analisar como a ornamentação desempenha funções
fundamentais para a constituição dos mosaicos, que vão muito além do simples
“embelezar” o local sagrado, demonstrando sua complexidade enquanto modo de
pensamento. Partimos, como base para a hipótese, dos pressupostos de Jérôme Baschet
em Le lieu rituel et son décor20. O autor nos mostra que, ao analisar as imagens,
devemos considerar que sua materialidade está relacionada aos objetos e lugares nos
quais se inserem. A imagem que Baschet chama de “imagem-lugar” deve ser
considerada como décor de um edifício, noção que engloba aspectos iconográficos e
ornamentais, os quais atuam simultaneamente na função da imagem. Assim, décor é
aquilo que convém ao lugar ritual e honra convenientemente sua eminência sagrada21.
A partir de tais pressupostos, temos o objetivo de analisar de que forma os
elementos ornamentais dos mosaicos, juntamente com os elementos iconográficos,
constituem seu décor, sendo fundamentais para sua definição enquanto lugar sagrado,
dando a honra devida àquele lugar, sendo um mausoléu, um batistério ou uma basílica.
Uma das hipóteses por nós levantadas, portanto, relaciona-se com o poder e
prestígio dos lugares para os quais foram produzidos os mosaicos de Ravena. O
20 BASCHET, J., "Le lieu rituel et son décor". In : Id. L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008. 21 O termo decor, latino, faz referência à ideia medieval do que é necessário para que algo funcione bem.
Já o termo francês décor se refere ao conceito definido por Baschêt, que se refere à ornamentação
medieval.
9
mosaico, por si só, já é considerado uma obra de prestígio por seu alto valor material.
Além disso, possui vida indeterminada pela resistência da matéria-prima. Portanto,
investigaremos, nos três grandes momentos de produção de nosso conjunto
comparativo, ou seja, quando capital do Império Romano do Ocidente, quando capital
do reino ostrogodo e quando sede do governo bizantino, as possíveis funções dessas
imagens, que sempre nos apresentam cores vibrantes contrastando com o valioso
dourado do fundo, e suas relações com o poder (político e religioso) que ajudavam a dar
a ver nesses edifícios. Trabalharemos, dessa forma, em conjunto os elementos
ornamentais e figurativos dessas imagens.
3. Metodologia e Fontes
Para o desenvolvimento desta pesquisa, é necessário partir de pressupostos
metodológicos específicos à história das imagens medievais e à história da arte.
Partimos, dessa maneira, das propostas de Jean-Claude Schmitt22, Daniel Arasse23 e
Jean-Claude Bonne24. Consideraremos, pois, as imagens não apenas como obras de arte,
mas pensando suas funções e as possibilidades diversas de funcionamento. Para isso,
precisamos compreender as especificidades de cada imagem e os seus conteúdos, assim
como suas relações com o conjunto imagético do interior dos locais para os quais foram
produzidas.
Primeiramente, faremos um levantamento bibliográfico sobre os temas
principais envolvidos em nossa pesquisa: o conceito de ornamentalidade; a função das
imagens dentro do edifício religioso; a história da região de Ravena no período tardo-
antigo e medieval; o estilo bizantino nas pinturas e mosaicos.
Além da leitura e fichamento da bibliografia levantada, a pesquisa se centrará
na análise das imagens: os mosaicos encontrados no Batistério Neoniano, no Mausoléu
de Gala Placídia, na Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, no Batistério dos Arianos, na
Capela do Arcebispo, na Basílica de San Vitale em Ravena e na Basílica de
Sant’Apollinare em Classe – com reproduções obtidas por meio de livros ou
disponibilizadas na internet e por fotos tiradas in loco. Analisaremos, assim, a estrutura
interna dos locais sagrados e as lógicas que presidem a organização e a criação das
22 SCHMITT, Jean-Claude. "Le miroir du canoniste. Les images et le texte dans un manuscrit médiéval".
Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 48e année, N.6, 1993. 23 ARASSE, Daniel. Le Détail, pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris: Flammarion, 2008. 24 BONNE, Jean-Claude. Op. Cit.
10
imagens, dentro dos diferentes contextos. Também serão úteis os procedimentos
comparativos: entre as produções da mesma época em Ravena, entre todas as produções
da cidade em diferentes tempos e entre imagens produzidas em Bizâncio. Estudaremos,
juntamente, as características formais dos motivos ornamentais, a partir de bibliografia
específica, para compreender a concepção das imagens e suas relações com o contexto.
Jean-Claude Schmitt enfatiza a necessidade da elaboração de métodos próprios
para a análise e interpretação das imagens medievais pela história social e cultural.
Essas imagens, em geral, têm a característica de serem seriais, ou seja, estarem inseridas
em um conjunto dentro do qual podemos procurar diversas subséries e possibilidades de
relações. Montaremos assim uma série inicial de imagens comparativas, como citado
anteriormente. Tal metodologia se baseia numa análise minuciosa que, a princípio,
procura analisar todos os elementos de cada imagem: a estrutura, a disposição relativa
dos elementos figurados, os personagens e suas relações, ou seja, uma análise que
chamamos de “interna” a cada imagem.
Após a análise feita individualmente, só podemos chegar a pressupostos mais
conclusivos com a comparação de todas as imagens do mesmo conjunto:
Somente a comparação pode, de fato, revelar os traços recorrentes ou, ao
contrário, as variações que deveremos explicar. É na comparação que se
amaram a interpretação, a análise das imagens e a história social: sua
perturbação, a ruptura de uma tradição iconográfica, a discordância
inesperada na relação semântica entre texto e imagem, para trazer questões
fundamentais da função social da obra e dos motivos ideológicos de suas
características originais25.
Também tomamos como base metodológica Daniel Arasse, em Le Détail, pour
une histoire rapprochée de la peinture. Em decorrência da necessidade da criação de
categorias mais refinadas, que permitam uma análise da complexidade de estruturas
singulares de cada imagem, o estudo dos detalhes da obra torna-se imprescindível. Para
o autor, a observação paciente da pintura dá ao leitor (ou o contemplador da obra)
algumas “recompensas”, quando consegue identificar e isolar certos detalhes, que
passam despercebidos aos olhos apressados. Essas recompensas causam efeito não só
25 « Seule la comparaison peut en effet révéler les traits récurrents ou au contraire les variations qu’il
faudra expliquer. C’est là que se nouent l’interprétation, l’analyse des images et l’histoire sociale: sa
perturbation, la rupture d’une tradition iconographique, la discordance inattendue dans le rapport
sémantique entre texte et image, ramènent aux questions fondamentales de la fonction sociale de l’œuvre
et des motifs idéologiques de ses caractères originaux ». SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., p. 1472.
11
sobre a relação que o espectador tem com a obra, mas sobre a compreensão que este
pode ter dela26. Os detalhes de uma imagem, recortados do conjunto, podem colocar em
questão as categorias estabelecidas pela história da arte.
No entanto, não podemos deixar de lado o conjunto, pois a ornamentalidade
perpassa por todos os elementos da imagem. Jean-Claude Bonne, em De l'ornement à
l'ornementalité: La mosaïque absidiale de San Clement de Rome, nos fala sobre a
ordenação da composição: a ornamentalidade concerne à orquestração do conjunto da
obra, à questão da organização da composição. Ela se caracteriza por sua
transversalidade, por sua capacidade de afetar intimamente os mais diferentes níveis de
uma obra. Assim, a obra como um todo também pode ser entendida como ornamento.
4. Cronograma de atividades
A seguir, apresentamos o cronograma de trabalho, organizado em oito semestres, de
2017 a 2020:
Atividades: 1º
Sem.
2º
Sem.
3º
Sem.
4º
Sem.
5º
Sem.
6º
Sem.
7º
Sem.
8º
Sem.
Leitura de bibliografia X X X X X X X
Realização de créditos
disciplinares X X
Viagem para concluir
o corpus de imagens e
para levantamento
complementar de
bibliografia
X
Análise das imagens X X
Análise conjunta das
imagens e da
bibliografia
X X X
Redação do relatório
de qualificação
X X
Qualificação X
Redação da tese X X
Depósito X
Defesa X
26 ARASSE, Daniel. Op. cit., p. 8.
12
5. Imagens
Fig. 1 – Batistério Neoniano
Fig. 2 – Mausoléu de Gala Placídia
Fig. 3 – Sant’Apollinare Nuovo
13
Fig. 4 – Batistério dos Arianos
Fig. 5 – Capela do Arcebispo
Fig. 6 – San Vitale
14
Fig. 7 – Sant’Apollinare em Classe
Fig. 8 – Teto do Mausoléu de Gala Placídia
Fig. 9 – Detalhe da volta do arco de Sant’Apollinare em Classe
15
Fig. 10 – Agnus Dei de San Vitale
Fig. 11 – Detalhe da Capela do Arcebispo
16
6. Bibliografia
ARASSE, Daniel. Le Détail, pour une histoire rapprochée de la peinture. Paris:
Flammarion, 2008.
BASCHET, Jérôme. "Introduction: l'image-objet". In: SCHMITT, Jean-Claude et
BASCHET, Jérôme. L'image. Fonctions et usages des images dans
l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996.
__________________A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São
Paulo: Globo, 2006.
_________________ L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008.
BELTING, Hans. L’image et son public au Moyen Âge. Paris: Gérard Monfort, 1998.
BONNE, Jean-Claude. Art et environemment. Entre art médiéval et art contemporain,
2009. Tradução de Maria Eurydice de Barros Ribeiro. Artigo inédito.
__________________"De l'ornement à l'ornementalité. La mosaïque absidiale de San
Clement de Rome" . In: Le rôle de l'ornement dans la peinture murale du
Moyen Âge. Actes du Colloque International, Saint-Lizier, 1-4 juin 1995.
Poitiers: Université de Poitiers, 1997.
____________________“De l’ornamental das l’art medieval (VIIe-XIIe siècle). Le
modèle insulaire”. In: BASCHET, Jérôme et SCHMITT, Jean-Claude
(org). L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident
medieval. Paris, Le Léopard d’Or, 1996, pp. 201-249.
____________________"Entre ambiguité et ambivalence. Problématique de la
sculpture romane". La part de l'oeil 8, 1992, p. 147-164.
____________________"Le lieu rituel et son décor". In : Id. L’iconographie médiévale.
Paris: Gallimard, 2008.
____________________"Les ornements de l'histoire (à propos de l'ivoire carolingien de
Saint Remi)". Annales HSS, année 51, n. 1, jan/fév. 1996, p. 37-70.
____________________ L’art Roman de face et de profil: Le tympan de Conques.
Paris, Le Sycomore, 1984.
BOTTARI, Stefano. Tesori d’Arte Cristiana. Milano: Garzanti, 1963.
BUSTREO, Federica. Guida ai capolavori di Ravenna. Firenze: Scala, 2013.
DAMISCH, Hubert. "Ornamento". In: Enciclopedia Einaudi. Lisboa: Casa da Moeda,
1995, v. 32. p. 323-331.
17
DEMUS, Otto. Byzantine mosaic decoration: aspects of monumental art in Byzantium.
Boston: Boston Book & Art Shop, 1964.
DIDI-HUBERMAN, Georges. "Poderes da figura. Exegese e visualidade na Arte
Cristã", Revista de Comunicação e Linguagens 20, 1994, p. 159-177.
_________________________Devant l'image. Questions posées aux fins d'une histoire
de l'art. Paris: Minuit, 1990.
DUBY, Georges (org). A Idade Média. São Paulo: Paz e Terra, 1997, 2 v. (Coleção
História Artística da Europa).
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
NICOL, Donald M. Byzantium and Venice: a study in diplomatic and cultural relations.
Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
SANTOS, Aline Benvegnú dos. A ornamentalidade dos capitéis do claustro Sant Benet
de Bages: as funções do decor na arte românica. 2014. Dissertação (Mestrado em
História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2015.
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_____________________ O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na
idade Média. São Paulo: Edusc, 2007.