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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA O Espaço Geográfico: uma investigação sobre a contribuição do pensamento científico para a formação da categoria Miguel José Garcia Martins de Oliveira Orientador: Élvio Rodrigues Martins Trabalho de Graduação Individual II Maio de 2015

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USPbetween Newton and Leibniz; and, finally, Einstein's contribution. Then the search turns to geographical science and which was inherited from the scientific

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

O Espaço Geográfico:

uma investigação sobre a contribuição do pensamento científico para a

formação da categoria

Miguel José Garcia Martins de Oliveira

Orientador: Élvio Rodrigues Martins

Trabalho de Graduação Individual II

Maio de 2015

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Agradecimentos

A graduação é um longo percurso que eu não trilhei sozinho, e por isso devo dar os

devidos agradecimentos a todos que me ajudaram nesse processo. Em primeiro lugar,

agradeço e dedico esse trabalho aos meus pais, José Geraldo e Maria Isabel, que me deram

todas as condições materiais, emocionais e motivacionais para que eu pudesse cursar a

graduação em Geografia. Sei que esse apoio não foi sem uma parcela de sacrifício

pessoal, de modo que sou profundamente grato a ele.

Em seguida, gostaria de agradecer à minha namorada Mariana, pessoa de

fundamental importância em minha vida. A Geografia não teria a mesma graça sem você

ao meu lado, você tornou tudo isso muito mais colorido!

Aos meus amigos feitos durante o percurso, em especial ao Mateus, uma das

melhores pessoas que conheci, muito obrigado! Com vocês pude discutir, debater e

descontrair, preenchendo todas as esferas do que considero uma graduação completa.

Agradeço ao meu orientador Élvio, por todos os momentos de conversa e

esclarecimento, fosse sobre o TGI, fosse sobre assuntos de “ordem menos acadêmica”.

Por fim, gostaria de agradecer aos meus companheiros de trabalho ao longo desse

tempo, em especial à maravilhosa Olga M. Soares e Gross e aos meus colegas da Escola

Waldorf São Paulo, onde a graduação de repente parece fazer todo o sentido do mundo.

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Resumo

O presente trabalho busca compreender a formação da categoria “Espaço Geográfico” ao

que se refere à contribuição da história do pensamento científico neste debate, e a

apropriação desse conceito pela ciência geográfica.

Nesse sentido, o presente trabalho se divide em dois momentos. O primeiro é de resgate

da história da formação do conceito de espaço ao longo da história da ciência, destacando

os seguintes momentos: as origens do debate na filosofia grega e medieval; a apropriação

científica do conceito na filosofia natural de Galileu e Descartes; o debate entre Newton

e Leibniz; e, por fim, a contribuição de Einstein.

Em seguida, a pesquisa se volta à ciência geográfica e o que foi herdado da tradição

científica. Primeiramente observamos como a chamada “Geografia Clássica” adota a sua

concepção de espaço a partir das contribuições de Max Sorre e Pierre George, tentando

buscar os elementos de semelhança, aproximação e distanciamento entre os dois autores.

Por fim, comparamos dois autores da chamada “Geografia Crítica”, David Harvey e

Hildebert Isnard, para tentarmos compreender as mudanças na concepção de espaço

dentro da Geografia ao longo do século XX.

Palavras-chave: Espaço Geográfico; História da Ciência; Geografia Clássica; Geografia

Crítica.

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Abstract

This study aims to understand the formation of the category "Geographic Space" by the

contribution of the scientific thought’s history in this debate, and the appropriation of this

concept by the geographical science.

In this sense, this paper is divided into two moments. The first is the rescue of the history

of the formation of the space’s concept along the history of science, highlighting the

following times: the origins of debate in Greek and Medieval philosophy; scientific

appropriation of the concept in Galileo and Descartes natural philosophy; the debate

between Newton and Leibniz; and, finally, Einstein's contribution.

Then the search turns to geographical science and which was inherited from the scientific

tradition. First we see how the so-called "Classical Geography" takes its conceptions of

space by the contributions of Max Sorre and Pierre George, trying to seek the similarities,

closeness and distances between the two authors. Finally, we compare two authors of the

"Critical Geography", David Harvey and Hildebert Isnard, trying to understand the

changes in the concept of space on the Geography throughout the twentieth century.

Keywords: Geographic Space; Sciences’s History; Classical Geography; Critical

Geography.

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Sumário

Introdução .................................................................................................................................... 6

Capítulo 1 - Uma breve história do conceito de espaço no pensamento científico ................ 9

1.1 ..A contribuição da filosofia para a elaboração do conceito: elementos do espaço clássico e

do espaço medieval ................................................................................................................. 10

1.2 O início do “espaço científico”: Galileu, Descartes e o renascimento científico .............. 14

1.3 Espaço Relativo e Espaço Absoluto: elementos da discussão entre Newton e Leibniz .... 17

1.4 O espaço das ciências contemporâneas: a concepção de Einstein .................................... 20

Capítulo 2- O Espaço na Geografia Clássica: as concepções de Max Sorre e Pierre George

..................................................................................................................................................... 23

2.1 O Espaço Geográfico em Max Sorre ................................................................................. 24

2.2 O Espaço Geográfico em Pierre George ........................................................................... 27

2.3 Aproximações e distanciamentos nas concepções de espaço geográfico de Max Sorre e

Pierre George .......................................................................................................................... 31

Capítulo 3 – O Espaço na Geografia Crítica: as concepções de David Harvey e Hildebert

Isnard ......................................................................................................................................... 34

3.1 O Espaço Geográfico em David Harvey ........................................................................... 35

3.2 O Espaço Geográfico em Hildebert Isnard ........................................................................ 38

3.3 Aproximações e distanciamentos nas concepções de espaço geográfico de David Harvey e

Hildebert Isnard ....................................................................................................................... 44

Conclusão ................................................................................................................................... 46

Referências ................................................................................................................................. 48

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Introdução

Antes de tratar sobre o conteúdo do presente trabalho, julgo necessário falar de suas

motivações. Este trabalho de conclusão nasceu de uma das inúmeras crises e contradições

que são apresentados aos alunos do curso de graduação em Geografia pela Universidade

de São Paulo e, conforme acredito, de diversos outros cursos de Geografia do país.

Dicotomia entre geografia física e humana, falta de paradigmas teóricos, indefinição do

próprio objeto de estudo, etc., esses são alguns dos problemas institucionais que nos são

apresentados, com respostas tão variadas quanto o número de intérpretes dessa questão.

E, comum a todos esses conflitos, me apareceu uma nova questão, a questão do espaço.

O espaço frequentemente aparece entre os geógrafos como sendo uma das categorias

fundamentais da ciência Geográfica, junto com população, território, paisagem, lugar,

região, etc. Por exemplo Ruy Moreira (2007), que considera o espaço a categoria “maior”

da Geografia, derivada da paisagem e do território, ou Milton Santos (2009) que, por

considerar a categoria de tamanha importância ao geógrafo, dedica-se a desvendar qual a

Natureza do Espaço. Porém, no curso de Geografia ela ganha um caráter tão misterioso

quanto de importância.

No currículo do curso de Geografia da Universidade de São Paulo, podemos

encontrar (ainda que em sua maioria em caráter de disciplinas optativas), matérias como

Geografia da População; Teoria Geográfica da Paisagem; Teoria da Região e

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Regionalização; Fundamentos Econômicos, Sociais e Políticos da Geografia. Porém, a

disciplina Teoria Geográfica do Espaço, que consta no currículo formal, parece não ser

oferecida desde a sua criação. Não estou advogando por sua inclusão, não cabe aqui a

minha opinião sobre a construção do currículo, mas fato é que, para uma categoria

considerada por muitos como fundamental para essa ciência, ela não recebe na graduação

a mesma atenção que outras categorias muito melhor exploradas. Então, de que espaço

falamos? Quando o termo é usado fora do contexto acadêmico e geográfico, parece não

haver dúvidas em relação ao termo. Um coreógrafo pode mandar os dançarinos

preencherem o espaço do palco sem que entre estes haja algum tipo de dúvida sobre o

que foi solicitado, bem como não é o conceito de espaço que é questionado quando a

notícia diz que “duas mortes aconteceram em um curto espaço de tempo na mesma

região”. Pois bem, parece não haver dúvidas que trata-se de um termo polissêmico, ou

seja, a concepção do seu termo varia conforme o uso. Então reformulo a pergunta: no

contexto da ciência geográfica, o que queremos dizer com espaço?

Este trabalho, então, já tem o objeto de sua investigação. Agora, para a sua

estruturação ele se baseará em algumas premissas. Uma delas é de que a ciência

geográfica é fundamentalmente debilitaria de outros ramos da ciência, de quem ela

empresta conceitos e procedimentos de investigação e análise. Com isso, o primeiro

capítulo do trabalho é dedicado a fazer uma breve exposição da história do conceito no

conceito científico. Para tanto, iremos trazer os autores Max Jammer (2010), Margaret

Wertheim (2001) e Géza Szamosi (1986) que analisam a genealogia do conceito na

filosofia e sua posterior transformação em conceito das ciências naturais.

Com a apresentação do conceito de espaço no contexto científico, iremos então tratar

do contexto específico da ciência geográfica, tentando sempre relacionar os elementos

comuns da Geografia enquanto ciência com as concepções clássicas e científicas do

termo. Dessa forma, o segundo capítulo é dedicado ao conceito de espaço na tradição da

Geografia Clássica, momento fundamental da institucionalização da ciência geográfica.

E para esse objetivo, traremos a contribuição de dois autores clássicos que se debruçam

sobre o tema: primeiro abordaremos a concepção de espaço geográfico na obra O espaço

do geógrafo e do sociólogo de Max Sorre (1984); em seguida traremos a análise do

mesmo conceito em Sociologia e Geografia de Pierre George (1969); e por fim iremos

compará-los para buscarmos o que é próprio dos autores e o que é característico de seus

contextos, junto com o que é contribuição dos diferentes ramos da ciência.

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O terceiro capítulo, por fim, será a análise do conceito de espaço geográfico no

contexto da Geografia Crítica, ou seja, da geografia ativa de caráter marxista e que, ao

menos no Departamento de Geografia Humana da USP, parece ser até hoje a principal

escola geográfica na constituição dessa academia. Dois autores serão analisados para tal

fim: primeiro iremos buscar as contribuições de David Harvey para o tema nos textos A

justiça social e a cidade (1980) e O espaço como palavra-chave (2006); em seguida

analisaremos o texto O espaço geográfico de Hildebert Isnard (1982); e por fim,

novamente iremos comparar a abordagem de ambos os autores para identificarmos

primeiro entre eles, e depois entre os dois do capítulo anterior, quais as permanências e

transformações no conceito estudado e quais as possíveis contribuições das ciências para

essas abordagens analisadas.

Este trabalho tem o pretencioso objetivo de compreender características originárias

do que é composto a nossa noção de “espaço geográfico”, tentando perceber elementos

derivados de diferentes ramos da ciência, bem como elementos próprios à ciência

Geográfica. Ele não irá se aventurar em uma proposta categorial ou conceitual, muito

menos à uma crítica necessária, porém muito mais complexa do que é exigido para esse

momento, à formulação e estruturação daquilo que compõe a nossa ciência. Trata-se,

portanto, de um esforço individual de melhor compreensão dessa estruturação, para que,

futuramente, o uso das ferramentas dessa ciência sejam feitas de maneira consciente e

verdadeiramente críticas.

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Capítulo 1 - Uma breve história do conceito de espaço no pensamento

científico

Neste capítulo, procuramos reunir momentos fundamentais da genealogia do

conceito de espaço, com ênfase na inserção do mesmo enquanto objeto do pensamento

científico. Para tanto, buscaremos as contribuições de Max Jammer (2010), Géza

Szamosi (1986) e Margaret Wertheim (2001) que se propõe a analisar o desenvolvimento

do conceito de espaço ao longo da história, priorizando a sua dimensão científica, mas

também trazendo as influências naturais, filosóficas e culturais.

A partir das contribuições dos autores mencionados, e buscando direcionar o nosso

foco de análise para a dimensão científica do conceito, identificamos quatro momentos-

chave para a nossa discussão. São eles: a herança herdada das filosofias grega e medieval

a respeito do conceito de espaço, ressaltando o que seria já uma indicação para a posterior

“cientifização” do termo; o advento do paradigma científico com o Renascimento e o

Iluminismo e as contribuições para o tema propostas por Galileu e Descartes; o debate

entre espaço relativo e espaço absoluto, protagonizado por Newton e Leibniz; e, por fim,

a concepção de Einstein que se caracteriza como base fundamental das ciências

contemporâneas.

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1.1 A contribuição da filosofia para a elaboração do conceito: elementos do espaço

clássico e do espaço medieval

Antes da apropriação das ciências, o debate acerca do conceito de espaço era de

domínio majoritário da filosofia que, segundo Szamosi (1986), erigiu essa discussão com

base em uma herança biológica-evolutiva de organização e compreensão do mundo. Para

o autor, o conceito acompanha um modelo de mundo criado desde o homem primitivo,

que é identificado por Szamosi como sendo uma “cosmologia mamífera” (ibid. p.47).

Essa cosmologia seria uma forma do cérebro dos mamíferos (e do homem, por

consequência) de organizar os objetos exteriores em termos de espaço e tempo, afim de

ordenar o caos de fenômenos apresentados por nossos sentidos. Segundo Szamosi:

Parece, então, que o cérebro dos mamíferos organiza inputs sensoriais, a percepção do mundo, numa

estrutura de espaço e tempo para ser capaz de deles extrair sentido. A estrutura de espaço e tempo

simplifica o mundo, dá-lhe uma ordem coerente e, assim, o torna capaz de ser vivido. (Ibid. p. 43).

A organização do mundo com base em uma cosmologia, argumenta, serviu de base

para uma estabilidade e organização humanas que garantiram a sua sobrevivência e

evolução. E conforme o homem evoluiu enquanto espécie, a sua cosmologia também se

complexou, e símbolos foram criados para descrever “objeto”, “tempo” e “espaço”, sendo

as próprias palavras os símbolos mais importantes nesse contexto. (Ibid. p.47). E com

isso, foi possível a reflexão filosófica acerca de “o que é espaço?”.

O conceito na Grécia Antiga

Para Jammer (2010, p.32), as primeiras discussões filosóficas sobre o conceito de

espaço apareceram cedo na Grécia Antiga. O autor identifica entre os pitagóricos o início

da discussão acerca do espaço e, depois, três principais correntes teóricas entre os

filósofos gregos que tentavam definir o conceito, sendo elas a corrente dos atomistas, a

dos platonistas e a dos aristotelistas.

Pitágoras (~570 a.C.- ~490 a.C.) inicia a discussão sobre o espaço identificando-o

como agente de separação entre os números, concepção fundamental para a sua geometria

em formulação. Mais tarde, o pitagórico Árquitas (428 a.C. – 347 a.C.) realizou uma cisão

conceitual ao afirmar que “o espaço diferia da matéria e era independente dela. Todo

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corpo ocupava um lugar e só poderia existir se esse lugar existisse” (Ibid. p.33). De acordo

com Jammer, essa concepção de espaço elaborada por Árquitas não se tratava de uma

“extensão pura, desprovida de qualidades ou forças” mas sim, de “uma espécie de

atmosfera primordial, dotada de pressão e tensão, limitada pelo vazio infinito” (Ibid.). O

espaço, dessa forma, teria a função de conter o limite da matéria para que essa nunca fosse

infinitamente grande ou pequena. A cisão entre corpo e espaço foi já um primeiro passo

rumo ao conceito que a ciência posteriormente utilizaria, de um espaço dotado de

existência própria e concreta.

As correntes de pensamento subsequentes, protagonizadas por Platão (~428 a.C. -

~347 a.C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) e pelos “atomistas”, mantiveram as

características fundamentais propostas pelos pitagóricos. Também opondo matéria e

espaço, os atomistas gregos (sendo Demócrito e o seu mentor Leucipo os pioneiros

teóricos), concebiam o espaço como o vazio, ou vácuo [kenon], existente entre os átomos

(Wertheim, 20010, p. 75). Essa concepção de vazio que se confunde com o espaço em si,

seria uma “consequência lógica da estrutura atomística da realidade” (Jammer, 2010,

p.35) e não um dado empírico percebido por seus idealizadores atomistas. Essa

formulação lógica, e não empírica, de um espaço dado pela relação de distância entre os

átomos seria, após quase dois mil anos, resgatada por Leibniz com a sua formulação

acerca do espaço relativo, como veremos mais adiante.

Outra corrente significativa na interpretação do conceito de espaço foi a proposta por

Platão e adotada por seus seguidores e estudiosos. Jammer identifica no diálogo Timeu,

de Platão, o que seria a exposição (ainda que obscura) da sua concepção de espaço, sendo

ela uma proposta de que a matéria e espaço se identificam. Para Platão, a matéria é

limitada por estruturas geométricas que contém espaço vazio. Cada tipo de estrutura

geométrica seria associado a um elemento natural (água se associaria a isocaedros, terra

aos cubos, fogo às pirâmides, etc.) e haveria uma atração entre estruturas semelhantes, o

que forçaria a um agrupamento natural entre elementos. A concepção platônica de espaço

confundido com matéria foi dominante entre os filósofos e pensadores até meados do

século XII, quando a concepção aristotélica ganhou forças (Ibid.). Com Platão, o espaço

teria um caráter metafísico, sendo essa ideia confrontada, principalmente, por Aristóteles.

Em Aristóteles, o conceito de espaço ganha especial atenção em seus textos

Categorias e Física. Nas Categorias, o filósofo percebe o espaço como pertencente à

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categoria das quantidades1. Isso se deve à relação que Aristóteles faz entre espaço e lugar

[topos], onde o primeiro seria concebido como “a soma de todos os lugares ocupados

pelos corpos, e ‘lugar’ [topos], inversamente, é concebido como a parte do espaço cujos

limites coincidem com os do corpo que o ocupa” (Ibid.). Ao contrário do espaço em si,

portanto, lugar tem uma existência concreta para o filósofo, sendo ele a superfície

contingente das coisas materiais. Wertheim ainda observa a respeito da concepção

aristotélica de espaço que, como sendo meramente a superfície das coisas, ele não possui

volume ou profundidade, sendo essa uma propriedade apenas de objetos materiais

(Wertheim, 2001, p.75). Aristóteles, de acordo com Jammer, é quem melhor subsidia o

conceito de espaço que seria desenvolvido pela ciência, ainda que as ideias de Platão

tenham prevalecido por mais alguns séculos. O conceito de espaço vinculado à categoria

das quantidades, e o conceito de lugar como contingente dos corpos, seriam depois

transformados na concepção científica predominantes de um espaço infinito, que contém

as coisas e que tem a propriedade de poder ser medido, quantificado.

O conceito na Idade Média

O período que compreende o século I d.C. até meados do século XVIII foi de grande

influência religiosa no campo da filosofia (Ibid.), e que resultou em importantes

transformações no conceito de espaço. De acordo com o Jammer (Ibid. p.54), “essa

influência culminou na afirmação de que o espaço é um atributo de Deus ou é até idêntico

a Deus”.

Para o judaísmo e, posteriormente, para o cristianismo, um dos atributos próprios a

Deus é a sua onipresença. Também a onipresença é um atributo da concepção aristotélica

de espaço uma vez que, onde houver matéria também haverá espaço. Logo, como sintetiza

Jammer (Ibid. p. 57), “A ideia de que Deus estava ao mesmo tempo aqui e lá não teve

consequências panteístas na teologia judaica, mas levou a associar Deus e o espaço como

uma expressão de ubiquidade”. Sendo assim, não é por acaso que o termo judaico-

palestino para “lugar” [makon], também é usado para designar Deus (Ibid. p.54).

1 Aristóteles elege dez categorias fundamentais: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, estado, hábito, ação e paixão (Aristóteles, 2002). As categorias são “as formas de existência universais” dos seres enquanto tal, ou dito de outra forma, “gêneros supremos aos quais é possível ao ser se predicar”. (Martins, 2007, p.34).

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Jammer também destaca outra influência marcante na concepção judaico-cristã entre

Deus e espaço, as teorias do filósofo Henry More (1614-1687). De acordo com Jammer,

More procurou ampliar a concepção de Descartes a respeito do espaço (veremos mais

adiante a contribuição de Descartes) trazendo elementos da Cabala2 e da filosofia de

Platão. More concluiu que espaço e Deus se tratavam de uma unidade a partir de três

argumentos: a extensão não é o atributo distintivo da matéria; o espaço é real e tem

atributos reais; e o espaço tem caráter divino.

A respeito da primeira afirmação, o filósofo acreditava que o espaço era uma espécie

de “território comum” que ligava o mundo do espírito (ou do sagrado) com o mundo

material e, portanto, não era uma característica distintiva da matéria. E seria por meio

desse território comum que matéria e espírito poderiam se influenciar reciprocamente.

Além disso, “(...) mesmo que Deus pudesse prover a existência do espaço vazio, este

ainda não seria um vácuo absoluto, pois a ‘extensão divina’ permeava todo o espaço”

(Ibid. 69).

Para defender que o espaço tinha uma existência real, More lançou mão do

argumento que o espaço possuía uma mensurabilidade característica, e que essa não

dependia da matéria. Ou seja, mesmo desprovido de qualquer objeto material, More

acreditava que o espaço podia ser medido ou orientado (frente, atrás, lados, etc). Essa

mensurabilidade, considerada por Aristóteles um acidente de qualquer substância,

conferia ao espaço justamente uma substancialidade, uma existência própria e necessária

acima de tudo.

Por fim, More atribuiu essa “existência necessária” tanto ao espaço quanto à Deus, o

que conferia também ao primeiro um caráter sagrado. E se, para a concepção monoteísta

judaico-cristã, o sagrado só pode ser atribuído a Deus, por associação More identificou

em sendo espaço e Deus uma coisa só. Excetuando a conciliação entre espaço e Deus,

More avançou rumo ao espaço científico onde o mesmo se torna um ser independente da

matéria e dotado de extensão (e, portanto, poderia ser medido).

Wertheim (2010) também investiga o desenvolvimento do conceito de espaço nesse

período, porém menos preocupada em tentar responder o que é o espaço em si, mas sim

o seu papel significativo na vida medieval. Assim como Jammer, a autora enxerga na

2 Doutrina religiosa exotérica originada do Judaísmo e, mais tarde, com elementos do Cristianismo.

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Idade Média uma tentativa de aliar os preceitos judaico-cristãos com a concepção de

espaço, porém ela tece outras considerações a respeito da ideia vigente.

Para Wertheim, a Idade Média é marcada por uma dualidade na ideia de mundo e,

portando, de espaço. De acordo com a autora, as recém descobertas no campo da

astronomia haviam criado uma cisão entre o que seria o espaço terrestre com o que seria

o espaço dos céus. Essa divisão possibilitou uma associação entre as esferas celestes com

o espaço sagrado dos espíritos e, assim sendo, o reino dos céus era o reino do espírito, o

reino de Deus.

Por conta da dualidade entre os dois tipos de espaço, as atenções dos pensadores se

voltavam ao que era almejado (o reino dos céus) e não ao espaço vivido, sendo por isso

que as ciências naturais recebiam caráter de conhecimento inferior se comparadas à

teologia ou à filosofia da moral (Ibid. p. 91). Esse quadro de menor importância dada ao

espaço terreno perdurou até princípios do século XVII, quando a física e o advento do

pensamento científico reanimaram as discussões a respeito do conceito.

1.2 O início do “espaço científico”: Galileu, Descartes e o renascimento científico

Tanto Jammer quanto Wertheim são unânimes em considerar que, para que o espaço

pudesse ser introduzido no pensamento científico de maneira significante, ele deveria

passar por uma reformulação teórica. Para Jammer, a física desse período só poderia

incluir o espaço em seu rol de categorias se ele apresentasse três características

fundamentais que o tornassem passível de ser analisado. O espaço deveria ser homogêneo,

isotrópico e infinito (Jammer, 2001). Wertheim também acrescenta outras duas

características necessárias a um espaço científico: ele deveria ser continuo e

tridimensional3 (Wertheim, 2010).

3 É importante ressaltar que Margaret Wertheim dedica em seu texto um grande peso à relação entre as artes (em especial a pintura e a literatura) e a mudança do pensamento medieval para o pensamento científico. Talvez por isso a ênfase dada pela autora a aspectos como tridimensionalidade e continuidade. Além de servirem às ciências, esses aspectos também foram fundamentais para o desenvolvimento da pintura em perspectiva, por exemplo (Wertheim, 2010, p.71).

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As características que os autores apontam como necessárias ao espaço dos cientistas

até então não encontravam equivalência no pensamento da Antiguidade ou na filosofia

judaico-cristã. Como aponta Jammer a respeito dos filósofos gregos:

(...) a filosofia e a ciência grega clássicas, nos primórdios, conceberam o espaço como não homogêneo,

por causa de sua diversidade geométrica local (como em Platão), e, mais tarde, como anisotrópico,

por causa da diferenciação de direções no substrato (Aristóteles). Essas doutrinas concernentes à

natureza do espaço talvez expliquem a impossibilidade de as matemáticas, em especial a geometria,

lidarem com o espaço como objeto de investigação científica. (Jammer, 2001, p.49).

Em relação aos paradigmas medievais, Wertheim observa que o espaço era até então

considerado como sendo hierárquico, uma vez que o reino dos céus estava acima (em

todos os sentidos) do reino dos homens; e heterogêneo, pois em nada se assemelhavam o

céu e a terra (e ambos com o inferno). Sendo assim, as novas concepções de espaço único

e homogêneo transformaram radicalmente a concepção vigente de cosmo e, pela primeira

vez na história, “a humanidade havia produzido uma imagem do mundo puramente

fisicalista, um quadro em que mente/espírito/alma não tinham lugar algum” (Wertheim,

2010, p.114.).

O processo de transformação do conceito de espaço tem início, segundo Jammer,

com os filósofos naturalistas italianos, em especial Bernardino Telésio (1509-1588),

Franciscus Patrizi (1529-1597), Tomasso Campanella (1568-1639) e o francês Pierre

Gassendi (1592-1655). Para Jammer, esses filósofos foram os primeiros a quebrar com o

esquema aristotélico de substância e acidente no qual o espaço era classificado como

pertencente às categorias. Telésio foi o primeiro a romper com esse pensamento

escolástico, pois o filósofo atribuía ao espaço e ao tempo uma existência própria e

independente, assim como a matéria. Patrizi desenvolveu esse argumento afirmando que

o espaço “devia ser pressuposto como uma condição necessária de tudo o que nele existia”

(Jammer, 2001, p.116), ou seja, ele devia ser anterior à matéria para que esse pudesse

comportá-la. Patrizi ainda atacou a doutrina aristotélica com o argumento de que as

qualidades da substância precisariam de um espaço para poderem existir. Por fim,

Campanella e Gassendi utilizaram-se de teorias dos gregos atomistas para justificar a

existência do vácuo, o que resultou posteriormente na consideração de que o espaço era,

além de primordial à matéria, infinito, homogêneo e desprovido de forças. Tais ideias

ganharam força e notoriedade com os estudos propostos por Galileu Galilei (1564 –

1642).

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De acordo com Wertheim, Galileu foi “(...) a primeira pessoa a articular claramente

a nova visão do espaço num contexto científico” (Wertheim, 2010, p.88). Em suas

descobertas no campo da astronomia e no campo da mecânica clássica4, Galileu precisava

da concepção elaborada por seus antecessores conterrâneos de um espaço homogêneo,

infinito e isotrópico para que seus estudos pudessem ter o caráter de “leis naturais”

aplicáveis em qualquer lugar e em qualquer situação. Por isso Wertheim afirma que, para

Galileu, “(...) o ‘vazio’ já não era matéria de discussão; era o embasamento ontológico da

própria realidade, a ‘arena’ neutra em que todas as coisas estavam contidas e pela qual

elas se moviam” (Ibid. p.88). E, assim como Galileu, outros pensadores e cientistas

passaram a adotar essa nova concepção de espaço, como foi o caso do pensador René

Descartes (1596 – 1650).

Descartes, a quem geralmente é atribuído o predicado de “primeiro filósofo

moderno”, trouxe para a filosofia e para as ciências um racionalismo até então inédito.

Para o filósofo, Deus havia criado a Terra como um mecanismo que funcionava

autonomamente e, por isso, poderia ser estudado e compreendido por meio das ciências

e dos questionamentos. E foi com essa premissa de conhecimento do mundo por meio das

ciências, especialmente no campo de sua “Geometria Analítica” que Descartes expõe a

sua concepção de espaço.

O que conhecemos hoje como “espaço cartesiano”, ou ainda “sistema de coordenadas

cartesiano”, foi derivado da concepção apresentada por Descartes em sua obra “Discurso

do Método” (Descartes, 2009) que propõe o estabelecimento de um sistema de

coordenadas capazes de localizar um ponto qualquer sobre o espaço. Esse sistema só é

possível se considerarmos as premissas vistas a respeito do espaço que o classificavam

como homogêneo, infinito e isotrópico, uma vez que qualquer outra concepção tornaria

impossível da aplicabilidade universal necessária a esse modelo.

O sistema de coordenadas cartesiano teve um forte impacto sobre as ciências, não se

restringindo apenas à geometria. A cartografia, por exemplo, já existente desde a

Antiguidade, tem uma abrupta mudança qualitativa, como aponta Szamosi. De acordo

com o autor, “o sentido de um espaço racional e mensurável encorajou o desenho dos

4 No campo da astronomia, Galileu obteve várias descobertas possibilitadas pela recém-inventada luneta. Entre as descobertas, podemos destacar a retomada da teoria heliocêntrica, a qual constatava-se que a Terra que girava ao redor do Sol, e não o contrário. Já no campo da mecânica, Galileu fez importantes descobertas a respeito dos movimentos de queda livre e do movimento pendular.

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primeiros mapas não meramente alegóricos, mas que tentavam de fato representar o

mundo real de um modo simbólico e racional” (Szamosi, 1986, p.128). Ainda segundo o

autor, uma nova cosmologia nasce desse contexto de transformações paradigmáticas e

científicas, agora impregnada de um conhecimento racional e matemático. Para Szamosi:

(...) Em uma perspectiva evolutiva, (...), pode-se, (...), chama-la [a concepção moderna de

universo] de uma cosmologia mamífera com face humana – uma recriação da cosmologia perceptual

do cérebro humano embutida em uma estrutura matemática. Pois esse universo mecânico é a

cosmologia simbólica que mais intimamente se aproximava daquela construída sobre as percepções

básicas dos mamíferos. (Ibid. p. 131).

Esse novo contexto científico e matemático da nossa cosmologia, como aponta

Szamosi, servirá de base para novas concepções a respeito do espaço, influenciadas

principalmente por Isaac Newton (1642 – 1727) e contraditas por Gottfried Wilhelm

Leibniz (1646 – 1716).

1.3 Espaço Relativo e Espaço Absoluto: elementos da discussão entre Newton e

Leibniz

A concepção newtoniana sobre espaço é, provavelmente, a de maior impacto na

história das ciências. Jammer afirma que “o esquema conceitual de Newton, tal como

exposto nos Princípios matemáticos da filosofia natural [Principia], tornou-se a base da

física clássica e, como tal, objeto de análises profundas” (Jammer, 2001, p.131). Para

tanto, Newton valeu-se da concepção desenvolvida por seus antecessores, especialmente

Galileu e Descartes, e elaborou dois conceitos de espaço que poderiam se adaptar às suas

três famosas leis do movimento5: o espaço absoluto e o espaço relativo. Jammer ainda

ressalta que, além do que ele chamou de um “realismo matemático” herdado desses

pensadores naturalistas, Newton também adotou questões oriundas da religião e da

metafísica (Ibid. p.134).

5 As três leis do movimento, ou Leis de Newton são: Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele; A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzida na direção de linha reta na qual aquela força é imprimida; A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade: ou as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos. (Newton, 2012)

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De acordo com Jammer, o espaço absoluto de Newton é um espaço dotado de

“existência própria e independente dos corpos que contém” (Ibid, p.146.), mas que é

inacessível aos nossos sentidos. Trata-se de um espaço infinito e homogêneo que contém

todas as coisas e serve como um sistema de referências absoluto, necessário e provado

pelas leis do movimento. Segundo Jammer:

Para Newton, o espaço absoluto era uma necessidade lógica e ontológica. Era um pré-requisito

necessário para a validade da primeira lei do movimento: ‘todo corpo preserva o estado de repouso ou

de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja compelido a modificar esse estado por forças

imprimidas sobre ele. (...) Uma vez que a primeira lei do movimento, (...), era para Newton uma

questão da experiência imediata, e visto que a validade dessa lei dependia de um sistema de referência

absoluto, o espaço absoluto tornou-se indispensável para a física newtoniana. (Ibid, pp. 137-138).

A concepção de espaço relativo nasce para Newton de uma necessidade de tornar

perceptível aspectos do seu verdadeiro espaço, o espaço absoluto. Uma vez que este era

inacessível e indistinguível aos sentidos, por ser homogêneo e infinito, Newton

considerou necessário estabelecer um modo de substituí-lo por medidas sensíveis. Dessa

forma, Newton considerou as medidas e os sistemas de coordenadas já propostos por

Descartes como sendo o espaço relativo, a aparência do espaço verdadeiro e absoluto

(Ibid, p. 135).

Em oposição à concepção newtoniana de espaço, em especial à existência concreta

de um espaço absoluto, Leibniz expôs o seu posicionamento sobre a questão em suas

correspondências com Samuel Clarke (1675-1729), defensor das ideias de Newton. Para

Leibniz “o espaço era um sistema de relações desprovido de existência metafísica ou

ontológica” (Ibid. p.153). Ou nas palavras do próprio Leibniz:

Se o espaço infinito é a imensidade, o espaço finito será o oposto da imensidade, ou seja, a

mensurabilidade ou a extensão limitada. Ora, a extensão deve ser a afecção de um ser extenso. Mas

se esse espaço é vazio, tratar-se-á de um atributo sem sujeito, uma extensão de nenhum extenso. Eis

por que, fazendo do espaço uma propriedade, recai-se na minha opinião, que o faz uma ordem das

coisas e não alguma coisa absoluta. (Leibniz, 1988 p.249).

Sendo assim, a noção de posição era para Leibniz suficiente para a percepção do

espaço, sem ter de “invocar nenhuma realidade absoluta” (Jammer, 2001, p. 154). Apesar

de ter uma certa herança da concepção aristotélica de espaço, que condicionava a

existência do mesmo à da matéria, Leibniz foi o primeiro pensador a negar a existência

em si do espaço, tornando-o apenas em um sistema de relação entre corpos.

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As concepções expostas por Newton e Leibniz, mas especialmente a do primeiro,

tiveram um fortíssimo impacto nas ciências e na filosofia e demorariam aproximadamente

dois séculos para serem superadas. Nesse meio tempo, grandes pensadores tiveram clara

influência do debate entre espaço relativo e espaço absoluto, como foi o caso de Immanuel

Kant (1724-1804) que, assim como Newton, também admite a existência de duas

qualidades de espaço, um absoluto e o outro relativo. Porém, diferentemente de Newton,

Kant admite que o espaço absoluto pode ser acessado por nós, pois ele é representado a

priori em nossa intuição como meio de organizarmos o “caos fenomênico” que nos

aparece a posteriori em nossa sensibilidade. E o espaço relativo, para Kant é um espaço

dado já a posteriori por nossa sensibilidade e que é um espaço capaz de ser medido,

quantificado e classificado (Martins, 2003).

É importante ressaltar que as contribuições de Kant não se restringiram ao campo da

filosofia, mas também tiveram repercussão na ciência, e, inclusive na Geografia. Ruy

Moreira descreve a tentativa de Kant de alinhar a filosofia de sua época com as

transformações científicas que estavam ocorrendo em grande velocidade:

A busca da combinação de uma sistematização do conhecimento criado pela ciência no plano da

natureza e de uma incorporação do homem em seu discurso, e que agora desafia a evolução do

pensamento tanto científico quanto filosófico, é o seu projeto. Para Kant é necessário encontrar o

ponto comum de pensar a natureza e pensar o homem, seja no plano empírico trilhado pela ciência,

seja no abstrato que é característico da Filosofia. E vai buscar os conhecimentos de apoio na Geografia

e na História. (Moreira, 2011, p.14).

Kant, inclusive, não irá apenas buscar apoio na Geografia, mas como irá leciona-la.

Moreira descreve a concepção da ciência Geográfica de Kant:

A Geografia que Kant conhece é um agregado de conhecimentos empíricos de todos os âmbitos,

organizados em grupos de classificação, uma taxonomia do mundo físico, no sentido aristotélico do

termo, e por isso designada Geografia Física. (Ibid. p.14).

Por fim, o autor descreve que a concepção kantiana sobre o conceito de espaço

permitiu incluir este enquanto enfoque da Geografia e dar à corografia um “sentido

geométrico de localização” (Ibid, p.14). Porém, apesar das contribuições de Leibniz e

Kant, no plano das ciências Newton permaneceu como referência maior.

Com Newton, as bases do conceito de espaço na ciência permaneceriam as mesmas

até início do século XX, quando Albert Einstein (1879 – 1955) propôs uma transformação

de concepção que, de novo, mudaria os paradigmas a respeito desse debate.

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1.4 O espaço das ciências contemporâneas: a concepção de Einstein

A concepção de Einstein sobre o espaço, dado importante de sua famosa teoria da

relatividade, tornou-se um dos principais pilares das ciências contemporâneas,

especialmente das ciências exatas. Para Wertheim:

“(...) o fato de Einstein, embora poucos compreendam o significado de suas teorias, ter se tornado um

dos principais ícones de nosso tempo dá a medida do papel central que o espaço desempenha na

imagem contemporânea do mundo”. (Wertheim, 2001, p.123).

Jammer parece concordar com a autora, afirmando que “o conceito de espaço, após

ter se emancipado durante o Renascimento, assumiu um poder totalitário, obtendo uma

vitória triunfal sobre os outros conceitos da física teórica” (Jammer, 2010, p.206), e

Einstein foi o físico que mais se destacou nesse contexto. Segundo a sua teoria, o espaço

não era simplesmente uma arena que comportava todos os fenômenos, movimentos e

ações (tal qual pode-se interpretar a respeito do espaço absoluto newtoniano), mas sim

uma dimensão concreta, assemelhado a uma membrana, e com papel ativo e real. Para

essa conclusão, Einstein teve de reformular todo o conceito já estabelecido sobre espaço

desde Newton, e, inclusive, retomar posições já descartadas no debate, como o da

relatividade do espaço, proposto por Leibniz.

Para Einstein, espaço e tempo constituem juntos um contínuo que caracteriza uma

quarta dimensão da realidade (além das conhecidas três dimensões: extensão, largura e

profundidade). Esse contínuo não é homogêneo e isotrópico, como até então era

considerado, mas poderia ser, sim, deformado por conta da massa influência da massa

nessa “membrana”. E essa deformação causaria uma força na matéria, o que chamamos

de força da gravidade. Um exemplo clássico que ilustra esse postulado é o de uma bola

de boliche sobre um lençol esticado, sendo que a bola representaria a matéria e o lençol

o contínuo espaço-tempo. Pois bem, a bola curvaria o lençol que a sustenta e, caso

colocássemos uma segunda bola de menor massa, esta seria atraída para o centro do

lençol, esticado pela bola maior. E com isso, Einstein não só explicou o que poderia ser

a força da gravidade como rompeu com as concepções até então dominantes a respeito

do que seria o espaço, pois ele não mais seria isotrópico e, a sua anisotropia, seria devido

a diferença na distribuição de matéria e massa ao longo do espaço.

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Outra afirmação do físico sobre o espaço (e tempo), é que este é relativo em função

do movimento e da velocidade da luz. Einstein concluiu que, quando em movimento, o

espaço (e o tempo) se torna mais curto em relação à um observador que está,

relativamente ao movimento, parado. É como imaginar um carro em uma velocidade

absurdamente alta e quem estivesse fora dele o enxergaria menor do que o mesmo quando

parado. Ou seja, o espaço deixa de ser homogêneo para se tornar relativo.

Por fim, Einstein confrontou o terceiro e último postulado a respeito do espaço

absoluto: o de que ele é infinito (os outros dois, como já descrito, é que ele seria

homogêneo e isotrópico). Para Einstein, o espaço é curvo sobre si mesmo, como uma

esfera, por conta de toda a massa contida no universo e que o entorta sobre si mesmo. É

importante ressaltar que grande parte da teoria de Einstein ganhou grande respaldo com

o resultado de experimentos que puderam ser feitos posteriormente, o que, em um

contexto onde as ciências parecem ter predominância sobre outros campos do saber,

conferem a Einstein grande legitimidade no assunto.

Para Szamozi, as transformações na física do século XX conduziram, pela primeira

vez, à uma transformação na concepção de espaço que não era observável na realidade,

que era menos empírica do que teórica, mas sim fruto de abstrações derivadas de teorias

e investigações científicas. Segundo o autor:

(...) A física do século XX, (...), mostrou-se muito mais audaciosa. Não somente questionou a validade

das antigas ideias humanas como desafiou o testemunho dos nossos sentidos, o mundo que nossos

cérebros haviam criado, nossos modelos congênitos da realidade exterior – a própria cosmologia dos

mamíferos. Em particular, declarou que as próprias intuições sobre o espaço e o tempo que havíamos

adquirido durante eras de evolução biológica não mais mereciam crédito. (Szamosi, 1986, p.146).

Jammer ainda ressalta que, mesmo com lacunas ainda em branco na teoria de Einstein

(como por exemplo as diferenças de comportamento do “espaço” em escala microfísica),

o físico ainda “reina” no assunto pela falta de teorias suficientemente embasadas e que

lhe substituam. Pelo menos na física enquanto ciência exata, fazendo com que Jammer

chame atenção para o seguinte conflito:

Talvez a esperança de que as pesquisas da física possam resolver os problemas filosóficos do espaço

seja tão inútil quanto a esperança de que o pensamento filosófico possa resolver os problemas físicos

do espaço. (Jammer, 2010, p.302).

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A conclusão de Szamosi segue diferente a Jammer. O autor acredita que se a ciência

(em especial a física) cria novos paradigmas para o conceito de espaço, a chamada

“cosmologia humana”, que abarca também as esferas culturais e sociais, tem de se adaptar

a esse novo contexto científico, não havendo espaço para as tais divergências:

(...) Se uma sondagem mais profunda mostra que o universo é diferente do que indicam nossas

experiências sensoriais imediatas, tudo que temos a fazer é tentar usar nosso cérebro para desenvolver

uma nova estrutura, um novo modelo simbólico de espaço e tempo. (Szamosi, 1986, p.152).

Como veremos nos capítulos seguintes, no caso da ciência geográfica o problema

aumenta. Por se tratar de uma ciência assumidamente debilitaria de outros campos do

conhecimento, a ciência geográfica parece ter de lidar com contradições geradas por uma

grande diversidade de fontes teóricas e epistemológicas. Quando a ciência assume possuir

bases tanto da biologia, por exemplo, quanto da sociologia, é impossível que não nasçam

daí conflitos de pensamentos e posturas teóricas. E, no tocante ao conceito de espaço,

esses problemas permanecem, e as soluções propostas por geógrafos divergem ao longo

do tempo, permanecendo a pergunta: o que é o espaço geográfico?

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Capítulo 2- O Espaço na Geografia Clássica: as concepções de Max

Sorre e Pierre George

O presente capítulo visa compreender a concepção de espaço adotada pela ciência

geográfica em sua fase comumente denominada de “clássica”. Para tanto, faremos uma

análise de textos de Max Sorre (1880-1962) e Pierre George (1920-2005), considerados

geógrafos fundamentais do período, e que se detiveram em tentar expor suas concepções

a respeito do “Espaço Geográfico” e seu significado para a ciência geográfica.

Para a análise da concepção espacial de Sorre, buscaremos a sua concepção de espaço

no texto O espaço do geógrafo e do sociólogo (Sorre, 1984), originalmente produzido em

1954 para uma comparação do autor entre as ciências geográfica e sociológica, suas

aproximações e seus limites. No texto, Sorre denomina de “espaço geográfico” uma

especificidade da concepção espacial, de características e atributos próprios e cuja análise

e interpretação cabem aos geógrafos.

Em George utilizaremos a contribuição deixada na obra Sociologia e Geografia

(George, 1969) na qual o autor, assim como Sorre, também tenta identificar os limites e

intersecções entre os campos de estudo da sociologia e da geografia. No texto, George

dedica todo um capítulo (ibid. p.29) para a discussão das abordagens de espaço próprias

a cada uma dessas ciências. Essa divisão entre a existência de um espaço próprio ao olhar

geográfico e um próprio à sociologia nos permite associar a concepção de George à de

outros autores que se referem ao “espaço geográfico” como uma existência particular do

conceito de espaço.

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Por fim, buscaremos compará-los em suas aproximações e singularidades, tentando

resgatar as raízes de suas concepções de espaço, sejam elas oriundas das concepções

científicas, sejam das filosóficas.

2.1 O Espaço Geográfico em Max Sorre

Sorre começa a sua exposição com três “chaves” de entendimento sobre a noção de

espaço nas ciências naturais e humanas: configuração, localização e divisão. Segundo o

autor, essas três categorias abarcam todos os demais conceitos espaciais, como por

exemplo distância. Nota-se aí, principalmente com o termo de “localização”, de uma

possível herança do conceito cartesiano de espaço. O espaço só pode ser “localizável” se

for igualmente possível a adoção de um sistema de medidas e coordenadas que deem

conta de identificar a posição dos corpos no espaço. Nas palavras de Sorre:

Todas as noções relativas ao espaço, nas ciências da natureza e do homem, classificam-se em três

chaves: configuração, localização e divisão. Que características tornam sensível a noção de espaço?

Como é repartido esse espaço? Em frações de extensão mais ou menos grandes, em áreas limitadas.

E como são definidos esses limites? É a divisão. Como um ponto ou uma área podem estar situados

num espaço contínuo? É o problema da posição, da localização. Todos os conceitos espaciais,

inclusive de distância, podem ser encaixados em uma destas rubricas. (Sorre, 1984, p. 140).

O autor ainda acrescenta que essas chaves são explicativas de um espaço bem

definido, que é o espaço terrestre (Ibid. p.140), dando já uma dica do conteúdo de sua

concepção sobre o conceito. Então, Sorre prossegue com a definição, especificando os

limites desse chamado “espaço terrestre”:

A concepção mais simples desse espaço terrestre é o da geodesia. Ela é a base de todas as outras.

Todos os pontos da superfície situam-se em relação a um plano de referência, o geoide terrestre

definido por uma rede de meridianos e paralelos. (Ibid. p. 141).

E é esse tipo de espaço, o “geodésico”, que Sorre identifica como sendo

“primeiramente o espaço geográfico” (Ibid. p.141). Uma primeira aproximação com o

tema do debate, porém que o autor ainda considera insuficiente para esgotar a definição

do conceito. Em seguida, o autor acrescenta a dimensão que abarca os limites do

“ecúmeno”. A noção de ecúmeno também é presente ao longo de sua obra e refere-se às

porções da Terra capazes de abrigar o homem e suas atividades, por conta de

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características naturais propícias ao desenvolvimento de uma sociedade. E por fim o autor

desenvolve o conceito de “espaço geográfico” acrescentando uma dimensão humana e,

mais especificamente, uma dimensão técnica. Moreira identifica em Sorre a inserção da

técnica como elemento-chave de sua obra:

É praticamente com Sorre que a técnica vai passar a ter a força de importância como elemento-chave

da interpretação das paisagens e dos espaços que tem hoje na Geografia. Contemporâneo da

implantação da fase industrial avançada, a fase da segunda Revolução Industrial, Sorre capta este

momento muito bem e o traz para a Geografia com enorme vislumbramento do seu significado.

(Moreira, 2011, p.31).

Esse novo elemento é percebido na concepção de Sorre acerca do espaço geográfico

quando ele menciona variados “tipos de atividades” no que se refere à Geografia humana:

A necessidade de tornar flexíveis os conceitos geodésicos se faz sentir mais ainda ao se passar para a

geografia humana e, de maneira mais geral, para as ciências do homem. De fato, ao lado de elementos

já tratados, introduzimos novos elementos de ordem psíquica, variando conforme o tipo de atividade.

Com a introdução desse novo elemento, a própria natureza do espaço é modificada e passamos

progressivamente do espaço material, concreto, a espaços cada vez mais apertados. (Sorre, 1984,

p. 142).

Dessa maneira, o autor passa a qualificar e limitar o espaço geográfico por meio da

intersecção de três esferas as quais ele classifica como “redes”: a rede de linhas

geodésicas; a rede de porções terrestres capazes de abrigar o homem; e a rede de relações

humanas. Sorre assim apresenta:

A configuração do espaço geográfico não se define apenas em relação à rede de linhas geodésicas.

Estas conservam seu valor, particularmente os paralelos, devido a seu significado climático. Mas é

preciso acrescentar o mapa dos acidentes físicos, margens dos continentes, mares, cadeias de

montanhas, cursos de rios. Tudo isto desenha uma primeira rede auxiliar. Sobrepomos, então, uma

segunda, de origem humana, formada pelas linhas de relações terrestres, marítimas e mesmo aéreas,

com pontos singulares que são os lugares de encontro e focos de irradiação: o significado espacial das

cidades é retirado deste conjunto de dados. Esta terceira rede é tão importante quanto as duas outras

para a estruturação do espaço geográfico. (Ibid. p. 144).

O espaço geográfico em Sorre é caracterizado como um recorte dentro do globo (do

geoide), de aspectos geofísicos bem determinados (o espaço do ecúmeno), mas com a

inserção de fatores de ordem humana e imaterial, o que o autor chama de “ordem

psíquica”, como Sorre ainda acrescenta: “o espaço geográfico não se caracteriza

unicamente pelas dimensões geométricas. Nós, homens, nós o medimos pelas

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possibilidades de existência que ele nos oferece” (Ibid. p. 146). Em outras palavras, trata-

se de uma porção limitada do planeta de características naturais determinadas e

preenchidas de um conteúdo social. E, segundo Sorre, cabe ao geógrafo fazer a leitura e

representação desse tipo de espaço:

A noção de espaço é, por assim dizer, consubstancial ao geógrafo. Daí uma consequência prática: sua

atividade repousa, em primeiro lugar, na utilização das técnicas cartográficas. Não por acaso, (...),

todos os progressos do espírito geográfico foram precedidos ou acompanhados pelo aperfeiçoamento

da cartografia. (Ibid. p.147).

É importante ressaltar que Sorre admite ser o espaço geográfico apenas um tipo de

espaço dentre diferentes abordagens. Nesse sentido ele parece se aproximar da concepção

newtoniana de distinção entre espaço absoluto e relativo. Isso porque o espaço geográfico

de Sorre parece se tratar de um espaço limitado e referencial que pode ser percebido,

classificado e medido (como o espaço relativo), ao mesmo tempo que parece ser uma

adjetivação de um “todo espacial” (espaço absoluto) que contém todas as coisas e só pode

ser percebido por meio de divisões em espaços relativos. E por isso a existência de outras

leituras de mundo espaciais que compõe o todo da realidade:

Há um espaço da geografia, um espaço da sociologia econômica, um espaço da sociologia geral, um

espaço da sociologia religiosa. Eles se interpenetram. Ou, para ser mais exato, o estudo de cada grupo

de atividade pode reclamar a utilização de vários tipos de conceitos espaciais. (Ibid. pp. 142-143).

Herdeiro de Sorre na tradição da Geografia clássica, Pierre George também trará a

sua contribuição na discussão acerca dos conteúdos do espaço geográfico. A importância

do tema no autor é tamanha a ponto de Ruy Moreira afirmar que “de certa forma é o

geografo mais identificado entre os clássicos com a visão espacial da Geografia, a ponto

de poder-se considerar que para ele a Geografia se identifica pela categoria do espaço”

(Moreira, 2011, p.103).

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2.2 O Espaço Geográfico em Pierre George

O conceito de espaço ganha especial destaque no texto de George, Sociologia e

Geografia (George, 1969), demonstrando a importância do tema na obra do autor. Por se

tratar de um texto que visa procurar as relações e limites entre as duas ciências, sociologia

e geografia, George inicia o debate descrevendo o espaço como suporte para as diferentes

atividades e “formas de existência”:

Toda coletividade humana se projeta sobre uma parcela do espaço terrestre que, sob formas diferentes,

serve de base a suas atividades. Esta parcela do espaço contém de fato uma estratificação de espaços,

qualificados conforme a natureza de suas relações com as atividades e as formas de existência dos

grupos considerados. (Ibid. p. 29).

O enfoque na produção econômica e nas atividades sociais será constante até o fim

da exposição de George na sua tentativa de compreensão do espaço. O autor chega até a

classificar o espaço geográfico como sendo relativo, mas de uma maneira distinta do que

Newton, Leibniz, Kant e até Einstein propuseram ao usar o termo. Para George, a

relatividade do espaço se dá nos diferentes usos que a sociedade imprime ao espaço e nas

diferentes capacidades, potenciais e limites que o espaço pode ter para tais usos. Segundo

George:

O espaço geográfico é espaço com três dimensões, contendo unidades desigualmente propícias à

instalação humana (...). Com relação à ocupação humana, estes espaços se qualificam por um

coeficiente de valor que mede sua maior ou menor capacidade de suportar um povoamento e de

assegurar um nível de vida mais ou menos elevado a um determinado efetivo populacional por unidade

de superfície. (Ibid. pp. 30-31).

Outro fator que George traz para o debate, afim de ressaltar a relatividade do espaço,

é a história. Esta, junto com dados naturais e sociais, qualifica o espaço tornando-o

desigual em suas diferentes porções:

Quanto mais antiga a primeira ocupação do solo, mais heranças o espaço terá acumulado. O espaço

aparece ao mesmo tempo como criação humana e dado natural. Esta criação vai-se libertando cada

vez mais dos dados naturais à medida que as técnicas aplicadas à domesticação do espaço vão-se

tornando mais refinadas. (Ibid. pp. 31-32).

Ainda referindo-se aos movimentos da história, o autor acrescenta que a mesma é

capaz não só de diferenciar, mas transformar qualitativamente as porções do espaço

quando há a transformação de um meio rural em meio urbano-industrial:

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As ‘revoluções’ técnicas introduzes novas relações entre espaço e sociedade, modificando os

respectivos valores das diversas frações do espaço (...). Na maior parte das vezes a significação

qualitativa do espaço se modifica quando o espaço não é mais caracterizado em função de sua

agricultura, mas devido a sua utilização no quadro de aplicação das técnicas industriais. (Ibid. p.33).

O fator “psicossocial” também é trazido pelo autor para justificar a sua concepção de

relatividade do espaço. Para George, não apenas usos econômicos do espaço o qualificam,

mas também “no que se refere à percepção de suas dimensões por parte das coletividades

humanas que o ocupam ou que são levadas a percorrê-lo” (Ibid. p.35). De modo que até

a extensão do espaço é relativa às determinantes sociais:

Na medida em que o acesso aos diferentes meios de deslocamento e que as possibilidades de

multiplicar o espaço vivido variam de acordo com a classe social ou a categoria socioprofissional, a

medida do espaço é função da inserção em um grupo social. A relatividade do espaço passa do plano

técnico ao plano sociológico e psicossocial. (Ibid. p. 36).

Após tratar da sua concepção de relatividade do espaço, George prossegue com a sua

discussão sobre o conceito trazendo mais duas classificações: os espaços de localização

e os espaços de relação. Essas novas categorias não se configuram como dois espaços

opostos ou distintos, mas sim de duas maneiras de se conceber um mesmo todo espacial,

duas maneiras de se ler o espaço geográfico.

Os espaços de localização, segundo George, são recortes espaciais qualificados pelo

conjunto em que estão inseridos. Trata-se de uma tipologia de lugares de diferentes

características e funções. O autor traz como exemplo a distinção entre espaços urbanos e

espaços rurais:

A área de uma sociedade global se articula em elementos espaciais de localização dos diferentes

grupos integrantes de sua composição. A primeira oposição fundamental tem como termos sociedade

rural e sociedade urbana. Cada uma possui seu espaço: difuso na sociedade rural, concentrado ou

circunscrito na sociedade urbana. (Ibid. p. 38).

Outro exemplo dado pelo autor permite uma constatação da maleabilidade do

conceito de espaço de localização, pois George fala da diferença entre espaços industriais

de produção e espaços industriais de consumo (Ibid. p.37). Como essa distinção nem

sempre é tão evidente, George reconhece que a distinção entre espaços de localização se

dá pelos critérios adotados:

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As diversas tipologias se interpenetram, mas cada grupo definido em função de um sistema de critérios

determinado possui seu próprio contexto. São espaços geográficos correspondendo à localização de

sociedades globais caracterizadas como tal. (Ibid. p.. 37-38).

Esses critérios podem sugerir uma “dupla qualificação do espaço”, uma vez que o

autor trata de aspectos abordados pelas “ciências da natureza” e de aspectos de

“organização econômicas e sociais que foram sucessivamente implantadas” (Ibid. p. 38).

Porém, esses critérios podem demonstrar-se insuficientes para uma profunda leitura do

espaço geográfico, sendo necessário então a superação do conceito de espaço de

localização:

(...) o espaço de localização representa tão somente um dos suportes espaciais dos grupos humanos.

Quanto mais complicadas forem uma economia e uma sociedade, tanto mais complexas deverão ser

suas relações com o espaço. O espaço de localização constitui apenas um dado que pode ser menos

importante do que as diversas formas de espaços de relação. (Ibid. p. 30).

Os espaços de relação surgem, então, como uma necessidade de se superar o conceito

de espaços de localização na interpretação dos espaços geográficos. Tratam-se de espaços

cuja influência transcendem os limites e territórios locais, encontrando reflexos em outros

lugares. George sintetiza que o “espaço de relação é o espaço no qual se estabelecem

relações e contatos entre o meio tomado como base de observação inicial e o mundo

exterior” (Ibid. p.42). O autor justifica a existência de tais espaços levando em

consideração determinantes de caráter econômico e social:

Não há, na realidade, nenhum grupo humano que viva atualmente em um isolamento total. (...) Seu

espaço cotidiano é prolongado por um espaço mais ou menos conhecido, seu espaço de relação,

concretizado pelo mercado, pela estrada utilizada pelo caminhão que arrebanha os produtos brutos,

pela cidade de onde vê os objetos manufaturados vendidos pelo mercador ambulante ou pelo pequeno

comerciante, e onde os jovens esperam encontrar uma vida mais livre e mais fácil que a da comunidade

familiar e de sua aldeia. (Ibid. p. 42).

Esse tipo de espaço é determinado, também, pela experiência dos indivíduos que nele

habitam ou circulam. George aponta que o tipo de atividade e o “nível social” dos

indivíduos determinam a qualidade e a abrangência do espaço de relação que eles

experimentam:

O espaço de relação varia em dimensão dependendo do nível social dos indivíduos: é nulo ou quase

nulo para o mais pobre dos camponeses dos países subdesenvolvidos, é universal para uma pequena

camada dirigente – tanto nestes países subdesenvolvidos como nos outros – regional para as categorias

profissionais chamadas a exercer suas atividades em um quadro de comunicações e de trocas, como

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no caso de uma economia de mercado e de transportes inter-regionais, migrações do trabalho, funções

administrativas ou militares. (Ibid.p. 45).

Outra característica observada pelo autor é de que os espaços “humanizados”, ou

seja, os espaços onde se desenvolvem e habitam as sociedades humanas, são por

excelência espaços ordenados socialmente. George aponta os elementos desse

ordenamento, seja ele empírico, seja planejado:

O espaço humanizado é espaço ordenado, a ordem podendo ser o efeito de evolução empírica ou de

vontade de organização passada ou presente. Esta ordem se exprime por diferenciação de uso

orientada, em muitos casos, pela diversidade de aptidões para a produção ou para a circulação de

homens e mercadorias, decorrentes de condições naturais. (Ibid. P.41).

Mesmo que em níveis diferentes de planejamento, como entre países desenvolvidos

e subdesenvolvidos, por exemplo, o ordenamento territorial é prática comum que altera a

qualidade do espaço, transformando ele de um simples espaço de localização em um

espaço de relação de proporções regionais e até globais. Neste processo, funções e

hierarquias são distribuídos a fim de organizar a sociedade e o meio:

O espaço de relação pode ser somente empírico – e pode atingir dimensões continentais ou quase

planetárias, no caso de uma área de influência política ou econômica. Pode ser organizado, construído,

no caso de uma ação prévia de repartição de atividades complementares, de organização do espaço.

Desta forma, tem-se a noção de espaço ordenado ou coordenado, ou seja, um espaço regional

organizado, no qual os elementos constituintes de uma estrutura social são deliberadamente

distribuídos ou dosados. (Ibid. p. 30).

A concepção de espaço geográfico de Pierre George, de um espaço relativo e que une

qualidades de um espaço de localização com qualidades de um espaço de relação,

apresenta semelhanças com a do seu antecessor, Max Sorre. Não à toa que Moreira (2011)

considera George como herdeiro direto de Sorre na corrente da Geografia Clássica.

Porém, assim como há semelhanças de concepção, alguns distanciamentos também

podem ser percebidos.

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2.3 Aproximações e distanciamentos nas concepções de espaço geográfico de Max

Sorre e Pierre George

O espaço geográfico em ambos os autores é um espaço de dimensões concretas e

limitadas. Trata-se de porções da Terra que podem servir de habitat e de palco das

atividades humanas. Max Sorre apresenta três escalas dessa delimitação espacial: a

geoide, o ecúmeno e as cidades. O espaço geográfico, então, se confunde com os limites

dessas três “redes”. Pierre George também parece identificar praticamente os mesmos

limites quando diz que o “espaço geográfico é espaço com três dimensões contendo

unidades desigualmente propícias à instalação humana” (George, 1969, p.30).

A caracterização de limites para o espaço geográfico indica uma forte influência do

debate entre espaço absoluto e espaço relativo, iniciado por Newton. Isso porque o termo

“geográfico” parece ser uma relativização de um todo espacial, como dito anteriormente.

O “geográfico”, então, aparece como uma maneira de se limitar e qualificar um espaço

maior (provavelmente infinito), que contém todas as coisas e não aparente aos sentidos.

O mesmo ocorre com o espaço relativo que, para Newton, é uma forma de apreendermos

o espaço absoluto por meio de referenciais e medidas. Sorre ainda reforça essa concepção,

primeiro quando se questiona “que características tornam sensível a noção de espaço?”

(Sorre, 1984, p.140) e depois quando assume que o espaço geográfico é uma leitura

espacial de mundo, dentre diversas outras possíveis, espaços que “se interpenetram” e os

quais “cada grupo de atividade” podem reclamar a sua utilização própria (Ibid. pp.142-

143).

Porém, mesmo com essa herança newtoniana, alguns aspectos do espaço geográfico

de George parecem seguir uma tendência mais próxima à de Leibniz, autor que negava

uma existência concreta ou metafísica do espaço e que conferia ao mesmo o caráter de

construção lógica do indivíduo para o ordenamento de fenômenos externos. Esse novo

elemento de concepção de espaço fica mais evidente quando George introduz elementos

de ordem “psicossocial” e de “percepção” na delimitação do espaço, que ele mesmo

admite ser relativo (George, 1969, p.36), ainda que a teoria newtoniana permaneça

hegemônica no restante de seu texto.

A concepção newtoniana que aparece em George e Sorre parece indicar uma herança

científica na concepção de espaço. Alguns exemplos podem indicar essa herança, como

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o fator da “localização”, anteriormente abordado por ambos os autores. Somente a partir

da contribuição de Descartes, e do estabelecimento da concepção científica nesse debate,

que a localização se tornou um atributo constitutivo e necessário ao conceito de espaço.

Outra semelhança nas concepções de Sorre e George é uma tendência de classificar

e hierarquizar diferentes tipologias dentro do espaço geográfico. Em Sorre, a concepção

de que o espaço geográfico pode ser medido de acordo com as “possibilidades de

existência que ele nos oferece” (Sorre, 1984, p. 146), fornece subsídios para a conclusão

de que o espaço geográfico não é homogêneo, mas sim hierarquizado de acordo com

critérios de ordens naturais e sociais. Pierre George vai além na classificação dos espaços

geográficos uma vez que ele trabalha o tempo todo com diferenciações quantitativas e

qualitativas entre espaços. Exemplos claros podem ser percebidos quando ele distingue

os espaços urbanos dos rurais; quando ele difere os espaços industriais de produção ou de

consumo; ou quando ele classifica os espaços de relação de acordo com o seu grau de

influência: local, regional ou global.

Por fim, é importante ressaltar um salto no objeto de análise que George faz em

relação a Sorre, isso no que se refere à inserção da esfera social na caracterização do

espaço geográfico. Se a técnica ganha importância na obra de Sorre, como afirma Moreira

(Moreira, 2011, p.31), ela ainda é posta em nível de igualdade com aspectos físicos e

naturais. Tanto que o espaço geográfico de Max Sorre é apresentado como a união das

três redes, sendo uma de origem natural (a geoide), uma de origem social (as cidades e

relações sociais espaciais), e uma como uma intersecção entre meio físico e sociedade

(trata-se aqui da já mencionada rede de lugares do ecúmeno, onde esse é sim um espaço

natural, porém ele só existe enquanto tal quando qualificado pela possibilidade de

existência e sobrevivência do homem). Já em George, os aspectos técnicos e sociais

ganham um destaque muito maior, demonstrando um sentido de continuidade e evolução

conceitual. Para o autor, o espaço é qualificado sempre em relação ao uso técnico e social

ao qual ele é submetido: ele é um espaço rural se a sociedade o usa para o plantio; é um

espaço industrial se usado para a produção; espaço urbano se serve como centro de

relações e serviços, e por aí em diante. Mesmo as leituras feitas a partir de tipologias de

espaço de relação e espaço de localização só são permitidas se for levado em conta os

aspectos humanos imprimidos nesse espaço. O espaço de relação, e isso fica bem claro,

só pode receber essa classificação se for um espaço de relações sociais, independente da

qualidade do meio natural.

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Outro salto qualitativo será dado décadas depois, quando os geógrafos da chamada

Geografia Crítica também abordarem as suas concepções de espaço geográfico, mudando

a natureza do mesmo e os seus significados.

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Capítulo 3 – O Espaço na Geografia Crítica: as concepções de David

Harvey e Hildebert Isnard

Este capítulo se dedica analisar como é abordado o conceito de espaço geográfico na

tradição da chamada Geografia “crítica”, ou ativa, como propõe Ruy Moreira (2012, p.

36). Trata-se de um período da Geografia influenciado pelas escolas americana e francesa

e estas, por sua vez, fortemente marcadas por uma tradição marxista. O que caracteriza

fundamentalmente a produção geográfica desse momento, segundo Moreira, é:

(...) uma geografia da ação de sentido dialético, engajado, mas sem vínculos subordinantes, por isso

autônoma e científica perante as demandas de intervenção do geógrafo, na linha da filosofia da práxis,

de Marx (Ibid. p.40).

Dessa maneira, iremos analisar a concepção de dois autores dessa tradição, David

Harvey (1935) e Hildebert Isnard (1904-1983), que se preocuparam em decifrar os

aspectos constitutivos do conceito de espaço e o seu desdobramento crítico no processo

de compreensão da sociedade.

Em Harvey, iremos nos basear em dois textos nos quais o autor sustenta a sua

concepção de espaço: A justiça social e a cidade (1980), no qual o autor apresenta três

categorias para a definição do conceito (espaço absoluto, relativo e relacional); e o texto

O espaço como palavra-chave (2006), onde o autor aprofunda as definições apresentadas

no primeiro.

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Em Isnard, o único dos autores deste trabalho que dedicou um livro inteiro para a

investigação do tema em questão, a análise se baseará no texto O espaço geográfico

(1982). Nesse livro, o autor irá desenvolver três abordagens para a interpretação do espaço

geográfico: o espaço como produto social, como geossistema e como produto de

consumo.

Por fim, iremos confrontar ambos os autores para tentarmos alcançar os elementos

comuns a ambos, bem como as suas particularidades que os singularizam. Iremos,

também, relacionar as concepções dos autores com as concepções científicas

apresentadas nos capítulos anteriores, para tentarmos identificar que elementos são

constitutivos de uma herança histórica e científica na construção do tema, e que elementos

os autores trazem como novidade na interpretação de o que é o espaço geográfico.

3.1 O Espaço Geográfico em David Harvey

David Harvey inicia o debate com uma afirmação que dará a tônica do restante de

sua exposição:

Há várias maneiras pelas quais podemos pensar a respeito do espaço, e é basicamente dele que se deve

formular uma concepção correta quando se deseja compreender o fenômeno urbano e a sociedade em

geral: mesmo porque a natureza do espaço tem permanecido algo misterioso na pesquisa social.

(Harvey, 1980, p.4).

Este trecho possui elementos importantes a serem considerados. O primeiro, aqui, é

a concepção de que existem “várias maneiras pelas quais podemos pensar a respeito do

espaço”, ou seja, o autor admite que o conceito é variável conforme a necessidade ou

aplicabilidade. Harvey irá, posteriormente, reforçar essa ideia quando discorre o seguinte:

Quando, por exemplo, referimo-nos ao espaço ‘material’, ‘metafórico’, ‘liminar’, ‘pessoal’, ‘social’,

ou ‘psíquico’ (usando somente alguns exemplos), indicamos uma variedade de contextos que, assim,

contribuem para construir o significado de espaço contingente segundo esses contextos. De forma

similar, quando construímos expressões como espaços do medo, do jogo, da cosmologia, dos sonhos,

da raiva, da física das partículas, do capital, da tensão geopolítica, da esperança, da memória ou da

interação ecológica (mais uma vez, somente para indicar alguns dos desdobramentos aparentemente

infinitos do termo), os domínios de aplicação são tão particulares que tornam impossível qualquer

definição genérica sobre espaço. (Harvey, 2006. P.8).

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Outra chave para o entendimento da concepção espacial de Harvey é a afirmação de

que “o espaço torna-se o que fazemos dele durante o processo de análise” (Harvey, 1980,

p.5). Dessa forma, parece claro que o autor propõe a utilização do conceito conforme o

objeto de análise e, mais do que isso, dos objetivos analíticos pretendidos.

Portanto, para dar conta de tentar “compreender o fenômeno urbano e a sociedade

em geral”, como dito em seus próprios termos, Harvey propõe três categorias para o

conceito de espaço derivadas das ciências exatas e que ganham novos significados a partir

de seu conteúdo social: o espaço absoluto, o espaço relativo e o espaço relacional

(Harvey, 1980, pp. 4-5).

O primeiro, o espaço absoluto, o próprio autor credita a influências das concepções

de Newton e Descartes (Harvey, 2006, p.10) e, como os próprios autores o concebem,

trata-se de um espaço de existência própria, passível de receber coordenadas e medidas,

porém infinito. Essa concepção, segundo Harvey, pode ser transposta às ciências sociais

quando se estuda um espaço privado, concebido para se excluir conflitos e contradições:

Socialmente, é o espaço da propriedade privada e de outras entidades territoriais delimitadas (como

Estados, unidades administrativas, planos urbanos e grades urbanas). Quando o engenheiro de

Descartes contempla o mundo com um sentido de domínio, trate-se de um mundo de espaço (e de

tempo) absoluto onde todas as incertezas e ambiguidades podem em princípio ser banidas e onde o

cálculo humano pode florescer sem entraves. (Ibid,).

Por ter uma existência própria, independente da matéria, o espaço se torna uma “coisa

em si” (Harvey, 1980). Então, associada a essa concepção de espaço, está uma ideia de

naturalização do mesmo, o que, se transposto para a análise social, significa uma

naturalização de suas contradições. É, portanto, um espaço de controle e de limites.

O espaço relativo, para Harvey, é um desdobramento da concepção apresentada

anteriormente por Einstein. Como o físico havia proposto, o espaço relativo é, por

definição, um espaço que depende do ponto de vista de um observador, de um ponto de

referência. Outra característica da teoria de Einstein, é a inclusão da dimensão do tempo

para compor o todo espaço-temporal. São esses os principais fundamentos que dirigem a

concepção de Harvey sobre o espaço relativo:

A noção de espaço relativo é associada principalmente ao nome de Einstein e às geometrias não-

euclidianas que começaram a ser mais sistematicamente construídas no século XIX. O espaço é

relativo em dois sentidos: de que há múltiplas geometrias que podemos escolher e de que o quadro

espacial depende estritamente daquilo que está sendo relativizado e por quem. (...) é impossível

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compreender o espaço independentemente do tempo, e isto implica uma modificação importante na

linguagem, com uma passagem do espaço e do tempo ao espaço-tempo ou espaço-temporalidade

(Ibid. pp.10-11).

Para Harvey, o conteúdo social que caracteriza um espaço relativo é a existência das

relações sociais, logo ele é também chamado de “espaço das relações” (Ibid. p.11). Essas

relações sociais permitem diversas relações com o espaço e, portanto, diferentes

qualificações e significações. Enquanto propriedades privadas eram definidas enquanto

espaços absolutos, pelo caráter imutável de seus limites e regras, o espaço relativo é

associado aos espaços públicos, locus da vida política e das diferentes significações:

Em um nível bem trivial da atividade do geógrafo, nós sabemos que o espaço das relações parece ser,

e é, muito diferente dos espaços da propriedade privada. O caráter único da localização e da

individualização, definido pelos territórios limitados do espaço absoluto, oferece um caminho para

uma multiplicidade de localizações que são equidistantes de, digamos, alguma localização central da

cidade. Podemos criar mapas completamente diferentes de localizações relativas diferenciando-as

entre distâncias medidas em termos de custo, tempo, modo de transporte (carro, bicicleta ou skate) e

mesmo interromper continuidades espaciais ao olhar para redes, relações topológicas (a rota ótima

para o carteiro), e assim por diante. (Ibid.).

É importante ressaltar que, apesar de se distinguir do espaço absoluto, o espaço

relativo também é alvo de controles, leis e normas:

Toda esta relativização, é importante notar, não necessariamente reduz ou elimina a capacidade de

cálculo ou controle, mas ela indica que regras e leis especiais são necessárias para fenômenos

particulares e processos em consideração. Dificuldades aparecem, contudo, se ambicionamos integrar

conhecimentos de diferentes campos em um esforço mais unificado. (Ibid. Pp. 11 – 12).

Por fim, Harvey apresenta o conceito de espaço relacional, uma concepção herdeira

do conceito espacial de Leibniz. Esta concepção, um pouco mais nebulosa nos textos de

Harvey, identifica o espaço enquanto produto das relações sociais, e não apenas o palco.

Dessa maneira, o espaço relacional é definido, é significado, por conta de seus

componentes. Não é um espaço privado ou público, a priori, nem limitado por leis ou

regras.

Um aspecto das concepções de Harvey acerca do espaço, e que é bastante frisado

pelo autor, é que não existe uma separação concreta entre essas tipologias na hora de se

definir um determinado espaço. Trata-se de uma relação dialética onde ora predomina um

certo aspecto do espaço, ora outro:

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(...) o espaço não é nem absoluto, relativo ou relacional em si mesmo, mas pode transformar-se em

um ou em outro, dependendo das circunstâncias. O problema da correta conceituação do espaço é

resolvido através da prática humana em relação a ele. (Harvey, 1980, p.5).

A distinção em categorias, ou tipologias, de espaço, para Harvey, é um exercício de

recorte intelectual que visa algum objetivo específico, como por exemplo, um

engajamento político:

Pensar as diferentes maneiras como espaço e espaço-tempo são usados como palavra-chave, nos ajuda

a definir certas condições de possibilidade para o engajamento crítico. Isso também nos abre caminhos

para identificarmos reivindicações contraditórias e possibilidades políticas alternativas, além de nos

incitar a considerar a maneira como moldamos fisicamente nosso meio e o modo como o

representamos e o vivemos. (Harvey, 2006, p.26).

3.2 O Espaço Geográfico em Hildebert Isnard

A obra de Isnard, assim como os textos de Harvey, propõe diferentes tipos de

concepções para o espaço, como chaves interpretativas de um todo real. Essas chaves,

apesar de particulares, não são excludentes, mas são usadas de acordo com o objetivo do

observador que pretende um desvelamento da realidade. Sendo assim, a primeira

definição de Isnard de espaço geográfico é a identificação do espaço como um produto

social (Isnard, 1982, p.17).

O espaço como produto social, de acordo com Isnard, é o espaço geográfico. Esse

espaço é, por definição, um espaço de criação humana e, logo, é oposto (porém derivado)

ao que o autor chama de espaço natural. E por espaço natural, Isnard entende tratar-se de

um espaço de existência própria, de coesão interna e independente da ação humana:

Este espaço natural apresenta-se como uma realidade objetiva que não deve nada ao homem, que

existe sem ele, fora dele e que se desarticula logo que ele intervém. É por esta razão que hoje quase

desapareceu como realidade viva e que se tenta protege-lo e reconstituí-lo (Ibid. p. 21).

Nessa concepção de espaço natural, pode-se perceber a influência de uma concepção

de espaço absoluto (existente por si só) e de um espaço matemático (e por isso

“articulável”). Portanto, a concepção de espaço natural está em consonância com a

concepção científica do espaço, o que Isnard não ignora:

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A ordem reina nos espaços naturais, uma ordem estabelecida num alto grau de interligações sem a

qual seria o caos do acaso. Pertence portanto à ciência cujo objeto é precisamente a descoberta dessas

adaptações rígidas (Ibid. p.25).

Essa associação entre o espaço natural com o conhecimento científico permite que

Isnard avance em sua concepção, ao dizer que “(...) o espaço natural assim definido

constitui um ecossistema” (Ibid. p. 26). Esse conceito de ecossistema só é possível nesse

tipo de leitura específica do mundo que se caracteriza como científica.

Após a caracterização do espaço natural, Isnard reconhece que o mesmo encontra-

se em desvantagem em relação ao seu oposto, o espaço geográfico. Os espaços naturais,

para o autor, já representam a menor porção da superfície terrestre. Isso porque o autor

identifica que todas as sociedades humanas dependem biologicamente e culturalmente de

um espaço para se reproduzirem enquanto tal. E dessa forma, as sociedades transformam

os seus espaços, alterando a característica deles de espaços naturais para espaços

geográficos:

Com a descoberta da agricultura e da criação de gado, o Neolítico abre a era da organização do espaço

pela ação humana, organização que se estenderá, pouco a pouco, à quase totalidade da superfície

terrestre. Doravante o homem é dotado da possibilidade de organizar o seu meio, adquiriu o domínio

sobre os outros seres vivos, vegetais e animais e, progressivamente, o dos elementos físicos tais como

o solo, a água e até mesmo o clima que utiliza para a realização dos seus desígnios. Isso é, criou o seu

habitat. Criador e criação, intimamente interdependentes, não se apreendem um sem o outro (Ibid.

p.35).

A partir daí, o autor se dedica a desvelar a qualidade desse espaço geográfico. Nesse

sentido, a premissa básica é de que todo tipo de sociedade reflete e é refletido por seu

espaço. Sendo assim, todo projeto de sociedade produz um espaço correspondente:

Os projetos das sociedades constituem pois uma das chaves do conhecimento do seu espaço, resultam

do sistema de valores, tradições, atitudes culturais, sociais e políticas, numa palavra, da ideologia na

qual cada sociedade colhe as suas motivações e as suas razões de agir (Ibid. p.37).

E esse espaço geográfico herda das sociedades que o produz, as suas contradições e

conflitos. Sendo assim, apesar do espaço refletir um plano de sociedade, ele não está

isento de questões e disputas. Isnard primeiro atribui isso à condição histórica do espaço,

o qual é construído por sucessivas gerações que herdam um espaço já produzido pelas

precedentes. Por conta disso, diferenças históricas entre projetos de sociedade tornam-se

contradições espaciais:

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(...) homens herdam geralmente espaços já organizados por gerações precedentes, herdando também

um projeto elaborado por aqueles. É disso que resulta o que se pode denominar de contradições

internas. Uns contentam-se em prosseguir, outros procedem a novos arranjos mais adequados aos seus

próprios projetos. A sucessão consiste muitas vezes na transformação de uma matéria prima já degrada

e fortemente comprometida, tendo que pagar os excessos ou os erros cometidos pelos antepassados

(Ibid. p. 45).

A economia, então, aparece como força hegemônica da sociedade no processo de

construção e significação do seu espaço. Isnard atribui à economia o domínio da vida

social, o que se reflete no espaço:

A economia, com efeito, domina os outros componentes da vida social: levou-as a responder às

exigências para assegurar a coerência do sistema. O seu poder de estruturação introduziu a

unidimensionalidade na sociedade e no seu espaço. Em razão duma evolução mais ou menos rápida,

aos ordenamentos herdados do passado sofrem uma remodelação que lhes permite atingir a produção

do lucro máximo (Ibid. p. 65).

E, dessa forma, o autor encerra a sua primeira exposição sobre o espaço geográfico,

que consiste na tese de que o mesmo é definido e significado pela sociedade que o constrói

e que, dialeticamente, também produz a sociedade (Ibid. p. 93). Logo, as contradições da

sociedade se refletem no espaço e as contradições espaciais se refletem na sociedade,

sendo a economia o principal agente de modificação do espaço. Em seguida, Isnard se

dedica a explorar um aspecto do que ele considera ser o espaço geográfico, é então que o

autor irá trabalhar com a noção de “geossistema”.

Com o conceito de geossistema, Isnard retorna a abordagem sistêmica, tal qual ele

havia proposto ao falar dos espaços naturais como ecossistemas. O autor traz essa

concepção para tratar das relações entre espaços que, outrora, era determinada por

imposições naturais e agora segue outras lógicas. Segundo ele, os geógrafos buscavam

analisar a influência do meio natural na organização e estruturação de uma cidade, mas

agora devem identificar novos tipos de relação, uma vez que as condições naturais não

são mais determinantes ao estabelecimento espacial de uma sociedade (Ibid. pp.102-103).

Para tanto, Isnard traz dois conceitos já habituais da Geografia que ajudam na

compreensão dessas relações: os conceitos de sítio e situação.

Por sítio, Isnard considera as condições que o meio natural oferece à cidade segundo

a sua localização. Trata-se de benefícios e desvantagens para o desenvolvimento de uma

sociedade segundo o seu próprio meio de instalação. Pode-se perceber, aqui, que a noção

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de sítio por si só é considerar a sociedade um sistema fechado, onde as condições de

desenvolvimento da mesma são determinadas também em seu interior, sem a interferência

de outras externas. E para ampliar essa concepção aparentemente limitada, é necessário

também considerar o conceito de situação.

Situação, para o autor, é perceber o papel de uma cidade em um contexto maior, ou

seja, na relação com as demais cidades. Nesse sentido, a posição de uma cidade é

novamente fundamental, mas não apenas no seu próprio desenvolvimento, mas também

no papel que irá desempenhar com as demais:

A noção de situação é ainda mais relativa: ela exprime as possibilidades de ação que uma cidade pode

retirar da sua posição geográfica por benefícios resultantes das relações com o resto do espaço

próximo ou longínquo (Ibid. p. 104).

Após exibir as suas concepções de sítio e situação, Isnard irá relativizar a influência

do meio natural no atual grau de desenvolvimento e importância das cidades. Para o autor,

se em relação somente às condições naturais, sítio e situação demonstram-se insuficientes

para uma análise do espaço contemporâneo, uma vez que “nem o sítio nem a posição são

fatores decisivos na geografia de uma cidade: os problemas que podem levantar-se

encontram sempre uma solução quando o interesse dos homens o exige” (Ibid.). Dessa

maneira, o autor retoma o argumento de que o espaço geográfico é um produto social, ele

é constituído de uma lógica e racionalidade de face humana e que supera a organização

natural precedente. Essa lógica estrutura as relações entre espaços geográficos, compondo

um todo espacial maior, mais amplo e estruturado6:

Como todo artefato, o espaço geográfico é uma criação final da sociedade, necessariamente ordenada

segundo uma lógica interna que conduz os elementos constitutivos a entrar no funcionamento do

conjunto. A lógica das coisas que se impõe através de ensaios experimentais ou da lógica humana que

surge do cálculo e da previsão, lógica esta que estabelece entro os componentes, íntimas correlações

que fazem do espaço geográfico um todo coordenado numa estrutura espacial (Ibid. p. 111).

O autor ainda acrescenta que esses espaços são interdependentes entre si, compondo

uma rede coerente e lógica de relações (Ibid.), o que reforça a concepção sistêmica que

permeia a sua construção do conceito de geossistema. Segundo Isnard, a cidade torna-se

6 É importante ressaltar, mais uma vez, que a ideia de espaços “menores” e que se relacionam entre si para compor um espaço “maior” e articulado, remete em certo nível às concepções como a de Newton, que já previa a existência de um espaço absoluto que abarcava espaços menores e relativos. Ou também à concepção de Aristóteles que considerava o espaço como soma dos lugares.

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o principal produto do ordenamento racional do espaço, mas que não se pode considerar

a cidade por si, independente do conjunto de relações espaciais em que ela está inserida,

uma vez que “(...) o espaço geográfico não é uma entidade em si, não tem qualquer

sentido, enquanto não for colocado no contexto onde está integrado” (Ibid. p.165). Então

é a partir dessa concepção que para o autor, o conceito de região ganha força, uma vez

que “a cidade não vive da cidade, e sim da região” (Ibid. 140).

Para encerrar, por fim, a sua concepção de geossistema, Isnard faz a crítica as

próprias limitações que o conceito traz. Para começar, ele admite a influência da teoria

geral dos sistemas em sua concepção, o que torna a análise desse aspecto do espaço de

domínio de ciências exatas e matemáticas:

Se o espaço geográfico põe em relevo a teoria geral dos sistemas, é possível descobrir nele as regras

de organização, submetendo os seus elementos constitutivos a um certo número de operações

estatísticas e matemáticas suscetíveis de pôr em evidência e quantificar as interdependências que

estruturam e dinamizam o seu todo (Ibid. p. 171).

Em seguida, o autor reconhece que essa teoria fornece uma leitura específica da

realidade, dominada por cientistas quantitativos e matemáticos. Essa leitura entra em

consonância com um projeto de sociedade também específico, que é o projeto capitalista,

e do qual a geografia quantitativa também reproduz:

Os conceitos operacionais que a geografia quantitativa utiliza são extraídos da análise da realidade

espacial tal como a edificou o sistema capitalista americano, ao aplica-la a um tipo de espaço que ele

mesmo determinou para um certo tipo de sociedade, a sociedade produtivista cujos valores são

estabelecidos segundo uma escala quantificada, sendo tomado em consideração o que é quantificável

enquanto o qualitativo é excluído totalmente do cálculo. Esta sociedade põe a ciência ao serviço da

produção, mais do que do conhecimento, compreendendo-se desde logo que o espaço concebido

responde a uma certa lógica matemática (Ibid. p. 173).

Por fim, ao afirmar que “(...) a ordem contida no espaço geográfico não tem, talvez

este caráter de necessidade que o tratamento por métodos matemáticos rigorosos existe”,

ele reconhece a insuficiência desses ramos da ciência de dar conta de toda a análise

espacial que, por seu conteúdo social e histórico, não pode se limitar ao domínio das

ciências exatas. Portanto Isnard parte para a sua terceira leitura do espaço geográfico.

Depois de discorrer sobre o espaço geográfico enquanto produto social e enquanto

geossistema, o autor irá tratar do espaço enquanto produto de consumo.

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Esta concepção, a de que o espaço geográfico é um produto de consumo, é a menos

desenvolvida por Isnard em seu texto, ainda que bem conhecida atualmente pelo ramo da

Geografia Urbana. Trata-se da percepção de que:

Se o consumo do espaço consiste na transformação de uma matéria prima num produto destinado a

assegurar a existência do Homem, bem se pode dizer que é uma característica natural de toda a

sociedade humana consumir o espaço (Ibid. 192).

E, em uma sociedade capitalista, este consumo assume também contornos

capitalistas. Dessa forma, o espaço pode ser comprado, vendido, especulado... Ou seja, o

bem de consumo que ele representa, se torna uma mercadoria. E como tal, a lógica do

lucro impera sobre ele, deixando de lado preocupações como as de ordem social ou

ambiental:

Bloqueado pelo sistema industrial para servir os seus fins, o espaço urbano é ele próprio um produto

industrial; é constituído por todas as peças tal como uma mercadoria é concebida para o lucro, é em

tudo, um artefato. Nada ou quase nada resta do espaço ecológico que ele substituiu; a posição e o sítio

que puderam justificar a localização da cidade perderam importância; a topografia original pôde ser

transformada; o clima local é adulterado pela poluição atmosférica emanada das cidades (...) (Ibid.

p. 187).

Dessa forma, aliando as suas três concepções sobre o espaço geográfico (como

produto social, geossistema e produto de consumo), Isnard faz um apelo sobre a nossa

responsabilidade sobre o mesmo. Se o espaço segue agora a nossa lógia, e não mais a

natural; se ele está conectado a uma rede de outros espaços, compondo um todo espacial

que percorre toda a superfície terrestre; e se ele é consumido por nós; devemos perceber

para onde caminham as nossas intervenções e quais serão as consequências:

O perigo que mais nos ameaça, não é somente o da destruição das interdependências dinâmicas que

unem estreitamente o mundo vivo e a matéria inanimada nos mecanismos da Vida, mas sobretudo a

nossa incapacidade para prever as implicações e consequências biológicas das nossas intervenções

(Ibid. p. 206).

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3.3 Aproximações e distanciamentos nas concepções de espaço geográfico de David

Harvey e Hildebert Isnard

Ambos os autores começam por afirmar o caráter polissêmico do termo “espaço”.

Tanto Harvey, quanto Isnard, demonstram que cada interpretação do espaço é

condicionada por um objetivo específico de leitura do mundo. Dessa forma, os autores

irão formular as suas concepções de espaço de acordo com o viés crítico característico a

ambos.

No caso de Harvey, apesar de afirmar que ele parte do ponto de vista geográfico

(Harvey, 2006, p.9), as concepções por ele trazidas assumem uma herança clara de

diferentes campos da ciência, como de Newton, Descartes, Leibniz e Einstein. Dessa

maneira, o conteúdo geográfico alegado por Harvey pode aparecer como ressignificação

dos conceitos espaciais propostos por esses outros autores. O espaço absoluto para

Harvey, por exemplo, não mais é apenas aquele espaço infinito e homogêneo, como para

Newton. Esse espaço torna-se o espaço da propriedade privada, regulada, normatizada,

etc. O mesmo tipo de transposição “crítica” ocorre para os demais autores.

Dessa forma, temos em Harvey algo que parece diferir em certa medida do que foi

anteriormente atribuído a Sorre e George. Enquanto estes pareciam que dirigiam a sua

análise ao aspecto geográfico dos elementos contidos no espaço, Harvey se inclina a

definir o espaço justamente por esse aspecto geográfico. A diferença aqui é entre um tipo

de concepção herdeira do espaço absoluto de Newton, que é infinito e contém todas as

coisas, para um espaço mais próximo de Leibniz, definido pela relação entre essas coisas.

Essa, porém, é uma suposição, uma vez que nos faltam elementos para compreender

claramente a concepção espacial de Harvey. O autor identificou três tipologias de espaço,

definidas por relações sociais de propriedade e uso do solo, porém ele não se detém a

especificar a natureza dos “demais espaços”, como os espaços naturais ou desprovidos de

populações humanas. Dessa forma, ele não deixa claro se assume que esses espaços

também se definem por suas relações, ou se, de novo, existe por trás uma concepção de

espaço maior e absoluto que abarcaria as demais concepções. Já em Isnard, a concepção

volta a se aproximar um pouco dos autores já analisados anteriormente.

Hildebert Isnard, assim como Sorre e George, preocupa-se em delimitar bem o seu

objeto de análise. E isso fica claro com a frase:

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O que a Geografia deve definir, é a especificidade do espaço que constitui o objeto da sua investigação.

Um espaço geográfico resulta mais da ação do homem do que das condições naturais, definindo-se

essencialmente pelas suas relações com a sociedade (Isnard, 1982, p.237).

O espaço geográfico, e não qualquer espaço, é aquele em que o homem transformou

o “equilíbrio natural” em um produto social, sistêmico e consumível. Mesmo que, para o

autor, esse espaço hoje seja quase hegemônico na superfície do planeta, ainda sim trata-

se de um recorte espacial de um todo maior. De novo podemos remeter à uma concepção

newtoniana, de um espaço relativo, mensurável, de características sensíveis, mas que está

contido no espaço absoluto, este infinito e homogêneo.

O que difere Isnard de Sorre e George, mas que o aproxima de Harvey, é a mais forte

influência de concepções sociais e filosóficas na elaboração de seu conceito. Sorre e

George até demonstraram ter preocupações de caráter social, mas as suas exposições eram

mais baseadas na descrição e localização do que na efetiva interpretação dos conteúdos

sociais. Já Harvey e Isnard se utilizam de conceitos da economia, sociologia (como

produção, consumo), história, etc. para um embasamento mais crítico e radical de suas

análises. Com isso, a reprodução da sociedade e seus conflitos e contradições, ganha mais

destaque na interpretação do espaço, do que meramente os aspectos que saltam aos olhos

na paisagem. Porém, os aspectos mais essenciais na análise dos quatro autores não parece

mudar radicalmente. O espaço geográfico é analisado e entendido por meio de um

entendimento também da sociedade, tendo clareza que essa sociedade irá modificar,

construir e produzir o seu próprio meio, gerando um produto que cabe a Geografia

interpretar. Hildebert Isnard afirma isso de maneira mais clara:

O espaço geográfico aparece assim como a projeção no solo da sociedade que o criou obedecendo a

mesma racionalidade. Mas, o próprio método geográfico consiste em partir, não da sociedade para

atingir o espaço, mas do espaço para atingir a sociedade, exatamente da mesma maneira como

compreender o autor através da sua obra (Ibid. p. 40).

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Conclusão

Algumas conclusões podem ser obtidas com esse trabalho e, acredito, a primeira

delas deve ser de suas limitações e imprecisões. Tentar rastrear toda a genealogia de um

conceito é uma tarefa que dificilmente terá uma resposta precisa. E, o fato dos autores

analisados não explicitarem de quem eles herdam os seus conceitos (com exceção, talvez,

de David Harvey que apresenta os seus referenciais teóricos), dificulta ainda mais a

precisão de nossa análise. Enquanto Descartes, Newton, Einstein, entre outros filósofos

naturais, físicos e cientistas de diversos ramos, parecem seguros com a as suas concepções

de espaço, categoria fundamental para cada um deles, os geógrafos analisados parecem

se inclinar em outra direção, deixando para os seus antecessores a precisa

conceptualização de espaço.

No caso de Max Sorre, Pierre George e Hildebert Isnard, os autores parecem mais

preocupados em expor o que de geográfico se tem no espaço, do que propriamente o que

eles concebem enquanto espaço. Dessa forma, alguns elementos fornecidos por esses

autores dão pistas de que suas concepções podem ser herdeiras de uma concepção

científica (e dominante) desenvolvida por Newton, que concebe o espaço enquanto

infinito, homogêneo e isotrópico, o que já foi repetido à exaustão neste trabalho. Sendo

assim, nessa concepção, temos um espaço absoluto que contém todas as outras coisas. E

nessas coisas contidas, temos uma “fração geográfica”, um espaço menor e limitado, o

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qual os geógrafos irão analisar. Nessa concepção, esse espaço é concreto e, por isso, pode

ser delimitado e medido, como o espaço relativo do mesmo Newton, ou o espaço de

Descartes. O que caracteriza essa porção de espaço enquanto geográfico, são algumas

especificidades, e são essas especificidades que diferenciam em alguma medida os

autores analisados. Todos estes parecem concordar que o que caracteriza o espaço

geográfico é a interação entre sociedade e o meio, sendo que este é transformado de suas

condições ditas naturais e originárias, para se tornar um produto social. O que parece

diferenciá-los é o grau de profundidade e referenciais para análise social do que compõe

o espaço social. Nenhum deles exclui a importância de tal tipo de análise para se

compreender o espaço geográfico, todos parecem ter claro que este é um produto humano,

mas o que os difere são os instrumentos utilizados para tal compreensão. Isnard, por

exemplo, só chega a relacionar o espaço geográfico como um produto de consumo por

ter a herança marxista em sua concepção, bem como Sorre parece herdar a Teoria Geral

dos Sistemas em sua concepção hierarquizada de diferentes escalas de espaços

interdependentes.

Apenas Harvey parece seguir uma direção diferente em sua análise. O autor se

preocupa em apresentar diferentes interpretações de espaço, variantes conforme a

significação social que é dada ao meio. Com isso, ele não segue a tendência científica de

criar leis e verdades em cima das categorias, tornando-as universais e aplicáveis para

determinados fins. Mas Harvey parece ser exceção.

Se chegamos a uma conclusão parcial de que o nosso conceito de espaço é

impregnado por concepções científicas de espaço, devemos então nos lançar a uma nova

pergunta a ser respondida futuramente: e o que significa isso? Seríamos por demais

inocentes se pensássemos que a herança científica é desprovida de ideologias e

imposições. Todo tipo de concepção traz em seu bojo uma visão de mundo e consequentes

manifestações. Então novamente, o que significa adotarmos na Geografia uma visão

científica de mundo? E o que é, e para quem é essa ciência? A quem ela serve? Essa

crítica é necessária a ser feita, e somente enxergando para além do que nos é aparente,

que podemos nos posicionar a respeito. E espero que esse trabalho contribua nesse

sentido.

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