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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de ensino superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma escola pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações afirmativas, universidade pública e direito à educação Maurício Buosi Lemes Orientadora: Profa. Dra. Fabiana Cristina Severi RIBEIRÃO PRETO SP 2016

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de

ensino superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma

escola pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações

afirmativas, universidade pública e direito à educação

Maurício Buosi Lemes

Orientadora: Profa. Dra. Fabiana Cristina Severi

RIBEIRÃO PRETO – SP

2016

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de

ensino superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma

escola pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações

afirmativas, universidade pública e direito à educação

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo, como parte das exigências para a

obtenção do grau de Bacharel em

Direito.

RIBEIRÃO PRETO – SP

2016

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Autorizo a reprodução e a divulgação parcial ou total desse trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e de pesquisa, desde que citada a fonte.

FICHA CATALOGRÁFICA

LEMES, Maurício Buosi.

O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de ensino

superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma escola pública

estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações afirmativas, universidade

pública e direito à educação. Ribeirão Preto – SP, 2016.

169 p.; 30 cm

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Orientadora: Severi, Fabiana Cristina.

1. Meritocracia. 2. Universidade Pública. 3. Teoria da Constituição.

4. Sociologia Política. 5. Subjetividades.

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LEMES, M. B. O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de

ensino superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma escola

pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações afirmativas,

universidade pública e direito à educação. Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

como parte das exigências para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovado em: _________/____________________/2016.

Banca examinadora

Prof. Dr. ______________________________________Instituição: _______________

Julgamento: ___________________________________Assinatura:________________

Prof. Dr. ______________________________________Instituição: _______________

Julgamento: ___________________________________Assinatura:________________

Prof. Dr. ______________________________________Instituição: _______________

Julgamento: ___________________________________Assinatura:________________

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À minha querida e amada avó, Mariana da Silva Buosi, que deixou essa vida em 2012,

dias antes de me mudar para Ribeirão Preto, dedico esse trabalho.

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AGRADECIMENTOS

De diferentes modos, diversas pessoas e instituições contribuíram decisivamente

com o desenvolvimento da pesquisa que me acompanhou durante toda a trajetória de

graduação e que ora apresento em formato de Trabalho de Conclusão de Curso. Gostaria

de deixar registrados os meus sinceros agradecimentos:

À minha família e especialmente aos meus pais, Leonice e Durval, pelo amor e

apoio incondicionais e por jamais terem medido esforços para possibilitar a minha

permanência em Ribeirão Preto e a concretização do sonho de estudar na Universidade

de São Paulo;

À minha orientadora e amiga, Fabiana Cristina Severi, pela confiança, pelo

estímulo ao pensamento crítico, pela liberdade, seriedade e coerência com que me

conduziu pelos primeiros passos da pesquisa científica;

À professora de História e de Sociologia do tempo de ensino médio e amiga,

Marisa Geralda Barbosa, por ter me incentivado a lutar pelo sonho de ingressar na

universidade pública e pelos constantes debates que, desde a época de escola, me

fizeram apaixonar pelas ciências humanas e sociais;

Aos companheiros e às companheiras do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular

de Ribeirão Preto (NAJURP), grupo de extensão universitária de que participo desde o

primeiro ano de graduação. As longas reuniões gerais e os encontros de formação

propiciaram a construção de sentidos de Direito mais complexos e ricos e

transformaram essa jornada em uma fértil experiência;

Aos amigos e às amigas do Grupo de Estudos em Direitos Humanos,

Democracia e Desigualdades da USP (vulgo Desorientad@s), pelas proveitosas

reuniões em que compartilhamos nossas pesquisas e fortalecemos o debate acerca de

nossos referenciais teóricos e metodológicos;

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Aos estudantes e às estudantes da escola pública em Ribeirão Preto – SP

participantes da presente pesquisa, que se dispuseram a interromper por alguns

momentos as aulas a que assistiam e realizar as entrevistas. Agradeço também aos

professores e aos funcionários da escola que permitiram e colaboraram com a realização

desses encontros;

Aos docentes, às docentes, aos funcionários e às funcionárias que trabalham e

ajudam a construir a Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo (FDRP/USP), pelos ensinamentos, pelo diálogo e pela proximidade das relações

com que formamos uma comunidade mais ampla, que precisa avançar na gestão

democrática do ensino e acreditar na implementação de um Projeto Político Pedagógico

coletivamente construído;

Aos amigos e às amigas da Turma V, pela amizade, pelo apoio, pelo

aprendizado e pelo compartilhamento de experiências, dentro e fora da sala de aula;

Por fim, ao Programa de Educação Tutorial do Ministério da Educação

(PET/MEC), ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Pró

Reitoria de Pesquisa da USP (PIBIC/USP) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado de São Paulo (FAPESP), pelas bolsas de fomento à extensão e à pesquisa

concedidas de 2013 a 2016.

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Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos

de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica,

estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com

a seriedade.

Paulo Freire, 1996.

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RESUMO

LEMES, M. B. O discurso da meritocracia e a democratização das instituições de

ensino superior público no Brasil: percepções de secundaristas de uma escola

pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre vestibular, ações afirmativas,

universidade pública e direito à educação. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso.

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

A presente pesquisa apresenta como problemática fundamental alguns dos processos

sócio-políticos recentes de democratização do Estado e da sociedade brasileira, com

foco na implementação de políticas afirmativas de cotas nas instituições públicas de

educação superior. O objetivo central consiste em analisar as percepções de estudantes

de ensino médio de uma escola pública em Ribeirão Preto acerca das relações entre

vestibular, ações afirmativas, universidade pública e direito à educação, com vistas à

compreensão do modo como essas políticas públicas específicas influenciam a

construção de seus horizontes e trajetórias pessoais de vida. Como objetivos

secundários, buscamos: a) realizar uma revisão bibliográfica sobre Teoria da

Constituição, direito à educação na história constitucional brasileira e os modelos de

Estado e de sociedade correspondentes; b) compreender alguns dos processos sócio-

políticos e jurídicos recentes implicados na promulgação da Constituição Federal de

1988 e no julgamento da ADPF n. 186/2012 pelo STF, a partir de certas tensões e

disputas presentes na conformação do direito à educação na história constitucional

brasileira; c) introduzir algumas categorias/elementos teóricos presentes na sociologia

política que ajudem a pensar as relações e as contradições imbricadas nos discursos

envolvendo democracia, cidadania, efetivação do direito à educação e acesso e

permanência na universidade; e d) aprofundar os estudos acerca das abordagens

qualitativas dos dados em ciências sociais, no intuito de aperfeiçoar a utilização da

metodologia proposta. A pesquisa fundamenta-se teoricamente em reflexões

demarcadas por alguns pensadores e algumas pensadoras da Teoria Constitucional,

especialmente os debates sobre força normativa da Constituição, poder constituinte e

Constituição radical, a fim de problematizarmos os sentidos de democracia, de

cidadania e de universidade histórica e socialmente produzidos no Brasil, haja vista os

atuais desafios em se efetivar o direito à educação e democratizar a universidade.

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Enquanto metodologia de investigação, realizamos uma pesquisa de cunho qualitativo,

com a utilização de entrevistas semiestruturadas e interpretação dos dados coletados

apoiada nas ferramentas da Análise de Conteúdo. Em se tratando das reivindicações

pela democratização do ensino superior público, as lutas do movimento negro

remontam a décadas muito anteriores ao processo constituinte de 1987-1988 e se

mostraram bastante ativas nos anos 1990, em defesa das ações afirmativas de cotas

raciais, ancoradas nos direitos previstos pela Constituição de 1988. Esse movimento

social, ao reivindicar políticas afirmativas de cotas na educação superior, espaço

historicamente reservado às camadas sociais dominantes ditas mais “capazes”,

evidencia não somente os conflitos político-sociais, mas demanda a todo tempo e de

todas as formas, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Assim, esse ator

coletivo reafirma a potência do poder constituinte na concretização do direito

fundamental à educação. A criação do direito é um processo permeado pelas

controvérsias públicas e pelas contradições sociais. Nessa perspectiva, as falas dos(as)

estudantes secundaristas de escola pública, com suas percepções, críticas e

ambiguidades, demonstram o caráter tensional do discurso jurídico, uma vez que

também constroem sentidos de direito à educação. Essas falas potencializam a

interpretação da esfera do constituído (“capacidade”) a partir de uma base social,

vinculada às experiências reais e concretas dos sujeitos desse direito.

Palavras-chave: Meritocracia. Universidade Pública. Teoria da Constituição.

Sociologia Política. Subjetividades.

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ABSTRACT

LEMES, M. B. The discourse of meritocracy and the democratization of public

college education institutions in Brazil: perceptions of a public school in Ribeirão

Preto - SP about the college entrance examination, affirmative action, public

university and the right of education. 2016. Undergraduate thesis. Law School of

Ribeirão Preto of University of São Paulo.

This research presents a fundamental problem some of the recent socio-political

processes of democratization of the Brazilian State and society, focusing on the

implementation of affirmative policies of quotas in public colleges. The main objective

is to examine the perceptions of high school students in a public school in Ribeirão

Preto about the relationship between the college entrance examination, affirmative

action, public university and the right of education, with a view to understanding how

these specific policies affects the construction of their horizons and personal life

trajectories. As secondary objectives, we look to: a) review Constitutional Theory, the

right of education in the constitutional history of Brazil and State corresponding models

of society; b) understand some of the socio-political processes and recent legal involved

in the promulgation of the Constitution of 1988 and the judgment of ADPF n. 186/2012

by the Supreme Court of Brazil (STF) from certain tensions and disputes present in the

formation of the right to education in the Brazilian constitutional history; c) introduce

some categories/theoretical elements in political sociology that help to think about

relationships and contradictions intertwined in the discourses involving democracy,

citizenship, ensuring the right to education and access and permanence in university;

and d) further study about the qualitative approaches to data in the social sciences in

order to improve the use of the proposed methodology. The research is based on

theoretical reflections marked by some thinkers of the Constitutional Theory, especially

the debates on normative force of the Constitution, constituent power and radical

Constitution, in order to problematize the meanings of democracy, citizenship and

university historic and socially produced in Brazil, given the current challenges to

effective the right of education and democratize the university. While research

methodology, we conduct a qualitative research, using semi-structured interviews and

interpretation of information collected supported in the content analysis tools. In the

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case of claims for the democratization of public college education, the struggles of the

black movement dates back to much earlier decades of the constituent process of 1987-

1988 and proved itself very active in the 1990s in defense of affirmative action to racial

quotas, anchored in rights provided for by the 1988 Constitution. This social movement,

while claiming affirmative policies quotas in the college education, space historically

reserved for dominant social layers so-called more "capable", shows not only the

political and social conflicts, but demands all the time and in every way, the

construction of a more just and egalitarian society. Thus, this collective actor reaffirms

the power of the constituent power in the realization of the fundamental right of

education. The creation of the law is a process permeated by public controversies and

the social contradictions. In this perspective, the lines of students from public schools,

with their perceptions, criticisms and ambiguities, demonstrate the tensional character of

the legal discourse, as they also build right way to education. These statements

potentiate the interpretation of the formed sphere ("capacity") from a social base, linked

to real and concrete experiences of the subjects of this right.

Keywords: Meritocracy. Public University. Constitutional Theory. Sociological Policy.

Subjectivities.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Cotas previstas na Lei n. 12.711/2012 ....................................................... 130

Figura 2 - Proporção total de vagas reservadas para cotas em geral; escola pública e

baixa renda e pretos, pardos e indígenas (em %) ......................................................... 132

Figura 3 - Distribuição percentual dos estudantes da rede pública e particular no ensino

superior, por quintos de rendimento mensal familiar per capita – Brasil – 2004 ........ 133

Figura 4 - Distribuição percentual dos estudantes da rede pública e particular no ensino

superior, por quintos de rendimento mensal familiar per capita – Brasil – 2013 ........ 134

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça

e faixa de anos de estudo concluídos, em 2001. ............................................................. 87

Tabela 2 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça

e faixa de anos de estudo concluídos, em 2012. ............................................................. 87

Tabela 3 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça

e faixa de anos de estudo concluídos, em 2013. ............................................................. 87

Tabela 4 - Cobertura e escolarização líquida, segundo cor ou raça, em 2001 (em %) .. 88

Tabela 5 - Cobertura e escolarização líquida, segundo cor ou raça, em 2012 (em %) .. 88

Tabela 6 - Cobertura e escolarização líquida, segundo cor ou raça, em 2013 (em %) .. 88

Tabela 7 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de

escolaridade, em 2001 (em %) ....................................................................................... 89

Tabela 8 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de

escolaridade, em 2012 (em %) ....................................................................................... 90

Tabela 9 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de

escolaridade, em 2013 (em %) ....................................................................................... 90

Tabela 10 - Vagas ofertadas e sua distribuição entre ampla concorrência e cotas:

comparativo 2012-2013 ................................................................................................ 131

Tabela 11 - Vagas ofertadas e sua distribuição entre ampla concorrência e cotas:

comparativo 2013-2014 ................................................................................................ 131

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................ 18

2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-POLÍTICA: AS

REIVINDICAÇÕES DO MOVIMENTO SOCIAL NEGRO PELA

DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA

BRASILEIRA ..................................................................................................... 26

3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA: FORÇA

NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO, PODER CONSTITUINTE E

CONSTITUIÇÃO RADICAL ........................................................................... 39

3.1. O Direito à Educação na história constitucional brasileira .............. 51

3.1.1. A Constituição de 1824 .................................................................. 53

3.1.2. A Constituição de 1891 .................................................................. 56

3.1.3. A Constituição de 1934 .................................................................. 58

3.1.4. A Constituição de 1937 .................................................................. 64

3.1.5. A Constituição de 1946 .................................................................. 66

3.1.6. A Constituição de 1967 .................................................................. 68

3.1.7. A Constituição de 1988 .................................................................. 73

4. A PERSISTÊNCIA DE DESIGUALDADES RELACIONADAS À

EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE

BRASILEIRA: O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO

INSTITUCIONAL .............................................................................................. 79

5. BASES METODOLÓGICAS DA PESQUISA: PROCEDIMENTOS DE

COLETA E DE ANÁLISE DOS DADOS ........................................................ 92

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6. O PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987-1988: A AÇÃO POLÍTICA

DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E AS DISPUTAS PELO ACESSO À

EDUCAÇÃO SUPERIOR ................................................................................. 99

6.1. Movimentos sociais e Poder Judiciário: o julgamento da ADPF n.

186 pelo Supremo Tribunal Federal ............................................................ 125

6.2. Dados sobre cotas nas universidades públicas brasileiras e alguns

impactos ......................................................................................................... 129

7. VESTIBULAR, AÇÕES AFIRMATIVAS, UNIVERSIDADE PÚBLICA

E DIREITO À EDUCAÇÃO: PERCEPÇÕES GERAIS DE

SECUNDARISTAS ESTUDANTES DE ESCOLA PÚBLICA EM

RIBEIRÃO PRETO - SP ................................................................................. 137

7.1. Vestibular ............................................................................................. 137

7.2. Ações afirmativas ................................................................................ 141

7.3. Universidade pública .......................................................................... 144

7.4. Direito à educação ............................................................................... 146

8. CONCLUSÃO ............................................................................................ 152

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 155

ANEXOS............................................................................................................ 165

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18

1 INTRODUÇÃO

Após concluir o ensino médio em Araçatuba – SP no ano de 2009, algumas

tentativas de aprovação em exames vestibulares foram frustradas. Com o sonho de

ingressar em uma universidade pública, frequentei durante dois anos um curso particular

preparatório para o vestibular (cursinho), graças a um desconto de 50% na mensalidade

obtido através de um concurso de bolsas. Nesse período, as instituições públicas de

educação superior e, especialmente a USP, apresentavam-se a mim como lugares de

excelência acadêmica, extremamente concorridos, cujo acesso estaria reservado aos

estudantes mais inteligentes e capacitados. Assim, na escola e no cursinho, na maioria

das vezes, o debate sobre cotas representava uma afronta à lógica da meritocracia.

Depois de dois longos anos de cursinho (2010 e 2011), com alguma persistência

e adquirindo uma série de capitais que seriam extremamente úteis à minha aprovação,

ingressei no curso de graduação em Direito na USP em 2012. Embora vivendo em uma

situação social de extremo privilégio, na condição de homem, branco e de classe média,

o discurso do mérito e do esforço individuais enquanto critérios para a entrada nas

universidades públicas causava-me desconforto e, aos poucos, demonstrava as suas

fragilidades. Se, em alguma medida, o ingresso no ensino superior público representou

relativas dificuldades para mim, sujeito inserido numa posição de privilégio na

dinâmica das relações sociais, esse acesso era negado de forma violenta e sistemática a

sujeitos negros e pobres, pertencentes a camadas sociais carentes de efetivação de

direitos.

O interesse pela temática de democratização do acesso às instituições públicas

de educação superior e políticas afirmativas foi fortalecido durante o primeiro ano de

graduação, por meio dos debates promovidos no âmbito das disciplinas de Teoria Geral

do Estado e Direito Constitucional I, ministradas pela orientadora dessa pesquisa. Com

o propósito de aprofundar o estudo desse tema, realizei uma pesquisa teórica em que

busquei compreender algumas das recentes transformações político-jurídicas do Estado

brasileiro que possibilitaram a emergência das políticas de cotas nas universidades

públicas, a partir de categorias de análise de dois teóricos críticos do Estado moderno de

base marxista – Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas. Nesse estudo, pude perceber que

o sujeito político protagonista das reivindicações por ações afirmativas na educação é o

movimento social negro, que demanda cotas com recorte étnico-racial como forma de

resistência a um racismo estruturante, reproduzido pelas instituições.

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Nos últimos anos, especialmente pós-estabilidade econômica, o Brasil viveu um

conjunto de transformações que têm contribuído para o processo de relativa diminuição

das desigualdades sociais. Ocorreram mudanças tanto de caráter estrutural (estabilidade

e crescimento econômico e seus efeitos no mercado de trabalho) quanto demográfico

(queda da fecundidade e alterações no padrão da população em idade ativa). Contudo,

existem também modificações oriundas da implantação de políticas sociais

extremamente importantes para a redução do número de pessoas em situação de pobreza

e diminuição das desigualdades de oportunidades educacionais. No que se refere à

desigualdade racial, são especialmente relevantes as políticas de ação afirmativa para o

ensino superior (LIMA, PRATES, 2015).

Arretche (2015) sustenta que o termo “desigualdade” é excessivamente abstrato

e não apreende diversos fenômenos específicos e articulados. No mundo social, existem

múltiplas desigualdades: entre pobres e ricos, entre mulheres e homens, entre categorias

de raças, que se manifestam na renda, no acesso a serviços, na participação política etc.

Assim, a centralidade da renda nos estudos comparados sobre desigualdade está

associada à disponibilidade de dados e não ao fato de que esta seja sua única dimensão

relevante. O fenômeno da desigualdade é muito mais complexo do que apenas a sua

dimensão monetária, abarcando diferentes determinações.

Hirata (2014), citando Bilge (2009)1, explica que a interseccionalidade remete a

uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das

desigualdades sociais por meio de um enfoque integrado. Essa abordagem refuta o

enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social, que são

as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação

sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade

dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na

produção e na reprodução das desigualdades sociais.

A interseccionalidade ou consubstancialidade parte do pressuposto central de

que as relações de poder de raça, de gênero e de classe são interdependentes e

imbricadas nas relações sociais, e leva em consideração as várias fontes de identidade e

de diferença que interagem de modo dinâmico na criação e na reprodução das

desigualdades sociais (HIRATA, 2014).

1 BILGE, Sirma. (2009), “Théorisations féministes de I’intersectionnalité”. Diogène, 1 (225): 70-88.

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Lima e Prates (2015) citam pesquisas que, focando nos processos de transição

educacional e de mobilidade social e utilizando modelos analíticos distintos, são

unânimes em apontar que as dificuldades educacionais segundo a classe se sobrepõem

às barreiras raciais. Entretanto, o efeito da raça ganha maior evidência nas chances de

mobilidade social, na probabilidade de perder posição social, bem como há maior

desigualdade racial entre os mais escolarizados e em posições ocupacionais de maior

status. Em se tratando dos efeitos de raça e de classe de origem nas chances de realizar

transições educacionais, enquanto a desigualdade de classe diminui ao longo das

transições, a desigualdade racial aumenta na transição aos níveis mais elevados,

especialmente na chance de completar ou não o primeiro ano de universidade e concluir

o ensino superior.

Nossa pesquisa pretende investigar alguns dos processos sócio-políticos recentes

de democratização do Estado e da sociedade brasileira, com foco na implementação de

políticas afirmativas de cotas nas instituições públicas de educação superior. O objetivo

central consiste em analisar as percepções de estudantes de ensino médio de uma escola

pública estadual em Ribeirão Preto - SP acerca das relações entre vestibular, ações

afirmativas, universidade pública e direito à educação, com vistas à compreensão do

modo como essas políticas públicas específicas influenciam a construção de seus

horizontes e trajetórias pessoais de vida.

Essa pesquisa de campo busca compreender o modo como as discussões e os

discursos sobre políticas afirmativas de cotas e a democratização do ensino superior

público permeiam o ideário de adolescentes e jovens que cursam o terceiro ano do

ensino médio e estão, portanto, na fase escolar propícia para prestar o exame vestibular.

De forma diversa de pesquisas2 que analisaram as percepções dos próprios discentes

cotistas sobre a sua inserção na universidade, o presente estudo esforça-se em investigar

as concepções acerca das políticas de cotas entre estudantes de ensino médio de uma

escola pública estadual, visto que estão entre os principais destinatários dessa

modalidade de ação afirmativa. À luz das reflexões presentes na sociologia política

referentes ao desenvolvimento da democracia e da cidadania no Brasil, procuramos

compreender criticamente o modo como esse debate está presente no imaginário dos

estudantes e em que medida tais políticas públicas afetam a construção de seus

horizontes e trajetórias pessoais de vida.

2 PENHA-LOPES, Vânia. Pioneiros: Cotistas na Universidade Brasileira. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.

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21

Como objetivos secundários, buscamos: a) realizar uma revisão bibliográfica

sobre Teoria da Constituição, direito à educação na história constitucional brasileira e os

modelos de Estado e de sociedade correspondentes; b) compreender alguns dos

processos sócio-políticos e jurídicos recentes implicados na promulgação da

Constituição Federal de 1988 e no julgamento da ADPF n. 186/2012 pelo STF, a partir

de certas tensões e disputas presentes na conformação do direito à educação na história

constitucional brasileira; c) introduzir algumas categorias/elementos teóricos presentes

na sociologia política que ajudem a pensar as relações e as contradições imbricadas nos

discursos envolvendo democracia, cidadania, efetivação do direito à educação e acesso

e permanência na universidade; e d) aprofundar os estudos acerca das abordagens

qualitativas dos dados em ciências sociais, no intuito de aperfeiçoar a utilização da

metodologia proposta.

Tentamos delimitar nosso marco teórico a partir de algumas categorias de

análise presentes na Teoria Constitucional, especialmente a articulação entre força

normativa da Constituição, poder constituinte e Constituição radical. Nesse sentido,

procuramos destacar certas tensões e disputas envolvidas na conformação do direito à

educação na história constitucional brasileira.

Nas décadas de 1980 e de 1990, ganham destaque a ação política do movimento

social negro na esfera pública e os esforços de denúncia do racismo ainda vigente, em

que preconceitos, discriminações e desigualdades étnico-raciais interagem nas práticas

e nas relações sociais. Esse ator coletivo reivindica do Estado a formulação e a

implementação de políticas públicas específicas para a população negra, dentre as quais

podemos citar as ações afirmativas no ensino superior.

As ações afirmativas são políticas públicas focais, específicas, que alocam

recursos em benefício de sujeitos pertencentes a grupos sociais historicamente

discriminados pelas desigualdades do passado, que se reproduzem no presente. Trata-se

de medidas que objetivam combater discriminações étnico-raciais, religiosas, de gênero,

de classe, de casta etc, aumentando a participação desses grupos nos processos políticos,

no acesso à educação, à saúde, ao emprego, aos bens materiais, às redes de proteção

social e ao reconhecimento cultural (FERES JÚNIOR, DAFLON, 2014).

Tais políticas inserem-se num conjunto expressivo e articulado de medidas que

têm dado um novo perfil às lutas do movimento negro e de outros setores sociais contra

as desigualdades raciais no Brasil. Enquanto as políticas antidiscriminatórias são

instrumentos punitivos ou de caráter educativo, que visam gerar mudanças de

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comportamentos e de mentalidades, as políticas de combate às desigualdades raciais,

dentre as quais se situam as ações afirmativas, são desenhadas institucionalmente na

perspectiva de promoção da igualdade em situações concretas (HERINGER, 2001).

Piovesan (2005) identifica algumas perspectivas e desafios para a

implementação da igualdade étnico-racial na ordem contemporânea. Segundo a autora,

o propósito de concretização do projeto democrático será fortalecido com o

desenvolvimento de estratégias repressivas e promocionais. Os Estados, além de

assumir o dever de adotar medidas que proíbam e punam a discriminação racial,

deverão elaborar políticas especiais, temporárias e compensatórias, que contribuam para

a reparação de desvantagens históricas herdadas de um passado de aviltamento de

determinados grupos sociais. A busca por uma igualdade efetiva depende não somente

da proibição da discriminação por meio de uma legislação repressiva, mas também de

providências promocionais capazes de estimular a inserção de categorias socialmente

vulneráveis nos espaços de poder.

A Constituição Federal de 1988, principal marco político-jurídico que orienta a

elaboração e a concretização de todo o ordenamento jurídico brasileiro, institui o Estado

Social e Democrático de Direito enquanto horizonte sócio-político em permanente

conflito. Rodriguez (2013) argumenta que essa Carta legislou sobre uma série de

diferenças sociais em razão da pressão intensa da sociedade civil organizada sobre a

Assembleia Nacional Constituinte, o que resultou em um texto extenso, resultado de

ampla participação social. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a

erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a

promoção do bem de todos e de todas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação, são alguns dos objetivos

fundamentais da República brasileira.

Os valores de igualdade material e de justiça social ganharam destaque ao longo

do documento, dando fundamentação constitucional às diferentes possibilidades de

políticas de ação afirmativa nas instituições sociais. Ao mesmo tempo, ao tratar do

dever do Estado com a garantia da educação superior, a Constituição consagrou o

chamado princípio meritocrático, condicionando o acesso aos níveis mais elevados do

ensino, da pesquisa e da criação artística às capacidades de cada indivíduo (BRASIL,

1988).

Nessa perspectiva, lançamos luz sobre o processo constituinte que resultou na

Constituição de 1988, através da análise das atas das audiências públicas de duas

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Subcomissões temáticas específicas que compuseram a Assembleia Nacional

Constituinte: no contexto da Comissão da Ordem Social, a Subcomissão dos Negros,

Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias e, no âmbito da Comissão da

Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, a

Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes (COELHO, 2009).

Assim, pretendemos investigar a ação dos movimentos sociais, com foco no

movimento negro, e de outros atores sociais nesse processo, a fim de compreender quais

concepções sobre “capacidade”, enquanto critério ambíguo para acesso às universidades

públicas, tornaram-se hegemônicas. As atas das audiências públicas dessas

Subcomissões, com o registro dos discursos dos diversos atores sociais envolvidos, são

campo fértil para a interpretação das disputas político-ideológicas em torno da questão

do dever do Estado brasileiro com a garantia de acesso à educação superior.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186, declarou, por unanimidade

dos votos de seus ministros, a constitucionalidade3 das políticas afirmativas de cotas

raciais nas universidades públicas. Esse julgamento impulsionou, no mesmo ano, a

promulgação da Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, a chamada Lei de Cotas, que

prevê a reserva de vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino

médio em escolas públicas, com subcotas para candidatos oriundos de famílias com

renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e candidatos

autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, em proporção igual à sua distribuição nas

unidades da Federação onde estão localizadas as instituições federais de ensino superior,

de acordo com o último censo do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

(SANTOS, 2013).

Entendemos que a declaração de constitucionalidade das ações afirmativas de

corte étnico-racial para ingresso no ensino superior demonstra o caráter dinâmico,

conflituoso e político da interpretação das normas constitucionais, em que, a cada

momento histórico, os diversos atores sociais disputam os sentidos do Direito e da

Constituição.

O presente trabalho está estruturado em seis capítulos, além da introdução e da

conclusão. No capítulo 2, buscamos contextualizar, do ponto de vista histórico e

3 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042>. Acesso

em 06 de dez. de 2015.

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político, o processo de ação coletiva do movimento social negro em torno das demandas

por ações afirmativas no ensino superior.

No capítulo 3, tentamos demarcar o nosso referencial teórico em torno das

reflexões em Teoria Constitucional, especialmente a articulação entre força normativa

da Constituição, poder constituinte e Constituição radical. À luz desse debate,

percorremos brevemente alguns aspectos do direito à educação nas Cartas Políticas

brasileiras, resgatando elementos normativos que consideramos importantes para a

nossa discussão.

No capítulo 4, procuramos introduzir uma crítica ao mito da democracia racial e

ao racismo institucional enquanto mecanismos limitadores da construção de uma

República efetivamente democrática e cidadã. Entendemos o racismo como um sistema

de dominação colonial, coexistente, funcional, mas independente da economia

capitalista (GUIMARÃES, 2015). Nessa perspectiva, apresentamos alguns dados

colhidos de relatório de pesquisa publicado em 2014 pelo Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA) que ajudam a demonstrar que as assimetrias entre brancos

e negros na efetivação do direito à educação são construídas e reproduzidas no decorrer

da trajetória de vida dos indivíduos.

No capítulo 5, trouxemos sucintamente as nossas fontes de dados e os

procedimentos de coleta, de organização e de análise dos dados obtidos.

No capítulo 6, retomamos o processo constituinte de 1987/1988, com alguns

trechos significativos dos debates ocorridos no âmbito das audiências públicas

promovidas por Subcomissões temáticas que compuseram a Assembleia Nacional

Constituinte. Nesse horizonte, é relevante olharmos para o julgamento histórico da

ADPF n. 186/2012 pelo STF, que declarou a constitucionalidade das ações afirmativas

com recorte étnico-racial na educação superior. Ainda, expomos alguns dados colhidos

de pesquisas feitas pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa,

vinculado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro (GEMAA – IESP/UERJ), publicadas em 2013 e 2014, e pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2014, relacionados à implementação

das ações afirmativas nas instituições de educação superior, na tentativa de explorarmos

certos impactos dessas políticas sociais nos processos recentes de democratização do

ensino superior público brasileiro.

Por fim, no capítulo 7, destacamos algumas falas significativas coletadas através

das entrevistas realizadas junto a estudantes de ensino médio público em Ribeirão Preto

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– SP. Essas falas foram organizadas em categorias de análise, de modo que delas

pudéssemos extrair sentidos e ambiguidades que nos aproximassem de nossos

referenciais teóricos e de nosso eixo central de investigação.

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2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-POLÍTICA: AS REIVINDICAÇÕES

DO MOVIMENTO SOCIAL NEGRO PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA

EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA BRASILEIRA

De um modo geral, é possível compreender os movimentos sociais como “ações

sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam formas distintas de a

população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2011, p. 335). Referem-se,

portanto, à ação dos homens na história que envolve um fazer e um pensar, constituindo

a práxis (SEVERI, 2010). Representam forças sociais organizadas, mobilizando os

indivíduos num campo de atividades e de experimentação social e gerando criatividade

e inovações socioculturais, além de expressar energias de resistência a estruturas

opressoras ou de construção de um horizonte libertador (GOHN, 2011).

Desse modo, os esforços para compreender criticamente a prática dos

movimentos sociais em contextos específicos são campo fértil para as ciências sociais,

visto que

Os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem

propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como

resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e

desenvolvem o chamado empowerment de atores da sociedade civil

organizada à medida que criam sujeitos sociais para essa atuação em rede.

Tanto os movimentos sociais dos anos 1980 como os atuais têm construído

representações simbólicas afirmativas por meio de discursos e práticas. (...)

Ao realizar essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de

pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a se sentir

incluídos em algum tipo de ação de um grupo ativo (GOHN, 2011, p. 336).

Definições já clássicas de movimentos sociais situam algumas de suas

características básicas, dentre elas: possuem identidade e oposição e fundamentam-se

em um projeto de vida e de sociedade; têm contribuído para organizar e conscientizar a

sociedade; apresentam conjuntos de demandas via práticas de pressão/mobilização e

certa continuidade e permanência. Não são movidos apenas pelas necessidades (por

exemplo, a fome ou qualquer outra forma de opressão), mas podem surgir e

desenvolver-se também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência. Hoje,

trazem como reivindicação a construção de uma sociedade justa, solidária, soberana e

democrática e o reconhecimento da diversidade cultural, além de tematizarem e

redefinirem a esfera pública (GOHN, 2011).

Os movimentos sociais são a expressão de conflitos sociais e não simples

respostas a uma crise ou uma patologia do sistema social, como tentam definir os

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setores conservadores e dominantes. Ao contrário, o conflito pressupõe a luta entre dois

ou mais atores que disputam a apropriação de recursos. Os adversários se opõem porque

definem, de forma antagônica, os objetivos, as condições e os meios de produção da

vida social. Assim, tais demandas coletivas implicam a ruptura dos limites estruturais de

compatibilidade do sistema dentro do qual a ação se concretiza. Portanto, um

movimento social não se restringe a manifestar um conflito, mas procura ir além dos

limites das relações sociais da conjuntura em que se insere: romper as regras do jogo,

propor objetivos não negociáveis, colocar em questão a legitimidade do poder etc

(MELUCCI, 2001).

No Brasil e em outros países da América Latina, no fim da década de 1970 e

parte dos anos 1980, ficaram conhecidos os movimentos sociais populares articulados

por grupos de oposição às ditaduras militares, especialmente pelos movimentos de base

cristãos, sob a inspiração da teologia da libertação. Tais movimentos desempenharam

importante papel no processo de redemocratização e contribuíram decisivamente, via

demandas e pressões organizadas, para a conquista de diversos direitos sociais,

positivados na Constituição Federal de 1988 (GOHN, 2011).

Na atualidade, a fim de delinear um quadro referencial mais amplo relativo ao

campo sociopolítico e econômico no qual ocorrem tais movimentos, é possível apontar

algumas características: surgimento de movimentos que ultrapassam as fronteiras da

nação (transnacionais) e aqueles com demandas seculares, como a terra para produzir

(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST) ou para viver seu modo de

vida (indígenas); movimentos identitários, reivindicatórios de direitos culturais que

lutam pelas diferenças étnicas, culturais, religiosas, de nacionalidades etc e a atuação

em redes, com maior consciência da questão ambiental. Os eixos temáticos das lutas e

demandas são diversos, envolvendo principalmente: a questão urbana, pela inclusão

social e por condições de habitabilidade nas cidades; mobilização e organização popular

em torno de estruturas institucionais de participação na gestão política-administrativa da

cidade; as questões de saúde, de direitos culturais e religiosos, de encarceramento, de

desemprego, de acesso à terra para produzir; movimentos contra as políticas neoliberais4

(reformas do Estado e os ataques aos direitos trabalhistas, precarização das políticas

4 Junto com o Movimento dos Sem-Terra, ainda que de modo menos dramático e menos conflituoso, o

movimento dos negros brasileiros contra as desigualdades raciais é, sem dúvida, uma importante forma de

mobilização social no Brasil de hoje, que se tornou mais relevante na medida em que os conflitos urbanos

de classe, como os protagonizados pelos sindicatos operários, tenderam a se eclipsar na esteira das

reformas neoliberais e do realinhamento internacional da economia brasileira (GUIMARÃES, 2003).

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sociais e privatizações); fóruns de mobilização da sociedade civil organizada;

movimentos das cooperativas populares e do setor de comunicações pela

democratização da mídia e mobilizações do movimento nacional de atingidos pelas

barragens, hidrelétricas, implantação de áreas de fronteiras de exploração mineral ou

vegetal etc (GOHN, 2011).

Embora, no Brasil, a Abolição da Escravidão no fim do século XIX tenha

formalmente transformado a todos e todas em cidadãos e cidadãs do Estado brasileiro, a

existência de mobilizações dos negros e negras em busca da ampliação de sua

cidadania, através dos diferentes períodos históricos, revela a persistência do caráter

excludente e discriminatório dessa sociedade. No Brasil, assim como em outras partes

do continente americano, o processo de abolição da escravidão propiciou uma onda de

reflexão erudita, pseudocientífica, em torno do conceito de raça, cujo resultado consistiu

em criar justificativas para a perpetuação das desigualdades sociais entre europeus e não

europeus. Os primeiros reivindicavam para si a igualdade cidadã e os direitos políticos,

enquanto aos segundos ficavam reservadas as posições sociais subalternas. As

sociedades modernas americanas elegeram o racismo como justificativa naturalizante

para a hierarquia social que permaneceria nas repúblicas liberais (GUIMARÃES, 2012).

A Primeira República (1889-1930) representou bem uma época em que

competiam duas lógicas de cidadania: de um lado, a onda civilizadora republicana,

limitada às classes altas e remediadas, que, do ponto de vista cultural, significava a

europeização do Brasil e a consequente negação da herança africana. A jovem

República brasileira adotou o discurso do racismo pseudocientífico e do

embranquecimento gradual de toda a sua população, promovendo a imigração europeia

e aceitando a mestiçagem como algo necessário e virtuoso. Todavia, a crença no

embranquecimento era apenas uma das possibilidades abertas pela matriz ideológica de

longa duração que conformou o nascimento da nação brasileira, e que pregava a

superioridade da raça branca e da civilização europeia, limitando os avanços da

cidadania no Brasil (GUIMARÃES, 2012).

Guimarães (2012) situa em 1909, no Rio de Janeiro, o primeiro exemplo de

movimentação negra mais organizada, feita dentro do sistema político, através da

campanha pela posse de Monteiro Lopes como deputado estadual, que tinha sido eleito

e não reconhecido pela Câmara. Tal campanha mostrou os dois itens centrais da agenda

política negra das décadas seguintes: o protesto contra o preconceito de cor e a luta pela

inclusão social da população negra. Surgiu também nessa época, por volta de 1910,

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principalmente em São Paulo e em Campinas, uma imprensa alternativa negra, à

maneira dos jornais étnicos dos imigrantes europeus recém-chegados. Essa imprensa

cumpria algumas funções sociais, dentre elas: de reconhecimento da classe média negra

remediada; de dignificação social dos grandes homens negros brasileiros; e de protesto

contra o preconceito de cor. Tinha o objetivo de exercer liderança sobre as massas

negras, organizando a solidariedade da comunidade negra em torno de ações educativas.

Na medida em que se fortalecia a crítica política da democracia liberal, associada

à República oligárquica5 instaurada no Brasil, a imprensa alternativa negra

arregimentava a raça negra, ressuscitando as velhas categorias raciais. A República

oligárquica foi acusada de ter impedido o processo mais radical e alargado de abolição

da escravidão, e de ter deixado o povo negro em condições de vida degradantes e

precárias, sem acesso aos direitos fundamentais de cidadania. O núcleo dessa

mobilização negra dos anos 1920 caminharia para a formação da Frente Negra

Brasileira (1931-1937). Uma segunda abolição, portanto, ainda seria necessária

(GUIMARÃES, 2012).

As ideias em torno do mito da democracia racial enquanto forma de sociabilidade

autenticamente brasileira ganharam força no imaginário nacional a partir da década de

1930, tornando-se hegemônicas entre os agrupamentos políticos e ideológicos num

contexto de golpe de Estado em 1930 e de sua complementação em Estado Novo em

1937, sob a liderança de Getúlio Vargas. A construção do imaginário de uma nação

mestiça, que incluiria a totalidade dos indivíduos livres, foi intensificada pelo

movimento abolicionista, e se aprofundou durante o período republicano. Segundo esse

pensamento, a liberdade, conquistada pela abolição da escravidão, transmuta-se

imediatamente em igualdade e em cidadania, na ausência de preconceito e de

discriminação racial. As desigualdades sociais remanescentes passam a se ancorar na

ordem econômica e cultural das classes sociais (GUIMARÃES, 2012).

As mobilizações político-partidárias de cunho racial formadas até então se

enfraqueceram com a instauração de um Estado autoritário e nacionalista, amplamente

regulador das relações econômico-sociais, que objetivava estabelecer uma suposta

conciliação entre capital e trabalho, industrializar o país, desarmar os sertões e forjar

uma identidade nacional homogênea. Contudo, a desmoralização da política racial,

5 Gonçalves e Silva (2000) argumentam que a passagem da Monarquia para a República na história

brasileira conservou as antigas oligarquias nos governos republicanos.

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provocada pelos crimes dos regimes fascistas, e a imposição da ideologia da democracia

racial enquanto sociabilidade genuinamente brasileira, não significaram o fim da

mobilização racial negra no Brasil (GUIMARÃES, 2012). .

É importante destacar, no entanto, que na Segunda República brasileira (1930-

1985), os conflitos de classe e o anti-imperialismo fizeram das organizações estudantis e

sindicais urbanas e rurais entidades quase monopolizadoras da luta social, e o debate em

torno do desenvolvimento social atraiu os intelectuais com maior destaque do período.

É como se a questão racial no Brasil estivesse definitivamente resolvida. Na agenda

política de esquerda, a luta pela segunda abolição foi subsumida pela luta pelo

socialismo. Do ponto de vista dos negros, qualquer avanço em termos de direitos

políticos ou sociais se fez apenas nas lutas de classes, sendo explícita a renúncia às suas

singularidades étnico-culturais (GUIMARÃES, 2012).

A resistência à Ditadura civil-militar brasileira, inaugurada pelo golpe de 1964,

fortaleceu os debates sobre a política étnico-cultural e a democracia, radicalizando e

aprimorando o pensamento sobre a efetividade da cidadania e dos direitos civis,

políticos e sociais nas democracias modernas. A crítica ao autoritarismo de Estado

acabou também por iluminar questionamentos acerca das hierarquias sobre as quais se

reproduz o poder estruturante das relações sociais brasileiras: as hierarquias de classe,

de raça, de gênero, dentre outras. A política internacional do regime militar de

aproximação com a África também possibilitou a busca, por grupos culturais negros, de

suas raízes e de seus próprios mitos. A partir daí, o consenso dominante em torno da

democracia racial passou a ser denunciado nos meios negros como farsa

(GUIMARÃES, 2012).

A partir dos anos 19706, o movimento social negro reorganizou-se como

Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial e, a partir da Nova

República, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, renegou

completamente os ideais autoritários7 de democracia racial e adotou, em contrapartida,

6 Moehlecke (2002) cita o projeto de lei n. 1.332, de 1983, do então deputado federal Abdias Nascimento,

em que propõe uma série de ações compensatórias que estabeleceriam mecanismos de compensação para

o afro-brasileiro após séculos de discriminação. Dentre essas ações, podemos citar: reserva de 20% de

vagas para mulheres negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público;

bolsas de estudos; incentivos às empresas do setor privado para a eliminação de práticas de discriminação

racial; incorporação da imagem positiva da família afro-brasileira ao sistema de ensino e à literatura

didática e paradidática, bem como a introdução da história das civilizações africanas e do africano no

Brasil. O projeto não foi aprovado no Congresso Nacional, mas as reivindicações continuaram.

7 O autoritarismo da ideologia da democracia racial consiste em se mover apenas sobre valores e atitudes

que devem ser necessariamente comunitários, fechando-se completamente a qualquer realidade estatística

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uma agenda radical de luta e de defesa dos direitos civis, políticos e sociais da

população negra. O processo de redemocratização, depois de 20 anos de governos

militares (1964-1984), significou, dentre outros aspectos, a incorporação definitiva de

uma agenda negra na política brasileira, ou seja, um rol de demandas de organizações e

de movimentos sociais negros que se reestruturaram a partir dos anos 1970 em sintonia

com a grande frente política que lutou pelo restabelecimento do Estado de Direito e do

pleno respeito às liberdades civis e aos direitos humanos. Essa agenda acompanhou o

amadurecimento democrático do país desde a promulgação da Carta Constitucional de

1988 os nossos dias (GUIMARÃES, 2012 e 2013).

A precariedade da efetivação dos direitos dos cidadãos negros é denunciada,

através da criação de múltiplas Organizações Não Governamentais (ONG’s) voltadas

para a advocacia de direitos individuais e da formação de organizações populares que

passaram a agir em torno de atividades de cultura, educação, emprego e saúde. Essa é a

fase que tem como pressuposto a ruptura radical com a ideologia da democracia racial e

a afirmação da igualdade racial. Nesse sentido, esse movimento conduziu às demandas

por ações afirmativas nas áreas de emprego, educação8 e saúde. A simples igualdade

formal, inscrita na ordem político-jurídica anterior, era insatisfatória, e o movimento

negro passou a ter como meta o desmantelamento das desigualdades étnico-raciais,

através de demandas por reconhecimento de sua particularidade cultural e por políticas

públicas de discriminação positiva que estabelecessem maior paridade de oportunidades

entre brancos e negros (GUIMARÃES, 2012).

A existência de um movimento transnacional em direção à formulação e

implementação de políticas identitárias e multiculturais9, a construção de uma agenda de

reivindicações pelo Movimento Negro desde a década de 1980, a promulgação da

ou de desigualdade estrutural de poder que requeira a proteção de indivíduos pertencentes a grupos

sociais específicos (GUIMARÃES, 2015).

8 Entre 2002 e 2011, cerca de 70% das universidades estaduais ou federais adotaram algum mecanismo de

ação afirmativa para a seleção de estudantes, enquanto no setor privado o governo federal instituiu o

Programa Universidade para Todos (ProUni), um amplo programa de bolsas de estudos para estudantes

negros e carentes, e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) (GUIMARÃES, 2012).

9 Gonçalves e Silva (2000) apontam que as organizações criadas por negros e negras ao longo da história

brasileira desempenham várias funções, dentre elas, a de funcionar como clubes recreativos e associações

culturais (grupos que preservam valores afro-brasileiros), ou como entidades de cunho político, ou, mais

recentemente, como formas de mobilização de jovens em torno de movimentos artísticos com forte

conteúdo étnico (hip-hop, blocos afros, funk e outros). Em muitos casos, essas organizações se

configuram como instâncias educativas, na medida em que os sujeitos que delas participam as

transformam em espaços de educação política.

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Constituição Federal de 1988 e a maior permeabilidade institucional do Estado

brasileiro às demandas desse movimento social contribuíram fortemente para a

introdução de políticas afirmativas direcionadas à população negra no Brasil (FERES

JÚNIOR, DAFLON, 2014).

Rodriguez (2013) destaca a pressão dos movimentos sociais, ao longo de todo o

século XX, que resultou na criação de cada vez mais distinções reguladas por lei com a

finalidade de conferir direitos especiais aos pobres, às crianças, aos doentes, aos idosos,

aos inválidos, aos deficientes, aos empregados e às empregadas, aos funcionários e às

funcionárias públicos, aos trabalhadores e às trabalhadoras do campo e, mais

recentemente, às mulheres em geral, aos indígenas, aos negros, às travestis, às transex,

aos transgêneros e a tantos outros grupos sociais que se organizaram para lutar por

melhores condições de existência. Nesse sentido, Silvério (2002, p. 229) argumenta:

O fato é que durante todo o século XX os ex-escravos, ex-colonos e as

mulheres em vários países ocidentais travaram e continuam travando

verdadeiras batalhas pela inclusão e pelo tratamento igualitário em todas as

esferas da vida social, ao mesmo tempo em que repudiaram e repudiam todas

as formas de discriminação com base nas diferenças naturais e exigem o

reconhecimento de suas particularidades, uma vez que estas foram e são

construídas socialmente como desigualdades. Após a Segunda Grande Guerra

Mundial, às lutas dos trabalhadores por melhores salários e condições de vida

somaram-se as lutas das mulheres, dos negros, de grupos étnicos, que

passaram a exigir uma ação do Estado para assegurar a igualdade de

oportunidades no mercado de trabalho e na educação.

Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), houve o

reconhecimento público de que o país era racista, na ocasião de abertura do seminário

internacional Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados

democráticos contemporâneos, promovido em 1996 pelo Ministério da Justiça. O

presidente estimulou a discussão quando, ao divulgar o Plano Nacional dos Direitos

Humanos, também em 1996, incluiu como um dos objetivos o desenvolvimento de

ações afirmativas voltadas ao acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à

universidade e às áreas tecnológicas, e de políticas compensatórias capazes de promover

social e economicamente a comunidade negra (BERNARDINO, 2002). Além disso, o

Brasil participou da Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a

Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em

2001, em Durban, na África do Sul, em que o país assumiu o compromisso de

desenvolvimento de ações afirmativas para a promoção de grupos que são ou possam

vir a ser vítimas de discriminação racial (GEMAA, 2011). A estruturação de uma pauta

para essa Conferência tem sido apontada por vários militantes como um fator

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fundamental, visto que o Estado brasileiro, enquanto signatário da Conferência,

comprometeu-se a elaborar e implementar políticas de ação afirmativa voltadas para a

redução das desigualdades raciais no país (PAIVA, 2011).

Até 2001, quando se realiza a Conferência de Durban, o grosso da ação

governamental restringiu-se ao combate à pobreza, com programas como “Alvorada”,

“Avança Brasil” e “Comunidade Solidária”. Até então, apenas alguns programas

específicos do governo federal levavam explicitamente em consideração a identidade

racial dos participantes. Esses programas eram conduzidos por ministérios em que

quadros negros do partido do governo tinham alguma ascendência: Ministério da Justiça

– Programa Nacional de Direitos Humanos; Ministério do Trabalho – o projeto “Brasil:

Raça e Gênero” e o Programa de Formação Profissional (Planfor); e Ministério da

Cultura – Titulação de Terras de Remanescentes de Quilombos. Todavia, se a

estabilização econômica atingida no período, por meio do Plano Real, diminuiu a

pobreza absoluta, as desigualdades sociais, principalmente as de corte racial, não

diminuíram (GUIMARÃES, 2003).

Os governos de Fernando Henrique Cardoso limitaram-se a organizar seminários

com intelectuais e acadêmicos, definindo a questão racial como uma temática a ser

tratada por especialistas, evitando a politização do debate e tendo, ainda, promovido um

reconhecimento do racismo sem investimentos no aspecto redistributivo. Desse modo,

sob os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-

2018) ocorreu um esforço de institucionalizar políticas públicas voltadas à população

negra, em cujo debate e elaboração o Movimento Negro desempenhou um papel

fundamental (FERES JÚNIOR, DAFLON, 2014).

No tocante ao acesso à educação superior, a ação dos movimentos sociais,

particularmente do movimento negro, e de setores sociais progressistas, expôs um

contexto de flagrantes desigualdades em que se realizava o exame vestibular no Brasil e

tornou clara a necessidade de avançar no debate acerca da democratização da

universidade, no sentido de torná-la um bem ao qual todos e todas têm o direito de

aspirar. Se o ensino superior é diferente da educação básica ou de outros direitos sociais

necessariamente assegurados a todos os cidadãos, precisando estabelecer critérios e

normas de seleção que visem garantir um corpo discente qualificado, essa constatação

não autoriza a monopolização da universidade por grupos social e racialmente

dominantes. Tornou-se cada vez mais evidente o dever do Estado e da universidade em

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contemplar de forma justa e igualitária as legítimas aspirações de estudantes de todas as

raças e classes sociais (FERES JÚNIOR, DAFLON, 2014).

Até o final dos anos 1990, ações concretas voltadas à melhoria do acesso e da

permanência no ensino superior estiveram restritas à sociedade civil organizada, através

do desenvolvimento de atividades por movimentos sociais, especialmente o movimento

negro, em parceria com empresas, entidades religiosas e grupos de estudantes militantes

em universidades. Dentre as experiências colocadas em prática, podemos identificar três

tipos de ações: a) aulas de complementação, que envolviam cursos preparatórios para o

vestibular, cursos de verão e/ou de reforço durante a permanência do estudante na

faculdade; b) financiamento de custos, para o acesso e permanência nos cursos,

envolvendo o custeio de mensalidades em instituições privadas, bolsas de estudos,

auxílio-moradia, alimentação e outros; e c) mudanças no sistema de ingresso nas

instituições de ensino superior, através de políticas de cotas (MOEHLECKE, 2002).

De acordo com Guimarães (2003), a primeira tentativa das organizações negras de

enfrentar a obstrução do acesso dos negros à universidade brasileira deu-se na forma de

criação de cursos de preparação para o vestibular. Organizados geralmente a partir do

trabalho voluntário de militantes e simpatizantes, que se dispunham a ensinar

gratuitamente ou a um preço puramente simbólico a jovens negros da periferia do Rio

de Janeiro, São Paulo e de outras grandes cidades brasileiras, esses cursos funcionavam,

e ainda funcionam, em espaços físicos cedidos por entidades religiosas ou associações

comunitárias.

Na esfera do Poder Legislativo nacional, encontramos propostas de ações

afirmativas, especialmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. Em 1993, o

então deputado federal Florestan Fernandes (PT/SP) propôs uma Emenda

Constitucional; em 1995, a senadora Benedita da Silva (PT/RJ) apresentou os projetos

de lei n. 13 e n. 14; no mesmo ano é encaminhado o projeto de lei n. 1.239 pelo

deputado federal Paulo Paim (PT/RS); em 1998, o deputado federal Luiz Alberto

(PT/BA) apresentou os projetos de lei n. 4.567 e n. 4.568; e, em 1999, temos o projeto

de lei n. 298, do senador Antero Paes de Barros (PSDB). Nesse conjunto de projetos,

são propostas diferentes modalidades de ações afirmativas: concessões de bolsas de

estudos, políticas de reparação, estabelecimento de um Fundo Nacional para o

Desenvolvimento de Ações Afirmativas, e alterações nos processos de ingresso nas

instituições de ensino superior, estabelecendo cotas mínimas para determinados grupos

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sociais, com critérios exclusivamente étnico-raciais ou sociais, ou procuram utilizar

ambos (MOEHLECKE, 2002).

Dentre as justificativas que legitimam os projetos, encontramos referência à

importância da educação como um instrumento de ascensão social e de

desenvolvimento do país, a exposição de dados estatísticos que demonstram o

insignificante acesso da população pobre e negra ao ensino superior brasileiro e a

incompatibilidade dessa situação com os ideais de igualdade, de justiça e de

democracia, e o resgate de razões históricas, como a escravidão e o massacre indígena,

que contribuem para a reprodução de desigualdades que atingem negros e indígenas e

implicam em uma dívida do Poder Público com esses sujeitos. Até o final dos anos

1990, nenhum desses projetos de lei tinha sido aprovado ou implementado. Somente a

partir dos anos 200010

são aprovadas, pelo Poder Público, políticas de ação afirmativa

para a população negra, tendo como base o sistema de cotas e a ideia de necessidade de

representação desse setor em diversas esferas da sociedade brasileira (MOEHLECKE,

2002).

Em 2003, é criada, no âmbito do Executivo federal, a Secretaria de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com as seguintes atribuições: acompanhar e

coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do governo brasileiro para

a promoção da igualdade racial; articular, promover e acompanhar a execução de

diversos programas de cooperação com organismos públicos e privados, nacionais e

internacionais e, ainda, acompanhar e promover o cumprimento de acordos e

convenções internacionais assinados pelo Brasil que digam respeito à promoção da

igualdade racial e ao combate ao racismo (PASSOS, NOGUEIRA, 2014).

A composição da representação política durante os oito anos de governo de Luiz

Inácio Lula da Silva (2003-2010) indica uma forte presença de militantes e intelectuais

de organizações negras em articulação com os movimentos sindicais e partidos

políticos. Isso permitiu a construção de diferentes visões do movimento negro acerca da

implementação dos vários níveis de políticas públicas, como, por exemplo, as previstas

no Estatuto da Igualdade Racial, em que entidades e organizações do movimento negro

10

Em 2003, por meio da Lei Estadual n. 4.151, de 04 de setembro, a Assembleia Legislativa do Estado do

Rio de Janeiro instituiu um sistema de cotas nas universidades públicas estaduais, reservando pelo menos

45% das vagas para três categorias de candidatos, com a exigência de que todos sejam carentes. Desse

total, 20% são para estudantes oriundos da rede pública; 20% para negros e 5% para “pessoas com

deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.” A Lei é pioneira e

prepara o caminho para a adoção de políticas de ação afirmativa em outras universidades públicas do país

(GEMAA, 2011).

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discordavam em alguns pontos estratégicos, o que revela uma pluralidade de visões e de

métodos (PASSOS, NOGUEIRA, 2014).

O Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010), aprovado durante o

segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, fornece os alicerces jurídicos para que

as ações afirmativas transformem-se em políticas de Estado, ampliando seu alcance a

nível nacional, nas três esferas governamentais. O documento garante a implementação

de políticas públicas para a população negra, define a discriminação racial e as ações

afirmativas, consolidando o dever do Estado de promover a igualdade de oportunidades,

bem como “a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da

igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.” O Estatuto prevê

ações afirmativas de corte étnico-racial na educação, cultura, esporte e lazer, saúde,

segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos

públicos, acesso à terra, à justiça, dentre outros. Torna obrigatório em todas as

instituições de ensino fundamental e médio o ensino da história geral da África e da

história da população negra no Brasil; estabelece os direitos das comunidades

remanescentes de quilombos, a liberdade de crença e do livre exercício dos cultos

religiosos de matriz africana; institui cotas mínimas de participação de atores, figurantes

e técnicos negros na produção de filmes e programas para veiculação no cinema e na

televisão e o dever do Estado em proporcionar a igualdade de oportunidades em

educação, emprego e moradia (GEMAA, 2011).

Ainda, o Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013) dispõe sobre os direitos dos

jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema

Nacional de Juventude (SINAJUVE). O artigo 8º estabelece que o jovem tem direito à

educação superior, em instituições públicas ou privadas, sendo que aos jovens negros,

indígenas e oriundos de escolas públicas é assegurado o acesso ao ensino superior nas

instituições públicas por meio de políticas afirmativas. O Poder Público deverá

promover programas de expansão da oferta de vagas nas instituições públicas de ensino

superior e de financiamento estudantil e de bolsas de estudos nas instituições privadas,

em especial para jovens com deficiência, negros, indígenas e oriundos de escola

pública. Já o artigo 13 impõe às escolas e às universidades o dever de formular e

implantar medidas de democratização do acesso e da permanência, inclusive programas

de assistência estudantil, ação afirmativa e inclusão social para os jovens estudantes. Por

fim, no artigo 17, é assegurado o direito à diversidade e à igualdade de oportunidades,

sendo vedada a discriminação por motivos de etnia, raça, cor de pele, cultura, origem,

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idade, sexo, orientação sexual, idioma, religião, opinião, deficiência e condição social

ou econômica.

Desse modo, o processo de organização sociopolítica em torno da demanda por

ações afirmativas no ensino superior público brasileiro desenvolveu-se em várias

frentes: a) pela via do Legislativo; b) pela pauta organizada em torno da Conferência de

Durban; c) pela pressão feita junto aos órgãos executivos, em especial alguns

ministérios mais sensíveis às reivindicações e d) pela ação interna de militância nas

universidades. Os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB’s), por exemplo,

pressionaram diversos órgãos administrativos universitários tanto pela adoção de

políticas de cotas raciais, quanto de políticas de permanência dos estudantes

beneficiários. Além disso, a criação de vários cursos pré-vestibulares comunitários, por

meio do trabalho oriundo da Pastoral do Negro, congregou estudantes, docentes,

coordenadores, coordenadoras, militantes e movimentos sociais e também se tornaram

um instrumento poderoso de luta pelas ações afirmativas (PAIVA, 2011).

Até 2012, as políticas de ação afirmativa foram criadas por resoluções internas

das próprias universidades, no exercício de sua autonomia, ou por leis estaduais,

efetuando-se de maneira totalmente descentralizada. No entanto, a Lei Federal n.

12.711, de 29 de agosto de 2012, chamada de Lei de Cotas, estabeleceu a

obrigatoriedade de cotas nas universidades federais e instituições federais de ensino

técnico para pretos, pardos, indígenas, egressos de escolas públicas e de baixa renda.

Determinou, ainda, um prazo de quatro anos para sua completa implementação: ou seja,

somente a partir de 2016 os efeitos da política federal poderão ser avaliados em sua

totalidade. É importante consignar que, antes da edição dessa lei, muitas universidades

federais já tinham alguma política de ação afirmativa, visto que o governo federal

condicionava o repasse de recursos financeiros a essas instituições à adoção desse tipo

de política. Desse modo, a maior inclusão de estudantes pobres, pretos, pardos e

indígenas nas universidades federais deve ser atribuída tanto a iniciativas das próprias

instituições como também ao estímulo a medidas inclusivas proporcionado pelo

governo federal nos últimos anos. A liberação de verbas11

era condicionada a um

11

Por exemplo, verbas oriundas da adesão das universidades ao programa REUNI (Reestruturação e

Expansão das Universidades Federais), que marcou os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da

Silva. As mudanças proporcionadas pelo programa fizeram com que as universidades federais

adquirissem uma nova configuração. Se no ano de 2003 havia 45 unidades, em 2010 elas totalizavam 59,

ou seja, 14 novas universidades foram criadas no período. Em se tratando de municípios atendidos, em

2003 havia 114 e em 2010 chegaram a 230. No tocante ao número de matrículas, em 2003

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compromisso social dessas instituições com políticas de inclusão e de assistência

estudantil. Todavia, a decisão acerca dos procedimentos, magnitude e beneficiários era

deixada a critério das universidades. A Lei n. 12.711 de 2012 operou no sentido de dar

certa uniformidade à política de cotas em âmbito federal12

. (FERES JÚNIOR et al.,

2013).

Guimarães (2013) aponta, nesse contexto, a importância do julgamento histórico

do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em abril de 2012, reconheceu, por

unanimidade dos votos de seus ministros, a constitucionalidade da adoção de ações

afirmativas com corte étnico-racial pelas universidades públicas brasileiras. Essa

decisão foi um marco porque, entre 2003 e 2012, as demandas que questionavam a

constitucionalidade da adoção de cotas em vestibulares de autarquias e de fundações

universitárias não eram julgadas de modo uniforme, a depender de juízes e de tribunais

regionais federais.

Como se pode constatar, o protagonista da história de lutas pelas ações

afirmativas de cotas e pela democratização da educação superior foi o que a literatura

sociológica vem chamando de movimento negro, um conjunto amplo e diversificado de

organizações que ajudaram a compor a frente democrática de combate ao regime

ditatorial (GUIMARÃES, 2013). Tendo como ponto de partida as características

discutidas acerca da ação política desse movimento social, buscaremos, a partir de

certas categorias de análise presentes na Teoria da Constituição, resgatar o direito à

educação na história constitucional brasileira, a fim de compreender as tensões e

contradições imbricadas nas disputas pelo sentido e alcance desse direito.

contabilizavam-se 567,1 mil e em 2010 a oferta havia se expandido para 1.032.936 (FERES JÚNIOR et

al., 2013).

12

Para enfrentar a questão da democratização do perfil de acesso à educação superior, tanto do ponto de

vista étnico quanto socioeconômico, o governo Lula, a partir da gestão de Tarso Genro no Ministério da

Educação (MEC), propôs a introdução de cotas no sistema público e privado de ensino superior. No caso

do sistema público, as Instituições Federais de Educação Superior (IFES) reservariam, no mínimo, 50%

de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Dentro desses limites, as vagas seriam preenchidas de acordo com o peso de cada etnia na composição da

população do estado onde se situa a instituição (PINTO, 2004). O Projeto de Lei n. 3.627/2004 só viria a

ser aprovado em 2012, no governo de Dilma Rousseff.

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3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA: FORÇA NORMATIVA DA

CONSTITUIÇÃO, PODER CONSTITUINTE E CONSTITUIÇÃO

RADICAL

Nos estudos sobre Teoria Constitucional dos séculos XIX e XX, há importantes

teóricos que são comumente citados por seus esforços em compreender as tensões entre

poder constituinte e Constituição. Lassalle (1933), no esforço de definir a Constituição

para além dos seus aspectos intrinsicamente jurídicos, a associa aos fatores reais de

poder que regem uma determinada sociedade, conformando as leis e as instituições

político-jurídicas da sociedade em questão. O autor cita elementos típicos do século

XIX que constituíram, de modo efetivo, os fatores reais de poder das Constituições

liberais daquela época: a monarquia, o exército, a aristocracia, a grande burguesia

industrial, os banqueiros, a consciência coletiva, a cultura, a pequena burguesia, a classe

operária, o povo em geral. São esses fatores de poder, de cada contexto concreto, que

determinam a Constituição jurídica, escrita numa folha de papel. Nesse sentido, afirma:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a

verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e

efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm

valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder

que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que

devemos sempre lembrar (LASSALLE, 1933, p. 63).

Décadas depois, nos marcos dos Estados constitucionais democráticos da

segunda metade do século XX, Hesse (1991) retoma as teses de Lassalle (1933) e

desenvolve argumentos que refutam a ideia de Constituição jurídica enquanto uma mera

folha de papel. Para Hesse (1991), afirmar que as normas constitucionais expressam tão

somente as relações de poder dominantes numa determinada sociedade significa

descaracterizar o Direito Constitucional enquanto ciência normativa, do dever ser,

operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Assim, restaria à

Constituição jurídica constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik, portanto, a

função de apenas justificar as relações de poder dominantes.

Discordando da perspectiva de Lassalle (1933), Hesse (1991) argumenta que há

um condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade

político-social, que impõe pensá-las de modo contextual e relacional. Ainda que de

forma limitada, a Constituição contém uma força própria, motivadora e ordenadora da

vida do Estado.

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A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas

também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das

condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e

políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir

ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela

realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se

pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples

eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante

da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas

não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas

(HESSE,1991, p. 15).

A Constituição real, efetiva, dos fatores reais de poder a que se referia Lassalle,

e a Constituição jurídica estão numa relação de coordenação, condicionando-se

mutuamente. Ainda que de forma relativa, a Constituição jurídica tem significado

próprio, com pretensão de eficácia no campo de forças do qual resulta a realidade do

Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que alcança concretizar

essa pretensão de eficácia, projetando construir o futuro a partir da natureza singular do

presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor

tarefas, objetivos fundamentais, projetos a serem realizados. Se houver a disposição dos

atores sociais em orientar as condutas de acordo com os princípios nela consagrados,

para além da vontade de poder, existirá a vontade de Constituição (HESSE, 1991).

Refletindo sobre o sentido normativo, de dever-ser, implicado nessa vontade de

Constituição, o autor afirma:

Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se

na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa

inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme.

Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do

que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em

constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de

que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não

logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e

mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem

consequência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está

abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário,

todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida

do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas. Não perceber

esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de

nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse fenômeno e sua

integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como

problema decorrente dessas circunstâncias inelutáveis, mas também como

problema de determinado ordenamento, isto é, como um problema normativo

(HESSE, 1991, pp. 19-20).

A Constituição jurídica está, assim, condicionada pela realidade histórico-

concreta. Sua pretensão de eficácia depende dessa realidade. Contudo, essa Constituição

jurídica não configura apenas expressão de uma dada realidade, mas, graças ao

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elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade político-social. As

possibilidades e os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação de

forças, da tensão, entre o ser e o dever ser (HESSE, 1991).

Para a ciência do Direito, o poder constituinte é tradicionalmente a fonte da qual

uma nova ordem constitucional brota. É o poder de fazer a nova Constituição, da qual

os poderes constituídos adquirem a sua estrutura. Dessa perspectiva, o poder

constituinte instala uma ordem jurídico-constitucional totalmente nova. Contudo, para o

filósofo político Antonio Negri, o poder constituinte não se manifesta apenas como

fonte onipotente e expansiva que produz normas constitucionais de todo o ordenamento

jurídico. O filósofo também o considera sujeito dessa produção, dessa atividade

igualmente onipotente e expansiva presente nas disputas histórico-sociais (CHUEIRI e

GODOY, 2010).

Assim, Negri (2002) resgata a noção de poder constituinte enquanto categoria de

análise útil para se pensar as tensões e contradições entre o estabelecido, o instituído, e

o instituinte, de natureza transformadora, promotora de rupturas, e democrática, capaz

de recompor a síntese entre liberdade e igualdade.

Falar de poder constituinte é falar de democracia. Na era moderna, os dois

conceitos foram quase sempre correspondentes e estiveram inseridos num

processo histórico que, com a aproximação do século XX, fez com que se

identificassem cada vez mais. Em outros termos, o poder constituinte não tem

sido considerado apenas a fonte onipotente e expansiva que produz as normas

constitucionais de todos os ordenamentos jurídicos, mas também o sujeito

desta produção, uma atividade igualmente onipotente e expansiva. Sob este

ponto de vista, o poder constituinte tende a se identificar com o próprio

conceito de política, no sentido com que este é compreendido numa

sociedade democrática. Portanto, qualificar constitucional e juridicamente o

poder constituinte não será simplesmente produzir normas constitucionais e

estruturar poderes constituídos, mas sobretudo ordenar o poder constituinte

enquanto sujeito a regular a política democrática (NEGRI, 2002, p. 7).

Nesse horizonte, o poder constituinte, além de estar associado a práticas políticas

democráticas, compreende as vozes e as reivindicações históricas de sujeitos que não

são abarcados pelos processos de efetivação de direitos, devido a dinâmicas político-

sociais perversas e excludentes. A existência de uma tensão13

constante entre o

constituído e o constituinte é essencial para a própria prática política, de modo que o

poder constituinte resiste a um sistema hierarquizado de normas e de competências: “A

coisa se torna ainda mais difícil porque a democracia também resiste à

13

A vitalidade do Estado depende da permanente possibilidade do conflito, necessitando de um soberano

que, em face das incertezas políticas, incorpore a autoridade que é superior àquela do próprio Direito

(CHUEIRI e GODOY, 2010).

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constitucionalização: de fato, a democracia é teoria do governo absoluto, ao passo que

constitucionalismo é teoria do governo limitado e, portanto, prática da limitação da

democracia” (NEGRI, 2002, p. 8). O poder constituinte tem um caráter dinâmico e

ativo, não se esgotando ao fim de processos revolucionários e não podendo ser

completamente juridicizado e limitado pelo Direito14

.

A práxis do poder constituinte envolve a expressão radical da vontade

democrática da multidão, através da qual as questões e as demandas populares

ingressaram no sistema político-estatal, confrontando a ideologia liberal de mediação

das desigualdades na desigualdade, um paradigma não democrático:

O paradigma do poder constituinte, ao contrário, é aquele de uma força que

irrompe, quebra, interrompe, desfaz todo equilíbrio preexistente e toda

continuidade possível. O poder constituinte está ligado à idéia de democracia,

concebida como poder absoluto. Portanto, o conceito de poder constituinte,

compreendido como força que irrompe e se faz expansiva, é um conceito

ligado à pré-constituição da totalidade democrática. Pré-formadora e

imaginária, esta dimensão entra em choque com o constitucionalismo de

maneira direta, forte e duradoura. Neste caso, nem a história alivia as

contradições do presente: ao contrário, esta luta mortal entre democracia e

constitucionalismo, entre o poder constituinte as teorias e práticas dos limites

da democracia, torna-se cada vez mais presente à medida em que a história

amadurece seu curso. No conceito de poder constituinte está a ideia de que o

passado não explica mais o presente, e que somente o futuro poderá fazê-lo.

(...) E é por isto que o poder constituinte se forma e reforma incessantemente

em todo lugar. A pretensão do constitucionalismo em regular juridicamente o

poder constituinte não é estúpida apenas porque quer – e quando quer –

dividi-lo; ela o é sobretudo quando quer bloquear sua temporalidade

constitutiva. O constitucionalismo é uma doutrina jurídica que conhece

somente o passado, é uma referência contínua ao tempo transcorrido, às

potências consolidadas e à sua inércia, ao espírito que se dobra sobre si

mesmo – ao passo que o poder constituinte, ao contrário, é sempre tempo

forte e futuro (NEGRI, 2002, pp. 21-22).

Contudo, de acordo com Chueiri e Godoy (2010), é preciso reconhecer os

avanços históricos proporcionados pelo movimento constitucionalista, quando garante e

protege os compromissos sociais15

conquistados ao longo do tempo. Se, por um lado,

para Negri (2002), o constitucionalismo sempre se refere ao passado, por outro,

acontece no presente, não como mera repetição do passado, mas como condição para o

14

Do ponto de vista da ideologia constitucionalista e liberal, através de uma análise que pretende

evidenciar toda a pretensão soberana da comunidade, o poder constituinte é explicitamente submetido à

limitação institucional. O constitucionalismo apresenta-se como teoria e prática do governo limitado:

limitado pelo controle jurisdicional dos atos administrativos e sobretudo pela organização do poder

constituinte pela lei. Assim, as revoluções devem se curvar à supremacia da lei e o poder constituinte

deve se legitimar através de sua expressão num procedimento legal (NEGRI, 2002).

15

O constitucionalismo institui não só a proteção, mas mecanismos de salvaguarda dos direitos das

minorias e garante condições para o protesto dos grupos sociais vulneráveis (CHUEIRI e GODOY,

2010).

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exercício dos direitos, isto é, para a ação política, abrindo perspectivas para o futuro.

Nesse sentido, o constitucionalismo pode e deve olhar para o presente e ter vistas ao

futuro.

Chueiri e Godoy (2010), ao referirem-se ao francês Claude Lefort, sustentam

que a democracia é um processo constante de reinvenção de direitos. Assim, contra

todas as formas de totalitarismo, o conflito, fundamental para as revoluções

democráticas, supõe, ao mesmo tempo, o fato do poder e a busca de uma consideração

das diferenças e das identidades no direito. As reivindicações das parcelas sociais

marginalizadas, que padecem de liberdade e de igualdade, não somente evidenciam os

conflitos (políticos, econômicos, sociais, culturais etc), mas demandam a todo o tempo e

de todas as formas uma sociedade mais justa e igualitária. Essas reivindicações

reafirmam a potência do poder constituinte na concretização dos direitos fundamentais

e, com isso, renovam o constitucionalismo.

A tensão entre o poder constituído e o poder constituinte precisa ser entendida

como um sinal vigoroso de uma esfera pública radicalmente democrática. Em outras

palavras, a tensão entre constitucionalismo e democracia, entre o jurídico e o político, é

altamente rica e produtiva, na medida em que a interpretação e a aplicação da

Constituição, a partir da concretização dos direitos nela previstos, podem atualizar e

revigorar a sua potência, a sua carga revolucionária num Estado democrático:

A potência revolucionária da Constituição aparece quando ela é aplicada,

quando ela é o substrato fundamental de decisões que garantem direitos e seu

exercício, inclusive o direito de dizer que uma norma constitucional é

inconstitucional e, por isso mesmo, desobedecê-la. É através da concreção da

própria Constituição que a potência, a carga revolucionária da Constituição é

exibida e revigorada (CHUEIRI e GODOY, 2010, p. 167).

É justamente devido ao fato de que muitos setores da sociedade são impedidos

de serem ouvidos que o compromisso com o constitucionalismo e com a democracia

precisa ser levado às últimas consequências. A democracia enquanto conquista e

processo de tomada de decisões insere o sujeito/povo nas discussões e deliberações, ao

passo que o constitucionalismo regula esse processo, estabelecendo limites, padrões e

até mesmo determinações, como a representação. No entanto, muitas vezes o

constitucionalismo (ao estabelecer a representação, por exemplo) representa um freio à

democracia. Outras vezes, o próprio procedimento democrático deixa de incluir parcelas

sociais que deveriam tomar parte na discussão. Nessa tensa conjugação, situações como

as de manifestação pública e de protesto podem resgatar não somente o direito que esses

sujeitos marginalizados têm, mas também o próprio fundamento democrático que os

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permite e os legitima a serem ouvidos e a tomarem parte no processo de discussão e de

decisão, reavivando, assim, o poder constituinte latente da Constituição (CHUEIRI e

GODOY, 2010).

Bringel e Echart (2008) sustentam que uma das fronteiras que pode ser

identificada na relação entre movimentos sociais e democracia é a institucionalidade, ou

seja, a dialética existente entre o instituído e o instituinte. No âmbito do instituído, o

eixo analítico volta-se aos impactos dos movimentos sociais nas democracias já

existentes, como a ampliação dos espaços de participação institucional, a inserção de

novos temas nas agendas políticas, a incidência nas políticas públicas etc. Por outro

lado, no âmbito do instituinte, o eixo fundamental de análise refere-se ao potencial de

criação de novas experiências democráticas que vão além dos limites do instituído,

tensionando-os, a exemplo dos casos de democracia radical. Ainda que seja difícil traçar

uma divisão rígida entre o instituído e o instituinte, é fundamental considerar a

democracia para além da esfera vinculada às instituições, a um regime político liberal,

baseado na realização de eleições livres, na concorrência entre partidos etc. A

democracia significa também a possiblidade de criação de novas determinações, através

de um imaginário criador, instituinte.

Consequentemente, a democratização não pode ser entendida somente na sua

dimensão política, vinculada a um lado da fronteira, como aqueles avanços dentro da

esfera do sistema político que permitem, por exemplo, um aperfeiçoamento no

funcionamento dos mecanismos institucionais. A construção de instituições político-

democráticas sólidas ou a realização de eleições são requisitos necessários, porém não

exclusivos nem suficientes da democratização, que significa também a busca da

igualdade nos grupos de status, um processo imbuído nas relações sociais, nas ações

coletivas e na cultura política. Logo, além do marco do instituído, é necessário

investigar em que medida os movimentos sociais adotam referências, produzem

discursos e criam práticas especiais de resistência, em que a democracia aparece como

criação coletiva de um novo imaginário e tensão permanente entre projetos e

territorialidades. Trata-se de apreender como o exercício contestatório dos movimentos

sociais, ligado intimamente às vidas cotidianas, reivindica espaços de democracia

radical através das dinâmicas internas de mobilização social (BRINGEL, ECHART,

2008).

Diante do dilema da insanável e produtiva tensão entre democracia e

constitucionalismo, uma alternativa a ser explorada é a de percorrer um caminho

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comum às duas noções, de forma a destacar as peculiaridades e qualidades do

constitucionalismo e da democracia, ou seja, o fato de que um é constitutivo do outro.

Esse caminho comum pode ser encontrado no princípio da igualdade, fundamento

último de ambos (CHUEIRI e GODOY, 2010).

Nesse horizonte, Chueiri (2013) desenvolve a ideia de Constituição radical como

uma possível mediação para a ação política, na medida em que a Constituição não se

deixa reduzir ao poder constituído, mas nela retém o poder constituinte e, dessa forma,

nos constitui, radicalmente, como comunidade política. Uma Constituição radical não se

limita aos mecanismos liberais de mútua negociação entre os poderes constituídos, mas

abrange a possibilidade de ser objeto e sujeito da política democrática. Os direitos estão

na Constituição, na medida em que ela permite a sua constante reinvenção e demandas,

através da tensão, do conflito, entre os poderes constituídos e o poder constituinte.

Para a autora, o constitucionalismo não pode estar limitado à ideia de

Constituição (passado), descolada de seu impulso constituinte (a promessa). De acordo

com ela,

Uma Constituição radical é aquela que não se conforma aos mecanismos

liberais de mútua negociação entre os poderes constituídos, arriscando-se a

ser mais do que isso, ou seja, objeto e sujeito da política democrática. Os

direitos estão na Constituição, na medida em que ela permite a sua constante

reinvenção e demanda (dos direitos). Uma Constituição radical não sintetiza

a tensão entre poder constituinte (democracia) e poderes constituídos: ela é

precisamente isso, a tensão! (CHUEIRI, 2013, p. 29)

Neste sentido, a Constituição deve se pressupor como poder constituinte. Estaria

aí sua força, especialmente a de uma Constituição radical, “na medida em que é a

primeira ordem que se (auto) impõe como manifestação do poder constituinte e da

soberania popular, comprometendo ambos” (2013, p. 33). Poder constituinte e

Constituição são, portanto, processos, lutas, reivindicações. Por isso, o primeiro não se

esgota em uma data única (no caso da Constituição Federal de 1988, ele não

corresponde a, apenas, o período entre fevereiro de 1987 e outubro de 1988). Ele se

manifesta muito antes dos processos formais constituintes e se faz presente na própria

Constituição. De acordo com Chueiri (2013, p. 33),

poder soberano e poder constituinte, poder constituinte e poder constituído

estabelecem uma dinâmica que possibilita a instauração e a manutenção de

uma Constituição radical. Vista de outra perspectiva, essa dinâmica ou esse

movimento refere-se à capacidade de o povo se autolegislar e fundar a ordem

normativa que lhe regerá. Porém, a potência desse ato nele não se esgota. Ao

se impor uma Constituição e, com isso, se constituir como comunidade

política, o povo exige, ao mesmo tempo, que tal Constituição seja

agonisticamente vivida e experimentada.

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A promessa da igualdade colocada pelo Direito em sociedades profundamente

desiguais, como a brasileira, faz com que os grupos sociais que se sentem injustiçados,

desde que haja liberdade pessoal e política para tanto, possam comparar sua condição

com a dos outros e formular, na esfera pública, sua insatisfação e suas percepções de

desigualdades sob a forma de reivindicação por direitos. A renovação e a legitimação da

democracia e do constitucionalismo dependem justamente das demandas constantes por

novos direitos por parte da sociedade, capazes de questionar o status quo. Um direito

democrático só é possível desde que haja uma sociedade civil ativa que produza

constantemente novas demandas, deixando a condição de massa governada e passando a

viver a vida política de forma plena, movida por uma autodeterminação consciente e

livre (RODRIGUEZ, 2013).

De acordo com Rodriguez (2013), a racionalidade do império do Direito e seu

modo específico de legitimação exigem que as normas sejam produzidas em função das

demandas e das carências sociais. O surgimento de novas carências e de novas vontades

tem o potencial de transformar o direito posto e de desfazer hierarquias a ele

correspondentes, ameaçando os interesses de quem estiver em posições de vantagem e

de privilégio sobre os demais grupos sociais. Em uma sociedade desigual, o Direito

pode ter um efeito desintegrador, através das lutas sociais.

Em se tratando das desigualdades na efetivação do direito à educação, as críticas

lançadas à atual situação educacional dos negros são estruturadas a partir de dois eixos

centrais, exclusão e abandono, que têm origem longínqua na história brasileira.

Gonçalves e Silva (2000) destacam que, no período colonial (1500-1822), não se

considerava necessário que a população tivesse acesso à alfabetização. Os africanos

escravizados estavam impedidos de aprender a ler e a escrever, de cursar escolas quando

estas existiam, embora a alguns fosse concedido, a alto preço, o privilégio de frequentar

escolas, se fossem escravos em fazendas de padres jesuítas. Os jesuítas, visando à

“elevação moral” de seus escravos, providenciavam escolas, para que os filhos dos

escravizados recebessem lições de catecismo e aprendessem as primeiras letras, sendo-

lhes impedido, entretanto, almejar estudos de instrução média e superior. Nessas escolas

dos jesuítas, as crianças negras eram submetidas a um processo de aculturação, gerado

pela visão cristã de mundo e organizado por um método pedagógico de caráter

repressivo que visava à modelagem da moral cotidiana e do comportamento social.

Durante o século XIX, após a Independência, a construção de uma nação se

colocava para as elites políticas e econômicas como uma questão central. Para tanto,

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seria fundamental o desenvolvimento de estratégias que pudessem fortalecer a instrução

pública nas diferentes províncias do Império. Nesse período, as escolas noturnas

representaram uma estratégia de desenvolvimento da instrução pública, tendo em seu

bojo poderosos mecanismos de exclusão, baseados em critérios de classe social

(excluíam-se abertamente os cativos) e de raça (excluíam-se também os negros em

geral, mesmo que fossem livres ou libertos). Ainda que amparadas por uma reforma de

ensino que lhes dava a possibilidade de oferecer instrução ao povo, essas escolas tinham

de enfrentar o paradoxo de serem legalmente abertas a todos em um contexto

escravocrata, por definição, excludente (GONÇALVES e SILVA, 2000).

Nesse contexto histórico, índios e escravos eram considerados um entrave à

modernidade, ao progresso e à civilização da jovem nação, ideia poderosa e tornada

hegemônica pelas classes proprietárias na segunda metade do século XIX. Gonçalves e

Silva (2000, p. 135) exemplificam:

Com o intuito de divulgar ao mundo o quanto, no Brasil, se davam “provas e

amor ao progresso e à perseverança na trilha da civilização”, José Ricardo

Pires de Almeida publica, no ano de 1889, em língua francesa, obra sobre

história e legislação da instrução pública no Brasil, entre os anos de 1500 e

1889. Tendo destacado que, no Império brasileiro, se assimilara o que havia

“de mais completo nas nações avançadas da Europa, adaptando a seu gênio

nacional” e buscando salientar papel de liderança do Brasil na América

Latina, o autor aponta que, em 1886, numa população de 14 milhões de

habitantes, 248.396 eram alunos de estabelecimento de ensino. E sugere,

salvo melhor juízo, não ser esta cifra maior por estarem incluídos no cômputo

do total da população “os indígenas e os trabalhadores rurais de raça”.

Dentre as pautas de lutas do movimento negro, destaca-se o direito à educação,

que sempre esteve presente na agenda desse ator social, embora concebido com

significados diferentes: ora visto como estratégia capaz de equiparar os negros aos

brancos, dando-lhes oportunidades iguais no mercado de trabalho; ora como veículo de

ascensão social e, por conseguinte, de integração; ora como instrumento de

conscientização por meio do qual os negros aprenderiam a história de seus ancestrais, os

valores e a cultura do seu povo, podendo a partir deles reivindicar direitos sociais e

políticos, direito à diferença e respeito humano (GONÇALVES e SILVA, 2000).

Gonçalves e Silva (2000), ao examinarem os jornais veiculados pela imprensa

negra do fim do século XIX e começo do século XX, constatam a existência de escolas

mantidas exclusivamente pelas entidades negras, sem qualquer subvenção do Estado

brasileiro. Os autores defendem a hipótese de que o abandono a que foi relegada a

população negra motivou o movimento negro, do início do século, a chamar para si a

tarefa de educar e escolarizar as suas crianças, os seus jovens e, de modo geral, os

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adultos. Pela leitura dos registros, quase não há referência à educação enquanto um

dever do Estado e um direito das famílias. As entidades negras inverteram a questão,

com a educação aparecendo como uma obrigação da família. A crítica ao descaso do

Estado com a educação dos negros se manifesta na mesma proporção em que o protesto

racial endurece, ou seja, se radicaliza.

A reivindicação do movimento social negro parece ser por um direito à

igualdade que contemple o direito à diferença. Nesse horizonte, Nancy Fraser (2002)

propõe uma concepção bidimensional de justiça social, que contemple os aspectos de

reconhecimento e de redistribuição, um tipo de concepção capaz de abranger toda a

magnitude da injustiça no contexto da globalização.

O que é preciso é uma concepção ampla e abrangente, capaz de abranger pelo

menos dois conjuntos de preocupações. Por um lado, ela deve abarcar as

preocupações tradicionais das teorias de justiça distributiva, especialmente a

pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe. Ao mesmo

tempo, deve igualmente abarcar as preocupações recentemente salientadas

pelas filosofias do reconhecimento, especialmente o desrespeito, o

imperialismo cultural e a hierarquia de estatuto. Rejeitando formulações

sectárias que caracterizam a distribuição e o reconhecimento como visões

mutuamente incompatíveis da justiça, tal concepção tem de abrangê-las a

ambas (FRASER, 2002, p. 11).

Do ponto de vista distributivo, a injustiça surge na forma de desigualdades

semelhantes às de classe, baseadas na estrutura econômico-social, envolvendo também a

exploração, a privação e a marginalização ou exclusão dos mercados de trabalho. Nesse

ponto, é preciso pensar em políticas de redistribuição, que contemplem, além da

transferência de rendimentos, a reorganização da divisão do trabalho, a transformação

da estrutura da posse e da propriedade e a democratização de processos pelos quais é

decidida a alocação dos recursos socialmente produzidos (FRASER, 2002).

Já na ótica do reconhecimento, a injustiça surge na forma de subordinação de

estatuto, baseada em hierarquias institucionalizadas de valor cultural. A injustiça que

caracteriza esse campo é o falso reconhecimento, compreendendo a dominação cultural,

o não reconhecimento e o desrespeito. Assim, é necessário debater políticas de

reconhecimento, que revalorizem as identidades desrespeitadas e os produtos culturais

de grupos discriminados, a diversidade e os esforços de transformação da ordem

simbólica e de desconstrução dos termos que estão subjacentes às diferenciações de

papéis existentes, a fim de reconstruir uma nova identidade social. Desse modo, a

linguagem política de reivindicação deve conceber essas duas dimensões: redistribuição

e reconhecimento (FRASER, 2002).

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Piovesan (2005), na esteira de Arendt (1979) e de Joaquin Herrera Flores,

argumenta que os direitos humanos não são um dado, mas uma invenção humana em

constante processo de construção e de reconstrução histórica e axiológica. Compõem,

assim, uma racionalidade de resistência, na medida em que resultam de processos contra

hegemônicos que abrem e consolidam espaços de luta e de ação social por uma

gramática de inclusão e de emancipação social.

A primeira fase de proteção16

, inaugurada pela Declaração Universal dos

Direitos Humanos e pela Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de

Genocídio, ambas de 1948, foi marcada essencialmente por uma tônica genérica e

abstrata, fundada em uma igualdade formal e reduzida à fórmula de que “todos são

iguais perante a lei.” Todavia, dada a insuficiência de uma matriz de concepção

meramente liberal, torna-se necessária a especificação do sujeito de direito em sua

concretude, peculiaridade e particularidade:

Nessa ótica determinados sujeitos de direito ou determinadas violações de

direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. Vale dizer, na esfera

internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce

com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata,

refletindo o próprio temor da diferença, percebe-se, posteriormente, a

necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e

particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa que a

diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao

revés, para sua promoção (PIOVESAN, 2005, p. 46).

Em 1965, as Nações Unidas aprovam a Convenção sobre a Eliminação de Todas

as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil desde 1968, que define

discriminação racial, em seu artigo 1º, como

qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor,

descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito

anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano,

em igualdade de condição, de direitos humanos e liberdades fundamentais no

domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio

de vida pública (NAÇÕES UNIDAS, 1965).

Como importante instrumento de inclusão social, situam-se as ações afirmativas,

políticas específicas que cumprem uma finalidade pública decisiva para os valores

16

Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, vinculado ao

Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (GEMAA –

IESP/UERJ), sistematiza cronologicamente os principais documentos normativos e acontecimentos

históricos em âmbito global engendrados com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e que

buscaram afirmar direitos humanos, garantir a dignidade da pessoa humana e combater todas as formas de

discriminação. Disponível em: <http://gemaa.iesp.uerj.br/dados/linha-do-tempo.html>. Acesso em 08 de

dez. de 2015.

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democráticos: assegurar e ampliar a diversidade e a pluralidade social (PIOVESAN,

2005). A própria Convenção, em seu artigo 1º, parágrafo 4º, prevê:

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas

com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos

raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser

necessária para propiciar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício

de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas

não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para

diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus

objetivos (NAÇÕES UNIDAS, 1965).

Portanto, a ação afirmativa, também chamada de discriminação positiva, existirá

enquanto persistirem as desigualdades étnico-raciais no exercício de direitos, até um

nível de equiparação entre os grupos sociais, daí o caráter temporário dessa política:

uma vez atingidos os objetivos inicialmente propostos, não fará mais sentido sua

permanência.

Ao analisar o direito à educação na história constitucional brasileira, Vieira

(2007) demonstra que a presença da educação nas Constituições está relacionada com o

seu grau de importância ao longo do tempo. Enquanto nas primeiras Constituições

(1824 e 1891) as referências à educação são escassas, a presença de artigos que regulam

o tema cresce significativamente nos textos posteriores (1934, 1937, 1946, 1967 e

1988). Contudo, é importante ter em perspectiva o movimento dialético e contraditório

do fenômeno:

As constituições expressam desejos de reforma da sociedade, apontando

possibilidades sem assegurar garantias. Ao mesmo tempo, reforçam

privilégios de grupos que fazem valer seus interesses junto ao Legislativo. O

aprofundamento do tema permite apreciar o contraditório movimento da

educação enquanto um valor que passa a incorporar-se aos anseios sociais

sem, contudo, oferecer a cidadania plena. Do mesmo modo, permite melhor

situar as reformas de educação propostas ao longo da história (VIEIRA,

2007, p. 291).

A interpretação crítica dos textos constitucionais requer uma compreensão do

cenário mais amplo em que as decisões sobre os rumos da política educacional são

forjadas. Desse modo, os textos das Constituições precisam ser interpretados à luz dos

contextos em que são produzidos, buscando-se as razões que ultrapassam a mera

vontade dos legisladores e as explicações para as mudanças e as permanências

macroestruturais que determinam, em boa medida, as circunstâncias do fazer educativo.

As Constituições expressam a correlação de forças sociais e políticas que perpassam a

elaboração de políticas públicas no âmbito do Estado (VIEIRA, 2007).

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3.1 O Direito à Educação na história constitucional brasileira

A história política, econômica e social do Brasil engendrou processos dinâmicos,

complexos e contraditórios de produção e de reprodução das desigualdades sociais,

gerando o que se convencionou chamar de questão social17

, que se expressa de diversas

formas. Uma delas consiste na efetivação do direito à educação e, mais especificamente,

no acesso ao ensino superior, ponto em que é mais nítida a exclusão operada pelo

sistema educacional brasileiro.

O Brasil, último país do continente americano a abolir a escravidão, formou-se

como nação a partir do chamado escravismo colonial, que combinou o trabalho forçado

com a divisão e a dominação racial e étnica. As práticas escravistas influenciaram

profundamente a construção da cultura, dos valores, das ideologias, da ética e os ritmos

das mudanças sociais. Por isso, a constituição das relações sociais sempre teve a

característica da segregação, da apartação (PEREIRA, 2009):

A apartação social traduz-se no regime econômico e seus efeitos político-

culturais que excluem e oprimem grupos e classes sociais, sustentando um

capitalismo com barreiras de cor, de sexo e de idade. As grandes maiorias

brasileiras de origem negra, indígena e as populações miscigenadas, nascidas

dos cruzamentos entre as raças, sofrem uma divisão social que é ao mesmo

tempo discriminatória. A sociedade de classes no Brasil se desenvolveu sob a

marca dessa separação ou apartação social (PEREIRA, 2009, pp. 20-21).

O horizonte de universalização dos direitos, da cidadania18

e da democracia não

se concretizou nas práticas políticas, o que favoreceu a manutenção de processos

elitistas e discriminatórios de produção e distribuição das riquezas, dos bens e dos

serviços. Apesar das amplas e intensas reivindicações dos diversos grupos, movimentos

e setores sociais durante a redemocratização brasileira da década de 1980, a década de

1990 revelou que a cidadania no Brasil estava longe de se universalizar, mesmo no

patamar liberal (PEREIRA, 2009).

17

Há uma relação direta entre questão social e desigualdade social. A primeira se apresenta sob os

aspectos econômicos, políticos e culturais e a segunda se faz presente nas reivindicações dos movimentos

sociais na história das várias repúblicas (PEREIRA, 2009).

18

O conceito de cidadania está intimamente relacionado à titularidade de direitos fundamentais. Só se

pode falar em cidadania se houver a concretização das normas constitucionais referentes à garantia de

direitos individuais e coletivos, implicando em direitos civis, políticos e sociais, tendo na igualdade o

pressuposto inerente e o arcabouço ético do conceito. O caso do Brasil é emblemático na negação dessas

premissas (PEREIRA, 2009).

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Nobre (2013), ao analisar a política brasileira contemporânea, constata que,

embora formalmente as instituições estejam em funcionamento, a vida política não é

substantivamente democratizada:

A democracia no país, tudo somado, é ainda muito pouco democrática de

fato. Porque democracia não é apenas funcionamento de instituições políticas

formais, não é apenas um sistema político regido formalmente por regras

democráticas. Democracia é uma forma de vida que se cristaliza em uma

cultura política pluralista, organizando o próprio cotidiano das relações entre

as pessoas (NOBRE, 2013, p. 9).

Ainda, de acordo com o autor:

Democracia não deve ser entendida de maneira limitada, simplesmente em

termos de um regime político, ligado a uma forma e sistema de governo

determinados. Democracia é uma forma de vida, uma moldura sempre móvel

e flexível em que se encontram padrões de convivência e interação com que

moldamos o cotidiano. Também por isso, a democracia só pode se sustentar

nos termos de uma cultura política flexível o suficiente para suportar

questionamentos radicais, não se fixando em um conjunto determinado de

valores imposto à sociedade como um todo. Uma cultura política democrática

tem de estar em constante aprofundamento e difusão pelo conjunto da vida

social (NOBRE, 2013, p. 21).

Nessa perspectiva, política envolve esferas públicas formais e informais de

debate, padrões de reconhecimento social, possibilidades concretas de desenvolvimento

de projetos de vida individuais e coletivos, situando-se no cotidiano da vida social em

suas diversas dimensões. Assim, a política deve ser entendida como uma expressão

limitada de processos sociais mais profundos que engendram modelos de sociedade e de

cultura política19

específicos. Tais noções orientam determinadas visões de mundo que

legitimam o modo como são distribuídos o poder, a riqueza, os recursos ambientais, o

reconhecimento social, constituindo um padrão de regulação social mais amplo

(NOBRE, 2013).

Por isso, Nobre (2013) aponta para a existência de desigualdades reproduzidas

tendo por base uma cultura política estruturante de baixo teor democrático. Essa cultura

dominante, estabelecida segundo Nobre (2013) com a redemocratização dos anos 1980,

estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação,

administrando os conflitos sociais e bloqueando a ampla participação e discussão

democráticas. Contudo, nos parece que a gênese dessa cultura política deve ser buscada

ao longo do desenvolvimento histórico do Estado e da sociedade brasileira, em que as

19

A expressão “cultura política” aponta para a existência de um laço constitutivo entre cultura e política.

A cultura entendida como concepção de mundo, como conjunto de significados que integram práticas

sociais, não pode ser entendida adequadamente sem a consideração das relações de poder embutidas

nessas práticas. Por outro lado, a compreensão da configuração dessas relações de poder não é possível

sem o reconhecimento de seu caráter cultural ativo, na medida em que expressam, produzem e

comunicam significados (DAGNINO, 2004).

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ideias e as práticas de conservação dos privilégios e de manutenção do status quo

tornaram-se hegemônicas à custa de cruel repressão aos movimentos populares de

reivindicação por direitos e por cidadania (ADORNO, 1988; DAGNINO, 2004).

A produção de discursos e de políticas relacionados à problemática de efetivação

do direito social à educação superior necessita ser pensada levando-se em consideração

as determinações históricas de uma sociedade profundamente desigual, que se reproduz

e se sustenta tendo por base a discriminação de grupos sociais específicos.

3.1.1. A Constituição de 1824

A primeira Constituição brasileira data do Império, tendo sido outorgada por

Dom Pedro I. Reflete o momento político subsequente à Independência, em que os

anseios de autonomia convivem com as ideologias advindas da Colônia. Uma das

frentes de conflito do período se dá na elaboração da primeira Carta Magna. Convocada

em junho de 1822, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Reino do Brasil é

efêmera. O imperador, buscando preservar o seu próprio poder, a dissolve e convoca um

Conselho de Estado a fim de refazer o projeto (VIEIRA, 2007).

A Constituição de 1824 consagra os princípios de um liberalismo moderado e

conservador, expressando a busca de separação entre Colônia e Metrópole, processo

marcado por ambiguidades e contradições. O fortalecimento da figura do Imperador se

concretiza através do Poder Moderador, que lhe garante ampla margem de intervenção

na vida pública do país e a possibilidade de nomeação dos presidentes das províncias. O

Legislativo é organizado através do Senado e da Câmara dos Deputados, sendo os

senadores vitalícios e os deputados eleitos por voto indireto e censitário, por eleitores

representados apenas pelos homens livres (VIEIRA, 2007).

Adorno (1988) afirma que a sociedade brasileira pós-colonial do século XIX

experimentou um dilema democrático que percorreu as estruturas de apropriação do

poder. A cisão entre princípios liberais e democráticos, entre liberdade e igualdade,

expressa pelo antagonismo entre posições políticas conservadoras e radicais,

manifestou-se desde as lutas pela Independência do país e contribuiu com a

configuração do Estado nacional. Assim, as forças populares foram expulsas do âmbito

institucional e silenciadas as reivindicações verdadeiramente democráticas.

Gradualmente, o liberalismo moderado, conservador e autoritário, distante das

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preocupações em democratizar a sociedade brasileira, passou a orientar a ação político-

partidária.

Assim,

Dada a persistência do fundamento escravo na reprodução das relações

sociais, condenou-se ao silêncio a vontade geral mesmo porque nem eleitores

e sequer cidadãos eram a maioria dos constituintes do corpo social. Vale

dizer, se a soberania esteve proclamada solene e retoricamente nas leis, não

esteve por certo presente nos costumes; prevaleceu a desigualdade na

liberdade, haja vista a crença, quase ardente, entre as elites dominantes de

que os “excessos” comprometiam a tranquilidade, a propriedade e a

segurança dos indivíduos. Característico daquela época, o gosto pela

liberdade de poucos sufocou o grito pela condição de igualdade de muitos.

Liberdade associou-se a modernização e progresso; democracia, a anarquia.

Nesse contexto de lutas políticas, o “liberalismo heróico”, nascido e edificado

nos movimentos pré-independência, foi paulatinamente substituído por um

liberalismo regressista (ADORNO, 1988, p. 47).

Nesse sentido, a estrutura político-jurídica inaugurada pela primeira Carta

Constitucional de 1824 impediu a democratização20

da sociedade brasileira, limitando a

participação política aos grupos sociais proprietários e dominantes e institucionalizando

a desigualdade social na esfera pública. Nessa medida, o liberalismo político revelou a

sua verdadeira face, o conservadorismo, afastando-se de suas raízes revolucionárias e

expurgando os seus traços radicais e democráticos (ADORNO, 1988).

Essa Constituição foi a de mais duradoura vigência em toda a história

constitucional brasileira, tendo orientado o ordenamento jurídico da nação por 65 anos e

regulamentado, de maneira estável, a vida institucional nas diversas crises e

turbulências atravessadas pelo Império. Foi substituída apenas em 1891, com o advento

da República (VIEIRA, 2007).

Com a proclamação da Independência e a fundação do Império, em 1822, inicia-

se uma fase de debates de projetos que visavam à estruturação de uma educação

nacional. Com a abertura da Assembleia Constituinte e Legislativa, em 03 de maio de

1823, Dom Pedro referiu-se à necessidade de uma legislação particular sobre a

instrução. Abertas as sessões da Constituinte e eleita uma Comissão de Instrução

Pública, os trabalhos desenvolvidos nos seis meses de seu funcionamento produziram

dois projetos de lei referentes à educação pública. Embora esse debate tenha sido

intenso, devido à dissolução da Constituinte de 1823, não veio a traduzir-se em

dispositivos incorporados à Constituição de 1824 (VIEIRA, 2007).

20

Aqui, pensa-se em democratização da sociedade brasileira quando comparada aos moldes do que já

emergia em outras Constituições liberais da mesma época.

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55

A primeira Carta Magna brasileira traz apenas dois parágrafos de um único

artigo sobre a matéria:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos

Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a

propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

(...)

XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos.

XXXIII. Collegios, e universidades, aonde serão ensinados os elementos das

Sciencias, Bellas Letras, e Artes (BRASIL, 1824).

A presença desses dois únicos dispositivos sobre o tema no último artigo da

Carta de 1824 é um indicador da pequena preocupação suscitada pela matéria educativa

naquele contexto político. Entretanto, importa destacar a referência à ideia de

gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos, aspecto não contemplado pela

primeira Constituição republicana, de 1891. Mesmo no nível das expectativas, a

República silenciou sobre um direito acerca do qual o Império se manifestou. Todavia,

somente homens brancos, livres e proprietários eram considerados cidadãos.

Como se constata, na conjuntura de nascimento do Estado brasileiro, o texto

constitucional passou ao largo da matéria educacional, embora o Brasil tenha sido um

dos primeiros países a inscrever em sua legislação a gratuidade da educação para todos

os cidadãos, apesar de essa gratuidade não ter se efetivado na prática (VIEIRA, 2007).

Sucupira (2005, p. 67) tece críticas ao modelo político-social responsável pela

organização de um acesso extremamente restrito à educação:

Numa sociedade patriarcal, escravagista como a brasileira do Império, num

Estado patrimonialista dominado pelas grandes oligarquias do patriciado

rural, as classes dirigentes não se sensibilizavam com o imperativo

democrático da universalização da educação básica. Para elas, o mais

importante era uma escola superior destinada a preparar as elites políticas e

quadros profissionais de nível superior em estreita consonância com a

ideologia política e social do Estado, de modo a garantir a ‘construção da

ordem’, a estabilidade das instituições monárquicas e a preservação do

regime oligárquico.

De fato, Chizzotti (2005) aponta que, até a criação do Ato Adicional de 1834, a

educação básica ficou absolutamente relegada à iniciativa privada e o projeto de criação

de universidades foi mais um motivo de arroubo teórico, de improvisação circunstancial

e de emulação entre deputados provinciais que uma proposta efetiva para a formação de

estudos superiores no Brasil21

. O direito dos cidadãos à instrução primária gratuita,

21

O Brasil viu surgir seus primeiros cursos superiores (não teológicos) no século XIX e sua primeira

universidade apenas no século XX, ao passo que nas colônias espanholas da América, quando da nossa

Independência em 1822, já havia mais de duas dezenas de universidades (PINTO, 2004).

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56

genericamente proclamado na Constituição outorgada, não decorreu de interesses

articulados e de reivindicações sociais organizadas, inserindo-se no texto mais como um

reconhecimento formal de um direito do que uma obrigação efetiva do Estado.

3.1.2. A Constituição de 1891

A Constituição de 1891 é bastante generosa no acolhimento dos direitos civis,

tendo como base a inflexão não intervencionista sobre o indivíduo, a propriedade e o

mercado. A partir de um regime político recém-extinto, fundamentado nas

desigualdades conformadas com a escravidão, erige-se um postulado de “sociedade de

iguais” que ignora as expressões sociais de negros recém-libertos, caboclos e índios e as

suas demandas por direitos sociais e justiça distributiva (CURY, HORTA, FÁVERO,

2005).

O texto é produto do nascimento de uma República proclamada pelo Exército,

tendo à frente um monarquista e marcada por contradições. A Assembleia Nacional

Constituinte é instalada um ano após a proclamação da República, sendo a nova

Constituição promulgada em fevereiro de 1891. Os princípios federalistas nela inscritos

buscam aumentar a autonomia das antigas províncias e a força do poder central se

mantém pela hegemonia política, enquanto os Estados exercem controle sobre a

máquina administrativa. É eliminado o Poder Moderador e são mantidos os três poderes

tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário). Institui-se o voto direto, descoberto e

reservado aos homens maiores de 21 anos, além da separação entre Estado e Igreja.

Entretanto, o voto é proibido a certas categorias sociais, como mendigos e analfabetos,

revelando-se, assim, a exclusão de um dos direitos de cidadania que somente será

superada com a Constituição de 1988 (VIEIRA, 2007).

Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na

fórma da lei.

§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para as dos

Estados:

1º Os mendigos;

2º Os analphabetos;

3º As praças de pret, exceptuandos os alumnos das escolas militares de

ensino superior;

4º Os religiosos de ordens monasticas, companhias, congregações, ou

communidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediencia,

regra, ou estatuto, que importe a renuncia da liberdade Individual.

§ 2º São inelegiveis os cidadãos não alistaveis (BRASIL, 1891).

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57

A passagem do Império para a República faz emergir anseios de um novo

projeto para a educação nacional. O texto de 1891 apresenta um número maior de

dispositivos sobre a educação que o de 1824 e traz como marcas fundantes da República

a laicidade e a separação entre os poderes:

Art. 72. A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros residentes no

paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança

individual e á propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 6.º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos (BRASIL,

1891).

Além disso,

Art. 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: (...)

30. Legislar sobre a organização municipal do Distrito Federal, bem como

sobre a policia, o ensino superior e os demais serviços que na Capital forem

reservados para o Governo da União; (...)

Art. 35. Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: (...)

2º Animar, no paiz, o desenvolvimento das lettras, artes e sciências, bem

como a immigração, a agricultura, a indústria e commercio, sem privilegios

que tolham a acção dos Governos locaes;

3º Crear instituições de ensino superior e secundario nos Estados;

4º Prover á instrucção secundaria no Districto Federal (BRASIL, 1891).

A Constituição de 1891 afirma uma tendência que se manterá constante na

história da política educacional. Termos como “animar” e “não tolher” confirmam o

tom federalista, revelando, ainda que de forma indireta, as atribuições da União em

matéria de educação: o ensino superior e a instrução secundária nos Estados e no

Distrito Federal. Assim, as demais condições para a satisfação da educação como um

direito de cidadania ficarão por conta dos Estados federados, que determinarão a

natureza, o número e a abrangência da educação pública. A configuração de um sistema

federal integrado pelo ensino secundário e superior ao lado de sistemas estaduais, com

escolas de todos os tipos e graus, estimularia a reprodução de um sistema escolar

organizado nos moldes tradicionais e de base livresca. Não há no país, ainda, uma

mentalidade voltada à pesquisa (VIEIRA, 2007).

Uma hipótese interessante para se entender o mutismo da Constituição

republicana de 1891 a respeito da gratuidade da instrução primária, quando a

Constituição Imperial de 1824 a garantia, pode ser encontrada na polêmica questão de

centralização versus descentralização. De fato, o instituto da gratuidade vigia,

formalmente, para todo o Império sob a modalidade centralizadora que o caracterizava,

em que uma lei regulava a criação de escolas de “primeiras letras” em todas as cidades,

vilas e lugares mais populosos do país. Todavia, o Ato Adicional de 1834 transferiu a

reponsabilidade de garantia da instrução primária gratuita para as províncias. Essa

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descentralização, criticada por alguns intelectuais e deputados da época, foi possível

devido à omissão das elites governantes centrais em concretizar o direito à educação,

devendo essa tarefa ficar a cargo das províncias, carentes de recursos para viabilizá-la.

Além disso, o Ato Adicional de 1834 não despertou nas assembleias provinciais a

consciência do imperativo democrático-liberal de universalizar a educação básica.

Nesse sentido, os constituintes de 1891 omitiram-se diante da questão da gratuidade do

ensino primário como princípio declarado para toda a União e mantiveram a

descentralização herdada do Ato Adicional de 1834 (CURY, HORTA, FÁVERO,

2005).

No entanto, Sucupira (2005) alerta que seria uma atitude simplista atribuir toda a

responsabilidade pelo fracasso da instrução primária no Império à descentralização

decretada pelo Ato Adicional de 1834. Não faltaram denúncias da ineficiência da ação

provincial e apelos à participação efetiva do governo central no campo da educação

primária e secundária. Enquanto as províncias, em 1874, aplicavam em instrução

pública quase 20% de suas escassas receitas, o governo central não gastava, com

educação, mais de 1% da renda total do Império. No que dizia respeito à instrução

primária e secundária, o governo central não colaborava com as províncias para ajudá-

las a cumprir a obrigação constitucional de oferecer educação básica gratuita a toda a

população.

3.1.3. A Constituição de 1934

Os anos de 1930 representam um fértil período preparado pelos movimentos

sociais da década anterior, a exemplo da fundação do Partido Comunista do Brasil em

1922 e das Revoltas Tenentistas ocorridas de 1922 a 1924, que traduzem insatisfações

contra as oligarquias dominantes e o sistema republicano vigente. Com a chegada de

Getúlio Vargas ao poder, em 1930, os conflitos políticos se materializam na Revolução

Constitucionalista de 1932. Na esfera econômica, em reação à crise do capitalismo de

1929, busca-se o desenvolvimento industrial através do modelo de substituição de

importações (VIEIRA, 2007).

O momento também é rico para a educação. Estados como Ceará, Pernambuco,

Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais deflagram reformas e é criado o

Ministério de Educação e Saúde em 1930, sendo seu primeiro ministro dirigente

Francisco Campos, jurista e político mineiro que orientou sua ação para a reforma do

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ensino secundário e superior. As ideias pedagógicas são fortemente influenciadas pelo

escolanovismo, expresso no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932, marco

referencial importante do pensamento liberal em educação, com repercussões sobre as

ideias e as reformas propostas em momentos subsequentes (VIEIRA, 2007).

Saviani (2010), ao analisar esse documento, explicita que a Educação Nova, ao

contrapor-se ao modelo tradicional, artificial e verbalista de educação, funda-se no

“caráter biológico” que permite a cada indivíduo se educar, conforme é de seu direito,

“até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem

econômica e social”. Assim procedendo, a Educação Nova assume sua verdadeira

feição social, formando a “hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”,

construída a partir de todos os grupos sociais, cujos membros seriam contemplados com

as mesmas oportunidades educacionais. Se a escola tradicional mantinha o indivíduo na

sua autonomia isolada e estéril, a nova educação, embora pragmaticamente voltada para

os indivíduos e não para as classes sociais, fundando-se sobre o princípio da vinculação

da escola com o meio social, forma para a cooperação e solidariedade entre os homens.

O documento, quando considera “o conceito moderno de Universidade e o

problema universitário no Brasil”, reporta-se às limitações do ensino superior no país,

restrito às profissões liberais (Medicina, Engenharia e Direito), advogando o

alargamento da educação superior com a criação de faculdades de ciências sociais e

econômicas; de ciências matemáticas, físicas e naturais; e de filosofia e letras. Destaca a

proeminência da pesquisa na universidade e a necessidade de organizar universidades

para garantir o estudo científico dos grandes problemas nacionais e para combater o

ceticismo, a falta de crítica, o enciclopedismo e o autodidatismo (SAVIANI, 2010).

Como uma espécie de corolário da questão universitária, o Manifesto passa a

tratar do “problema dos melhores”, ligado ao papel da universidade na formação das

elites intelectuais, compreendendo pensadores, sábios, cientistas, técnicos e educadores:

“se o problema fundamental das democracias é a educação das massas populares, os

melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma pirâmide de

base imensa”. Cabe à universidade, não por motivos econômicos, mas por diferenciação

das capacidades mediante a educação fundada na ação biológica e funcional, selecionar

os mais capazes e elevar ao máximo o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Eis,

portanto, a via para constituir a elite de que o país precisa para enfrentar a variedade de

problemas postos pela complexidade das sociedades modernas (SAVIANI, 2010).

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Esses argumentos sintetizam uma visão elitista de acesso à educação que, em

alguma medida, irá permear a história constitucional brasileira até a Constituição de

1988, que consagra o princípio meritocrático22

de ingresso no ensino superior. No

entanto, Saviani (2010) alerta que o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932,

não é um texto homogêneo, sendo possível considerá-lo um documento contraditório.

Nesse sentido, Luiz Antônio Cunha, nas várias oportunidades em que foi chamado a se

pronunciar sobre o Manifesto, chama a atenção para o caráter heterogêneo e

contraditório do texto, que expressa uma “colagem de princípios elitistas e

igualitaristas”. Como documento de política educacional, está em causa no Manifesto a

defesa da escola pública, emergindo como uma proposta de construção de um amplo e

abrangente sistema nacional de educação pública, que abarque desde a escola infantil

até a formação dos grandes intelectuais pelo ensino universitário. Ao que parece, os

princípios elitistas foram incorporados às políticas públicas de educação, enquanto os

princípios igualitaristas de formação de um sistema nacional de educação pública foram

relegados a segundo plano pelo Estado brasileiro.

Kowarick (1976) radicaliza a crítica aos fundamentos liberais de acesso à

educação e aos limites estruturais impostos pelo modo de produção capitalista à

democratização do ensino e à concretização da igualdade. As desigualdades existentes

determinam fortemente os grupos sociais que terão maior ou menor probabilidade de

estudar mais e melhor. Desse modo, a competição que marca a trajetória escolar não é

igualitária, sendo condicionada por diferentes capitais que transcendem, em muito, as

potencialidades individuais. O autor argumenta que mesmo nas sociedades capitalistas

avançadas a questão da igualdade de oportunidades e o suposto sistema de gratificações

baseado na “meritocracia” nada mais são do que expressões da ideologia burguesa

liberal.

A possibilidade de tomar o elevador educacional e subir aos patamares mais

elevados do ensino decorre de vantagens socialmente atribuídas aos

concorrentes no momento da partida. Em outros termos, não são sempre os

mais aptos que chegam ao final da corrida, mas são, em grande parte, os que

possuem determinadas condições econômicas e sócio-culturais. Os favoritos,

aqueles que poderão percorrer a trajetória educacional até os níveis mais

altos, já estão, em grande parte, de antemão escolhidos. O “background” de

uma criança ou jovem, isto é, a posição social que ocupa sua família em

termos de renda, ocupação, educação, prestígio, acesso a informações etc...,

condiciona fortemente a probabilidade do seu sucesso educacional. (...) O

22

A CF/88 assim dispõe: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a

garantia de: (...) V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,

segundo a capacidade de cada um; (...)” (BRASIL, 1988)

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61

rumo à universidade está traçado numa pista cheia de obstáculos. Ser ou não

favorito nesta prolongada e dispendiosa prova decorre de fatores que são

antes sociais – de classe – do que individuais – potencialidade (KOWARICK,

1976, p. 134).

O autor parece centralizar sua análise da reprodução das desigualdades no acesso

à educação ao marcador referente à classe social. No entanto, conforme a perspectiva

interseccional que propomos em nossa pesquisa, esse marcador precisa estar articulado

a outros eixos estruturantes de formação das hierarquias de poder nas relações sociais,

como a raça/etnia. Nesse sentido, Carvalho (2005) sustenta que a composição racial

vigente nas comunidades universitárias é um reflexo da história do Brasil após a

abolição da escravidão. O Estado brasileiro, na virada do século XIX, ao invés de

investir na qualificação dos antigos escravos, estimulou e apoiou a imigração europeia.

Devido a uma política racial deliberada de branqueamento, os europeus que chegaram

ao Brasil, também com baixa qualificação, em poucas décadas experimentaram uma

ascensão social impressionante, enquanto os negros foram sistematicamente compelidos

a viver nas margens da sociedade. Essa política de exclusão dos negros, praticada pelas

elites brasileiras, foi consistente, contínua e intensa durante todo o século XX.

Quando, no início dos anos 30, foi criada a Faculdade Nacional de Filosofia

(mais tarde Universidade do Brasil), a questão racial não foi discutida e

confirmou-se, pela ausência de questionamento, de que estaria destinada a

educar a mesma elite branca que a criara, contribuindo assim para sua

reprodução enquanto grupo. Analogamente, a Universidade de São Paulo

(USP) foi criada na mesma década sem que seus fundadores questionassem a

exclusão racial praticada no Brasil e consolidou-se, desde então, como outra

instituição de peso destinada a ampliar a elite intelectual branca do país

(CARVALHO, 2005, p. 15).

O código universalista e liberal europeu influenciou o meio social e acadêmico

brasileiro de modo alienante e autoritário, na medida em que silenciou o debate sobre as

práticas político-jurídicas, também silenciosas e sutis, mas sistemáticas e generalizadas,

de discriminação racial. A ideologia da meritocracia e do concurso, colocada e

defendida cegamente, é desvinculada de qualquer reflexão social e passa a flutuar num

vácuo histórico. É como se alguém, independente dos obstáculos que enfrentou, no

momento final da competição aberta e feroz, fosse equiparado aos seus concorrentes de

melhor capital social. Universalizou-se somente a concorrência, mas as condições para

competir permanecem desiguais. Numa perspectiva que leva em conta as desigualdades

histórica e cronicamente construídas entre brancos e negros, as noções abstratas de

concurso, de vestibular, de competição, de rendimento, de quantificação das trajetórias

individuais, precisam ser radicalmente reformuladas (CARVALHO, 2005).

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62

A Carta de 1934 é a primeira a dedicar um espaço significativo à educação, com

17 artigos, 11 dos quais em capítulo específico sobre o tema (capítulo II, arts. 148 a

158). Em linhas gerais, manteve a estrutura anterior do sistema educacional:

Art. 5º Compete privativamente á União: (...)

XIV, traçar as directrizes da educação nacional; (...)

Art. 148. Cabe á União, aos Estados e aos Municipios favorecer e animar o

desenvolvimento das sciencias, das artes, das letras e da cultura em geral,

proteger os objectos de interesse historico e o patrimonio artistico do paiz,

bem como prestar assistencia ao trabalhador intellectual.

Art. 149. A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela familia e

pelos poderes publicos, cumprindo a estes proporciona-la a brasileiros e a

estrangeiros domiciliados no paiz, de modo que possibilite efficientes

factores da vida moral e economica da Nação, e desenvolva num espírito

brasileiro a consciencia da solidariedade humana.

Art. 150. Compete á União:

a) fixar o plano nacional de educação, comprehensivo do ensino de todos

os gráos e ramos, communs e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua

execução, em todo o territorio do paiz;

b) determinar as condições de reconhecimento official dos

estabelecimentos de ensino secundário e complementar deste e dos institutos

de ensino superior, exercendo sobre elles a necessaria fiscalização;

c) organizar e manter, nos Territorios, systemas educativos apropriados

aos mesmos;

d) manter no Districto Federal ensino secundario e complementar deste,

superior e universitário;

e) exercer ação supletiva, onde se faça necessaria, por deficiencia de

iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o paiz, por

meio de estudos, inqueritos, demonstrações e subvenções.

Paragrapho unico. O plano nacional de educação constante de lei federal,

nos termos dos arts. 5.º, n. XIV, e 39, n. 8, letras a e e, só se poderá renovar

em prazos determinados, e obedecerá ás seguintes normas:

a) ensino primario integral gratuito e de frequencia obrigatoria extensivo

aos adultos;

b) tendencia á gratuidade do ensino educativo ulterior ao primario, a fim

de o tornar mais accessível;

c) liberdade de ensino em todos os gráos e ramos, observadas as

prescripções da legislação federal e da estadual;

d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no idioma

patrio, salvo o de linguas estrangeiras;

e) limitação da matricula á capacidade didactica do estabelecimento e

selecção por meio de provas de intelligencia e aproveitamento, ou por

processos objectivos apropriados á finalidade do curso;

f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino sómente

quando assegurarem a seus professores a estabilidade, emquanto bem

servirem, e uma remuneração condigna.

Art. 151. Compete aos Estados e ao Districto Federal organizar e manter

systemas educativos nos territorios respectivos, respeitadas as directrizes

estabelecidas pela União. (...)

Art. 153. O ensino religioso será de frequencia facultativa e ministrado de

accordo com os princípios da confissão religiosa do alumno, manifestada

pelos paes ou responsaveis, e constituirá materia dos horarios nas escolas

publicas primarias, secundarias, profissionaes e normaes.

Art. 154. Os estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou

profissional, officialmente considerados idoneos, serão isentos de qualquer

tributo. (...)

Art. 156. A União e os Municipios applicarão nunca menos de dez por cento,

e os Estados e o Districto Federal nunca menos de vinte por cento, da renda

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resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos systemas

educativos.

Paragrapho unico. Para a realização do ensino nas zonas ruraes, a União

reservará no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no

respectivo orçamento annual.

Art. 157. A União, os Estados e o Districto Federal reservarão uma parte dos

seus patrimonios territoriaes para a formação dos respectivos fundos de

educação.

§ 1º As sobras das dotações orçamentarias accrescidas das doações,

percentagens sobre o producto de vendas de terras publicas, taxas especiaes e

outros recursos financeiros, constituirão, na União, nos Estados e nos

Municipios, esses fundos especiaes, que serão applicados exclusivamente em

obras educativas determinadas em lei.

§ 2º Parte dos mesmos fundos se applicará em auxilios a alumnos

necessitados, mediante fornecimento gratuito de material escolar, bolsas de

estudo, assistencia alimentar, dentaria e medica, e para villegiaturas.

Art. 158. É vedada a dispensa do concurso de titulos e provas no provimento

dos cargos do magisterio oficial, bem como, em qualquer curso, a de provas

escolares de habilitação, determinadas em lei ou regulamento.

§ 1º Podem, todavia, ser contractados, por tempo certo, professores de

nomeada, nacionaes ou estrangeiros.

§ 2º Aos professores nomeados por concurso para os institutos officiaes

cabem as garantias de vitaliciedade e de inamovibilidade nos cargos, sem

prejuízo do disposto no Titulo VII. Em casos de extincção da cadeira, será o

professor aproveitado na regencia de outra, em que se mostre habilitado

(BRASIL, 1934).

A organização e a manutenção de sistemas educativos permanecem com os

Estados e o Distrito Federal. Ao lado de ideias liberais, o texto constitucional também

expressa tendências conservadoras, favorecendo o ensino religioso e apoiando o ensino

privado através da isenção de tributos. Importante matéria do texto constitucional é o

financiamento da educação: pela primeira vez, são definidas vinculações de receitas da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a educação. Ainda, é

estabelecida a reserva de parte dos patrimônios da União, dos Estados e do Distrito

Federal para a formação de fundos de educação. Outros destaques do texto de 1934 são

as normas do Plano Nacional de Educação23

e a exigência de concurso público como

forma de ingresso no magistério oficial (VIEIRA, 2007). Com relação às normas do

Plano Nacional de Educação, há a previsão de ensino primário integral, gratuito e de

frequência obrigatória, de tendência à gratuidade do ensino posterior ao primário e de

processos seletivos baseados em provas de inteligência e de aproveitamento. Todavia,

23

O Plano Nacional de Educação (PNE) é um documento referência da política educacional brasileira,

para todos os níveis de governo, que contempla um diagnóstico da educação no país e, a partir deste,

apresenta princípios, diretrizes, prioridades, metas e estratégias de ação para enfrentamento dos

problemas educacionais. Embora previsto pela primeira vez na Constituição de 1934, o primeiro PNE

somente foi elaborado em 1962, pelo Conselho Federal de Educação, como cumprimento ao estabelecido

na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961. Para um histórico do PNE, consultar:

<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ce/plano-nacional-

de-educacao/historico>. Acesso em 30 de dez. de 2015.

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esses exames tendem a funcionar, a exemplo do acesso à educação superior, como

filtros sociorraciais, que privilegiam indivíduos brancos e de classes sociais mais altas,

perpetuando desigualdades na efetivação do direito à educação.

Por fim,

Art. 139. Toda empresa industrial ou agricola, fóra dos centros escolares, e

onde trabalharem mais de cincoenta pessoas, perfazendo estas e os seus

filhos, pelo menos, dez analphabetos, será obrigada a lhes proporcionar

ensino primario gratuito (BRASIL, 1934).

Art. 108. São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18

annos, que se alistarem na fórma da lei.

Paragrapho unico. Não se podem alistar eleitores: a) os que não saibam ler e escrever;

b) as praças de pret, salvo os sargentos, do Exercito e da Armada e das

forças auxiliares do Exército, bem como os alumnos das escolas

militares de ensino superior e os aspirantes a official;

c) os mendigos;

d) os que estiverem, temporária ou definitivamente, privados dos direitos

políticos. (...)

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no

paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á

segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (...)

36) Nenhum imposto gravará directamente a profissão de escriptor, jornalista

ou professor (BRASIL, 1934).

A Constituição de 1934 também atribuiu responsabilidades sociais às empresas

com mais de 50 empregados na oferta de ensino primário gratuito, manteve a proibição

do voto aos analfabetos e mendigos e assegurou a isenção de impostos para a profissão

de professor. Tendo em vista que a garantia de ensino primário gratuito e de frequência

obrigatória, extensivo aos adultos, consta como norma a ser estabelecida pelo Plano

Nacional de Educação (PNE) e que o primeiro PNE brasileiro somente foi elaborado em

1962, é interessante constatar que o texto de 1934 tenha transferido às empresas a

responsabilidade de oferta de ensino primário gratuito.

3.1.4. A Constituição de 1937

Com Vargas no poder, a política brasileira volta a mergulhar em um novo

período autoritário, que corresponde a um processo de mudanças de amplo espectro a

partir das quais são construídas as bases para a modernização conservadora do Estado

brasileiro. São criados o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1931, e a

Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941. Direitos trabalhistas são assegurados, por

meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. No campo da educação, o

Estado Novo corresponde à retomada da centralização. Se nos anos anteriores a

autonomia dos Estados emergiu com o surgimento de vários movimentos reformistas, o

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65

início dos anos de 1940 corresponde a reformas desencadeadas pelo poder central

(VIEIRA, 2007).

De orientação oposta ao texto liberal de 1934, a Carta de 1937 é claramente

inspirada nas Constituições de regimes políticos fascistas europeus. A competência da

União é ampliada:

Art. 15. Compete privativamente à União: (...)

IX – fixar as bases e determinar os quadros da educação nacional, traçando as

diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da

infância e da juventude; (BRASIL, 1937)

A livre iniciativa é objeto do primeiro artigo dedicado à educação no texto de

1937 e o dever do Estado com a educação é colocado em segundo plano, sendo-lhe

atribuída uma função compensatória na oferta escolar:

Art. 128. A arte, a ciência e o seu ensino são livres à iniciativa individual e à

de associações ou pessôas coletivas, públicas e particulares. É dever do

Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento

de umas e de outras, favorecendo ou fundando instituições artísticas,

científicas e de ensino.

Art. 129. À infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à

educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos

Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em

todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às

suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. O ensino prevocacional

profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de

educação, o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a êsse

dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de

iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações

particulares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindicatos

económicos criar, na esfera de sua especialidade, escolas de aprendizes,

destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o

cumprimento dêsse dever e os poderes que caberão ao Estado, sôbre essas

escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem

concedidos pelo poder público (BRASIL, 1937).

É evidente uma concepção de educação pública como aquela destinada aos que

não puderem arcar com os custos do ensino privado, revelando a persistência de uma

mentalidade de desvalorização de um ensino público e de qualidade para todos e todas.

Sendo o ensino vocacional e profissional a prioridade eleita pela Constituição, com uma

visão de política educacional totalmente orientada para esse fim, o texto omite-se em

relação às outras modalidades de ensino. À ideia de gratuidade da Constituição de 1934,

o texto de 1937 contrapõe uma noção estreita e limitada, reservando a educação gratuita

às camadas sociais economicamente vulneráveis (VIEIRA, 2007):

Art. 130. O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém,

não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais

necessitados; assim, por occasião da matrícula, será exigida aos que não

alegarem, ou notòriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma

contribuição módica e mensal para a caixa escolar (BRASIL, 1937).

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66

Em matéria de ensino religioso, a Constituição de 1937 também assinala uma

tendência conservadora:

Art. 133. O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso

ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém,

constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência

compulsória por parte dos alunos (BRASIL, 1937).

A ambiguidade do texto é evidente, deixando margem a um facultativo que

acabou por tornar-se compulsório, em se considerando a hegemonia da religião católica

e a significativa presença de escolas confessionais no cenário brasileiro (VIEIRA,

2007). Além disso, é importante destacar que, ao contrário da Constituição de 1934, no

texto autoritário de 1937 não há qualquer vinculação de receitas dos entes federados

para a manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos, inexistindo, assim, uma

previsão constitucional de financiamento da educação.

3.1.5. A Constituição de 1946

A queda dos regimes políticos fascistas ao fim da Segunda Guerra Mundial

(1939-1945) enfraqueceu, no Brasil, o governo autoritário de Getúlio Vargas, onde as

insatisfações contra a Ditadura são crescentes entre os militares e entre as categorias

profissionais. As condições que levarão o país à redemocratização24

, aos poucos, vão se

consolidando. Com a queda do Estado Novo no fim de 1945, o general moderado

Eurico Gaspar Dutra assume o poder em janeiro de 1946, promulgando a nova

Constituição, orientada por princípios liberais e democráticos e que restabelece o Estado

de Direito e a autonomia federativa. Todavia, essa ordem é rompida pouco tempo

depois, quando, em 1947, ocorre a intervenção estatal em mais de uma centena de

sindicatos e é decretada a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB). No plano

econômico, o Brasil passa por um período de significativo crescimento da indústria

nacional, estimulado por uma política de restrições às importações e um regime cambial

desfavorável às exportações, com o incentivo à produção para o mercado interno

(VIEIRA, 2007).

24

Em 1945, foi realizada a Convenção Nacional do Negro, que elaborou como proposta para o texto

constitucional de 1946 uma cláusula antidiscriminatória, apresentada pelo senador constituinte Hamilton

Nogueira, da União Democrática Nacional (UDN), na Assembleia Nacional Constituinte de 1946.

Todavia, essa proposta foi duramente rejeitada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que considerava

que a cláusula restringiria o conceito de democracia e entendia, ainda, que as pautas do movimento negro

dividiam a classe trabalhadora. Esse debate ainda hoje se encontra presente no campo marxista. Alguns

autores marxistas são importantes para pensar a formação da classe trabalhadora brasileira e o racismo,

como Florestan Fernandes (QUINTANS, 2015).

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No campo da educação, as reformas realizadas mantiveram e acentuaram as

contradições entre a educação escolar das elites e a ofertada para as camadas populares.

Essa democracia de caráter limitado também se aplica às concepções pedagógicas que

circulam no período e que foram materializadas na Constituição de 1946, em que

convivem tendências conservadoras e liberais. Nesse contexto, a promulgação da

primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 4.024/1961) foi

a expressão da necessidade histórica de estruturação de um sistema nacional de

educação (VIEIRA, 2007).

De modo geral, a Carta de 1946 retoma algumas características da Constituição

de 1934, apresentando aspectos novos. No tocante à União:

Art. 5º. Compete à União: (...)

XV – legislar sôbre: (...)

d) diretrizes e bases da educação nacional; (BRASIL, 1946)

O texto de 1946 resgatou a educação como um direito de todos. Contudo, não há

um vínculo direto entre esse direito e o dever do Estado em um mesmo artigo, como

ocorreu no texto de 1934:

Art. 166. A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve

inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.

Art. 167. O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos poderes

públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem.

Art. 168. A legislação do ensino adotará os seguintes princípios:

I – o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional;

II – o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao

primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos;

III – as emprêsas industriais, comerciais e agrícolas, em que trabalhem mais

de cem pessoas, são obrigadas a manter ensino primário gratuito para os seus

servidores e filhos destes;

IV – as emprêsas industriais e comerciais são obrigadas a ministrar, em

cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que a

lei estabelecer, respeitados os direitos dos professores;

V – o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é

de matrícula facultativa e será ministrado de acôrdo com a confissão religiosa

do aluno, manifestada por êle, se fôr capaz, ou pelo seu representante legal ou

responsável; (...)

Art. 169. Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os

Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de vinte por cento

da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do

ensino.

Art. 170. A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios.

Parágrafo único. O sistema federal de ensino terá caráter supletivo,

estendendo-se a todo o país nos estritos limites das deficiências locais.

Art. 171. Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de

ensino.

Parágrafo único. Para o desenvolvimento dêsses sistemas a União cooperará

com auxílio pecuniário, o qual, em relação ao ensino primário, provirá do

respectivo Fundo Nacional (BRASIL, 1946).

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De acordo com Vieira (2007), é a primeira vez em que a expressão “ensino

oficial” aparece no texto constitucional. Esse registro tem sentido, uma vez que coloca

mais um elemento de diferenciação entre o ensino oferecido pelos Poderes Públicos e

aquele livre à iniciativa particular. Parece colocar-se a possibilidade de ensino oficial

não gratuito, pois a Constituição determina que a instrução oficial subsequente à

primária somente seja gratuita para aqueles que “provarem falta ou insuficiência de

recursos.” A determinação de que as empresas ofereçam ensino primário gratuito para

os seus empregados e filhos é novamente constitucionalizada e torna-se um princípio da

legislação de ensino, sendo mantida pela Constituição de 1967.

O ensino religioso continua a assegurar seu espaço no texto constitucional.

Como se vê, a laicidade não é garantida nas escolas oficiais, no entanto, há a conquista

formal na determinação de que a religião seja ministrada de acordo com as confissões

de cada um, embora seja difícil constatar se as religiões não católicas puderam adentrar

livremente nas escolas oficiais (VIEIRA, 2007).

A vinculação de recursos dos entes federados para a manutenção e o

desenvolvimento do ensino está presente na Carta, devendo a União colaborar com o

desenvolvimento dos sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal. Na

organização da educação escolar, mantém-se a orientação de que os Estados e o Distrito

Federal organizem os seus sistemas de ensino, cabendo à União organizar o sistema

federal de ensino, com caráter supletivo, e o dos Territórios. Desse modo, prevalece a

organização escolar que remonta às origens das primeiras determinações legais sobre a

administração da educação, característica que permanecerá ao longo da construção do

sistema de ensino no Brasil (VIEIRA, 2007).

3.1.6. A Constituição de 1967

Após vivenciar uma experiência de redemocratização, o país volta a mergulhar

em uma nova e longa fase ditatorial de sua história, inaugurada pelo golpe de 1964.

Durante o regime militar, avançaram os processos de industrialização e de urbanização

iniciados nos anos de 1930 e acelerados com o governo de Juscelino Kubitschek: houve

um aumento significativo da população urbana, a indústria passou a responder por uma

parcela expressiva do Produto Interno Bruto (PIB), sendo incrementada a produção de

bens duráveis. Depois de um período de ajuste estrutural, o ritmo de desenvolvimento

econômico acelerou-se, com o chamado “milagre econômico”, em que projetos de

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infraestrutura de grande porte são concebidos e realizados. Sob a égide da Ditadura, é

elaborado um novo marco político-jurídico para o país, representado pela Constituição

de 1967. Como essa Carta é criada antes das medidas que instauram efetivamente o

Estado de exceção, com a suspensão dos direitos individuais, as características do

regime autoritário nem sempre são visíveis no texto (VIEIRA, 2007).

Na esfera da educação, as principais reformas do período são encaminhadas

somente após a Constituição de 1967. É concebida a reforma do ensino superior, com a

Lei n. 5.540/1968, e a reforma da educação básica, a partir da Lei n. 5.692/1971, que

fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. A reforma universitária objetiva

oferecer resposta às demandas crescentes por vagas no ensino superior, através da

expansão do setor privado, formando quadros para o mercado aquecido pelo “milagre

econômico”. Analisando esse fenômeno, Moehlecke (2004, p. 32) afirma:

Em termos da expansão do sistema, no período de 1962 a 1979, o número de

alunos matriculados cresceu mais de 12 vezes, passando de 107 mil

matriculados em 1962 a 1,300 milhões em 1979. O total de novas vagas

oferecidas subiu de 47 mil para 402 mil. Quantitativamente, ampliou-se

significativamente o acesso ao ensino superior. Entretanto, esse crescimento

esteve concentrado em estabelecimentos isolados privados, que passaram de

42 mil em 1965 para 407 mil em 1974. Já a proporção de instituições de

ensino superior públicas diminuiu de 56% em 1965 para 38% em 1974

(fontes: MEC/INEP/SECC; Souza, 1975). Houve, ainda, um aumento

desproporcional dos candidatos em relação ao número de vagas. Os inscritos

ao vestibular passaram de 71 mil em 1962 para 1,559 milhões em 1979, e a

relação candidato vaga passou de 1,5 em 1962 para 3,9 em 1979. Enquanto o

número de candidatos aumentou quase 22 vezes, o número de vagas cresceu

8,5 vezes.

Nesse sentido, observam-se transformações nas desigualdades de oportunidades

educacionais. Nos anos 1960 e 1970, críticas são dirigidas ao projeto incompleto de

democratização da educação, enfatizando o descompasso e a contradição entre a visão

liberal da educação como espaço da igualdade de oportunidades, da meritocracia e das

capacidades individuais e a realidade da sociedade brasileira, marcadamente oposta, seja

no campo político, econômico, social ou cultural. O processo de expansão do ensino

superior esteve centrado no setor privado e na forma de escolas isoladas, distanciando-

se de ideais democráticos, republicanos e igualitários. A mera expansão do sistema

educacional tendeu a refletir as desigualdades de oportunidades existentes entre os

diversos grupos sociais (MOEHLECKE, 2004).

Em especial nos últimos 40 anos, ou seja, de 1960 a 2002, o país apresentou uma

grande expansão nas matrículas de graduação, com crescimento de 37 vezes. Contudo,

esse aumento se deu de forma distinta entre as redes pública e privada. Assim,

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70

enquanto, no mesmo período, as matrículas na rede privada cresceram 59 vezes, na rede

pública o aumento foi de 20 vezes. O resultado desse processo é que, se em 1960 o setor

privado respondia por 44% das matrículas de graduação, em 2002, essa participação

passou para 70%, tornando o Brasil um dos países com mais elevado grau de

privatização do nível superior. Basta dizer que a participação do setor privado nas

matrículas no Brasil é quase três vezes maior que a da média dos países da Organização

para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O resultado desse processo

foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos

e nas instituições privadas, em que é muito pequena a presença de afrodescendentes e de

pobres. Além disso, a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior do país ainda

é uma das mais baixas da América Latina, embora o grau de privatização seja um dos

mais altos do mundo (PINTO, 2004).

O fato mais marcante da política educacional brasileira depois de 1964, ou seja,

após a derrota das forças sociais nacionalistas que elaboravam um projeto socialista para

o país, foi a estagnação da rede de ensino público universitário, conjuntamente com a

expansão do ensino privado em todos os níveis de educação – o elementar, o médio e o

superior. Esse relativo abandono da educação pública por parte do Estado brasileiro é

parcialmente responsável pelo fato de que apenas 7,8% da população brasileira de 18 a

24 anos estivesse nas universidades em 1998 (GUIMARÃES, 2003). Esse autor (2003,

p. 198) destaca:

Deve-se salientar, entretanto, que a solução dada pelos governos militares ao

“problema educacional” do País não foi alterada pelos quatro governos

democráticos depois de 1985 (as administrações Sarney, Collor, Itamar e

Fernando Henrique). A linha mestra continuou sendo a expansão do sistema

superior de educação privada e a estagnação da rede pública. A rede privada

de ensino superior, que já congregava 59% dos alunos, em 1985, passou a

concentrar 62%, em 1998 (Inep, 1999). Na verdade, o ensino público

superior expandiu-se apenas pela criação de universidades estaduais ou

municipais, mas em número insuficiente para contrabalançar a retirada de

investimentos na expansão da rede pública federal. De fato, a presença do

governo federal na educação superior, medida em termos de alunado, caiu de

40%, em 1985, para 19%, em 1998 (Inep, 1999).

O modelo de expansão da educação superior adotado no Brasil, em especial a

partir da Reforma Universitária de 1968 (Lei n. 5.540/1968), em plena Ditadura Militar,

e intensificado após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB – Lei n. 9.394/1996), no governo de Fernando Henrique Cardoso, que teve como

diretriz central a abertura do setor aos agentes de mercado, não conseguiu sequer

resolver o problema do atendimento em níveis compatíveis com a riqueza do país, além

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de ter produzido uma privatização e mercantilização sem precedentes, com graves

consequências sobre a qualidade do ensino oferecido e sobre a equidade (PINTO, 2004).

Por sua vez, a reforma da educação básica pretende promover a

profissionalização do nível médio, contendo a crescente demanda sobre o ensino

superior. Do ponto de vista da organização administrativa, há uma expressiva

subordinação das unidades federadas às decisões tomadas pelo poder central, com o

aumento da intervenção dos ministérios na esfera estadual (VIEIRA, 2007).

Como a Constituição de 1967 foi formulada num contexto em que a supressão

das liberdades individuais e políticas ainda não tinha atingido o seu grau máximo, os

seus dispositivos não chegam a traduzir uma ruptura com os conteúdos das

Constituições anteriores. Antes, expressam a permanência de interesses políticos já

presentes em outras Cartas, como aqueles ligados ao ensino privado. A liberdade de

ensino, tema chave do conflito entre o público e o privado na educação, é visível no

texto produzido pelo regime militar (VIEIRA, 2007).

Art. 8º. Compete à União: (...)

XIV – estabelecer e executar planos nacionais de educação e de saúde, bem

como planos regionais de desenvolvimento;

XVII – legislar sôbre:

q) diretrizes e bases da educação nacional; normas gerais sôbre desportos;

(...)

Art. 176. A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais

de liberdade e de solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado,

e será dada no lar e na escola.

§ 1º O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Podêres Públicos.

§ 2º Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular,

a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Podêres Públicos,

inclusive mediante bôlsas de estudos.

§ 3º A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas:

I – o ensino primário sòmente será ministrado na língua nacional;

II – o ensino primário é obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e

gratuito nos estabelecimentos oficiais;

III - o ensino público será igualmente gratuito para quantos, no nível médio e

no superior, demonstrarem efetivo aproveitamento e provarem falta ou

insuficiência de recursos;

IV - o Poder Público substituirá, gradativamente, o regime de gratuidade no

ensino médio e no superior pelo sistema de concessão de bôlsas de estudos,

mediante restituição, que a lei regulará;

V – o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos

horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio;

VI – o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de

grau médio e superior dependerá, sempre, de prova de habilitação, que

consistirá em concurso público de provas e títulos, quando se tratar de ensino

oficial; e

VII – a liberdade de comunicação de conhecimentos no exercício do

magistério, ressalvado o disposto no artigo 15425

(...) (BRASIL, 1967; EC n.

1/1969).

25

Art. 154. O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime

democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual será

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Mantendo a orientação do texto de 1946, a Constituição de 1967 define a

competência da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, além

de estabelecer e executar os planos nacionais de educação. À noção de educação

enquanto direito de todos, presente no texto de 1946, é acrescida a ideia de dever do

Estado, no mesmo dispositivo. Com relação ao oferecimento do ensino, tanto a

Constituição de 1946 quanto a de 1967 definem que este é livre à iniciativa particular.

Todavia, enquanto o texto de 1946 observa que devem ser “respeitadas as leis que o

regulem”, a Carta de 1967 avança visivelmente no campo de apoio ao ensino privado,

visto que este merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive

mediante a concessão de bolsas de estudos (VIEIRA, 2007). Destaca-se, no texto, a

introdução do mecanismo de mérito demonstrado pelo “efetivo aproveitamento” e a

falta ou a insuficiência de recursos enquanto critérios para acesso ao ensino médio e

superior públicos e gratuitos (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

Guimarães (2015) situa em 1968 a primeira proposta de adoção de políticas de

ações afirmativas no mercado de trabalho para combater a discriminação racial no

Brasil. O momento político brasileiro era favorável a esse tipo de proposta. Primeiro

porque, um pouco antes, no início dos anos 1960, os Estados Unidos, referência

obrigatória para a política brasileira, pressionados por uma séria crise de legitimidade

internacional e por crescentes e violentos conflitos raciais, adotaram tais políticas.

Segundo, porque as ações afirmativas poderiam percorrer a tradição brasileira,

inaugurada por Vargas com a lei de 2/3 de reserva de vagas para os trabalhadores

nacionais.

Entretanto, essa tentativa logo fracassou, devido a alguns traços marcantes da

ideologia racial brasileira, mesmo quando professada pelas esquerdas progressistas: o

reconhecimento da discriminação racial caminhava ao lado da negação de legitimidade

de um protesto negro que pudesse ganhar contornos por demais políticos; o racismo era

tratado como preconceito, seu caráter estrutural negado e tomado como manifestações

de indivíduos e não de coletividades. Desse modo, o campo autoritário da democracia

racial permaneceu hegemônico e foi transformado em ideologia oficial do regime

militar. Portanto, o desafio colocado aos movimentos negros, a partir dos anos 1960,

declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República,

sem prejuízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa. Parágrafo único.

Quando se tratar de titular de mandato eletivo, o processo não dependerá de licença da Câmara a que

pertencer (BRASIL, 1967; EC n. 1/1969).

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consistia em problematizar o racismo enquanto mecanismo de limitações estruturais ao

desenvolvimento pessoal e coletivo dos negros (GUIMARÃES, 2015).

Esse processo só viria a amadurecer-se mais tarde, quando dois novos elementos

foram incorporados à agenda negra: a demonstração científica, para efeito de

convencimento, de que as desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros,

no Brasil, eram, de fato, raciais, ou seja, consequência de discriminações, e não uma

associação falsa entre classe e raça; e a organização de movimentos sociais fortes que

pressionassem por políticas antidiscriminatórias e redistributivas de cunho estrutural. A

primeira condição começou a se desenvolver apenas no decorrer dos anos 1980; a

segunda, em meados de 1990 (GUIMARÃES, 2015).

É relevante registrar, no texto de 1967, o retrocesso representado pela ausência

de previsão de vinculação26

dos recursos dos entes federados para a educação. A

vinculação seria reeditada muitos anos depois, por força da Emenda Constitucional (EC)

n. 24, de 1983, que inseriu o § 4º no artigo 176, dispondo que “Anualmente, a União

aplicará nunca menos de 13% (treze por cento), e os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, da receita resultante de impostos,

na manutenção e desenvolvimento do ensino.”

3.1.7. A Constituição de 1988

O fracasso político e econômico do regime militar brasileiro inaugurado em

1964 encerrou um longo período de exceção à ordem constitucional, em que as

liberdades e garantias individuais foram suspensas. Esse processo de finalização do

autoritarismo oficial e das bases políticas e jurídicas que o sustentaram motivou o início

dos debates acerca da necessidade de uma nova Lei Fundamental para o país, capaz de

atender às demandas dos diversos grupos, setores e movimentos da sociedade civil. Sob

a presidência de Ulysses Guimarães, uma Assembleia Nacional Constituinte foi

formada. Após ampla participação popular, estimulada pelos meios de comunicação –

televisão, rádio e jornais – o texto constitucional de 1988 foi promulgado.

Reagindo às experiências políticas autoritárias dos governos anteriores, a

Assembleia Constituinte traduziu, em normas programáticas, o anseio popular pelo

26

Em tema de financiamento da educação, a Constituição de 1967, reformada pela Emenda

Constitucional n. 1/1969, no artigo 15, § 3º, f, dispõe: “A intervenção nos municípios será regulada na

Constituição do Estado, sòmente podendo ocorrer quando: (...) f) não tiver havido aplicação, no ensino

primário, em cada ano, de vinte por cento, pelo menos, da receita tributária municipal. (...)”

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atendimento de aspirações de liberdade e justiça sociais, típicas de períodos de

restauração democrática (TÁCITO, 2005). Logo no início do texto, o Estado

Democrático de Direito é juridicamente instituído, de modo a estar presente a figura do

povo, e a serem valorizadas a cidadania e a soberania popular, buscando-se, para tanto,

mecanismos de democracia representativa e participativa.

Além dos direitos individuais e coletivos, a Constituição consagrou os direitos

sociais, de que são exemplos a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,

o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a

assistência aos desamparados. A Constituição de 1988, em muitas de suas dimensões

essenciais, é uma Constituição de Estado social. O Brasil procurou realizar o Estado

social e sobretudo concretizar os direitos sociais básicos por meio do poder constituinte,

no sentido de estabelecer na Carta Magna os fundamentos desse Estado e nela formular

o conjunto dos direitos sociais que o caracterizam (BONAVIDES, 2004).

A chamada Constituição cidadã introduziu mudanças substanciais em relação às

outras Cartas Políticas que a precederam. A questão da discriminação, que antes era

tratada no artigo ou parágrafo em que se definia a cidadania legal, agora ganha destaque

e importância, tornando-se tema de várias seções do texto constitucional. Há parágrafos

específicos dedicados a garantir a igualdade da cidadania contra a discriminação por

sexo, idade, estado civil, convicções filosóficas ou políticas, tipo de trabalho,

deficiência física ou mental, religião e raça ou cor. Já em seu preâmbulo a Carta traz um

repúdio ao preconceito (GEMAA, 2011). A elaboração e a implementação das

chamadas políticas de ação afirmativa ganham, assim, previsão constitucional.

Com o esgotamento do regime militar, a partir de 1978, o Brasil retoma os

anseios pelo restabelecimento do Estado de Direito e da vida democrática, havendo, em

1984, um intenso movimento por eleições diretas. Entretanto, o Congresso Nacional, em

escolha indireta, referenda os nomes de Tancredo Neves para a Presidência da

República e de José Sarney para a Vice Presidência. Devido ao falecimento de Tancredo

Neves, José Sarney assume a Presidência, acolhendo o compromisso de revogar a

legislação autoritária por meio de diversas medidas, entre elas, a instauração de uma

Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de dar ao país uma nova Carta Magna

(VIEIRA, 2007).

A Constituição de 1988 é a mais extensa de todas em matéria de educação,

tratando-a em seus diferentes níveis e modalidades e abordando os mais diversos

conteúdos.

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Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...)

XXIV – diretrizes e bases da educação nacional; (...)

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios: (...)

V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; (...)

Art. 30. Compete aos Municípios: (...)

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado,

programas de educação infantil e de ensino fundamental; (...)

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será

promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte

e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de

instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma

da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público

de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII – garantia de padrão de qualidade;

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação

escolar pública, nos termos da lei federal.

Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores

considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para

a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica,

administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio

de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1.º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas

estrangeiros, na forma da lei.

§ 2.º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e

tecnológica.

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a

garantia de:

I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)

anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela

não tiveram acesso na idade própria;

II – progressiva universalização do ensino médio gratuito;

III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,

preferencialmente na rede regular de ensino;

IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos

de idade;

V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação

artística, segundo a capacidade de cada um;

VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;

VII – atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por

meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte,

alimentação e assistência à saúde.

§ 1.º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2.º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua

oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3.º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino

fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis,

pela freqüência à escola. (...)

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Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes

condições:

I – cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (...)

Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios

organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

§ 1.º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios,

financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria

educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir

equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do

ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito

Federal e aos Municípios.

§ 2.º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na

educação infantil.

§ 3.º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino

fundamental e médio.

§ 4.º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a

assegurar a universalização do ensino obrigatório.

§ 5.º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os

Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no

mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de

transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

§ 1.º A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos

Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos

respectivos Municípios, não é considerada, para efeito do cálculo previsto

neste artigo, receita do governo que a transferir.

§ 2.º Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão

considerados os sistemas de ensino federal, estadual e municipal e os

recursos aplicados na forma do art. 213.

§ 3.º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao

atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a

universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do

plano nacional de educação.

§ 4.º Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde

previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de

contribuições sociais e outros recursos orçamentários.

§ 5.º A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a

contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma

da lei.

§ 6.º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social

do salário-educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de

alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de

ensino.

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo

ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas

em lei, que:

I – comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes

financeiros em educação;

II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária,

filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento

de suas atividades.

§ 1.º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de

estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que

demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e

cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando,

ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de

sua rede na localidade.

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§ 2.º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber

apoio financeiro do Poder Público.

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração

decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em

regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de

implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino

em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas

dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País;

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação

como proporção do produto interno bruto (BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988 mantém a competência privativa da União para legislar

sobre diretrizes e bases da educação nacional e compartilhada com os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios para proporcionar os meios de acesso à cultura, à

educação e à ciência. Com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, os

Municípios deverão manter programas de educação infantil e de ensino fundamental,

atuando, prioritariamente, nesses níveis, enquanto os Estados e o Distrito Federal

atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e médio. Em sintonia com o momento

de abertura política, a tônica do texto é a de uma “Constituição Cidadã”, expressa

principalmente nos artigos que tratam da concepção, dos princípios e dos deveres do

Estado no campo da educação, propondo a inclusão de sujeitos historicamente excluídos

desse direito, através do princípio de igualdade de condições para o acesso e a

permanência na escola (VIEIRA, 2007).

Pela primeira vez, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é reconhecido como

um direito público subjetivo, o que confere ao indivíduo o poder de ação para proteger

ou defender um bem legalmente assegurado. Daí decorre a faculdade, por parte da

pessoa, de exigir a defesa ou a proteção desse direito por parte do sujeito responsável,

ou seja, o Poder Público. Ao mesmo tempo, esse direito subjetivo tem sua face pública,

na medida em que expressa o reconhecimento de um direito relacionado ao interesse

coletivo, o que amplia a dimensão democrática da educação. Ao longo da história

brasileira, a ambiguidade entre instituições responsáveis pela garantia da oferta de

educação obrigatória talvez explique por que se levou tanto tempo para que a educação

fosse reconhecida como direito público subjetivo, auxiliando e trazendo um instrumento

jurídico-institucional capaz de transformar esse direito num caminho real de efetivação

de uma democracia educacional (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

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Trata-se da primeira Constituição a tratar da autonomia universitária e, nela, a

vinculação de recursos para a educação recebe tratamento prioritário. A liberdade de

ensino para a iniciativa privada continua com o seu espaço no texto e mantém-se a

abertura para a transferência de recursos públicos ao ensino privado. A Carta ainda

prevê lei que deverá estabelecer o Plano Nacional de Educação (PNE), além dos

esforços do Poder Público na manutenção e no desenvolvimento da educação básica e

na remuneração condigna dos trabalhadores da educação (VIEIRA, 2007).

Como pretendemos demonstrar, nas primeiras Constituições (1824 e 1891), as

referências à educação são mínimas, o que evidencia a sua pequena relevância para a

sociedade da época e a falta de uma perspectiva política capaz de democratizar o acesso

e a permanência na escola para as camadas sociais mais vulneráveis. Com o aumento

das demandas sociais relativas ao direito à educação, a presença de dispositivos

relacionados ao tema cresce significativamente nas Constituições posteriores (1934,

1937, 1946, 1967 e 1988). Todavia, as Cartas materializam as disputas e os conflitos

existentes entre os grupos sociais, em que determinados privilégios são mantidos junto

ao Estado, a exemplo do apoio público ao ensino privado, o que parece contribuir para a

perpetuação de desigualdades. Nesse sentido, a reflexão crítica sobre esses documentos

históricos permite apreciar o movimento contraditório da educação enquanto um valor

que passa a incorporar-se aos anseios sociais sem, contudo, assegurar a cidadania plena

(VIEIRA, 2007).

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4 A PERSISTÊNCIA DE DESIGUALDADES RELACIONADAS À

EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE

BRASILEIRA: O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO

INSTITUCIONAL

A construção da identidade nacional brasileira está estruturada, dentre outros

pressupostos, a partir do mito da democracia racial. A Abolição da Escravidão em 1888

e a Proclamação da República em 1889, fatos históricos que instituíram uma ordem

jurídica formalmente livre e igualitária, foram condições indispensáveis para o

estabelecimento do referido mito, visto que sem esses dois acontecimentos não se

poderia pensar em igualdade entre brancos e negros. Além dessas premissas legais, o

diálogo entre abolicionistas brasileiros e estadunidenses no século XIX, em que se

identificava a sociedade brasileira como paradisíaca frente ao inferno racial que era os

Estados Unidos, foi de suma importância para a construção do mito da democracia

racial (BERNARDINO, 2002).

Esse mito ganhou sua elaboração acadêmica, através de sistematização e status

científico para a época, por meio de Gilberto Freyre em sua obra Casa Grande &

Senzala (1933), que viria a moldar a imagem do Brasil. A tônica do texto é de otimismo

em relação a um ambiente social gestado durante a fase colonial brasileira que favorece

e é propício à ascensão social do mulato, tipo que tenderia a caracterizar o país num

futuro próximo (BERNARDINO, 2002).

E não sem certas vantagens, as de uma dualidade não de todo prejudicial à

nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo

frescor de imaginação e emoção do grande número e, de outro lado, pelo

contato, através das elites, com a ciência, com a técnica e com o pensamento

adiantado da Europa. Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual

liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de

tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. É

verdade que o vácuo entre os dois extremos ainda é enorme; e deficiente a

muitos respeitos a intercomunicação entre duas tradições de cultura. Mas não

se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical – como diria

Sorokin – o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais

democráticos, flexíveis e plásticos (FREYRE, 2003, p. 115).

Segundo Bernardino (2002), embora se tenha desenvolvido um reconhecimento

social do mestiço no Brasil, uma valorização da miscigenação, essa assimilação ocorre à

custa da depreciação do negro, que tem de enfrentar os dramas da marginalização da

sociedade brasileira. A ancestralidade africana está socialmente carregada de significado

negativo e a crença no mito da democracia racial implica um ideal de homogeneidade

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racial, que expressa que os racialmente diferentes não são bem vistos, posto que

desafiam a lógica de construção dessa identidade nacional.

A ideologia da democracia racial ganhou uma leitura popular, compartilhada

pela maioria dos brasileiros por toda a extensão geográfica do território, que se

reconhecem como “misturados” e valorizam essa “mistura”. Todavia, ao se reconhecer

e ressaltar essa mestiçagem, ocorre uma confusão entre a mistura racial no plano

biológico e as inter-relações raciais no sentido sociológico. Supõe-se, equivocadamente,

que se a primeira ocorreu sem conflito, as últimas também existiriam sem conflito

(BERNARDINO, 2002).

Entretanto, essa recusa de reconhecer raças no Brasil é uma recusa estratégica

que ocorre somente em momentos de conceder eventuais benefícios àqueles

que são identificados como membros do grupo de menor status. A não

separação de raças do ponto de vista biológico tampouco significa que elas

não estejam separadas, do ponto de vista social, da concessão de privilégios e

distribuição de punições morais, econômicas e judiciais. Neste sentido,

contrariando a interpretação racial hegemônica no Brasil e respaldado nos

diversos estudos realizados no campo das relações raciais, desde pelo menos

os estudos da Unesco, advogamos que a raça existe, não como uma categoria

biológica, mas como uma categoria social (BERNARDINO, 2002, p. 255).

No lugar da raça, admite-se, também erroneamente, que existe no Brasil uma

classificação neutra baseada apenas na cor, que pretende ser encarada como uma mera

descrição objetiva da realidade sem implicações político-econômico-sociais, tais como

discriminações e preconceitos (BERNARDINO, 2002). A categoria raça refere-se a um

conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Ao contrário, trata-se de

uma noção que denota uma forma de classificação social, gestada no mundo das

relações sociais, baseada, muitas vezes, numa atitude negativa diante de certos grupos

sociais e informada por uma ideia específica de natureza, como algo endodeterminado.

As desigualdades étnico-raciais na efetivação de direitos não podem e não devem ser

explicadas pelas vias naturais (pela inferioridade racial, por exemplo), mas por

condições históricas e sociais que não podem ser revertidas apenas pelas leis do

mercado e por políticas públicas de cunho universalista (GUIMARÃES, 2009). Assim,

a mera expansão quantitativa das oportunidades educacionais, por si só, não é capaz de

atacar, necessariamente, as desigualdades no acesso a certos níveis ou tipos de

educação, não garantindo uma efetiva democratização do ensino (MOEHLECKE,

2004).

Nesse horizonte, evitou-se, do ponto de vista oficial, reconhecer o tratamento

desigual de brasileiros em decorrência da raça, mesmo se esse reconhecimento pudesse

significar uma oportunidade para tentativas de correção das desigualdades. A recusa em

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assumir a realidade da categoria raça, tanto num sentido analítico quanto de intervenção

de políticas públicas voltadas à população negra, fez do regime brasileiro de relações

raciais um dos mais nefastos e estáveis do mundo ocidental (BERNARDINO, 2002).

A ausência de mecanismos democráticos de participação, de efetivação de

direitos e de concretização da cidadania impossibilitou a construção de uma democracia

racial substantiva, na medida em que, no caso brasileiro, essa democracia assume

através do imaginário social e político a figura de mito, notabilizando-se por um pacto

ideológico firmado. Nesse aspecto, as desigualdades socioeconômicas não guardariam

relação com o passado escravista e com o racismo contemporâneo. Como visto, essa

visão deve-se, em boa medida, à perspectiva freyreana desenvolvida no Brasil. Essa via

explicativa permitiu por muito tempo a ausência de reflexões em torno da articulação

entre marcadores sociais de raça, de classe e de gênero, por exemplo, na formação das

relações de poder e na reprodução das desigualdades sociais (PASSOS; NOGUEIRA,

2014).

Em se tratando das desigualdades étnico-raciais, o racismo consiste em um

sistema ideológico de abrangência ampla e complexa que penetra e participa da cultura,

da política e da ética, mobilizando uma série de instrumentos e de processos em favor

da manutenção e da perpetuação de privilégios e de hegemonias. Sob o racismo, uma

segregação é feita a partir da cor da pele dos indivíduos, permitindo aos mais claros

ocuparem posições superiores na hierarquia social, enquanto os mais escuros serão

mantidos nas posições inferiores. Assim, a linha de cor, ainda que guarde certa

flexibilidade em relação às diferentes tonalidades, reivindicará e resguardará, nas

disputas cotidianas e gerais, o lugar de privilégio sempre para os mais claros

(GELEDÉS, 2013).

Nesse sentido, o racismo é uma forma muito específica de naturalizar a vida

social, isto é, de explicar as desigualdades pessoais, sociais e culturais a partir de

diferenças tomadas como naturais, no interior de uma ordem estamental que legitima o

racismo e a sua naturalização. A discriminação racial, no Brasil, está atrelada a formas

estamentais baseadas no pressuposto de privilégios naturais para grupos e classes de

indivíduos. O racismo brasileiro está umbilicalmente ligado a uma estrutura social

estamental, que o naturaliza, e não à estrutura de classes, como se pensava. As

desigualdades de classe também se legitimam através da ordem estamental

(GUIMARÃES, 2009).

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Se, por um lado, a sociedade brasileira tem sido incapaz de garantir o acesso

universal à educação, à saúde, ao emprego, à habitação etc., por outro, tem discriminado

os negros, de modo que eles têm sido mais limitados que outros grupos raciais e étnicos

no acesso a bens e direitos. As desigualdades sociais, no Brasil, têm um fundamento

racial, ou seja, a cor explica parte importante da variação encontrada nos níveis de

renda, educação, saúde, habitação etc., dos brasileiros (GUIMARÃES, 2009).

Silvério (2002) destaca que os indicadores sociais mostram uma confluência

entre desigualdade econômica e desigualdade racial no Brasil. Os estudos demonstram

que a dimensão econômica explica apenas parte das desigualdades entre negros e

brancos, sendo a outra parte explicada pelo racismo, que teve uma configuração

institucional legitimada historicamente pelo Estado moderno. Esse Estado, por exemplo,

aliado às camadas sociais dominantes e perseguindo o ideal de embranquecimento da

sociedade brasileira, subsidiou a imigração europeia e impediu a diversificação

profissional entre os afro-brasileiros recém-libertos da escravidão.

Assim, minha proposta é recolocar o problema da desigualdade social entre

brancos e negros como uma dimensão fundamental da explicação da

desigualdade entre ricos e pobres. Acredito que as discriminações e os

racismos são componentes essenciais na conformação da sociedade brasileira

e operam menos no plano individual e mais no plano institucional e estrutural

(SILVÉRIO, 2002, p. 223).

Se a ambiguidade tem sido um traço característico de nossa classificação racial,

ela não tem impedido que uma parcela significativa da população negra seja

permanentemente racializada no cotidiano e que tenha assumido a sua identidade negra

de forma não ambígua e contrastante em relação ao outro, o branco. Dessa forma, as

classificações, embora importantes, não dão conta da dimensão objetiva que representou

a presença do Estado na configuração sociorracial da força de trabalho no momento

histórico da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, nem da ausência de

qualquer política pública voltada à população ex-escrava a fim de integrá-la ao novo

sistema produtivo. Assim, pode-se afirmar que a participação do Estado foi decisiva na

formação de uma sociedade livre que se funda na profunda exclusão de alguns de seus

segmentos, em especial da população negra (SILVÉRIO, 2002).

A hegemonia racial preconizada pela teoria do branqueamento está assentada

no projeto de desenvolvimento idealizado pelas elites brasileiras nos finais do

século XIX e início do século XX. E, assim, o racismo se espraia no mundo

dinâmico das relações sociais, expressando-se notadamente nas relações de

trabalho, no sistema educacional e nos mecanismos de segurança pública,

pontos de apoio para a inclusão na vida econômica e social da nascente

sociedade urbana brasileira, onde a indústria e o comércio possibilitaram a

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existência da denominada classe média (PASSOS; NOGUEIRA, 2014, p.

111).

Estudos demonstram que o racismo e a discriminação racial estão também

associados à experiência branca, que pode ser entendida como uma forma sócio

histórica de consciência nascida das relações capitalistas e das leis coloniais. Silvério

(2002, pp. 240-241) fornece alguns elementos para a compreensão desse fenômeno

psicossocial:

Essa branquitude como geradora de conflitos raciais demarca concepções

ideológicas, práticas sociais e formação cultural, identificadas com e para

brancos como de ordem “branca” e, por consequência, socialmente

hegemônica. (...) De acordo com esse raciocínio, a experiência de outros

grupos raciais (negros, pardos em geral, afrodescendentes) é descaracterizada

como de seres humanos e, por consequência, é percebida como indicadora de

desajustes no contexto de humanidade. O encontro com o “outro”

(denominado índio, escravo, preto, negro, nomenclaturas essas estabelecidas

para justificar sua desumanidade, invisibilidade e coisificação), não incluído

como membro social, permitiu aos colonizadores anglo-europeus perceberem

a branquitude como uma representação de identidade e ponto de referência

para legitimar a distinção e a superioridade, assegurando assim sua posição

de privilégio. No contexto colonial as marcas dessa identidade dominante

seriam representadas pela ordem, racionalidade e autocontrole. Os demais

grupos raciais seriam vistos como indicadores de caos, irracionalidade,

vandalismo e por meio da completa perda da auto-regulação.

O racismo institucional, também chamado de racismo sistêmico, compreende um

conjunto de mecanismos estruturais que garantem a marginalização seletiva de grupos

racialmente subordinados. Esses mecanismos operam de forma a induzir, manter e

condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas,

atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo as hierarquias

sociais e os sistemas de opressão. Trata-se de um modo de subordinar o direito e a

democracia às necessidades do racismo, atingindo coletividades a partir da priorização

ativa dos interesses dos mais claros e da negligência e deslegitimação das necessidades

dos mais escuros (GELEDÉS, 2013).

Nessa perspectiva, pode-se definir o racismo com relação a um determinado

sistema social em que grupos humanos considerados raças ou identificados por traços

raciais ou racializados (como a cor, por exemplo) são postos em situação desvantajosa

do ponto de vista econômico, político, social e cultural. Nesse caso, as desigualdades

sociais são tidas como raciais na medida em que se encontram e se comprovam

mecanismos causais, que operam no plano individual e social, e que podem ser

reduzidos à ideia de raça. Aqui, o racismo não é somente uma ideologia que justifica

desigualdades, mas é também um sistema que as reproduz. Grupos que se definem e são

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definidos por meio de atributos raciais (como a cor) ocupam, de modo permanente,

posições sociais e de poder assimétricas, resultantes do funcionamento de mecanismos

de discriminação. Os indivíduos de raça ou de cor diferentes não têm as mesmas

oportunidades de vida e não competem, em pé de igualdade, pelos mesmos recursos

sociais, culturais e econômicos (GUIMARÃES, 2009).

Em se tratando de políticas de cotas sociais e raciais, o Grupo de Estudos

Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), vinculado ao Instituto de Estudos

Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), realizou

uma pesquisa27

sobre a implementação dessas ações afirmativas nas universidades

públicas estaduais brasileiras. Constatou-se que a falta28

de padrão dessas políticas no

âmbito das instituições estaduais acarreta uma inclusão menos efetiva de alguns grupos

étnico-raciais, como os negros. Embora 32 de 38 universidades estaduais desenvolvam

alguma política afirmativa, como reserva de vagas e sistemas de bônus, há uma

tendência de prevalência das cotas sociais em detrimento das raciais, o que reforça a

sub-representação de negros no ensino superior público. Na região Sudeste, por

exemplo, 7,8% das cotas são para negros, pardos ou indígenas, apesar desses grupos

representarem 43,9% da população correspondente.

Nesse sentido, Aguiar e Piotto (2015) afirmam que a maior parte das

universidades estaduais adotou critérios sociais, que favoreciam o ingresso de alunos

oriundos de escolas públicas e de baixa renda, independente da cor ou da etnia do

candidato. Em nossa perspectiva, essa configuração das ações afirmativas no contexto

das universidades estaduais, em que é evidente a recusa da adoção proporcional de cotas

raciais, pode ser citada como um exemplo de racismo institucional.

Diferentes investigações têm indicado que, além das desvantagens econômico-

sociais, a origem étnico-racial também é fator determinante para se pensar a

marginalização operante no sistema educacional como um todo, e no ensino superior em

particular. A visibilidade estatística das desigualdades raciais consolidou-se como um

importante instrumento aliado à trajetória de luta e de reconhecimento da população

negra do país.

27

Disponível em:

<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2015/04/12/internas_polbraeco,479070/program

as-de-cotas-nas-universidades-deixam-lacunas-na-inclusao-social.shtml>. Acesso em 23 de jul. de 2015.

28

Diferentemente das instituições federais, submetidas à Lei n. 12.711/2012 (Lei de Cotas), no caso das

universidades estaduais cabe aos conselhos universitários ou ao Legislativo local definir os programas.

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Cabe ressaltar que o esforço de apresentar dados desagregados por cor ou

raça historicamente tem se constituído como uma importante estratégia para

desnaturalizar a coincidência que equivocadamente se apresenta entre

desigualdades sociais e raciais, concebendo-se a questão racial como um

mero subproduto da desigualdade socioeconômica. Ao se dar visibilidade às

desigualdades raciais, pretende-se evidenciar suas dimensões, suas

particularidades e oferecer pistas sobre os mecanismos a partir dos quais

estas desigualdades se reproduzem e se reconfiguram (IPEA, 2014, p. 13).

O acesso à educação não se dá de modo uniforme para os diferentes segmentos

sociais. Indivíduos privilegiados por sua origem têm maiores chances de estudar por

tempo mais longo, em instituições de melhor qualidade e na companhia de pessoas

igualmente privilegiadas, fatores que podem influenciar o sucesso no mundo do

trabalho. A educação é o fator isolado que mais determina as oportunidades no mercado

de trabalho, tendo papel decisivo na estratificação entre os indivíduos (RIBEIRO;

SCHLEGEL, 2015).

Os avanços nas condições de vida de mulheres e de homens negros ocorridas na

última década resultam de algumas iniciativas estatais que sustentam a política de

promoção da igualdade racial, a partir de três dimensões principais (IPEA, 2014):

1) Políticas socioeconômicas gerais que impulsionam a inclusão da população

negra, com destaque para a expansão do mercado de trabalho formal, a

valorização do salário-mínimo e a ampliação da cobertura da previdência

social e dos programas de redução da pobreza;

2) Ações para a efetivação de direitos básicos da população negra, através da

incorporação da perspectiva racial na execução de políticas setoriais, como

previsto no Programa Brasil Quilombola e no Plano Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de

Matriz Africana; e

3) Políticas de ações afirmativas para a promoção da igualdade de

oportunidades entre brancos e negros, a exemplo do estabelecimento de cotas

para negros no acesso ao ensino superior público e no Programa

Universidade para Todos (ProUni), voltado para instituições privadas.

Embora o Brasil desses últimos anos tenha vivenciado expressivas mudanças

com inserção econômico-social de certos grupos, ainda persistem os diferenciais que

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colocam os negros em desvantagem comparativamente aos brancos, nos mais diversos

indicadores utilizados. No momento em que o país passa a ampliar os direitos em vários

campos da vida social, inclusive com a adoção de ações afirmativas na educação, as

desigualdades raciais revelam-se presentes. O racismo, até mesmo com sua faceta

institucional, enquanto elemento estruturante das relações sociais brasileiras, opera no

sentido de amortecer o dinamismo do processo de inclusão social nos espaços de poder

(IPEA, 2014).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e a Secretaria de Políticas

de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) da Presidência da República divulgaram,

em dezembro de 2014, uma pesquisa cujo título é “Situação social da população negra

por estado: indicadores de situação social da população negra segundo as condições de

vida e trabalho no Brasil.” O estudo apresenta indicadores construídos a partir da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), nos anos de 2001 e de 2012, e

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2013, de acordo com

os seguintes eixos: características das famílias; escolaridade; trabalho e renda e

seguridade social.

A escolha de 2001 deve-se ao fato de ser o primeiro ano do novo século a contar

com dados da PNAD. A definição de 2012 justifica-se pelo fato de ser o último ano com

dados da PNAD disponíveis para a pesquisa. As informações relativas ao ano de 2013

foram colhidas do IBGE. Foram utilizadas as categorias “negro” e “branco”, sendo os

negros todos os que se declararam como pretos e pardos na PNAD. A contraposição

com os brancos foi feita tendo-se em vista que, somados negros e brancos, o valor

supera 98% da população brasileira, o que é extremamente representativo para o total da

sociedade29

. Como a presente investigação tem como um dos focos de análise a

democratização do ensino superior público brasileiro através das políticas afirmativas de

cotas, serão discutidos os resultados obtidos para o eixo escolaridade.

Quando se compara a escolaridade de brancos e negros, medida pelo número de

anos de estudo efetivamente concluídos, é possível notar queda nas desigualdades,

conforme apontam os dados das tabelas 1, 2 e 3:

29

Segundo dados do Censo de 2010 do IBGE, a população brasileira é composta por 50,7% de pretos e

pardos e 47,7% de brancos. O grupo negros é entendido como uma categoria descritiva que agrega os

grupos pretos e pardos.

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Tabela 1 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça e faixa de anos de estudo

concluídos, em 2001.

Até 1 ano 1 a 4 anos 5 a 8 anos 9 a 11 anos 12 anos ou mais

Brancos 9,2 24,6 26,3 26,5 13,3

Negros 19,7 29,6 28,3 19,0 3,5

Fonte: IPEA, 2014.

Tabela 2 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça e faixa de anos de estudo

concluídos, em 2012.

Até 1 ano 1 a 4 anos 5 a 8 anos 9 a 11 anos 12 anos ou mais

Brancos 6,6 16,4 21,5 33,3 22,2

Negros 12,7 19,6 26,5 31,9 9,4

Fonte: IPEA, 2014.

Tabela 3 - Percentual da população com 15 anos de idade ou mais, segundo cor ou raça e faixa de anos de estudo

concluídos, em 2013.

Até 1 ano 1 a 4 anos 5 a 8 anos 9 a 11 anos 12 anos ou mais

Brancos 7,1 15,5 20,9 33,3 23,2

Negros 13,0 18,5 26,1 32,3 10,1

Fonte: IPEA, 2014.

Considerando a população com 15 anos de idade ou mais, em 2013, 22,6% da

população branca tinha menos de quatro anos de estudo; entre os negros, esse percentual

atingiu 31,5%.

Na população branca, o percentual de pessoas com nove anos ou mais de estudo

era de 39,8% em 2001, subiu para 55,5% em 2012 e atingiu 56,5% em 2013. Na

população negra, o percentual de pessoas com igual escolaridade passou de 22,5% em

2001 para 41,3% em 2012, atingindo 42,4% em 2013.

A proporção de pessoas brancas com doze anos ou mais de estudo cresceu de

13,3% em 2001 para 22,2% em 2012 e alcançou 23,2% em 2013, enquanto entre os

negros o percentual aumentou de 3,5% em 2001 para 9,4% em 2012 e atingiu 10,1% em

2013. Percebe-se uma extrema disparidade entre brancos e negros com 12 anos ou mais

de estudo nos três anos analisados.

No que se refere à escolarização, as desigualdades entre brancos e negros estão

relacionadas a múltiplos fatores, tais como renda familiar e acesso a bens públicos. As

consequências de maior envergadura para a população negra se traduzem, entre outras,

em menor frequência escolar. Nesse debate, a ênfase tem recaído sobre a taxa de

frequência líquida, que mede o percentual de alunos em idade escolar adequada para

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uma determinada série ou etapa, em relação ao total da população daquela mesma faixa

etária. As tabelas 4, 5 e 6 medem a escolarização líquida de brancos e negros por níveis

de ensino, para 2001, 2012 e 2013, além da cobertura para as faixas etárias de até cinco

anos de idade.

Tabela 4 - Cobertura e escolarização líquida30

, segundo cor ou raça, em 2001 (em %)

Cobertura

0 a 3 anos

Cobertura

4 a 5 anos

Ensino Fundamental

(6 a 14 anos)

Ensino Médio

(15 a 17 anos)

Ensino Superior

(18 a 24 anos)

Brancos 11,4 57,4 86,4 49,6 14,1

Negros 9,6 52,7 84,0 24,4 3,2

Fonte: IPEA, 2014.

Tabela 5 - Cobertura e escolarização líquida, segundo cor ou raça, em 2012 (em %)

Cobertura

0 a 3 anos

Cobertura

4 a 5 anos

Ensino Fundamental

(6 a 14 anos)

Ensino Médio

(15 a 17 anos)

Ensino Superior

(18 a 24 anos)

Brancos 24,7 79,9 92,8 62,9 22,2

Negros 17,9 77,0 92,4 47,8 9,6

Fonte: IPEA, 2014.

Tabela 6 - Cobertura e escolarização líquida, segundo cor ou raça, em 2013 (em %)

Cobertura

0 a 3 anos

Cobertura

4 a 5 anos

Ensino Fundamental

(6 a 14 anos)

Ensino Médio

(15 a 17 anos)

Ensino Superior

(18 a 24 anos)

Brancos 26,2 83,9 92,7 63,7 23,4

Negros 20,4 79,5 92,4 49,3 10,7

Fonte: IPEA, 2014.

Os dados revelam que as taxas de escolarização líquida de negros são

expressivamente inferiores às de brancos nos ensinos médio e superior. O mesmo

acontece para a cobertura escolar na faixa de até cinco anos de idade, contudo, as

diferenças são menores. No entanto, cabe destacar que nos ensinos médio e superior as

desigualdades entre brancos e negros sofreram relevante redução nos anos analisados.

No ensino médio, em 2001, a frequência líquida dos jovens negros era metade daquela

apresentada pelos brancos; em 2013, a diferença passou a ser de 14,4%. Por sua vez,

ainda que o ensino superior seja o nível com maior desigualdade entre as taxas de

negros e brancos (a taxa dos negros foi inferior à metade da taxa dos jovens brancos em

30

A frequência líquida mede o percentual de alunos em idade escolar correta para um determinado ciclo

sobre o total da população da faixa etária prevista para o ciclo. Para as crianças de até cinco anos, a opção

foi a cobertura por faixa etária, e não por nível de ensino, já que muitas delas com idade para frequentar a

creche podem estar na pré-escola e vice-versa.

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2013), trata-se da etapa em que se verificou maior avanço da taxa da população negra

(mais de 200%). Para o ensino fundamental, as taxas de escolarização líquida

praticamente se igualaram em 2013. Ainda que declinantes, os diferenciais de

frequência escolar influenciam negativamente a inserção posterior da população negra

no mercado de trabalho.

As tabelas 7, 8 e 9 apresentam dados sobre a escolaridade da população jovem,

entre 15 e 29 anos de idade. Com recorte racial e com três faixas etárias distintas, as

tabelas mostram a situação dos jovens estudantes e fora da escola.

Tabela 7 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de escolaridade, em 2001

(em %)

Frequência escolar e escolaridade31

15 a 17 anos 18 a 24 anos 25 a 29 anos

Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros

Analfabeto 1,5 4,4 2,3 7,4 3,4 10,5

Est

ão

na

esco

la

Total na escola 83,8 77,1 34,3 30,5 12,7 10,6

Fundamental 32,9 51,9 5,4 11,8 2,3 4,1

Médio 50,5 25,0 14,4 15,3 4,1 4,0

Superior 0,4 0,2 14,5 3,3 6,3 2,4

Alfabetização de Jovens e Adultos 0,0 0,1 0,1 0,1 0,1 0,2

Est

ão

fo

ra

da

esc

ola

Total fora da escola 14,7 18,5 63,3 62,1 83,8 78,9

Sem instrução 0,3 0,7 0,7 1,4 1,1 1,9

Fundamental incompleto 10,0 14,9 21,6 32,6 31,4 42,7

Fundamental completo 2,6 2,0 8,1 7,1 10,2 9,4

Médio Incompleto 1,2 0,7 5,0 3,8 4,8 4,5

Médio Completo 0,7 0,3 25,1 16,6 25,5 18,1

Superior Incompleto - - 0,9 0,2 1,8 0,4

Superior Completo - - 2,0 0,4 9,0 1,9

Fonte: IPEA, 2014

31

Ensino Fundamental refere-se ao ensino regular ou EJA; Ensino Médio refere-se ao ensino regular,

EJA ou pré-vestibular e Ensino Superior refere-se, inclusive, ao mestrado e ao doutorado.

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Tabela 8 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de escolaridade, em 2012

(em %)

Frequência escolar e escolaridade 15 a 17 anos 18 a 24 anos 25 a 29 anos

Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros

Analfabeto 0,5 1,2 0,8 2,1 1,5 3,8

Est

ão

na

esco

la

Total na escola 86,3 82,2 33,6 25,8 13,1 9,3

Fundamental 21,9 33,6 1,5 3,4 0,5 0,8

Médio 63,2 48,1 9,6 12,7 1,1 2,0

Superior 1,2 0,4 22,4 9,7 11,6 6,4

Alfabetização de Jovens e Adultos 0,0 0,1 0,0 0,0 0,0 0,1

Est

ão

fo

ra

da

esc

ola

Total fora da escola 13,1 16,6 65,6 72,0 85,4 86,9

Sem instrução 0,3 0,6 0,7 1,2 0,9 1,2

Fundamental incompleto 5,0 9,4 8,8 17,5 10,7 21,3

Fundamental completo 2,9 3,0 7,2 9,4 7,9 10,2

Médio Incompleto 2,1 2,0 6,5 8,7 5,4 8,1

Médio Completo 2,9 1,6 34,9 32,7 37,0 37,4

Superior Incompleto 0,0 - 1,8 0,7 2,9 1,5

Superior Completo - - 5,7 1,7 20,6 7,2

Fonte: IPEA, 2014

Tabela 9 - População jovem, por cor ou raça e faixa etária, segundo condição de escolaridade, em 2013

(em %)

Frequência escolar e escolaridade

15 a 17 anos 18 a 24 anos 25 a 29 anos

Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros

Analfabeto 0,5 1,0 1,0 1,8 1,3 3,1

Est

ão

na

esco

la

Total na escola 86,1 82,7 34,0 26,6 12,6 9,4

Fundamental 20,6 32,5 1,4 3,0 0,4 1,0

Médio 64,0 49,6 8,9 12,6 1,1 1,7

Superior 1,4 0,6 23,7 10,8 11,1 6,6

Alfabetização de Jovens e Adultos 0,1 0,1 0,1 0,1 0,0 0,1

Est

ão

fo

ra

da

esc

ola

Total fora da escola 13,4 16,2 64,9 71,6 86,1 87,5

Sem instrução 0,4 0,8 1,0 1,5 1,2 1,8

Fundamental incompleto 5,1 8,6 8,1 15,6 9,4 20,4

Fundamental completo 2,4 2,9 7,2 9,3 8,2 10,3

Médio Incompleto 2,0 2,0 6,5 8,7 5,4 7,6

Médio Completo 3,4 2,0 34,7 33,6 37,5 38,3

Superior Incompleto - 0,0 1,8 1,0 3,1 1,5

Superior Completo - - 5,7 2,1 21,2 7,6

Fonte: IPEA, 2014

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O percentual de jovens analfabetos vem diminuindo com a redução das

desigualdades raciais, embora o percentual mais recente de negros analfabetos entre 25

e 29 anos seja próximo àquele registrado para jovens brancos da mesma idade há cerca

de dez anos.

A frequência à escola aumentou para os jovens em idade escolar de 15 a 17

anos, com maior elevação para os negros, e caiu para a faixa imediatamente seguinte.

Dentre outras causas, essa queda pode estar relacionada à crescente regularização do

fluxo escolar32

.

Segundo o conjunto 3 de tabelas, a evolução da escolarização no período foi

mais veloz para os negros. Contudo, os negros que vão à escola apresentam atraso

escolar em proporções mais altas do que as dos estudantes brancos. Isso é

particularmente visível na faixa etária de 15 a 17 anos, na qual a maioria dos estudantes

brancos e negros deveria estar cursando o ensino médio.

Comparativamente aos brancos, os jovens negros que não frequentam a escola

têm escolaridade inferior em todas as faixas etárias. Assim, a melhoria da situação dos

jovens negros exige políticas públicas educacionais focadas no aumento da frequência e

da permanência na escola, além de programas de elevação da escolaridade, tendo em

vista que, em 2013, 40,1% dos jovens negros de 25 a 29 anos não estudavam e não

conseguiram concluir o ensino médio e 22,2% não concluíram nem mesmo o ensino

fundamental (os percentuais são 24,2% e 10,6%, respectivamente, para jovens brancos

dessa faixa etária).

Contudo, no período analisado, a escolaridade da população negra atingiu

patamares mais elevados e os diferenciais em relação aos brancos passaram a diminuir,

pelo menos no que diz respeito a aspectos não qualitativos da formação escolar. Apesar

disso, constata-se que a população negra ainda experimenta desvantagens no acesso à

educação, com maior atraso escolar e escolaridade um tanto menor que a da população

branca.

32

Segundo avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP,

2013), a acomodação do sistema educacional, antes marcado por altas taxas de retenção, tem promovido

redução das matrículas na educação básica e na Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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5 BASES METODOLÓGICAS DA PESQUISA: PROCEDIMENTOS DE

COLETA E DE ANÁLISE DOS DADOS

O presente trabalho consistiu na realização de uma pesquisa de cunho

qualitativo, apresentando três fontes de coleta de dados: 1) alguns fragmentos de atas

das audiências públicas de duas Subcomissões temáticas específicas que compuseram a

Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988: no contexto da Comissão da Ordem

Social, a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e

Minorias e, no âmbito da Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da

Ciência e Tecnologia e da Comunicação, a Subcomissão da Educação, Cultura e

Esportes; 2) o acórdão do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) n. 186/2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou

a constitucionalidade das políticas afirmativas de cotas raciais no ensino superior; e 3)

as entrevistas semiestruturadas com secundaristas estudantes de escola pública em

Ribeirão Preto – SP.

De acordo com Triviños (2011), as abordagens qualitativas, em suas diferentes

ênfases, apresentam-se como alternativas metodológicas de superação de modelos33

tradicionalmente positivistas e quantificadores. Dois traços são reputados fundamentais

para a caracterização da pesquisa qualitativa:

Por um lado, sua tendência definida, de natureza desreificadora dos

fenômenos, do conhecimento e do ser humano; e, por outro, relacionada com

aquela, a rejeição da neutralidade do saber científico (TRIVIÑOS, 2011, p.

125).

Sobre as características assumidas pela investigação qualitativa, Bogdan e

Biklen (1994) destacam: a) O ambiente natural34

é a fonte direta de dados e o

investigador seu instrumento-chave de análise. Os pesquisadores qualitativos assumem

que o comportamento humano é significativamente influenciado pelo contexto em que

ocorre, de modo que frequentam, sempre que possível, os locais de estudo; b) Ela tende

a ser mais descritiva, descrevendo de forma narrativa em que consiste determinada

situação ou visão de mundo. Os dados incluem transcrições de entrevistas, notas de

33

Entende-se por positivismo uma concepção pautada pela aplicação, ao estudo das ciências humanas,

dos mesmos princípios e métodos das ciências naturais, resultando em premissas marcadas pelo

empirismo, mensuração, dedução, generalização e neutralidade por parte do pesquisador (TRIVIÑOS,

2011).

34

Nesse sentido, Minayo (1994, p. 105) entende por campo, na pesquisa qualitativa, “o recorte espacial

que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto de

investigação.”

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93

campo, fotografias, vídeos, documentos pessoais, memorandos e outros registros

oficiais; c) Há maior interesse pelo processo do que pelos resultados ou produtos. O

enfoque qualitativo está na história da atividade, acontecimento ou negociação de

significados do que se pretende estudar; d) Os investigadores qualitativos tendem a

analisar os seus dados de modo indutivo. As teorizações ou abstrações são construídas

na medida em que os dados particulares recolhidos vão se agrupando. Procede-se de

“baixo para cima”, num processo de análise em forma de funil, isto é, partindo-se de

uma abertura inicial que vai se tornando cada vez mais fechada e específica no extremo;

e) O significado é de importância vital na abordagem qualitativa. O pesquisador

estabelece estratégias e procedimentos que lhe permitam tomar em consideração as

experiências do ponto de vista dos informantes, buscando apreender as diferentes

perspectivas dos participantes e interessando-se pelo modo como diversas pessoas dão

sentido às suas vidas.

De um modo geral, a entrevista é a técnica mais usada nas pesquisas qualitativas.

Para Minayo (1994, pp. 109-110),

O que torna a entrevista instrumento privilegiado de coleta de informações

para as ciências sociais é a possibilidade de a fala ser reveladora de condições

estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um

deles) e ao mesmo tempo ter a magia de transmitir, através de um porta-voz,

as representações de grupos determinados, em condições históricas, sócio-

econômicas e culturais específicas.

Em sentido amplo, pode-se considerar entrevista todo o ato de comunicação

verbal. Em sentido estrito, é a colheita de informações sobre determinado tema

científico (MINAYO, 1994). Bogdan e Biklen (1994, p. 134) oferecem a seguinte

definição para entrevista de pesquisa: “Consiste numa conversa intencional, geralmente

entre duas pessoas, embora por vezes possa envolver mais pessoas (Morgan, 1988),

dirigida por uma das pessoas, com o objetivo de obter informações sobre a outra.”

Várias são as modalidades de entrevistas na pesquisa qualitativa. De acordo com

a estrutura assumida, elas podem ser de três tipos principais: entrevistas livres ou

abertas, caracterizadas pela ausência de roteiros prévios de perguntas; entrevistas

semiestruturadas, em que há a presença de um roteiro de perguntas ordenadas, mas com

respostas livres ou abertas e entrevistas fechadas ou estruturadas, caracterizadas pelo

emprego de perguntas ordenadas, com respostas fechadas (SEVERI, 2010).

Para Triviños (2011), a entrevista semiestruturada é um dos principais meios que

o investigador tem para realizar a coleta de dados porque, ao mesmo tempo em que

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valoriza a presença do pesquisador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o

informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a

investigação. Assim:

Podemos entender por entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que

parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que

interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de

interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se

recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo

espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do

foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração

do conteúdo da pesquisa (TRIVIÑOS, 2011, p. 146).

Geralmente, a entrevista semiestruturada é utilizada quando o pesquisador sabe

algo acerca da área de interesse, muitas vezes a partir da revisão bibliográfica, mas não

o suficiente para responder às perguntas centrais que formulou. A definição de alguns

critérios orientadores para a preparação e realização das entrevistas é questão

primordial, visto que interferem diretamente na qualidade das informações a partir das

quais será possível construir as análises e chegar à compreensão mais ampla do

problema delineado como objeto de pesquisa.

Esses critérios consistem em: a) Elaboração do roteiro de entrevista: é

importante que o pesquisador sirva-se de um roteiro de entrevista, composto de um

conjunto prévio de questões, de temas ou de assuntos que digam respeito diretamente

aos objetivos da pesquisa e que irão pautar e entrevista. Tal roteiro serve apenas como

um guia para o pesquisador não se distanciar dos objetivos da entrevista; b) Seleção dos

entrevistados: a descrição e delimitação dos sujeitos que irão compor o universo de

investigação, assim como as situações nas quais se darão os contatos entre pesquisador

e entrevistado, constituem um problema a ser enfrentado, pois se trata do solo sobre o

qual grande parte do trabalho será assentada; c) Questões preliminares da entrevista,

como tempo, lugar e registro: elementos como o horário, o local e a forma de registro

das entrevistas devem ser objeto de cuidado por parte do pesquisador, pois influenciam

diretamente no teor da entrevista e, consequentemente, na qualidade dos dados colhidos.

É importante que o pesquisador estabeleça horário e local da entrevista com respeito às

preferências do entrevistado e que fixe a sua duração. O investigador deve ser o mais

explícito sobre os objetivos da entrevista, tentando esclarecer a ideia do projeto que o

anima e qual a contribuição que o entrevistado pode trazer para a pesquisa. No que se

refere ao registro da entrevista, esse será feito mediante gravação, seguida de transcrição

e estudo, em conjunto com as anotações simultâneas (TRIVIÑOS, 2011).

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95

Além do conhecimento acerca dos objetivos e do tema da pesquisa, é necessário

desenvolver algumas competências que somente se constroem na reflexão suscitada

pelas leituras e pelo exercício em trabalhos dessa natureza. A postura adequada à

realização da entrevista, a capacidade de avaliar a melhor forma para formular as

perguntas e o grau de indução da resposta presente numa dada questão e o controle das

expressões corporais são habilidades importantes exigidas por essa técnica de pesquisa.

Ainda, a formação de um clima de simpatia, de confiança, de lealdade e de harmonia é

fator significativo para a criação de um vínculo entre pesquisador e entrevistado

(TRIVIÑOS, 2011).

Não há regra fixa sobre a quantidade necessária de entrevistas. O que parece

consenso entre os teóricos em abordagem qualitativa é que chega um momento,

nomeado de “saturação”, em que as informações começam a se repetir, sem que ocorra

melhoria em sua qualidade ou que leve a maiores detalhamentos.

De agosto a outubro de 2015, esforços foram empreendidos para a obtenção de

autorização institucional da Diretoria Estadual de Ensino da Região de Ribeirão Preto e

da direção da escola para a realização da pesquisa. Após dois meses de espera (de 25 de

agosto a 26 de outubro de 2015) e insistentes exigências e questionamentos acerca da

celeridade do procedimento administrativo, o Núcleo Pedagógico da Diretoria de

Ensino e a direção da escola autorizaram a realização das entrevistas com os estudantes.

Essas manifestações institucionais foram imprescindíveis para possibilitar a submissão

do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem de

Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP), conforme as instruções que

constam na Resolução n. 466/201235

do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e no

Sistema Nacional de Informações sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres

Humanos36

(SISNEP).

Com as autorizações institucionais em mãos, elaboramos a solicitação de

autorização para participação em pesquisa aos pais e/ou responsáveis pelos estudantes e

o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e submetemos a proposta ao

Comitê de Ética em 19 de novembro de 2015. Em 01 de dezembro de 2015 foi emitido

um parecer, divulgado somente em 16 de dezembro, que apontou algumas alterações

formais a serem realizadas nos documentos preparados. Tais pendências foram

35

Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>. Acesso em 06 de dez. de

2015. 36

Disponível em: <http://portal2.saude.gov.br/sisnep/Menu_Principal.cfm>. Acesso em 06 de dez. de

2015.

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96

solucionadas e novas versões dos documentos foram submetidas no dia 15 de janeiro de

2016, tendo em vista que o Comitê concede o prazo de 30 (trinta) dias, contados a partir

da divulgação do parecer, para que os ajustes elencados sejam feitos.

No dia 22 de fevereiro de 2016 o Comitê de Ética aprovou o projeto de pesquisa,

com os termos de consentimento direcionado aos pais e/ou responsáveis e aos

estudantes devidamente finalizados. Após a liberação do parecer, elaboramos o roteiro

de entrevistas e fizemos duas entrevistas-piloto com discentes do primeiro ano do curso

de graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

(FDRP/USP), recém-ingressos na instituição pelo Sistema de Seleção Unificada,

vinculado ao Exame Nacional do Ensino Médio (SISU/ENEM). Essas entrevistas-piloto

tiveram o propósito de familiarizar o pesquisador bolsista com a técnica de entrevista,

além de corrigir eventuais falhas no roteiro formulado e aperfeiçoá-lo.

Assim, pudemos iniciar a coleta de dados diretos, por meio da realização das

entrevistas semiestruturadas com os estudantes da escola pública. Realizamos nove

entrevistas, sendo três em cada período de aulas (manhã, tarde e noite), feitas entre abril

e junho de 2016. Seguimos o seguinte procedimento: através do informante-chave37

,

explicamos ao potencial entrevistado o objetivo da pesquisa e o interrogamos acerca do

seu interesse em participar do projeto. Em caso de resposta positiva, entregávamos a ele

os termos de consentimento que deveriam ser assinados38

por ele e por seus pais e/ou

responsáveis. Em seguida, marcávamos uma data e um horário na escola, no período

normal de aulas, para que o estudante devolvesse39

os termos de consentimento

devidamente assinados e, em seguida, realizássemos a entrevista. As entrevistas

apresentaram durações variadas, entre 04’32” e 52’59”, foram gravadas e

posteriormente transcritas40

.

Em primeiro lugar, pedimos que o(a) estudante nos contasse um pouco sobre a

sua história escolar até chegar à escola, a fim de que, nessa primeira interação verbal,

37

Geralmente um professor já conhecido por nós devido aos trabalhos de educação popular

desenvolvidos na escola, o informante-chave tem a função de facilitar o encontro do pesquisador com os

sujeitos que têm a informação relevante, são mais acessíveis física e socialmente, estão dispostos a

informar e são mais capazes de comunicar a informação com precisão (SEVERI, 2010).

38

Os termos de consentimento também foram assinados pelo bolsista pesquisador e pela docente

orientadora, conforme as exigências do Comitê de Ética em Pesquisa.

39

Uma via ficava com o estudante e outra, conosco.

40

Na transcrição das entrevistas, tentamos preservar o conteúdo do discurso do(a) entrevistado(a) e

respeitar o máximo possível sua fala, reproduzindo eventuais erros de sintaxe, porém garantindo o léxico

correto (SEVERI, 2010).

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97

fossem criadas as condições de confiança e de simpatia, essenciais à criação de um

vínculo entre entrevistado(a) e pesquisador. Na sequência, fizemos as perguntas

relacionadas ao nosso eixo de investigação, a partir das quais organizamos em

categorias os dados obtidos: as percepções do (a) estudante sobre vestibular, ações

afirmativas, universidade pública e direito à educação. Terminávamos a entrevista

deixando a pessoa à vontade para dizer mais a respeito de algo que considerasse

importante.

Todo o material coletado foi organizado e categorizado conforme os objetivos da

presente pesquisa, com os elementos que emergiram dos discursos dos sujeitos

participantes, de modo a tentar aproximar as compreensões dos (as) estudantes sobre

cada um dos temas em discussão.

Para a interpretação dos dados obtidos, utilizaremos o ferramental da Análise de

Conteúdo. De um modo geral, para Triviños (1987), a análise de conteúdo consiste num

conjunto de técnicas de análise das comunicações que utilizam procedimentos

sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens para obtenção de indicadores

qualitativos ou quantitativos. Sob uma perspectiva dialética, ela objetiva identificar o

conteúdo manifesto e o conteúdo latente das mensagens e dos documentos.

A análise de conteúdo utiliza-se comumente de material textual escrito,

produzido no desenvolvimento da pesquisa (entrevistas e diários de campo, por

exemplo), ou que já foram criados para outras finalidades (documentos, jornais, entre

outros). Considera-se que o texto é uma forma de expressão do sujeito. Por isso, tal

análise tem como ponto inicial a mensagem, mas não só ela: o fundamental são as

considerações sobre as condições contextuais dos seus produtores, os sentidos e as

expressões sociopolíticas mais amplas que podem ser dela extraídos, pautando-se em

uma concepção crítica de linguagem (TRIVIÑOS, 1987).

A análise de conteúdo pode receber uma abordagem mais quantitativa ou

qualitativa. Na primeira, o objetivo consiste em traçar uma frequência das

características que se repetem no conteúdo do texto. Já na abordagem qualitativa, o que

se busca considerar é a presença ou a ausência de uma dada característica ou conjunto

de características de conteúdo num determinado fragmento da mensagem. Nas duas

abordagens, a análise de conteúdo continua sendo caracterizada como uma técnica de

pesquisa que trabalha com a palavra, capaz de permitir a produção de inferências acerca

do conteúdo da comunicação de um texto, replicáveis ao seu contexto social.

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98

De acordo com Bardin (2004), a utilização da análise de conteúdo envolve

diferentes fases, organizadas em três momentos distintos: a pré-análise (envolvendo,

sobretudo, a escolha e a organização do material a ser analisado), a exploração do

material (ligada à construção das categorias analíticas) e o tratamento dos resultados,

inferência e interpretação (análise propriamente dita).

Nessa perspectiva, para a análise dos dados, privilegiaremos a busca em entender

o significado, o sentido, de modo a enfatizar a diferença, o contraste, o dissenso e a

ruptura do sentido, tendo-se em vista a formação discursiva que governa as entrevistas

(MINAYO, 1994). As palavras, valores, juízos provêm da diversidade de visões de

mundo existentes na formação social (SEVERI, 2010).

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99

6 O PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987-1988: A AÇÃO POLÍTICA DOS

MOVIMENTOS SOCIAIS E AS DISPUTAS PELO ACESSO À EDUCAÇÃO

SUPERIOR

Nesse capítulo, abordaremos o processo constituinte de 1987-1988, a partir de

dois focos de análise: as reivindicações históricas do movimento social negro por

políticas de ações afirmativas e as disputas em torno do critério constitucionalizado para

acesso à educação superior. Para tanto, lançaremos luz sobre os trabalhos desenvolvidos

por duas Subcomissões temáticas específicas que compuseram a Assembleia Nacional

Constituinte: no contexto da Comissão da Ordem Social, a Subcomissão dos Negros,

Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias e, no âmbito da Comissão da

Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, a

Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Em seguida, analisaremos o julgamento

da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 186 pelo

Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou, por unanimidade dos votos de seus

ministros, a constitucionalidade de ações afirmativas com recorte étnico-racial nas

instituições públicas de educação superior do país. Esses dois momentos da história

constitucional brasileira nos parecem campos férteis para a compreensão das tensões

entre poder constituído e poder constituinte, mediadas pela ação política dos movimento

social negro.

O processo constituinte de 1987-1988 foi antecedido por intensa mobilização

política e social, sendo um fenômeno histórico e sociológico com consequências que

transcendem a redação jurídico-constitucional das normas, como: emergência de

movimentos e de organizações sociais, reconhecimento institucional a grupos

alternativos ou marginais à ordem então vigente, inclusão de novos temas na agenda

comunitária, mudanças no comportamento político em determinados setores sociais,

construção de uma base sólida para o ideário democrático na sociedade e nas

instituições, formação de novas forças políticas etc (COELHO, 2009).

Como fenômeno político, esse processo deriva de movimentos anteriores em

setores organizados da sociedade brasileira, de oposição ao regime de exceção instalado

em 1964, de luta pela redemocratização do país e de convocação de uma Assembleia

Nacional Constituinte. Do ponto de vista jurídico-formal, o processo constituinte é

resultado do Ato Convocatório da Emenda n. 26 à Constituição de 1967, de 27 de

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novembro de 1985, e se refere à eleição do corpo constituinte, à instalação de seus

trabalhos, ao Regimento Interno e à elaboração, discussão e votação do texto

promulgado como nova Constituição Federal (COELHO, 2009).

A Assembleia Nacional Constituinte instalou-se no dia 1º de fevereiro de 1987,

sendo formada por oito Comissões Temáticas41

, cada uma compreendendo três

Subcomissões Temáticas. As Subcomissões Temáticas cuidaram de um tema ou

subtema e elaboraram dispositivos a respeito deste; já as Comissões Temáticas ficaram

encarregadas de formular um capítulo ou título a partir da agregação dos trabalhos das

respectivas Subcomissões. A sistematização dos dispositivos aprovados pelas

Comissões, a formulação do arcabouço de títulos e de capítulos e a elaboração do

Projeto de Constituição ficaram a cargo da Comissão de Sistematização. Por fim, a

discussão, a votação e a redação final do Projeto de Constituição consistiram em

atribuições do Plenário da Assembleia Nacional Constituinte (COELHO, 2009).

O processo teve muitos impasses e momentos críticos, em que diferentes visões

de sociedade e de Estado confrontaram-se intensamente. A ausência de um documento

preliminar de trabalho, um anteprojeto, e o período histórico de transição, no qual

confluem instituições e estruturas do passado e o ímpeto de mudanças e expectativas

desordenadas, tornaram a experiência de elaboração do novo texto constitucional mais

complexa, criativa e rica. Os números da Assembleia Nacional Constituinte são

expressivos: da sua instalação à promulgação da nova Constituição transcorreram 584

dias, nos quais ocorreram 330 sessões plenárias e, dependendo do critério utilizado,

41

I – Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: Subcomissão da

Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos

Direitos Coletivos e Garantias; e Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais. II – Comissão da

Organização do Estado: Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios; Subcomissão dos Estados;

e Subcomissão dos Municípios e Regiões. III – Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de

Governo: Subcomissão do Poder Legislativo; Subcomissão do Poder Executivo; e Subcomissão do Poder

Judiciário e do Ministério Público. IV – Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das

Instituições: Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos; Subcomissão de Defesa do Estado, da

Sociedade e de sua Segurança; e Subcomissão de Garantia da Constituição, Reformas e Emendas. V –

Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças: Subcomissão de Tributos, Participação e

Distribuição de Receitas; Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira; e Subcomissão do

Sistema Financeiro. VI – Comissão da Ordem Econômica: Subcomissão de Princípios Gerais,

Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e Atividade Econômica; Subcomissão da

Questão Urbana e Transporte; e Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária. VII

– Comissão da Ordem Social: Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos;

Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente; e Subcomissão dos Negros, Populações

Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. VIII – Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes,

da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes; Subcomissão

da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; e Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. É

importante destacar que, na definição das Comissões e das Subcomissões Temáticas, foi decidida a

constitucionalização de temas, ou seja, de quais conteúdos a nova Constituição trataria (COELHO, 2009).

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101

chega-se a computar 65.809 emendas apresentadas nas várias fases. No dia 05 de

outubro de 1988, é promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil com o

juramento pelos chefes dos Poderes, celebrações oficiais e populares, presença de

delegações estrangeiras e de lideranças da sociedade brasileira e pronunciamentos de

Afonso Arinos de Mello Franco e Ulysses Guimarães (COELHO, 2009).

As audiências públicas nas Subcomissões Temáticas integraram uma das formas

de participação da sociedade civil organizada e dos cidadãos no processo constituinte,

marcada por um comportamento psicossocial contraditório: de um lado desconfianças,

críticas, temores e até descrédito no processo; de outro lado, uma intensa participação.

Essas audiências públicas, num chamamento institucional e regimental da própria

Assembleia Nacional Constituinte às organizações da sociedade civil, deu à participação

perante as Subcomissões um caráter mais vigoroso, marcou definitivamente os trabalhos

das Subcomissões nas fases seguintes e contribuiu para criar uma cultura de democracia

participativa que impregna o texto constitucional e as diversas legislações posteriores

(COELHO, 2009).

Os revezes sofridos pela mobilização popular, como a derrota das eleições

diretas para a Presidência da República, a morte de Tancredo Neves, o caráter não

exclusivo do corpo constituinte, o colapso do Plano Cruzado logo após o processo

eleitoral, haviam gerado certo descrédito sobre o processo constituinte e desmobilizado

inicialmente segmentos da população em relação à participação nele. No entanto, a

sociedade brasileira constituíra, durante os anos do regime autoritário, uma gama de

movimentos e de iniciativas aglutinadoras. Mundialmente, a segunda metade do século

XX foi o período das iniciativas não governamentais e de movimentos sociais que não

se restringiram aos tradicionalmente mobilizados e atuantes setores operários e

estudantis. É o caso, entre outros, dos movimentos de meio ambiente, gênero, raça,

pequenos agricultores, sem terras, indígenas, crianças de rua, garimpeiros, comunidades

carentes, igrejas, homossexuais, empregados domésticos, consumidores, portadores de

deficiência, hansenianos, alcoólicos anônimos etc. A gênese de alguns deles mostra a

ação de militantes vivendo na clandestinidade em relação ao regime então vigente e

convivendo na base da sociedade. Esses movimentos irromperam na Constituinte e nela

encontraram sua oportunidade de participação e expressão política, superando

desânimos ou descréditos e causando um efeito ativador na sociedade (COELHO,

2009).

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102

A partir de 1985 surgiu um tipo de militância e de organização voltado

especificamente para o processo constituinte: plenários, comitês, fóruns foram

estruturados em diferentes pontos do país, sob o incentivo de diversas entidades,

militantes políticos e lideranças de diferentes áreas. Entres eles formou-se uma certa

articulação e de suas proposições consta a introdução de mecanismos como as emendas

populares42

e as audiências públicas. A Constituinte ouviu, por intermédio de suas

Subcomissões, todos os tipos de elites nacionais, bem como os setores populares,

fazendo uma síntese plural, conflituosa e inovadora do Brasil (COELHO, 2009).

Em termos de mobilização coletiva, as organizações criadas por negros e negras

ao longo da história social brasileira apresentam formas diferenciadas de expressão e

vêm desenvolvendo diversas estratégias de luta pela inclusão social da população negra

e pela superação do racismo, dos preconceitos e de todas as formas de discriminação,

independentemente das características que assumem. Desse modo, pelas diferentes

frentes de atuação, o movimento negro constitui-se num importante protagonista na luta

pela democratização da sociedade brasileira. É possível entendê-lo dentro de um

complexo jogo dialético de negação, construção e afirmação permanente da identidade

racial num processo constante de organização de forças culturais e sociais bastante

heterogêneas em torno de um projeto histórico (PASSOS; NOGUEIRA, 2014).

Guimarães (2003) identifica algumas mudanças expressivas nas bandeiras de

luta dos movimentos sociais negros ao longo da história brasileira. Na década de 1920,

as organizações negras paulistas nutriam o diagnóstico de que, embora o preconceito de

cor fosse um obstáculo ao desenvolvimento e à integração social do povo negro

brasileiro, o principal problema estaria nos próprios negros, principalmente na carência

de condições para competir no mercado de trabalho, dada a precariedade da educação

formal, a ausência de boas maneiras e a fraqueza das organizações negras, vistas como

incapazes de promover o avanço social dos membros da raça.

Com o regime democrático de 1945, esse diagnóstico foi parcialmente

abandonado pelas novas organizações negras, que passaram a dar mais ênfase à

existência do preconceito de cor no Brasil, ainda que mantivessem o foco de seus

esforços em atividades culturais, educativas e psicanalíticas, como as desenvolvidas

pelo Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro. Apesar de ocorrer o combate

42

O direito de propor emendas pelos cidadãos terminou assegurado com a exigência de trinta mil

assinaturas de eleitores (COELHO, 2009).

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103

mais intenso ao preconceito, acreditava-se que a democracia racial, característica do

país, era um ideal suficientemente forte, progressista e compatível com a mobilização

política e cultural dos negros. Com o rompimento da ordem democrática em 1964, essa

crença foi considerada uma ilusão e a democracia racial, um mito (GUIMARÃES,

2003).

Nos anos 1970, a discriminação racial tornou-se o principal alvo da mobilização

negra, com a fundação, em São Paulo em 1978, do Movimento Negro Unificado Contra

a Discriminação Racial. A pobreza negra passou a ser atribuída às desigualdades de

tratamento e de oportunidades de cunho racial, cujos responsáveis não eram mais os

negros e sua falta de união, mas o establishment branco, por meio do qual Estado e

sociedade civil difundem o racismo na sociedade brasileira (GUIMARÃES, 2003).

Numa perspectiva sociológica, cuja ênfase de análise é voltada para a ação

coletiva dos novos movimentos sociais43

, a década de 1980 foi palco de grande

movimentação na esfera pública. O movimento negro trouxe à luz tanto questões

antigas, como a histórica subalternidade da comunidade negra no espaço público mais

amplo evidenciada por indicadores sociais contundentes, quanto pautas novas, quando

reafirma as identidades negras e denuncia o racismo ainda persistente nas práticas

sociais. Revela, portanto, o longo processo histórico de falta de acesso aos bens sociais

mais básicos, como educação e justiça (PAIVA, 2011).

De modo mais amplo, entendemos que o racismo está associado a uma matriz

cultural, vigente no Brasil e na maioria dos países latino-americanos, que preside a

organização desigual e hierárquica das relações sociais, no âmbito público e privado.

Baseada em diferenças de classe, de raça e de gênero que constituem a base principal de

uma classificação social que impregnou historicamente a cultura brasileira,

estabelecendo diferentes categorias de pessoas hierarquicamente dispostas em seus

respectivos “lugares” na sociedade, essa matriz reproduz a desigualdade das relações

sociais em todos os níveis, subjazendo às práticas sociais e estruturando uma cultura

autoritária (DAGNINO, 2004). Assim,

Parte-se aqui da premissa de que a demanda por ação afirmativa nas

universidades públicas representa um fato social inexorável, resultado da

ação efetiva dos vários segmentos do movimento negro, e tornada mais eficaz

no contexto de redemocratização do país. Representa um momento exemplar

para a reflexão sociológica em torno de algumas das categorias analíticas

43

Refere-se à tese de Scherer-Warren segundo a qual a estratégia dos novos movimentos sociais é a

reivindicação prioritária por democracia participativa, comprometendo-se com processos sociais de luta

pelo acesso igualitário aos bens materiais e imateriais necessários a uma vida digna (SEVERI, 2010).

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104

mais caras da teoria social que trata da mudança social e do poder de

reivindicação de grupos que não estão contemplados no acordo societário.

Dentre essas categorias, as de “cidadania”, de “esfera pública”, de “ator

social” e de “identidade coletiva” ajudam a entender o momento em que

houve a quebra de consenso definida por Hannah Arendt como a recusa à

manutenção do arranjo social anterior, e quando novas práticas sociais se

organizam (PAIVA, 2011, p. 101).

Resultado dessas árduas lutas sociais, os anos 1990 foram marcados por uma

mudança de postura significativa, em todos os segmentos da sociedade brasileira, em

relação ao tratamento das questões envolvendo a população negra no país. O surgimento

de vários conselhos de participação da comunidade negra nas esferas municipais e

estaduais, o aumento e a divulgação de pesquisas empíricas também contribuíram para a

maior visibilidade das desigualdades sociais entre brancos e negros (SILVÉRIO, 2002).

De acordo com Guimarães (2003, p. 196):

A partir de 1988, ano do centenário da abolição da escravatura e de

promulgação da nova Constituição, as lideranças negras começaram a

desenvolver um intenso trabalho na área de defesa dos direitos civis dos

negros, principalmente aqueles garantidos pela nova carta, que tornou os

“preconceitos de raça ou de cor” em crime inafiançável e imprescritível. No

entanto, passados poucos anos, já se tornava claro para esses militantes que a

luta por direitos necessitava transpor os limites do combate aos “crimes de

racismo”. Paulatinamente, portanto, voltaram-se essas organizações para o

governo federal a demandar “ações afirmativas”, tais como o governo norte-

americano adotara nos anos 60 e o governo sul-africano de Nelson Mandela

passara a discutir. Essa demanda representou uma importante guinada na

pauta de reivindicação dos negros brasileiros, dando início a uma era de luta

contra as desigualdades sociais do País, vistas agora como “raciais”,

independentemente do combate à discriminação e ao preconceito.

No tocante ao acesso à educação superior, os jovens negros, para graduarem-se,

tinham de recorrer à rede privada de ensino, obtendo diplomas menos valorizados no

mercado de trabalho, que acentuavam ainda mais a discriminação racial de que eram

vítimas. Foram justamente os negros os primeiros a denunciarem, como discriminação,

o relativo fechamento44

das universidades públicas brasileiras aos filhos das famílias

mais pobres que, na concorrência pelo melhor treinamento em escolas de primeiro e de

segundo graus, eram vencidos pelas classes média e alta, frequentadoras dos colégios

particulares de alto custo. Desse modo, as causas da pequena absorção de negros nas

universidades brasileiras estão relacionadas à pobreza, à preparação insuficiente, ao

baixo apoio familiar e comunitário e à seletividade dos exames vestibulares, que não

44

O problema de acesso do negro brasileiro às universidades é também um problema de sua ausência nas

estatísticas universitárias. Até o ano 2000, não havia em nenhuma universidade pública brasileira registro

sobre a identidade racial ou de cor de seus alunos. Só quando a demanda por ações afirmativas para a

educação superior fez-se sentir é que surgiram as primeiras iniciativas, na forma de censos e de pesquisas

por amostra, para sanar tal deficiência (GUIMARÃES, 2003).

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deixam espaço para que outras qualidades e potencialidades dos alunos sejam avaliadas

(GUIMARÃES, 2003).

O que há de novo, portanto, é que, ao contrário dos anos 60, não foram as

classes médias “brancas”, mobilizadas em torno de ideais socialistas e

empenhadas numa política de alianças de classes, pretendendo-se, no mais

das vezes, os porta-vozes de camponeses e operários, que tomaram a cena

política. Quem empurrou a nova bandeira de luta por acesso às universidades

públicas foram os jovens que se definiam como “negros” e se pretendiam

porta-vozes da massa pobre, preta e mestiça, de descendentes dos escravos

africanos, trazidos para o País durante mais de trezentos anos de escravidão.

Essa juventude estudantil negra começa a realizar assim o ideal de luta

socialista verbalizado por Florestan Fernandes (1972): o negro seria o mais

oprimido e explorado de todos, e a sua luta a mais radical das lutas de

emancipação (GUIMARÃES, 2003, p. 199).

Dagnino (2004) analisa esse processo de aprofundamento da democracia, que se

expressa na criação de espaços públicos e na crescente participação da sociedade civil

nas discussões e na tomada de decisões relacionadas às questões e políticas públicas,

cujo marco formal é a Constituição de 1988, que consagrou o princípio democrático e

de participação social. As principais forças sociais envolvidas nesse processo

compartilham um projeto político45

democratizante e participativo, construído desde os

anos 80 em torno do alargamento da cidadania, da democracia e dos direitos sociais.

Esse projeto emerge das lutas contra o regime autoritário empreendidas por diversos

setores da sociedade civil, dentre os quais os movimentos sociais tiveram uma atuação

de destaque.

A então chamada nova cidadania, ou cidadania ampliada começou a ser

formulada pelos movimentos sociais que, a partir do final dos anos setenta e

ao longo dos anos oitenta, se organizaram no Brasil em torno de demandas de

acesso aos equipamentos urbanos como moradia, água, luz, transporte,

educação, saúde, etc. e de questões como gênero, raça, etnia, etc. Inspirada na

sua origem pela luta pelos direitos humanos (e contribuindo para a

progressiva ampliação do seu significado) como parte da resistência contra a

ditadura, essa concepção buscava implementar um projeto de construção

democrática, de transformação social, que impõe um laço constitutivo entre

cultura e política. Incorporando características de sociedades

contemporâneas, tais como o papel das subjetividades, o surgimento de

sujeitos sociais de um novo tipo e de direitos também de novo tipo, bem

como a ampliação do espaço da política, esse projeto reconhece e enfatiza o

caráter intrínseco da transformação cultural com respeito à construção da

democracia. Nesse sentido, a nova cidadania inclui construções culturais,

como as subjacentes ao autoritarismo social como alvos políticos

fundamentais da democratização. Assim, a redefinição da noção de

cidadania, formulada pelos movimentos sociais, expressa não somente uma

estratégia política, mas também uma política cultural (DAGNINO, 2004, pp.

103-104).

45

O termo projeto político está sendo empregado num sentido próximo da visão gramsciana, a fim de

designar o conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida

em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos (DAGNINO, 2004).

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106

A invenção, pelos movimentos sociais, da nova cidadania, no período de

redemocratização brasileira, se refere também à noção de direitos. Essa ideia é

redefinida e tem como ponto de partida a concepção de um direito a ter direitos, que

não se limita a previsões legais, ao acesso a direitos definidos previamente ou à efetiva

implementação de direitos formais abstratos. Tal concepção inclui a invenção e a

criação de novos direitos, que surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas.

Nesse sentido, a própria determinação do significado de direito e a afirmação de algum

valor ou ideal como um direito são objetos de luta política. Essa redefinição abrange

não somente o direito à igualdade, como também o direito à diferença, que especifica,

aprofunda e amplia o direito à igualdade (DAGNINO, 2004). Santos (1997, p. 122)

sintetiza: “(...) as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a

diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os

descaracteriza”.

No contexto do processo constituinte de 1987-1988, no âmbito da Comissão da

Ordem Social46

, a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes

e Minorias47

foi uma das mais amplas e diversificadas e realizou nove audiências

públicas nas dependências do Congresso Nacional, mais uma na aldeia Gorotire dos

índios Kayapós e uma visita à Casa de Detenção da Papuda, no Distrito Federal.

Negros, negras, indígenas, portadores e portadoras de deficiências (físicas e sensoriais)

e lideranças de movimentos, de organizações e de entidades ocuparam a maior parte dos

trabalhos da Subcomissão, sendo ouvidos também representantes de diversas outras48

minorias ou grupos discriminados. Além disso, foram realizadas, a convite, exposições

sobre negros, negras, índios e índias por especialistas em antropologia e sociologia

(COELHO, 2009).

46

Esse colegiado enfrentou temáticas variadas e importantes, contribuindo de modo marcante na

construção do texto constitucional vigente. Suas proposições, em maior parte, foram adiante e hoje

integram os Direitos Sociais (Título II – Capítulo II) e os capítulos I, II, VI e VIII do Título VIII – da

Ordem Social, além de dispositivos dispersos na Constituição (COELHO, 2009).

47

Na Subcomissão, o termo “minorias” foi constantemente considerado nas intervenções, seja para negar

o pertencimento a estas, como os negros, que argumentavam serem a maioria da população brasileira, seja

para apresentar as demandas e questionar a exclusão do grupo do acesso a direitos. A palavra “minoria”

foi utilizada em termos de exclusão, discriminação e descaso do Estado, em suma, de falta de força dentro

da sociedade brasileira (BACKES, AZEVEDO, 2009).

48

Como, por exemplo, Associação de Alcoólicos Anônimos (AAA), idosos, crianças e adolescentes,

homossexuais, talassêmicos, hansenianos, ostomizados, pastoral carcerária, hemofílicos, empregadas

domésticas, Confederação Israelita do Brasil etc (COELHO, 2009).

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107

As demandas sociais trazidas à Subcomissão contrastavam com a importância

dada a ela pelos próprios constituintes e pela imprensa, sendo difícil até mesmo a

obtenção de quórum. Essa situação incomodava aos membros presentes nas audiências e

foi mencionada por vários depoentes (BACKES, AZEVEDO, 2009).

(...) Tenho dito, sempre que se falada dívida externa, e da interna, que a

dívida principal é a dívida social, a dívida que temos de resgatar. Esta Sub-

comissão talvez comtemple o direito destas minorias, não segregando-as em

um capítulo à parte da Constituição, o que seria uma segregação legal, mas

que, em cada Capítulo da Carta do Brasil novo que vamos escrever, esteja lá,

sem discriminação, juntamente com direitos e garantias de todos os cidadãos,

o direito dessas minorias sobre as quais vamos aqui nos deter (...)

(Constituinte e Presidente Ivo Lech, na reunião do dia 07/04/1987).

Embora houvesse a consciência da importância das pautas que seriam discutidas,

manifestações de descontentamento não tardaram a acontecer:

(...) Parece-me muito significativo que, ao início dos trabalhos desta

Subcomissão, nos defrontemos já como problema de falta de quorum para

realizar as eleições. (...) O assunto que vamos abordar aqui, para incluir na

nova ordem jurídica nacional, é um assunto que foi menosprezado por

gerações e gerações de brasileiros. Acho que cabe a nós, nestes primeiros

trinta dias, na feitura do nosso relatório, todos nós, e depois no prazo que

durarem os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, resgatarmos essa

dívida que a Nação inteira, por um século e meio, tem com as minorias no

Brasil (...) (Constituinte e Relator Alcenir Guerra, na reunião do dia

07/04/1987).

(...) Eu lamento profundamente que esta Comissão tenha sido uma das

Comissões mais preteridas de todas as existentes aqui na nossa Assembléia

Nacional Constituinte. (...) Eu me surpreendo com a ausência total e absoluta

da cobertura da imprensa (...) (Constituinte Hélio Costa, na reunião do dia

07/04/1987).

No entanto, apesar da baixa frequência dos parlamentares em plenário e da

pequena cobertura da imprensa, as reuniões contavam com um grande número de

membros de grupos que compareceram, formando verdadeiras delegações organizadas.

Grande parte dos pronunciamentos apontava para a necessidade de políticas públicas

específicas ou medidas legislativas ligadas a áreas como educação, saúde, previdência

social, trabalho e outras, tratadas pelas demais Subcomissões. Na audiência do dia 28 de

abril de 1987, a primeira e única apenas com representantes do movimento negro, houve

tensões entre parlamentares e depoentes, com os primeiros questionando a dimensão

que havia sido dada à questão étnico-racial e destacando exemplos de convivência

harmônica entre negros e brancos no Brasil, e os demais contestando essa postura

(BACKES, AZEVEDO, 2009):

Eu me confesso surpreendido pela reunião. (...) Então, me parece que o

aspecto dramático de segregação colocado aqui, talvez seja um aspecto

geracional, de geração, ou um aspecto circunstancial, local, geográfico. (...)

Me parece que, realmente, a democracia, em qualquer lugar do mundo, tem

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que ser pluriracial, porque existem muitas raças. A referência aos japoneses,

eu até anotei aqui e comentava com o Sr. Presidente, a imigração japonesa foi

estimulada no Estado do Paraná a ponto de nós termos lá, hoje, centenas de

milhares de japoneses. E não estaria disposto a propiciar, a colaborar para

que a nossa Constituição tivesse qualquer artigo que propiciasse o

favorecimento a qualquer segmento racial. Nem ao negro, nem ao branco,

nem ao amarelo, nem ao índio. Eu acho que a igualdade perante a lei é de

absoluta justiça. Liberdade com igualdade. (...) A situação do negro no Brasil

não é um problema de Constituição, é um problema de educação. (...) Mas a

minha posição, hoje, como Relator, e eu posso modificá-la em relação ao que

pensam os meus colegas constituintes, é essa: na Constituição, igualdade para

todos. Não se pode privilegiar nenhum segmento, seja ele racial, seja ele

político, seja de credo, qualquer segmento. Na lei ordinária, propiciar que a

educação seja ampla, democrática, aberta, de acesso fácil a todas as pessoas e

até algo mais, providenciando que os segmentos da sociedade organizada,

universidades, os segmentos do ensino onde se detecte que haja uma

predisposição para isso, a lei possa ser rigorosa, dando o direito desse acesso.

(...) (Constituinte e Relator Alceni Guerra, na reunião do dia 28/04/1987).

Percebe-se, na fala do relator, uma concepção formal, abstrata e liberal de

igualdade, que desconsidera as relações sociais reais entre os diversos grupos étnico-

raciais, justificada a partir da ideologia da democracia racial. Refutando a tese de que a

segregação seria um “aspecto geracional” ou um “aspecto circunstancial, local,

geográfico”, a denúncia do racismo e da discriminação racial e as lutas históricas dos

negros pela igualdade aparecem nos discursos de militantes do movimento:

Desde as Constituições de 1934 e 1946, estão dizendo que todos somos

iguais perante a lei. Nós queremos, sim, mecanismos de resgate que possam

colocar o negro efetivamente numa situação de igualdade porque, até o

presente momento, somos iguais perante a lei, mas quem somos nós? Somos

as grandes populações dos presídios, da prostituição, da marginalização no

mercado de trabalho. Nós queremos, sim, que a Constituição crie

mecanismos que propiciem um efetivo “começar” em condições de igualdade

da comunidade negra neste País. (...) Nós não estamos aqui brincando de

fazer Constituição. Não queremos essa lei abstrata e geral que, de repente,

reproduz aquela história de que no Brasil não existe racismo, porque o negro

reconhece o seu lugar. Nós queremos, efetivamente, que a lei crie estímulos

fiscais para que a sociedade civil e o Estado tomem medidas concretas de

significação compensatória, a fim de implementar aos brasileiros de

ascendência africana o direito à isonomia nos setores de trabalho,

remuneração, educação, justiça, moradia, saúde, e vai por aí afora (Lélia

Gonzales, na reunião do dia 28/04/1987).

Nesse sentido, houve falas esparsas sobre a garantia da presença dos negros em

determinados espaços e atividades:

Isonomia no trabalho há que ser, nada mais, nada menos, que assegurar ao

homem negro o direito de trabalhar, de ocupar o espaço para o qual ele

estiver preparado assumir. Uma coisa é certa: em razão da marginalização

que o negro sofreu, e sofre, hoje, o negro não está preparado para assumir

todos os espaços. (...) Então a nível de isonomia o que é que nós precisamos?

Precisamos de acesso à educação, precisamos de acesso ao ensino, acesso à

tecnologia e isso tudo nós não temos conseguido (Ricardo Dias, na reunião

do dia 04/05/1987).

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Creio em que era fundamental que conseguíssemos algo mais concreto no

terreno da isonomia. Penso em algo que não chegasse ao exagero e à

demagogia, talvez, de assegurar um “X” de empregos fosse assegurado aos

negros, mas de assegurar igualdade de condições. (...) Teremos que travar

uma batalha política durante a Constituinte, e é nesta questão que tenho

insistido (Constituinte Domingos Leonelli, na reunião do dia 04/05/1987). Tenho preparada para apresentar a esta Subcomissão uma proposta que é

baseada, na realidade, no que deu certo, especialmente nos Estados Unidos,

que é o sistema de cotas. Acho que chegou o momento de a Assembléia

Nacional Constituinte, onde faz novamente a Constituição deste país, deixar

claro que o Brasil é um País onde ninguém, em são consciência, pode dizer

que não tenha alguma percentagem de sangue negro – inclusive eu - , não

saiba viver intensamente a necessidade de se criar condição para que essa

minoria tão sacrificada durante tantos anos possa ser protegida, na realidade,

pelos dispositivos constitucionais (Constituinte Hélio Costa, na reunião do

dia 28/04/1987).

A feminista negra Lélia Gonzáles, em reunião do dia 28/05/1987, apresentou

propostas na forma de dispositivos, contemplando sugestões esparsas dadas por outros

participantes (BACKES, AZEVEDO, 2009):

Todos são iguais perante à lei, que punirá, como crime inafiançável, qualquer

discriminação atentatória aos direitos humanos. §1º: Ninguém será

prejudicado ou privilegiado, em razão de nascimento, raça, cor, sexo, estado

civil, trabalho rural ou urbano, religião, orientação sexual, convicções

políticas ou filosóficas, de deficiência física ou mental, e qualquer

particularidade. § 2º O poder público, mediante programas específicos,

promoverá igualdade social, política, econômica e social. § 3º Não constitui

discriminação ou privilégio a aplicação de medidas compensatórias, visando

a implementação do princípio constitucional da isonomia a pessoas

pertencentes a, ou grupos historicamente discriminados.

Desse modo, o espaço ocupado nessa Subcomissão durante o processo

constituinte significou, para a maioria dos setores que para lá se dirigiram, dentre eles o

movimento negro, uma etapa para melhorar sua organização, conquistar direitos e

reivindicar políticas públicas de seu interesse, como as ações afirmativas (BACKES,

AZEVEDO, 2009).

Por sua vez, a Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, vinculada à

Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da

Comunicação, realizou quatro audiências públicas na área de educação, duas na área de

cultura e duas na área de esporte, totalizando oito audiências públicas. O professor

Moacir Gadotti, ao se referir à importância de criação de um sistema nacional de escola

pública, argumentou em reunião realizada no dia 18 de maio de 1987:

Não acredito que neste País haja condições de enfrentar o problema dos mais

de oito milhões de crianças que estão sem acesso à escola, na idade chamada

escolar, na atual Constituição, de 7 a 14 anos, e 52% da população que não

têm dois ou três anos de escolaridade. Isso não poderá ser enfrentado sem a

atuação decisiva do Estado, e diria exclusiva do Estado, quer dizer, a escola

pública é a única escola que pode ser a escola para todos. Enquanto existir

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essa divisão na sociedade brasileira, na escola brasileira, entre a escola

pública e a escola privada, haverá sempre os que podem pagar e os que não

podem pagar, justificando-se a idéia de que todos têm acesso, mas só têm

acesso realmente os que podem pagar. Então, eu seria, e sou um militante

dessa proposta de publicação geral da escola brasileira. (...) [A solução] passa

nitidamente por uma defesa da escola pública, mas não só uma defesa de

princípios, [mas também uma] defesa que crie mecanismos, desde [que]

garanta a escola pública para todos. (...) A criação de um sistema nacional de

escola pública, em que aqueles alunos que estão na escola pública desde o

início, tenham o ensino superior garantido prioritariamente. Essa inversão do

sistema educativo de que os alunos das escolas pagas, hoje, frequentam as

universidades públicas, eu acho um crime na educação brasileira, é uma

palavra pesada, mas acho um crime, porque é onde se verifica a

discriminação; o pobre, que frequenta a escola pública, vai ter que depois

pagar um ensino superior de baixa qualidade na maioria dos casos. Então, é

um castigo para o aluno que frequenta a escola pública básica. Creio que, em

uma legislação ordinária, isso deverá ser colocado, mas já se deveria ter

alguma pista neste texto, para que o ensino superior público seja garantido

prioritariamente àqueles que estão na escola pública básica, para criar um

sistema nacional de educação pública.

Assim, Gadotti denuncia o histórico49

de elitização da universidade pública

brasileira e defende que o texto constitucional em construção tenha alguma diretriz que

assegure, prioritariamente, o acesso à universidade pública pelos egressos de escolas

públicas básicas, para a criação de um sistema nacional de educação pública. Nesse

sentido, Waldemar Valle Martins50

, em reunião realizada no dia 29 de abril de 1987,

aponta as limitações dos exames vestibulares enquanto instrumentos reprodutores de

desigualdades no acesso à universidade:

Normalmente, advogamos a conveniência, senão a necessidade do vestibular.

A nossa preocupação, porém, é outra com relação ao acesso à universidade.

De fato, o acesso ao 3º grau é dificultado exatamente às pessoas carentes. Via

de regra, as pessoas mais aquinhoadas mandam seus filhos para as escolas

particulares, que normalmente no 1º e 2º graus são muito boas. Depois, têm

até oportunidade de fazer certos cursinhos. Somando a escola particular de 1º

e de 2º graus, essas criaturas têm maiores facilidades para passar nos

vestibulares e depois conseguir o ensino público gratuito. Exatamente

pessoas mais ricas. Ao invés, o 1º e 2º graus, feitos em escolas do Estado,

com devida vênia e respeito, hoje não atingem um bom nível. Os alunos que

fizeram essas escolas têm dificuldade para superar os vestibulares das

universidades estatais e, depois, se refugiam em cursos noturnos das escolas

particulares, o que também não aponto como desdouro, estou fazendo uma

constatação – preocupa-nos, a facilitação do acesso –, de tal forma que

houvesse ensino de boa qualidade em todas as escolas – e coloco o nosso

segundo item – que oferecessem condições, inclusive iguais oportunidades,

para que o aluno tivesse acesso ao 3º grau. (...) Com relação ao vestibular,

embora não tenhamos uma proposta firmada por consenso, ao invés daquilo

que propus hoje aqui, é o consenso, temos uma experiência que nos faz

repensar o aspecto da capacidade intelectual e também financeira do aluno.

49

Pinto (2004) chama a atenção para a baixa oferta de vagas na rede pública de educação superior, a

pequena oferta de vagas em algumas áreas e a concentração de renda do país, que contribuem para a

elitização desse nível de ensino.

50

Representa a Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (ABESC).

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111

Diversas foram as entidades ligadas à educação que participaram das audiências

públicas nessa Subcomissão. A Associação Nacional de Educação (ANDE) participa

das conferências brasileiras de educação, clama pela universalização do ensino básico,

defende a exclusividade de verbas públicas para a escola pública e é signatária da Carta

de Goiânia, fruto da IV Conferência Brasileira de Educação, realizada entre os dias 2 e

5 de setembro de 1986, na cidade de Goiânia, que pontuou alguns itens a serem inscritos

no texto constitucional (BARROS, ANDRÉS, 2009):

Os participantes da IV Conferência Brasileira de Educação reivindicam,

assim, que a nova Carta Constitucional consagre os princípios de direito de

todos os cidadãos brasileiros à educação, em todos os graus de ensino e de

dever do Estado em promover os meios para garanti-la. Ao mesmo tempo, se

comprometem a lutar pela efetivação destes princípios, organizando-se nas

suas entidades, exigindo compromissos dos candidatos às Constituintes a

nível federal e estadual e cobrando o cumprimento de medidas propostas para

a democratização da educação (Carta de Goiânia, apresentada na reunião do

dia 23/04/1987).

A Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES) é uma

entidade criada em 1981 e luta por uma educação pública, gratuita, crítica, democrática

e competente, posicionando-se pelo dever do Estado em prover ensino público, gratuito

e laico para todos, em todos os níveis, inclusive o pré-escolar. Nesse sentido, a

Confederação dos Professores do Brasil (CPB), entidade civil que congrega trinta e uma

entidades do magistério nas unidades da Federação, constituída por professores de 1º e

2º graus, defende o ensino público, gratuito e laico, em todos os níveis de escolaridade,

como direito de todo cidadão brasileiro, sem distinção de sexo, raça, idade, confissão

religiosa, filiação política ou classe social (BARROS, ANDRÉS, 2009).

Ao tratar da destinação das fontes de recursos para a educação, Míriam Limoeiro

Cardoso, da ANDES, destacou em seu depoimento a defesa da escola pública:

A escola particular deve existir sendo que tudo necessário em termos da sua

existência, economicamente, financeiramente deve ser sustentado por aqueles

que estão ligados a ela. O Estado não tem nada a ver com isso. As verbas

públicas são só para as escolas públicas. (...) O eu vemos é que a escola

particular serve como mecanismo de discriminação a mais, nesta sociedade,

que é uma sociedade profundamente marcada pela diferenciação, pela

divisão, pela dominação. Com o que não podemos concordar é que a

educação seja um veículo a tornar mais forte essa dominação. É por isso que

defendemos a escola pública. Não é que a escola particular não possa existir.

Ela pode existir. Não temos nada contra, que ela exista. No que somos contra

é que as parcas verbas destinadas à educação neste País sejam de alguma

maneira canalizadas para o ensino particular, que é um ensino elitizante, um

ensino que serve àqueles que são os dominadores. (...) O que está no fundo

dessa questão? A profunda compreensão de que o acesso à cultura é uma

questão fundamental para a humanização, é uma questão fundamental para a

criação de um homem efetivo, de um cidadão efetivo, capaz de responder

pelos destinos desta Nação, independentemente de ter nascido de uma família

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rica ou de uma família pobre. Esse acesso à cultura é questão fundamental

para a escola pública (Míriam Limoeiro Cardoso, na reunião do dia

23/04/1987).

Parece haver uma convergência entre esse depoimento e o do professor Moacir

Gadotti, no que tange à defesa de uma educação pública, democrática e acessível a

todos, nos diversos níveis. No entanto, no que diz respeito ao acesso ao ensino superior,

a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sociedade que congrega

cientistas, estudantes de pós-graduação, pesquisadores e professores universitários,

mantém sócios correspondentes fora do país e promove reuniões anuais desde 1948,

defende o vestibular como a forma mais democrática de acesso à universidade, pois

estaria baseado no mérito (BARROS, ANDRÉS, 2009).

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência não endossa propostas de

extinção dos concursos vestibulares. Conhecemos as experiências que se

desenvolvem no mundo e sabemos que, apesar de todos os problemas, os

concursos vestibulares constituem a maneira mais democrática, ainda, nas

condições da sociedade que temos, de propiciar um acesso baseado no

mérito. Claro que a nossa sociedade desigual faz com que o mérito seja,

ainda, coincidente com as situações de classe. Isso será tão menor quanto

mais o ensino público de 1º e 2º graus se desenvolva na quantidade, na

velocidade e na qualidade que nós todos desejamos. Sabemos que a extinção

dos concursos vestibulares e a substituição deles por um processo de

mensuração do conhecimento dos estudantes - as notas – ao longo do 1º e

principalmente do 2º grau, será, exclusivamente, uma maneira de reforçar o

caráter apenas propedêutico do ensino de 1º e 2º graus, absolutamente

antieducativo, antipedagógico, condenado em todo o mundo; e, em outros

países, onde esse processo está sendo utilizado, já o estão abandonando em

proveito da seleção via vestibular. O que não pode continuar acontecendo é

que os concursos vestibulares sejam como foram há algum tempo atrás, em

que o respondente passava a escolher determinadas alternativas, consideradas

certas, para computar um certo número de pontos e, com isto, conseguir a sua

vaga. Mas, isso diz respeito à maneira de se realizar o concurso vestibular,

que, certamente, é de competência de leis que não têm a dignidade de uma

Constituição e, até mesmo do âmbito interno de cada universidade (Luiz

Antônio Cunha, na reunião do dia 23/04/1987).

Embora o discurso do representante da SBPC reconheça a coincidência entre

mérito e situação de classe (não faz menção ao eixo étnico-racial, que também estrutura

desigualdades), defende os concursos vestibulares como os mecanismos de acesso à

universidade mais democráticos que existem, por propiciarem um ingresso baseado no

mérito. De fato, na correlação de forças sócio-políticas do processo constituinte de

1987-1988, a fórmula liberal de acesso à educação superior manteve51

a sua hegemonia,

tendo em vista que o artigo 208, inciso V, da Constituição Federal de 198852

dispõe:

51

Como pudemos demonstrar, em outros momentos da história constitucional brasileira, a exemplo das

Constituições de 1934 e de 1967, o exercício do direito à educação também foi condicionado à

demonstração de aproveitamento em processos seletivos. Nesse sentido, Pinto (2014, pp. 9-10) afirma:

“Desde seu início, a escola tem sido muito mais do que um local de aprendizado de conteúdos

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Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a

garantia de: (...)

V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação

artística, segundo a capacidade de cada um; (...) (BRASIL, 1988)

Assim, a universidade permanece um espaço não universalizado cujo acesso está

legalmente condicionado às capacidades de cada um. Os indicadores sociais de acesso

ao ensino superior têm demonstrado que, ao longo da trajetória escolar, ocorre o

“branqueamento” das turmas: há uma forte tendência de maior presença de brancos e de

menor número de negros na medida em que a escolaridade avança. A longa e difícil

caminhada que um estudante faz desde que ingressa no primeiro ano do ensino

fundamental até o acesso ao ensino superior funciona como um grande filtro

sociorracial que privilegia os brancos e oriundos de escolas privadas e bloqueia os

pretos e pardos e egressos de escolas públicas. Assim, a utilização do termo

“capacidade” pelo texto constitucional é ambígua, visto que existem muitos negros e

egressos de escolas públicas “capazes” e que são impedidos de exercer o seu direito

fundamental à educação (PINTO, 2003).

De acordo com Queiroz (2004), o ensino superior é um ponto privilegiado para

examinar a atuação do sistema de ensino na reprodução das desigualdades sociais.

Nesse espaço, reflete-se, de modo evidente, a seleção que se opera ao longo da

escolarização anterior. Marcadores sociais como classe, raça e gênero determinam a

equação que exclui significativas parcelas da sociedade brasileira das oportunidades de

acesso ao sistema de ensino, sobretudo no seu patamar mais elevado.

Nessa perspectiva, Pinto (2014) alerta para o risco existente em se buscar avaliar

a capacidade dos estudantes para o ingresso no ensino superior tendo por base apenas o

desempenho dos alunos em exames padronizados, como os vestibulares, visto que os

resultados dessas provas sofrem forte influência do nível socioeconômico e cultural das

famílias em que esses estudantes estão inseridos, o que acaba por reproduzir as

desigualdades no acesso à educação.

historicamente acumulados. Isso é particularmente verdadeiro no Brasil. Embora sempre proferisse um

discurso ‘conteudista’, a escola brasileira, desde os jesuítas, valorizou muito mais a formação que a

informação. Caso contrário, o que explica a secular obsessão pelas filas, pelos uniformes impecáveis,

pelos cadernos limpos e organizados, pela disciplina, pelo respeito entendido como obediência? Desde

seus primórdios, nossa escola esteve mais voltada para a seleção dos mais ajustados, sem se preocupar

por deixar pelo caminho milhões de fracassados, valendo-se para tanto de um rígido sistema de exames.”

52

Esse mesmo critério foi introduzido no artigo 4º, inciso V, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB – Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996).

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As políticas públicas historicamente direcionadas ao sistema educacional

apresentam claramente um viés discriminatório e elitista, que contribui com a

naturalização e a perpetuação de uma ordem social extremamente injusta e desigual.

Essa constatação evidencia a necessidade de políticas afirmativas capazes de

democratizar o acesso e a permanência de grupos fragilizados econômica e socialmente

no nível superior, como é o caso das cotas (PINTO, 2003).

Quanto às políticas envolvendo quotas para a educação superior, o que os

dados apresentados indicam é que os processos seletivos para esse nível de

ensino têm funcionado como um filtro étnico (que barra os afrodescendentes

e indígenas) e socioeconômico (que barra os pobres), e que, portanto, não

estão ingressando nas universidades os “mais capazes”, como define a

Constituição, mas os mais bem treinados53

. A introdução de quotas, em

especial se adotada nos cursos mais concorridos, trará um novo perfil de

aluno que, se é carente em uma série de conteúdos cobrados no vestibular (e

que geralmente são desconsiderados posteriormente nos cursos de

graduação), é rico em outros, decorrentes de um maior conhecimento do país

real, aquele onde vive a maioria da população, o que trará um ganho de

qualidade às instituições de educação superior, sem falar daqueles advindos

de uma composição social mais diversificada. Além disso, essa medida, com

certeza, terá um impacto muito positivo sobre a qualidade da educação

básica, pois trará de volta para a escola pública muitos segmentos que a

abandonaram (PINTO, 2004, pp. 753-754).

Quintans (2015), ao analisar o processo brasileiro de redemocratização da

década de 1980, chama a atenção para a importância do movimento social negro nos

debates da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/198854

e a sua incidência na

configuração do atual texto constitucional. Como procuramos pontuar, os debates no

âmbito do processo constituinte apresentaram momentos de conflitos e de consensos a

respeito das reivindicações propostas pelo movimento negro, sendo que os constituintes

negros, especialmente Benedita da Silva e Carlos Alberto Caó, tiveram um papel

fundamental na apresentação e na defesa das pautas negras.

Após a realização das audiências públicas da Subcomissão dos Negros,

Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, o relator apresentou o

anteprojeto, que foi discutido e votado pelos membros. Esse documento foi dividido em

seis itens: direitos e garantias, negros, populações indígenas, pessoas portadoras de

deficiência, minorias e eficácia constitucional. Dentre os direitos dos negros, o

53

Em outro estudo, Pinto (2014) realiza lúcida crítica ao modelo de educação das escolas privadas,

propedêutico e alienado, predominantemente voltado para a aprovação em exames vestibulares e sem

preocupação com a formação para o exercício da cidadania, da autonomia, do pensar crítico, da

articulação entre teoria e prática e do domínio dos fundamentos do mundo do trabalho, como estabelece a

legislação.

54

Quintans (2015) destaca o fato de a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 ser formada

majoritariamente por constituintes (deputados e senadores) conservadores, homens e brancos.

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115

anteprojeto incorporou várias reivindicações formuladas pelo movimento negro nas

audiências públicas, como o princípio da não discriminação; o direito à terra das

comunidades remanescentes de quilombos; as políticas de ações afirmativas aos negros

na educação, na saúde, na alimentação, dentre outras áreas; a proibição de que o Brasil

mantivesse relações diplomáticas com Estados que adotassem regimes políticos de

segregação racial, como o apartheid na África do Sul; a criminalização do racismo; a

valorização da cultura negra; dentre outras ( QUINTANS, 2015).

Entretanto, ao longo do processo constituinte, vários direitos reivindicados pelo

movimento negro não foram incorporados ao texto final da Constituição. Na Comissão

de Sistematização55

, ocorreram várias mudanças na temática negra, a exemplo da

retirada do dispositivo impedindo que o Brasil mantivesse laços de qualquer natureza

com países assumidamente racistas. As políticas afirmativas e compensatórias

defendidas pelo movimento negro também foram excluídas do texto constitucional. No

entanto, outros temas foram mantidos até o fim do processo constituinte, alguns com

uma série de mudanças e outros preservados, mas remetidos aos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT), como o direito à terra das comunidades

quilombolas (QUINTANS, 2015). Ao que parece, o entendimento da educação superior

como espaço cujo acesso está condicionado às capacidades individuais (princípio

meritocrático) tornou-se hegemônico e impediu a constitucionalização das

reivindicações do movimento negro por ações afirmativas na educação, oriundas da

Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias,

pertencente à Comissão da Ordem Social.

O texto final aprovado materializa as relações de poder existentes na sociedade

brasileira e presentes na Assembleia Nacional Constituinte. Algumas pautas do

movimento negro foram incorporadas aos princípios constitucionais do Estado

brasileiro, aos direitos e garantias fundamentais, à ordem social e aos ADCT, dentre

elas: o princípio da não discriminação por cor/raça (artigo 3º, inciso IV); repúdio ao

racismo nas relações internacionais (artigo 4º, inciso VIII); o princípio da igualdade

(artigo 5º, caput); a criminalização do racismo como crime inafiançável e imprescritível

55

A Comissão de Sistematização foi composta pelos relatores das Subcomissões Temáticas, presidentes e

relatores das Comissões Temáticas e representantes dos partidos, distribuídos proporcionalmente. Tinha

como objetivo compatibilizar os diversos anteprojetos aprovados nas Comissões Temáticas, organizar o

projeto de Constituição e apresentá-lo para seus membros que poderiam emitir emendas de adequação do

projeto com os anteprojetos oriundos das Comissões Temáticas. O relator da Sistematização daria parecer

sobre as emendas e submeteria o projeto de Constituição à votação. Depois de aprovado, este seria

submetido ao Plenário da Assembleia Nacional Constituinte (PINHEIRO, 2005).

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116

(artigo 5º, inciso XLII); a liberdade religiosa (artigo 5º, incisos VI, VII e VIII); os

direitos dos trabalhadores com a proibição de diferença de salários, de exercício de

funções e de critério de admissão por motivo de cor e sexo (artigo 7º, inciso XXX);

direitos educacionais e culturais, como a exigência de que o ensino de história do Brasil

leve em consideração as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação

do povo brasileiro (artigo 242, §1º); direitos culturais e territoriais dos quilombolas

(artigos 215 e 216 da Constituição de 1988 e artigo 68 dos ADCT) (QUINTANS,

2015).

Pinheiro (2005) assinala que, apesar de suas limitações, a Constituição Federal

de 1988 é democrática em diversos sentidos. Com contradições, é a Carta que mais

consagra direitos e incorpora conquistas sociais, apesar da diferença entre os avanços

nos direitos civis e políticos e a ausência de garantias nos direitos sociais. Por conter

tendências conflitantes, a Constituição pode ser reforçada pelos Poderes Públicos tanto

na sua dimensão progressista quanto nos seus aspectos conservadores. Assim, o texto

constitucional não resolveu o conflito social, mas incorporou-o. É nesse complexo e

tortuoso processo de conflitos e de negociações em torno dos projetos político-sociais

conservador e democrático que podemos encontrar as explicações para os resultados

atingidos.

Nesse cenário, é importante destacar a influência das concepções políticas

neoliberais no processo de afirmação dos direitos sociais e de consolidação do Estado

democrático. As chamadas políticas neoliberais, engendradas a partir do governo de

Fernando Collor de Melo (1990-1992), atacaram muitas das conquistas sociais

espelhadas no texto da Constituição da República.

Diferentemente do que ocorre com o liberalismo político, o neoliberalismo

econômico contemporâneo não tem compromisso com a defesa da democracia, podendo

até prescindir dessa forma de Estado - haja vista que a experiência pioneira neoliberal

na América Latina ocorreu durante a ditadura militar chilena. O discurso neoliberal

procura demonstrar a superioridade do mercado frente à ação estatal. Concorrência,

sistema de preços e soberania do consumidor seriam elementos indissociáveis de um

mecanismo único, o mercado, que estaria na base da riqueza, da liberdade e do

desenvolvimento humano. Nesse sentido, justificam-se os principais efeitos das

políticas neoliberais: privatizações, redução dos gastos sociais por parte do Estado e

desregulamentação do mercado de trabalho (BOITO JÚNIOR, 1998).

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117

Assim, o Estado seria incapaz de universalizar o acesso a serviços públicos

essenciais, uma vez que

Se o Estado, preocupado em assegurar o bem estar, detiver o monopólio da

oferta dos serviços de saúde ou de educação, a concorrência deixaria de

existir e o consumidor deixaria de ser soberano. Ele não teria mais como

punir o desperdício ou a ineficiência, abandonando os estabelecimentos de

educação ou de saúde de má qualidade. (...) No plano político, a ação

econômica do Estado criaria privilégios para alguns e dependência para

muitos. Os cidadãos habituar-se-iam ao paternalismo do Estado e, assim,

deixariam de desenvolver sua capacidade de iniciativa para resolver seus

próprios problemas. Quando os serviços públicos e a segurança social são

oferecidos pelo Estado aos cidadãos, esses assumiriam uma atitude filial

frente à burocracia pública, perderiam sua independência individual.

Ademais, não valorizariam tais serviços, uma vez que não pagam por eles. Os

cidadãos assumiriam uma atitude indiferente ou predatória frente às

instituições, bens e serviços públicos, uma vez que eles não exigem

contrapartida monetária, e a burocracia que administra tais instituições e

serviços não os trataria com o devido zelo, uma vez que não são propriedade

sua. Os neoliberais insistem, por causa disso, na tese da degradação, que seria

inevitável, das instituições públicas (BOITO JÚNIOR, 1998, p. 21).

Nessa perspectiva, a ideologia neoliberal tem orientado a reformulação da

intervenção do Estado nas questões sociais, conforme os interesses de classe e de

frações de classe que compõem o bloco no poder. A referência abstrata ao mercado,

enquanto instância capaz de regular as demandas sociais, dá-se sempre para beneficiar o

capital financeiro e a grande burguesia detentora de monopólios (BOITO JÚNIOR,

1998).

Para o Estado, na condição de fornecedor de serviços públicos sociais, são

defendidas as privatizações, que minam o Welfare State dos países centrais e o pouco de

direitos sociais que se obteve na América Latina. (BOITO JÚNIOR, 1998). No Brasil,

não se viveu a experiência histórica de formação e de consolidação de um Estado social.

Devido à adoção do neoliberalismo, o pacto social firmado na Constituição de 1988 foi

interrompido durante os governos de Collor e de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002). Após 1988, configura-se o que Vieira (1996) chama de “política social sem

direitos sociais”, suprimindo-se direitos relacionados com a educação, a saúde, a

assistência, a previdência social, o trabalho, o lazer, a maternidade, a infância, a

segurança etc., com base na crise fiscal do Estado. Política social essa sustentada pela

real redução relativa de gastos sociais, com a prestação de serviços precários e

pontuais/locais no lugar de políticas sociais universais permanentes e de qualidade,

exigidas pelo padrão de intervenção social da Constituição Federal de 1988

(MONTAÑO, 2007).

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118

O esgotamento do chamado Estado desenvolvimentista56

, modelo que

caracterizou especialmente o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e apoiou-se

no tripé Estado – capital nacional – capital estrangeiro, gerou expressivas dívidas

internas e externas. Tal crise financeira, que levou à perda do controle da moeda e das

finanças, ocasionou drásticas reduções de investimentos e de gastos e ausência de

políticas de desenvolvimento social. A solução encontrada pelos governos a fim de

superá-la, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, foi a aderência à “onda

neoliberal” (BARBOSA, 2007).

Desregulamentação do mercado, abertura indiscriminada às importações, perda

do controle cambial, financeirização total da dívida interna e externa, desmonte do tripé

empresas estatais – empresas privadas nacionais – multinacionais, desindustrialização,

destruição maciça de empregos, quebra do mercado formal de trabalho como referência,

enfraquecimento dos sindicatos foram algumas consequências do desmanche57

sofrido

pela sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2007a e SANTOS, 2007). Nesse contexto, de

hegemonia neoliberal do mercado, constata-se o que SANTOS (2007) denominou de

“regressão da política”, referindo-se às reflexões de Oliveira (2007a, p. 29):

Há uma forte “privatização” no sentido arendtiano: os indivíduos são jogados

aos seus espaços privados, à solidão, à insegurança, que decorre exatamente

da “privação” do espaço público e da alteridade. A esfera pública é sempre

uma suspensão do Estado hobbesiano: sua dissolução significa a volta aos

conflitos primitivos, em que o objetivo é eliminar o inimigo. Quando se trata

do capitalismo contemporâneo, então é o retorno à lei da força bruta. Não

pode haver “política”, nem “polícia”: há apenas administração.

Por “regressão da política” entendemos a redução das experiências sociais de

participação política e de reivindicação por direitos, responsáveis pela redemocratização

do país na década de 80. Visto que a república não nasce da “virtude” do mercado,

novos campos de conflito, em que houvesse a operação política de novos consensos,

deixaram de ser formados. Dessa forma, evidencia-se a debilidade das tensões que a

56

“DESENVOLVIMENTISMO. Ideologia que no Brasil caracterizou particularmente o governo

Kubitschek e que identifica o fenômeno do desenvolvimento a um processo de industrialização, de

aumento da renda por habitante e da taxa de crescimento. Os capitais para impulsionar o processo são

obtidos junto às empresas locais, ao Estado e às empresas estrangeiras. As políticas ligadas ao

desenvolvimentismo concentram sua atenção nas questões relativas à taxa de investimentos, ao

financiamento externo e à mobilização da poupança interna. São menosprezadas pela teoria as questões

relativas à distribuição da renda, concentração regional da atividade econômica, condições institucionais,

sociais, políticas e culturais que influem sobre o desenvolvimento. Ao fazê-lo, o desenvolvimentismo

opõe-se à escola estruturalista originária da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), que vê

o desenvolvimento como um processo de mudança estrutural global” (SANDRONI, 1999. p.169). 57

Termo de Roberto Schwarz, “Fim de século”, 1994.

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sociedade civil organizada manteve com o Estado (OLIVEIRA, 2007a). Os obstáculos

político-institucionais à formulação dos direitos e à enunciação da questão pública, a

perda da eficácia simbólica dos direitos na construção de uma sociedade igualitária e

democrática e o obscurecimento da dimensão política da cidadania reforçam um

poderoso privatismo como orientação dominante no conjunto das relações sociais

(DAGNINO, 2004).

Nesse sentido, o significado crucial de participação política é radicalmente

redefinido e reduzido à gestão. A ênfase gerencialista e empreendorista transita da área

da administração privada para o âmbito da gestão público-estatal, com todas as

implicações despolitizadoras decorrentes. Esses significados contrapõem-se ao conteúdo

propriamente político da participação tal como concebida no interior do projeto

democrático da Constituição de 1988 (DAGNINO, 2004).

Com a contra reforma neoliberal58

, o exercício da soberania é transferido da

esfera da política para a da economia, que instrumentalizou o Estado. Com a

substituição dos sujeitos políticos, quem decide indefinidamente é o mercado,

legitimado por sua racionalidade mercantil. Enquanto instância de decisão e de

formulação de política, o Estado é fraco, uma vez que abriu mão dos postulados

burgueses de universalização. Concentra-se na economia, forte como gestor de

população e dispositivo de controle social. A privatização do econômico, pelo Estado,

realiza-se como violência da acumulação primitiva não universalizável (SANTOS, 2007

e OLIVEIRA, 2007). Como esclarece OLIVEIRA, (2007, p. 286):

O problema é mais grave porque a própria política é hoje inteiramente

dominada pela economia. As empresas se converteram em atores políticos de

primeira plana. Como pessoa jurídica, a empresa sempre deteve mais poder

que os trabalhadores, que, no limite, são pessoas físicas. A luta de classes

inventou os sindicatos para transformar as pessoas físicas dos trabalhadores

em pessoas jurídicas. Mas os novos modos de produzir e organizar anulam o

caráter coletivo dos sindicatos, o que significa dizer que a política perdeu um

ator importante. E as desregulamentações abriram um espaço que vem sendo

ocupado pelas empresas como ator político fundamental. O Estado mínimo

da falsa utopia neoliberal não é mínimo na economia, como pregam os tolos:

ele se faz mínimo é na política. Num movimento de pinças simultâneo, o

Estado se faz máximo na economia e mínimo na política, e os dois lados

projetam uma economia sem política, portanto sem disputa.

58

A expressão contra reforma neoliberal foi empregada no sentido de que as políticas neoliberais

implementadas no Brasil atacaram direitos sociais resultantes de reformas ocorridas em períodos

anteriores, a exemplo da conquista de direitos trabalhistas durante o governo de Getúlio Vargas (1930-

1945). Nesse contexto, não se tratou de aprofundar a ampliação de direitos, mas sim de desconstruí-los

(COUTINHO, 2010).

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120

Nessa conjuntura, a política social está diretamente subordinada à política

econômica e por ela condicionada. Indaga-se: como, com políticas econômicas

recessivas/regressivas, impostas pelos organismos multinacionais especialmente em

períodos de crise e em países periféricos, poderia ser possível formular políticas sociais

positivas/progressistas? O alinhamento do governo federal às diretrizes econômicas da

Organização Mundial de Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI),

do Banco Mundial (BM), do capital financeiro volátil e das empresas multinacionais

determinou limitações rígidas à política social desenvolvida em âmbito nacional,

estadual ou municipal, pelo Estado ou por Organizações Não Governamentais (ONGs)

(MONTAÑO, 2007).

Dagnino (2004) destaca que, no âmbito da hegemonia do projeto político

neoliberal, houve um deslocamento da noção de sociedade civil. O crescimento

acelerado e o novo papel desempenhado pelas Organizações Não-Governamentais

(ONG’s); a emergência do chamado Terceiro Setor e das Fundações Empresariais, com

a forte ênfase numa filantropia redefinida e a marginalização/criminalização dos

movimentos sociais evidenciam esse movimento de redefinição. O resultado tem sido

uma crescente identificação entre “sociedade civil” e ONG, em que o significado da

expressão “sociedade civil” se limita cada vez mais a designar apenas essas

organizações, quando não se restringe a um mero sinônimo de Terceiro Setor. Assim,

O predomínio maciço das ONG, expressa, por um lado, a difusão de um

paradigma global que mantém estreitos vínculos com o modelo neoliberal, na

medida em que responde às exigências dos ajustes estruturais por ele

determinados. Por outro lado, com o crescente abandono de vínculos

orgânicos com os movimentos sociais que as caracterizava em períodos

anteriores, a autonomização política das ONG cria uma situação peculiar

onde essas organizações são responsáveis perante as agências internacionais

que as financiam e o Estado que as contrata como prestadoras de serviços,

mas não perante a sociedade civil, da qual se intitulam representantes, nem

tampouco perante os setores sociais de cujos interesses são portadoras, ou

perante qualquer outra instância de caráter propriamente público. Por mais

bem intencionadas que sejam, sua atuação traduz fundamentalmente os

desejos de suas equipes diretivas (DAGNINO, 2004, p. 101).

Por conseguinte, o corolário da política econômico-social neoliberal é a

administração do Estado como se fosse um negócio, resultando na dilapidação do

patrimônio público e no reforço do poder econômico privado. A exacerbação do

discurso liberal é um modo de bloquear o avanço das camadas sociais subordinadas na

conquista dos seus direitos constitucionalmente garantidos, reforçando um estado de

exceção econômico permanente. As regras constitucionais democráticas são

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121

constantemente violadas, em nome da manutenção e da reprodução do próprio modo de

produção capitalista (BERCOVICI, 2011).

Essas determinações históricas se manifestaram também no sistema educacional

brasileiro e especialmente nas políticas governamentais de reestruturação da educação

superior. A reforma do Estado, na tentativa de torná-lo mais moderno, eficiente,

racional e menos burocrático, orientou-se pela minimização da atuação estatal no

tocante às políticas sociais e pela fragilização das políticas de proteção, seguindo as

diretrizes neoliberais. Tal configuração, que preconiza a privatização de bens e de

serviços, refletiu-se nas políticas educacionais direcionadas ao ensino superior.

A partir da década de 1980, o Banco Mundial, particularmente, como

interlocutor da agenda educacional brasileira, revigorou sua atuação no Brasil e na

América Latina. Das orientações desse organismo internacional de financiamento,

materializadas em seus documentos, é possível inferir a instituição de políticas

educacionais que concretizam as reformas do receituário neoliberal. A racionalização do

campo educativo deveria seguir a lógica do campo econômico, através da adoção de

medidas de ajustes estruturais, consistentes no binômio privatização – mercantilização

do ensino (DOURADO, 2002).

A convergência entre as políticas educacionais recomendadas pelo Banco

Mundial e as políticas macroeconômicas vigentes59

é evidente, uma vez que a crise da

dívida externa brasileira forçou o Estado a seguir as diretrizes dos organismos

multilaterais de empréstimos. Dentre as propostas, merecem destaque o

desenvolvimento de capacidades básicas de aprendizagens necessárias às exigências do

trabalho flexível, a realocação dos recursos públicos para a educação básica e a ênfase

dada à avaliação e à eficiência, induzindo as instituições à concorrência. Esses

indicadores, ao priorizarem a educação escolar básica, incentivam a fragmentação e a

desarticulação da luta pela democratização da educação em todos os níveis, criando a

ideologia de que o mínimo do mercado é suficiente ao pleno desenvolvimento humano,

funcional num país como o Brasil, que sequer democratizou a educação básica e

garantiu a permanência nesse nível de ensino (DOURADO, 2002).

No documento “La enseñanza superior: las leciones derivadas de la experiência”

(1995), o Banco Mundial prescreve, ainda, mais algumas recomendações que

corroboram a filosofia do parágrafo anterior: 1) privatização do ensino superior,

59

Políticas macroeconômicas em sintonia com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

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122

sobretudo no Brasil que não efetivou a garantia de acesso ao ensino fundamental, de

permanência nele e de qualidade desse nível de ensino; 2) diversificação das fontes de

recursos, procurando-se novas fontes junto à iniciativa privada através de novas formas

de regulação e de gestão das instituições estatais e de alterações dos arranjos jurídico-

institucionais; 3) aplicação de recursos públicos nas instituições privadas; 4) eliminação

de gastos com políticas compensatórias, como moradia e alimentação; 5) diversificação

do ensino superior, por meio da expansão de instituições não-universitárias, a exemplo

dos centros universitários etc (DOURADO, 2002).

Dessa forma,

A reorganização da educação superior parece ter uma finalidade clara: o

ajustamento das universidades a uma nova orientação política e uma nova

racionalidade técnica. A nova orientação política, além dos aspectos já

considerados, parece implicar uma indução, ou melhor, uma crescente

subordinação das universidades às regras do mercado, mediante a competição

pelo autofinanciamento, o que, provavelmente, poderá transformá-las em

instituições ou empresas, preocupadas com a própria sobrevivência e/ou

obtenção de dividendos (Warde, 1997), e, ainda, alterar a identidade, o papel

institucional, os compromissos sociais e a concepção de universidade

pública. A nova racionalidade técnica (Santos, 1997), por sua vez, envolve

movimento coordenado para levar as IES [Instituições de Ensino Superior] a

se especializarem em uma tarefa ou em uma área de competência que lhes

permitam potencializar os recursos de que dispõem, a fim de obterem maior

eficiência e competitividade, bem como o máximo de produtividade. Na

prática, então, há um empreendimento para racionalizar o sistema de

educação superior, ou seja, organizá-lo nos moldes dos princípios da

produção capitalista, a fim de torná-lo mais eficiente, competitivo e

produtivo, de maneira, portanto, a dar resposta ao novo estilo de

desenvolvimento científico e tecnológico e às necessidades do capital

produtivo (OLIVEIRA, 2000, pp. 34-35).

Assim, o tempo-espaço acadêmico é estruturado como na empresa capitalista, a

fim de atender aos interesses dos clientes/consumidores dos serviços. A racionalidade

neoliberal impõe que a universidade e o trabalho acadêmico só têm relevância

econômica e social quando formam profissionais aptos às necessidades atuais do

mercado de trabalho e no momento em que pesquisam, geram ou potencializam os

conhecimentos, as técnicas e os instrumentos de produção e de serviços funcionais à

reprodução do capital. Por conseguinte, a reorganização da educação superior é um

processo formal, porque é gerado legal e politicamente, e real, uma vez que subordina

as estruturas organizadoras do tempo-espaço da universidade às políticas

macroeconômicas (OLIVEIRA, 2000).

No caso brasileiro, constata-se um crescente processo expansionista do ensino

superior fundado, hegemonicamente, pela privatização. O Poder Público tem sido

convocado a apoiar, direta ou indiretamente, o setor privado. Enfraquecido pela crise do

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déficit público e conduzido pela necessidade de diversificação das fontes de

financiamento, o Estado se afasta, cada vez mais, da garantia de manutenção do ensino

superior. Conforme diagnostica Dourado (2002, p. 246),

Tais políticas [oficiais] têm resultado em um intenso processo de

massificação e privatização da educação superior no Brasil, caracterizado

pela precarização e privatização da agenda científica, negligenciando o papel

social da educação superior como espaço de investigação, discussão e difusão

de projetos e modelos de organização da vida social, tendo por norte a

garantia dos direitos sociais.

Portanto, a reestruturação do Estado brasileiro, orientada pela lógica neoliberal,

e as políticas econômicas e sociais deliberadamente elaboradas e executadas na

perspectiva de enfraquecer o compromisso do Poder Público com a efetivação dos

direitos sociais se revelam processos históricos imbricados. Tal inferência ajuda a

explicar as características gerais das políticas formuladas para o ensino superior e dos

modelos de gestão implantados nas universidades públicas.

Dagnino (2004) afirma que a implantação, em âmbito global, do projeto

neoliberal, trouxe profundas consequências para a cultura política das sociedades latino-

americanas. Trata-se da coexistência contraditória e conflituosa entre dois processos

políticos distintos. De um lado, um processo de aprofundamento da democracia, que se

expressa na reivindicação e na afirmação de direitos sociais, na criação de espaços

públicos e na crescente participação da sociedade civil nas discussões e na tomada de

decisões relacionadas às questões e políticas públicas, cujo marco formal é a

Constituição de 1988, que consagrou o princípio democrático e de participação social.

Por outro lado, com a eleição de Collor em 1989 e como parte da estratégia do

Estado para a implementação do ajuste neoliberal, há o surgimento de um projeto de

Estado mínimo60

que se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos

previstos constitucionalmente, através do encolhimento de suas responsabilidades

sociais. O avanço dessa estratégia determinou uma redefinição de significados, no

âmbito da cultura política, que integra as transformações que têm operado nos países

latino-americanos. No caso do Brasil, o projeto político neoliberal se defronta com um

projeto político democratizante, gestado e amadurecido desde o período de resistência

ao regime militar no interior de uma sociedade civil bastante consolidada, e fundado na

ampliação da cidadania e dos direitos sociais (DAGNINO, 2004).

60

Aqui, entendemos o Estado mínimo conforme as reflexões de Oliveira (2007) já discutidas no capítulo.

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124

Todavia, a concepção neoliberal de cidadania operou um deslocamento no

significado político desse termo. Além de uma redução da dimensão coletiva de

cidadania a um entendimento estritamente individualista dessa noção, é estabelecida

uma conexão entre cidadania e mercado. Tornar-se cidadão passou a significar uma

integração individual ao mercado, como consumidor e produtor. Dagnino (2004, p. 106)

afirma que

Num contexto onde o Estado se isenta progressivamente de seu papel de

garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta

para a cidadania. Os direitos trabalhistas estão sendo eliminados em nome da

livre negociação entre patrões e empregados, da “flexibilidade” do trabalho,

etc., e os direitos sociais garantidos pela Constituição Brasileira desde os

anos quarenta eliminados sob a lógica de que eles constituem obstáculos ao

livre funcionamento do mercado, restringindo assim o desenvolvimento e a

modernização. Essa mesma lógica transforma os cidadãos/portadores de

direitos nos novos vilãos da nação: inimigos das reformas desenhadas para

encolher as responsabilidades do Estado. Assim, se registra uma inversão

peculiar: o reconhecimento de direitos, considerado no passado recente como

indicador de modernidade, torna-se símbolo de “atraso”, um “anacronismo”

que bloqueia o potencial modernizante do mercado. (Telles, 2001). Aqui

encontramos uma poderosa legitimação da concepção do Mercado como

instância alternativa de cidadania, na medida em que o mercado se torna a

encarnação das virtudes modernas e o único caminho para o sonho latino-

americano de inclusão no Primeiro Mundo.

O projeto político neoliberal redefine as próprias noções de democracia e de

política construídas pelas lutas sociais do passado recente do país, operando com uma

concepção minimalista que limita não apenas o espaço, a arena da política, mas também

seus participantes, processos, agenda e campo de ação. Esse processo de encolhimento

do Estado é seletivo e gera consequências que consistem no aprofundamento das

desigualdades e da exclusão daqueles sujeitos, temas e demandas que possam ameaçar o

avanço e a hegemonia do projeto neoliberal. Têm-se, assim, dois horizontes ético-

políticos, dois projetos político-sociais em permanente disputa (DAGNINO, 2004).

Como vimos, as políticas afirmativas de cotas começaram a ser implementadas

nas instituições públicas de educação superior a partir dos anos 2000, através de leis

estaduais ou de resoluções dos conselhos universitários. No entanto, a

constitucionalidade dessas medidas passou a ser questionada diversas vezes, com

posicionamentos distintos dos órgãos do Poder Judiciário. Em 2009, o Supremo

Tribunal Federal é provocado a se posicionar sobre a demanda envolvendo a

compatibilidade da adoção de cotas étnico-raciais em vestibulares com a Constituição.

No próximo ponto, buscaremos apresentar um panorama dessa decisão histórica, a fim

de demonstrar, conforme já discutido teoricamente, que a tensão política entre poder

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125

constituído e poder constituinte não se limita ao processo formal de construção da Carta

Constitucional, estando presente a todo o momento na interpretação do Direito.

6.1 Movimentos sociais e Poder Judiciário: o julgamento da ADPF n. 186 pelo

Supremo Tribunal Federal

Em julho de 2009, o partido político Democratas (DEM), por meio da advogada

Roberta Fragoso Menezes Kaufmann, propôs perante o Supremo Tribunal Federal

(STF) uma ação de controle de constitucionalidade chamada Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental61

(ADPF n. 186), em face de atos

administrativos da Universidade de Brasília (UnB) que instituíram o programa de cotas

raciais para ingressantes dos cursos de graduação, pedindo a declaração de

inconstitucionalidade da política e a extensão da decisão a todos os programas dessa

natureza no país. A ação está estruturada em cinco tópicos fundamentais: a crítica do

conceito de raça, a releitura histórica e moral da escravidão, a reinterpretação das

desigualdades sociais brasileiras, a referência a experiências internacionais, a exemplo

de Ruanda, dos Estados Unidos e da África do Sul e a possibilidade de racialização da

sociedade brasileira e de aumento do conflito racial por meio de ações afirmativas

(FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2010).

Com relação à crítica do conceito de raça, a ADPF utiliza informações

produzidas por cientistas para alegar que seria incoerente a reserva de vagas na

universidade para membros de determinadas “raças”, uma vez que a ciência já teria

provado que as raças não existem do ponto de vista genético. Além disso, o texto afirma

que graças à miscigenação ocorrida na sociedade brasileira, não seria possível

determinar quem é negro no país, o que condenaria as cotas raciais ao fracasso pela

simples impossibilidade de definição dos potenciais beneficiários dessas políticas. O

que os autores da ação desconsideram é que a defesa de ações afirmativas raciais pelo

movimento negro não está atrelada a uma visão biológica do conceito de raça, mas a

61

O relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, convocou audiências públicas que foram realizadas

durante três dias no STF, nas quais foram ouvidos defensores e opositores das cotas raciais na UnB e nas

demais universidades brasileiras, além de especialistas no tema posto em questão na ADPF n. 186. De

todos os momentos das audiências, chamou atenção a intervenção do senador Demóstenes Torres, do

DEM de Goiás, que expôs que a violência sexual cometida contra as negras no Brasil escravista foi

“consensual” e que os negros não têm legitimidade para reivindicar políticas de ação afirmativa devido ao

envolvimento dos próprios africanos no tráfico negreiro. O discurso do senador desconcertou até mesmo

alguns dos opositores das cotas raciais (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2010).

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126

identidades atribuídas por processos sociais que engendram desigualdades específicas.

Desse modo, toda diretriz política que busca combater o racismo e seus efeitos deve

considerar esse conceito sociológico de raça (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS,

2010). Guimarães (1995, pp. 33-34), ao referir-se à “cor”, explica que

Só é possível conceber-se a “cor” como um fenômeno natural se supomos

que a aparência física e os traços fenotípicos são fatos objetivos, biológicos e

neutros com referência aos valores que orientam a nossa percepção. É

justamente desse modo que a “cor” no Brasil funciona como uma imagem

figurada de “raça”. Quando os estudiosos incorporam ao seu discurso a cor

como critério para referir-se a grupos “objetivos”, eles estão se recusando a

perceber o racismo brasileiro. Suas conclusões não podem deixar de ser pois

formais, circulares, e superficiais: sem regras claras de descendência não

haveria “raças” mas apenas grupos de cor. Ora, não há nada espontaneamente

natural acerca dos traços fenotípicos ou da cor. (...) Essa postura se fortalece

com o argumento de que não há nada espontaneamente visível na cor da pele,

no formato do nariz, na espessura dos lábios ou dos cabelos, ou mais

facilmente discriminatório nesses traços do que em outros, como o tamanho

dos pés, a altura, a cor dos olhos ou a largura dos ombros. Tais traços só têm

significado no interior de uma ideologia preexistente (para ser preciso: de

uma ideologia que cria os fatos para relacioná-los uns aos outros), e apenas

por causa disso esses traços funcionam como critérios e marcas

classificatórios. Em suma, alguém só pode ter cor e ser classificado num

grupo de cor se existe uma ideologia na qual a cor das pessoas tem algum

significado. Isto é, as pessoas têm cor apenas no interior de ideologias raciais,

stricto sensu (GUIMARÃES, 1995, pp. 33-34).

A releitura histórica e moral da escravidão parte do pressuposto de que os

beneficiários da ação afirmativa deveriam ser os descendentes diretos de escravos, e não

brasileiros que enfrentam, no presente, discriminações devido à sua cor de pele. A ação

procura negar a injustiça cometida contra os negros no passado salientando as práticas

de escravização de pessoas na própria África. Além disso, a ADPF sustenta a tese de

que, no Brasil, a escravidão não foi um empecilho à integração do negro no mercado de

trabalho e que, às vésperas da Abolição, a maioria dos negros já era livre. Embora a

existência de grande quantidade de negros libertos no momento da Abolição tenha sido

constatada por diversos historiadores, trata-se de uma indicação do quanto se postergou

a Lei Áurea, até o momento em que ela determinou uma medida já consumada. A classe

proprietária brasileira resistiu à extinção do trabalho escravo até pelo menos 1870, e as

estratégias para a manutenção desse tipo de trabalho passaram pelo contrabando, pelo

sequestro de africanos, pelo roubo de escravos e pelo tráfico entre províncias. É

importante destacar que o longo processo de Abolição deu-se em meio a uma política

estatal de incentivo à imigração de mão de obra europeia, concomitante ao surgimento

de teses racistas e pseudocientíficas acerca da inferioridade de negros e de mestiços e da

superioridade do branco europeu (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2010).

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127

No campo da reinterpretação da desigualdade social, a ADPF sustenta que a

desigualdade, no Brasil, é eminentemente socioeconômica e não “racial”, como a defesa

das cotas raciais pressupõe. A petição inicial argumenta que a utilização de critérios

“racialistas” seria inadequada para as especificidades brasileiras, indagando, assim, se

“a raça, isoladamente, pode ser considerada no Brasil um critério válido, legítimo,

razoável, constitucional, de diferenciação entre o exercício de direitos dos cidadãos” (fl.

28), uma vez que o exercício de direitos fundamentais não seria negado aos negros, mas

aos pobres, estando o problema econômico atrelado à questão racial. Seguindo essa

interpretação, políticas universalistas de distribuição de renda seriam suficientes para

melhorar a vida dos negros, sem que, para tanto, sejam necessárias ações afirmativas de

cunho racial (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2010). Todavia, Guimarães

(2009) aponta que se, por um lado, a sociedade brasileira tem sido incapaz de garantir o

acesso universal à educação, à saúde, ao emprego, à habitação etc., por outro, tem

discriminado os negros, de modo que eles têm sido mais limitados que outros grupos

raciais e étnicos no acesso a bens e a direitos. As desigualdades sociais, no Brasil, têm

um fundamento racial, ou seja, a cor explica parte importante da variação encontrada

nos níveis de renda, educação, saúde, habitação etc., dos brasileiros. Essas condições

histórico-sociais não podem ser revertidas apenas pelas leis do mercado e por políticas

públicas de cunho universalista.

A ação faz referência a experiências internacionais, como de Ruanda, dos

Estados Unidos e da África do Sul. No caso de Ruanda, afirma que a adoção de

políticas de identificação racial compulsória por parte do Estado dividiu o país e

conduziu a sociedade a uma guerra genocida. O Estado é identificado como a origem de

todas as injustiças de Ruanda, o que não surpreende em uma ação movida por um

partido político liberal. As políticas colonialistas belgas em Ruanda, com o claro intuito

de dividir e de dominar Tutsis e Hutus e as políticas afirmativas do Estado brasileiro

contemporâneo são tratadas como se fossem similares. A ADPF acusa o Poder Público

nacional de implantar, através das cotas, um racismo institucionalizado, nos moldes do

que era praticado em Ruanda, nos Estados Unidos e na África do Sul. Entretanto, nos

Estados Unidos, as ações afirmativas não levaram ao acirramento do conflito racial e

nem produziram mais racialização, mas proporcionaram a diminuição das hostilidades

raciais e o começo da convivência entre brancos e negros em espaços antes reservados

somente para os brancos. Na África do Sul, a ação afirmativa é uma política

fundamental no processo de reparação dos prejuízos produzidos pelo regime de

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128

segregação do apartheid. Por outro lado, Ruanda e Estados Unidos, no período em que

vigoraram as leis Jim Crow, viveram regimes políticos de opressão e de segregação

contra aqueles que já eram marginalizados nas relações sociais (FERES JÚNIOR,

DAFLON, CAMPOS, 2010).

Por fim, os autores citam o argumento de que a ação afirmativa promoveria a

racialização e o aumento do conflito racial na sociedade brasileira, a despeito de

qualquer evidência empírica que o corrobore (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS,

2010).

Em abril de 2012, o STF, por unanimidade dos votos de seus ministros, julgou

improcedente a ação e declarou a constitucionalidade de cotas étnico-raciais para o

acesso à educação superior no Brasil. O relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski,

destacou em seu voto:

Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a

efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que

abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de

natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais

determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por

um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades

decorrentes de situações históricas particulares. (...) A adoção de tais

políticas, que levam à superação de uma perspectiva meramente formal do

princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia (...)

No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade,

sob a ótica da justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos

sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável

realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos

brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de

justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos

excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente,

foram compelidos a viver na periferia da sociedade.

Já o ministro Marco Aurélio de Mello enfatizou que

É preciso chegar às ações afirmativas. A neutralidade estatal mostrou-se

nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à

educação; urge implementar programa voltado aos menos favorecidos, a

abranger horário integral, de modo a tirar meninos e meninas da rua, dando-

lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. O Estado

tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas

para os imprescindíveis financiamentos nesse setor. (...) Revela-se, então, que

a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras é uma

possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais aplicáveis à

matéria.

Após essa decisão histórica do STF, o Congresso Nacional aprovou um projeto

de lei, sancionado pelo Poder Executivo, que estabeleceu as cotas em todas as

universidades públicas federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível

médio. A Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, prevê a reserva de vagas para

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129

estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas,

candidatos oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio

per capita e candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, em proporção igual

à sua distribuição nas unidades da Federação onde estão localizadas as instituições

federais de ensino superior, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) (SANTOS, 2013).

Essas políticas buscam a promoção de indivíduos que pertençam a grupos

reconhecidamente em situação histórica de desvantagem. Nesse sentido, os programas

de inclusão procuram conjugar mais de um critério quanto aos sujeitos de direito da

ação afirmativa. Assim, muitas universidades contemplam, além do critério étnico ou

racial, a origem de escola pública e/ou a carência, o que permite que estudantes mais

pobres e negros cheguem à universidade (HERINGER; FERREIRA, 2009).

6.2 Dados sobre cotas nas universidades públicas brasileiras e alguns impactos

Nesse ponto, serão apresentados alguns dados sobre o processo de

implementação das ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras nos últimos

anos, bem como informações relativas aos possíveis impactos dessas políticas

divulgadas recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Desse modo, espera-se introduzir o debate acerca da efetividade dessas políticas na

concretização de um direito democrático de acesso ao ensino superior público. Os

principais mecanismos da Lei n. 12.711/2012 estão expostos nos artigos iniciais:

Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao

Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso

nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por

cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o

ensino médio em escolas públicas.

Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste

artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes

oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um

salário-mínimo e meio) per capita.

Art. 2o (VETADO).

Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata

o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados

pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos

e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a

instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE).

Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os

critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão

ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino

médio em escolas públicas (BRASIL, 2012).

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130

A figura 1 abaixo auxilia no entendimento dos dispositivos acima:

Figura 1 – Cotas previstas na Lei n. 12.711/2012

Fonte: Ministério da Educação (MEC)

Um levantamento realizado pelo GEMAA (2014) compara o perfil da ação

afirmativa no Brasil em 2012, o ano imediatamente anterior à implantação da lei, com

os anos de 2013 e 2014, com as universidades federais já sob o novo regime jurídico,

através da análise de dados referentes ao número e distribuição de vagas e à designação

de beneficiários. As informações foram obtidas a partir dos seguintes documentos:

manuais de candidatos, editais de vestibulares, termos de adesão ao Sistema de Seleção

Unificada (SISU)62

e resoluções universitárias. Os editais utilizados são referentes aos

processos seletivos realizados para o ingresso nas universidades federais nos anos de

2012, 2013 e 2014.

62

Criado, em 2010, e administrado pelo Ministério da Educação (MEC), o SISU é um sistema pelo qual

as instituições públicas de ensino superior oferecem vagas a candidatos de todo o país que realizaram o

Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no mesmo ano e obtiveram nota maior que zero na redação.

No SISU, diferentemente dos vestibulares tradicionais, o aluno primeiramente realiza a prova do ENEM e

só depois escolhe a universidade e o curso desejado (FERES JÚNIOR et al., 2013).

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131

Tabela 10 - Vagas ofertadas e sua distribuição entre ampla concorrência e cotas: comparativo 2012-2013

2012 2013 Variação 2012-2013

Total de vagas ofertadas 140.303 188.735 34,0%

Vagas destinadas à ampla concorrência 110.039 129.303 17,5%

Total de vagas reservadas 30.264 59.432 96,0%

Vagas reservadas para escola pública e baixa renda 16.677 21.608 29,5%

Vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas 13.392 37.028 176,5%

Fonte: GEMAA (2014)

Visualiza-se a magnitude do impacto inicial da obrigatoriedade da reserva de

vagas nas universidades federais que se fez sentir no processo seletivo de 2013. Além

de uma ampliação na oferta de vagas nessas instituições da ordem de 34%, houve um

incremento muito forte do total de vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas, que

teve, entre os anos de 2012 e 2013, um aumento de 176,5%. A expansão do número

total de vagas, por sua vez, impediu que o número de vagas destinadas à ampla

concorrência diminuísse em decorrência das cotas para os grupos beneficiados pela lei.

Pelo contrário, as vagas para a ampla concorrência tiveram um aumento de 17,5%. Os

estudantes brancos egressos de escolas públicas e de baixa renda, que já eram

beneficiários de políticas de ação afirmativa, obtiveram um acréscimo de 29,5% da

oferta de vagas sob o novo regime de cotas.

Tabela 11 - Vagas ofertadas e sua distribuição entre ampla concorrência e cotas: comparativo 2013-2014

2013 2014 Variação 2013-2014

Total de vagas ofertadas 188.735 191.736 1,6%

Vagas destinadas à ampla concorrência 129.303 114.362 -11,6%

Total de vagas reservadas 59.432 77.374 30,1%

Vagas reservadas para escola pública e baixa renda 21.608 29.813 38,0%

Vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas 37.028 43.613 17,8%

Fonte: GEMAA (2014)

Comparado ao processo seletivo realizado em 2013, o do ano de 2014

testemunhou um aumento muito mais tímido na oferta total de vagas. Assim, nota-se

que, para se adequarem ao disposto na Lei n. 12.711/2012, as universidades tiveram que

reduzir o montante de vagas destinadas à ampla concorrência. As vagas reservadas para

estudantes brancos egressos de escolas públicas e baixa renda, por outro lado, tiveram

um crescimento de 38% e aquelas reservadas para pretos, pardos e indígenas tiveram

um incremento de 17,8%.

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132

Figura 2 - Proporção total de vagas reservadas para cotas em geral; escola pública e baixa renda

e pretos, pardos e indígenas (em %)

Fonte: GEMAA (2014)

A figura 2 acima apresenta as variações nos percentuais de vagas reservadas nos

últimos três anos, que atingiram o total de 40,3% em 2014. No ano de 2012, apenas

21,6% de todas as vagas oferecidas pelas universidades federais estavam reservadas.

Em 2013, já sob o impacto da obrigatoriedade de reserva estabelecida pela lei, esse

montante subiu para 31,5%, alcançando, por fim, no ano de 2014, o patamar de 40,3%

de vagas reservadas para cotas. Esse percentual deve subir para 50% até 2016, prazo

limite instituído em lei para que as universidades implantem as reservas prescritas em

sua totalidade.

O IBGE, na “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida

da população brasileira 2014”, indica que houve um aumento da proporção de pessoas

de 18 a 24 anos de idade que frequentava o ensino superior. O percentual era de 10,4%

em 2004 e passou para 16,3% em 2013. Contudo, de acordo com a Organização para a

Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil possui, em comparação

aos demais países membros, a menor proporção de pessoas de 25 a 34 anos com ensino

superior completo ou mais. Mas, nos últimos nove anos, ocorreu um incremento

significativo nessa parcela, que praticamente dobrou quando comparada com a de 2004,

passando de 8,1% para 15,2% em 2013.

É importante perceber uma redução, entre 2004 e 2013, da participação relativa

dos estudantes mais ricos nas redes pública e particular de ensino superior. Em 2004,

0

5

10

15

20

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40

45

Total de vagas

reservadas

Vagas para escola

pública e baixa renda

Vagas para pretos,

pardos e indígenas

2012

2013

2014

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133

0

10

20

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50

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70

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Pública Privada

1º quinto

5º quinto

eles representavam 55,0% dos estudantes na rede pública de ensino e 68,9% na rede

privada. Em 2013, esses valores caem para 38,8% e 43,0%, respectivamente. Como

resultado, os estudantes do quinto com maiores rendimentos deixaram de ser a maioria

nas duas redes de ensino superior, aumentando o acesso dos estudantes provenientes dos

demais estratos de rendimento, inclusive dos mais pobres. Assim, a participação dos

20% mais pobres da população brasileira na universidade pública aumentou quatro

vezes entre 2004 e 2013: esses alunos representavam 1,7% do total em 2004 e passaram

a ser 7,2% em 2013. Já a mesma participação nas instituições privadas cresceu de 1,3%

em 2004 para 3,7% em 2013. É o que se verifica nas figuras 3 e 4 abaixo:

Fonte: IBGE, PNAD (2004)

Figura 3 - Distribuição percentual dos estudantes da rede pública e particular no ensino

superior, por quintos de rendimento mensal familiar per capita – Brasil – 2004

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134

Fonte: IBGE, PNAD (2013)

Além das políticas afirmativas de cotas, é possível citar outras medidas, como a

ampliação de vagas, o ProUni63

(Programa Universidade para Todos), aumentos de

renda e da escolaridade média do brasileiro64

, que têm contribuído para a construção do

quadro acima. Entre 2000 e 2010, o acesso dos negros ao ensino superior aumentou

232%, o que é reflexo das políticas afirmativas reivindicadas pelos movimentos negros

na última década e implementadas pelo Estado. Entretanto, os dados apontam para um

gargalo ainda existente: de cada cem formados, menos de três, ou 2,66%, são pretos ou

pardos. 65

Em termos de cor/raça, há dois grupos bem marcados: brancos e amarelos de um

lado, com maior proporção de formados; e pretos, pardos e indígenas de outro. Apesar

da tendência de redução, as diferenças seguem pronunciadas. No Censo de 2010 do

IBGE, 12,8% dos brancos e 14,4% dos amarelos concluíram o ensino superior, contra

63

Desde 2005, o Programa Universidade para Todos (ProUni) concede bolsas no ensino superior privado

em troca de isenção de tributos para as instituições de educação. Pode se candidatar quem fez o ensino

médio na rede pública ou na particular como bolsista integral e tem renda familiar inferior a três salários

mínimos per capita. Há cotas específicas para indígenas, pardos e pretos, mas acabam sobrando bolsas e

as cotas não são aplicadas. No primeiro ano de funcionamento, a iniciativa ofertou 112,3 mil bolsas.

Houve crescimento sustentado até 2009, quando o número de bolsas foi de 247,6 mil, seguido de

oscilações. Em 2012, foram 284,6 mil bolsas concedidas (RIBEIRO; SCHLEGEL, 2015).

64

Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano-2/4705-alunos-mais-pobres-

ampliam-presenca-em-universidades-publicas>. Acesso em 19 de jan. de 2015.

65

Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/11/numero-de-negros-em-universidades-

brasileiras-cresceu-230-na-ultima-decada>. Acesso em 19 de jan. de 2015.

0

5

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20

25

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45

50

Pública Privada

1º quinto

5º quinto

Figura 4 - Distribuição percentual dos estudantes da rede pública e particular no ensino

superior, por quintos de rendimento mensal familiar per capita – Brasil – 2013

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135

4% dos pretos e pardos e 2,7% dos indígenas. A participação dos brancos entre os

formados diminuiu, mas eles seguem sobrerrepresentados. Em 1960, o grupo reunia

95% dos que tinham ensino superior completo; hoje, três em cada quatro diplomados

são brancos, apesar de sua participação na população total não passar de 47,5%. Os

pardos compõem o segmento que mais avançou, passando de 3,6% para 20,8% dos

formados, mas na população eles representam 43,4%. Menos de 1% dos diplomados

eram pretos até 1991; hoje, eles são quase 4% dos que têm curso superior e 7,5% da

população (RIBEIRO; SCHLEGEL, 2015).

Assim, a democratização do perfil dos estudantes do ensino superior e a

expansão da oferta de vagas nas redes pública e privada têm colaborado para o aumento

da população cursando esse nível de ensino ou com ele completo.

Nos últimos anos, embora o acesso à universidade tenha se democratizado, com

o aumento da participação relativa de pretos, pardos e indígenas, essa inclusão não

representou o acesso igualitário a todas as carreiras universitárias, tendo sido mais

intensa em áreas menos valorizadas pelo mercado de trabalho. A inclusão dos pretos no

ensino superior ocorre em carreiras de menor prestígio, como serviço social, história,

educação, ciências físicas, ciências sociais, filosofia etc. Por sua vez, brancos e

amarelos têm mais vantagens nas carreiras de maior prestígio, como odontologia,

arquitetura, engenharias e medicina. Em termos de remuneração, o resultado é desigual:

quando completam o ensino superior, pretos, pardos e indígenas continuam com

remuneração inferior à de brancos e amarelos com o mesmo nível de escolaridade.

Além disso, há desigualdade racial nos retornos de renda em cada carreira.

Sistematicamente, brancos e amarelos tendem a ganhar em média salários mais altos do

que pardos e pretos formados no mesmo tipo de curso universitário. Logo, a

democratização do acesso ao ensino superior não foi acompanhada pela superação das

desigualdades na conclusão e obtenção de títulos em diferentes carreiras e na

remuneração oferecida pelo mercado de trabalho (RIBEIRO; SCHLEGEL, 2015).

Nesse sentido, as evidências mostram claramente que há forte estratificação

horizontal no sistema de ensino superior no Brasil, ou seja, uma hierarquização

existente dentro desse mesmo nível educacional, termo que se opõe à ideia de

estratificação vertical, que se refere às chances desiguais de os indivíduos avançarem no

sistema educacional. Esse tipo de estratificação é observado tanto na conclusão dos

cursos quanto nos retornos aos cursos no mercado de trabalho. Embora as desigualdades

de gênero tenham diminuído e as raciais tenham permanecido inalteradas, os cursos

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136

com menor prestígio continuam sendo os que incluem mais mulheres e mais pretos e

pardos. Além disso, os retornos financeiros são desiguais em termos de gênero e raça.

As mulheres, os pretos e os pardos ganham em média salários mais baixos do que os

homens brancos que completaram os mesmos cursos. As carreiras com mais mulheres

também são as com mais pardos e mais pretos e tendem a ter renda média menor do que

as carreiras com mais homens amarelos e brancos. Essas desigualdades diminuíram ao

longo dos anos, mas continuam existindo (RIBEIRO; SCHLEGEL, 2015).

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137

7 VESTIBULAR, AÇÕES AFIRMATIVAS, UNIVERSIDADE PÚBLICA E

DIREITO À EDUCAÇÃO: PERCEPÇÕES GERAIS DE SECUNDARISTAS

ESTUDANTES DE ESCOLA PÚBLICA EM RIBEIRÃO PRETO - SP

Nesse capítulo, faremos a apresentação e a discussão dos dados coletados

através de entrevistas semiestruturadas com estudantes secundaristas de uma escola

pública estadual em Ribeirão Preto – SP. Como explicado, os dados foram organizados

em quatro categorias, de acordo com as percepções do(a) estudante sobre: vestibular,

ações afirmativas, universidade pública e direito à educação.

7.1. Vestibular

Com relação ao vestibular, os entrevistados e as entrevistadas percebem esse

mecanismo de acesso à universidade pública em torno de dois eixos fundamentais:

como instrumento produtor de exclusão e de segregação social, e como meio de

avaliação do mérito e do esforço individuais, além de proporcionar ascensão

profissional.

Ao falarem sobre a segregação e a exclusão produzidas pelo vestibular, os

estudantes destacaram sua dificuldade, complexidade e a desigualdade de condições

entre quem frequentou escolas públicas e privadas ao longo da trajetória de vida e,

principalmente, durante o ensino médio. Essa desigualdade de condições aparece

associada à precariedade e à falta de qualidade do ensino oferecido em escolas públicas.

Em sua fala, João reconhece a educação superior enquanto um direito garantido

na Constituição Federal de 1988, cujo exercício é muitas vezes negado, pelo vestibular,

aos alunos de ensino médio público, que não têm acesso aos conteúdos específicos

exigidos por esse tipo de exame:

Bom, eu acho que é uma coisa muito excludente, né, como eu disse ontem66

,

né, é, porque é o seguinte, o vestibular é um (pausa), o vestibular é um...

Consta, consta lá na Constituição, né, é, você tem direito à educação, os

direitos sociais, você tem direito à educação, você tem direito a estudar em

uma escola perto, próxima da sua casa, e você tem direito de ingressar em

uma universidade. Mas para você ingressar em uma universidade, você

precisa passar de um método, que, no caso, é o vestibular. E esse vestibular, o

que ele cobra? Ele cobra assuntos que você, às vezes, você fica sem ver no

ensino médio, sabe, por conta de greve, que eu acho totalmente legítima, é,

66

O entrevistado refere-se à entrevista realizada no dia anterior, em que relatou sentir-se mal e insatisfeito

com as respostas elaboradas. Por isso, pediu que a entrevista fosse realizada novamente no dia seguinte e

o conteúdo da entrevista anterior fosse descartado.

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138

por conta de, como eu posso dizer, acho mesmo da vontade dos professores,

sabe, e por várias outras razões a gente não vê essas matérias que são

cobradas no ENEM, na FUVEST. Então, assim, é bem difícil mesmo. Acho

que está um direito lá, está na Constituição lá, mas, de fato, não acontece na

realidade, entendeu?

Fernando argumenta que a expressiva maioria dos que são aprovados no

vestibular é oriunda de escolas privadas. Para ele, muitos estudantes que frequentaram o

ensino fundamental e médio em escolas públicas gratuitas, caso queiram cursar o ensino

superior, precisarão arcar com os custos do setor privado. No seu entender, isso se deve

à precariedade e à falta de qualidade do ensino público, além do fato de que muitos

alunos precisam dividir os esforços entre os estudos e a qualificação para o trabalho:

A grande maioria que entra lá é de aluno de escola privada. Então muitas

vezes eu passo o ensino fundamental e ensino médio sem pagar nada, só que

chega no ensino superior eu acabo tendo que partir para uma escola muitas

vezes privada, né, uma escola de ensino superior privada por conta do ensino

médio e ensino fundamental serem, vamos dizer assim, precários, né, serem,

não ter um ensino de qualidade. Sem contar que muitas vezes eu tenho que

trabalhar, né, juntamente, fazer cursos, então isso acaba meio que

dificultando, né, já a qualidade do ensino, para que eu possa fazer uma prova

e passar numa universidade pública.

A precariedade do ensino é associada à falta de comprometimento com o aluno,

à falta de professores, às salas de aula lotadas, além de outras condições didáticas e de

infraestrutura. João não aceita o senso comum de que “a escola pública não presta”,

chamando a atenção para a falta de investimento público em educação:

Precário na forma, como eu vou te dizer, acho que em muitos aspectos de

comprometimento com o aluno. Então muitas vezes, não é exclusivamente o

do professor, né, mas tem muitos professores que faltam, é, às vezes a sala é

muito lotada. Hoje no Otoniel até que esvaziou bem, mas no primeiro ano,

vixe, na minha sala frequentemente tinha por volta de uns 40, 45 alunos,

entendeu? Então não dá para você garantir um aprendizado de qualidade, de

ponta. Sem contar as condições, né, muitas vezes na sala de aula à tarde

principalmente você acaba tendo muito calor por conta da sala não ter os

ventiladores ou até mesmo um ar condicionado. E... Eu acho que é mais isso.

A questão didática talvez, tenha mais laboratórios, né, para a gente ver na

prática aquilo ali. Eu acho que é mais isso. (...) Questão às vezes de

investimento, eu acho que a escola poderia receber mais verba. Às vezes não

é que a gente fala assim “ah, a escola pública não presta e tal”, mas ela não

recebe às vezes a verba, né, necessária, e talvez não é tão direcionado como

deveria.

Ana nos fornece alguns elementos para pensar o modo pelo qual o vestibular

atua como um filtro que seleciona, predominantemente, alunos de escolas privadas.

Segundo ela, os conteúdos básicos oferecidos pela escola pública não correspondem ao

grau de especificidade exigido nas provas. Além disso, a falta de professores e de outras

condições para “estudar por fora” dificulta o treinamento para o exame:

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139

Então, é porque o ensino da escola pública, como eu estudei na escola

pública desde a primeira série eu posso falar né, é, o ensino da escola pública

ele é bem básico mesmo, ele é aquele básico, ele só, ele só te dá o conteúdo

que você vai precisar saber assim, sabe? O básico mesmo. Então eu acho que

como o vestibular, por ser mais complexo assim, é, eu acho que a gente ainda

tem que estudar por fora, porque como o ensino público é base, então não

tem como a gente fazer um vestibular assim, a não ser que a gente estude

muito, assim, na escola, vai além, é, procure professores, porque na escola

mesmo faltam muitos professores, falta, tem vezes que, é, os alunos

combinam todo mundo de ir embora e a gente fica sem aula, porque os

professores se recusam a dar aula para um, dois alunos. Por esse motivo.

Tiago pensa que é importante a existência de um procedimento de seleção dos

ingressantes em uma determinada instituição de ensino, mas considera que, dada a

complexidade em se avaliar o potencial das pessoas, o vestibular acaba operando como

uma ferramenta de segregação. A falta de condições para o oferecimento de um ensino

de qualidade é uma crítica forte em sua fala:

Eu acho que o vestibular, de certa forma, é importante você ter um método de

selecionar as pessoas que ingressam em uma determinada instituição de

ensino, mas ao mesmo tempo ele é uma ferramenta que segrega as pessoas,

na medida em que é difícil você determinar realmente quem tem potencial.

Numa perspectiva acadêmica você consegue fazer isso, mas eu acho que não

é o único fator importante para determinar quem deveria ingressar em uma

universidade. Mas só que devido à situação limitada que a gente tem, eu acho

que é difícil você pensar em uma outra forma de avaliar os estudantes para

ingressar, que não seja o vestibular. (...) Eu acho que ele segrega... A

proposta dele é que os alunos ingressem em uma universidade baseados em

alguns conhecimentos que eles adquiriram no ensino médio. Só que para

você levantar essa proposta, você precisa primeiro oferecer um ensino de

qualidade e não é o que acontece. Como é que você pode falar para alguém o

que ele deve saber se você não oferece as condições? É isso o que eu penso a

respeito.

Ao tratar da inexistência de políticas de cotas na FUVEST, o vestibular que

tradicionalmente vem selecionando os ingressantes de graduação na Universidade de

São Paulo (USP), João reflete sobre um ciclo em que a figura do Estado aparece

diretamente implicada na reprodução das desigualdades educacionais. Ele relaciona esse

ciclo à ideia de projeto de sociedade e de universidade fundado em processos de

elitização:

Mas, assim, é importante dizer que, por exemplo, a USP, né, a FUVEST, né,

o grande vestibular da FUVEST, é, nossa, muito excludente, né, a gente não

vê cota para negro, cota para indígena, e nem para deficientes, entendeu?

Então, assim, dá pra perceber aí que é uma escola, é um projeto, é um

vestibular voltado para as pessoas da elite, entendeu? Porque as matérias em

si, as questões, são para pessoas que fizeram todo o ensino médio, o ensino

básico em escolas particulares, então, parece que é um ciclo, sabe, o Estado

faz com que essa prova seja muito difícil, e garante para a gente que é nosso

direito passar, que a gente tem que estar lá, mas, ao mesmo tempo, é uma

coisa impossível na realidade, né, porque a gente não tem essa, todo esse

contexto de ensino como alunos da elite, de escolas particulares têm.

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Nesse sentido, Carvalho (2005) indica que a USP foi criada na década de 1930,

seguindo uma trajetória de ausência de questionamentos acerca da exclusão racial

praticada no Brasil e consolidando-se como uma instituição de peso destinada a ampliar

a elite intelectual branca do país.

Embora associe o vestibular à seleção dos melhores e dos que têm

conhecimento, Pedro percebe uma contradição entre esse discurso e a política

educacional executada pelo Estado, que não oferece uma estrutura adequada para o

processo de capacitação e de treinamento exigido por esse tipo de exame. Ele chama a

atenção para a baixa autoestima dos estudantes de escola pública, que estão inseridos

em relações de ensino-aprendizagem extremamente precárias, não são aprovados em

vestibulares de universidades públicas e se veem obrigados a obter seus diplomas em

instituições privadas de ensino superior:

É, sobre o vestibular, eu acho que o vestibular, ele está, de uma certa forma,

selecionando as pessoas que têm o conhecimento. Ai você pensa assim:

“mas, gente, selecionando as pessoas que têm o conhecimento”. Mas a

própria estrutura que o governo oferece para o aluno ganhar esse

conhecimento não é relevante, não é válida, é desnecessária, porque eu me

sinto inútil aqui. Mas eu não acho que isso seja efetivo e que me auxilie a

passar num vestibular. (...) Eu acho que [as pessoas] não têm essa educação,

essa coisa tudo pra passar num vestibular, porque o vestibular ele é uma coisa

assim que ele seleciona os melhores. Só que como que as pessoas que não

têm base alguma, não têm conhecimento algum vão passar nisso, entendeu?

Sobre o vestibular, eu discordo totalmente dessa coisa de você selecionar as

pessoas que têm conhecimento sendo que eles não dão o conhecimento certo,

eles não, não amadurecem o aluno, eles não preparam o aluno, e preparam de

qualquer jeito e ele chega no vestibular, não passa, depois... Qual é a

frustração de uma pessoa que desiste fácil? As pessoas tinham que ser mais

persistentes e elas não são treinadas, elas não são, é, não são treinadas para

isso, né? O que a gente passa por hoje é aquela questão de você, o aluno, ele

já está com a baixa auto estima, ele sabe que ele não fez nada e que ele não

tem conhecimento algum, que se ele vai à escola ele não consegue aprender

por quaisquer motivos, ele não consegue aprender e quando ele sai, ele fala

assim: “Bom, eu não tenho o conhecimento, eu não sei passar, eu vou tentar”.

Ele tenta, ele vê a nota dele, viu que ele não passou, o que ele faz? Arrumar

um emprego qualquer (...) Você começa a ganhar dinheiro, paga uma

faculdade particular, você ganha esse diploma e você meio que dobra o

salário que você estava ganhando sem o diploma e a maioria da população

segue esse caminho, esse vestibular particular porque não tem, não tem

conhecimento necessário para passar numa pública, de certa forma, isso.

Outro eixo de percepção acerca do vestibular refere-se à sua atuação enquanto

meio de avaliação do mérito e do esforço individuais, além de proporcionar ascensão

profissional. A ideologia universalista e liberal do mérito e do concurso, desvinculada

de qualquer reflexão histórico-social, mostra-se funcional à perpetuação das

desigualdades educacionais. É como se o indivíduo, independentemente dos obstáculos

que enfrentou, no momento final da competição aberta e feroz, fosse equiparado aos

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concorrentes de melhor capital social (CARVALHO, 2005). Nesse sentido consiste a

fala de Dandara, para quem a dedicação e a vontade individuais são os elementos

centrais e determinantes para o acesso à universidade:

O que eu penso sobre o vestibular? É uma estratégia em que muitos têm a

possibilidade de... Se querer realmente, não basta falar assim: “ai, eu quero

mas não vou fazer nada”, tem que querer e correr atrás, buscar o que quer.

Para fazer, assim, as provas, igual na Anhanguera, a pessoa, se ela quiser

mesmo, buscar, ela consegue. É uma forma de adquirir um pouco mais de

conhecimento e ver que não é brincadeira, que é algo que, se querer, vai

conseguir, vai ser alguém, vai ter o que falar no futuro para os filhos, para os

netos, assim: “Eu consegui, por que que vocês não podem?”.

Kowarick (1976) desenvolve uma crítica à ideia de potencialidade individual

enquanto fator determinante para o ingresso no ensino superior. O autor argumenta que

a possibilidade de tomar o elevador educacional e subir aos patamares mais elevados do

ensino decorre de vantagens socialmente atribuídas aos concorrentes no momento da

partida. Assim, em grande medida, os detentores de determinados capitais econômicos e

socioculturais serão os “favoritos”, aqueles que poderão percorrer a trajetória

educacional até os níveis mais elevados.

De um modo geral, os entrevistados e as entrevistadas tenderam a denunciar as

condições desiguais entre quem frequentou escolas públicas e privadas para competir

pelas vagas oferecidas nos exames vestibulares, através da crítica à precariedade do

ensino público. Nesse horizonte, a visão do vestibular como um instrumento de

exclusão e de segregação social tornou-se recorrente.

7.2. Ações afirmativas

No tocante às ações afirmativas, parcela expressiva dos entrevistados e das

entrevistadas construiu seus argumentos de modo a defender esse tipo de política, tendo

em vista as desigualdades que conformam as oportunidades educacionais dos sujeitos.

Nesse sentido, Danilo compreende que a cota representa uma chance a mais para quem

estudou em escola pública, uma vez que as condições de competição entre egressos de

escolas públicas e privadas são desiguais:

Então, essa política de cotas, eu acho que ela é boa, porque ela ajuda as

pessoas a ingressar, como os alunos das escolas públicas. Com a cota, ele tem

uma chance a mais de conseguir ingressar na faculdade, porque ele não vai

conseguir competir lado a lado com quem estudou numa escola particular,

com quem pagou para estudar. Porque o ensino da escola particular,

realmente, é melhor do que a escola pública.

Tiago enxerga a reserva de vagas como uma medida importante e que beneficia

a população mais carente. Contudo, vê com certa desconfiança esse tipo de política,

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uma vez que, segundo ele, o governo brasileiro não costuma dirigir suas ações às

camadas sociais que mais necessitam:

Conheço que os estudantes de escola pública, eles têm direito a algumas

vagas que não podem ser ocupadas por estudantes de ensino privado. Eu acho

que é uma medida... O interesse do governo não é, obviamente, é, beneficiar

diretamente essa população, ele tem um outro tipo de interesse, mas é algo

que, de certa forma, eu acho importante, mesmo que não é essa a visão

principal que ele tem. (...) Não é bem do governo brasileiro beneficiar a

população mais pobre. Então obviamente isso é uma jogada política,

financeira que seja. Mas de uma forma ou outra isso acaba beneficiando...

Ana diz conhecer as cotas raciais e sociais, afirmando que, enquanto persistir o

preconceito no Brasil, essas políticas serão necessárias. Se, por um lado, as cotas

facilitam o acesso de determinados grupos sociais à universidade, por outro, há reações

negativas aos sujeitos beneficiários dessas políticas:

Então, eu acho que, como eu estava conversando com uma colega de sala

esses dias sobre isso, é, tem um lado positivo mas tem um lado negativo. É,

eu estava conversando com a colega de sala, ela falou assim, que no nosso

país, como existe muito preconceito, as cotas ainda são necessárias, certo? E

eu concordo com ela, porque a partir do momento em que não tiver nenhum

preconceito, nenhuma diferença racial, nem social, aí as cotas não seriam

uma, seriam só uma opção, assim, digamos. (...) O positivo é que facilita a

entrada, o ingresso dos negros e os estudantes de escola pública na

universidade e o lado negativo é que muitas pessoas levam para o lado

preconceituoso, chega: “ah, você é cotista e tal”.

João, ao elaborar sua percepção sobre ações afirmativas, reflete um pouco sobre

a situação social do negro, marcada pela violência e pela discriminação institucionais.

Embora faça referência à importância das políticas públicas recentes que facilitaram o

acesso de determinados grupos sociais à universidade, sua fala enfatiza a crítica ao

ensino público:

Eu acho que, antes de falar em cotas, falar da situação do negro na sociedade,

né. É, essas cotas presumem que, é, essas ações afirmativas presumem que

grupos excluídos socialmente, é, ocupem as universidades, certo? Mas é

muito difícil isso, porque todo histórico de um negro é totalmente

conturbado, entendeu? Eu até faço uma pergunta para você: o Estado tem que

cumprir os artigos da Constituição, entretanto, como possibilitar o ingresso

de um estudante negro que constantemente, senão diariamente, sofre com

atos militares, a polícia é totalmente, é, opressora, é, e uma discriminação que

resistem, insistem, desde a época lá da colonização, da casa grande, uma

pergunta que eu faço a você, entendeu? É uma coisa muito difícil de ser

respondida... Mas, assim, de um modo geral, eu vejo que, por exemplo, os

programas FIES, PROUNI que vieram com o governo do PT, de modo geral,

assim, dão mais possibilidade aos alunos de escola pública, sabe? Mas claro

que, para isso, eles têm que passar por cursinho e tudo o mais, porque, de

fato, o ensino que a gente recebe não é o ensino que, é, é cobrado no

vestibular. (...) É, tem cotas para negros, para indígenas, e para alunos de

escola pública, né, essas três. Pelo menos o ENEM adere a isso e outras

universidades. Então, assim, eu acho que facilitou, sim, facilitou a entrada.

Mas, assim, eu não digo que o ensino, assim, em si, dê essa capacidade, pelo

menos o ensino público, dê essa capacidade para a pessoa ingressar numa

universidade.

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Ao citar o caso do vestibular de 2016 da Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP), que atingiu elevados percentuais de estudantes ingressantes oriundos de

escolas públicas67

, João fortalece o entendimento da universidade pública enquanto um

direito, cuja gratuidade deve voltar-se a quem mais necessita:

Sim, a gente pode ver pelo menos o caso da UNICAMP no ano passado que,

se eu não me engano, acho que a Faculdade de Medicina, não, não sei qual

curso foi, mas assim, 60%, é, das pessoas que passaram eram de escola

pública, entendeu, isso é muito importante. É, são as pessoas que realmente

não têm condições de pagar uma universidade particular, ocupando uma

escola pública, que, de fato, é um direito delas, entendeu?

Fernando acredita que as cotas ajudam no combate ao preconceito étnico-racial.

No entanto, chama a atenção para a importância de ações estruturais na educação, que

repercutam em toda a história escolar do sujeito:

Então, sobre cotas, né, o pessoal fala e eu acho que ajuda, né, principalmente

a pessoa que sofre muito preconceito, né, pessoas negras, enfim, que sofrem,

né, ou que já sofreram muito. Eu acho que é interessante, mas eu acho que o

foco não deveria ser em cotas, eu não acho que deveria ser lá na faculdade,

não na hora de entrar que deveria fazer alguma coisa. Eu acho que deveria

fazer alguma coisa antes, desde lá do prezinho, do fundamental, acho que se

tivesse um ensino de ponta, na faculdade seria, já chegaria com outro perfil.

Ao formular a hipótese de duas pessoas negras – uma estudando em escola

pública e a outra em particular -, ele atribui centralidade ao conhecimento adquirido no

decorrer da trajetória do indivíduo como fator determinante para o ingresso no ensino

superior. O seu raciocínio não considera o racismo implicado nas políticas das

instituições educacionais e as condições desiguais entre quem estudou em escola

pública e particular:

Tanto é que, por exemplo, se uma pessoa negra, ela... Duas pessoas [negras],

uma tem baixa renda, né, vamos jogar ali porque às vezes o que muito

diferencia é a renda, é onde a pessoa nasce, vamos dizer assim. Então as duas

pessoas negras, por exemplo, uma entra na escola pública, a outra na

particular, as duas seguem. Chega na hora do vestibular, chega na hora de

ingressar numa escola, o que vai valer muitas vezes não é a cota, muitas

vezes não é brechas, vamos dizer assim, é o conhecimento. Então se na

trajetória dela ela conseguiu ter um desempenho bom, é, só estudando ali, ela

ingressa, com cota ou sem cota, o que importa é ela saber. Então acho que...

As cotas ajudam? É melhor que nada, mas não é tão eficiente.

Pedro declara seu posicionamento contrário às ações afirmativas, construindo

seu argumento a partir da noção de poder da vontade humana e de capacidade que as

pessoas têm de ir ao encontro dos seus objetivos. Na sua concepção, as cotas seriam

uma forma de discriminação, porque criariam diferenciações baseadas na cor da pele,

67

Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2016/02/12/escola-publica-domina-

vestibular>. Acesso em 21 de ago. de 2016.

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através do oferecimento de recompensas que não se justificariam no presente, uma vez

que o sofrimento social dos negros situar-se-ia no passado:

É, eu sou totalmente contra isso, totalmente contra. É, eu acho que, assim, as

pessoas falam assim: “ah, os negros, os negros, eles, eles têm uma

desvantagem perante os brancos, eles não têm uma capacidade em passar

numa faculdade que nem os brancos.” Mas da onde? Porque assim, cara, se

você querer, você vai atrás. Porque eu acredito que tem apenas uma coisa: o

poder da vontade humana. Se você quer e você vai atrás, porque quando você

quer você vai atrás. Se você, hoje, quer um carro, o que você vai fazer? Você

vai trabalhar pra ter o carro. Agora se você quer ter o diploma na USP, você

vai ganhar conhecimento para ter aquele diploma. E as cotas, elas, é uma

forma de discriminar isso, né? Ele pega, assim, o... Fala assim, só porque da

cor dele, porque no passado ele sofreu, que agora, nos dias de hoje, ele vai

ser, de certa forma, recompensado. Eu sou totalmente contra isso, porque

cara, se você for parar pra pensar, vamos supor que, não estou dizendo que

essa é a realidade, mas vamos supor, supondo já, que a escola pública não

tem estrutura, não tem educação e não tem conhecimento, e a particular

tenha. Isso, não estou falando que acontece, mas vamos falar dessa forma,

que a particular, ela dá o conhecimento, dá a estrutura, dá a educação

necessária para passar numa universidade pública. E a escola pública não dá

essa base, não dá isso. Então, vamos supor que um branco que ele não tem

dinheiro, que a família dele não tem dinheiro, que é pobre, tal, e um negro

que seja, sei lá, burguês, que seja rico. Então, se a escola particular é melhor,

e dá mais conhecimento, e a pública dá menos, além do branco, do homem

branco, do aluno branco que está na escola que não está tendo essa base, que

não está tendo esse favorecimento, ele vai ter que lidar, vai ter que passar na

universidade sem as cotas, e o negro que está na particular, está tendo mais

base, está tendo a autoestima de “eu vou conseguir, eu tenho conhecimento,

eu sou bom” e tal, ele vai ter as cotas ainda favorecendo ele, sendo que está

tudo a favor dele, tudo bem encaminhado e tudo o mais. Eu acho que as cotas

são uma forma de discriminar, assim. Eu não sou a favor sobre as cotas,

porque as cotas, elas discriminam mais ainda, porque as pessoas, elas querem

igualdade, e eu não vejo igualdade nisso.

Sua argumentação sobre as cotas estrutura-se numa concepção formal acerca da

igualdade, em que os indivíduos, livres e iguais, teriam as condições e as

potencialidades para alcançar os seus objetivos, o que tornaria a intervenção do Estado,

por meio da instituição de políticas de ação afirmativa, discriminatória. Ao elaborar a

hipótese de um estudante negro e rico sendo favorecido pelas cotas e um estudante

branco e pobre não tendo esse favorecimento, o seu raciocínio não considera as

diferentes modalidades de ação afirmativa e o racismo implicado nas políticas das

instituições educacionais.

7.3. Universidade pública

Com relação à universidade pública, algumas das percepções aparecem

associadas à dificuldade e à competição para entrar, ao ingresso significando a

realização de um sonho, à excelência do ensino e da pesquisa, ao conhecimento

aprofundado e de qualidade do mundo e das tecnologias, e à sua relevância para quem

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não tem condições de pagar por uma faculdade privada. Danilo demonstra a sua

indignação com o fato da universidade pública não estar aberta à demanda dos

estudantes de famílias necessitadas do ponto de vista socioeconômico:

Então, eu gostaria de destacar, os alunos das escolas particulares que querem

ingressar na universidade pública, isso eu acho assim que é uma coisa

absurda, porque se a pessoa, ela está numa escola particular, é porque ela

realmente tem condições de pagar. Não digo quem ganhou bolsa, mas, assim,

aqueles que têm realmente condições de pagar, eu acho que eles deveriam

ingressar numa faculdade particular e deixar a faculdade pública para quem

não tem dinheiro, para quem realmente precisa. Eu acho que isso seria uma

coisa primordial que acontecesse.

Tiago, ao referir-se à universidade pública enquanto polo de estudo e de

pesquisa no Brasil, chama a atenção para a importância da gratuidade, denunciando os

processos de privatização da educação, que limitam o acesso e a formação à renda de

cada um:

Os maiores intelectuais do Brasil, eles acabam vindo de universidades

públicas porque elas são o polo de pesquisa e de estudo no Brasil atualmente.

Eu acho importante preservar esses valores, uma vez que ela não está atrelada

diretamente à sua condição financeira, embora exista, esteja começando a

existir uma tendência a privatizar as instituições de ensino, principalmente as

escolas, e agora eu vejo também as universidades. Isso é uma situação triste

pra pesquisa, para o estudo no Brasil. (...) Porque você limita a formação, a

formação acadêmica das pessoas à renda delas e existem muitas pessoas que,

que não podem financiar esses custos.

Nesse sentido, Ana destaca que o caráter público da universidade precisa estar

vinculado a um acesso mais democrático, utilizando, em sua fala, a comparação com a

escola pública. Para ela, embora a universidade seja pública, trata-se de um bem de

certo modo privatizado, uma vez que o acesso a ele é restrito a determinados grupos

sociais e difícil de ser alcançado por outros:

De uma forma geral, eu penso assim que a universidade pública é uma

melhor opção para muitas pessoas, né? Só que o que eu acho é que a

universidade pública, é, deveria ser como a escola pública, não assim no lado

negativo, sabe? É porque, tipo, eu não sei explicar muito bem, mas, assim,

porque na escola pública, é, as pessoas têm mais acesso, sabe? É meio muito

privado, é um pouco privado, assim, sabe? (...) Enfim, é um pouco privado,

sabe? É, muita gente, para conseguir entrar na universidade pública tem que

estudar muito, principalmente um aluno de escola pública, que é mais

complicado, porque uma escola particular tem muito mais recursos, muito

mais qualidade, né? E, é isso o que eu acho. (...) É uma coisa mais difícil de

alcançar, digamos.

João enfatiza em sua fala contradições presentes no cotidiano da universidade

pública: ao mesmo tempo em que é palco de ações políticas protagonizadas por

coletivos, a instituição vivencia atos de racismo e de homofobia. Para ele, as

diversidades atuantes politicamente e presentes no ambiente acadêmico causam

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incômodo às categorias sociais detentoras de privilégios. Do sentimento de opressão e

da necessidade de compartilhamento de experiências nasce a ação política:

Bom, eu acho que a universidade pública atualmente é um palco para

bastantes discussões a respeito de movimentos, sabe? De ações, tipo assim,

coletivas. Por exemplo, a gente pode, é, falar dos coletivos negros, dos

coletivos LGBT’s, de vários outros coletivos que, assim, agem politicamente,

é, no atual cenário brasileiro, entendeu? Entretanto, a gente vê também, é, um

contraste, né, propriamente dentro das universidades, a gente vê atos de

racismo, atos de homofobia. Então, assim, é uma coisa assim muito

paradoxal, né, ao mesmo tempo em que alunos de escola, é, ao mesmo tempo

em que alunos da faculdade se juntam para mudar, é, alguma realidade, eles

se chocam também... (...) Eu acho que é importante a gente falar que, é, a

universidade é um ambiente, assim, composto por pessoas de diversas

cidades, de diversas subculturas dentro do Brasil, de diversas condições

socioeconômicas, né? Então, por exemplo, uma pessoa branca, da elite, que

nunca, por exemplo, sofreu racismo, não tem por que ela se juntar às pessoas

do coletivo negro, entendeu? E, muitas vezes, quando [do coletivo negro]

tomam, às vezes, aulas, ou, sei lá, fazem [atos] dentro da própria faculdade,

essas pessoas da elite que eu acabei de dizer, se sentem incomodadas, né,

porque elas não querem ver ninguém, é, como que fala, ativamente político

ali, sabe, eles querem estudar e serem ricos e... Eles não têm necessidade

desses movimentos. Entretanto, é importante dizer que, por exemplo, da

parcela de homossexuais nas universidades, eles sofrem sim preconceito

diariamente, entendeu? Assim como as pessoas trans, enfim... Então, elas

[pessoas] se juntam, né... Eu acho que a gente se junta quando a gente é

oprimido, a gente vê alguém que também está oprimido, a gente se junta, é

uma coisa assim importante. A gente se junta para se sentir melhor. Daí que

surgem os movimentos, entendeu?

Embora a universidade se apresente como um ambiente hostil a diferentes

grupos sociais oprimidos, a fala de João destaca as manifestações de resistência

engendradas no interior do mundo acadêmico, que buscam questionar o status quo e as

relações de privilégio.

7.4. Direito à educação

No tocante ao direito à educação, as tônicas da igualdade e da qualidade do

ensino estiveram presentes nas falas de alguns e de algumas estudantes. Laysi atribui as

desigualdades de acesso ao ensino superior à falta de políticas públicas de educação e à

seletividade operante nos exames vestibulares:

Porque não tem muita ajuda política, entendeu, nas coisas. E as provas que

têm pra entrar às vezes são bem difíceis e praticamente todo mundo que vem,

meio que, estuda em escola pública para prestar essas provas, não tem o

conhecimento suficiente, porque exatamente estudou em escola pública. Aí

destaca mais quem estuda em escola particular, quem tem dinheiro.

Danilo entende o direito ao estudo como elemento central para o crescimento

profissional e para a melhora das condições de vida. Ele se refere à figura dos pais, a

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quem foi negado o direito à educação, pela necessidade de trabalharem para o sustento

da família. Na sua visão, a construção da educação enquanto um direito é condição

essencial para o acesso das classes sociais baixas:

Bom, direito à educação eu acho que é algo primordial que todo mundo tem

que ter. Hoje em dia todo mundo tem que ter um direito a um estudo. Como,

por exemplo, meus pais, eles não tiveram um direito ao estudo, eles não

puderam estudar, não porque eles não quiseram, porque eles tiveram que

trabalhar. E hoje em dia eu acho que isso tem que ser primordial o estudo,

porque sem o estudo as pessoas não são nada. Hoje o estudo é muito cobrado

nos serviços, para você poder conseguir um cargo melhor, para você

conseguir uma qualificação melhor, você tem que estudar. E se não tivesse

direito ao estudo, seria basicamente difícil para quem é da classe baixa ter

acesso à educação. Isso eu acho que é uma coisa boa.

Fernando associa o direito à educação a um processo de formação, que difere de

um mero acesso à informação, amplamente disponível hoje. Além disso, a ideia de

direito é elaborada de modo a implicar as suas condições de qualidade e de gratuidade.

Na sua compreensão, a qualidade, o comprometimento dos atores sociais envolvidos

com a escola e uma boa gestão significam o direito à educação:

O direito de você ter acesso à informação, à informação didática, vamos dizer

assim, né, aquela teórica mesmo ali. Porque informação a gente tem em todo

lugar, mas o que, a princípio, vem à minha cabeça é isso. E deveria, né, ser de

qualidade e gratuita, porque é um direito, né, um direito seu a ter aquela

informação. (...) É, como claramente, eu acho que seria tendo qualidade,

porque tem ensino, tem a escola, a escola é pública, né, é de todos, está ali, o

que falta é aquela qualidade, é aquele comprometimento, é aquela gestão boa,

né? Então, o que não acontece mesmo é isso, não tem qualidade.

No entanto, ele argumenta que esses princípios de qualidade e de gratuidade que

conformam o direito à educação não são concretizados, tendo em vista as condições

desiguais que criam diferenciações entre quem estudou em escolas públicas e privadas.

Sua fala também chama atenção para outras determinações sociais que interferem de

maneira significativa nas possibilidades concretas de dedicação do sujeito aos estudos,

como a necessidade de trabalhar para contribuir com a renda familiar:

Porque ele [o direito à educação] é passado mas não da forma que deveria,

não na forma certa, né, vamos dizer assim. Então o aluno, se você for

comparar um aluno de escola pública com uma escola particular, é, está de

fato ali que é diferente, né? Às vezes, uma coisa que agora lembrei e que

deixei de falar, que não só na parte da escola ser muitas vezes ruim. Muitas

vezes o aluno tem que, tipo, sair, né, vamos dizer assim, do foco da escola,

pra muitas vezes ter um trabalho paralelo ou um curso, até mesmo para

ajudar em casa, para ter alguma coisa complementar. Então, às vezes, muitas

vezes, se o aluno pegar só, só ir na escola, pegar firme ali, eu acredito que ele

até consiga, né, passar em alguma universidade, ir bem, né? Mas é muito

difícil você pegar um aluno que só vai à escola, que os pais sustentam,

bancam o estudo, porque por mais que seja gratuito, é, o aluno, tipo, pelo

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menos eu falo por experiência própria, tem que, muitas vezes, ajudar em

casa.

Tiago percebe o direito à educação inserido no campo dos direitos fundamentais,

por meio dos quais a cidadania e a democracia se concretizam. À figura do Estado é

atribuído o dever de garantir uma formação cultural, intelectual e profissional para todos

e todas, visto que a igualdade é um princípio diretamente associado à noção de

cidadania:

Nós vivemos em uma democracia. Para que as pessoas consigam exercer a

sua democracia, elas precisam, existem alguns direitos fundamentais que elas

precisam ter, um deles é a educação, porque ela permite que você se afirme

como cidadão, como indivíduo participante de uma sociedade. E pra isso

você precisa ter uma certa formação cultural, intelectual e profissional e isso

necessita de ser garantido a você, através do Estado, que seja. Então eu acho

que é um direito importante, uma vez que nós somos cidadãos ditos iguais.

Dandara também associa o direito à educação à ideia de igualdade. No entanto,

segundo ela, a falta de uma educação antirracista e anti-homofóbica nas escolas

favorece a desistência de estudantes negros e homossexuais, o que contraria o

pressuposto de igualdade. Sua fala estabelece uma correspondência entre o direito à

educação e o merecimento de estar na faculdade:

É, igualdade a todos, assim, a gente, hoje em dia, tem acesso à escola pública,

mas, por falta, assim, de instrução, muitos acabam desistindo, como

preconceito, preconceito contra negros, contra homossexuais. Eu... Por não

ensinar que deve ser respeitado, que é algo que por mais que a pessoa não

aceita o que faz ou a raça, ela está assim, é igual a mim, só muda a cor, só

muda o que gosta. Então isso é algo que deve mudar... Mas pelo direito à

educação todos merecem estar na faculdade, quando querem, merecem estar

na faculdade.

Ela reconhece que nem todos conseguem chegar ao ensino superior, uma vez

que, no ambiente escolar, o racismo atua de modo a distribuir de modo desigual as

oportunidades educacionais:

Porque muitos fazem, é, as provas, por mais que tirem nota baixa, eles podem

até continuar tentando, tal, mas nem todos conseguem chegar lá. Como hoje

em dia vê-se numa sala de aula os alunos... Por exemplo, aqui, é, pode ter, é,

50 brancos e 10 negros, então, a igualdade está totalmente baixa.

Praticamente as raças mais claras estão tendo mais oportunidades para chegar

aonde querem e as mais escuras não estão tendo.

No entanto, a fala de Dandara também é marcada por certas ambiguidades. Ao

mesmo tempo em que acredita na justiça dos exames seletivos e da avaliação do esforço

e do empenho individuais em contextos de elitização do acesso à escola, ela também

aponta para o racismo presente em alguns concursos:

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As provas são justas, porque são para aqueles que buscam, que estudam

verdadeiramente. Mas em muitos concursos, se a pessoa colocar lá que é

negro, não vai pra frente, em muitos casos não vai pra frente. (...) As pessoas

conseguem, sim, fazer, tirar notas boas, mas se tiver esforço. (...) Mas quando

a pessoa quer de verdade... Igual antigamente, as pessoas não tinham muito

acesso à escola como hoje, não tinham muito mas muitos se tornavam

médicos, engenheiros, porque por mais que não tinham muito acesso, eles

batalhavam, eles não ouviam pelo que as pessoas falavam ou eles deixavam:

“isso não faz parte de mim, eu quero é isso”. Então, basta o querer. Esse é o

meu ponto de vista.

Quando constrói a sua percepção sobre direito à educação, Carlos afirma que a

efetividade desse direito é relativa, visto que considera, no contexto das relações sociais,

dinâmicas relacionadas à segregação socioeconômica e étnico-racial. Sua fala aponta

para as conquistas recentes do movimento negro em termos de democratização do

ensino superior:

Por exemplo, agora que a gente está em crise, chega até ser um pouco mais

difícil entrar em faculdade, devido às vagas que parecem que diminuem,

devido a gastos e etc. Então eu acho que, é, está, está a meio termo ainda

essa, essa questão. (...) Direito à educação também até, às vezes a cor,

também, a etnia prejudica às vezes ou às vezes também até ajuda, mas

também meio que depende... (...) Geralmente, um pouco mais atrás, eram os

brancos, é, a etnia branca que entrava em mais faculdade e tal. Mas agora

está, está melhorando, já não tem mais esse tanto, esse, como se diz, o

preconceito mais. (...) As várias lutas, né, que os próprios negros e etc

fizeram estão, estão, como se diz, evoluindo e está começando a entrar dentro

da cabeça das pessoas, por isso. (...) Que não, que não acreditavam que, por

exemplo, um negro tinha o mesmo potencial que um branco. Era mais ou

menos isso.

João enfatiza em sua fala que a conquista do ensino público e gratuito é recente

no Brasil, sendo oficialmente garantido na Constituição Federal de 1988. No entanto,

segundo ele, a estrutura da escola pública sofre com processos de precarização, faltando

professores qualificados e uma prática de valorização e de preservação da coisa pública

por parte dos estudantes. Argumenta que, até a Constituição de 1988, a escola era muito

excludente, existindo processos seletivos para limitar o acesso à educação e,

dialeticamente, movimentos de reivindicação por esse direito. Apesar do avanço

representado pela Constituição de 1988 em termos de garantia do direito à educação e

da existência de professores comprometidos com a transformação da realidade da

escola, João chama a atenção para a falta de uma formação voltada para a reflexão

crítica, interessando ao Estado a promoção de uma alfabetização formal e a reprodução

das relações de consumo:

É como eu te disse, né, consta na Constituição somente oficialmente desde

1988, né, ou seja, é muito recente o ensino gratuito no Brasil, é, então assim,

eu posso dizer que pela minha história de vida, pela minha história no ensino

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público, eu tenho que dizer que é uma coisa assim muito recente mesmo, né.

A gente vê professores ainda não, não “qualificados”, que não conseguem,

sabe, que não conseguem entender a realidade da estrutura pública e, assim,

não conseguem formar uma escola. E a gente também vê alunos que falam

assim: “nossa, uma escola pública, né, vamos destruir”, como por exemplo,

eles entopem toda semana lá o banheiro com papel higiênico, as privadas.

Então, assim, eu vejo a [escola] pública com grande atraso, por diversos

fatores. (...) Porque é o seguinte, é, olha o contexto, o ensino gratuito público

no Brasil só foi, é, só foi colocado em 1988, com a Constituição de 1988. Até

então essa educação era para atender pessoas, como eu posso dizer, não era

para atender pessoas, mas era para atender aquelas pessoas que se

movimentavam, enfim, é, como que fala, que pediam pelos seus direitos para

entrar em escola pública, e era muito excludente também porque tinha o

vestibular para isso, né, nas escolas. Aqui mesmo no Otoniel Mota,

antigamente, tinha o vestibular para você passar para outra escola etc. É,

então assim, depois que oficializou essa de escola gratuita e tudo o mais, eu

vi que os professores e o ensino, eles de fato, o Estado não quer que as

pessoas pensem, né, ele não quer que as pessoas critiquem eles, entendeu?

Por isso que essa educação que a gente recebe hoje é uma educação assim

voltada para a gente se alfabetizar, tem que constar lá que a população é

alfabetizada, e essa população também precisa fazer compras, né, para

sobreviver. Então, eu acho que basicamente o ensino atual é isso. (...) Mas,

assim, ainda bem que existem as raridades, né, professores que entendem

toda essa situação, que tentam, assim, diariamente mudar essa nossa

realidade, por exemplo, professores de Sociologia, professores de Filosofia,

professores de História, e isso é muito importante, entendeu?

João fez questão de registrar, na entrevista, a importância dos movimentos

estudantis de ocupação de escolas públicas ocorridos em 2015 e em 2016, em resposta a

um plano de governo autoritário, não discutido democraticamente com a sociedade e

comprometido com o fechamento de escolas e a redução do número de vagas:

É assim, é mais em relação aos movimentos estudantis. Eu acho que é

extremamente importante a gente lembrar das ocupações do ano passado, né.

Foram assim, começaram, é, em algumas cidades de São Paulo, expandiram-

se, assim, no estado inteiro, entendeu? Depois a gente viu também, é, no

estado de Goiás, né, as ocupações, e agora no estado do Rio de Janeiro. Ou

seja, durante muito tempo o movimento estudantil que, assim, teve o seu

auge na década de 60, 70, né, é, teve também na Ditadura Militar, é, ficou

paralisado; durante esse tempo, assim, até hoje. E daí, no ano passado, essas

ocupações que ocorreram no estado de São Paulo, elas assim, deram um gás

mesmo nas outras ocupações que estavam ocorrendo, que estão ocorrendo,

por exemplo, no Rio de Janeiro, lá em Goiás. Então assim, a gente vê que,

embora essa juventude seja alienada, seja, é, a educação pra ela seja pra ela

não pensar, a gente vê que ela consegue sobressair, entendeu, ela consegue se

juntar, mover coisas, reivindicar demandas, conseguir demandas. E... Então,

não, eu não vejo assim que os alunos de escola pública, é, estejam perdidos.

Eu vejo que as escolas públicas estejam perdidas, entendeu? Ai, é importante

falar dessa luta aí...

Embora o modelo hegemônico de educação não valorize e estimule a reflexão e

o pensamento críticos, a fala de João contrapõe-se a um entendimento de que a

juventude seja alienada, uma vez que consegue mobilizar-se coletivamente, a fim de

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lutar pelo direito à educação, como as recentes ocupações de escolas públicas

demonstraram.

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8 CONCLUSÃO

O olhar dessa pesquisa voltou-se para os processos sociopolíticos recentes de

democratização do Estado e da sociedade brasileira, com foco na implementação das

políticas afirmativas de cotas nas instituições públicas de educação superior. À luz dos

debates e das reflexões presentes em alguns autores e em algumas autoras da Teoria da

Constituição, procuramos investigar, na história constitucional brasileira, a conformação

do direito à educação, com as tensões relativas ao dever do Estado com a concretização

desse direito.

A partir da década de 1930, o mito da democracia racial enquanto forma de

sociabilidade autenticamente brasileira ganhou força no imaginário nacional e as

primeiras universidades consagraram-se como espaços sociais e políticos dos “mais

capazes”, do mérito e da excelência acadêmica. O código universalista e liberal

europeu, com as noções abstratas e formais de concurso, de vestibular, de competição,

de rendimento e de quantificação das trajetórias individuais, influenciou o meio social e

acadêmico brasileiro de modo alienante e autoritário, na medida em que silenciou o

debate sobre as práticas político-jurídicas, silenciosas e sutis, mas sistemáticas e

generalizadas, de discriminação étnico-racial e socioeconômica. A ideologia da

meritocracia, desvinculada de qualquer reflexão social, universalizou somente a

concorrência, mas as condições para competir permaneceram desiguais (CARVALHO,

2005).

Nesse horizonte, nosso esforço de análise concentrou-se no processo constituinte

de 1987-1988, em que as demandas da sociedade civil organizada tiveram um impacto

direto na configuração do texto constitucional. De acordo com a Constituição Federal,

“o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos

níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade

de cada um” (artigo 208, inciso V). Pudemos perceber que o critério meritocrático

consagrado legalmente não refletiu o potencial democrático das reivindicações do

movimento social negro e de outros atores sociais presentes nas audiências públicas

promovidas pelas Subcomissões Temáticas dos Negros e da Educação.

O julgamento da ADPF n. 186 pelo STF, em 2012, que declarou a

constitucionalidade das ações afirmativas com recorte étnico-racial no ensino superior,

representou um momento histórico, em que as demandas do movimento negro foram

interpretadas à luz dos princípios constitucionais de construção de um Estado

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democrático. Nesse sentido, tem-se a Constituição de 1988 como uma Constituição

radical, na medida em que possibilita a ideia de potência, de impulso constituinte,

atualizados e revigorados a partir da aplicação da própria Constituição nos marcos de

um Estado constitucional democrático, quando fundamenta decisões políticas e

jurídicas. Radicalizar a Constituição significa radicalizar a ação dos atores sociais no

sentido da transformação do direito e da política (CHUEIRI, 2013).

O que o processo constituinte de 1987-1988 e o julgamento da ADPF n. 186

pelo STF também evidenciam é o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição

e a interpretação das normas constitucionais como um processo aberto e público,

imbricado na ação política dos atores sociais. A atribuição de sentidos e de significados

ao texto normativo não deve ser restrita a um grupo fechado de intérpretes oficiais e

especializados, mas deve ser uma construção pública, na medida do pluralismo e da

diversidade encontrados na sociedade para a qual a norma é dirigida. Se o texto

transforma-se em norma a partir do momento em que é interpretado, a Constituição

somente ganhará vitalidade com a sua interpretação, que tornará a Carta coerente com

os fatores reais de poder, a que se referia Lassalle (1933), e com o projeto político-

social inscrito na Constituição, a sua força normativa, para a qual Hesse (1991) chamou

a atenção (HABERLE, 1997).

A criação do direito é um processo permeado pelas controvérsias públicas e

pelas contradições sociais. Nessa perspectiva, as falas dos(as) estudantes secundaristas

de escola pública, com suas percepções, críticas e ambiguidades, demonstram o caráter

tensional do discurso jurídico, uma vez que também constroem sentidos de direito à

educação. Essas falas potencializam a interpretação da esfera do constituído

(“capacidade”) a partir de uma base social, vinculada às experiências reais e concretas

dos sujeitos desse direito.

Em se tratando das reivindicações pela democratização do ensino superior

público, as lutas do movimento negro remontam a décadas muito anteriores ao processo

constituinte de 1987-1988 e se mostraram bastante ativas nos anos 1990, em defesa das

ações afirmativas de cotas raciais, ancoradas nos direitos previstos pela Constituição de

1988. Esse movimento social, ao reivindicar políticas afirmativas de cotas na educação

superior, espaço historicamente reservado às camadas sociais dominantes ditas mais

“capazes”, evidencia não somente os conflitos político-sociais, mas demanda a todo

tempo e de todas as formas, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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Assim, esse ator coletivo reafirma a potência do poder constituinte na concretização do

direito fundamental à educação (CHUEIRI, 2013).

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165

ANEXOS

ANEXO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTAS

1 – Conte um pouco sobre sua história escolar até aqui.

2 – O que você pensa sobre o vestibular como forma de ingresso nas universidades

públicas?

3 – O que você conhece sobre as ações afirmativas de cotas universitárias?

4 – Como você enxerga a universidade pública? O que você conhece sobre universidade

pública? O que você acha da universidade pública?

5 – O que você entende por direito à educação?

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ANEXO 2 - TERMO DE ASSENTIMENTO

Esse é um convite para participar de uma entrevista que faz parte da pesquisa:

Políticas afirmativas de cotas e a democratização da educação superior pública

brasileira: percepções de terceiro-anistas de ensino médio de uma escola pública

estadual em Ribeirão Preto sobre democracia, cidadania e universidade. A

pesquisa tem como objetivo analisar as ideias de terceiro-anistas de ensino médio de

uma escola pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre as relações entre democracia,

cidadania, acesso e permanência na universidade, com vistas à compreensão do modo

como as políticas afirmativas de cotas influenciam a construção de seus horizontes e

trajetórias pessoais de vida.

Sua participação consiste na realização de uma entrevista, que terá duração de

aproximadamente 30 (trinta) minutos e será gravada, para posterior transcrição literal de

seu conteúdo. Como risco, é possível que a dinâmica cause eventual desconforto ao

falar. A sua contribuição nessa pesquisa não envolve riscos diretos à sua integridade

física. Também não trará gastos ou despesas para o (a) participante, já que o encontro

será na própria escola em que estuda.

Qualquer dano material ou moral que venha a acontecer, nas diferentes fases da

pesquisa, pela participação, será indenizado e de responsabilidade do pesquisador,

Maurício Buosi Lemes. As informações obtidas por meio dessa pesquisa serão

utilizadas apenas nela e asseguramos o seu anonimato. Os resultados da pesquisa

poderão ser divulgados (tornados públicos) em eventos científicos, na mídia, ou

similares. A sua participação não é obrigatória, sendo que a qualquer momento você

poderá desistir de participar e retirar seu consentimento, sem que isso lhe traga qualquer

prejuízo.

Espera-se que os resultados da pesquisa possam produzir conclusões que apoiem

os estudos políticos e jurídicos que abordam a efetividade do direito à educação, a

democratização do ensino superior e o aperfeiçoamento das políticas afirmativas de

cotas no Brasil. Também se espera que os resultados da pesquisa possam ser

organizados, sistematizados e divulgados para a comunidade escolar (professores,

alunos e funcionários), na perspectiva de estimular os debates e de disseminar

informações sobre as políticas públicas existentes que dizem respeito à democratização

do acesso e da permanência na universidade.

Antes, durante ou após a realização da entrevista, qualquer dúvida,

esclarecimento ou orientação necessária a respeito da pesquisa poderão ser buscados

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pelo telefone (16) 982281983 ou Rua Bela Vista, n. 974, apto. 22, Vila Monte Alegre –

Ribeirão Preto/SP, a Maurício Buosi Lemes, ou então (16) 32355658, Rua Geraldo

Alonso Guerra, n. 295, Nova Aliança – Ribeirão Preto/SP, a Fabiana Cristina Severi.

Também poderá procurar o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP/USP), pelo telefone (16) 3315-3386 ou Avenida

dos Bandeirantes, n. 3900, Vila Monte Alegre – Ribeirão Preto/SP, em dias úteis, das 8h

às 17h, em caso de dúvidas ou notificação de acontecimentos não previstos.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola

de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP), que tem

a função de proteger eticamente o participante de pesquisa.

Após ler e receber as explicações sobre a pesquisa, declaro ter entendido os

riscos e benefícios da minha participação e desejo participar do projeto de pesquisa.

Ribeirão Preto - SP, _____de______________de 2016.

Nome do (a) Participante/Assinatura.

Eu, Maurício Buosi Lemes, declaro que forneci todas as informações referentes ao

projeto ao (à) participante. Eu, Fabiana Cristina Severi, declaro que forneci todas as

informações referentes ao projeto ao (à) participante.

_________________________________________________________

Data:___/____/2016.

Maurício Buosi Lemes

_________________________________________________________

Data:___/____/2016.

Fabiana Cristina Severi

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ANEXO 3 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Esse é um convite para que seu (sua) filho (a) participe de uma entrevista que faz

parte da pesquisa: Políticas afirmativas de cotas e a democratização da educação

superior pública brasileira: percepções de terceiro-anistas de ensino médio de uma

escola pública estadual em Ribeirão Preto sobre democracia, cidadania e

universidade. A pesquisa tem como objetivo analisar as ideias de terceiro-anistas de

ensino médio de uma escola pública estadual em Ribeirão Preto - SP sobre as relações

entre democracia, cidadania, acesso e permanência na universidade, com vistas à

compreensão do modo como as políticas afirmativas de cotas influenciam a construção

de seus horizontes e trajetórias pessoais de vida.

A participação do (da) menor consiste na realização de uma entrevista, que terá

duração de aproximadamente 30 (trinta) minutos e será gravada, para posterior

transcrição literal de seu conteúdo. Como risco, é possível que a dinâmica cause

eventual desconforto ao falar. A contribuição do (da) menor nessa pesquisa não envolve

riscos diretos à sua integridade física. Também não trará gastos ou despesas para o (a)

participante, já que o encontro será na própria escola em que estuda.

Qualquer dano material ou moral que venha a acontecer, nas diferentes fases da

pesquisa, pela participação do (a) estudante, será indenizado e de responsabilidade do

pesquisador, Maurício Buosi Lemes. As informações obtidas por meio dessa pesquisa

serão utilizadas apenas nela e asseguramos o anonimato do (da) menor. Os resultados da

pesquisa poderão ser divulgados (tornados públicos) em eventos científicos, na mídia,

ou similares. A participação do seu (sua) filho (a) não é obrigatória, sendo que a

qualquer momento ele (ela) poderá desistir de participar e retirar seu consentimento,

sem que isso lhe traga qualquer prejuízo.

Espera-se que os resultados da pesquisa possam produzir conclusões que apoiem

os estudos políticos e jurídicos que abordam a efetividade do direito à educação, a

democratização do ensino superior e o aperfeiçoamento das políticas afirmativas de

cotas no Brasil. Também se espera que os resultados da pesquisa possam ser

organizados, sistematizados e divulgados para a comunidade escolar (professores,

alunos e funcionários), na perspectiva de estimular os debates e de disseminar

informações sobre as políticas públicas existentes que dizem respeito à democratização

do acesso e da permanência na universidade.

Antes, durante ou após a realização da entrevista, qualquer dúvida,

esclarecimento ou orientação necessária a respeito da pesquisa poderão ser buscados

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169

pelo telefone (16) 982281983 ou Rua Bela Vista, n. 974, apto. 22, Vila Monte Alegre –

Ribeirão Preto/SP, a Maurício Buosi Lemes, ou então (16) 32355658, Rua Geraldo

Alonso Guerra, n. 295, Nova Aliança – Ribeirão Preto/SP, a Fabiana Cristina Severi.

Também poderá procurar o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP/USP), pelo telefone (16) 3315-3386 ou Avenida

dos Bandeirantes, n. 3900, Vila Monte Alegre – Ribeirão Preto/SP, em dias úteis, das 8h

às 17h, em caso de dúvidas ou notificação de acontecimentos não previstos.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola

de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP), que tem

a função de proteger eticamente o participante de pesquisa.

Após ler e receber as explicações sobre a pesquisa, declaro ter entendido os

riscos e benefícios da participação de meu (minha) filho (a), e autorizo a sua

participação no referido projeto de pesquisa.

Ribeirão Preto - SP, _____de______________de 2016.

Nome do Pai, da Mãe ou do (a) responsável/Assinatura.

Eu, Maurício Buosi Lemes, declaro que forneci todas as informações referentes ao

projeto ao (à) participante e/ou responsável. Eu, Fabiana Cristina Severi, declaro que

forneci todas as informações referentes ao projeto ao (à) participante e/ou responsável.

________________________________________________________

Data:___/____/2016.

Maurício Buosi Lemes

_________________________________________________________

Data:___/____/2016.

Fabiana Cristina Severi