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UNIVERSIDADE DO CONTESTADO - UnC
PROGRAMA DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL
ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK
DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO
CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
CANOINHAS
2017
1
ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK
DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO
CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Dissertação apresentado como exigência para a obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Regional do Curso Mestrado em Desenvolvimento regional pela Universidade do Contestado – UnC, Campus Canoinhas, sob a orientação do professor Dr. Alexandre Assis Tomporoski.
CANOINHAS
2017
2
DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO
CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK
Esta Dissertação foi submetida ao processo de avaliação pela Banca
Examinadora como requisito parcial para a obtenção do Título de:
MESTRE EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL
E aprovado na sua versão final em 24 de fevereiro de 2017, atendendo às
normas da legislação vigente da Universidade do Contestado – UnC e Coordenação
do Curso do Programa de Desenvolvimento Regional.
___________________________
Prof. Dr. Argos Gumbowsky
Coordenador do Programa
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Presidente: Prof. Dr. Alexandre Assis Tomporoski
____________________________
Membro: Prof.Dr. Fabio Francisco Feltrin de Souza
____________________________
Membro: Prof. Dra. Maria Luiza Milani
3
AGRADECIMENTOS
Pelo incentivo, companheirismo e persistência em não me deixar desistir
sempre que achava ser o caminho mais fácil, ao meu irmão de alma e coração,
Ernani Bortolini, minha maior gratidão à sua lealdade e generosidade em me provar
a cada dia, a importância do estudo e da leitura.
Ao meu filho Matheus, que por longas horas ficou sem a minha presença,
mas compreendeu a importância de que estudar sempre vale a pena, o meu eterno
amor.
Ao meu marido Hirohito, que através do meu exemplo se propôs a retomar
seus estudos. Por muitas vezes presenciou meu desânimo, meu cansaço, mas
agora dividirá a minha alegria pela conclusão deste trabalho.
A minha família, meus irmãos e minha mãe que se fizeram sempre presentes,
vibraram a cada etapa concluída e acreditaram no meu potencial, meu eterno
agradecimento.
Aos colegas de Mestrado, em especial a minha amiga Valéria, que tornava as
aulas e as viagens menos cansativas. A convivência durante estes dois anos me
proporcionou um encontro de almas e a certeza de uma amizade eterna.
Ao meu orientador, Professor Alexandre, meu maior incentivador, por vezes
me dizia que era possível, acreditou em mim quando nem eu mesma acreditava,
minha eterna gratidão, admiração e agradecimento.
A professora Soeli Regina da Silva Lima, que me forneceu vasto material para
a pesquisa e sempre se demonstrou interessada pelo resultado final, o meu
agradecimento.
E por fim, mas não menos importante, ao meu Deus, que me concebeu a vida
e a capacidade para concluir mais uma etapa de estudos. A Nossa Senhora
Aparecida, que sempre me guiou durante as várias viagens rumo a Marcílio Dias.
4
LISTA DE ABREVIATURAS
APROSESC ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTOS E SEMENTES DO ESTADO DE
SANTA CATARINA
CC CÓDIGO CIVIL
CF CONSTITUIÇÃO FEDERAL
CIMH CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES
CPC CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DECOM SERVIÇO ESPECIAL DE DEFESA COMUNITÁRIA
EMBRAPA EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA
EPAGRI EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA E EXTENSÃO
RURAL
IBDF INSTITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL
IDH ÍNDICE DESENVOLVIMENTO HUMANO
IDHM ÍNDICE DESENVOLVIMENTO HUMANO MUNICIPAL
INCRA INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
AGRÁRIA
ONU ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS
5
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Mapa da divisão da área por glebas e propriedades................................ 49
Figura 02: Gráfico do tamanho de área (em há) das propriedades
desapropriadas .......................................................................................................... 54
Figura 03: Audiência Pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva
em 14 de outubro de 2014 ........................................................................................ 71
Figura 04: Invasão do Campo de Instrução Marechal Hermes ................................. 98
Figura 05: Militar, montado sobre um tanque de guerra, ouvindo as reivindicações
dos invasores. ........................................................................................................... 99
6
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de
1994 ........................................................................................................................ 114
Quadro 2: Atualização de perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no
ano de 1994 ............................................................................................................ 115
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8
2 PROPRIEDADE ..................................................................................................... 15
2.1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE ..................................................................... 15
2.1.1 O Direito de Propriedade na Legislação Brasileira ........................................... 16
2.1.1.1 O Regime Militar ............................................................................................ 24
2.1.2 A Função Social da Propriedade ...................................................................... 27
2.2 O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO ............................................................. 29
2.3 CONTESTADO ................................................................................................... 32
2.3.1 O Capital Estrangeiro e a Construção da Ferrovia ........................................... 37
2.3.2 A Decadência da Lumber e seu Impacto na Região ........................................ 44
3 CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES ................................................ 48
3.1 DA ESTATIZAÇÃO DA LUMBER À INSTALAÇÃO DO CIMH: ........................... 49
3.2 EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO ADMINISTRATIVA ......................................... 62
3.2 UMA NOVA TENTATIVA DE SOLUÇÃO JUDICIAL ........................................... 72
4 DESENVOLVIMENTO ........................................................................................... 80
4.1 Das Privações das Liberdades Substantivas e Instrumentais, Consequências da
Desapropriação ......................................................................................................... 88
4.2 O Acampamento “São João Maria” ..................................................................... 95
4.3 DENÚNCIAS DE IRREGULARIDADES E INJUSTIÇAS ................................... 102
4.3.1 Consequências Econômicas da Desapropriação ........................................... 109
4.3.2 A Luta Continua .............................................................................................. 118
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 122
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 128
8
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa surgiu a partir da curiosidade em compreender as
disputas fundiárias no Pós-Contestado, a luta pelas terras desapropriadas do Campo
de Instrução Marechal Hermes e seus reflexos sobre o desenvolvimento na região.
Durante o período escolar, na adolescência vivenciada na cidade de
Canoinhas, os estudos sobre a Guerra do Contestado não foram suficientes para
dimensionar a importância dos movimentos de resistência ao Estado e ao capital
estrangeiro iniciado no século XX e com reflexos no século seguinte, influenciando
na formação do território norte catarinense.
Após a conclusão da graduação no curso de Direito e a prática da advocacia
exercida em outras regiões, o ingresso no Programa de Mestrado em
Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado proporcionou a retomada
da temática através dos estudos e aprofundamento conceitual e teórico que
explicam como a luta dos posseiros e pequenos proprietários de terra configurou a
região do Planalto Norte Catarinense e impactou o (sub) desenvolvimento da região.
Por um viés jurídico foi possível conhecer a história e os reflexos das
questões fundiárias, a luta antioligárquica e a resistência aos abusos do capital
estrangeiro e seu impacto no Pós-Contestado. Os acontecimentos históricos, ao
longo do tempo, são responsáveis pela formação do território e da identidade do seu
povo e a luta e a resistência são características marcantes e arraigadas nos
minifundiários desta região.
Assim, através dos estudos e aprofundamentos teóricos apresentados pelo
economista indiano Amartya Sen, especificamente sobre o seu escrito
“Desenvolvimento como Liberdade”, identifica-se, num primeiro momento, a
semelhança entre a temática e a proposta do autor. É a partir deste encontro, entre
a análise histórica e jurídica da luta pela terra com os estudos das liberdades
substantivas e instrumentais como fim e meio de desenvolvimento, que se iniciaram
as inquietações e questionamentos sobre as garantias elementares e constitucionais
dos cidadãos em contraposição à prática reiterada do Estado de políticas dotadas de
autoritarismo, desprovidas de qualquer participação popular, gerando privações nas
escolhas e oportunidades dos norte-catarinenses.
A semelhança entre o conflito armado da Guerra do Contestado e a luta pela
terra Pós-Contestado na mesma região se configura na similaridade das partes
9
envolvidas e na resistência dos pequenos agricultores em entregar passivamente
suas terras, seja ao capital estrangeiro ou ao Estado. Não aceitam a violação dos
seus direitos e se socorrem, neste século, não a uma guerra armada, mas na
confiança que depositam na Justiça e nas instituições para a solução do conflito.
O impasse fundiário estabelecido entre os anos de 1956 até os dias atuais
ainda é resquício da inserção do capital estrangeiro no início do século XX na região
e envolve a empresa Brazil Railway Company e sua subsidiária Lumber Company,
situada na região de Três Barras/SC. Por descrédito público e interesse nacional foi
estatizada através do Decreto-Lei n. 2.346/40 e culminou na transferência de parte
do patrimônio da empresa estrangeira ao Exército e posteriormente na
desapropriação de áreas contíguas para a instalação do Campo de Instrução
Marechal Hermes.
A licitação dos bens encampados, a legalidade dos atos de transferência do
patrimônio da empresa estrangeira ao Ministério da Guerra, a participação do
Governo Catarinense na indicação da área a ser desapropriada, a forma violenta
como foi cumprido o ato de expulsão dos agricultores de suas terras, bem como o
não cumprimento da Constituição Federal de 1988 no que tange ao pagamento de
justas indenizações, foram motivos de calamidade social na região e configuram
fortes indícios de satisfação de interesses escusos de uma minoria em detrimento do
povo norte catarinense.
Partindo da concepção de que o desenvolvimento pode ser considerado como
a eliminação das privações de liberdade que possam limitar as escolhas e as
oportunidades das pessoas de exercerem sua condição de agente inserido em
determinada sociedade e em determinado território (SEN, 2016), constitui-se o
seguinte problema: Como o processo de desapropriação das terras utilizadas
para a formação do Campo de Instrução Marechal Hermes, em Três Barras/SC,
impactou sobre o desenvolvimento daquele território?
Em um primeiro olhar, o que ocorreu na desapropriação de extensa área
produtiva de terras no Planalto Norte Catarinense para a instalação de um Campo
de Instrução de forma alguma condiz com os preceitos constitucionais vigentes à
época.
Diante desta ilegalidade, a justificativa desta pesquisa se apresenta sob dois
enfoques: teórica e prática.
10
A relevância teórica do estudo, por meio da análise desta temática, se
configura no aprofundamento e conhecimento do contexto fundiário na região para
que outros pesquisadores usem como base e ampliação do tema em pesquisas
futuras. Trata-se de uma contribuição com a ciência do desenvolvimento, a partir da
análise dos aspectos sociais, políticos e jurídicos de determinado território em
processo de desenvolvimento, comparando com a abordagem da liberdade como
fim e meio de desenvolvimento.
Para a ciência do direito, a análise aprofundada das etapas processuais,
considerando o posicionamento da Procuradoria da República em confronto com os
argumentos dos agricultores, a presente pesquisa se mostra relevante
principalmente para o direito civil e processual civil, uma vez que esclarece os
pronunciamentos judiciais de órgãos inferiores e Tribunais Superiores do Poder
Judiciário, através do conhecimento do teor dos documentos que compõem o
Processo n. 501.114/87 e suas aproximadas 600 páginas.
A jurisdição exerce-se processualmente. Mas não é qualquer processo que legitima o exercício da função jurisdicional. Ou seja: não basta que tenha havido um processo para que o ato jurisdicional seja válido e justo. O método-processo deve seguir o modelo traçado na Constituição, que consagra o direito fundamental ao processo devido, com todos os seus corolários [...] (DIDIER JR, 2016, p. 30)
Em que pese o estudo aprofundado deste conflito manter-se no plano
bibliográfico, a pesquisa se apresenta com importante relevância prática, pois possui
a pretensão de descritivamente apontar se o Estado atuou nos exatos termos da
legislação, considerando as regras da Desapropriação por Utilidade Pública. Ainda,
analisa se limitou os pequenos posseiros e proprietários de terra às escolhas e
oportunidades de se inserirem como agentes naquela sociedade, considerando a
possibilidade de desenvolvimento nestas condições.
A pesquisa científica trará a oportunidade de esclarecer se o Estado agiu de
forma opressora e retirou daquela região a possibilidade de desenvolvimento através
da exploração produtiva e rentável dos recursos naturais da área, com a
investigação do material humano e documental presente à época.
Ainda, os resultados apontados na presente pesquisa servirão para trazer a
lume à questão processual que paira sobre a expectativa dos proprietários em
11
receber a indenização por perdas e danos e dimensionar os efeitos desta longa
disputa fundiária.
A partir destas concepções, a pesquisa poderá contribuir na divulgação deste
impasse fundiário, o qual atravessa longos 60 anos, para o conhecimento da
sociedade local, regional e nacional da realidade vivenciada pelos desapropriados e
suas expectativas em busca de justiça. Pode, também, tornar-se objeto de ações
articuladas dos agentes e instituições para a mudança do cenário social atual da
região.
É necessário pesquisar se a atuação do Estado na região do Planalto Norte
Catarinense criou condições para que o indivíduo se reconheça como pessoa
humana e sob tal pressuposto, contemplou as liberdades reais, atingindo o objetivo
do desenvolvimento através da abordagem do autor.
O objetivo consiste em identificar as desapropriações fundiárias para
composição do Campo de Instrução Marechal Hermes em Três Barras/SC, que
configura como parte do processo de luta pela terra na região do Contestado e seu
impacto sobre o desenvolvimento regional.
Para tanto, deverá descrever o processo histórico de disputa fundiária na
região do Contestado com especial atenção à atuação do Estado em diferentes
contextos, bem como explicar a trajetória da disputa legal pelas terras do Campo de
Instrução Marechal Hermes. Ainda, pretende examinar o impacto da disputa pelas
terras do CIMH no desenvolvimento da região com a perspectiva do
desenvolvimento como resultante do exercício da liberdade.
A hipótese que direciona a pesquisa se apresenta pela seguinte proposição:
Se a Constituição Federal e a Legislação Ordinária garantem a individualidade do
direito à propriedade e somente o interesse coletivo e o bem estar social autorizam
mediante uma justa indenização a quebra deste individualismo, então identifica-se a
presença autoritária do Estado e a atuação limitadora dos indivíduos, quando se
viola a norma regulamentadora. Desta forma, haverá antagonismo entre a condição
de excluídos destes desapossados e o principal fim do desenvolvimento, na
abordagem assentada na liberdade.
Na obra dos juristas Ferreira; Gonçalves (2008) a propriedade só existe se o
Estado a mantém. Dos direitos fundamentais talvez seja a propriedade o que mais
deva ao Estado. De fato, o senhorio do homem sobre as coisas, numa larga medida,
12
é uma benesse do Estado que o protege contra a cobiça dos outros homens. Sem
polícia, sem justiça, de que valeria a propriedade?
Na perspectiva do autor, a luta pela terra desapossada é justa e legalizada. O
conflito fundiário estabelecido na região causou o aumento da desigualdade social, e
a justificativa de utilidade pública do ato expropriatório não parece ter atendido a
função social de bem estar coletivo ou segurança nacional, necessitando de um
maior esclarecimento sobre como se deu o processo de luta pela terra ao longo de
todo o lapso temporal.
Sob tais pressupostos, torna-se possível questionar as condições de
desenvolvimento desta região sob as perspectivas da necessidade de expansão das
liberdades e as contradições inerentes da omissão do Estado em solucionar o
problema social gerado pela desapropriação.
Desta forma, a partir da análise dos procedimentos adotados pelos
desapropriados, da invasão e interferência dos movimentos sociais (Movimento dos
Sem Terra) e da participação das mais diversas autoridades ao caso, será possível
analisar e correlacionar à prática de desenvolvimento humano, social, político e
econômico da região, o que talvez, poderá contribuir não só na busca de uma
solução ao impasse, mas na melhoria dos índices de desenvolvimento humano, de
qualidade de vida e a diminuição da desigualdade social e fundiária presente no
território em que estes estão inseridos.
No tocante à estrutura capitular da dissertação, assim se apresenta: o
primeiro capítulo procura discorrer sobre a evolução histórica do instituto da
propriedade, considerando o paradoxo entre o individualismo e a supremacia do
bem estar coletivo. Para tanto, vale-se do diálogo proposto por Motta e Zarth (2008)
que discorrem sobre a importância da questão do acesso a terra como uma das
principais preocupações da histografia internacional, com a intenção de deslindar as
variadas formas de seu acesso. Nakamura (2013) contesta a propriedade absoluta
afirmando que a propriedade é um direito natural, o qual deve ser exercido de
acordo com uma função social, não só em proveito do titular, mas também em
benefício da coletividade. A propriedade deve ser produtiva e útil. Um bem não
utilizado ou mal utilizado é constante motivo de inquietação social. A má utilização
da terra e do espaço urbano gera violência. Ainda, será apresentada a legislação
brasileira acerca do tema e a importância da Lei de Terras (Lei n. 601/1850) como
célula embrionária do instituto da propriedade.
13
Em continuação, é feita uma análise sobre o Instituto da Desapropriação, o
surgimento e permanência nas Constituições Brasileiras, com destaque aos
preceitos da Carta Magna de 1946, vigente à época desta temática, e a legislação
ordinária através do Decreto-Lei n. 3.365/41, que rege as regras a serem aplicadas.
Segundo Venosa (2011) sempre se admitiu a possibilidade do Estado intervir no
domínio privado e o crescente intervencionismo no patrimônio privado tornou o
problema mais patente. A desapropriação diz respeito também à utilização social da
propriedade, a qual deve passar ao domínio do Estado em razão de interesse social
que supera o interesse individual, justificando o ato de desapropriação como ato de
soberania.
Finalizando o capítulo, apresentam-se as razões e as consequências da
inserção do capital estrangeiro e a construção da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, as
quais modificaram o panorama social, econômico e político da região. A partir do
intercurso dialógico entre Thomé (1993) e Machado (2001) mostra-se como a região
do Contestado passava no início do século XX por um severo processo de
transformação, caracterizado principalmente pela penetração de novas forças
políticas e econômicas que impôs novas relações. Encerra-se o capítulo
correlacionando as similaridades e as consequências que a Guerra do Contestado
gerou no território do Planalto Norte Catarinense.
Partindo destas considerações, no segundo capítulo coloca-se em discussão
o procedimento e a legalização da estatização da empresa estrangeira Brazil
Railway Company e sua subsidiária Lumber Company e a transferência de parte do
patrimônio ao Ministério da Guerra para a instalação do Campo de Instrução
Marechal Hermes. A partir da análise dos depoimentos, jornais e documentos
apresentados por Lima (2016) e Tomporoski (2016), colocam-se em debate as
condições, interesses e consequências que o capital estrangeiro e a imissão de
posse de terras produtivas pelo Exército causaram nos pequenos posseiros e
proprietários da região.
No terceiro e último capítulo procura-se demonstrar a relação entre a luta pela
terra, a liberdade e o desenvolvimento. Inicialmente apresenta-se a abordagem de
Amartya Sen quanto ao conceito mais social de desenvolvimento, considerando as
liberdades reais e as privações do indivíduo na sociedade, para, em seguida,
relacioná-la ao (sub) desenvolvimento da região devido à improdutividade de
extensa área de terras e a baixa qualidade de vida que ficaram expostos os
14
desapropriados. Para encerrar, têm-se os depoimentos, notícias divulgadas pela
imprensa e apelos que definem o posicionamento da questão pelos desapossados,
bem como a justificativa para as decisões desfavoráveis do Poder Judiciário no
desfecho dos processos judiciais.
Destarte, a pesquisa sugere uma leitura desprovida de qualquer tese
defensiva inerente ao exercício da advocacia, pois será necessário conceber os
desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes como indivíduos iguais
em direitos e participações nas decisões políticas fundiárias da região. Já com
relação ao Estado e o direito de desapropriar sob a justificativa de utilidade pública,
é necessário considerar a legislação vigente à época, a supremacia da coletividade
e da segurança nacional em detrimento do individualismo da propriedade. Mas na
atual realidade, têm-se mais de 2000 mil pessoas, direta ou indiretamente, atingidas
pelo ato expropriatório, vivendo na expectativa de retrocessão de suas terras ou
pagamento justo de indenizações para compensar ou amenizar a extrema miséria,
pobreza e a falta que a terra lhes fez para proporcionar uma vida digna a si e aos
seus familiares, já que o Estado não compreende o despropósito em que esta
sociedade está inserida e que reflete nos limites do desenvolvimento.
15
2 PROPRIEDADE
2.1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE
Ao longo da história o instituto da propriedade assumiu diferentes modelagens
até se consolidar como direito exclusivo e irrevogável, porém não absoluto. Deste
modo, a propriedade tornou-se a espinha dorsal do direito privado, contudo com
prevalência do bem comum ante a individualidade.
Essa modelação, representada atualmente pela função social da propriedade,
não prevalecia, quando estava sob a influência das revoluções burguesas e do
liberalismo, apresentando, naquela época, o status individualista.
A discussão acerca da fundamentação do direito à propriedade, já se iniciava,
para Locke, diante das concepções de Hobbes – que concebia a propriedade como
direito positivo; ou a doutrina apresentada por Pufendorf que a adotava como “direito
puramente natural”.
Na formulação de Locke, o direito à propriedade é um direito natural e
inalienável, servindo para a criação do governo civil e para a atribuição de direitos
políticos dos indivíduos. Tratando-se da aquisição da propriedade, o autor considera
que o trabalho é uma propriedade inalienável e que serve como instrumento para se
obter a propriedade privada. Como “Deus deu a terra para todos”, haveria uma
igualdade no direito à terra: sendo a propriedade um direito natural (pré-existente ao
Estado) que pode ser alcançado através da razão e do individualismo1, cita Enzo
Bello no artigo “A teoria política da propriedade para Locke e Rousseau: uma análise
à luz da modernidade tarde” (p.3).
Nota-se que a propriedade tornou um direito sagrado, inviolável e uma
exteriorização da própria pessoa, tendo como única exceção a necessidade pública
que prevalecia diante do individualismo.
A consagração da teoria individualista da propriedade foi repetida na
Constituição Francesa de 1791, no artigo 544 que publica o conceito: “A propriedade
é um direito de usar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, com a condição
de não fazer uso proibido pelas leis ou regulamentos” (ROCHA, 1992, p. 24).
O modelo francês que destacou o individualismo da propriedade passou a ser
1 Nesse sentido, Locke assevera que “a terra é mais produtiva quando apropriada individualmente”
(J.LOCKE, op. cit. p.37)
16
inserido nas legislações ocidentais, as quais seguiram o conceito como direito
fundamental. Todavia, com o passar do tempo, a propriedade absoluta foi perdendo
força, novos fatores de ordem econômica, social e política resultaram na diminuição
dos poderes do proprietário e o Estado Liberal não conseguiu contemplar a tarefa de
assegurar a prestação dos serviços fundamentais individuais.
Uma vez estabelecida a democracia, presente na maioria das nações, o
Estado precisou assumir esta tarefa de proteção à sociedade como um todo e não
como um somatório de individualidades. Para tanto, interveio nas relações privadas
e no direito de propriedade dos particulares.
Com o surgimento da Democracia Representativa Ocidental, o direito à
propriedade passou a depender de proteção e intervenção, ao passo que poderia
ser esbulhada a qualquer momento. A propriedade somente se mantém se o Estado
a garantir.
Dos direitos fundamentais talvez seja a propriedade o que mais deva ao Estado. De fato, o senhorio do homem sobre as coisas, numa larga medida, é uma benesse do Estado que o protege contra a cobiça dos outros homens. Sem polícia, sem justiça, de que valeria a propriedade? (FERREIRA; GONÇALVES, 2008 p.309).
Deste modo, o direito à propriedade no estado contemporâneo não é absoluto
e não tem mais aquela configuração individualista de outrora, coaduna com o ideal
liberal, mas se amolda à supremacia do interesse público pelos ditames da justiça
social.
2.1.1 O Direito de Propriedade na Legislação Brasileira
No ano anterior à Independência, o Brasil detinha a condição de Reino Unido,
e a partir de Decretos de Dom Pedro I surgiram mudanças importantes e
significativas em relação à distribuição de terras.
Por sua vez, em 18222 foi proibida a cessão de terras através do Regime de
Sesmarias 3 , e esta condição permaneceu inalterada até a regulamentação da
2 Resolução 17 de julho de 1822 (CAVALCANTI, 2003, p. 02).
3 Entre 1702 a 1822, Portugal decide por estabelecer as Sesmarias como regime básico de gestão
fundiária, que tem como característica a inexistência da propriedade absoluta da terra, com a Coroa transferindo ao sesmeiro o usufruto condicionado ao cumprimento de algumas exigências, como o cultivo, a mediação, a demarcação e a posse.
17
questão fundiária através da Lei de Terras (1850). Segundo Quaresma (2010), neste
período de limbo (1822 – 1850) a única forma de acesso a terra era pela posse.
Todavia, a questão da distribuição de terras no Brasil se tornava algo
complexo após a suspensão do Regime de Sesmarias, e havia a necessidade de
regularizar as áreas apossadas após a Independência do Brasil, bem como
organizar as doações de terras do início da colonização portuguesa.
Segundo Cavalcanti (2003), neste momento da história brasileira o posseiro
passava a ter protagonismo no cenário social, pois a Resolução o reconhecia como
parte integrante do desenvolvimento da agricultura, e muitos viam no regime de
sesmarias o responsável pela miséria e pelo atraso da agricultura no país. A nova
legislação fundiária promoveria alterações fundamentais nesta questão.
Angelo (2007), em seu artigo sobre a Lei de Terras, retrata o contexto
existente em 1850 e a necessidade da regulamentação da legislação:
Entre os séculos 16 e 18, contudo, as capitanias foram, pouco a pouco, voltando para o domínio da Coroa portuguesa, através da compra ou do confisco. Afinal, as terras não eram de propriedade dos donatários, que tinham apenas a posse sobre os territórios, mas sim de Portugal. Em 1759, sob determinação do Marquês de Pombal, primeiro-ministro da Coroa, as capitanias hereditárias foram finalmente extintas e o Brasil passou a dividir-se em capitanias reais, doadas a fidalgos e religiosos portugueses. Nesse contexto, portanto, é que foi sancionada a Lei de Terras de 1850, a fim de regularizar a questão fundiária e responder, ao mesmo tempo, aos novos desafios colocados pelo fim do tráfico negreiro e a necessidade de mão-de-obra estrangeira. (2007, p. 2)
Para Cavalcanti (2003), a organização política do país gerou um caos diante
do descontrole da distribuição de terras, fato este que motivou inúmeros debates.
Uma das vozes ativas neste contexto foi a de José Bonifácio de Andrada e Silva, um
dos pioneiros a apresentar um projeto de revalidação das concessões de Sesmarias
e para regularização da posse. Segundo ele, “não era possível apenas terminar com
o regime de Sesmarias sem antes criar políticas para normalizar as terras”.
Em seu projeto, José Bonifácio propunha também beneficiar os europeus pobres, índios, os mulatos e os negros forros. Porém este projeto nunca saiu do papel. [...] Tratava-se de um projeto de intervenção pública na distribuição de terras e, portanto, limitava o poder dos senhores e possuidores de terras, que estariam submetidos aos interesses mais gerais da coroa. Suas propostas não foram levadas adiante (CAVALCANTI, 2003, p. 02).
O modelo de Sesmarias permaneceu como forma de distribuição de terras até a Independência do Brasil e as terras que não foram doadas neste modelo continuava pertencendo à Coroa Portuguesa.
18
Mesmo com o crescimento descontrolado do número de posseiros após a
cessação do Regime de Sesmarias surge, após sete anos do projeto proposto por
José Bonifácio, Padre Diogo Feijó, responsável por outro projeto para a solução da
questão fundiária no Brasil. Segundo Feijó, o parcelamento das terras devia basear-
se na unidade familiar; em outras palavras, era a consolidação de pequenas
unidades familiares, que aumentavam à medida que crescia o número de
componentes, incluindo os escravos (CAVALCANTI, 2003, p. 03).
Similares, os projetos de Bonifácio e Feijó tinham cunho social e inclusivo,
visavam conter os abusos de sesmeiros e dos grandes posseiros, que detinham
grandes glebas de terras, mas não as empregavam na produção.
No entanto, o projeto que foi enviado à Câmara dos Deputados do Império em
1843, e posteriormente tornou-se a célula embrionária da legislação fundiária no
Brasil, não foi o pioneiro que levantara a questão social do acesso a propriedade,
mas outro, de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário Miranda
Ribeiro. Estes unificaram as ideias apresentadas por Bonifácio e Feijó, baseando-se
no principal objetivo de promover a imigração de trabalhadores pobres.
A Lei de Terras, denominação atribuída a Lei n. 601/1850 foi sancionada pelo
Imperador Dom Pedro II duas semanas antes da Lei Eusébio de Queiróz, a qual
abolia o tráfico de escravos no Brasil. Com o intuito de suprir a necessidade de mão
de obra dos fazendeiros, que se opunham à mão de obra nacional por entender
desqualificada, e também devido ao alto índice de mortalidade dos ex-escravos
restantes no país, a legislação sancionada pelo Imperador tratou de incentivar a
importação de trabalhadores estrangeiros, imigrantes particularmente vindos da
Europa. Entre outros pontos, o projeto propunha: a compra de terras devolutas -
desocupadas - por meio de pagamento à vista, em dinheiro e sob altos valores; a
legalização das sesmarias doadas até 1822 e das áreas que a partir daquela data
estivessem ocupadas por mais de um ano; o registro de todas as terras num prazo
de seis meses, sob pena de confisco; a medição e demarcação dos terrenos, sob
risco de serem considerados áreas devolutas, e a criação de um imposto sobre as
terras, que seriam confiscadas em caso de não pagamento por três anos
consecutivos ou alternados.
Tratava-se de um projeto polêmico, com a imposição de penas em caso de
descumprimento, inclusive a expropriação, e sinalizava um regime tributário na lei.
Seguindo ao Senado, o projeto foi aprovado com algumas mudanças do texto
19
original, que passou a atender aos interesses dos grandes proprietários ante a
questão social inicialmente proposta e evidenciava a força política dos latifundiários
na discussão. No texto final, os senadores suprimiram a expropriação e a cobrança
de imposto territorial e substituíram pelo pagamento de multa em caso de não
cumprimento da lei.
A terra, nessa nova perspectiva, deveria transformar-se em uma valiosa mercadoria, capaz de gerar lucro, tanto por seu caráter específico quanto por sua capacidade de gerar outros bens. Procurava-se atribuir à terra um caráter mais comercial e não apenas um status social, como era característico da economia dos engenhos do Brasil Colônia (CAVALCANTI, 2003, p.01)
A Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 teve como principal destaque a forma
única de aquisição de terras. Estava definitivamente encerrada a obtenção de terras
pelo Regime de Sesmarias ou pela posse ilegal, senão apenas pela compra das
terras devolutas 4 , consideradas: aquelas que não se aplicavam ao uso público
nacional, provincial ou municipal; as que não se achavam no domínio particular de
qualquer título legítimo e nem que haviam sido sesmarias e outras concessões do
Governo Geral ou Provincial; ou aquelas que não se achavam doadas por sesmarias
ou outras concessões do Governo, mas que foram revalidadas por esta Lei.
Eis o significado crucial da Lei das Terras: até 1850 poder-se-ia falar de posseiro, concessionário ou sesmeiro, mas não de proprietário (nos moldes em que modernamente esse termo é compreendido). A partir de então, finalmente, seria possível ver emergir de modo claro a figura do proprietário, quer fosse o proprietário particular quer fosse o proprietário Estado (FONSECA, 2003, p.109)
Somente a partir da Lei de Terras implantada no Brasil é que as posses e
sesmarias passaram a ser registradas em cartório, através do Decreto n.1318, de 30
de janeiro de 1854. Os registros de terras no Brasil eram feitos, até então, nas
paróquias da igreja que, nesta época colonial, era unida oficialmente ao Estado.
Surgiram como documentos a identificar informações acerca do modo que as
pessoas viviam, se aquela terra havia sido herdada, ocupada ou doada, a área
limítrofe, a região onde se localizava e como era constituída a mão de obra.
4 No período colonial, o termo “terra devoluta” era empregado para designar a terra cujo cessionário
não cumpria as condições impostas para sua utilização, o que ocasionava a sua devolução para quem a concedeu: a Coroa. Com tempo, esse termo passou a ter o significado de vago (CAVALCANTI, 2003, p. 04-05).
20
A Lei das Terras criou normas e parâmetros sobre a posse, manutenção, uso
e comercialização da terra. O maior objetivo da criação desta lei foi estabelecer a
compra como única forma de obtenção da propriedade da terra, desconsiderando a
doação e os sistemas de posse para aquisição da propriedade privada. Com isso o
governo pretendia arrecadar mais impostos e taxas com a necessidade de registro
das terras.
Esses recursos teriam como destino o financiamento da imigração
estrangeira, voltada para a geração de mão de obra, principalmente, para as
lavouras de café. Além disso, também se pretendia dificultar a compra ou posse de
terras por pessoas pobres, favorecendo o uso destas para fins de produção agrícola
voltada para a exportação. Esse foi o velado objetivo alcançado pelo governo, pois
esta lei provocou o aumento significativo nos preços das terras no Brasil e favoreceu
os grandes proprietários rurais, que passavam a ser os únicos detentores dos meios
de produção agrícola, principalmente a terra, no Brasil.
Antes da promulgação da Lei de Terras, os lotes eram cedidos gratuitamente aos colonos, que se instalavam por conta própria, por conta do governo ou por conta das companhias de colonização. Após essa lei, em regra, o governo cedia gratuitamente as terras às companhias, que por sua vez as revendiam aos imigrantes em condições lucrativas (CAVALCANTI, 2003, p. 05).
Segundo Angelo (2007) a promulgação da Lei não alcançou o seu real
objetivo. Embora tenha sido um passo importante na regulamentação da questão
fundiária, a Lei de Terras teve pouca consequência prática, com exceção da
dificuldade criada às camadas mais pobres da população e aos imigrantes, que
também em decorrência do processo de concentração fundiária, viram-se obrigados
a trabalhar nas grandes fazendas de café.
Grande parte das sesmarias e das posses não foi legalizada; as terras do Império continuaram a ser ocupadas de forma ilegal e sistemática; boa parte das propriedades nunca foi medida nem demarcada; as multas, quando aplicadas, poucas vezes foram pagas. Na medida em que elevou o preço da terra, exigindo também o pagamento à vista e em dinheiro no ato da compra, a lei n. 601 contribuiu para manter a concentração fundiária que marca a realidade brasileira até hoje (ANGELO, 2007, p. 03)
Costa sintetiza o estatuto jurídico da terra em dois momentos distintos:
Quando a terra era uma doação real, o rei tinha o direito de impor certas
21
condições, regulamentando o seu uso, sua ocupação e limitando o tamanho do lote e o número de doações recebidas por cada pessoa. Quando a terra tornou-se uma mercadoria adquirida por indivíduos, as decisões concernentes à sua utilização passaram a serem tomadas por esses mesmos indivíduos (1987, p.129)
A Lei de Terras representou um importante marco para a consolidação do
poder dos grandes proprietários e para a preparação do país para o fim do cativeiro
e a imigração de trabalhadores europeus. Havia um regime de terras livres e de
trabalho cativo que, tendo em vista o fim do tráfico africano e a necessidade do
trabalho livre, deveria ser substituído por um regime de terras cativas, para a
sobrevivência da grande propriedade. Se as terras continuassem livres para libertos,
nacionais e imigrantes, não haveria braços disponíveis para as grandes lavouras. É
inegável que a regularização das terras seria benéfica aos proprietários (MACHADO
2011, p.05).
A Lei de Terras foi a legislação agrária que tratou sobre a aquisição e
distribuição de terras e reafirmou a tradição latifundiária brasileira que igualmente
persistiu nas primeiras legislações constitucionais que estavam por vir.
Com a promulgação da Constituição Imperial em 1824 no Brasil, o direito à
propriedade passou a adotar forte tendência liberalista proveniente dos ideais
franceses. Este direito foi declarado em sua plenitude, mantendo a ressalva do
direito à expropriação apenas por necessidade ou utilidade social, ou seja, naquela
situação em que restaria comprovado o uso do bem público em desfavor da
propriedade do cidadão. No entanto, esta exceção deveria ser analisada por lei
própria a ser regulamentada, bem como a avaliação e os parâmetros de indenização
ao proprietário expropriado.
Fonseca (2003, p. 107) menciona:
Vê-se aqui no Brasil – num país que na primeira metade do século XIX era marcadamente dependente do trabalho escravo das lavouras (e assim continuaria até 1888) e que herdava um sistema de terras juridicamente colorido por institutos feudais e por práticas de ocupação – a presença de um sistema jurídico constitucional flagrantemente iluminista e liberal (no âmbito formal) é de forma surpreendente.
Esse paradoxo presente na Constituição Imperial demonstra a tendência
presente na cultura jurídica brasileira em receber e adaptar de modo especial os
princípios jurídicos europeus e, em particular, o de propriedade (BENEDETTO,
2002, p.27-29).
22
Segundo Quaresma (2010) a Constituição Republicana de 1891 não
discrepou dos ideais liberais da Carta Magna Imperial. A novidade ficou por conta da
equiparação de estrangeiros nos direitos políticos e civis, previstos no artigo 725: “A
Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade”. Em termos similares manteve o individualismo da propriedade6.
Em 18 de julho de 1934 foi promulgada uma nova Constituição Brasileira. O
novo preceito constitucional foi influenciado parcialmente pela Constituição Alemã da
República de Weimar 7 e também pelos movimentos revolucionários europeus
advindos do proletariado, que acabava por misturar princípios liberais e autoritários.
Na nova Carta Magna, o conceito clássico de propriedade como direito
exclusivamente individualista, consagrado no Código Romano de Lei Civis (Corpus
Juris Civilis), em que se operava a propriedade como direito de usar, gozar e dispor
das coisas de forma absoluta, sofreu mudanças significativas, segundo Venosa
(2011).
A conveniência do interesse coletivo passou, no entanto, a limitar o
individualismo. Para Rocha (1992), a nova Constituição (1934) era influenciada pelo
pensamento filosófico que opunha limitações ao liberalismo exacerbado do século
XIX com as chamadas “questões sociais”, e o atributo dado à faculdade de possuir,
de poder absoluto sobre a propriedade, implantado pela Revolução Francesa, cedia
espaço para as considerações de interesse coletivo. Ainda segundo o autor, a
Constituição de 1934,
Inovou e tratou no seu artigo 125 a figura do usucapião pro labore ou especial, valorizando o trabalho e realçando especial proteção a quem viesse ocupar por dez anos contínuos, tivesse a posse mansa e pacífica, e não sendo proprietário rural ou urbano de gleba de terra até dez hectares e ainda tornando-a produtiva por seu trabalho bem como estabelecendo aquela terra como moradia, adquiria mediante sentença declaratória a propriedade do solo (1992, p. 34).
5 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm
6 Uma reforma constitucional realizada em 1926 especificou outras restrições, que se referiam às
minas e jazidas necessárias à segurança e defesa nacional. 7 PINTO, Tales dos Santos. "República de Weimar e a ascensão do nazismo" A República de Weimar
foi o período da história alemã compreendido entre os anos de 1919 e 1933, entre o fim da I Guerra Mundial e a ascensão do partido nazista ao poder. Os acontecimentos históricos deste período são resultado da reação de setores da sociedade alemã à derrota na I Guerra Mundial e influenciaram a eclosão da II Guerra Mundial. A existência da República de Weimar pode ser dividida em três fases: uma fase de instabilidade política e econômica, entre 1919 e 1923; uma fase de recuperação e estabilização, entre 1923 e 1929; e uma nova fase de crise, decorrente da quebra da Bolsa de Nova Iorque e com a ascensão do nazismo, entre 1929 e 1933. (p.11).
23
Este dispositivo constitucional de 1934 deixa transparecer a limitação da
propriedade privada e de seu caráter absoluto em detrimento da produtividade da
terra, definindo que, mediante o trabalho, se adquiria o domínio sob a alegação de
interesse de cunho social.
O direito à propriedade passa a ser subjetivo e condicionado ao bem comum:
O mau uso da propriedade, portanto, em face dessa Constituição não poderia prejudicar a sua finalidade essencial de forma a admitir o seu exercício contra o interesse social ou coletivo. Resguarda-se o direito à mesma como direito subjetivo do seu titular, condicionado, porém, ao bem comum, aos relevantes interesses da sociedade que, ultima racio, resultam do somatório dos interesses individuais (ROCHA, 1992, p. 33).
Com o golpe civil-militar de 10 de novembro de 1937, foi instituído o Estado
Novo e, de imediato, ocorreu a outorga de uma nova Constituição, que deu
sequência no tratamento conceitual da propriedade.
Há autores, tais como Ferreira (2007) que afirmam que a Constituição
outorgada no Estado Novo apresentou retrocessos quanto à forma explícita para
regulamentação do exercício da propriedade:
Na constituição de 1937 o artigo 122 número 14 ao cuidar “Dos Direitos e Garantias Individuais” apenas assegurou o direito à propriedade e fez vaga referência que o conteúdo e limites seriam definidos nas leis que regulassem este exercício (FERREIRA, 2007, p. 07).
No entanto, Rocha (1992) discorda sobre este retrocesso no caráter explícito
do exercício da propriedade na constituição de 1937. Segundo o autor, no artigo
122, ao tratar "Dos Direitos e Garantias Individuais" deixou assente:
A Constituição [de 1937] assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Assegura o direito de propriedade cujo conteúdo e limites atribui à lei ordinária. Essa redação, aparentemente menos explícita do que a adotada pelo artigo 112 de Constituição de 1934, aponta, entretanto, desde logo, a existência de parâmetros necessários à propriedade privada, em seu conteúdo, e com referência ao exercício dos direitos que lhe são peculiares (1992, p. 34).
Constata-se que Constituição de 1937, na esteira das demais cartas magnas
reafirmou o direito de propriedade, porém sobrepondo o interesse coletivo ao direito
privado, e deixou a encargo do legislador a criação de lei ordinária para a
regulamentação.
24
Posteriormente, esta situação foi modificada com o retorno do Estado de
Direito após a queda do Estado Novo. O dispositivo constitucional de 1946 inovou ao
tratar, pioneiramente, sobre a função social da propriedade no artigo 141, § 16 e
artigo 147.
A inédita questão elevava a legislação fundiária a um patamar de grande
alcance, segundo o qual o uso da propriedade estaria condicionado ao bem-estar
social e, desta forma, a promover a justa e igual distribuição da propriedade a todos
(ROCHA, 1992).
A análise do texto constitucional de 1946 evidencia um distanciamento cada
vez maior do conceito liberal da propriedade - tão presente na Constituição Imperial -
tal como a superação da orientação ditada pelo dispositivo constitucional de 1934 e
ampliada pelo de 1937, com uma índole bem mais socializadora do direito à
propriedade.
Além de inovar quanto à função social da propriedade, a Carta Magna de
1946 previu o Instituto da Desapropriação por interesse social, visando à justa
distribuição da propriedade, que seria regulamentada dezesseis anos mais tarde,
através da Lei n. 4.132 de 1962 (Quaresma, 2010, p.69). Uma legislação necessária,
porém insuficiente no que diz respeito aos imóveis rurais para fins agrários, tema
considerado uma lacuna na legislação.
2.1.1.1 O Regime Militar
Faz-se necessário relembrar que no ano de 1961, após a renúncia do então
presidente Jânio Quadros, a solução pacífica encontrada pelo Congresso Militar a
fim de evitar uma guerra civil tendo em vista a insatisfação do militares com a posse
do Vice-Presidente eleito João Goulart, foi a implantação do regime parlamentarista
no país.
O parlamentarismo implantado pelo Congresso como medida conciliadora, no
que tange à questão fundiária, acenou com uma política punitiva para terras
improdutivas. Contudo, os lavradores e trabalhadores do campo estavam em grande
agitação e em processo de tomada de consciência da luta social. Precisavam e
queriam mais.
Após a tão protelada efetivação de João Goulart na Presidência da República,
verificou-se uma mudança significativa na política agrária. Durante sua reduzida
25
presidência, João Goulart propôs uma efetiva reforma agrária, prevendo o
pagamento de indenização após a desapropriação de terras, ou seja, modificações
consideráveis a fim de se instituir uma legislação fundiária distributiva. Esta foi, entre
outras, uma das causas do golpe de estado de 1964.
Entre março e outubro de 1963, travou-se outra grande batalha institucional do governo Jango: a luta pela reforma agrária “pela lei”, e não “na marra”. Entre a reforma agrária possível na negociação institucional e a desejada pelos movimentos sociais (ou mesmo pelo governo) havia um abismo. Formalmente, pelo menos até o começo de 1963, nenhuma força política era contra a reforma agrária, pois o latifúndio era um monstro que todos os deputados denunciavam (mas alguns criavam no quintal) (NAPOLITANO, 2014, p.38).
A famosa frase dita por Darcy Ribeiro sobre o presidente deposto: “Jango caiu
não por defeitos do governo que exercia, mas, ao contrário, em razão das
qualidades dele”, retrata o sobrepujamento do poder da minoria sobre a rediscussão
da questão social latifundiária no país (NAPOLITANO, 2014). Dando continuidade a
uma tradição liberal oligárquica, na qual imperava o autoritarismo pragmático,
profundamente excludente e conservador, a efetivação do projeto político de Goulart
acabou por justificar um golpismo histórico.
[...] a derrota de um projeto político pode ser reveladora das suas fragilidades, mas também das suas virtudes. A grandeza daquele momento histórico, situado entre os anos de 1950 e meados dos anos de 1960, se traduz como um ponto de tensão, um momento de acúmulo tal de energias que destruiu tudo o que veio antes e criou tudo o que veio depois. (NAPOLITANO, 2014, p. 10).
Após a mudança do modelo político, a referida Constituição de 1946 sofreu
profundas modificações provenientes da Emenda Constitucional n.10/1964, que
dispôs de uma exceção quanto ao pagamento da indenização motivada pela
desapropriação de terras rurais, substituindo o pagamento em espécie para títulos
especiais da dívida pública8.
8 Art. 5º Ao art. 147 da Constituição Federal são acrescidos os parágrafos seguintes:
"§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Impôsto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc10-64.htm - Acesso em 12.01.2017
26
Com a emenda constitucional n.10/64, surge o Estatuto da Terra (Lei n.
4.504/64), legislação agrária pioneira entre as legislações latino-americanas, a qual,
se não definiu a função social da propriedade, ao menos regulamentou os requisitos
essenciais de tal tratativa. Com a criação deste dispositivo legal foi concedida a
competência da União para legislar sobre direito agrário, definindo autonomia
legislativa a este ramo do direito.
Para que esta ruptura do modelo político anterior pretendido por Jango fosse
algo mais palatável, os textos constitucionais deveriam ser modificados, mas em
tese permaneceram iguais, assegurando na teoria, e apenas nela, o acesso a terra
às classes menos privilegiadas.
Com a promulgação da Constituição de 1967 a função social da propriedade
foi mantida e ainda adquiriu o status de Princípio da Ordem Econômica e Social,
com o escopo de promover a justiça social e o desenvolvimento nacional. Em 1967,
o regime de governo não havia sido alterado, pois os militares permaneceram no
poder até 1985.
A Ditadura excluiu, entretanto, do texto da lei, o Instituto do Usucapião
Especial ou pro labore, previsto na Constituição de 1934 e mantido nos demais
dispositivos constitucionais. Esta exclusão teve como consequência relevante um
aumento na dificuldade do trabalhador em adquirir a propriedade através deste
instituto.
Em 1969 surgiria a primeira Emenda à Constituição de 1967, que repete a
redação do dispositivo anterior, considerando a propriedade como direito inviolável a
brasileiros e estrangeiros. Contudo, inclui texto que abrangia a aquisição da
propriedade rural por pessoa jurídica, conforme passou a dispor o emendado artigo
15, parágrafo 34 (ROCHA, 1992, p. 38).
Em 1988, o panorama político institucional era completamente novo. A
distensão ou abertura dos governos militares iniciada no governo do General
Ernesto Geisel e culminada no último mandatário militar, general João Batista
Figueiredo gerou a possibilidade da instauração de um governo civil, eleito pelo
Colégio Eleitoral.
Com a assunção de José Sarney à presidência em substituição a Tancredo
Neves, em janeiro de 1985 inaugura-se uma fase democrática que culminaria com a
convocação da Assembleia Geral Constituinte para as eleições de 1986 e
promulgação da Carta Cidadã (1988) dois anos após, em um regime, portanto, de
27
estado democrático de direito e aliando-se ao garantismo jurídico.
A vigente Carta Magna de 1988 tratou de equilibrar o direito à propriedade,
ora considerando a propriedade privada inviolável, acentuando o caráter privado do
instituto, outrora atendendo não só a função social da propriedade como a sua
função socioambiental.
Quanto ao indivíduo em si, o inciso XI do artigo 5 da constituição de 1988,
dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela pode penetrar sem o
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (CF/88 p. 06). Há,
portanto, uma ampla proteção da propriedade no ordenamento constitucional
vigente, seja no tocante aos direitos da coletividade ou no interesse individual.
O direito à propriedade, tratado como direito subjetivo ao longo do tempo, não
é absoluto, assume com a Constituição Cidadã uma situação objetiva,
precipuamente de obrigações impostas aos proprietários, que cumprindo as
prerrogativas constitucionais atendem a um interesse coletivo.
2.1.2 A Função Social da Propriedade
A inevitável interferência do Estado na propriedade privada é sentida em
maior ou menor peso por todas as nações. O liberalismo pleno torna-se inviável e o
individualismo não é a solução para os problemas sociais.
A propriedade não deve ser utilizada tão somente em proveito do titular, mas
em benefício de uma coletividade e é dever do Estado prover os instrumentos
jurídicos legais e eficazes para que o proprietário possa defender o que é seu, de
seu sustento, de sua família e de seu grupo social.
A intervenção do Estado deve proporcionar os meios legais e justos para
tornar todo e qualquer bem útil em produtivo; o contrário, a má utilização ou não
utilização da terra gera inquietação social e violência.
A justa aplicação do instituto da desapropriação deve encontrar um ponto de
equilíbrio entre o coletivo e o individual e dissociar do individualismo histórico
buscando não apenas coibir os abusos como também inseri-la no contexto de
utilização para o bem comum.
Segundo Maldaner e Azevedo (2010), para legitimar a argumentação, os
autores civilistas (e/ou constitucionalistas) recorrem à história para demonstrar, por
28
meio de uma pretensa erudição, que os conceitos de propriedade e função social
casaram-se. A harmonização de seus significados atravessaria diferentes regimes
jurídicos, para chegar ao momento de maturidade em que contribuem,
mandatoriamente, por se tratar de disposição da Carta Política, para uma realidade
menos desigual.
Segundo os autores, a função social é responsável, nessa união, pela melhor
elaboração da ideia de propriedade, conformando-a e limitando-a. A produção
jurídica atual reconhece em León Duguit o “pai” desse avanço, posto ser de sua
autoria a Teoria da Função Social da Propriedade, a qual inspirou os legisladores
brasileiros.
Segundo Gomes (2010, p.121) pela influência que a obra do começo do
século exerceu nos autores latinos:
Leon Duguit pode ser considerado o pai da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário.
A função social e socioambiental da propriedade está elencada na legislação
brasileira através de dispositivos legais que tratam da solução dos conflitos sociais,
do acesso a terra, do aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, da
preservação do meio ambiente e da utilização apropriada dos recursos naturais,
considerando o legislador que sobre a propriedade pesa grave hipoteca social.
Tartuce (2016), civilista jurídico, acredita que as ideias constitucionais
relativas à aplicação da função social à propriedade são revolucionadoras:
A propriedade seja ela urbana ou rural, assim como ocorre com os demais institutos privados, deve ser interpretada e analisada de acordo com o meio que a cerca, com os valores de toda a coletividade. Sendo assim, a propriedade deve atender não somente aos interesses do seu dono, mas também das pessoas que compõem a sociedade. O solidarismo constitucional, previsto no art. 3, I, do Texto Maior, deve entrar em cena para o preenchimento do conceito de função social. Por certo é que essas ideias são revolucionadoras, uma vez que a propriedade, em nosso País, historicamente, sempre foi utilizada pra atender aos interesses da minoria, detentoras de poder e do capital (2016, p. 24).
Esse entendimento reforça ainda mais a percepção de que o interesse social
deverá prevalecer sobre o interesse privado, o qual só tem razão de ser quando,
ainda que secundariamente, atenda ao interesse de toda a coletividade.
29
Também deve ater-se que a função social prevista na Constituição Federal de
1988 é um avanço no que tange a (ao menos a se propor) não mais defender os
interesses de uma minoria possuidora de capital em detrimento de uma maioria
subjugada às necessidades da mesma minoria.
2.2 O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO
Tomando como ponto de partida o fato de que o ser humano vive em
sociedade, não existe direito cujo exercício seja ilimitado. É preciso compatibilizá-lo
com os demais membros da sociedade e com os interesses do Estado.
Desde a outorga da Constituição Imperial é permitida no Brasil a possibilidade
do Estado intervir na propriedade privada. A propriedade individual inserida em
todas as Constituições confere ao seu titular a plenitude do direito de uso, gozo e
disposição do que lhe pertence, criando inclusive institutos jurídicos de proteção e
defesa dos seus direitos quando injustamente esbulhados.
Todavia, o interesse social assinala a limitação, supressão ou transferência
compulsória do objeto da propriedade pelo Estado, que nem limita, nem extingue o
direito de propriedade, determina, apenas, para satisfação da necessidade ou
utilidade de ordem pública, a modificação do seu titular.
Segundo Venosa (2011, p.268), o poder de expropriar do Estado é
comparado ao poder de polícia ou ao poder de tributar, e justifica-se como ato de
soberania. A desapropriação não se confunde com a compra e venda, porque se
trata de transferência compulsória por ato unilateral da Administração. Igualmente
distingue-se do confisco em que existe a ocupação da propriedade sem indenização.
A desapropriação é o oposto de apropriação, ou seja, é modalidade de perda
da propriedade e caracteriza-se por um processo administrativo pelo qual o Estado
adquire a propriedade por aquisição coativa mediante o pagamento de indenização.
Nas palavras de Meirelles (1988 apud VENOSA, 2011, p. 269), “a
desapropriação é a mais dramática das formas de manifestação do “poder do
império”, ou seja, da Soberania interna do Estado no exercício de seu “domínio
iminente” sobre todos os bens existentes no território nacional”.
Para Rocha (1992) a universalização do instituto da desapropriação
configurou-se com a Declaração dos Direitos do Homem em 1789, que passou a
considerar a propriedade um direito sagrado e inviolável; ninguém pode ser dele
30
privado, salvo se a necessidade pública legalmente constatada o exigir, e sob a
condição de uma justa e prévia indenização.
Aparentemente o interesse social violenta o direito individual, ao passo que
este surge já condicionado pelos direitos da sociedade. Todavia, posteriormente, se
beneficiará diretamente ou através de seus descendentes dos benefícios
resultantes.
Haveria, momentaneamente, uma violência aparente, se considerássemos, por absurdo, o homem isolado de seu meio; mas como ele, por si, por sua estirpe, por sua descendência, não pode desintegrar-se da sociedade em que vive, segue-se que direta ou indiretamente há de usufruir dos benefícios em nome dos quais se lhe desapropria certo e determinado bem. O homem por sua origem e destino é solidário com o seu meio. Está nessa solidariedade o fundamento moral da desapropriação. (ROCHA, 1992, p. 51).
Ao desapropriar um bem particular o Estado exerce um direito não apenas
funcional e deve ser legitimamente exercitado dentro dos limites constitucionais. A
iniciativa da desapropriação pode emanar da União, dos Estados e dos Municípios e
através de concessionários de serviços públicos, estes mediante autorização legal.
O instituto da desapropriação esteve presente em todas as Constituições
Federais. No entanto, a primeira previsão legal através de Lei Ordinária foi um
Decreto datado de 21 de maio de 1821, por D. Pedro I, Príncipe Regente, três anos
antes da Constituição Imperial, que cuidou da desapropriação como a única exceção
ao direito de propriedade por ela assegurado em toda a sua plenitude, mediante
indenização prévia (ROCHA, 1992).
Em 1826 surgiu a Lei n. 4229 regulando pela primeira vez a desapropriação
por necessidade ou utilidade pública. Os casos de necessidade pública eram
verificados pelo Poder Judiciário e os de utilidade pública, pelo Poder Legislativo.
Em seguida, pela insuficiência de texto legal anterior, foi sancionada a Lei n.
353 de 12 de julho de 184510, a qual atribui ao Executivo as hipóteses que eram
anteriormente atribuídos ao Poder Legislativo e a fixação da indenização feita por
um corpo de jurados.
9 Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38537-26-agosto-1826-
567030-publicacaooriginal-90475-pl.html - Acesso em 12.01.2017. 10
Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-353-12-julho-1845-560442-publicacaooriginal-83257-pl.html - Acesso em 12.01.2017.
31
Posteriormente, o Decreto n. 1.664 de 27 de outubro de 185511, substituiu o
júri civil por um juízo arbitral coato ou necessário, para cuja composição, o
expropriante nomearia dois árbitros, o expropriado, outros dois, e o Governo, um
quinto, desempatador.
Durante a vigência deste Decreto ficou estabelecido que nenhuma autoridade
judiciária ou administrativa poderia admitir reclamação ou contestação acerca da
desapropriação decretada pelo Poder Executivo, sinalizando o autoritarismo com
que o Estado atuava diante da propriedade particular.
Somente com a primeira Constituição Republicana em 1891 que se deferiu ao
Estado a competência para regular os processos de desapropriações promovidos
por ele ou seus municípios.
A legislação brasileira até então não fora nenhum modelo de perfeição, adotando para a fixação da indenização a modalidade do juízo arbitral coato, não mais encontrado na legislação geral relativa ao processo civil. O laudo dos árbitros tinha caráter decisório e o juiz togado tivera suprimida a faculdade de intervir na fixação do preço da indenização (ROCHA, 1992, p. 61).
A Lei Ordinária que passou a regulamentar o Instituto da Desapropriação foi o
Decreto-Lei n. 3.365 de 21 de junho de 1941, que com significativas modificações
veio a atender uma premente necessidade do direito processual. “O diploma legal
tratou de excluir a dicotomia – necessidade pública e utilidade pública – o qual
fundiu as duas espécies sob a denominação de utilidade pública” (HARADA, 2015,
p. 17).
O Decreto-Lei n. 3365/41 continua sendo na atualidade a lei básica do
Instituto da Desapropriação. As modificações, necessárias ao longo do tempo, no
texto original, além da supressão da dicotomia entre necessidade e utilidade pública
anteriormente existente, igualmente extinguiu o juízo arbitral coato, conferindo ao
magistrado a atribuição de fixar o valor da indenização, através de decisão
fundamentada e motivada do seu convencimento.
Atendendo ao texto constitucional vigente, a desapropriação direciona-se em
duas categorias, a que cumpre função social (motivo de necessidade ou utilidade
pública), situação em que a legislação aplicada é o Decreto n. 3365/41
subsidiariamente ao Código de Processo Civil; àquela que não cumpre a função
11
Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1664-20-outubro-1855-558675-publicacaooriginal-80175-pe.html - Acesso em 12.01.2017.
32
social (hipótese de interesse social) a legislação a ser aplicada é a Lei n. 4.132 de
10 de dezembro de 196212, que igualmente ao Decreto n. 3365/41, condiciona ao
pagamento de justa e prévia indenização, todavia é paga em títulos da dívida pública
e não em espécie, como na hipótese da necessidade ou utilidade pública.
Segundo Venosa (2011), o poder de expropriar está inserido nas
constituições brasileiras desde a Carta Imperial, no entanto cumpre ao Estado
indenizar o desapropriado sob pena de inviabilizar os paradigmas da propriedade
privada. Igualmente, cabe ao administrador sopesar, no caso concreto, a
necessidade de fazer sobrepujar o interesse social ao interesse privado.
2.3 CONTESTADO
Inicialmente é necessário contextualizar a região contestada, os atores
envolvidos e os motivos que deflagraram a guerra sangrenta do início do século XX,
mas com resquícios ainda percebidos na atualidade.
Segundo Auras (2001) ao sul do rio Iguaçu e norte do rio Uruguai, numa área
aproximadamente 28 mil km² do território interiorano catarinense, viviam, na época
que circunda a Proclamação da República (1889), milhares de pessoas, espalhadas
pelos campos e matas ou agrupadas nas sedes e distritos dos municípios.
A região do Planalto Norte Catarinense foi povoada de forma diversificada e
distinta das ocupações do litoral. A densa Mata Atlântica que cobria as escarpas
serranas e a população indígena Kokleng que respondia às agressões de invasores
de seu espaço contribuíram para o distanciamento de duas grandes regiões
catarinenses, a litorânea e a planáltica.
Vários eventos apontados pela história sulina contribuíram para a abertura
das terras do planalto norte e centro-oeste catarinense, entre eles: O comércio de
gado entre São Paulo e Rio Grande do Sul (século XVIII), que ao passar por Santa
Catarina fez surgir nos locais de pouso os primeiros moradores permanentes,
tornando os campos de Lages numa estrutura necessária à longa caminhada dos
rebanhos e condutores; a Revolução Farroupilha em 1835 que eclodiu no Rio
Grande do Sul, mas atingiu a cidade catarinense de Laguna, onde é proclamada a
República Juliana, incluindo o município de Lages (parte integrante da mesma) e,
12
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4132.htm
33
sobretudo, a Guerra Federalista (1893-1895), que mesmo tendo como epicentro o
estado sul-rio-grandense, o planalto catarinense foi longamente percorrido pelos
revolucionários e legalistas em luta. Durante a primeira década do século XX
milhares de novos moradores, imigrantes estrangeiros e brasileiros vieram
acrescentar à população Serra-Acima.
Os limites entre os estados de Santa Catarina e Paraná começam a ser
contestados a partir de 1853, quando os paranaenses desmembrados da Província
de São Paulo reivindicam ao seu já extenso território a posse de terras do norte e
oeste catarinense.
Tem-se, nesse sentido, a título de exemplo, o caso de um Francisco de Paula Pereira, grande proprietário de terras em São Bento, Paraná, que abandona sua região por causa de perseguições políticas e alcança os rios Putinga e Canoinhas. Entendendo que o local era bom para estabelecer-se, volta para buscar sua família e agregados. Ali surge o que viria a ser a sede municipal de Canoinhas. Região rica em erva-mate, o Estado do Paraná a reivindica como parte do seu território, mas Francisco de Paula Pereira repele a autoridade policial paranaense e não se submete à jurisdição do vigário de Rio Negro (PR). Ao mesmo tempo, fazendo contato com Curitibanos (SC), vence a longa distância que o separa dessa localidade e se coloca sob a proteção de Albuquerque, “coronel”, e chefe político do lugar. (MONTEIRO, 2011, p. 74).
A contenda entre os estados que, inicialmente, não passava de rixas
puramente políticas começa a se concretizar através de derrubadas de pontes,
destacamentos policiais e a criação de fiscais sob a área em litígio. Os ânimos foram
sendo, aos poucos, inflamados pela imprensa dos dois estados e os contrapontos
eram formados pelo coronelismo e o messianismo, diante da ausência do Estado no
conflito.
Somente com a presença de um terceiro reclamante – a Argentina, que
entendeu por direito estender as fronteiras do seu país ao alcance das terras do
oeste catarinense, as mesmas já então reclamadas pelo estado do Paraná, é que o
Governo Imperial, em 1881 acorda para a questão. Houve a interferência externa do
Presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, que considerou o Brasil como
legítimo detentor das terras demarcadas.
Todavia, a solução externa à contenda não alcançou a problemática interna
entre os estados catarinense e paranaense; ao contrário, aguçou ainda mais a
disputa territorial, pois a partir da Constituição de 1891 passou a assegurar ao
Estado o direito de decretar impostos sobre exportações de mercadorias de sua
34
propriedade e legislar sobre as questões fundiárias. Isso aguçou a disputa pela
região contestada.
Alguns anos antes da eclosão da Guerra Santa, já se manifestara claramente o significado do poder local e a natureza de suas relações com as autoridades estaduais. Demétrio Ramos, que fora combatente rebelde em 1893, resiste às autoridades paranaenses na localidade contestada de Canoinhas, arregimentando para isso um bando armado, forte, de seiscentos homens, mantido pelo governo de Florianópolis e por algumas casas comerciais. Pouco mais tarde, aquele que viria a ser um dos mais notáveis chefes rebeldes da Guerra Santa, Aleixo Gonçalves, capitão da Guarda Nacional e antigo maragato, comanda quinhentos homens e, ajudado pela polícia catarinense, invade território sob controle paranaense e expulsa os agentes do fisco encarregados de taxar a erva-mate. (MONTEIRO, 2011, p. 112).
Paralelamente à escalada das tensões entre os dois estados, a questão
chegou ao Supremo Tribunal Federal que, em 1904, concede razão ao estado de
Santa Catarina à demarcação da área contestada. Inconformado com a decisão, o
estado do Paraná representado pelo causídico Rui Barbosa, arrasta a questão
litigiosa até 20 de outubro de 1916, quando o governador do estado catarinense,
Felipe Schimidt, e Afonso Camargo, paranaense, intermediados pelo Presidente da
República Wenceslau Bráz, assinam um acordo que pôs fim ao litígio e demarcou os
limites atuais entre os discordantes.
Uma vez situada a região a ser estudada, é necessário descrever a ordem
política-econômica-social durante os anos de conflito da Guerra do Contestado.
Imperava naquele local o coronelismo e seu despotismo, estreitamente entrelaçados
pela ajuda mútua do governo do Estado que revestia os grandes fazendeiros de
poder e do destino dos que lhes pertenciam:
O mecanismo estatal, na percepção dos homens do campo, lhes parece, na sua composição jurídica e impessoal, o longínquo mistério das sombras. No máximo, o presidente e o governador corporificam os donos da República ou do Estado, super-fazendeiros que dispõem de tudo, da vida e do patrimônio dos cidadãos. O homem do sertão, da mata e do pampa sabe que o chefe manda e ao seu mando se conforma, sem que o socorra, para levantar o quadro de domínio, a ideia de representação (FAORO, 1977, p. 633).
Segundo Leal (1978), em 1831, o governo imperial criou a Guarda Nacional.
No seu quase um século de existência, chegou a possuir um Regimento em cada
município brasileiro. O posto de coronel era geralmente concedido ao chefe político
local, que, via de regra, era o mais opulento fazendeiro ou comerciante.
35
À pergunta “quem é você?”, o caboclo respondia “sou do coronel fulano”. E quando o “coronel” dizia “esta gente é minha”, queria dizer que eram pessoas nas quais ele depositava confiança (LEAL, 1978, p.20-21)
Quanto à atividade econômica na região, as primeiras fazendas criadas pelos
paulistas situavam-se nos campos de Lages. Devido ao comércio seguro da
atividade pastoril, à medida que aumentava o rebanho foi necessário estender as
grandes propriedades, contribuindo para o povoamento desta nova região.
Para Campos e Bender (2012), o Planalto Catarinense possui um quadro
natural de grande diversidade, coexistindo extensas áreas de campos naturais com
áreas de formação florestal, com o domínio da chamada floresta ombrófila mista, em
que se conjugam espécies de grande valor comercial, como o pinheiro brasileiro
(Araucária angustifólia), a imbuia (Ocotea porosa), a erva-mate (Ilex paraguariensis).
Este quadro físico-natural refletiu no processo de formação e dinâmica
socioeconômica regional através do desenvolvimento das economias do gado,
ervateira e madeireira, feições básicas que, embora alteradas em sua constituição
original, se mostram presentes na área do planalto do território catarinense até a
atualidade (TOMPOROSKI; MARCHESAN, 2016).
Os vastos ervais nativos igualmente contribuíram para a economia da região,
considerado o “ouro verde” dos fazendeiros, era encontrado em grosso volume e
destinado à exportação. Inicialmente, era escoada pelo Porto de Paranaguá (PR) até
a construção da Estrada Dona Francisca, que ligou a área de Joinville a Mafra, Rio
Negro e Porto União, passando o escoamento a ser feito pelo Porto de São
Francisco (SC).
[...] pode-se constatar a importância da erva-mate para a economia de SC, bem como inferir suas implicações para a deflagração armada do Contestado. Ao levantar os produtos exportados anualmente, no período de 1892 a 1920, [...] o mate o mais importante, dado seu valor comercial. Em 1900, por exemplo, atingiu 31% do valor total das exportações (ALMEIDA, p.13, 1979).
Com a ascensão da erva mate, as terras do Planalto Catarinense tornaram-se
alvo de cobiça, e a rentabilidade da exploração só era possível em largos espaços
campestres. Desta forma, atendendo a interesses daqueles que possuíam poder
político junto ao Governo imperial e republicano, grandes fazendeiros adquiriram
vastas porções de terras, concentrando em latifúndios formalizados por títulos de
propriedade cedidos pelo Estado sobre terras devolutas.
36
Aos que não pertenciam a este seleto grupo privilegiado, restavam as terras
mais distantes, na situação de posseiros para a atividade de exploração da erva
mate e pastoril, e que, frequentemente migravam de lugar na medida dos interesses
expansionistas dos latifundiários.
Segundo Auras (2001), nas terras dos coronéis, os agregados e os peões,
durante longo tempo, podiam servir-se dos ervais porventura existentes, sem
qualquer proibição. Quando, porém, o mate viu seu valor comercial ser
crescentemente reconhecido e, na medida em que escasseavam as terras
devolutas, os coronéis começaram a coibir o que denominavam de coleta abusiva do
mate em terrenos de sua propriedade.
Em relação ao ervateiro restavam-lhes apenas duas opções: a primeira era
entregar o produto às bodegas mais próximas às contas já de espera de pagamento
ou aqueles em que o coronel permitia exercer a coleta da erva mate em seus
domínios, a conta de entregar-lhe o produto final, evidentemente por um preço
abaixo do mercado.
Contudo, um conjunto de razões como a majoração da alíquota do imposto de
exportação do mate, a grande oferta no mercado platino e, consequentemente, a
queda do valor do produto bem como a dissolução da Companhia Industrial13 que já
havia dominado o ciclo produtivo desde a coleta até a exportação, contribuíram para
o decréscimo da atividade econômica da erva mate na região.
Merece destaque também o fato de que, ao longo desse referido período, os anos de 1915-16 acusam abrupto e acentuado decréscimo na participação da erva-mate na pauta de exportações. E foi exatamente nesses dois anos que a luta no Contestado se tornou mais intensa e se encaminhou para o desfecho. Tudo indica que a coleta do mate havia sido realizada por muitos sertanejos que estavam, então, engrossando a população dos redutos (ALMEIDA, p.89-98, 1979).
Para Auras (2001), se considerar que a população da área contestada sofreu,
entre 1905-10, abrupto e significativo acréscimo, o desmantelamento da estrutura
exploratória do mate, ainda que incipiente, foi certamente, também, fonte geradora
de inconformismo entre os homens que dela dependiam, agravando a tensão social
13
No trabalho de Almeida, verifica-se que os fundadores da Companhia eram imigrantes europeus que, embora inicialmente com poucos conhecimentos acerca do mate, foram aprendendo a ganhar dinheiro com tal comércio. Em 1900, as quatro maiores empresas exportadoras do Paraná ligadas a esse produto não possuíam capital social igual ou superior ao da Companhia em referência. Três de seus diretores, ainda no período de sua vigência, foram, inclusive, prefeitos de Joinville.
37
em toda aquela área.
No que tange à estrutura social na região contestada, pode-se considerar que
havia a presença marcante das oligarquias (grupos minoritários que possuíam a
posse legal e formalizada de grandes latifúndios), um significativo grupo de
ervateiros, além de pequenos proprietários e uma maioria de posseiros, além dos
agregados e peões. A pobreza era generalizada e o cotidiano se estabelecia apenas
para os mínimos vitais.
Nestas grandes propriedades havia os agregados que residiam com suas
famílias e tinham na lida com o gado a sua tarefa básica e à mulher cabia a tarefa da
agricultura e a criação de porcos e galinhas para manter a subsistência, utilizando-
se das terras vizinhas à grande propriedade e cedidas pelo coronel (QUEIROZ,
1966, p. 47).
Ao agregado e sua família não havia possibilidade de ascensão social, os
poucos que conseguiam aumentar o seu rebanho eram compelidos pelos grandes
proprietários a se deslocarem para terras ainda não ocupadas e possíveis de
apossamento, distantes das grandes propriedades.
Para a lida mais pesada com o gado, existiam os peões, geralmente
descendentes de indígenas que dormiam pelos galpões, considerados os homens
de confiança dos coronéis, estando sempre à sua disposição, como uma espécie de
força paramilitar, prontos para agir, nas ocasiões em que a situação exigia defesa
(AURAS, 2001, p. 38).
No entanto a formação social do Planalto não era constituída apenas por
proprietários das fazendas e agregados. Conjugava também uma população de
pequenos e médios sitiantes independentes, cuja posse consistia na principal forma
de acesso a terra. Trata-se de uma população miscigenada (índio, negro e branco
de origem ibérica), conhecida por cabocla, que possuía inúmeras práticas sociais de
caráter coletivo, constantemente procedendo ao uso comum de áreas de florestas
através da extração de recursos naturais e da criação de animais à solta (CAMPOS;
BENDER, 2012, p. 201)
2.3.1 O Capital Estrangeiro e a Construção da Ferrovia
Diante deste panorama social e econômico da região contestada, faz-se
necessário discorrer sobre a inserção do capital estrangeiro e as transformações
38
que a construção da ferrovia produziu, bem como para os abusos do Estado diante
da população catarinense.
A implantação da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que atravessou
o território do Contestado no início do século XX, constituía aos olhos do Estado um
catalisador de desenvolvimento para o meio oeste e norte catarinense. Foi através
desta ferrovia que se povoou importantes cidades, todavia à custa de muita luta,
resistência e mortes de pessoas que se recusavam a terem suas vidas destruídas
em prol do desenvolvimento prometido pelo Estado.
Acontece que é impossível dissociar os trilhos da terra, a ferrovia de todas as circunstâncias antecedentes e consequentes. Diríamos que os trilhos foram o fio condutor da História Catarinense, a ela vinculando-se intimamente (THOMÉ, 1983, p.11)
Após a Independência do Brasil, quando da Regência do Padre Diego Feijó,
surgiu nos meios empresariais brasileiros a possibilidade de dotar um novo e
revolucionário meio de transporte que viesse a substituir as tropas de burros e a
facilitação, inclusive com a diminuição do custo, para o escoamento de produtos
para a exportação.
A proposta do Regente Feijó foi implantar no país a construção de ferrovias,
que além de acelerar o processo de desbravamento dos sertões, poderia atrair
capital estrangeiro, por meio da proposta de pagamento de juros sobre os capitais
empregados no país.
Pela Lei n. 101 de 31 de outubro de 1835, o Governo Imperial ficava
autorizado a contratar com particulares a construção de ferrovias, que unissem a
Corte (Rio de Janeiro) aos pontos mais convenientes das províncias de São Paulo e
Minas Gerais, garantindo aos investidores o pagamento de juros mínimos de 5% ao
ano, sobre os valores dos capitais aplicados, pelo prazo de até 30 anos (THOMÉ,
1983, p. 13).
Uma vez implantado o sistema ferroviário no país e mesmo quando ainda
províncias, no Império, ou estados, no início da República, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná e São Paulo tinham seu sistema ferroviário independente uns dos
outros. A exceção era a Estrada de Ferro São Paulo- Rio Grande, que foi planejada
pelo Governo Imperial e executada no início do Governo Republicano.
39
Considerado na visão do Governo Imperial como um dos Decretos14 mais
importantes para o desenvolvimento da Região Sul, e sancionado seis dias antes da
Proclamação da República, deu início à história da Estrada de Ferro São Paulo –
Rio Grande, a qual influenciou significativamente o processo de configuração da
Região do Planalto Norte Catarinense, bem como a percepção da atuação do
Estado para com a população catarinense.
Todavia, com a Proclamação da República, o Decreto n. 10.432 não foi
aprovado pelo Poder Legislativo, e tampouco o contrato fora assinado. Retomado o
assunto apenas em 1890, o governo republicano reconhece a concessão,
modificando, entre outras, duas cláusulas importantes: a primeira reduzia de 30 para
15 quilômetros para cada lado da estrada o limite de cessão de terrenos, e a
segunda, deixou sem efeito os planos iniciais de colonização (THOMÉ, 1993, p. 33).
Várias modificações nas cláusulas contratadas foram feitas ao longo do
tempo, até que uma Companhia que administrava e arrendava uma gigantesca
malha ferroviária pelos Estados do Sul foi monopolizando o transporte e passou a
ser a grande empresa construtora da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande.
Trata-se da empresa Brazil Railway Company, fundada em 1906, em
Portland, Estado de Oregon (EUA), que após a visita de Percival Farquhar, a convite
do catarinense Lauro Muller, resolve operar no setor ferroviário. Formada por capital
europeu. Começava a surgir no Brasil o Sindicato Farquhar15.
Em apenas oito anos, levantou capitais no exterior para suas empresas na ordem de 53 milhões de libras esterlinas, uma quantia astronômica, se
14
Decreto n. 10.432, de 09 de novembro de 1889. Concede privilégios, garantia de juros e terras devolutas, mediante autorização legislativa, para a construção, uso e gozo de uma estrada de ferro, que partindo das margens do Itararé, na Província de S. Paulo, vá terminar em Santa Maria da Bocca do Monte, na Província do Rio Grande do Sul, com diversos ramaes. Atendendo o que Me requereu o Engenheiro João Teixeira Soares, Hei por bem Conceder à companhia que o mesmo organizar [...] Hei por bem, outrossim, não só conceder à referida companhia a garantia de juros de seis por cento (6%) durante trinta (30) anos para o capital que for necessário à construção da linha principal, até o máximo de trinta e sete mil contos ( 37.000:000$), mas também fazer-lhe cessão gratuita das terras devolutas em uma zona máxima de trinta quilômetros para cada lado do eixo de linhas de que se trata. Para se tornarem effectivos os mencionados favores, ficam, porém, dependentes da aprovação do Poder Legislativo, na parte que se refere à quantia de juros e cessão das terras devolutas, bem como em tudo subordinados à observância das clausulas que com este Decretam baixam, assignadas por Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, do Meu Conselho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas, que assim o tenham entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro em 09 de novembro de 1889, 68 da Independência e do Império. 15
O Sindicato Farquhar era comparado a um polvo: não tinha forma e adquiria todas as formas, não tinha cor e adquiria todas as cores; por onde lançava os tentáculos, aplicava suas ventosas, corrompia e sugava a riqueza nacional (THOMÉ, 1983).
40
levarmos em conta que o Império, em 63 anos, contraiu empréstimos de 68 milhões, e a República, nos primeiros 25 anos, 51 milhões de libras esterlinas (THOMÉ, 1983, p. 11).
A Brazil Railway Company rapidamente emergiu no cenário nacional e tornou-
se a principal “holding” do Sindicato Faquhar, e não demorou para adquirir o controle
da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que estava em plena construção, isso
porque dominava todas as malhas ferroviárias ao entorno.
No entanto, nenhuma empresa teve tanta força, hegemonia e poder na região do que o Grupo estadunidense comandado por Percival Faquhar, que já possuía ou viria a possuir inúmeros negócios no Brasil.[...] a partir de 1907 com a Brazil Railway Company, adquirindo o controle acionário da Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, então composto por capital nacional, através do Decreto n. 10.432, de 09-11-1889, decreto este que permitia, entre outras coisas, a “cessão gratuita das terras devolutas, incluindo sesmarias e posses, numa faixa de 30 km para cada lado do eixo das linhas da ferrovia”, alterado pelo Decreto n. 305, de 07-04-1890, para 15 km, ampliando o período de concessão de 15 para 50 anos (CAMPOS; BENDER, 2012, p.201).
Além da construção da estrada de ferro, cabia à Companhia a concessão
para atividades de exploração madeireira, bem como promover a colonização das
terras devolutas, daí a necessidade de constituição de uma subsidiária. Em 1909 o
Sindicato Farquhar organizou a Southern Brazil Lumber and Colonization Company,
com a finalidade de explorar os grandes pinhais existentes na região dos vales dos
rios Negros, Iguaçú, Timbó, do Peixe e Canoinhas e também desenvolver os
serviços de colonização das terras ao longo da estrada de ferro.
No Sul, quando a Brazil Raiway Company já era senhora de 34.800 quilômetros quadrados [...] o Sindicato estabeleceu a Southern Brazil Lumber and Colonization Company, que adquiriu, mais modestamente, 3.248 quilômetros quadrados de terras com pinhais, implantando diversas serrarias, sendo que só uma – a de Três Barras – tinha capacidade para produzir cinco milhões de pés de madeira por mês. (THOMÉ, 1983, p.75).
A região escolhida para a instalação da empresa estrangeira subsidiária do
Sindicato Faquhar não podia ser melhor, pois atendia ao escoamento rápido da
produção via ferroviária diretamente ao Porto de São Francisco e estabelecida em
meio aos pinhais. Esta primeira região adquirida era conhecida por Três Barras,
ainda pertencente ao município de Canoinhas. A Lumber instalou o maior complexo
industrial de exploração madeireira da América do Sul (CARVALHO, 2010), nunca
igualado em toda a história, com equipamento trazido diretamente da Europa e dos
41
Estados Unidos, e importando a tecnologia canadense.
Esta quase inacreditável produção era obtida em vista da rara e primorosa técnica empregada, através de apenas 800 empregados, na maioria imigrantes ou descendentes destes, sendo que para obter produção idêntica, se fosse o caso, pelos meios habituais da época seria necessário um mínimo de cinco mil homens. (THOMÉ, 1983, p.125).
Sob a perspectiva do Estado, o capital estrangeiro traria desenvolvimento a
esta região, promovendo uma série de facilitações destinadas às companhias
estrangeiras. Além disso, o Sindicato Farquhar cooptou autoridades em todo o Brasil
e, inclusive, nos estados do Paraná e Santa Catarina. A título de exemplo, o
governado do Paraná, Affonso Camargo, também desempenhava a função de
advogado da Lumber Company. A influência política junto ao Estado, além de
promover uma série de outros benefícios às companhias, facilitava a aquisição de
áreas cada vez maiores.
A atuação do Estado atendia aos interesses de uma minoria, baseado na
troca de favores, muitas vezes confundindo-se com a representatividade da empresa
estrangeira. Outro caso exemplar da atuação das companhias para “evitar
embaraços legais e obter facilidades administrativas” (MACHADO, 2004, p. 267), no
estado de Santa Catarina, recai sobre o então advogado de Lages, Nereu Ramos
(filho do ex-governador Vidal Ramos e que, futuramente, seria também Presidente
interino da República). Ele “era representante oficial dos interesses da Lumber junto
ao governo de Santa Catarina”. Por sua vez, Henrique Rupp, prefeito de Campos
Novos, foi inspetor de terras da Brazil Railway.
Toda esta facilitação do governo para o fim de atender aos interesses da
empresa estrangeira possibilitou a exploração imensurável de riquezas naturais e a
tornou uma das maiores serrarias do mundo, que para o Estado atendia ao fim de
promover desenvolvimento na região do Planalto Norte Catarinense.
Porém, do outro lado das trincheiras, sendo perseguidos e injustiçados pelo
Estado e pelas classes dominantes (representadas pelos coronéis locais e pelos
interesses do capital estrangeiro) estava a população local, os caboclos. Para
implementar o projeto republicano nacional foi 'necessária' à expulsão dos posseiros
das terras, a base de muita violência e opressão.
Neste momento histórico vivido pelos sertanejos a prática de apossamento de
terras era considerada costumeira e tida como forma recorrente de apropriação
42
territorial. Esta prática, na visão dos caboclos, estava calcada pelo tempo, como
direitos morais adquiridos.
Para fazer valer seu controle sobre a terra, as empresas estrangeiras
promoveram a criação de grupos paramilitares, chamados de Corpo de Segurança,
com centenas de homens armados, que representavam um efetivo superior ao do
Regimento de Segurança de Santa Catarina, que possuía, em 1910, 280 homens
[...], espalhados por todo o estado (MACHADO, 2004, p.149).
Durante a demarcação das terras que recebeu por meio da concessão, a
Brazil Railway iniciou a expulsão dos posseiros empregando o seu Corpo de
Segurança da Companhia, que se contrapunha aos direitos de posse entendidos
como adquiridos pelos sertanejos, aumentando a tensão social sobre aquela região.
Em decorrência, o processo acabou por reforçar as tradições e valores construídos
ao longo do tempo por aqueles caboclos. O processo de retirada dos caboclos de
suas terras contou com requintes de crueldade:
Chegavam na marra na casa das pessoas e botavam pra correr dizendo que o governo tinha dado aquela terra para eles. Quando não expulsava os moradores, a Lumber simplesmente retirava a madeira sem pedir autorização e sem pagar (MACHADO, 2004, p.154).
Muitos relatos confirmam a opressão que a força paramilitar exercia sobre a
população, “sem a maior complacência contra o caboclo, incendiando-lhes as casas
e as roças, e, às vezes, até massacrando suas famílias” (AURAS, 2001, p.78).
A atuação violenta das empresas estrangeiras veio a somar-se com as
reprimendas dos coronéis, ricos latifundiários e, muitas vezes, chefes políticos, que
há muito tempo açambarcavam as terras dos caboclos, ocupantes legítimos
daquelas terras:
Os jagunços queixam-se que o coronel Artur de Paula e outros chefes políticos lhes tomaram as terras que habitavam e agora lhes impedem de recorrer às terras devolutas do Governo, por se terem apossado delas pessoas conhecidas e que têm facilidade de obter de governos, grandes territórios nos dois Estados (Peixoto, 1995, p.156).
A violência desencadeada pelos coronéis e sua atuação promíscua (e dos
governos sob sua influência), com as empresas estrangeiras, ampliou o grau de
repressão, que passou a ser sentida também pelos empregados, através dos
constantes conflitos entre o corpo de segurança e os trabalhadores. Para AURAS
43
(2001) há relatos de conflitos armados pela falta de pagamento dos salários e pelos
desmandos dos feitores, o que demonstra o poder de coação das empresas do
grupo perante seus empregados.
Para Monteiro (1974), os estabelecimentos da Brazil Railway, como também
da Southern Lumber na área, fez com que surgissem modalidades novas de
controle, de violência e de repressão. Se ambas dispunham de polícia própria,
distinguia-se esta dos bandos tradicionais de capangas por estar a serviço de
interesses econômicos anônimos e não à disposição dos interesses pessoais de
determinados “coronéis”.
Este conflito histórico, segundo Machado (2004) mostra como a região do
Contestado passava no início do século XX por um severo processo de
transformação, caracterizado principalmente pela inserção de novas forças políticas
e econômicas. Assim, foram impostas novas relações, ora retirando os caboclos à
força, com capangas, ora obrigando-lhes, ardilosamente, assinar papéis em branco,
com a falsa promessa de regularização das terras.
Com a instalação da empresa estrangeira, as antigas relações de trabalho
nas fazendas, ainda que opressoras, e que pareciam aos sertanejos legítimas e
justas, foram substituídas por relações capitalistas que significaram um processo
rápido de desconstrução social.
Tão logo o início da instalação da empresa, a Lumber acaba por se envolver
na Campanha do Contestado ao lado de diversos coronéis da região, que já eram
alvo dos sertanejos revoltosos.
Nós estava em Taquarassú tratando da noça devoção não matava e não robava, o Hermes mandou suas força covardemente nos bombardiar onde mataram mulheres e crianças portanto o causante de tudo isto é o bandido do Hermes e portanto nós queremos a lei de Deus que é a monarchia. O governo da República toca os Filhos Brasileiros dos terreno que pertence a nação e vende para o estrangeiro, nós agora estamos disposto a fazer prevalecer os noços direito. (PEIXOTO, 1995, p. 64-65)
O bilhete transcrito cuidadosamente pelo autor, mantendo a grafia e a
gramática para preservar a riqueza da fonte faz referência explícita ao processo de
instalação das empresas Brazil Railway e a Southern Lumber na região.
Os direitos humanitários dos caboclos que eram permanentemente infringidos
e desprovidos de qualquer proteção do Estado não eram considerados em relação
às reivindicações da Lumber junto ao Governo.
44
Boa parte da população cabocla tornou-se revoltosa, e a luta pela terra e a
opressão se opuseram contra a empresa estrangeira, as tradicionais forças
regionais latifundiárias, ao coronelismo e a igreja, ingressando por vez na Guerra do
Contestado.
A partir de fins de 1914 e durante o ano de 1915, o movimento enfrenta o
cerco implementado pelo General Setembrino de Carvalho, o qual dispunha de
aproximadamente 6 mil homens do exército brasileiro, e de outros mil vaqueanos,
capangas dos coronéis da região, contratados para trabalhar na repressão. A
desagregação do movimento se completou com a prisão do último líder rebelde,
Adeodato, em julho de 1916.
2.3.2 A Decadência da Lumber e seu Impacto na Região
Apesar das empresas de Farquhar ter importante relevância para a economia
brasileira e representava a confiabilidade do capital estrangeiro no país,
gradativamente o Sindicato permitiu que se levantassem dúvidas, descontentamento
e impontualidade no pagamento de dividendos dos acionistas. Administrada por
conveniência pelos amigos pessoais de Farquhar, as decisões sobre o rumo da
empresa acatavam rigorosamente suas orientações, ou seja, obtenção de altos
lucros sem importância dos meios empregados.
A bonança era dividida desproporcionalmente, cabendo a menor proporção
aos acionistas e aos investidores europeus e a maior parte entre os administradores,
advogados e autoridades subornadas, causando um descrédito no exterior.
No final da década de 1930, o então Presidente da República, Getúlio Vargas,
considerando que a atividade desenvolvida pela empresa era de alto interesse
nacional e que a impontualidade da companhia gerava descontentamento e dúvidas
quanto ao crédito público, decide pela estatização da companhia e delega a um
Superintendente subordinado ao Ministério da Fazenda a função de assumir a
administração, levantar o ativo e passivo da empresa, normalizar a atividade e
realizar as liquidações legais. "Era o maior império econômico da América do Sul,
que desmoronava tragicamente, ante a ação enérgica, ainda que tardia, do governo
brasileiro" (THOMÉ, 1983, p. 77).
O Decreto-Lei n. 2.346, de 22 de julho de 1940, assinado por Getúlio Vargas,
em plena vigência do Estado Novo, decretou a estatização da empresa Brazil
45
Railway Company e suas subsidiárias que atuavam por anos sob o controle
estrangeiro.
O Sindicato Farquhar acumulava uma dívida, em 1940, de
CR$152.983.000,00 e foi necessária a incorporação ao Estado dos bens móveis e
imóveis, direitos e obrigações através da criação da Superintendência das Empresas
Incorporadas ao Patrimônio Nacional (SEIPN), com sede no Rio de Janeiro e
nomeado o Prof. Haroldo Renato Ascoli para administrar o maior ato de
encampação promovido pelo Governo Brasileiro.
A estatização ocorreu em favor dos “interesses nacionais”. Essa foi a justificativa apontada pelo decreto presidencial. A expressão tem um forte viés econômico e financeiro. O fato da Brazil Railway Company e suas filiais controlarem setores de fundamental importância para o Brasil, quais sejam, ferroviário, portuário, energético e de colonização, contribuiu para a estatização. Entretanto, os problemas decorrentes da má gestão nas companhias do grupo Farquhar influenciavam, sobremaneira, a economia nacional. Os atrasos no cumprimento de obrigações com credores de capitais – alavancados em bolsas europeias – geraram descontentamento e abalaram a confiança dos investidores estrangeiros na economia nacional. Isso constrangia a administração pública do país. Com base nessa justificativa, o primeiro artigo do decreto incorporou ao patrimônio da União os bens e direitos tanto da Brazil Railway Company – existentes em território nacional – quanto de suas dependentes, caso da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, além de outras onze companhias (TOMPOROSKI, 2016, p. 08).
O legado resultante do domínio e exploração que o capital estrangeiro impôs
à região do Planalto Norte Catarinense, desde a construção da ferrovia até o a
década de 1940, teve consequências marcantes.
A superexploração da natureza e da sociedade através de ações conjugadas
das empresas e do Estado acabou por dizimar grande parte da população cabocla
na Guerra do Contestado, e impactou fortemente sobre aquele território nas décadas
subsequentes.
Cidades empobrecidas, constante migração e invisibilidade social do caboclo nativo é o que se percebe no dia a dia da região, mesmo que novas forças econômicas e políticas de então, aliadas a uma distância temporal menor do seu fim [...] pode explicar o não saudosismo da população nativa ainda existente. [...] Além de que a intervenção do Estado oligárquico, aliado ao capital estrangeiro, realizou uma ruptura total no que se refere à economia, cultura e principalmente à expropriação das terras de posseiros e caboclos. Os atuais descendentes da população cabocla de então constituem-se numa minoria basicamente “invisível” perante o poder econômico e politico, e praticamente esquecidos na historiografia em geral (CAMPOS, BENDER, 2012, p. 209-210).
46
Os acontecimentos históricos ao longo do tempo são responsáveis pela
formação deste território e da identidade do seu povo. O conflito fundiário Pós
Contestado que novamente se instaurou nesta região demonstra que a luta e a
resistência dos oprimidos permanecem arraigados nesta parte da população
catarinense, que luta pelo direito à propriedade e se socorrem, não a uma luta
armada com o Estado, mas na confiança que depositam na justiça para a
salvaguarda de seus direitos.
No decorrer das décadas subsequentes ao término da guerra, o trauma
associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impôs, à
população que reside no território Contestado, sentimentos impregnados de
vergonha, cominando no silenciamento. Este fato se evidencia no amplo
desconhecimento - não apenas em âmbito nacional, mas, também, no próprio
território que fora palco do movimento - acerca das novas pesquisas que se
produziram sobre o Contestado, que estão desconstruindo estigmas e mitos.
Além do trauma que deixou marcas indeléveis naquela população, uma
estratégia de omissão em relação à memória do movimento, implementada pelos
poderes públicos, resultou no silenciamento do Contestado. É razoável considerar,
dentre as razões para isso, a atribuição, as oligarquias políticas, de uma parcela de
responsabilidade sobre a deflagração do conflito, caso do então governador, Coronel
Vidal Ramos. Por outro lado, o Contestado caracterizou-se como movimento não-
branco (apesar da presença de imigrantes e descendentes nas fileiras rebeldes),
levado a cabo por uma população indesejada, residente em um estado no qual a
narrativa da epopeia imigrante tornou-se fundamental. Ainda, justifica políticas
públicas que ao longo do tempo privilegiaram regiões de ocupação imigrante –
especialmente alemães e italianos – em detrimento de outras regiões habitadas por
não-brancos, que não receberam os mesmos recursos econômicos e benefícios
estruturais.
Hodiernamente, a maioria dos municípios que integram o território do
Contestado enfrenta um processo de expansão fundiária, outrora já vivenciado, que
promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes
proprietários rurais e de empresas multinacionais. Em decorrência deste processo,
ocorre a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no
extrativismo, que gera enorme passivo ambiental, particularmente devido à
silvicultura. Além disso, mantém uma estrutura social desigual e injusta, fato que na
47
atualidade se manifesta através dos baixos índices de desenvolvimento humano,
identificados no território do Contestado.
Há que se considerar que muitos processos contundentes de exclusão dos
mais pobres permanecem vigentes em toda a região do Contestado. Conquanto, em
perspectiva, percebe-se um longo processo de exploração e exclusão, uma leitura
diametralmente oposta permite vislumbrar que a resistência, a organização e a luta
dos excluídos, em prol do reconhecimento e cumprimento de seus direitos, constitui
uma tradição sólida, a qual atingiu seu auge no movimento sertanejo do Contestado
(1912-1916), e nas décadas subsequentes foi reinventada de modo dinâmico e
ininterrupto (TOMPOROSKI, 2016, p.22).
48
3 CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES
O direito à propriedade no Brasil se alinhou de acordo com os rumos
democráticos que as nações do Ocidente tomaram. Considerado um direito
individual, necessita da proteção do Estado. Todavia, o direito coletivo, em prol de
um bem estar social, deve prevalecer diante do individualismo. A questão essencial
é buscar o equilíbrio destes direitos, de forma justa, compensadora, e que garanta
ao desapossado a dignidade na continuidade de sua atividade laboral e a
subsistência mínima de sua família.
Caso o equilíbrio destes direitos não seja alcançado pela intervenção estatal,
prevalece o autoritarismo, a truculência e a insatisfação social, modificando o
cenário econômico e político de uma região, satisfazendo apenas o interesse de
uma minoria e não o bem estar coletivo.
[...] vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas [...]. Para combater os problemas que enfrentamos, temos de considerar a liberdade individual um comprometimento social. (SEN, 2016, p. 10)
Através do enfoque da liberdade como ferramenta principal de fim e de meio
de desenvolvimento, a pesquisa analisa como a privação deste direito limita as
escolhas e as oportunidades, modificando por completo o destino de um
determinado território.
A análise de conflitos fundiários no Pós-Contestado, objeto desta
dissertação, debruça-se sobre as alterações no cenário político, econômico e social
que a instalação do CIMH promoveu na região do Planalto Norte Catarinense. Sem
qualquer participação social, a decisão política gerou efeitos limitadores aos
desapropriados, que, sem qualquer opção, viram-se obrigados a entregar suas
terras a mercê de um processo judicial, moroso e burocrático,para, quiçá,receber do
Estado o pagamento de uma justa indenização.
O recorte territorial desapropriado corresponde a uma área total de 7.595 ha
(LIMA, 2016, p. 02) que foi regulamentado pelo Decreto n. 40.570, de 18 de
dezembro de 1956 e retificado pelo Decreto n. 44.458, de 03 de setembro de 1958.
De acordo com o documento, a área foi dividida em duas glebas, sendo que a Gleba
49
A integrava 48 propriedades, e a Gleba B41 propriedades, distribuídas conforme o
mapa.
Figura 01: Mapa da divisão da área por glebas e propriedades
Fonte: Processo 501.114/87, p.438
Ao analisar o mapa, constata-se que a desapropriação atingiu uma extensa
área de terras, com limites entre as cidades de Três Barras, que havia se
municipalizado em 1960, e Papanduva. O CIMH mantém sua sede na Avenida
Rigesa, no centro de Três Barras, mas utiliza esta área para a prática de manobras
e treinamentos do Exército brasileiro.
3.1 DA ESTATIZAÇÃO DA LUMBER À INSTALAÇÃO DO CIMH:
A trajetória da disputa legal das terras desapropriadas teve início com a
estatização da empresa Brazil Railway Company, através do Decreto-Lei n.2.346, de
22 de julho de 1940, assinado pelo Presidente da República Getúlio Vargas, em
plena vigência do Estado Novo. Com a criação da Superintendência das Empresas
50
Incorporadas ao Patrimônio Nacional (SEIPN), passou-se a encampação dos bens
móveis e imóveis, direitos e obrigações da empresa estrangeira, atingindo também a
sua subsidiária Lumber Company, situada em Três Barras16.
Somente em 1948 o Estado autorizou a SEIPN a vender, mediante
concorrência pública, através da Lei n. 253/48 17 , o patrimônio da Lumber para
liquidação do saldo de dívidas aos acionistas na Inglaterra.
Para Thomé (1983, p. 139) a alienação dos bens foi vencida por um consórcio
de empresas (Sociedade Madeireira e Colonizadora São Roque Ltda, Sociedade
Pinho e Terras Ltda e Indústrias Gropp Ltda), sendo que todas eram controladas
pelo mesmo empresário, Alberto Dalcanale, que atuou na colonização do sudoeste
do Paraná e Oeste de Santa Catarina.
Ainda, segundo o autor, o pagamento foi acertado em Cr$8.550.000,00,
pagáveis em 12 prestações e incluía a Fazenda São Roque, então com
39.028.713,9 hectares; além das terras, aproximadamente 400 mil pinheiros e outras
madeiras de lei adultas, cinco serrarias instaladas, vagões da estrada de ferro, e
demais instalações, bem como os contratos de compra e venda de terras até então
realizadas com imigrantes, lavrando-se a escritura no Tabelião do 6º Ofício de Notas
do Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 1950.
O ponto inicial de todo este negócio aparentemente desventuroso, que
envolveu a transferência inicial da Lumber Company ao empresário Dalcanale,deu-
se já no edital de concorrência pública, com a estipulação de valoresabaixo da
avaliação dos bens da companhia. Este é o marco embrionário de toda a
negociação escusa que ocorreu.
Houve irregularidades no edital de concorrência e na posterior divisão dos bens da Lumber. A proposta vencedora foi a única representada, com excedente de apenas Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiro) em relação ao preço básico estipulado de Cr$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de cruzeiros). Apesar do edital de concorrência pública não permitir a divisão dos bens da Lumber, após a negociação, parte deles foi rapidamente escriturada em nome de terceiros (TOMPOROSKI, 2014 p. 102).
Quanto ao restante de terras pertencentes à antiga Lumber, no tocante a
quase três mil quilômetros quadrados, a maior parte foi alienada a particulares,
16
Três Barras não havia passado pelo processo emancipatório, sendo Distrito de Canoinhas-SC. 17
Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1940-1949/lei-253-18-fevereiro-1948-367226-norma-pl.html
51
reservando à União apenas 2 mil hectares na região de Três Barras e Papanduva.
Esta gleba de terras foi escriturada ao Ministério da Guerra que as destinou ao
Exército Brasileiro, a fim de serem utilizadas pela 5.ª Região Militar como área de
manobras, instalando-se o Campo de Instrução “Marechal Hermes”. Junto à sede da
empresa, surgiria mais tarde a cidade de Três Barras. (THOMÉ, 1983, p. 140).
Apesar da aquisição desta área pelo Exercito Nacional, a mesma ainda era
insuficiente para os treinamentos e manobras com tanques de guerra, havendo a
necessidade de extensão com terras limítrofes ao CIMH.
Em 1952, o Ministério do Exército recebeu, da SEIPU, diversas áreas pertencentes ao acervo da Southern Brasil Lumber & Colonization CO, destinadas ao Campo de Instrução Marechal Hermes, em Três Barras, SC. Verificou-se, já em época anterior ao recebimento que, havendo necessidade de se incorporarem outras mais, a fim de que se dessem condições operacionais ao Campo. Foram iniciados então, acordos, entendimentos com o Estado de Santa Catarina, ficando acertada a permuta das áreas sem destino para o Ministério por outras necessárias ao Campo a serem desapropriadas pelo Governo Estadual. (PROCESSO N. 501.114/87 – Parecer da Assistente Jurídica do Patrimônio – p. 205).
Sabedor do interesse do Ministério da Guerra em adquirir terras no Estado, o
Governador Catarinense Ireneu Bornhausen, parecendo atender aos interesses do
empresário Alberto Dalcanale, indicou ao Exército a área contemplada por ele na
concorrência pública, o que atendia perfeitamente a intenção do Exército de
estender as suas terras com áreas limítrofes.
A narrativa da assessoria jurídica do exército confirma que o governo estadual já havia se comprometido, ainda que informalmente, de desapropriar áreas no entorno das já incorporadas ao patrimônio pelo Decreto 40.570, de 18 de dezembro de 1956.E, segundo o relato, o período entre 1956 até 1961, não foi um período de desinteresse do Ministério do Exército, e sim, de aguardar um posicionamento do governo estadual de Santa Catarina sobre a desapropriação da área, conforme tratativas anteriores (Processo n. 501.114/87, p. 195-196).
Com argumentos ardis e bem elaborados, características de um próspero
empresário como Dalcanale, com a intermediação do Governador do Estado,
obtiveram êxito na transferência do patrimônio da Lumber Company ao Ministério da
Guerra. Após os ajustes jurídicos, em 11 de setembro de 1952, a área onde outrora
funcionara a Lumber Company, passou ao controle do Exército brasileiro.
52
Aqueles bens com potencial de otimizar a geração de lucros para as empresas adquirentes, controladas por Alberto Dalcanale – entre os quais uma grande propriedade em Calmon, a fazenda de São Roque, com duas serrarias, desvios ferroviários, trezentos e cinquenta mil pinheiros, imbuias, etc., permaneceram com o empresário [...]. Em contrapartida, sob a responsabilidade do exército, permaneceram a serraria de Três Barras – transferida por Dalcanale ao Ministério da Guerra – praticamente imobilizada, assim como o conjunto de antigos trabalhadores da Lumber. O custo estimado com os encargos decorrentes de eventual demissão dos trabalhadores poderia atingir cinquenta milhões de cruzeiros (TOMPOROSKI, 2014, p. 106)
A transferência das terras necessárias para composição do Campo de
Instrução (exceção feita àquelas povoadas por pinheiros)consistiu em uma
estratagema do empresário Alberto Dalcanale para transferir, além das terras, os
ônus da antiga Lumber para uma instância pública – no caso, o Ministério da Guerra
– desincumbindo as empresas do referido empresário das obrigações trabalhistas
dos pagamentos de salários, encargos sociais e possíveis indenizações aos
operários da companhia (TOMPOROSKI, 2014, p.105).
Segundo Lima (2015, p. 13):
Com o término das atividades da Lumber, através da Portaria n.º 75.952 N.º RG 4252 de 19 de agosto de 1952, sob o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, ocorre a transferência do patrimônio da Lumber para o Ministério da Guerra. A área passa a pertencer ao Ministério do Exército, destinada à implantação de campo de instrução militar, dando origem ao CIMH - Campo Instrução Marechal Hermes.
De certo modo, a transferência de parte do patrimônio da
Lumber,configurando uma empresa praticamente imobilizada, e todos os encargos
trabalhistas decorrentes do vínculo com os empregados ao Ministério da Guerra,
contemplou, ainda que indiretamente, os interesses patrimoniais das famílias
Dalcanale e Bornhausen.Ou seja, ambos atuaram para que permanecesse sob o
controle dos seus a parte valorizada do acervo. "No dia 04 de fevereiro de 1954, a
filha de Alberto Dalcanale, Ivete Terezinha, e o filho do governador Ireneu, Paulo
Konder Bornhausen, casaram-se" (TOMPOROSKI, 2014, p. 108).
Para Lima (2016), visando dar operacionalidade ao campo militar, ainda havia
a necessidade de desapropriar mais terras no entorno das já adquiridas pelo CIMH.
53
Através dos Decretos n. 40.570 de 18.12.195618, modificado pelo Decreto n. 44.458
de 03.09.1958, as desapropriações foram legalizadas.
A área definida para a desapropriação, segundo o Cel. Oromar Osório,
Comandante da Divisão de Infantaria, foi aquela que reunia as terras
Registradas na carta levantada pelo Serviço Geográfico do Exército, com base nos limites estabelecidos pela Comissão de 1952, que, a grosso modo, tem os seguintes pontos de referência: da Capinha ao Monte Castelo e de Canoinhas ao São João. Terreno de forma irregular, mas contínuo (JORNAL CORREIO DO NORTE, 24 de setembro de 1959).
O governador enviou instruções ao prefeito de Canoinhas, orientando-o para
que, juntamente com o representante da Companhia de Madeiras, principal empresa
compradora do acervo da Lumber, compusesse uma comissão com o objetivo de
localizar uma área de terras que atendesse aos interesses dos militares. Dessa
forma, o governador do Estado de Santa Catarina, no uso de suas atribuições,
delegou a responsabilidade sobre a seleção e, ato contínuo, desapropriação da área
de terras destinada à constituição do campo militar, a uma comissão composta tanto
por representantes do Ministério da Guerra quanto pelo proprietário das companhias
que iriam explorar ulteriormente os bens integrantes do acervo da antiga Lumber.
Certamente o poder para selecionar e desapropriar terras não deveria ser transferido
a uma comissão constituída, paradoxalmente, por representantes de empresa
privada. (TOMPOROSKI, 2015, p. 103-104)
Para este feito, fez-se necessária a retirada, ainda que por meios legais, de
uma área de 7.595 ha., consistente em 89 propriedades, distribuídas entre 68
famílias, sendo a maioria pequenos posseiros e proprietários. O decreto assinado
pelo Presidente Juscelino Kubitschek e Henrique Teixeira Lott, Ministro da Guerra,
foi fundamentado no Instituto da Desapropriação por Utilidade Pública, prevista na
Constituição de 1946 e aplicada à época dos fatos.
Os desapropriados da área em questão formavam um grupo, em sua grande
maioria, de pequenos proprietários rurais, cujos meios de sobrevivência eram
baseados exclusivamente no trabalho agropastoril. A produção classificava-se em
dois tipos: a extrativista (madeira, erva-mate e mel) e pelo cultivo da terra,
basicamente de subsistência. Estocavam em paiol e no momento necessário
18
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-40570-18-dezembro-1956-330304-publicacaooriginal-1-pe.html
54
comercializavam. Tinham como principais características: residência rural;
agricultura familiar, praticada em pequenas propriedades; apego ao solo, à
comunidade local e à tradição. Usavam da mão de obra familiar, frequentemente
completada pela ajuda comunitária, através do “pixirum”.19
Entre os legítimos ocupantes das terras havia aqueles que possuíam documentos (escrituras), havia posseiros, havia empregados das grandes fazendas aquinhoados com pequenas glebas para plano de sobrevivência, havia herdeiros do Contestado, pessoas que ficaram por ali após a guerra que estabeleceu as divisas; havia casas com lustres e vidros trabalhados e havia casebres cobertos de sapé (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.02)
Os 68 proprietários desapropriados, possuíam propriedades com dimensões
territoriais representadas no gráfico.
Figura 02: Gráfico do tamanho de área (em há) das propriedades desapropriadas
Fonte: Decreto nº 40.570 de 18/12/1956
O gráfico demonstra que a maioria dos proprietários eram minifundiários e
suas terras não ultrapassavam 50.000 ha, comprovando a dependência daqueles
desapropriados da atividade agropastoril para subsistência.
19
O pixurum acontecia quando família vizinhas se organizavam para trabalhos específicos em conjunto e como formas de pagamento recebiam um grande almoço, geralmente acompanhado com um baile à noite.
55
Para o Estado, a desapropriação daquelas terras demonstrava que o
individualismo sobre a propriedade, ainda que produtiva, não se sobrepunha ao
interesse coletivo da necessidade de instalação de um Campo de Instrução Militar
naquela área, características da legislação vigente à época, como a Constituição
Federal de 1946 e o Decreto-Lei n. 3.365 de 21 de junho de 1941, que já previam a
função social da propriedade e a unificação da dicotomia necessidade – utilidade
pública.
Contudo, havia entre a sociedade local uma desconfiança acerca da
implantação do campo de instrução e sua contribuição para o desenvolvimento da
região, pois terras produtivas com enormes riquezas naturais deixariam de serem
exploradas. A imprensa local alertava à época:
O Campo de Manobras, embora traga para o município contingente das forças armadas, talvez não compense, - quando se analisa os fatos sob o prisma do fator tempo, - a inutilização de vastíssima zona produtora de mate, na qual existe apreciável parcela aproveitada em extensas lavouras, além de vastas áreas de pastagens, talvez as melhores para criação de gado, neste município e no de Papanduva. Seja como for, os responsáveis pelos destinos nacionais, estaduais e municipais, não têm o direito de cruzar os braços ante o drama que vivem os servidores da ex-Lumber. Por outro lado, a grande vila-cidade que é Três Barras, também tem seu direito a um lugar ao sol do progresso geral, e não pode ser entregue ao sabor de um destino adverso (BARRIGA VERDE. Ano XVI. Nº 839. Canoinhas, 24/03/1954).
A preocupação era compreensível diante da transformação social, política e
econômica que a desapropriação causaria na região. A imprensa local alertava
quanto ao interesse militar parecer apenas uma politicagem desesperada e que era
preciso priorizar o futuro da vila de Três Barras e de toda a região.
Para Tomporoski (2015, p. 109) a desconfiança na Instituição do Ministério do
Exército era fruto do descaso com os trabalhadores da Lumber. Junto com parte do
acervo, Dalcanale transferiu os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da
empresa e os correspondentes encargos trabalhistas. Todavia, apesar da atribuição
institucional, o Ministério do Exército não reconhecia a imputação de
responsabilidade para com os trabalhadores e, por conseguinte, não cumpria as
determinações da legislação trabalhista, abandonando-os à própria sorte.
Enquanto as famílias Dalcanale e Konder Bornhausen celebraram sua união por intermédio do matrimônio de Paulo e Ivete, os quase trezentos trabalhadores da Lumber e suas famílias, num total aproximadamente de
56
mil e duzentas pessoas, padeciam com o segundo longo período de atrasos nos salários. Surgiam os “flagelados de Três Barras”. Os trabalhadores permaneciam com seus vencimentos em atraso, com a fome “invadindo os lares de muitos operários”. (TOMPOROSKI, 2015, p. 109).
Ambos os envolvidos nas negociações fizeram todo o possível para livrar-se
da responsabilidade sobre os trabalhadores, seus encargos trabalhistas e eventuais
indenizações decorrentes de demissões.
Contudo, a desapropriação parecia mesmo se efetivar quando o Ministério da
Guerra, através da Emenda n. 157, levantou a quantia de CR$8.000.000,00 (oito
milhões de cruzeiros), para a composição do campo militar em Três Barras,
destinando os recursos ao pagamento de indenizações.
Sei que o Exército dispõe de 8 milhões de cruzeiros depositados em Curitiba há 4 anos para o ônus da desapropriação de parte dessa área, mas infelizmente, ainda não foi possível atingirmos esse objetivo. Em que pese isso, podemos afirmar que o Campo atende perfeitamente às necessidades de exercícios da envergadura deste (JORNAL CORREIO DO NORTE, 24 de setembro de 1959).
Com a abertura do procedimento e com a promessa de uma justa
indenização, inicialmente foram realizadas as avaliações das áreas abrangidas e
solicitação aos proprietários da documentação pertinente às suas áreas, bem como
uma lista discriminatória dos bens existentes na propriedade, o que foi prontamente
atendido pela maioria dos proprietários (LIMA, 2016, p. 04).
Entre esses primeiros atos expropriantes, logo após a publicação do Decreto,
em 1956, até o ano de 1961, os proprietários afirmam ter havido um limbo quanto ao
avanço dos processos expropriatórios. O poder público emudeceu-se por completo
com relação ao destino do Decreto e das pessoas por ele atingidas, dando a
entender aos desapropriados que os planos de implantação do campo de manobras
do Ministério do Exército haviam sido abandonados (Processo n. 501.114/87, p. 05)
Na esperança de valer-se do direito à justa indenização, os proprietários
atingidos tinham em mente a valorização de suas terras, compostas de madeiras e
ervais nativos, além do solo apropriado para a atividade agropastoril. Até então,
nada opuseram quanto ao prosseguimento do processo.
A tramitação do processo expropriatório seguiu seu curso, e atendendo ao
pedido dos proprietários, o juiz determinou que novas avaliações fossem realizadas
nas áreas desapossadas. Os peritos nomeados foram Antonino Nicolazzi e José
57
Stockler Pinto, os quais apresentaram planilhas de cálculos individuais de cada
expropriado, considerando as terras, as árvores de lei e as benfeitorias (Processo n.
501.114/87, p. 376-397).
Comparando-se os valores declarados nos decretos desapropriatórios
(anos1956-1958) com os valores indicados pelos peritos (ano 1964), a diferença nas
avaliações é exorbitante, o que reforçava o descontentamento dos proprietários com
os valores propostos como indenização.
Segundo Lima (2016, p. 05), a partir do depoimento de Walfrido da Silva
Lima, que era proprietário de 16.964 ha., no Decreto sua propriedade estava
estimada em Cr$ 24.826,50 e na avaliação de 1964 a mesma área passou ao valor
de Cr$ 2.990.265,00. Esta discrepância também estava presente em outras
propriedades, como a de José Silva de Lima com 495.601 ha., no valor de Cr$
677.796,80 pelo Decreto de 1956 e na avaliação de 1963, sua área era passou a ser
estimada em Cr$ 16.185.416,00.
Em entendimento contrário, a partir da análise da opinião manifestada pelo
governo através de sua assessoria (Processo n. 501.114/87, p. 205), constatou-se
que estas avaliações estavam distorcidas da realidade em relação os valores iniciais
indicados no Decreto Expropriatório. A avaliação realizada inicialmente naquela área
se atribui ao fato de que, após as indicações de valores, houve uma ampla
exploração do assunto por parte de políticos influentes da região, inclusive com
abaixo-assinados destinados às altas autoridades, tanto em nível local, como
também em nível estadual e nacional. Esta ampla divulgação teria motivado os
desapropriados a não mais concordarem com os preços já previamente fixados.
A assessoria ainda noticia que mesmo após as avaliações das propriedades,
os expropriados venderam cerca de 80 mil pinheiros, localizados nas áreas já
decretadas como de utilidade pública, para firmas particulares durante este período.
As firmas compradoras dos pinheiros começaram a pleitear a retirada das
plantas, o que gerou um impasse, pois se o poder público permitisse a retirada dos
pinheiros, era necessária uma nova reavaliação dos terrenos e benfeitorias das
glebas A e B, pois, consequentemente teriam menor valor ainda.
Por esse motivo, uma desapropriação amigável se distanciava, pois a cada
dia, segundo a assessora (Processo, p.207) apareciam mais problemas com o
objetivo único de que a desapropriação não se ultimasse.
58
Todavia, a União ingressou com a demanda judicial após quase cinco anos
da publicação do Decreto Desapropriatório e o Poder Judiciário através de impulso
oficial20, iniciou a fase de citação21 do processo das 41 famílias identificadas e que
tinham toda a documentação comprobatória de suas propriedades.A citação do
processo pelo réu é preceito constitucional, que atende ao Princípio do
Contraditório22, é o momento processual em que é formada a tríplice relação entre o
autor da demanda, o demandado e o Poder Judiciário.
Segundo documento anexado ao processo (Processo 501.114/87, p. 06), por
razões desconhecidas, muitos dos proprietários deixaram de ser regularmente
citados, ficando alheios a tudo que se passava, tendo seus processos
desapropriatórios julgados à revelia23.
O aprofundamento do estudo através da análise dos processos
desapropriatórios que tramitaram na Comarca de Canoinhas certamente
esclareceriam esta questão jurídica de falta de citação de alguns proprietários,
contudo não é este o enfoque desta pesquisa.
Em contra-argumentação, por meio da análise do parecer, a assessoria
jurídica do SEIPN reconheceu a existência de algumas falhas, mas afirma que o
procedimento ocorreu dentro da legalidade.
Uma vez prosseguido com o processo, as injustiças cometidas àqueles
desapossados começam a transparecer. A União, para cumprir os requisitos da lei e
se apossar das terras, efetivou os depósitos judiciais baseados nos valores
levantados no Decreto Desapropriatório (1956-1958), sem correção monetária e
muito aquém dos valores estimados nas avaliações posteriormente realizadas,
gerando descontentamento aos beneficiários.
20
O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo às exceções da previstas em lei. (Artigo 2º do Código de Processo Civil) 21
Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. ( Artigo 5º,LV da Constituição Federal) 22
Do contraditório resultam duas exigências: a de se dar ciência aos réus da existência do processo, e aos litigantes de tudo o que nele se passa; e a de permitir-lhes que se manifestem, que apresentem suas razões, que se oponham à pretensão do adversário. O juiz tem de ouvir aquilo que os participantes do processo têm a dizer, e, para tanto, é preciso dar-lhes oportunidade de se manifestar, e ciência do que se passa, pois que sem tal conhecimento, não terão condições adequadas para se manifestar. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015) 23
A revelia é uma ato-fato processual, consistente na não apresentação tempestiva da contestação. A revelia é ato-fato que produz o efeito material de presunção de veracidade das alegações de fato feitas pelo demandante. (DIDIER, Fredie Jr, 2015)
59
Os valores atribuídos como indenização encontravam-se naquele ano (1963)
totalmente defasados, porque o lapso temporal de 10 anos entre a avaliação e o
depósito foi desconsiderado, ademais já se verificava naquela época uma
desenfreada inflação. Os anos 1950 haviam registrado uma substancial elevação do
patamar inflacionário, com aumento acumulado próximo de 460%, mais que
dobrando a taxa de crescimento dos preços em relação à década anterior. A década
de 1960 traria novas surpresas para quem imaginava que os desajustes monetários
dos anos 1950 viriam a ser logo superados. Diferentemente, o que se viu foi um
extraordinário salto das taxas de inflação, logo ao iniciar-se o decênio, pois o
crescimento dos preços elevou-se rapidamente, passando dos pouco mais de 30%
registrados em 1960 para mais de 90% na variação dezembro/dezembro ao final de
1964 (MUNHOZ, 2008, p.12). Esta situação resultou na impossibilidade de compra,
com os valores da indenização, nem sequer de 3% das áreas que estavam sendo
despojadas (Processo n. 501.114/87, p. 06).
O ano de 1963 ficou marcado na memória de cada proprietário daquelas
terras. Uma vez cumprida à exigência da legislação, a União estava autorizada a
tomar posse daquelas terras.
Desse modo, os valores oferecidos em depósito causaram o
descontentamento geral e não mais possibilitavam a aquisição de novas terras nas
mesmas proporções.
A morosidade da justiça, nesse caso, tem proporcionado seríssimo desequilíbrios sociais, considerando serem os impetrantes lavradores que desconhecendo os efeitos da Lei, tudo tem que pagar para obterem seus direitos. (JORNAL CORREIO DO NORTE. Canoinhas, 08/05/1965).
Com os depósitos, ainda que defasados, o Juiz de Direito da Comarca de
Canoinhas determinou o prazo de 48 horas para a desocupação voluntária das
propriedades;caso contrário, autorizava o Ministério do Exército a proceder com a
expulsão forçada. Todos aqueles que estavam direta ou indiretamente ligados aos
fatos foram tomados de surpresa por aquela decisão judicial (Lima, 2016, p. 07).
Tão logo a decisão de imissão de posse tornou-se pública, e numa rapidez
atípica do Poder Judiciário, foram emitidos os mandados que autorizavam a autora
da ação a tomar posse das propriedades.
60
Alguns poucos proprietários conseguiram se restabelecer no prazo concedido
pela justiça; os demais, a grande maioria, apesar de prósperos produtores, não
conseguiam se reabilitar. Os que tinham parentes mais próximos migraram para
outras regiões. Aqueles que não possuíam suporte familiar precisaram contar com a
benevolência de terceiros, ou ficaram sujeitos a subempregos ea condições indignas
de subsistência.
Quanto aos animais, os poucos afortunados arrendavam24 do próprio Exército
suas terras a fim de conservar suas reses, o que por si, desvia por completo a
finalidade da desapropriação.
Ao final da década de 1960 e início da década de 1970 foram proferidas as
primeiras sentenças judiciais, nas quais faziam respeitar os valores das novas
avaliações periciais e a aplicação de correção monetária. Se não atendiam
totalmente aos interesses dos desapropriados, ao menos, se equiparava as perdas
inflacionárias do período.
Demonstrando inconformismo com as sentenças proferidas pelo Juiz da
Comarca de Canoinhas e discordando dos novos valores avaliados e da incidência
de correção monetária, a União Federal recorreu aos Tribunais Superiores visando à
reforma das decisões de primeira instância.
Submetidos ao reexame e passados entre quatro a seis anos, foram as
sentenças iniciais reformadas no tocante ao valor atribuído para as indenizações. Na
nova decisão, os ministros decidiram pela redução em 40% a 50% do valor
sentenciado e, ainda, sem qualquer incidência de correção monetária, que somados
à inflação atribuída ao período, explica os valores irrisórios que se tornaram as
indenizações.
24
Segundo Lima (2016, p.09): Contrato de arrendamento, celebrado entre o Ministério do Exército/Campo de Instrução Marechal Hermes e o Sr. Jose da Silva Lima, firmado em 27 de junho de 1969. Contrato de arrendamento n. 10/FA/70, celebrado entre o Ministério do Exército e o Sr. Joao Gonçalves de Lima Filho, firmado em 14/02/70. Contrato de arrendamento n.11/FA/70, celebrado entre o Ministério do Exercito e o Sr. Argemiro Gonçalves de Lima, em 14/02/70. Recibo de Cr$ 67,20 passado em 22.11.71 pelo tesoureiro do Quartel em Três Barras, em favor de Argemiro Gonçalves de Lima, quitando o arrendamento de pastagem para criação de 8 reses pelo prazo de 1 ano. Recibo de Cr$ 84,00, passado em 16/11/71 pelo tesoureiro do Quartel em Três Barras em favor de Victor Gonçalves de Lima, quitando o arrendamento de terra para criação de 10 cabeças de gado vacum. Contrato de Arrendamento n. 2-FA/73, celebrado entre o Ministério do Exército e o Victor Gonçalves de Lima, firmado em 15/05/73. Carta de autorização expedida pelo diretor do CIMH em Três Barras, em 02/04/74, para Victor Gonçalves de Lima usar a título precário a pastagem da área de manobras de gado, mediante o pagamento com trabalhos de roçadas nas margens das estradas das áreas de manobras.
61
O texto escrito por Luís Veríssimo no jornal de Santa Catarina (Processo n.
501.114/87, p. 14) noticiava a forma como a decisão do Tribunal atingia as famílias
do norte Catarinense:
[...] para as poucas famílias que receberam o valor foi “irrisório”, como aconteceu com a família de Aristides Guebert, que recebeu a primeira precatória (número 2779, de 23 de junho de 1970), julgada pelo Tribunal Federal de Recursos. Segundo a reavaliação de preços feita em 1964, o valor da indenização seria de Cr$25.711,75 – cruzeiros velhos), mas o TFR estabeleceu em apenas Cr$ 14.953,62, ou seja, um valor inferior ao estipulado seis anos antes, sem incluir juros e correção monetária. Este valor corresponde a 372 hectares de terras férteis.
Segundo o advogado dos proprietários, Dr. Francisco Vital Pereira 25 ,
constata-se o pronunciamento de um Ministro do Tribunal Federal de Recursos, que,
ao expressar-se a respeito da indenização fixada em sentença que lhe era então
submetida, declarou: “estar-se pretendendo fazer um carnaval, em Canoinhas, com
o dinheiro da União” (Processo n. 501.114/87, p. 07). A frase citada, proferida pelo
Ministro, indica que os direitos reivindicados pelos desapossados eram tratados
como uma forma de enriquecimento ilícito, quando, ao contrário, eram valores
providos de avaliações judiciais, realizadas por profissional habilitado e imparcial,
que soube mensurar quanto as terras valiam para aquelas pessoas.
Todavia, apenas alguns poucos proprietários, através de seus advogados
constituídos, recorreram a tempo ao Supremo Tribunal Federal e lá, nos termos da
súmula 475 do STF26 e da Lei n.4.686, de 21 de junho de 196527 (estabelecia a
incidência da correção monetária no campo imobiliário e a aplicação imediata aos
processos em curso), conseguiram reestabelecera sentença de primeiro grau e a
incidência da correção monetária foi aplicada aos valores das indenizações.
[...] a questão do pagamento, das terras desapropriadas, foi complexa, devido à atuação dos advogados, onde apenas dez desapropriados receberam formalmente. Houve casos de advogados receberem via procuração e não repassaram aos clientes, diante do fato dos mesmos
25
Advogado da questão representando os desapropriados no período de 1984 a 2005(Lima, 2016). 26
“A Lei 4.686, de 21/06/65, tem aplicação imediata aos processos em curso, inclusive em grau de recurso extraordinário”. (https://www.legjur.com/sumula/busca?tri=stf&num=475) 27
Art 1º O atual parágrafo único do art. 26 do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941 (Lei de Desapropriação de Utilidade Pública) passará a ser o § 1º, acrescentando-se ao mesmo artigo a seguinte disposição: "§ 2º Decorrido prazo superior a um ano a partir da avaliação, o Juiz ou o Tribunal, antes da decisão final, determinará a correção monetária do valor apurado". (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4686.htm)
62
ignorarem o que estava acontecendo; em outros casos os desapropriados optaram por não retirar os valores depositados aguardando o pagamento justo e em algumas situações de não receberem qualquer indenização. (SCHIOCHET, 1993, p.10).
Os demais desapropriados, que não tiveram as mesmas condições, se
declararam vítimas de uma grande injustiça, e, embora desiludidos, persistiram no
intuito de reaverem as propriedades ou receberem uma indenização justa.
Há as que têm seus títulos de posse devidamente registrados em cartório, há as que desistiram de brigar por não terem documentos legítimos; há as que julgaram mais cômodo simplesmente esquecer o caso e procurar outros meios de sobrevivência. Há que se considerar, e muito, o fato de, na época, os próprios cartórios terem dificuldade para estabelecer medidas e tamanhos exatos das áreas e o governo não ter sequer a noção exata de sua localização. Não havia mapas confiáveis e, hoje, discute‐se a razão de cada um em virtude, também, de toda a incerteza que cerca a questão. Os que possuem documentos brigam baseados em fatos, números e dados concretos, mas a grande maioria, aqueles menos esclarecidos, nem tomam conhecimento da possibilidade de reaver suas propriedades ou de receber, mesmo que tardiamente, a indenização, pois não possuem documentos legais. Assim apenas aquelas famílias mais ricas ainda nutrem a esperança de, um dia, fazerem valer seus direitos (CORREIO DO NORTE, 2014, Ed. 3756, p.02-03).
Aqueles que não puderam insistir por vias judiciais, passaram a organizar-se
através de movimentos sociais no intuito de pressionar o governo e a opinião pública
na direção de uma solução amigável.
3.2 EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO ADMINISTRATIVA
Paralelamente à morosidade do Poder Judiciário em rediscutir a questão
referente aos valores a serem pagos a título de indenização nas instâncias
superiores, o caos se instalou na região de Três Barras. Compôs-se um cenário,
para alguns, de esperança no recebimento das indenizações atualizadas e na
possibilidade de um recomeço; outros sucumbiam expostos a uma situação precária,
sem moradia ou meios de subsistência, desacreditando na Justiça, mas confiantes
numa solução administrativa para o caso, através de sua organização e luta por
meio de movimentos sociais.
Na tentativa de mobilizar as autoridades pela via administrativa, ao passo que
pela via judiciária, aos olhos dos proprietários não se fez justiça, inúmeros
63
requerimentos, ao longo de 20 anos, foram dirigidos às mais diversas autoridades,
civis e militares, solicitando uma intervenção no caso, porém todos os esforços
restaram infrutíferos.
Segundo LIMA (2016), no ano de 1973, mais precisamente no dia 31 de
março, foi encaminhada uma correspondência ao Presidente da República, expondo
a situação dos desapropriados e solicitando uma audiência para uma comissão de
seis representantes. Vejamos parte desta correspondência:
Permita, V.Exa., que uns humildes patrícios tomem a liberdade de dirigirem-se ao Ilustre Chefe da Nação, a fim de fazerem um pedido que representa muito para uma classe de antigos lavradores, de bons brasileiros que só almejavam trabalhar e produzir para o progresso de nossa pátria e de que de uma hora para outra, foram injustiçados pelo Governo Federal e pelo Exército Nacional, despojados de suas propriedades e muitos dos quais acham-se atirados na mais completa miséria, chegando ao cúmulo de mendigar pelas ruas, outros, trabalham em setores diversos, mal aproveitados, como na coleta de lixo, abertura de valas, ou sujeitando-se a trabalhar em fábricas ou pelo sistema de meação em lavouras de proprietários não atingidos pelo Decreto de Desapropriação n. 40.570 de 18 de dezembro de 1956 (CORRESPONDÊNCIA, 1973)
28
Outros documentos 29 foram enviados às autoridades pelos proprietários,
herdeiros e sucessores, expondo o angustiante drama que já se arrastava por duas
décadas, causando problemas da mais larga repercussão social da região.
Nos referidos apelos, os desapossados denunciavam a forma que o Ministério
do Exército recebeu as áreas de terras constantes do acervo da Southern Brzil
Lumber & Colonizations CO, destinadas ao CIMH. Citavam também que a referida
transação, por si, não atenderia à extensa área de terras necessárias para o campo
de manobras, e que a desapropriação ao entorno, já prevista, atendeu a interesses
políticos do empresário Dalcanale e ao Governador do Estado de Santa Catarina, e
não aos interesses dos pequenos proprietários que exerciam ativamente a
agricultura e a pecuária.
Noticiaram também a insegurança e intranquilidade com que os processos
desapropriatórios tramitaram na justiça, e que a rapidez com que a União recebeu
28
Esta correspondência continha 65 assinaturas de desapropriados e herdeiros, registrada no 2 Tabelião de Notas “Agenor Vieira da Corte”, de Canoinhas-SC. (LIMA, 2016) 29
Datado de 15 de julho de 1976, destinado ao Presidente da República, General Ernesto Geisel, ao DD. Ministro do Exército, General Sylvio Couto de Frota, ao DD. Comandante da 5 Região Militar e ao DD. Diretor do Campo de Instruções Marechal Hermes, Tenente Coronel Nilson Santos Walback. Ao documento foram acostados diversos documentos que retratavam a situação em questão. (Processo n. 501.114/87, p. 25)
64
autorização para imitir-se na posse, não foi igualmente aplicada no pagamento das
indenizações. Relataram a forma como foram desalojados de suas casas e de suas
terras e impedidos de nelas praticar qualquer ato, tudo deixando, desde plantações
até benfeitorias.
Os desapossados indicaram ainda às autoridades a disparidade dos valores
atribuídos aos imóveis e os compararam aos valores à época, denunciando à
injustiça que ora vinham sofrendo. Demonstraram através da equiparação dos
valores apurados por hectare, que sequer compravam um “cafezinho” e somente a
soma de 03 hectares compravam uma “caixa de fósforos” (Processo n. 501.114/87,
p. 27).
Como se não bastasse, os proprietários ainda relataram a forma como
sumariamente foram arrancados de suas casas, alguns buscando abrigo em casas
de parentes, outros, mais infortunados, ficaram ao relento, sem alimentação, sem
emprego, com suas mulheres e seus filhos na mais terrível miséria.
A injustiça noticiada pelos proprietários através deste documento ainda
esclarecia que além da decisão reformada, o valor médio fixado para as terras não
chegava a 1% do seu valor real, pois não haviam considerado as benfeitorias como
paióis, mangueiras, cercas e muito menos a madeira existente.
Para finalizar o documento, os proprietários ainda argumentaram quanto a
outro ponto, por certo o mais importante: que as áreas desapropriadas, naquela
época (ano de 1976) eram inadequadas à finalidade pretendida (utilidade pública) e
que o campo de instrução, naquela região, já não tinha mais viabilidade pela sua
localização.
Alegaram que a localização do Campo de Instrução 30 não era mais
aconselhável, considerando que os carros de combate do exército eram equipados
de arma de alcance de até 20 km e poderiam colocar em risco as cidades e as vias
de comunicação ao redor. Ainda, que o custo de transportes de tropas de distantes
regiões, bem como de equipamentos, consumia vultosas somas em combustíveis,
além dos carros de combates, que necessariamente teriam que transitar pela BR
101 e certamente destruiriam o leito asfáltico.
30
Sendo 12 km de Três Barras, 8 km de Canoinhas e Papanduva e 4 km de Major Vieira e ainda distava 4 km de duas importantes vias: a estrada federal BR 116 e a estrada de ferro TPS – Tronco Principal Sul
65
Este custo elevado para o funcionamento do campo de instrução se fazia
desnecessário, pois as manobras raramente aconteciam, às vezes transcorriam
vários anos sem que nenhuma manobra fosse realizada.
Somado a este fator, os proprietários ainda informaram que, conforme
relatório do INCRA, 90% das terras eram consideradas férteis, planas e
agricultáveis, de alto potencial produtivo. Na área delimitada pelo INCRA era
possível produzir anualmente, de 300 a 400 mil sacas de trigo, feijão, soja, arroz e
batatas, considerando a atividade desenvolvida nas lavouras circunvizinhas.
No texto final da argumentação dos proprietários junto às autoridades
endereçadas, lembraram que o Decreto n. 40.570, que desencadeou todo o
problema da região, foi anterior à Revolução de 1964 e que os erros, os equívocos e
as injustiças que em nome dessa desapropriação cometeram, não poderiam ser
debitadas ao atual governo; eram próprios do Governo da Revolução, que implantou
no país uma nova ordem, moralizando a administração pública, e que deveria dar o
exemplo do trabalho honesto e produtivo. Sob a égide da justiça e do direito, deveria
corrigir as anomalias que lhes eram denunciadas, razão pela qual os proprietários
formularam o presente apelo.
Os proprietários, no início do processo expropriatório com a promessa do
pagamento de uma justa indenização, imaginavam adquirir novas terras idênticas e
promissoras como àquelas desapropriadas. Com o passar do tempo e a inércia de
uma solução judiciária ou administrativa, a ilusão foi substituída pela esperança no
"governo revolucionário" para lhes garantir o direito à retrocessão, ou seja, restituir-
lhes as terras aos seus legítimos proprietários.
Como garantia à retrocessão, os proprietários propuseram a devolução de
qualquer quantia recebida por eles ou por seus procuradores e se comprometiam a
acertar diretamente com seus advogados eventuais honorários devidos(Processo n.
501.114/87, p. 36).
Desse modo, finalizaram o documento com 65assinaturas 31 , dos 68
proprietários das 89 propriedades desapropriadas, devidamente reconhecidas em
cartório, se comprometendo que, em caso de necessidade pública, em nome da
31
Os signatários, quando não os próprios primitivos proprietários das áreas desapropriadas, são os legítimos sucessores deles, quer os filhos, quando já falecidos aqueles, quer os que, depois do decreto de desapropriação, mas antes da propositura da ação, mediante escritura pública devidamente transcrita, adquiriram as áreas, respectivamente. ( Processo n. 501.114/87, p. 39)
66
segurança nacional, e se imprescindível às manobras militares, colocariam as terras
à inteira disposição do Exército.
Todas estas reinvindicações dos proprietários junto às autoridades
demonstrava que estavam dispostos a colaborar com a solução do impasse, na
forma mais concreta para esse fim.
Como resposta, demonstrando ainda aparentemente uma predisposição ao
acordo, fora emitido um Ofício32. O teor deste mencionava que a carta encaminhada
ao Presidente da República, abordando a questão referente à desapropriação de
terras no município de Três Barras/SC, estava sendo tratada com a devida atenção
no âmbito daquele ministério e com o maior interesse em ver solucionado, no mais
curto prazo o assunto.
O memorial enviado às autoridades pelos proprietários gerou diversos ofícios
na tentativa de justificar o impasse formado na região de instalação do CIMH.Entre
as manifestações produzidas, a de maior expressão foi no sentido de esclarecer as
razões da morosidade e da injusta indenização, emitida pelo Procurador-Chefe da
União33, advogado que atuou no interesse do Governo no processo, e que poderia
fornecer uma razão conclusiva para o impasse até aquele momento.
Por certo que o parecer da Procuradoria em nada concordava com as
reivindicações dos produtores. Alegou inicialmente que as ações já vinham
merecendo, desde a sua propositura, tratamento jurídico e judiciário mais adequado
possível. Ainda, a despeito dos percalços da morosidade, a mesma se dava em
razão da pertinente legislação atinente à matéria e ao desinteresse dos
desapropriados, fazendo com que os respectivos processos se arrastassem mais do
que o normal.
Pontuou ainda que das setenta ações propostas, cinquenta e sete já
possuíam decisões definitivas, estando arquivadas em virtude do pagamento já
efetuado, e outras aguardavam iniciativa dos desapropriados, no sentindo de
receberem pagamento já à sua disposição, e outros mais em fase de execução da
decisão final.
Com esta informação, a Procuradoria atribuiu aos proprietários a
responsabilidade pela morosidade na tramitação dos processos desapropriatórios e
32
Ofício n. 109 remetido pelo Ministério do Exército ao Ilmo. Sr. Mario Theodoroviz. ( Processo n. 501.114/87, p. 46) 33
Oficio n. 288/77, pelo Procurador-Chefe da União.
67
que os apelos administrativos eram injustificáveis. Isso porque, a seu ver, a maioria
dos proprietários já havia recebido as indenizações e arquivado os processos,
demonstrando satisfação pelo crédito recebido.
Por fim, a Procuradoria justificou a impossibilidade de Procuradores da
República realizarem qualquer tipo de acordo ou composição, pura e simplesmente
em juízo, por depender de expressa anuência do Procurador Geral da República, o
que atribuiu como causa impeditiva de solucionar o problema.
A análise da legislação vigente na época dos fatos desconstrói, um a um, os
argumentos apresentados pela representante da União, demonstrando, na prática,
que o Governo não se interessava em solucionar o impasse fundiário estabelecido
naquela região.
Não obstante, a Procuradoria sugeriu como solução ao impasse um acordo
na esfera administrativa, entre o Ministério do Exército e os interessados, para
posteriormente, proceder a homologação judicial.
A sugestão apontou para o mesmo interesse dos proprietários, ou seja, uma
solução administrativa e célere. As medidas propostas seriam: a)determinar os
valores atuais e justos dos imóveis apropriados; b) convocar os desapropriados,
para que providenciassem títulos atuais de sua propriedade, tendo em vista a
existência de herdeiros e sucessores; c) assinatura de acordos dos desapropriados
com o Ministério do Exército para que os primeiros concordassem com os preços
oferecidos por seus imóveis e o segundo oferecesse e pagasse o referido preço
obviamente, com a prévia obtenção de recursos perante órgãos governamentais
competentes; d) encaminhamento dos termos destes acordos à Procuradoria da
República, para que esta requeira judicialmente sua homologação, pondo fim
definitivamente ao impasse, com a transcrição dos imóveis em nome da União
Federal.
A única ressalva condicionante para o acordo seria sobre a aplicação da
correção monetária aos valores indenizatórios. A União não aceitava a aplicação da
Súmula 475 do STF, que autorizava a incidência da correção em processos já em
curso, o que demonstra que o acordo não atenderia totalmente às reinvindicações
dos proprietários nem aos direitos legalmente previstos, mas traria ao Governo a
pacificação do movimento social fundiário na Região do Planalto Norte Catarinense
acerca da questão.
68
No entanto, nada avançou. A falta de comprometimento na efetivação dos
acordos propostos pelo governo aflorava ainda mais a impaciência dos produtores,
que passaram a organizar manifestações na região. Neste momento, o sentimento
de revolta e insatisfação com a retirada das terras produtivas e praticamente
inutilizadas pelo CIMH alcançou uma mobilização maior, atingindo também
empresários e autoridades locais.
A morosidade no impasse mobilizou os movimentos sociais e representativos,
como a Associação dos Municípios do Planalto Norte Catarinense (AMPLA). Esta
emitiu um documento subscrito por seu Presidente Plácido Gaissler, em 18 de
outubro de 1979, representando os municípios de Canoinhas, Irineópolis, Itaiópolis,
Mafra, Major Vieira, Monte Castelo, Papanduva, Porto União e Três Barras,
endereçado ao Presidente General João Batista de Oliveira Figueiredo, com o
argumento de que no município de Papanduva, dentro de uma área desta
associação, havia a Sociedade Núcleo Rural Papuã 34 , cuja entidade tinha por
objetivo o desenvolvimento rural (agropecuário) e os ideais que defendiam era o
desenvolvimento socioeconômico da região e da própria nação brasileira.
Sobre esta organização, o Sr. Valfrido esclarece: “[...] Nós fizemos, resolvemos, de criar uma associação só pra essa finalidade: de correr atrás dos direitos de propriedade. Daí, que foi formado uma associação no município de Papanduva [...]. (LIMA, 2016).
Estes movimentos sociais se manifestavam no sentido de expandir suas
atividades e os seus diretores desejavam levar ao Presidente da República, de viva
voz, as suas pretensões, solicitando uma audiência com o chefe da nação,
reiterando um pedido já enviado em 14 de setembro do mesmo ano por telegrama, e
que não havia sido atendido. (Processo n. 501.114/87, p.48).
Nota-se que o decreto expropriatório passou a atingir e a interessar não
apenas aos proprietários diretamente, mas sim a toda a Região do Planalto Norte
34
Grupo organizado de forma mais sistematizada, fundado no município de Papanduva em 09/09/1978, a Sociedade Núcleo Rural Papuã. Segundo o Estatuto foram 128 os sócios fundadores, que tinha no seu Estatuto, inciso I a seguinte finalidade: "I – Empenhar-se, em todos os sentidos e por todos os meios pacíficos e lícitos para promover a desativação e consequente extinção do Campo de Instrução Marechal Hermes – CIMH, na posse do Ministério do Exército, com o fim exclusivo, de utilizar toda a sua área em NÚCLEO RURAL PAPUÃ – NRP, dedicado inteiramente à produção agropecuária, especialmente de produtos nobres, como trigo e soja, exploração da erva-mate nativa, escolas rurais, instituições de pesquisa agrária, indústrias afins, armazéns e silos, mecanização rural, irrigação, formação de profissionais, centros de saúde, seleção de sementes, inseminação artificial e outras atividades similares" (ESTATUTO, 1978:03).
69
Catarinense. Isso porque a referida área, após quinze anos, era tomada por mato e
capoeiras, uma verdadeira ilha de improdutividade, absorvendo uma vasta gleba de
terras férteis.
A intenção da associação era produzir naquelas áreas, aumentar o
desenvolvimento da região, e não podiam ratificar a situação na qual aqueles
proprietários expurgados se encontravam. Deste modo, acreditavam que,
pessoalmente, apresentando as razões ao Presidente da República, algo poderia
ser feito.
O apelo surtiu parcialmente efeito. O desapossado João Florindo Schadeck
foi recebido, não pelo Presidente da República como queriam, mas pelo Ministro
Chefe do Gabinete Civil da Presidência, que apontou para a concordância em
permutar o CIMH para outra área a ser encontrada nos estados de Santa Catarina
ou Paraná.
Para reforçar esta nova proposta de permuta, o Governador de Santa
Catarina, Jorge Konder Bornhausen emitiu um ofício ao Chefe da Casa Civil
(Processo n. 501.114/87, p. 21), ratificando a intenção de não medir esforços para
que a permuta ocorresse. A manifestação do Governador catarinense dava indícios
de que a desavença estava por acabar e que a solução da permuta atendia aos
interesses de ambos os lados.
A área indicada a ser permutada pertencia ao Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Núcleo de Adrianópolis, situada em
território dos municípios de Bocaiúva e Adrianópolis, no Paraná, e que segundo as
informações da época não prestava para a lavoura e preenchia as condições para
ser utilizada pelo Exército como campo de provas.
O INCRA, em atendimento à pretensão formulada pelos expropriados e diante
da concordância da permuta pelas autoridades, propôs que o CIMH fosse instalado
em uma área inclusa no Projeto Integrado de Colonização Marquês de Abrantes,
situada nos municípios de Adrianópolis e Bocaíuva do Sul, estado do Paraná, que
poderia atender aos objetivos propostos (Processo n. 501.114/87, p. 19-20).
A referida área compreendia 5.892 hectares e constituía parte da denominada
Gleba “C”, que embora encravada em terras do aludido projeto, encontrava-se
registrada em nome de particulares. Acenou ainda o INCRA que se o Ministério do
Exército concretizasse a permuta, propunha-se a providenciar o levantamento
cadastral das propriedades e posses, bem como a avaliação de benfeitorias, para
70
que a Secretaria de Estado pudesse promover a desapropriação por utilidade
pública da referida área.
A permuta parecia, à época, uma solução viável aos interesses do Ministério
do Exército e dos expropriados, e renovou a esperança numa solução
administrativa. Foi noticiada na imprensa de Santa Catarina a seguinte situação:
[...] o exército ainda vai tentar uma solução para o problema. O exército não pretende mesmo continuar usando como campo de instrução áreas de terras férteis como aquela."Temos todo o interesse em conseguir uma outra área improdutiva e, se possível, deixar os agricultores voltarem às suas antigas propriedades”.“Na época, há dois anos, o General Jofre Sampaio, deixou uma esperança às famílias, afirmando que o “Governo do Estado” e o Incra já estão estudando outras áreas de fácil acesso para todas as unidades da 5ª.R.M, a fim de transferir o campo de instrução” (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1980. Processo n. 501.114/87 p. 14).
Em que pese a permuta parecer solucionar por completo o impasse que se
instaurou na Região do Planalto Norte Catarinense e as mobilizações de autoridades
e empresários afiançarem a causa dos produtores, novamente o Governo recuou e
não efetivou os esforços necessários para concretização de mais uma tentativa
administrativa de solução ao impasse:
O exército silenciou as negociações de permuta com outras áreas para a transferência do campo militar, “concluindo-se que não seria viável a permuta por não solucionar a questão, podendo inclusive, agravar a situação já formada pela desapropriação através dos Decretos n. 40,570/56 e 44.458/58, sendo mais prudente, proceder a uma reavaliação das áreas do CIMH” (CHEREM, 2006, p. 14)
Uma nova tentativa de solucionar o impasse ocorreu a partir de uma
audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva e na
presença de proprietários, herdeiros, sucessores e autoridades e indivíduos de
vários segmentos sociais e com a intermediação da Comissão da Verdade e da TV
Assembleia fez renascer a expectativa de, enfim, resolver a questão.
71
Figura 03: Audiência Pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva em 14 de outubro de 2014
Fonte: Jornal Correio do Contestado, 2014, Ed. 3756, p.03
A notícia divulgada no jornal Correio do Contestado sobre a nova tentativa de
solução à questão que parecia ser insolúvel informava:
Na audiência desta terça feira, 14 de outubro de 2014, na Câmara de Vereadores de Papanduva, com a presença da Comissão da Verdade, da TV Assembleia e outros órgãos de imprensa, de proprietários e herdeiros lesados pelo Exército, de autoridades e enviados especiais de vários segmentos sociais; de políticos e de lideranças religiosas, sob lágrimas e depoimentos pitorescos e emocionantes e em clima de “agora vai”, renasceu, mais uma vez, a esperança de solução para um caso que, aparentemente, não tem solução. (JORNAL CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.03)
Nesta audiência foi sugerido por algum dos participantes:
Uma das sugestões apresentadas na audiência promovida pela Câmara de Vereadores de Papanduva é de que se poderia revogar o decreto que promoveu a desapropriação, isto é, fica o dito pelo não dito: o governo devolve as terras e liquida o assunto. E aí, como é que fica? Algumas famílias que receberam a indenização voltariam para suas terras e sairiam no lucro; teriam recebido um presente de Papai Noel. Para as que não receberam seria feita a justiça e, aquelas que nem existem mais ou estão perdidas por aí, deixariam uma área de mão beijada para o MST e a “função social da terra” estaria cumprida? Haveria injustiça na redistribuição da área, podendo levar a conflitos violentos e até mortes se cada caso em particular não for resolvido a contento” (JORNAL CORREIO DO NORTE, 2014, Ed. 3756, p.04)
72
A reunião de lideranças e autoridades sob a intermediação da Comissão da
Verdade, indicada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, não obteve
grandes avanços, apesar da narrativa de alguns proprietários retratar a realidade
daquela questão:
Sob o pretexto de estar liderando um movimento que deveria beneficiar todos os envolvidos, indistintamente, 3 ou 4 herdeiros que sabem falar e pegar um microfone, chamaram para si a atenção ao discurso explicitamente direcionado a defender os seus próprios interesses. Narrativas emocionantes ou engraçadas, cheias de ódio e sentimento de vingança, procuravam colocar o público presente, principalmente o grupo da Comissão da Verdade e os representantes políticos, a par da realidade que poucas pessoas conhecem (JORNAL CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.02)
Sem avançar qualquer solução administrativa para o pagamento justo das
indenizações, alguns proprietários decidem por novamente acionar a Justiça a fim
de resgatar o debate da questão e, enfim, corrigir na visão destes agricultores, a
injustiça cometida nos processos desapropriatórios promovidos nas décadas de
1950 e 1960.
3.2 UMA NOVA TENTATIVA DE SOLUÇÃO JUDICIAL
Aproximadamente trinta anos após o Decreto Expropriatório, todas as
tentativas de solução administrativa ao impasse restaram infrutíferas. Alguns
proprietários, entre herdeiros e sucessores35, resolveram contratar o advogado, Dr.
Francisco Vital Pereira, para que através de um novo processo, se reavaliasse a
área desapropriada, atualizassem os valores indenizatórios anteriormente fixados,
bem como fossem cobradas as perdas e danos, por todo lapso temporal que o
Governo demorou na solução da questão.
35
Espólio de Aristides Guebert:Inventariante: José Hass Guebert; Espólio de José da Silva Lima: Inventariante Ebrahin Gonçalves de Oliveira; Espólio de Silvestre Boiko: Inventariante Ernestina Simas Boiko; Espólio de Candido Branco Pacheco: Inventariante Alceu Pacheco; Espólio de Joao Francisco Domingues: Inventariante Antonio Domingues; Espólio de Ana Volochate Boiko: Inventariante Joao Boiko; João Florindo Schadeck; Olímpio Raulino Schadeck Osni Schadeck; Luiz Schadeck; Antonio Silvio Schadeck; Rosa Schadeck Ciupka; Helena Schadeck Werka; Ana Lucia Schadeck Grabovski; Antonio Carlos Damaso da Silveira; Sergio Damaso da Silveira; Reginaldo Damaso de Oliveira; Ivan Damaso de Oliveira; Argemiro Gonçalves de Lima; Aleixo Gonçalves de Lima; Joao Gonçalves de Lima Filho; Manoel Gonçalves de Lima; Vitor Gonçalves de Lima; Walfrido da Silva Lima; Maria Rita de Souza Simas; Benvinda Pacheco Theodoroviz; Francisco Calixtro Pacheco dos Santos Lima: Sucessor – Escritura Pública de Cessão de Direitos Hereditários – Victor Pietroski; Sofia Boiko (Processo n. 501.114/87, p. 76)
73
Entendiam os proprietários, que os processos expropriatórios da década de
1950 e 1960 foram julgados sob um regime autoritário, em que prevalecia o
militarismo, e que a injustiça cometida poderia ser corrigida através de um novo
julgamento. Neste ponto, Armartya Sen nos auxiliar na definição de "injustiça":
Define-se injustiça como uma perda agregada da utilidade em comparação com o que poderia ter sido obtido. Uma sociedade injusta, nessa perspectiva, é aquela na qual as pessoas são significativamente menos felizes, consideradas conjuntamente, do que precisariam ser (SEN, 2016, p. 318).
Os atingidos pela desapropriação nutriam pelo exército um sentimento de
revolta, de privação de liberdade de escolha e lhe atribuíam a responsabilidade pela
desgraça social que deixou várias famílias improdutivas na região. Por certo, este
descontentamento não atingiu a esperança de reaver o que era de direito e tentaram
novamente uma solução pacífica e fundamentada na lei. A ação judicial proposta foi
embasada pelos dispositivos em vigor à época (1985) consubstanciada nos artigos
153, parágrafo 22 da Constituição Federal; artigo 1059 do Código Civil; artigos 46 e
282 do Código de Processo Civil 36 .A demanda foi proposta em face da União
Federal, na pessoa do representante legal, o Procurador da República.
Com todos os documentos das partes, o juiz da 1ª Vara determinou a
redistribuição do processo para a competência 37 do Juiz Federal da 5ª Vara,
conforme atendimento ao Provimento n. 330/87 e artigo 4 da Lei 7.583 de 06 de
janeiro de 1987 e artigo 6 da Lei 7.595 de 08 de abril de 1987.O processo então
obteve nova numeração (nº 501.114/87) e passou a tramitar na Seção Judiciária de
Joinville/SC e consiste em uma das fontes primárias nas quais se referencia esta
dissertação.
De um lado do processo, alguns proprietários, herdeiros e sucessores; de
outro, a União Federal. Os propósitos continuavam os mesmos, o inconformismo se
contrapondo à resistência.
36
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm 37
Costuma-se dizer que a competência é o limite ou a fração ou a medida da jurisdição. É preciso, contudo, ressalvar essa afirmação: o exercício da função jurisdicional é cometido não apenas a um órgão, mas a vários deles; cada um é investido pela lei das mesmas atribuições, devendo atuar de acordo com os critérios previamente fixados. A competência estabelece quando cada órgão deve exercer tais atribuições, que são as mesmas para todos. (CUNHA, Leonardo Carneiro, 2013)
74
A partir da análise da defesa do Procurador da República em sua
contestação 38 , que foi integralmente baseada nas informações prestadas pela
Consultoria Jurídica do Ministério do Exército (Processo n. 501.114/87, p. 204-
209),constatou-se que os argumentos contrariavam as alegações dos autores,
afirmando que não haviam atendido aos requisitos para a propositura da ação.
Inicialmente afirmaram que os autores propuseram a demanda sem a devida
exibição dos títulos de propriedades das terras que alegam serem proprietários, e
tampouco apresentaram o levantamento das importâncias depositadas no processo
expropriatório ou apontaram os que deixaram de receber. Por tal situação
inicialmente narrada, afirmaram que a ação em comento era inepta39, merecendo ser
rejeitada.
Ainda na análise, verificou-se que o parecer do Ministério do Exército, quanto
ao mérito, aponta que o pedido de indenização por perdas e danos não merecia ser
acolhido pelo juiz em razão de que os autores não provaram a condição de
proprietários das terras, bem como não exibiram as provas do alegado prejuízo
sofrido em razão de perdas e danos. Por estas alegações, não havia como
prosperar a presente ação40.
O parecer justifica que o motivo pelo qual a União Federal recorreu de todas
as sentenças desapropriatórias causando morosidade no pagamento das
indenizações, foi devido ao cumprimento do artigo 28, parágrafo 1º do Decreto-Lei n.
3365, de 21 de junho de 1941. Segundo este dispositivo de lei, todas as sentenças
que condenam a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro oferecida estarão
sujeitas ao duplo grau de jurisdição.41
38
A contestação está para o réu como a petição inicial está para o autor. Trata-se de instrumento da exceção exercida (exercício do direito de defesa), assim como a petição inicial é o instrumento da demanda (ação exercida). É pela contestação que o réu apresenta sua defesa. (DIDIE, Fredie Jr, 2015) 39
A inépcia da petição inicial impede o desenvolvimento válido e regular do processo. As hipóteses de inépcia estão previstas no artigo 295, parágrafo único do CPC. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015). O caso de inépcia da petição inicial deve ser apontado pelo réu, em sua defesa. Como a inépcia se relaciona ao pedido ou à causa de pedir, o silêncio do réu, na defesa, pode levar ao entendimento de que ele conseguiu defender-se do que foi pedido, e assim, não seria mais o caso de rejeitar a petição inicial por esse defeito. (DIDIER, Fredie Jr, 2015) 40
A contestação é por excelência, a peça de defesa do réu, por meio da qual ele pode se contrapor a pedido inicial. Ao apresentá-la, ele formula a pretensão de ver o pedido inicial desacolhido, no todo ou em parte, apresentando os argumentos e fundamentos que servirão para convencer o juiz. Daí a pretensão contida na contestação; e sempre declaratória negativa, de que o juiz declare que o autor não tem razão, desacolhendo o pedido. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015). 41
O que se pode dizer, no entanto, é que a Constituição Federal, ao criar juízos e Tribunais, a quem compete, entre outras coisas, julgar recursos contra decisões de primeiro grau, estabeleceu um sistema em que, normalmente, há o duplo grau, que serve para promover o controle dos atos
75
Quanto à alegação dos autores de desvio de finalidade do ato expropriatório,
com a exploração dos recursos naturais, venda de pinheiros e arrendamento de
terras, proporcionando enriquecimento ilícito por parte do Ministério do Exército,
constata-se que a União justifica dizendo que uma vez sendo autorizada à imissão
da posse legalmente, através de ordem judicial que autorizou o ato, sua posse sobre
a área é de boa-fé e sendo assim a lei civilista torna o uso da terra e a exploração
dos frutos perfeitamente legal.
Após o conhecimento dos argumentos e contra argumentos apresentados
pelas partes no processo, o juiz, em uma decisão provisória, entendeu queo primeiro
pedido dos autores, a reavaliação dos imóveis, era juridicamente impossível, porque
a matéria já tinha sido discutida nos processos expropriatórios das décadas de 1950
e 1960. Assim, por segurança jurídica, não podiam ser objeto de novo julgamento, o
que causou inconformismo aos autores desta decisão, que recorreram ao Tribunal.
Diante desta decisão e mesmo aguardando o resultado da reanálise pelo
Tribunal, o processo seguiu seu curso, com a análise e apresentação das provas
quanto ao pedido de indenização por perdas e danos (Processo n. 501.114/87, p.
315).
Os autores insistiram na produção de prova pericial, testemunhal e o
depoimento dos proprietários envolvidos. Entendiam que se o magistrado ouvisse
suas reivindicações, verificasse os números exorbitantes a serem apurados pela
perícia do montante que deixaram de receber durante a litigiosidade e,considerasse
principalmente o depoimento das pessoas que vivenciaram e poderiam retratar o
impacto que a desapropriação causou nas pessoas e no desenvolvimento da região,
certamente corrigiria a injustiça cometida anteriormente.
No entanto, o seguimento do processo não ocorreu da forma esperada pelos
produtores. A perícia foi realizada e apurou minuciosamente os valores dos lucros
cessantes e perdas e danos, que devido a sua importância será objeto de estudo
aprofundado no próximo capítulo. Todavia, o processo foi sentenciado sem que o
juiz realizasse sequer uma audiência para ouvir o que as testemunhas e os
proprietários tinham a informar sobre a questão.
judiciais, quando houver inconformismo das partes, submetendo-os à apreciação de um órgão de superior instância, composto, em regra, por juízes mais experientes. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015)
76
A decisão foi proferida em 1996, pelo juiz substituto, Doutor Luis Humberto
Escobar Alves, que decidiu pôr fim ao litígio julgando improcedentes os pedidos dos
autores. Quanto à reavaliação dos imóveis, confirmou a decisão provisória
anteriormente proferida, afirmando que o pedido é juridicamente impossível, porque
afeta a coisa julgada material já produzida nos autos de desapropriações referentes
aos imóveis em questão. Ao pedido de indenização, negou pela fundamentação de
falta de provas e que a perícia, ainda que minuciosamente mensurasse as perdas
dos agricultores, não eram suficientes para embasar uma condenação à União
Federal (Processo n. 501.114/87, p. 466-468).
Diante deste novo julgamento, a esperança que os agricultores novamente
depositaram na justiça para desfazer tamanho prejuízo e restabelecer seus direitos
na região, restou desmantelada. Além de julgar improcedente a ação, o magistrado
ainda condenou os autores aos ônus sucumbenciais em quatro salários mínimos e
custas processuais finais de R$1.500,00, causando ainda mais revolta e
inconformismo.
Juridicamente, este inconformismo se figurou na apresentação de Recurso de
Apelação (Processo n. 501/14/87, p.469) para reapreciação da questão pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Segundo THEODORO JUNIOR, vigora no sistema processual brasileiro a
garantia da dualidade de jurisdição:
Para a generalidade dos casos decididos pelos juízos de primeiro grau, em nosso sistema processual, vigora o princípio da dualidade de jurisdição, segundo o qual as causas decididas pelos juízes de direito são passíveis de reexame e novo julgamento pelos Tribunais de segundo grau, mediante provocação por meio da apelação (2016, p. 771)
Analisando as razões recursais apresentadas pelo advogado dos
proprietários, nota-se que atribuíram à sentença monocrática um “apressamento do
juiz”,o qual teria deixado de analisar aspectos de maior relevância e inegavelmente
esclarecedores do contexto em que se inserem os fatos narrados.
O recurso foi finalizado e segundo o advogado dos autores (Processo n.
501.114/87, p. 469) a fundamentação da sentença do magistrado não passava de
subterfúgio e, portanto, desprezível e carecedora de mínima razoabilidade e que o
Tribunal, por medida de justiça, deveria modificar. Os proprietários consideravam a
77
fundamentação da decisão do juiz como algo incoerente, em contraste com as
provas que foram produzidas e deveria ser reanalisada pelo órgão superior.
É certo que desde o ato expropriatório (décadas de 1950 e 1960) até o
ajuizamento desta nova ação se passaram 28 anos, e com o recurso ao TRF, outros
12 anos, sem qualquer solução para o caso. Não era possível aos desapropriados
compreenderem que durante este lapso temporal afastado de suas terras, não
haveria, por parte do Poder Judiciário, um reconhecimento do descaso do Estado
diante destes menos favorecidos, podendo ser compensado mediante a condenação
a uma justa indenização.
Mas ao contrário do que esperavam os proprietários, o recurso foi distribuído
à relatoria42 do Desembargador Amaury Chaves Athayde, que entendeu que razão
assistia ao juiz que proferiu a sentença e considerou igualmente necessário que o
pedido deveria minimamente ser melhor instruído.
Ao analisar o voto deste Desembargador, constatou-se que a decisão foi
novamente desfavorável aos proprietários, pela única razão de que, no
entendimento deste novo julgador, não foram informados no processo os valores
avaliados das terras nas décadas de 1950 e 1960, sendo esta informação
fundamental para eventual procedência da ação e incumbência dos autores.
Esta decisão proferida pelo desembargador necessariamente deveria ser
remetida ao julgamento colegiado43.Ao longo de quase sete anos, o recurso de
apelação permaneceu no gabinete da relatoria aguardando julgamento. Somente em
10 de novembro de 2004 a sessão de julgamento foi marcada e confirmada por
unanimidade de votos. Negaram provimento, mais uma vez, ao apelo dos
expropriados44(Processo n. 501.114/87 p. 497).
42
Durante a tramitação do processo há um membro do colegiado que assume posição de relevo, por caber-lhe a direção do feito, inclusive no que toca à coleta das provas. Trata-se do relator, que é escolhido por sorteio (distribuição) entre os componentes do órgão julgador. (THEODORO JR, 2016, p. 778) 43
A causa submetida à competência do órgão colegiado do tribunal é decidida pelo voto de todos que compõem a turma julgadora. Após a leitura da relatoria e a sustentação oral, se houver, procede-se à votação dos juízes. (THEODORO JR, 2016, P. 785) 44
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇAO POR PERDAS E DANOS DECORRENTES DE DESAPROPRIAÇAO. PROVAS – AUSÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA. Descabe acolher o pedido de indenização de perdas e danos advindos de desapropriação quando insubsistentes e não demonstradas as alegações dos promoventes, certo que a discussão sobre o preço (e pagamento) do imóvel – e seus imanentes consectários – tem sede adequada na própria expropriação. Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 10 de novembro de 2004. (Processo n. 501.114/87)
78
Demonstra-se que a decisão colegiada do Tribunal Regional Federal foi
substanciada em dois fundamentos. O primeiro foi quanto ao pedido de perdas e
danos, que restou improcedente por não considerarem suficientes as provas
produzidas no processo, assim como entendeu o juiz na primeira sentença.
O segundo fundamento se refere ao preço (pagamento) do imóvel e sua
reavaliação. Essa questão confirmou o também entendimento do juiz da primeira
sentença, que por segurança jurídica afirma ser o pedido juridicamente impossível,
em razão de que já havia uma decisão nas ações iniciais desapropriatórias e não
poderia, em novo processo, haver outra sobre a mesma matéria.
De qualquer modo, os expropriados não concordaram com os fundamentos
do seu julgamento e interpuseram Recurso Especial junto ao Superior Tribunal de
Justiça. Essa seria a última instância a proferir um julgamento sobre o processo e
teria o condão de prevalecer diante das decisões desfavoráveis anteriormente
proferidas. Para Theodoro Jr (2016, p. 812): “O acórdão proferido pelo órgão
colegiado competente vinculará todos os juízos e órgãos fracionários”.
O Recurso Especial n. 843.574 – SC (2006/0070039-8), julgado pelo STJ,
teve como Relatora a Ministra Denise Arruda a qual entendeu que o recurso
proposto pelos autores não apresentava os requisitos de admissibilidade
necessários para o conhecimento do mesmo, estando então, sequer possibilitado ao
julgamento do mérito da decisão recorrida.
O recurso interposto pelos proprietários não preencheu os requisitos de
admissibilidade por não ter sido elaborado adequadamente ao ato atacado, o que
inviabilizou o julgamento do mérito, ou seja, do pedido dos autores.
O fundamento exposto pela Ministra do STJ que não “conheceu do recurso”
foi justificado pela aplicação da Súmula n. 283/STF que dita: “É inadmissível o
recurso especial quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento
suficiente e o recurso não abrange todos eles”.
O advogado dos autores, quando da elaboração do recurso, não atendeu
adequadamente à legislação imposta pela Súmula n. 283/STF, ou seja, se a decisão
anterior foi baseada em dois fundamentos, o Recurso Especial ao STJ
obrigatoriamente deveria impugnar os dois fundamentos, e não apenas um, como
fez o procurador.
Evidencia-se que na decisão da Ministra o recurso não merecia ser conhecido
e sequer julgado, por verificar que o advogado dos autores limitou a impugnar o
79
fundamento (a) que tratava das perdas e danos, mas silenciou quanto a impugnar o
fundamento (b), que discutia sobre o preço e valor do imóvel.
Diante da falta deste pressuposto, o recurso em última instância, que poderia
modificar todas as decisões anteriormente desfavoráveis aos expropriados, sequer
prosseguiu a um julgamento de mérito.
Ainda cabendo uma última e derradeira medida processual, os autores
solicitaram a confirmação da decisão monocrática da Ministra através de uma
decisão colegiada. Em 12 de dezembro de 2006, o Agravo Retido no Recurso
Especial n. 843.574-SC, por unanimidade confirmou o improvimento do recurso e
acabou, por vez, com qualquer esperança de reparar, através de uma decisão
judicial, o que os expropriados do CIMH entendiam por injustiça.
Esta ação proposta no ano de 1985, e que culminou numa decisão
desfavorável e irrecorrível no ano de 2006, encontra-se, desde 28 de março de
2007, arquivada na 2ª Vara Federal de Seção de Joinville/SC.
80
4 DESENVOLVIMENTO
Objetivando compreender o atual cenário político, econômico e social vigente
na região do Planalto Norte Catarinense, que faz parte do território do Contestado,
faz-se necessário reconstruir a história da luta travada pela terra. No período
compreendido entre outubro de 1912 e agosto de 1916 o território do Contestado
tornou-se palco de um dos maiores movimentos sociais no Brasil, denominado
Guerra do Contestado.
Naquele contexto, o Estado, ao privilegiar o capital estrangeiro em detrimento
do capital humano, menosprezou a capacidade produtiva dos filhos da terra, que
eram caboclos e imigrantes acaboclados, em sua maioria posseiros e pequenos
proprietários, e privou aquelas pessoas da oportunidade de exercerem a condição
de agentes na sociedade em que estavam inseridos.
No mesmo sentido, a atuação parcial do Estado, no período examinado nesta
dissertação, reproduziu injustiças que incidiram, novamente, sobre os setores
sociais mais fragilizados do planalto Norte Catarinense. Após a usurpação do acervo
formado por bens da empresa estrangeira Lumber Company, e o posterior abandono
dos trabalhadores na condição de pobreza extrema, o Estado novamente atuou de
forma negligente e preferiu a defesa dos seus interesses (e dos proprietários do
capital, cujas relações promíscuas ficaram evidenciadas). A justificativa era a de
ampliar a segurança nacional mediante a instalação de um Campo de Instrução
Militar, impedindo que agricultores prosperassem na atividade que exerciam.
Embora se trate de duas situações distintas, separadas por décadas,
assumem tal similitude que os argumentos utilizados para defender os caboclos, na
Guerra do Contestado, aplicam-se identicamente à defesa daqueles que, na
atualidade, lutam pela terra e pelo direito à liberdade de exercerem sua atividade.
O professor e filósofo Sandro Luiz Bazzanella, no artigo “Centenário da
Guerra do Contestado”, publicado na obra Crônicas do Desenvolvimento II (2012),
estabelece a seguinte premissa: “pode-se anunciar a importância da reflexão em
torno do acontecimento da Guerra do Contestado, como abertura e desafio à
compreensão do tempo presente em sua potencialidade vital”. Pela perspectiva do
autor, a concepção de tempo é marcada pela transitoriedade dos fatos e dos
acontecimentos:
81
Ou então, o acontecimento da Guerra do Contestado pode permitir-nos conceber o tempo na perspectiva do filósofo italiano Giorgio Agamben, como “tempo que resta”. O tempo que resta é o tempo de agora, o tempo presente que pode permitir a experiência do pensamento, refletindo as condições de possibilidade de qualificação de vida. Assim, as lutas, as derrotas, as vitórias, a dor e o sofrimento das gerações que nos antecederam podem se apresentar em sua potencialidade como a condição de afirmação do que somos, permitindo o reposicionamento de nossas relações sociais, políticas, econômicas e culturais, permitindo ao Planalto Norte a constituição de condições qualitativas de vida a seus indivíduos e à sociedade em geral. (BAZZANELLA, 2012, p. 146)
Na discussão acerca da guerra deflagrada na região do Contestado,
identificam-se influências econômicas, políticas, sociais, culturais e ambientais, que
até hoje caracterizam e implicam diretamente em peculiaridades antropológicas,
econômicas, religiosas e sociais, inerentes a este povo cuja herança se liga, direta
ou indiretamente, à região. Ainda de acordo com Bazzanella (2012), neste “tempo
que resta”, são estas marcas que necessitam de reflexão, visando a potencialização
das formas de vida que se veem em cada instante, em cada acontecimento nas
terras do Planalto Norte Catarinense (2012, p. 147).
Amartya Sen, economista indiano, que através de sua obra “Desenvolvimento
como Liberdade” (2000), ganhou o prêmio Nobel de Economia, em 1998, cuja
autoria estabeleceu o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, adotado pela
Organização das Nações Unidas - ONU, afirma que o desenvolvimento pode ser
entendido como a eliminação das privações de liberdades que possam limitar as
escolhas e as oportunidades das pessoas de exercerem sua condição de agente
inserido em determinada sociedade e em determinado território.
Sob este enfoque, compreende-se que a atuação do Estado, na região do
Planalto Norte Catarinense mostrou-se crucial na dinâmica do desenvolvimento,
uma vez que para SEN (2000), a privação de liberdade – que para ele caracteriza-
se, especialmente, pela pobreza, tirania, carência de oportunidades econômicas e a
destituição social, pela negligência dos serviços públicos e pela intolerância ou
interferência excessiva de Estados repressivos – afeta o desenvolvimento.
Cabe destacar, também, que o autor aponta para a violação da liberdade
como resultante da negação de liberdades políticas e civis, impostas por regimes
autoritários, assim como de restrições impostas à liberdade de participar da vida
social, política e econômica da comunidade. (SEN, 2016, p. 17).
Desta forma, para Sen (2016), a liberdade assume condição central no
processo de desenvolvimento, por duas razões: a primeira, para que se possa
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avaliar o progresso, é preciso verificar, primordialmente, se houve aumento das
liberdades individuais; e, a segunda, o alcance do desenvolvimento depende
inteiramente da livre condição de agir das pessoas. É o que o autor denomina de
razão avaliatória e razão de eficácia.
Sob esta perspectiva, a região do Planalto Norte Catarinense não demonstrou
– em decorrência das disputas fundiárias do Contestado e Pós Contestado – avanço
na participação social dos pequenos proprietários e posseiros. Ou seja, restringiu-se
a liberdade nas decisões políticas que envolveram questões sobre a terra e que
modificaram significativamente o panorama vivenciado por estes minifundiários.
Os direitos consagrados nas declarações do final do século XVIII e nas
constituições do século XIX e XX partem do pressuposto da liberdade, em que o
homem tem a livre escolha de suas opiniões e comportamentos, salvaguardando
aos indivíduos sua autonomia frente aos limites da intervenção do Estado (RIVERO,
1985).
Segundo Sen (2013, p.10), a expressão da liberdade é o principal fim e meio
para o desenvolvimento. No entanto, na visão do desenvolvimento como liberdade, é
necessário considerar diferentes argumentos que devem ser analisados e avaliados.
Este fato é reconhecido pelo autor, no seguinte excerto:
É difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de empobrecer – a vida humana. (SEN, 2016, p. 22)
Neste âmbito, a atuação do Estado, na região, impossibilitou a
potencialização da capacidade constitutiva da liberdade dos que lutaram e lutam
pela terra, restringindo a participação na dinâmica do desenvolvimento, e
influenciando a desintegração destes no seio da sua comunidade.
Essa afirmação é corroborada pelos argumentos apresentados por Amartya
Sen:
A ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades são ainda influenciadas pelo exercício
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das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o progresso dessas oportunidades (SEN, 2016, p. 18)
Portanto, a abordagem de Amartya Sen, apesar de não conceituar o que
sejam liberdades substanciais, define-as de forma ampla como “as oportunidades
reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais” (SEN,
2000, p. 31), o que permite compreender que a utilidade da riqueza está nas coisas
que ela nos permite fazer.
Além disso, na abordagem do autor, o papel constitutivo relaciona-se à
importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana. Qualquer
indivíduo, independente de classe social, que seja impedido de se expressar
livremente ou de participar de decisões públicas, de fato, está sendo privado de algo
que tem motivos para valorizar. O processo de desenvolvimento quando julgado
pela ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação das privações
dessa pessoa (SEN, 2016, p. 56)
Todavia, Sen pondera a perspectiva das instituições e das liberdades
instrumentais como uma tentativa de ver o desenvolvimento como um processo de
expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Na visão do
“desenvolvimento como liberdade”, as liberdades instrumentais ligam-se umas às
outras e contribuem com o aumento da liberdade humana em geral (SEN, 2016, p.
25).
É preciso salientar que cinco tipos distintos de liberdade, provenientes de uma
perspectiva “instrumental”, são investigados particularmente nos estudos empíricos
de Amartya Sen (2016, p. 25). Em primeiro lugar, figuram as liberdades políticas,
amplamente concebidas, que incluem os direitos civis e políticos associados à
democracia e se referem à possibilidade que as pessoas têm de escolher seus
governantes, fiscalizar seus feitos e expressar livremente a opinião, abarcando
oportunidades de diálogos, dissensão e críticas.
Quanto as facilidades econômicas são definidas como as oportunidades que
o indivíduo tem para utilizar recursos econômicos com o propósito de consumo,
produção ou troca. Todavia, na relação entre a renda e a riqueza nacional, as
considerações distributivas são importantes em relação às agregativas.
As oportunidades sociais as quais, segundo o autor, são as disposições
estabelecidas que influenciam a liberdade do indivíduo de viver melhor, tais como a
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garantia do acesso à terra, à moradia e de uma vida digna. Essas facilidades são
importantes não só para a condução da vida privada, mas também para uma
participação mais efetiva em atividades políticas e econômicas.
As garantias de transparência, que possuem um papel instrumental
importante, pois agem como inibidoras da corrupção, da irresponsabilidade
financeira e de transações ilícitas. A liberdade de se relacionar é assegurada pelo
dessegredo e pela clareza. Quando essa confiança é gravemente violada, a vida das
pessoas, envolvidas direta ou indiretamente, pode ser afetada negativamente.
No tocante a segurança protetora, não importa o modo como se opera um
sistema econômico, há pessoas que se encontram no limiar da vulnerabilidade e
podem sucumbir a uma privação que afete significativamente suas vidas. A
segurança protetora é necessária para proporcionar uma rede de segurança social,
impedindo que a população afetada seja reduzida à miséria abjeta e, em alguns
casos, até mesmo à fome e à morte.
Pode-se sintetizar esse conjunto de ideias afirmando-se que as liberdades
não são apenas o fim primordial do desenvolvimento, contam-se também entre os
meios principais. As liberdades políticas (sob a forma de livre expressão e eleições)
ajudam a promover a segurança econômica. As oportunidades sociais (sob a forma
de serviços de educação e de saúde) facilitam a participação econômica. Os
dispositivos econômicos (sob a forma de oportunidade de participar no comércio e
na produção) podem auxiliar a gerar tanto a riqueza pessoal como os recursos
públicos destinados a serviços sociais. As liberdades de diferentes espécies podem
reforçar-se umas às outras.
Desta forma, essas liberdades instrumentais, além de incrementarem
diretamente as capacidades das pessoas, também as suplementam mutuamente:
Embora a análise do desenvolvimento deva, por um lado, ocupar-se dos objetivos e anseios que tornam essas liberdades instrumentais consequencialmente importantes, deve ainda levar em conta os encandeamentos empíricos que vinculam os tipos distintos de liberdade um ao outro, reforçando sua importância conjunta. De fato essas relações são essenciais para uma compreensão mais plena do papel instrumental da liberdade. O argumento de que a liberdade não é apenas o objetivo primordial do desenvolvimento, mas também seu principal meio relaciona-se particularmente a esses encadeamentos (SEN, 2013, p.58).
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Corroborando com essa abordagem e enaltecendo a importância da liberdade
na relação da sociedade e instituições, afirma o filósofo francês Alexis de
Tocqueville, em sua obra: “A Democracia na América”:
Nunca será dizer demais: não há nada mais fecundo em maravilhas do que a arte de ser livre; mas não há nada mais difícil do que o aprendizado da liberdade. O mesmo não se aplica ao despotismo. O despotismo se apresenta muitas vezes como o reparador de todos os males sofridos; ele é o apoio do direito justo, o arrimo dos oprimidos e o fundador da ordem. Os povos adormecem no seio da prosperidade momentânea que ele faz nascer e, quando despertam, são miseráveis. A liberdade, ao contrário, nasce de ordinário no meio das tempestades, estabelece-se penosamente entre as discórdias civis e somente quando já está velha é que se podem conhecer seus benefícios (TOCQUEVILLE, 2014, P. 280)
A democracia que confere a liberdade nem sempre proporciona ao povo um
governo justo, o qual amiúde velado de autoritarismo se apresenta, ainda que
aparentemente, o salvador dos desvalidos, o reparador das injustiças e o propulsor
do desenvolvimento, mas quando afastados do sentimento de prosperidade, os
indivíduos se dão conta de que direitos foram tolhidos e a situação de miserabilidade
é consequência da tirania e do despotismo mascarado em um governo democrático.
Há diversas formas de alcance e potencialização da liberdade. Contudo, faz-
se necessário compreender que a concepção moderna da liberdade se materializa
nas relações entre os interesses individuais e os interesses coletivos, ou seja, que é
limitada e condicionada à vida em sociedade.
Na hipótese de ausência do equilíbrio entre a coletividade e o individualismo,
estar-se-á diante de um despotismo. Nesta linha de pensamento, se houver a
prevalência do indivíduo sobre a sociedade, ou, se a sociedade privar a realização
individual, em ambos os casos, haverá tirania. Neste sentido, o desenvolvimento
como liberdade pressupõe que sejam oportunizadas condições para o exercício
deste direito pelo indivíduo, todavia considerando que é limitado na justa medida dos
interesses coletivos, pressupostos mantidos do primórdios do estado moderno tirano
em pleno século XX.
Assumindo este enfoque, verifica-se que a luta pela terra no Planalto Norte
Catarinense, especialmente no caso do Campo de Instrução Marechal Hermes,
desenvolveu-se sob a imposição da lei, justificada por suposta utilidade pública.
Porém na prática o Estado restringiu a liberdade de participação social dos
pequenos proprietários, impossibilitando escolhas e extirpando oportunidades, por
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fim, restringindo o exercício das atividades que viabilizavam sua subsistência. Não
houve escolha ou mesmo consulta popular, pelo contrário, tirania, imposição,
privações daqueles desapropriados de exercerem o direito à propriedade, a
liberdade de produzir e de sentirem inseridos na comunidade, contribuindo para o
desenvolvimento da região.
No início do século XX, no período que precedeu a deflagração da Guerra do
Contestado (1912-1916), a privatização da terra e a restrição ao seu acesso, por
meio do apossamento, impactou a vida de significativos contingentes populacionais
daquela região. Inclusive, através do cerceamento aos ervais nativos, até então
devolutos, de onde era extraída a erva mate e, via escambo, consistia em importante
atividade de subsistência para os caboclos. Os ervais nativos, que proporcionavam
relevantes recursos para subsistência da população pobre da região, passaram ao
domínio privado dos grandes proprietários, ao longo do século XIX e início do século
XX. A mais alta exposição gráfica da luta pela terra é sintetizada em um bilhete
encontrado no bolso de um rebelde morto em combate: “Nóis não tem direito de
terras, tudo é para as gentes da Oropa” (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 246).
O embate entre posseiros, sitiantes e mesmo proprietários de maior vulto
contra a Lumber Company materializou-se através de Aleixo Gonçalves de Lima –
um dos principais líderes rebeldes que atuava na região norte do território
conflagrado – o qual mantinha com a Lumber ferrenha disputa por uma área de
terras localizada ao sul de Três Barras, registrada em cartório de Santa Catarina.
Esta disputa suscitou do fato de outra família, sobrenome Pacheco, ter ocupado
aqueles terras e promovido o registro em cartório paranaense, subsequentemente
as alienando para a companhia americana. “Afirma-se que a invocação do nome de
Aleixo fora bastante para levantar em armas centenas de sertanejos, muitos dos
quais também expulsos de suas terras graças a manobras da empresa norte-
americana...” (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 166).
Sendo assim, parece razoável a afirmação de que um dos motivos mais
contumazes para a adesão dos sertanejos aos redutos, durante o movimento
sertanejo, foi a sublevação contra as amplas doações de terra feitas às empresas
estrangeiras e sua expansão fundiária, processo que os afugentava das terras que
consideravam suas por direito e justiça. Certamente a leitura feita pelos integrantes
do movimento compreendia a expulsão das terras como parte de um processo mais
amplo, que tinha origens políticas e classistas profundas: “[...] O governo da
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República toca os Filhos Brasileiros dos terrenos que pertence à nação e vende para
o estrangeiro, nós agora estemo disposto a fazer prevalecer os nossos direitos”
(PEIXOTO, 1995, g. 74).
Acerca das motivações para o início do movimento sertanejo, Tomporoski
(2016), pondera que:
Com base nas motivações dos integrantes do movimento, podemos atribuir ao mesmo um caráter de conflito social, no qual os alvos dos rebeldes revoltosos demonstraram a racionalidade intrínseca do movimento: o capital estrangeiro; o domínio político e fundiário dos coronéis; a exclusão da população nacional em detrimento do assentamento de estrangeiros; a injustiças praticadas por aqueles que ocupavam cargos nos governos das esferas estadual e federal (p. 04).
O autor expõe as principais causas que motivaram os caboclos a lutar.
Apesar de seu enfoque contextualizado ao início do século XX, as palavras são
perfeitamente aplicáveis aos dias atuais, nos quais permanece a luta pela terra na
região. Através do mesmo descaso e da invisibilidade dos menos favorecidos diante
dos interesses prioritários do Estado, o progresso na região continua limitado, em
descompasso com outras regiões do estado Catarinense.
Ainda de acordo com Tomporoski (2016), no século XXI se manifestam
consequências daquela guerra para a região:
[...] é razoável delimitar três fatores vigentes no território do Contestado que geram entraves à implementação de estratégias de desenvolvimento territorial sustentável: o trauma associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impondo, à população que reside naquele território, sentimentos de vergonha e consequente silenciamento; a expansão fundiária, outrora já vivenciada, que promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes proprietários rurais e de empresas multinacionais; a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no extrativismo (TOMPOROSKI, 2016, p. 5).
Conquanto o crescimento econômico e a expansão dos programas sociais
permitirem amenizar desigualdades históricas da sociedade brasileira, os municípios
que integram o território do Contestado apresentam, hodiernamente, alguns dos
mais baixos índices de desenvolvimento humano do estado de Santa Catarina
(IBGE, 2010), de acordo com sua classificação no IDHM (Índice de Desenvolvimento
Humano dos Municípios), compondo um bolsão de pobreza e exclusão,
precipuamente nas áreas onde a luta sertaneja foi mais intensa.
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A razão do subdesenvolvimento, segundo a abordagem de Amartya Sen,
deve-se às privações de liberdade nas escolhas e oportunidades que foram tolhidas
pelo Estado, ou seja, a falta das liberdades instrumentais contribui, direta ou
indiretamente, para a liberdade das pessoas viverem como desejarem. Este
comportamento estatal influenciou diretamente a capacidade das pessoas de
contribuir para o desenvolvimento da região.
4.1 Das Privações das Liberdades Substantivas e Instrumentais, Consequências da
Desapropriação
Considerando o desenvolvimento como um processo de expansão das
liberdades reais dos indivíduos, (papel constitutivo), e, também, a extensão da
liberdade como simultaneamente o fim e o meio do desenvolvimento (papel
instrumental), esta pesquisa demonstrou as privações de liberdade – em ambos os
papéis – a que foram submetidos os desapossados do Campo de Instrução
Marechal Hermes, ao longo de toda esta questão fundiária, que iniciou na década de
1950 e avança até a atualidade.
Para os desapropriados de Três Barras, as privações de liberdade se
iniciaram logo após a publicação do Decreto Desapropriatório em 1956. Aguardando
o pagamento da indenização prevista na Constituição de 1946, os desapropriados
permaneceram em suas propriedades até 1963. Porém, o Estado não respeitava a
posse plena que aquelas famílias ainda detinham como direito.
Este período é retratado através de depoimentos de pessoas que vivenciaram
a violação do direito ao exercício da propriedade pelo Ministério da Guerra, que não
respeitava a presença das famílias na área, e que iniciou, ainda que ilegalmente, as
manobras militares.
Segundo Lima (2016), apesar da inércia processual durante aquele período,
as manobras aconteciam regularmente, mesmo antes da conclusão da
desapropriação, conforme entrevista com o desapropriado Walfrido da Silva Lima:
Eles vinham, avisavam todos os proprietários o dia que eles iam fazer a manobra. Então eles vieram, avisaram e pediram pra nós sair de manhã cedo. Deram um horário. Pra nós sair às 6 da manhã, e só retornar à propriedade, às 6 da noite. Eu lembro, na época, que meu pai tinha uma carroça e já tinha um fordinho, daqueles 29. O meu pai saiu com o ford [...] A família era grande nós era 10 filhos, 5 mulher e 5 homem. Nós saímos.
89
Pra onde que nós íamos? Nós procuramos os vizinhos mais longe da área [...] A Dona Boiko, essa mulher não quis sair. Ela disse: - Eu não vou sair da minha casa. E quando ela ficou dentro da casa começou a manobra, de 6 da manhã. E ali começaram a jogar bomba e as bombas ultrapassaram o alvo e caíam em cima da casa dela. Eu lembro hoje, como jovem, ainda, que da minha casa enxergava a casa da Ana Boiko, que era minha madrinha. E as bombas chegavam. Dava um estouro que você escutava as bombas chiando, passando por cima da casa.[...]. A velha ficou dentro da casa. Não aconteceu nada.[...] (LIMA, 2016)
Constata-se que durante o período desapropriatório, as manobras ilegais
expuseram os moradores ao risco de morte, deixando suas marcas na memória dos
expropriados:
E daí um dia, antes de saírem, a aviação teve lá e tocou bomba até dentro da mangueira da velha Boiko. Falecida Boiko, uma velhinha de oitenta e poucos anos, que os filhos acharam que tinham matado [...]. Assim, ele foi lá na casa da mãe dele que era a Dona Boiko. Chegou, a velhinha estava ajoelhada e rezando pros santos. A mangueira destruída, que a bomba arrebentava tudo o que tinha por perto. Mas graças a Deus a velhinha não estava lá fora. E não atingiu ela, nem a casa. Se atingiu, foi algum, mas nela não pegou, e daí o povo tratou de sair (LIMA, 2016).
A cena descrita impressiona pelo incrível ato de resistência de uma
camponesa, idosa, que arriscou sua própria vida para desafiar aquilo que
considerava injusto. Por outro lado, a cena também choca por materializar a
violência do Estado contra as camadas subalternas da sociedade.
Segue a descrição deste evento, que abalou a região e deixou marcas
indeléveis na memória da população:
[...] quando chegou as 6 horas nós retornamos. Dá uns doze quilômetros quando nos afastamos da nossa propriedade, do José da Silva Lima. Eu lembro que eu estava na carroça. Meu pai estava num automóvel, num pé de bode; nós dizia, num 29. Quando nós tava chegando em casa, ali perto das 6 hora, que nós tava retornando eles estouravam as bombas lá. Eu lembro até hoje que eu tava dentro de uma carroça de cavalo e quando tava chegando na frente de casa, eles largaram uma granada. A granada caiu mais ou menos da carroça, mais ou menos uns, eu imagino hoje, uns, uns trinta, quarenta metros da carroça e os cavalos se assustaram. E aquelas bombas nós só fomos ver no outro dia, os fiapos de caco de bomba. E hoje não esqueço daquilo que a gente teve, parecia uma guerra (LIMA, 2016, p. 06).
Os militares agiram sem qualquer autorização judicial, uma vez que os
processos desapropriatórios foram propostos somente no ano de 1962, e, até que
ocorresse uma determinação judicial, que autorizasse a imissão da posse, os
90
proprietários poderiam usufruir, de forma exclusiva e plena, do seu direito à
propriedade.
Outro episódio, por certo ainda mais traumatizante, sob o aspecto de privação
da capacidade daqueles indivíduos de conduzirem o modo de vida que valorizavam,
decorreu da truculência do Estado na retirada definitiva dos desapropriados de suas
terras. Simplesmente ignorara os desafios que a maioria dos agricultores enfrentaria
longe das lavouras.
Esse fato foi noticiado pela imprensa:
Tivemos 48 horas para sair das terras. É um pesadelo do qual não acordamos até hoje. Nossas casas foram demolidas, nossos porcos ficaram perdidos no mato, a lavoura o que pudemos, colhemos, o resto ficou tudo lá, e hoje não tem mais nada. Algumas famílias foram despejadas na Praça Lauro Muller no centro de Canoinhas. (BOLETIM INFORMATIVO, 1985)
O evento ficou marcado pela remoção abrupta daquelas famílias, retiradas de
suas propriedades, não obstante através de autorização judiciária. O cumprimento
do mandado, após o prazo de 48 horas para desocupação voluntária, foi executado
com violência e despido de qualquer compaixão.
[...] porque quando o Exército chegou, na época lá, quando o exército se apossou mesmo, que avisou todo mundo era pra todo mundo sai, daí as autoridades deram um prazo de 48 horas para nós desocupar as casas. Nesse prazo, todo mundo saiu, cada um tirou sua mudança. Um ia pra casa de um parente, outro pra lá (LIMA, 2016)
Muitos proprietários, sem ter qualquer alento ou local para abrigar sua família
e seus rebanhos, foram retirados de forma violenta, por meio de caminhões do
exército, e despejados apenas com seus pertences pessoais na Praça Lauro Muller,
em frente à Prefeitura Municipal de Canoinhas.
Na época da expulsão, as pessoas foram jogadas numa praça de Canoinhas com suas coisas. A maioria passou a trabalhar como faxineiros na Prefeitura daquela cidade. “Esta expulsão gerou um problema social”, acrescenta o Prefeito de Papanduva (JORNAL SANTA CATARINA, 1980; Processo n. 501.114/87 p. 14)
A memória ficou assim marcada:
[...] Eles quando iam tirar o pessoal de lá, milico e oficial de justiça, prometiam pra todo mundo que com 30, 60 dias, no máximo, o governo
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pagava todo mundo. [...] A velha ( referindo-se a Sra. Boiko) eles jogaram em praça pública [...] (Entrevista Walfrido Simas, LIMA 2016)
Com o ato de expulsão, os desapossados se viram na situação de completo
abandono por parte do poder público. Não foi oferecida qualquer assistência
material, deixando a maioria na mais completa miséria. Quanto ao destino dos
desapropriados, após a saída de suas propriedades, o seguinte relato é assaz
esclarecedor:
[...] Mas nós passamos fome, menina. E não só nós, muita gente. Nós passamos fome, chegamos em Canoinhas em 50. [...] O meu tio fez ela compra um terreno dos Bora ainda, que eu acho que não existe nenhum mais vivo, e mudou a casa de Três Barras lá em Canoinhas. [...] O meu tio pegou um homem lá, ele veio e desmanchou a casa aqui, e veio ajudar a carregar pra nós lá em Canoinhas. Daí o Tulio levou, daí ele e um filho, tal de Bastião, fizeram a casa pra nós. A casa desmanchada, de madeira velha, cheia de prego. E aquele tempo era tão difícil que nem prego novo não pudemos comprar pra fazer a casa. Já pensou na miséria? Aquilo que é miséria! [...] (Entrevista de Simas, LIMA, 2016, p. 08)
Dentre aqueles prósperos agricultores, muitos não conseguiram se reabilitar.
Alguns foram vendendo seus bens para adquirir nova moradia, os que tinham
parentes mais próximos foram migrando para outros locais. Segundo entrevista do
desapropriado João Schadeck:
Diversos agricultores perderam tudo após a desapropriação sem indenização ocorrida em 1956. Franco, o que lhe é peculiar, Schadeck assinala ainda que a família, além das terras do campo Marechal Hermes tinha outras posses em 1963, quando os agricultores tiveram que deixar a área. Tivemos por isso condições de prosseguir sem maiores dificuldades. O mesmo não aconteceu com diversas famílias desapropriadas. Como não houve indenização ficaram no olho da rua (A NOTÍCIA, 1986, p. 09).
Se não bastasse a situação a que os desapropriados foram expostos, ainda
havia a questão dos animais, que ao contrário dos agricultores, não podiam ser
jogados em praça pública. Entre os proprietários despejados, alguns prósperos
lavradores foram obrigados a se desfazer dos seus rebanhos a preço vil, ou arrendar
suas próprias terras ao Ministério do Exército.
[...] Meu pai tinha na fazenda umas 220 cabeças de gado. E a orientação da autoridade era que nós tinha que vender tudo, pra sair dali. Então, eu lembro, quando meu pai começou a se preocupar em vender o gado. Eu lembro, meu pai tinha umas 220,230, 240 cabeças de gado.[...] Porque assim, como nós corria risco de vida nossos animais: gado e galinha, porco
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também. A gente começou se desfazer. Na época eu lembro que os matadores de gado tinha um matador em Itaiópolis; [...] Eu lembro, que meu pai, com aquela preocupação, ele apressou-se em vender o gado. Ele vendeu 75 vacas tudo enxertada com terneiro na barriga [...] Vendeu tudo por preço mais baixo, pra pode diminuir o rebanho (LIMA, 2016)
Estima-se que havia cerca de cinco mil cabeças de gado na área
desapropriada, e não houve tempo hábil para que seus proprietários destinassem
adequadamente os animais.
Em junho de 1962, oficiais do exército, acompanhados por oficiais de justiça,
visitaram os proprietários e deram um prazo de 48 horas para desocuparem as
terras, baseando-se no decreto-lei nº. 40.570, de 18 de dezembro de 1956. O prazo
foi obedecido, segundo lembra João Schadeck, um dos herdeiros da família
Schadeck:
Muitas famílias venderam o gado pela metade do preço. O meu pai também cumpriu o prazo e conseguiu vender o gado bem barato, mas muitas outras famílias não encontraram compradores. Depois de abandonarem suas propriedades, elas não conseguiram transferir os seus gados. Assim, depois de apelarem bastante, o exército decidiu cobrar um arrendamento da pastagem (Processo n. 501.114/87, p.14).
Após a apropriação da área pelos militares, os agricultores solicitaram
autorização para explorar a madeira, o que lhes foi negado. Todavia, há vários
depoimentos que citam o arrendamento da área a terceiros, realizado sob
autorização do Exército, desviando por completo a finalidade da desapropriação.
Quando os proprietários tiveram conhecimento da desapropriação, quiseram cortar nos seus terrenos as árvores industrializáveis, no que foram terminantemente proibidos. Mesmo no curso das ações desapropriatórias, tentaram, sem êxito, obter as autorizações para a extração, com a justificativa de que as terras interessavam ao poder publico tais como se encontravam, em seu estado natural, especialmente as áreas cobertas de matas nativas. A solicitação para extração da madeira pelos proprietários se dava em razão do valor atribuído ao pinheiro adulto, na época Cr$ 2.500,00 e que em um hectare, composto de pinheiros, facilmente se encontravam mais de 500 pinheiros. Daí a intenção da extração pelos proprietários antes da desapropriação (Processo n. 501.114/87, p. 08).
A análise documental revelou o caso da Sra. Maria da Gloria Wojciechovski,
que havia anteriormente obtido autorização do Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal – IBDF, para a venda de 1000 metros cúbicos de madeira
à Madeireira Indústria de Madeiras Planalto Ltda. Posteriormente, sem qualquer
93
motivação, o Delegado Estadual do IBDF cassou a autorização, que motivou a
impetração de Mandado de Segurança contra este ato proibitivo. O que se destaca
neste caso, em particular, foi a manifestação em favor da agricultora, emanada do
juiz que analisou a questão, acerca da injustiça daquela situação conflituosa, que
envolvia a área expropriada pelo Ministério do Exército:
A Portaria 475/83 pretende de golpe incorporar ao patrimônio da União o que não logrou obter perante o Poder Judiciário ao longo de mais de duas décadas, em notável atentado ao mais reconhecido dos princípios constitucionais: o dever de indenizar justa e previamente, qualquer apropriação imobiliária de bem de terceiro. A Portaria em exame é tristemente nula (Processo n. 501.114/87, p. 526-530).
Outro caso exemplar foi narrado pela advogada Mariângela Senna, na
audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores do município de Três Barras,
em 2014, quando declarou o absurdo da imputação criminal ao seu cliente, acusado
de furto do seu próprio patrimônio e prática de crime ambiental. Nas palavras da
advogada, publicadas no Correio do Contestado:
A advogada Mariângela Senna abordou um caso que diz bem o que está se
passando na área do exército. Ela defende um cliente, ex‐proprietário de terras no campo de manobras, que está sendo acusado de furto de madeiras do seu próprio terreno. A área em que isto ocorreu não está sendo usada pelo exército e, ou é ainda do antigo proprietário, já que ele não recebeu a indenização, ou é terra de ninguém, já que o exército não tomou posse daquela parte da área. O agricultor corre o risco de ser preso por retirar madeira do seu próprio terreno. Além disso, está sendo processado por crime ambiental. Pode ir parar na cadeia. Isto é: não pode mexer no que é seu, pois, se mexer, vai pra cadeia (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.06).
As ações empreendidas pelo exército, junto aos desapropriados, resultaram
em algumas prisões, e, aos olhos dos desapropriados, havia ilegalidade no
procedimento truculento dos militares, os quais alertavam para a possibilidade de
mortes naquele conflito:
O Edilson foi preso [...]. O Hamilton, mais foi preso lá no rio. Estavam tomando banho e passou pra beirada deles. E eles cataram ele. E daí judiaram bastante. Ficaram um semana com o rapaz preso em Rio Negro. Era o “diabo”. Eles são maldosos mesmo (Entrevista de Simas, LIMA, 2106, p. 12)
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Após instrução criminal, os dois jovens, ambos familiares dos expropriados e
que mantinham ligação com as terras em conflito, foram absolvidos com a seguinte
fundamentação:
De qualquer forma, comprovado ficou que os dois primos ora acusados tinham ido se banhar no rio Papanduva [...]. Não se pode negar que, até poucos dias daquela data, a área vivia um clima de intensa agitação, em razão do acampamento dos denominados “sem terra”, que, exatamente naquele local, permaneceram por muitos meses” (PROCESSO N. 501.114/87, P. 372).
O pronunciamento da sentença demonstra a desnecessidade da atuação
autoritária e ilegal dos militares, pois não tratavam de bandidos, apenas de pessoas
miseráveis e injustiçadas.
Outras prisões foram relatadas:
A Tia Nena agarrou o Walfrido pela camisa, achando que iam matar ele, com o tanque de guerra e tudo. E foi e discutiram. O Walfrido, também, era bom de papo, dai meteu-lhe a boca no major, no coronel. E o major disse: - “prendam esse homem!”. Cataram o Walfrido. A tia Nena saiu de quatro, ao pé agarrada na camisa, dai tirou a metade da camisa do Walfrido. Não queria deixar eles levarem ele. Mas não tem né, 2, 3 não leva, tem 50 para empurrar, lá pra dentro. E afinal, foi aquele sururu desgraçado. [...] (Entrevista Simas, LIMA, 2016, p. 12)
O clima tenso tomava conta da região. O Exército mostrava-se cada vez
mais truculento e impaciente com as reivindicações dos desapropriados. Em
contrapartida, entre os agricultores submetidos à condição de miserabilidade e
tomados pela revolta, havia aqueles que estavam propensos a buscar na violência a
redenção de seu sofrimento. Não aguentariam aguardar o pronunciamento da justiça
acerca do pagamento das indenizações. Essa situação ocorre no episódio que
envolveu o Senhor Honorato Branco Pacheco, após a expulsão de suas terras:
[...] o senhor Honorato encontrou o Coronel e sacou de um revolver para dar um tiro no militar. Rapidamente conseguiram evitar um incidente fatal. Mais tarde, as autoridades tentaram prendê-lo, mas o juiz aceitou o argumento do advogado, que alegou perturbação mental de seu paciente. Garantem alguns membros de sua família que residem em Canoinhas, que o Sr. Honorato faleceu de “desgosto” porque suas terras foram tomadas (Processo n. 501.114/87, p. 15).
A situação dos agricultores se tornara precária, não lhes restando outra
alternativa, senão convocar a pressão da opinião pública, através de movimentos
95
sociais e acampamentos no entorno do CIMH. Essas manifestações, contudo, eram
o motivo que o Ministério do Exército aguardava para mostrar o seu modus
operandi, em desfavor daqueles “sem terra”.
4.2 O Acampamento “São João Maria”
O sentimento predominante nos atingidos pela desapropriação, direta ou
indiretamente, consistia numa mistura de esperança e revolta. Cansados de
aguardar uma solução por parte do Governo, fosse judicial ou administrativa, com o
transcorrer do tempo, os revoltosos, apoiados por movimentos sociais que
despontaram na década de 1980, passaram a se manifestar de forma mais explícita,
através de várias ocupações de terra.
Para Schiochet (1993 p. 78), a decisão de organizar acampamentos em
locais estratégicos é atribuída aos seguintes fatores: mudança na concepção política
dos desapropriados e herdeiros (cansados de viagens e tentativas de diálogo com
representantes da União) e o uso das terras pelos militares para outros fins.
O estopim para a invasão foi a denúncia do Capitão Heitor Freire de
Albuquerque Filho45. O Exército estava permitindo que particulares extraíssem toda
a produção de erva mate desta área, uma safra prevista de 1.500 toneladas, ao
preço de Cr$ 50 mil a tonelada. Na concepção dos agricultores, este montante, de
aproximadamente Cr$ 75.000.000,00, não pertencia ao exército, pois a finalidade do
Decreto Desapropriatório consistia em proporcionar uma área descampada, para
manobras militares.
Este argumento se fortalecia em razão dos processos desapropriatórios,
ainda em curso. Por isso, entendiam que, não ocorrendo o recebimento das
indenizações, a propriedade daquelas áreas ainda lhes pertencia. O Correio do
Contestado noticiou, em 2014, o enfoque da questão sob a perspectiva dos
desapropriados, com a matéria “Vergonha Nacional”:
45
O Capitão Heitor Freire de Albuquerque Filho formulou denúncia das irregularidades que ocorriam no interior da Unidade Campo de Instrução Marechal Hermes, contra os denunciados Cabo Honorário e o Comandante João Carlos Amaro Neto. A denúncia referia-se à venda de pinheiros, imbuia, erva mate, aluguel de terras aos proprietários já desapropriados, além da exploração agrícola da terra pelos próprios militares. (RELATÓRIO COMISSAO ESTADUAL DA VERDADE DO PARANÁ, 2015:35).
96
Mais uma. Este caso é mais uma das tantas vergonhas que a Ditadura Militar nos legou. A área foi desapropriada, mas não foi paga. Aconteceu um CALOTE. São cerca de duas mil pessoas, hoje, entre herdeiros e proprietários ainda vivos, que foram lesados nos seus direitos. Em 1986, depois de infrutíferas tentativas de reaver suas terras ou o pagamento justo e merecido pelo que lhes foi tirado, dezenas de famílias ocuparam a área que continuava, na prática, sendo sua. Foram expulsos a golpes de baioneta pelo exército. Isto é, foram expulsos de suas próprias terras. O exército está alugando, arrendando, cedendo por interesses comerciais ou políticos, ou quaisquer outros interesses desconhecidos, parte das terras para agricultores da região, incluindo alguns dos principais antigos proprietários e, especificamente, a família que tem a maior área envolvida no imbróglio para o cultivo de lavouras ou criação de gado. O exército está agindo arbitrariamente em todos os sentidos, pois tenta manter uma área que DOCUMENTALMENTE não é sua, sob o pretexto de cumprir a LEI; Lei que ele próprio não está cumprindo (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 04).
Visando sensibilizar o Governo Federal, no mês de setembro de 1980
realizou-se uma ocupação, inicialmente de 150 agricultores, que, sem autorização,
acamparam numa casa de propriedade da família Schadeck, dentro do Campo de
Instrução.
Segundo Lima (2016), percebia-se, em inúmeros momentos, o envolvimento
místico-religioso na organização do movimento, tal qual através do nome designado
ao acampamento, de "Acampamento São João Maria46”.
Munidos apenas com algumas barracas de lona, tratores, máquinas de
agricultura e agasalhos para enfrentar o frio, cerca de 400 pessoas, entre homens,
mulheres e crianças, levaram consigo grande quantidade de alimentos, com o
propósito de permanecer na área expropriada até que o governo se decidisse por
solucionar o impasse, através da devolução dos hectares expropriados ou do
pagamento de justas indenizações pela área.
[...] Dia 15, reuniram de noitinha. Começaram reunir e foram na Campininha e foram em Canoinhas e reuniram. Levaram tudo e espicharam umas loninhas e posaram por lá. Daí começaram melhorar as coisas, devagar. Mas foi sofrido ali. Daí o exército descobriu. Encheu de tanque de guerra, no morro, ali que dá no Poço Grande. Você conhece o Poço Grande? É um chapadão. Passou o rio Poço Grande, e daí tem uma subida, onde vai pra dentro da área. O exército encheu de tanque de guerra e milico, lá em cima do morro, pra amedrontar o povo. E sai, não sai. Aquela briga foi para a televisão. A Pastoral teve a sua vantagem, jogou mesmo com tudo, porque a pastoral, nada mais é que gente da política, de esquerda, na verdade. Na
46
No ano de 1987 aconteceu a 2.ª Romaria da Terra de Santa Catarina, na localidade nominada de Poço Grande, em Papanduva, divisa com a área militar em litígio. Desse evento, participaram em torno de 15 mil pessoas. O objetivo do encontro era evidente: protestar contra o descaso do governo no que se refere à luta pela terra, não se importando com mais de 136 mil famílias sem terras do Estado.
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época, unido com padre descontente, também, com a Igreja. E a Igreja tem
força. (SIMAS, 2016 apud LIMA, 2016, p. 12).47
Ao tomar conhecimento da invasão, o oficial Coronel, Diretor do Campo de
Instrução Marechal Hermes, compareceu ao local e ameaçou prender todos os
homens, caso eles não se retirassem das terras dentro de algumas horas. Pouco
depois, voltou acompanhado de dezenas de soldados do quartel de Três Barras,
município vizinho de Papanduva, dizendo que levaria presos os líderes do
movimento (PROCESSO n. 501.114/87, p. 18).
As mulheres protestaram e declararam que primeiro o oficial haveria de
prender a elas e as crianças.
Na porta de uma antiga casa, que eles consideram como sendo seu “quartel-general”, e a única benfeitoria ainda existente na área, os agricultores hastearam as bandeiras do Brasil e de Santa Catarina, ao lado de cartazes com estes dizeres: “Não atire no teu irmão injustiçado” (um recado aos soldados do campo de manobras)”. “Nosso Presidente Figueiredo apoia o pequeno agricultor” e “Você também sofre” ( outro recado aos soldados). Pelo chão, ficaram espalhados colchões, cobertores e lençóis. Na cozinha, dezenas de mulheres preparavam ensopado de carne de porco, arroz e café em grandes caldeirões. Nas barracas e num velho galpão, os homens tomavam chimarrão, enquanto todos conversavam sobre a invasão. Todos, no entanto, faziam questão absoluta de mostrar que entraram na área desarmados e que a invasão foi a ultima alternativa que encontraram para tentar uma solução para o problema.
A ocupação começou no sábado, 14 de abril, às 15 horas. Até a tarde de
domingo, o clima era de calma e normalidade, quando a chegada do exército, com
tanques, carros blindados e cerca de dois mil soldados armados com fuzis e
metralhadoras, obrigou os manifestantes a abandonarem o local, segundo noticiado
no Correio do Contestado (2014, p.07)
47
CTP – Comissão Pastoral da Terra. “Quando criamos a associação, daí nós começamos a buscar os direitos sociais. Onde existia a Pastoral da Terra e outros, como o partido político dos trabalhadores. Essas coisas. Então a gente buscou recurso de todo lado da sociedade. E lá houve orientação, pra valer, da CPT, que era Pastoral da Terra de nós, fazer a ocupação, lá nas nossas terras” (LIMA, 2016).
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Figura 04: Invasão do Campo de Instrução Marechal Hermes
Fonte: Correio do Contestado (2014, Ed. 3756, p. 07).
O contingente da 5ª Região Militar, com sede em Curitiba, estabeleceu prazo
até às 15 horas de segunda‐feira, 16 de abril, para a retirada pacífica dos
acampados:
Os números são um pouco contraditórios. Segundo o representante dos Sem Terra, que atendeu a nossa reportagem, cerca de 900 famílias, ou 4 mil pessoas, estavam acampados no terreno onde o exército realiza seus treinamentos, e a força militar presente chegava a 2 mil soldados e oficiais. Declarou, ainda, que não tinha conhecimento de que, ao longo dos 23 anos de existência do MST, uma invasão como essa tivesse conotação tão pesada, perigosa e violenta. O Coronel Marco Aurélio, comandante da operação, que também atendeu gentilmente o Correio do Contestado, não concordou inteiramente com esses números, admitindo, todavia, que o grupo era forte e estava pronto para qualquer tipo de ação (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 07).
A situação somente se acalmou com a chegada, ao local, de oficiais do 5º
Regimento de Comunicações, de Rio Negro, que ouviu todas as reivindicações dos
agricultores e assegurou que seriam transmitidas ao Comando do Exército.
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Em entrevista ao Jornal Correio do Contestado, o Deputado Federal, Claudio
Vignatti, presente no local, informou que o exército agira de forma autoritária, sem
qualquer demonstração de pacificação rumo a uma solução negociada:
Correio – Foi uma decisão arbitrária, então, do exército? Deputado – Foi. Não deixaram nem o pessoal do INCRA entrar, nem outras autoridades, ninguém que pudesse intermediar o processo de negociação e acompanhar
a saída do pessoal. Tem‐se que estabelecer um processo de negociação. O Exército, mesmo que tenha autonomia, está subordinado à Presidência da República. Essa ocupação mostrou a necessidade da negociação. É uma área que pode ser desapropriada, parcialmente, e negociada com o MST, e esse mecanismo deve ser estabelecido de agora em diante. O INCRA pode oferecer uma nova área e, dentro dessa nova possibilidade, trabalhar para que atenda os interesses da sociedade (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 08).
O processo de negociação foi documentado em uma foto do período:
Figura 05: Militar, montado sobre um tanque de guerra, ouvindo as reivindicações dos invasores.
Fonte: Correio do Contestado, Ed. 3756, p.07.
Apesar do suposto processo de negociação, a expulsão daquelas famílias
não demorou a acontecer. A promessa de que autorizariam a permanência,
enquanto não se encontrasse uma solução, não fora cumprida pelo Exército e os
agricultores foram retirados.
Estimou-se que mais de mil pessoas foram mobilizadas na ocupação, e a
ação do movimento social atraiu a atenção de autoridades e trouxe reconhecimento
nacional à situação daqueles desapropriados:
Não pudemos, infelizmente, comprovar in loco esses números, pois não foi permitida a entrada da imprensa, nem dos políticos presentes, muito menos dos representantes do INCRA. O próprio negociador dos Sem Terra, que obteve permissão para sair em busca de ônibus e outros meios para retirar
100
o pessoal da área, não conseguiu mais entrar, tendo ficado do lado de fora, sendo permitida apenas a entrada dos ônibus e carros. Na saída da caravana observamos números condizentes com os declarados pelos políticos presentes: cerca de 15 ônibus lotados e vários veículos de passeio, além de algumas motos, o que permitiu calcular em cerca de 1.200 pessoas o total, com muitas mulheres e crianças. Assim, concluímos que a operação militar pode não ter sido tão transparente e pacífica como declaram os comandantes, pois, nada melhor que imagens para mostrar o que realmente estava ocorrendo. O interlocutor do Movimento fala em violência, “Operação de Guerra”, cerco total, ameaças de morte e privação do fornecimento de água; nenhum desses fatos foi confirmado pelo Coronel (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 08)
Este episódio repercutiu na impressa nacional, segundo o jornal “O Estado de
São Paulo”:
Três dias após a expulsão, em entrevista ao jornal o comandante da 5ª Região Militar, General Jofre Sampaio, garantiu depois da expulsão, que o exército ainda vai tentar uma solução pra o problema. O exército – dizia ele em setembro de 1980 – “não pretende mesmo continuar como campo de instrução uma área de terras férteis como aquela, temos todo o interesse em conseguir uma outra área improdutiva e, se possível, deixar os agricultores voltarem as suas antigas propriedades” (O Estado de São Paulo, anexado ao Processo n. 501.114/87, p. 15)
A mesma promessa já havia sido feita dois anos antes aos agricultores, e não
fora cumprida. O Ministério do Exército parecia se posicionar no sentido da
negociação, de buscar uma solução pacífica e reconhecia que o campo de instrução
já não atendia a finalidade para a qual foi constituído.
Ao longo do tempo, ficou evidenciado que o discurso pacífico do Exército não
passava de falsa declaração, pois, na prática, notava-se o tom de autoritarismo e
ameaça aos desapropriados:
A entrada é proibida e, quem entrar, vai mesmo sair a ferro e fogo, conforme declarou ao Correio do Contestado o Coronel Marco Aurélio, comandante da operação que desalojou os Sem Terra na recente invasão (2014, p. 04).
Em entrevista, um dos representantes do movimento social, Alfredo Anselmo
de Miranda, vulgo Índio, declarou que:
Foi uma humilhação, chegando até a usar o nome do nosso Pai lá em cima, Jesus Cristo, que era pra nós escolher, para nossas crianças e mulheres escolherem se queriam exatamente o massacre que iria ocorrer na noite, a dor da noite, o sangue da noite, ou se preferiam sair da área. Tentaram de todas as formas que chegou num ponto que muitas famílias, pessoas idosas, se desesperaram, uns tentando fugir pela mata, outros chorando,
101
crianças perdidas das mães, a gente controlando a situação. Colocaram que a coordenação do movimento dos sem terra, a direção, estava abandonando o povo; em momento nenhum; estamos firmes, estamos negociando, estão aqui dentro, agora o pessoal está lá fora também, negociando em Brasília, vamos negociar, vamos fazer o possível para assentar essas famílias; nós vamos sair daqui de cabeça erguida, tivemos vários objetivos conquistados, vários objetivos que foram atingidos; às vezes a gente ocupa uma terra e leva até um ano para começar a negociar, aqui já estamos a caminho e vamos negociar. Correio – Houve uma ameaça de massacre? Índio – Foi uma guerra psicológica (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 10)
Na entrevista, o jornal indagou ao representante se, durante a invasão e
permanência dos ocupantes, houve alguma assistência por parte do exército.
Ofereceu assistência: um canhão mirando para as famílias, dizendo que sai ou detona tudo, foi assim; que eu sei, nem para um bandido eles não podem apontar arma como eles fizeram, gritando: Xô! Xô!, mandando os soldados deles irem empurrando e mirando o canhão, o tanque para o povo. O representante deles não queria saber, foi firme, queria que nós saísse (sic) a noite com o povo na rua; nós ia apanhar, nós ia ficar ali, nós não ia sair; nós negociamos até o último e estamos saindo pacificamente e a negociação está continuando (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 11)
Apesar de haver contradições nas versões apresentadas pelos militares e
ocupantes, a invasão atingiu o objetivo de levar ao conhecimento das autoridades
nacionais, com maior profundidade, o drama e as injustiças vivenciadas pelos
agricultores do Norte Catarinense. Segundo o Correio do Contestado, em entrevista
junto ao Prefeito de Papanduva Humberto Ribas, o movimento social contribuiu para
o reconhecimento nacional daquele impasse:
Acho que, mais cedo ou mais tarde, vai ter que ter uma solução jurídica, porque não é possível uma injustiça, uma incoerência tão grande. Esse assunto ainda não chegou na grande mídia, o povo brasileiro precisa saber o que está acontecendo e a Nação vai ficar estarrecida quando souber disso. (Nota do Editor – Lembramos ao prefeito que, agora, o assunto está ganhando manchetes a nível nacional; foi, inclusive veiculado pela Rede Globo de Televisão com imagens, mapas e comentários à respeito; apontamos, também, que com a reunião presente, agora são duas grandes forças lutando com o mesmo objetivo: o MST e as famílias expropriadas da área e que a solução pode estar próxima) (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.05).
Com a mobilização social e a repercussão da invasão, os proprietários
passaram a denunciar às mais diversas autoridades os acontecimentos que
envolviam a sua luta pela terra.
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4.3 DENÚNCIAS DE IRREGULARIDADES E INJUSTIÇAS
Os desapropriados, no decorrer do período em que empreenderam tentativas
para obter uma solução pacífica, seja pela via administrativa ou pelo desfecho da
demanda judicial, enviaram diversos documentos, que estão acostados ao Processo
nº. 501.114/87, entre as páginas 500-570, demonstrando ao Poder Judiciário e às
demais autoridades os efeitos decorrentes da repentina mudança no padrão de vida
dos atingidos, cujos transtornos causados pela desapropriação foram
incomensuráveis.
Os desapropriados enfrentaram enorme desafio a partir do momento em que
passaram, aos olhos do poder público, da situação de proprietários estabelecidos,
com atividade agropecuária assegurada, ao status de “sem terra”, “sem dinheiro” e
de “boias frias”, mensalistas ou ainda desempregados.
Diante deste panorama, os desapropriados:
Retratavam a luta em busca de uma solução justa e que pudesse recompor, efetivamente, não apenas o patrimônio de tantos que foram despojados de seus bens, mas que o reconhecimento da injustiça cometida pelo Estado trouxesse a paz, a moral e a confiança das instituições públicas, abaladas em consequência de tamanhas arbitrariedades e injustiças contra os mesmos cometidas, se mantém fortalecida ao longo do tempo e que não irão sucumbir enquanto não alcançada a satisfação dos seus inequívocos direitos (PROCESSO N. 501.114/87, p. 500).
Alguns documentos, que evidenciavam a situação precária em que se
encontravam os proprietários, foram emitidos por órgãos do próprio governo, os
quais denunciavam ao Poder Judiciário a dimensão das injustiças cometidas.
Falavam, ainda, sobre o alcance dos danos provocados pela nefasta desapropriação
e a sequência de procedimentos equivocados levados a efeito pelo poder público,
com o acobertamento da situação de estado de exceção que prevaleceu nos
períodos negros da ditadura.
O primeiro documento trata-se de um parecer do Serviço Especial de Defesa
Comunitária (DECOM), órgão pertencente ao Ministério Público, através do qual o
Procurador da República, Rui Sulzbacher, dirigiu-se ao então Procurador Geral da
República, José Paulo Sepúlveda Pertence, em 04.12.1985, cujo pronunciamento
inicial expressa:
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Solicito providências para um problema antigo, que periodicamente volta à tona pela situação de injustiça, causada com o decorrer do tempo, em desprestígio ao Ministério do Exército, da Procuradoria da República e da Justiça e que cuja solução satisfatória seria um acordo extrajudicial” (PROCESSO N. 501.114/87, p.507-508)
A análise deste documento revela que o Procurador reconhecia as
incoerências, ao afirmar que:
Durante algum tempo foi desvirtuada a finalidade do CIMH através de arrendamentos de frações aos desapropriados ou terceiros. Outro aspecto conflitante era a dificuldade de transcrição dos lotes em nome da União e as dúvidas quanto aos limites do campo de instrução nas faces sul e oeste. A carência de dados e certidões que impediam a transcrição da propriedade fez com que o INCRA cobrasse, injustamente dos expropriados, o Imposto Territorial Urbano – ITR (PROCESSO N. 501.114/87, p. 508).
Apesar da desapropriação das terras em prol da União e da dificuldade em
registrar a propriedade junto às matrículas dos imóveis, o INCRA promoveu a
execução fiscal de débitos contra os desapropriados, que segundo a matrícula eram
os legítimos proprietários. A partir de tamanha insensatez, os desapossados foram
submetidos a mandado de penhora ou pagamento do imposto das áreas que então
estavam apossadas pelo Ministério do Exército, aumentando a indignação dos
agricultores (PROCESSO N. 501.114/87, P. 541-549).
Um segundo documento é o parecer do Procurador da República, Carlos
Antônio Fernandes de Oliveira, dirigido ao Subprocurador Geral da República, Arthur
Pereira de Castilho Neto, emitido em 21.10.1992:
Salienta-se que este Procurador da República atuou na defesa da União nos processos expropriatórios e afirma que embora tivesse atuado na defesa não poderia deixar de se furtar em externar profunda indignação com a lastimável injustiça cometida contra os proprietários dos imóveis em questão. A primeira injustiça cometida foi de que as ações desapropriatórias foram tumultuadas desde o início, posto que propostas no prazo de validade do decreto expropriatório e as áreas nele descritas não correspondiam à sua real situação, inclusive em relação aos seus legítimos proprietários. A segunda injustiça foi que após obter informações junto a autoridades e a alguns expropriados, quando a União foi imitida na posse dos imóveis, os desapropriados tiveram que arrendar da própria União parte de suas terras para manter a criação de gado. A injustiça se configurava no valor pago pelos arrendos entre 1964 a 1980 que eram bem superiores aos valores recebidos de indenização (PROCESSO N. 501.114/87, P.509).
104
Conforme entendimento do Procurador, as terras desapropriadas eram férteis
e, além da pecuária e agricultura, apresentavam vasta cobertura vegetal, portanto,
prosseguia a exploração da erva mate pelo Exército, através de licitações.
Constata-se, ademais, a preocupação do Procurador em obter um desfecho
amigável, propondo uma solução que, embora difícil, não era impossível, pois havia
uma relação de dependência entre a União e os desapropriados no interesse de
solucionar o impasse.
Portanto, de um lado se encontravam os desapropriados, requerendo a justa
indenização, e de outro, a União, com o interesse jurídico na transcrição dos
imóveis, a seu ver, somente exequível através da unificação dos registros em uma
única transcrição, fato que, por sua vez, dependia exclusivamente da participação e
da anuência dos expropriados (PROCESSO N. 501.114/87, P.509-552).
Com o intuito de findar o conflito fundiário que se estabeleceu na região do
Planalto Norte Catarinense, verificam-se, no parecer do Procurador, sugestões para
duas soluções alternativas. Na primeira, de forma administrativa, a União devolveria
todos os imóveis aos desapropriados e transferiria o Campo de Instrução para outro
local, mediante regular processo desapropriatório, ou, o pagamento da indenização,
mediante acordo, a todos os desapropriados e herdeiros destes, tendo como
parâmetro novos valores apurados mediante laudo pericial.
A segunda alternativa, na forma judicial, consistia na reunião, como autores
do processo, de todos os expropriados para um acordo. Contudo, era imprescindível
a extinção de todas as ações já propostas contra o Exército, assim como a
transferência imediata do imóvel ao domínio da União Federal. Apesar da boa
vontade do Procurador, as suas sugestões não se concretizaram.
Um terceiro documento, no sentido de denunciar a injustiça praticada contra
os expropriados, foi um ofício emitido pelo Procurador Geral da Justiça, destinado ao
Governador do Estado, Esperidião Amin, no qual:
Reconheceu após um estudo e observou que as ações expropriatórias foram propostas sem observância das cautelas legais, e como resultado desta ilegalidade estava a dificuldade da transcrição dos registros imobiliários das áreas atingidas (PROCESSO N. 501.114/87, p. 514-515).
105
Em análise ao pronunciamento do Promotor de Justiça, Luís Adalberto Villa
Real, membro do Serviço Especial de Defesa Comunitária do Ministério Público do
Estado de Santa Catarina – DECOM, verifica-se no parecer que:
Após contato com os agricultores retratou a ânsia desesperada dos mesmos em retornarem às suas terras e que tal manifestação de vontade é resultado da falta de uso da área pelo Exército Nacional, que arrendava as terras para os próprios expropriados ou para terceiros para promoverem o cultivo agrícola ou a criação de pecuária (PROCESSO N. 501.114/87, p. 516-519).
Havia preocupação quanto ao aspecto social suscitado na região do Planalto
Norte Catarinense, pois o impasse fundiário já atingira duas mil pessoas e parecia
longe de terminar. O Correio do Contestado já noticiava a iminência da prática de
atos violentos para a retomada das terras, por alguns dos proprietários mais
revoltados. Na audiência pública em Papanduva, no ano de 2014, houve discussão
entre os que defendiam o exército e o desapropriado Gerson Wojniechovski.
Conforme relatado em jornal:
O Sr. Gerson Wojciechovski, bastante alterado, inclusive com a imprensa, declara: 'Vai dar morte e eu, inclusive, não vou morrer sem levar um junto comigo. A minha sogra recebeu 80%, deu R$ 380 mil cruzeiros dia 24 de janeiro de 1964 e a parte do perito que fez a avaliação deu R$ 503 mil, meio mês depois. É a mesma coisa que você encostar o carro para consertar um pneu e ter que vender o veículo para pagar o conserto. O Governo não pode simplesmente abrir mão do seu patrimônio!!! (disse um vereador). Depois de novo “vozerio irritado” dos presentes, Gerson levantou de sua
cadeira e dirigiu‐se em tom ameaçador ao autor da frase:– Mas que patrimônio? Do exército? Olha, infelizmente você, como vereador, não sabe das coisas que fala. Você não sabe da verdade! (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 04)
Após o depoimento do proprietário, Sr. Gerson Wojciechovski, a balbúrdia se
manifestou, os ânimos se exaltaram e foi necessária a intervenção do Presidente da
Câmara.
Suplantada a animosidade dos participantes, outros proprietários, como o
Senhor Hebrahin Gonçalves de Oliveira, pôde, educadamente, expor a sua
condição:
Em 1986, quando nós fizemos aquele movimento para tentar uma solução para o caso, fomos ao Presidente da República, que fez um despacho para o Incra resolver o assunto e foi decidido que a Dra. Ella W. W. de Castilho (Procuradora) fosse a Brasília, onde convenceu o Ministro do Exército que era melhor devolver a área para os legítimos proprietários e o Ministro
106
Leônidas Pires concordou; eu tenho um documento dele, comprovando que não era ruim a ideia levantada pelo reivindicante de uma permuta de área que atendesse as duas partes. Assim que o Estado fornecesse uma área eles transfeririam o campo de manobras e devolveriam a área para nós. Aí fomos chamados na Procuradoria da República em Santa Catarina e o Dr. Rui Subake fez uma proposta para nós de devolução da área desde que nós não reclamássemos as perdas dos anos que nós deixamos de usar as
terras e as benfeitorias, os pinheiros, a erva‐mate, e arrendamento da terra que havia sido feito. Então, todos concordaram em voltar para a terra na situação em que ela se encontrava, sem benfeitorias, sem os pinheiros, sem
erva‐mate, aí o Dr. Rui falou que era um acordo feito a facão, que o nosso direito era voltar para a terra, a devolução da terra, e a indenização pelo tempo em que eles usaram o terreno, mas se nós aceitássemos a devolução assim, sem ônus para a União, eles a devolveriam. Fizemos esse acordo através do advogado Dr. Francisco Vital Pereira que foi junto conosco e, três meses depois, quando voltei à Procuradoria, o Dr. Rui me mostrou o documento que ele recebeu do Ministério do Exército dizendo que a proposta da Procuradoria da República estava oficializando o roubo do exército em cima da área pela venda dos pinheiros e demolição das benfeitorias que existiam na área. Dessa maneira, não devolveriam mais o terreno e puseram um “marco zero” na história e acabou encerrando todo o processo pelo qual nós lutamos tanto e deixaram de devolver a terra para os legítimos proprietários. Então, como se vê, a gente já chegou a um ponto de acordo para devolver a terra e simplesmente o Exército voltou atrás e disse que não devolveria mais (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05)
Na manifestação deste desapropriado, denunciava-se a ameaça concreta de
prisão, por estar reivindicando os seus direitos junto às autoridades, e continua seu
depoimento:
[...] Ela foi avisada de que a Procuradora esteve conversando com o Ministro Leônidas Pires e eu fui chamado no dia 04 de abril de 1987 pelo Diretor Geral de Patrimônio do Ministério do Exército, em Brasília. Inclusive, a Dra. Ella me alertou: "leve advogado que o senhor vai ser preso”. Então eu levei o Dr. Francisco comigo, o Sr. Acácio Pereira também foi junto comigo e é testemunha. Eu fui interrogado durante três horas e quinze minutos por dois generais e dois coronéis. O General do momento estava transmitindo o cargo para o General Oswaldo Pereira Gomes e o Coronel Calazans, que era assessor de gabinete do Ministro do Exército, estava presente e o Coronel Vianna, que era assessor de gabinete do Diretor de Patrimônio. Tivemos três horas e quinze minutos de audiência com eles. Na minha saída ele agradeceu, dizendo que eu esclareci fatos obscuros que eles não sabiam do que vinha ocorrendo aqui, dos aluguéis de terras e vendas de pinheiros. Nós temos aqui uma pessoa, que até citei o nome dele para o General, que cortou madeira durante cinco anos dentro do campo, chegou a cortar madeira do terreno do pai dele para ser vendida pelo exército. Então é isso que dói na alma. Falei para o General: eu pago uma passagem para essa pessoa vir confirmar o que eu estou dizendo. Acabaram me agradecendo e disseram para eu voltar e continuar lutando que não ia me acontecer nada. Eu fui lá para ser preso, a própria Procuradora da República falou que eu ia ser preso em Brasília (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05)
107
A crítica publicada pelo jornal Correio do Contestado denuncia o resultado
daquela audiência pública:
Como vimos, esta última audiência pública realizada na Câmara de Vereadores de Papanduva nesta terça feira, 14/10/2014, foi alavancada em fatos reais e doloridos, em problema de difícil solução. Os depoimentos foram, basicamente, em cima de situações narradas com maior ou menor grau de intensidade e realismo. Desde a enfadonha e prolongada manifestação oral do senhor Edilson Schadeck e seus parentes, reivindicando soluções próprias para suas respectivas famílias; passando pelo depoimento dramático da Senhora Maria da Glória, viúva de Gerson Wochieskovski, que fez o público rir pela narrativa de sua visita,
acompanhada pelo ex‐deputado Haroldo Ferreira, ao ex‐governador Jorge Bornhausen com um revólver calibre 38 escondido na bolsa, (que desistiu de usar na última hora) e, ao mesmo tempo, se emocionar solidariamente com suas lágrimas; pela narrativa do Pastor Fuchs, que teve prisão decretada e executada parcialmente por tentar ajudar os desapropriados; pelo singelo e abrangente depoimento do Senhor Hebrahin Gonçalves, um dos líderes mais atuantes do caso, a reunião serviu para, mais uma vez, levar ao Estado de Santa Catarina e ao Brasil a verdade que o Exército Brasileiro e o Governo Federal tentam esconder do povo. Uma clara demonstração de que, apesar da democracia vigente, quem manda e decide no país ainda continua sendo a força militar, que não se submete nem mesmo ao poder central que, em tese, estaria hierarquicamente acima do seu comando. Note‐se que a desapropriação ocorreu antes da ditadura, num governo civil, e, passados muitos anos de governo democrático, não se encontrou uma solução para o caso pela impostura radical do Exército (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 13).
Um quarto documento utilizado no desenvolvimento desta pesquisa indica
que o Comando do Campo de Instrução Marechal Hermes concedia, ao
desapropriado José da Silva Lima, vulgo Maurício, o arrendamento das terras, e que
este, em harmonia com os interesses dos militares, mediante bom pagamento, era
autorizado a circular na área desapropriada. Inclusive detinha poder para “prender”
qualquer outro indivíduo – que tentasse retirar qualquer bem daquelas terras – e
conduzi-lo à presença do Tenente Coronel Ovídio Souto da Silva, diretor do CIMH
(PROCESSO N. 501.114/87, P. 570).
Embora houvesse as denúncias e os apelos às autoridades, uma solução
pacífica estava cada vez mais distante. Alguns proprietários faleceram imbuídos na
esperança do recebimento das indenizações ou na devolução de suas terras. Esses
sentimentos de impotência e desilusão trespassaram gerações e as histórias foram
contadas e recontadas, através de depoimentos.
Dentre as situações narradas (PROCESSO N. 501.114/87, P. 14.15), uma
versava sobre a história de duas famílias que moravam às margens da estrada que
liga os municípios de Papanduva e Itaiópolis. Tratava-se de descendentes de
108
poloneses que também foram expulsos da área desapropriada. Em entrevista, o
senhor Isidoro Kluska afirmou que possuía procuração para representar as duas
famílias Kluska na justiça, além de outras 100 pessoas, que permanecem à espera
da devolução das terras.
Eles possuíam cerca de 140 hectares de terras na área desapropriada e, desde o despejo realizado em 1962, trabalhavam com dificuldades em terras arrendadas. Disse que possuía 9 filhos espalhados pelo mundo sem terem um lugar onde morar, não escondendo sua revolta com esta situação. Afirmou que sua família possui estas terras lá e não pode tirar nem um cavaco de madeira e que seus pais saíram dela e deixaram para trás um rebanho de ovelhas, uma casa com arvoredo e que atualmente não tinham mais nada disto, não receberam nenhum pagamento por este rebanho desaparecido.
O outro chefe da família Kluska, senhor Pedro, afirmou em entrevista ao jornal
que possui 11 filhos e detinha 28 hectares de terras (“ainda tenho”) e relata ter
passado por muitas dificuldades depois de ter sido obrigado a abandonar suas
terras.
Estas terras são arrendadas e meus filhos e netos trabalham para sustentar a família, eu estou muito velho, mas meus filhos ainda sonham em trabalhar nas minhas terras de lá, as coisas estão meio paradas, mas mesmo assim ainda tenho esperanças (JORNAL DE SANTA CATARINA,1980).
Segundo levantamento da Sociedade de Núcleo Rural Papuã, havia centenas
de famílias em condições idênticas às da família Kluska, e o episódio da
desapropriação era transmitido de pai para filho, mediante narrativa impregnada do
viés da injustiça.
De acordo com a imprensa, a terceira geração dos desapropriados, situada
na faixa etária entre 14 e 18 anos, era a mais revoltada, e não escondia sua
antipatia pelos militares, dada a situação relacionada ao Campo de Instrução
Marechal Hermes.
Na oportunidade, o neto do senhor Pedro Kluska afirmou que:
era uma injustiça o exército ocupar suas terras férteis para apenas uma vez por ano fazer manobras, e sua família estava ali, sem terras para plantar, e afirma que faria de tudo para não servir ao exército no próximo ano, quando do seu alistamento (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1980).
109
Os desapropriados, ainda hoje, percebem o conflito fundiário pelo viés da
injustiça, da privação da liberdade de escolha e pela usurpação das oportunidades
pelo Estado. Contrariamente a esse entendimento, os militares e alguns
procuradores que representam o Estado, analisam esta questão sob a ótica da
legalidade, referendada pelo Poder Judiciário. Apesar de não deterem o título de
propriedade (escrituras devidamente registradas), consideram legitimados no
apossamento.
Um Informativo militar, anexado ao processo, expõe a contrariedade dos
argumentos dos militares, a partir da seguinte justificativa:
A continuidade dos processos foi prejudicada por inúmeros percalços tais como o desinteresse e omissão de vários desapropriados ou sucessores e a falta ou insuficiência de documentos comprobatórios da propriedade. A situação é, em resumo, a seguinte: definitivamente julgados: 78; sem julgamento definitivo: 7; não localizados (processos com situação e paradeiros não conhecidos: 4: Total: 89 [...] O Exército, em nome da União e com amparo em imissão de posse concedida por autoridade judiciária competente, vem ocupando todas as áreas desapropriadas. É óbvio, todavia, que o Exército tem, por enquanto a obrigação inafastável e indiscutível de zelar, em nome da União, pela preservação do imóvel em cuja posse foi legalmente imitido. Não se cogita, é claro, de simplesmente abrir mão da área. É preciso que se entenda, de uma vez por todas que o Ministério do Exército não possui acervo patrimonial próprio e que, sendo mero usuário dos imóveis da União, tem a obrigação de preservá-los e não tem competência legal para transferir a propriedade ou a posse dos mesmos (PROCESSO N. 501.114/87, p. 579).
Essa dicotomia de entendimentos, além das privações e injustiças, ocasionou
a improdutividade de extensa área de terras, a extração e venda de árvores nativas
e demais perdas e danos que, uma vez mensurados, resultam em valores
expressivos, que poderiam ter influenciado positivamente o desenvolvimento
econômico da região.
4.3.1 Consequências Econômicas da Desapropriação
A possibilidade de mensuração das perdas e danos ocasionados pelo ato de
desapropriação, e, consequentemente, o impacto sobre o desenvolvimento
econômico da região, foi viabilizada por meio de um documento anexado ao
processo. Essa fonte foi aqui analisada, e determinou a realização de uma perícia
minuciosa, com o objetivo de apurar, em números, as perdas e danos que os
110
desapropriados tiveram ao longo do período, entre 1963, ano que marcou a
desocupação da área, até 1994, ano em que foi realizada a perícia.
Sob a perspectiva de Amartya Sen (2016, p. 28) “a riqueza evidentemente
não é o bem que estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de
alguma coisa”. A mensuração das perdas e danos, durante o período em que os
proprietários foram afastados de suas terras, é algo relevante, pois, sob a ótica do
autor, é preciso considerar não apenas o impacto no crescimento econômico da
região, mas, também, o fato de que as riquezas, além de desejáveis, são meios
admiráveis para se incrementar a liberdade e conduzir o modo de vida almejado.
Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da
acumulação de riqueza, do crescimento do Produto Nacional Bruto e de outras
variáveis relacionadas à renda (SEN, 2016). No entanto, pese a importância do
crescimento econômico, que em última instância visa apenas a maximização da
renda ou da riqueza, é necessário que o processo de desenvolvimento transcenda
este fator e considere outras dimensões.
A prova pericial, solicitada pelos proprietários, para fins de mensuração das
perdas e danos, demonstra o interesse em avaliar o resultado da privação que o
Estado impôs àqueles desvalidos, tenha sido em desfrutar das riquezas naturais ou
produzir naquelas terras.
Através do enfoque de Sen (2016, p. 29): “[...] é possível compreender que a
expansão das liberdades não só torna a vida mais rica e mais desimpedida, mas
também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática
nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse
mundo [...]”.
Ao limitar o direito social ao trabalho48, garantido pela Constituição Federal, o
Estado privou aqueles desapropriados da oportunidade de se inserirem na
sociedade em que viviam, impossibilitando-os de contribuírem para o crescimento
econômico da região.
A despeito da prova pericial, foi executada pelo perito Adelmo Balsanelli,
mediante apresentação de planilhas em 10 de abril de 1995 (PROCESSO N.
501.114/87, p. 324), elaboradas a partir de um minucioso trabalho que se compunha
48
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. CF/88, artigo 6º.
111
de entrevistas com herdeiros dos proprietários, visitas aos Órgãos Oficiais (EPAGRI,
EMBRAPA, APROSESC e IBDF), às imobiliárias, obtenção de informações
independentes junto a produtores rurais, consultas realizadas à cerealistas da
região, comércio de materiais de construção e de madeiras, a fim de se apurar o
montante das perdas resultantes da improdutividade daquelas terras.
Após a obtenção dos dados, o perito apresentou seu laudo pericial, em
comparativo com as avaliações realizadas na década de 1960, pelos peritos
Antonino Nicolazzi e José Stockler 49 , os quais, através de demonstrativos
individuais, pormenorizaram a área de cada proprietário, classificando-as por tipo de
atividade econômica (árvores de lei, considerando a quantidade de pinheiros,
cedros, imbuias e pinheirótes), quantidade de benfeitorias (cercas, fios, casa,
rancho, chiqueiros e demais construções), e qualidade da terra (de mato com ou
sem erval, terras para arroizeiras, terras de culturas e terras de campos com
pastagens).
As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz (CÓDIGO CIVIL, 2016, ART. 369)
Verifica-se que a intenção dos desapropriados consistia em comprovar, ao
juiz incumbido de analisar a questão, a dimensão do prejuízo econômico que a
inutilização daquelas terras havia causado, privando aqueles indivíduos,
concomitantemente, de prosperarem na sua atividade laboral e contribuírem para a
economia da região.
A título de exemplo, considerando que a região do Planalto Norte
Catarinense seguia uma trajetória de crescimento econômico nas décadas de 1960
a 1990, a Associação dos Produtos de Sementes do Estado de Santa Catarina -
APROSESC, divulgou um estudo acerca de uma das principais culturas produzidas
na região, a batata-semente:
Sobre os dados da produção e custo da batata fornecido pela APROSESC, que apresenta estudo indicando o estado de Santa Catarina é a região do planalto norte do estado como o maior produtor nacional deste insumo e o começo da cadeia produtiva da bataticultura brasileira e que movimenta
49
Os documentos comprobatórios do laudo pericial estão todos anexados (PROCESSO N. 501.114/87, P. 360-461), como Anexo 01 a 81, incluindo os laudos apresentados pelos peritos Antonino Nicolazzi e Jose Stockler, em 1963 e 1964, individualizados por autor (p. 376-393).
112
mais de 2 bilhões de reais. E que a região de Canoinhas produz aproximadamente 1.500.000 caixas de 30 kg de batata-semente das classes básicas, registrada e certificada e ocupa atualmente uma área de 4.000 ha, sendo que o custo de produção para a implantação de 1 hectare de lavoura de batata-semente é de 4800 reais, com uma produtividade média de 400 caixas por ha, o que significa um custo médio de produção de 12,00 reais por caixa. A região do Planalto Norte vende anualmente a batata-semente para 10 estados brasileiros produtores de batata para consumo e gera o valor de 37,5 milhões de reais, envolve aproximadamente 2.500 pessoas que são empregadas durante o plantio, colheita e beneficiamento do produto (PROCESSO N. 501.114/87, 2014, p. 402).
O Estado de Santa Catarina é um tradicional produtor de batata-semente no
Brasil, em decorrência das ótimas condições climáticas observadas no planalto
Catarinense. Em algumas regiões, é possível o cultivo em duas safras por ano. Por
esta razão, a região constitui-se numa região climática altamente favorável à
produção de batata-semente de ótima qualidade fitossanitária. A maior parcela da
produção catarinense é comercializada em outros estados, contudo, a produção está
concentrada nas regiões do Planalto Norte (Canoinhas, Papanduva, Mafra, Major
Vieira, etc.). (ABBA, 2001, Ano 1, Numero 03)50
Desde o final da década de 1960, com a chegada de produtores de origem
japonesa, ligados à antiga Cooperativa Agrícola de Cotia, a região se destacou na
produção de batata semente, devido às condições favoráveis, tal qual a presença de
áreas cobertas por matas nativas, que após desmatadas para plantio de batata,
proporcionavam terras livres de doenças. Nas décadas de 1970 até 1980, esta
região obteve hegemonia nacional na produção de batata semente. Entretanto, a
partir da década de 1990, começou a perder este posto, seja pela mudança do
112e112s de produção para o centro-oeste, em lavouras com irrigação, seja pelo
processo de verticalização promovido pelos produtores de batata para consumo, que
também ingressaram no segmento de batatas para sementes (ABBA, 2001, Ano 1,
Numero 03).
Nesse contexto, os desapropriados do CIMH foram impossibilitados de
contribuir com a sua produção justamente na época em que a região do Planalto
Norte Catarinense tornou-se o principal centro produtor de batatas sementes no
Brasil.
50
Albanêz Souza de Sá - ABBA - Vice-Presidente Batata-semente. Disponível em (http://www.abbabatatabrasileira.com.br/revista03_019.htm)
113
Se o ponto de partida da abordagem é identificar a liberdade como principal objetivo do desenvolvimento, o alcance da análise de políticas depende de estabelecer os encandeamentos empíricos que tornam coerente e convincente o ponto de vista da liberdade como perspectiva norteadora do processo de desenvolvimento. (SEN, 2016, p. 10).
A destinação de extensa área de terras para a finalidade de instrução e
manobras militares retirou daqueles desapossados a possibilidade de agregar, à
economia da região a produção resultante de sua atividade laboral. A maioria
daqueles desvalidos dependia exclusivamente da atividade agropastorial, sua única
fonte de trabalho e renda.
É plausível afirmar que na década de 1950 preponderou uma política
segregatória adotada pelo Estado, levada a efeito através da promulgação do
Decreto de Desapropriação. Esse cenário diverge da perspectiva adotada por Sen
(2016), ao considerar que há fortes indícios de que as liberdades econômicas e
políticas se reforçam mutuamente, em vez de serem antagônicas.
Após a descrição do impacto social que a instalação do CIMH ocasionou no
território sob análise, faz-se necessário apresentar a mensuração deste impacto
econômico. A partir de dados coletados do Processo n. 501.114/87, disponíveis nos
anexos 01-81, apresentados nas figuras verifica-se que o laudo pericial pormenoriza,
através de tabelas, as perdas e danos de cada agricultor, considerando parâmetros
variáveis como a área, as benfeitorias, as árvores nativas e a produção de diversas
culturas.
A partir da análise dos valores evidenciados é possível tabular os dados e
apresentá-los sucintamente no quadro a seguir:
114
Quadro 1: Perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de 1994
Proprietário(s) Perdas e Danos apurados até 1994 – Valores expressos em R$
Benfeitorias Madeiras Produção Terras Total
Sofia Boiko 5.450,00 - 204.389,00 27.142,00 236.981,00
Maria Rita Simas - 10.647,00 393.345,00 89.056,00 493.048,00
Miguel Pietrowski 150.650,00 - 279.652,00 32.137,00 462.439,00
Fermino e Pedro Pacheco
dos Santos Lima 46.350,00 268.951,00 6.754.704,00 2.516.800,00 9.586.805,00
Honorato Branco Pacheco 28.400,00 353.248,00 4.404.888,00 809.856,00 5.596.392,00
Aristides Guebert 15.125,00 329.613,00 3.908.145,00 595.328,00 4.848.211,00
José da Silva Lima 40.020,00 61.658,00 4.575.096,00 778.442,00 5.455.216,00
Silvestre Boiko 9.360,00 - 336.670,00 54.286,00 400.316,00
Candido Branco Pacheco 5.950,00 16.472,00 935.323,00 117.860,00 1.075.605,00
João Francisco Domingues 1.000,00 - 505.295,00 58.080,00 564.375,00
Ana Volochate Boiko 11.425,00 9.184,00 1.091.465,00 131.338,00 1.243.412,00
Jacob Schadeck 53.810,00 282.214,00 4.863.613,00 906.048,00 6.105.685,00
João Gonçalves de Lima 4.050,00 105.920,00 1.170.198,00 230.192,00 1.510.360,00
Walfrido da Silva Lima - 321,00 172.788,00 27.104,00 200.213,00
TOTAL 371.590,00 1.438.228,00 29.595.571,00 6.373.669,00 37.779.058,00
Fonte: Autora (2017)
É preciso salientar que os valores apresentados no Quadro 1 referem-se
exclusivamente ao período compreendido entre a emissão de posse por parte da
União até o ano de 1994. Objetivando apurar o montante atualizado, desde a data
de elaboração do laudo pericial, no ano de 1994 até os dias atuais, torna-se
necessário aplicar índices acumulados de correção monetária, especificamente o
Índice Nacional de Preços ao Consumidor - INPC e, além disso, computar juros
remuneratórios à taxa de 1,0% ao mês 51 . Em decorrência desta atualização,
evidenciada no Quadro 2, obtêm-se valores extremamente significativos, mormente
quando se considera o impacto que sua inserção teria ocasionado na economia da
região.
51
Disponível em http: www.drcalc.net/juridico.asp em 16.02.2017
115
Quadro 2: Atualização de perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de 1994
Proprietário(s) Atualização das Perdas e Danos (2017) – Valores expressos em R$
Benfeitorias Madeiras Produção Terras Total
Sofia Boiko 88.252,12 - 3.309.681,25 439.511,76 3.837.445,13
Maria Rita Simas - 172.407,40 6.369.455,13 1.442.088,23 7.983.950,76
Miguel Pietrowski 2.439.482,94 - 4.528.418,74 520.396,04 7.488.297,72
Fermino e Pedro
Pacheco dos Santos
Lima
750.547,85 4.355.136,91 109.379.257,70 40.754.667,53 155.239.610,00
Honorato Branco
Pacheco 459.882,61 5.720.162,43 71.328.570,40 13.114.038,47 90.622.653,91
Aristides Guebert 244.919,88 5.337.439,70 63.284.786,29 9.640.175,90 78.507.321,77
José da Silva Lima 648.045,85 998.431,06 74.084.757,01 12.605.350,01 88.336.583,93
Silvestre Boiko 151.566,95 - 5.451.714,06 879.055,90 6.482.336,90
Candido Branco
Pacheco 96.348,65 266.731,91 15.145.731,84 1.908.512,84 17.417.325,24
João Francisco
Domingues 16.193,05 - 8.182.267,06 940.492,33 9.138.952,44
Ana Volochate Boiko 185.005,59 148.716,97 17.674.147,02 2.126.762,77 20.134.632,35
Jacob Schadeck 871.348,01 4.569.905,33 78.756.727,13 14.671.680,31 98.869.660,78
João Gonçalves de
Lima 65.581,85 1.715.167,83 18.949.074,40 3.727.510,50 24.457.334,58
Walfrido da Silva Lima - 5.197,97 2.797.964,67 438.896,42 3.242.059,06
TOTAL 6.017.175,35 23.289.297,51 479.242.552,70 103.209.139,01 611.758.164,57
Fonte: Autora (2017)
Acerca da improdutividade daquelas terras, entrevista concedida pelo prefeito
de Papanduva, Humberto Ribas, relata sua preocupação com os impactos
econômicos da desapropriação:
O município está sendo prejudicado, pois se trata de uma área que deixa de ser produtiva; é uma região que poderia estar produzindo recursos, gerando empregos, então espero que, mais cedo ou mais tarde, se sensibilize os dirigentes do exército, que são setores que têm que acatar as decisões judiciais (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05).
No mesmo periódico, há uma declaração do então Deputado Federal, Claudio
Vignatti, sobre as consequências econômicas do longo período em que os
desapropriados estiveram afastados de suas terras:
Vamos imaginar que tenha 400 famílias assentadas aqui. Quanto de dinheiro mais iria circular no município de Papanduva e seus vizinhos, com todas essas pessoas comprando e gastando aqui? Então você imagina o
116
quanto a sociedade de Papanduva ganharia com 400 famílias morando aqui. É esse cálculo que temos que fazer porque é essa a função social da terra (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 06).
As manifestações de algumas autoridades favoráveis à causa dos
desapropriados e, principalmente, daquelas autoridades que legitimavam as
reivindicações sobre perdas e danos, evidenciavam a preocupação coletiva acerca
dos impactos econômicos decorrentes das desapropriações.
Para Amartya Sen, em suas discussões recentes, ao se avaliar o mecanismo
de mercado, o enfoque tende a recair sobre os resultados da produção, como, por
exemplo, a geração de rendas ou utilidades. Essa questão é relevante, contudo, há
outros aspectos que devem ser considerados.
O montante atualizado de R$ 611.758.164,57, consiste nas indenizações que
14 proprietários desapossados impetraram ao Poder Judiciário. Apesar da
relevância, esta cifra corresponde às indenizações requeridas apenas por uma
parcela dos desapropriados, os quais ingressaram com novas demandas junto ao
Poder Judiciário.
Retomando a abordagem de Amartya Sen, acerca do mercado privilegiar os
resultados da produção, advém a necessidade de suplementá-los com a criação de
oportunidades sociais básicas para a obtenção de equidade e justiça social (SEN,
2016, p. 190).
Embora ressalvada a necessidade de deduzir, do montante atualizado de R$
611.758.164,57, as verbas indenizatórias decorrentes da terra e das benfeitorias, o
saldo remanescente, correspondente ao somatório, no Quadro 2, dos valores
consignados nas colunas madeira e produção, totalizando R$ 502.531.850,21.
Evidencia-se o montante que presumivelmente deixou de circular na economia da
região, influenciando a classificação, do Planalto Norte Catarinense, dentre as
regiões do Estado que apresentam os menores índices de desenvolvimento.
Segundo os professores Walter Marcos Knaesel Birkner e Luciane Tischler Rudnick,
no artigo “Algumas reflexões sobre o desenvolvimento socioeconômico do planalto
norte catarinense”, o baixo índice de desenvolvimento pode ser assim explicado:
Os municípios que compreendem a região de Canoinhas (Bela Vista do Toldo, Irineópolis, Major Vieira, Porto União e Três Barras) apresentam indicadores socioeconômicos inferiores a outras regiões catarinenses. O modelo de desenvolvimento econômico baseado no extrativismo da erva-mate e da madeira resultou, nas últimas décadas, na estagnação
117
econômica da região. Outro fator que interfere na mudança dessa realidade é a falta de participação política e de organização da sociedade local, o que favorece as relações políticas clientelistas e a consequente falta de um projeto de desenvolvimento regional que realmente envolva toda a sociedade.
No contexto dos países em desenvolvimento, adquire importância crucial as
iniciativas do poder público visando à criação de oportunidades sociais. As
recompensas do desenvolvimento humano transpõem a simples melhoria na
qualidade de vida, e influenciam as habilidades produtivas das pessoas. Portanto, o
crescimento econômico, nesta conjuntura, depende de uma base amplamente
compartilhada (SEN, 2016, p.191).
Em consequência de uma política de privações, adotada pelo Estado naquela
região, os montantes apurados de perdas e danos, particularmente aqueles oriundos
da produção, certamente impactaram no crescimento econômico da região do
Planalto Norte Catarinense. Contudo, o maior impacto gerado por esta política
segregatória, sob a perspectiva do conceito de desenvolvimento de Amartya Sen,
consiste na limitação das liberdades reais destes agricultores, que passaram de
promissores produtores e agentes econômicos, à condição de famílias socialmente
excluídas.
O Jornal JMais, na edição digital publicada em 15 de dezembro de 2016,
divulgou uma análise comparativa entre as cidades do Planalto Norte Catarinense:
Na região, os dois maiores municípios – Canoinhas e Mafra – seguiram em carreira ascendente com crescimento, mas com uma variação significativa entre eles. Mafra cresceu 11% em relação a 2013, enquanto Canoinhas não passou do 0,8%. O maior crescimento registrado na região está em Três Barras (28%), que teve sua indústria impulsionada pelas expansões da MWV Rigesa (hoje WestRock) e da Mili SA. A maior queda foi sentida por Papanduva, que viu o PIB encolher 45% em 2014 se comparado a 2013. O secretário de Administração da cidade, Fábio José Padilha, disse não saber o motivo da queda considerando que não houve fechamento de indústria significativo em 2013.
A divulgação pela impressa de que a cidade de Papanduva apresentou a
maior queda do PIB, pode ser justificada em função da extensa área de terras
improdutivas, desapropriadas neste município para a instalação do CIMH. Se, ao
contrário, tivessem sido oportunizadas à atividade agropastoril, desenvolvidas pelos
desapossados, certamente teriam contribuído para elevar o percentual deste
indicador econômico.
118
O depoimento de um canoinhense, Sr. Wilson Wiese, publicado em sua
coluna virtual no dia 09 de abril de 201252, relata o impacto da desapropriação,
através do viés da impossibilidade de expansão urbana da cidade de Três
Barras/SC:
Agindo desta forma, o exército está atravancando o progresso e desenvolvimento urbano da cidade. O Exército no caso do Campo de Instrução, não finalizou o processo de desapropriação, apropriou-se da área, usa e abusa do desvio de finalidade, loca parte do imóvel e não permite que um município possa desenvolver sua área urbana, além de usurpar dos herdeiros o direito de recuperar sua posse e domínio. A prefeitura municipal de Três Barras buscou a aquisição da sede do C.I.M.H., na área urbana, com aproximadamente quatro alqueires (9,68 ha.), mas sempre encontrou resistências de toda ordem. Esta área permitiria o alargamento da cidade, onde poderiam ser feitos loteamentos e obras públicas, fato que hoje é impossibilitado. Questionado por telefone, o prefeito municipal Dr. Elói José Quege, diz que “vê com tristeza e inconformismo a atitude da corporação militar onde prestou serviços por oito anos”. Segundo ele, “preferem plantar soja e milho a oportunizar o crescimento da cidade.” Na entrada da área militar há uma placa que diz: “CIMH – Nestas terras um dia contestadas o seu Exército adestra-se para defendê-las”.
As palavras destacadas na placa afixada em frente à sede do CIMH, em certo
sentido, retratam a disposição do exército em privar e se defender de qualquer
reivindicação dos desapropriados. Sob esta perspectiva de limitação e expulsão das
terras, os desapossados parecem se imbuir das características peculiares e
marcantes, oriundas da herança dos caboclos, impondo resistência e oposição e
mantendo viva a luta pelo direito às suas terras.
4.3.2 A Luta Continua
A ocupação do Campo de Instrução pelas famílias de desapropriados, que
contou com o apoio de movimentos sociais, autoridades políticas e da imprensa,
ocorrida em 1980, representou a materialização da insatisfação daquelas pessoas.
Tal insatisfação evidenciou-se novamente nas audiências públicas, realizadas a
partir do ano 2000, com a presença de desapropriados e descendentes. Todavia,
essas manifestações não lograram o efeito desejado, ou seja, não foram suficientes
52
Disponível em http://megabuzz.com.br/denuncia_exercito_planta_soja_em_area_de_manobras_militares/, acesso em 17.02.2017
119
para convencer o Estado de que aquele ato desapropriatório, estabelecido em 1956,
privara aquelas pessoas de suas liberdades substanciais e instrumentais.
A atuação do exército, durante este longo período de disputas, seja no regime
militar ou democrático, demonstrou aos catarinenses e brasileiros a opressão que há
tempo o Estado impunha à região, através da violação de direitos fundamentais,
como a dignidade humana, o direito à propriedade, à moradia e, principalmente, a
privação de oportunidades.
Dos proprietários atingidos foram tolhidas as mais diversas formas de
liberdade. No entanto, a conduta do Estado não obliterou a esperança destes
desvalidos, cujas histórias vivenciadas são transmitidas de geração em geração,
reavivando injustiças e reafirmando a disposição da luta pela terra na região do
Planalto Norte Catarinense:
Hoje, 18 de dezembro, completam-se 30 anos da assinatura do Decreto de Desapropriação de nossas terras [...]. Hoje, 18 de dezembro faz um ano que estivemos em audiência com o Presidente José Sarney, reivindicando a devolução de nossas terras. Sem qualquer notícia final de solução e sem qualquer motivo para comemorar chegamos a mais um final de ano, debaixo de uma barraca, lutando por justiça e pela devolução das terras que legalmente nos pertencem. Durante estes 30 anos, lutamos, falamos, reivindicamos e não fomos ouvidos. Muitas vezes fomos chutados, presos e torturados nos quartéis, nos palácios, fomos ironizados, enganados e mandados embora [...]. Nos Tribunais fomos interrogados e humilhados... Nos últimos tempos nossa luta ficou conhecida no mundo inteiro. A solidariedade nacional e internacional é grande [...]. Somos desapropriados e não indenizados. Temos as escrituras e não podemos sequer passar por dentro de nossas terras [...]. Não queremos nada de graça. Queremos o que é nosso! [...]. Nestes 30 anos não houve autoridade civil ou militar, estadual ou nacional que não fosse procurada por nós [...]. Hoje estamos cansados, mudos, silenciosos e nossa tristeza e dor já está sendo passada em nosso sangue, geração em geração. A luta, a esperança e a resistência também [...]. Os avós lutaram hoje, os netos lutam amanhã e os bisnetos lutarão. Este conflito só terá um fim com a instauração da justiça!. (Carta redigida pela Comissão dos Desapropriados do Acampamento São João Maria) (PROCESSO N. 501.114/87, p. 560)
Ao contrário do que cogita o comando do exército brasileiro, os
desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes, em sua causa, não
buscam clemência, migalhas ou qualquer complacência. Entendem que a luta ao
longo dos anos é legítima, fundamentada na legislação e no cumprimento da
Constituição Brasileira, e que sempre estiveram predispostos a uma solução
negociável, inclusive submetendo várias propostas para apreciação.
120
Na percepção de Adam Smith, citado por Sen (2016), acerca dos méritos da
troca econômica, discutida na obra A riqueza das Nações, delineia que:
Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter nosso jantar, e sim da atenção que dá cada qual ao próprio interesse. Apelamos não para sua humanidade, mas para o seu amor-próprio [...] (SEN, 2016, p. 326)
Dada a propensão ao autoritarismo e ao descaso, nada foi feito. Os
desapossados, na visão do Estado, permanecem na condição de excluídos sociais,
concebidos como agentes problemáticos, em busca de causa sem propósito.
Entretanto, a história não permite ocultar a verdade. Os depoimentos,
manifestações e escritos, propagados de geração em geração, dão conta que a luta
destes desapossados é justa, legítima e imprescindível.
Com o propósito de enriquecer a abordagem sobre desenvolvimento,
proposta por Amartya Sen, a situação analisada nesta pesquisa pode ser reforçada
pela leitura “smithiana” que o autor faz :
Precisamos começar observando que Smith era profundamente cético quanto aos princípios dos ricos – nenhum ator (nem mesmo Karl Marx) criticou com tanta veemência as motivações dos economicamente privilegiados contra os interesses dos pobres. Muitos proprietários ricos – afirmou Adam Smith em Teoria dos sentimentos morais, publicada em 1759 – empenham-se, “com seus egoísmo e rapacidade naturais”, apenas por “seus desejos vãos e insaciáveis” (SEN,2016, P.325).
Não obstante, em muitas circunstâncias, outros podem se beneficiar dos atos
daqueles proprietários, pois as ações de diferentes pessoas podem ser
produtivamente complementares (SEN, 2016, p. 326). Através desta concepção,
ainda que argumentos de utilidade pública e segurança nacional justificassem a
desapropriação de terras – durante as décadas de 1950 e 1960 – suplantando o
direito à propriedade, tais argumentos, nas décadas subsequentes, não se
sustentam. O incremento na produção agropecuária e o avanço no desenvolvimento
humano, que poderia ter sido proporcionado pela área desapropriada,
indubitavelmente prepondera sobre o interesse do exército em treinar militares para
a guerra.
Esta pesquisa não tem a pretensão de encontrar possíveis soluções para a
situação de injustiça vivenciada pelos desapropriados do Campo de Instrução
Marechal Hermes, tampouco criticar a atuação negligente do advogado que impediu
121
o conhecimento do mérito final da questão pelo Superior Tribunal de Justiça, mas
dar clareza do que aconteceu nesta região. Pretende-se, tão somente, reconhecer
que a sociedade, as autoridades, e os governos local, regional e nacional, possuem
dificuldade de compreender o exercício das liberdades substantivas e instrumentais
indicadas por Amartya Sen, que integram o dinâmico processo de desenvolvimento
de uma região, mas que por imposição do capital e da relação de poder dos
dominadores continuam imperando sobre os aportes legais.
O ideal de liberdade, proposto por Amartya Sen, vai de encontro à atuação
limitadora do Estado na região, e, transcorrido mais de um século desde a
deflagração da Guerra do Contestado, decorridos mais de sessenta anos desde o
advento do decreto desapropriatório, a instalação e manutenção do Campo de
Instrução Marechal Hermes, em detrimento do direito à terra, reivindicado de modo
legítimo por dezenas de famílias, representa um autêntico paradoxo em tal
sociedade.
122
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente dissertação abordou a luta pela terra na região do Planalto Norte
Catarinense, enfatizando a resistência contra os abusos do capital estrangeiro no
Pós-Contestado. Seu objetivo principal consistiu em identificar as desapropriações
fundiárias para fins de composição do Campo de Instrução Marechal Hermes, em
Três Barras/SC, examinando os impactos para o desenvolvimento regional.
Diante deste contexto, após a análise dos aspectos históricos e jurídicos
decorrentes da estatização das empresas estrangeiras Brazil Railway Company e
sua subsidiária, a Lumber Company, procedeu-se ao exame da legalidade dos atos
licitatórios e verificou-se as condições desumanas a que foram submetidos os
desapropriados, durante a execução do ato de imissão de posse.
Em sintonia com o pensamento de Amartya Sen, que se propõe a definir
desenvolvimento a partir da supressão das privações de liberdades das pessoas,
eliminando restrições às escolhas e oportunidades e viabilizando a condição de
agentes inseridos em determinado território, a pesquisa pôde demonstrar que no
recorte territorial atingido pelo decreto expropriatório, ocorreram privações na
liberdade de escolhas e restrições à participação dos pequenos posseiros e
proprietários nas decisões políticas.
Anteriormente ao processo de desapropriação, aquelas pessoas estavam
inseridas na sociedade e contribuíam para a geração de emprego e renda.
Entretanto, a participação autoritária do Estado impossibilitou o exercício das
liberdades reais e substantivas daqueles desvalidos, que assumiram,
repentinamente, a condição de excluídos, imersos em um panorama social e
econômico modificado significativamente pelo ato desapropriatório.
Considera-se, por seu turno, que sob a justificativa velada de incrementar os
índices de crescimento econômico e interiorizar o progresso, o Estado autorizou a
instalação do capital estrangeiro na região. Em retrospecto, tal fato não se coaduna
com as concepções do economista indiano Amartya Sen, que afirma ser necessário
considerar diferentes argumentos em prol do processo de desenvolvimento, por
duas razões: (i) para avaliar o progresso, é preciso verificar, primordialmente, se
houve aumento das liberdades das pessoas; (ii) o alcance do desenvolvimento
depende, fundamentalmente, da livre atuação das pessoas, na condição de agentes.
123
Acerca das questões fundiárias no período Pós Contestado, os registros
históricos – concernentes aos atores que testemunharam os eventos – revelam que
a atuação do Estado conduziu aos mesmos abusos praticados na época da Guerra
do Contestado, outrora restringindo o direito à propriedade para construção de uma
estrada de ferro, as expensas da população local, permitindo que o capital
estrangeiro usurpasse as terras e exaurisse os recursos naturais.
Em que pese a similaridade dos conflitos – no período da Guerra do
Contestado, oriundo da restrição ao direito de propriedade a terra em favor do
capital estrangeiro e, no período Pós-Contestado, proveniente do ato de
desapropriação de terras em benefício da instalação de um campo de instrução
militar, – o transcurso de um século não foi suficiente para que o Estado suprimisse
políticas fundiárias dotadas de autoritarismo, consentindo para a continuidade do
processo de usurpação dos bens materiais e imateriais dos pequenos proprietários
de terras.
A admissibilidade desses pressupostos permite demonstrar que as
desapropriações de terras, realizadas na década de 1950, apresentam indícios de
ilegalidades e foram dotadas de uma celeridade inusitada ao Poder Judiciário. A
primeira evidência de ilicitude recai sobre a escolha da área a ser desapropriada,
que contou com a participação direta do Governador do Estado de Santa Catarina e
do licitante vencedor dos bens encampados da Lumber Company, o empresário
Alberto Dalcanalle.
A pesquisa bibliográfica demonstrou que o processo licitatório esteve envolto
em irregularidades, com bens arrematados por preços inferiores à avaliação de
mercado, por um consórcio de empresas administrado por Dalcanalle. Tendo em
vista o interesse do Ministério da Guerra em instalar, na região, um campo de
instrução e manobras militares, o empresário, que passara a ter laços de parentesco
com o governador – a partir do matrimônio contraído por seus filhos – apresentou a
proposta de ceder o patrimônio da Lumber Company, adquirido na licitação,
desvinculando-se dos passivos trabalhistas e da administração da empresa, apesar
de ainda manter, dentre o acervo de bens licitados da Lumber, extensa área de
terras na região de Santa Cecilia, bem como inúmeros pinheiros e madeiras de lei,
ou seja, bens destituídos de quaisquer contingências passivas.
Ainda por conta de um parecer da Procuradoria da República, esta pesquisa
comprovou que já havia, por parte do Governador Catarinense, a promessa de
124
desapropriar áreas contíguas àquelas adquiridas pelo Ministério da Guerra, para
suprir a demanda por uma área maior, destinada a manobras do exército.
Diante deste posicionamento do governador e da proximidade de interesses
com o empresário Dalcanalle, evidencia-se que o decreto desapropriatório – das
áreas destinadas ao Campo de Instrução Marechal Hermes – não foi fundamentado
no interesse coletivo e no bem estar social, mas no cumprimento de uma promessa
do Governador Catarinense, em decorrência da cessão do acervo passivo da
empresa Lumber ao Ministério da Guerra.
ROCHA (1992) reconhece que a propriedade é um direito inviolável e
sagrado, ninguém pode ser privado de seus bens, exceto quando a necessidade
pública, legalmente estabelecida, assim exigi-lo, embora através de uma
compensação justa e prévia.
A partir da hipótese de que a positivação do direito em relação ao instituto da
desapropriação deve ser atendida em todos os seus requisitos, e ainda, que os
interesses coletivos devem se coadunar com a utilidade pública da área, em
detrimento do individualismo, a violação da legislação, por parte do Estado,
compromete os direitos basilares e fundamentais dos indivíduos, diante da
prevalência de interesses particulares.
Sob este enfoque vislumbra-se, em conformidade com as ideias de Amartya
Sen, um retrocesso no desenvolvimento, pois o processo de desapropriação
resultou na privação de liberdade, que se caracteriza pela pobreza e a tirania, a
carência de oportunidades econômicas e a destituição social, bem como a
negligência dos serviços públicos e a intolerância ou a interferência excessiva de
Estados repressivos, restringindo a participação dos indivíduos nas decisões
políticas e sociais.
Não obstante o cumprimento de uma determinação judicial derivada da Lei
das Desapropriações, o governo não conduziu, de forma digna, o afastamento das
famílias de suas propriedades. Tratou aqueles desapropriados como preteridos e
despejou a maioria deles, ao relento, em condição de miserabilidade e sem qualquer
possibilidade de prosseguir com sua atividade agropastoril.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5, inciso XXIV, dispõe que a lei
estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade
pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
125
Entretanto, a análise, através de um viés jurídico dos documentos que
compuseram a Ação Ordinária de Reavaliação, cumulada com indenização por
perdas e danos, proposta pelos desapropriados, bem como os inúmeros pareceres
da Procuradoria da República, do Ministério do Exército, cartas, documentos oficiais
e demais manifestações constantes nas 600 páginas do Processo n. 501.114/87,
indicam que os valores arbitrados nos processos originários eram defasados e não
atendiam aos preceitos constitucionais.
Todavia, uma vez posicionada juridicamente e revestida de imparcialidade, a
pesquisa demonstra que não basta apenas ter direitos violados, é necessário
obedecer às regras processuais que ditam o correto procedimento na busca da
prestação jurisdicional.
Ainda que julgado improcedente em instâncias inferiores, antes do julgamento
final e derradeiro do processo, movido pelos desapropriados, era possível recorrer a
uma Corte Superior e eventualmente reverter as decisões desaforáveis. No entanto,
o recurso impetrado pela defesa dos proprietários não teve o seu mérito analisado
pelo Superior Tribunal de Justiça, por falta de preenchimento de requisito essencial
ao recebimento.
Portanto, no desfecho do processo, não se manifestou o entendimento da
Corte Superior sobre a matéria em discussão, por razão de não ter tido, sequer, um
julgamento de mérito, devido ao não cumprimento de regras processuais pela
defesa dos proprietários, permanecendo, então, a decisão das cortes inferiores, de
improcedência ao pedido de indenização.
Através da metodologia utilizada na pesquisa, foi possível compreender que o
direito foi aplicado, mas tal fato não significa que os interesses em conflito foram
solucionados de modo equilibrado. A luta e a resistência dos pequenos posseiros e
proprietários transcende o passar do tempo e a injustiça se perpetua justamente na
morosidade pelo cumprimento da lei.
Enquanto existir prevalência de interesses escusos, desmandos de
oligarquias e omissões de governos descompromissados com os menos
favorecidos, o desenvolvimento da região permanecerá limitado, pois impossibilita a
potencialização da capacidade constitutiva da liberdade daqueles que lutaram e
lutam pela terra, restringindo o alcance de uma maior participação na dinâmica do
desenvolvimento, influenciando a desintegração destes desvalidos no seio da sua
comunidade.
126
A região do Planalto Catarinense, nas décadas de 1960 a 1990, encontrava-
se em ascensão econômica, devido ao cultivo de batatas-semente, segundo a
APROSEC. No entanto, a desapropriação das terras, em prol do Ministério da
Guerra, expurgou um contingente de pessoas da atividade agrícola, contribuindo
para o decréscimo e estagnação dos índices de crescimento econômico da região.
Os documentos oficiais, disponíveis para a execução desta pesquisa,
permitiram dimensionar os expressivos valores que deixaram de circular na
economia local, em consequência do decreto desapropriatório e da falta de
pagamento das justas indenizações.
Nesse contexto, a questão norteadora do estudo foi corroborada pelo fato de
que o não pagamento das indenizações, ou, a realização de depósitos irrisórios,
acrescidos do lapso temporal de mais de 60 anos, durante o qual os proprietários
mantiveram a expectativa em receber, do Estado, a justa indenização pelas perdas e
danos suscitada no período, impactaram no desenvolvimento regional daquele
território, uma vez que a perda econômica de uma parcela dos desapropriados pôde
ser dimensionada através de perícia.
Por outro lado, sob a perspectiva de Amartya Sen, que considera outros
fatores além do crescimento econômico, é plausível afirmar que a perda da
identidade e assunção da condição de excluídos daqueles desapropriados, perante
a sociedade em que estavam inseridos, são imensuráveis. O fato de que as
riquezas, além de desejáveis, são meios admiráveis para ter mais liberdade para
conduzir o tipo de vida que almejavam e valorizaram, se coaduna com as
concepções daquele autor, que considera: “riqueza evidentemente não é o bem que
estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de alguma coisa”.
Contudo, ainda é possível mudar esta realidade. Se a aplicação do direito não
fez justiça aos desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes,
intensificando o sentimento de impotência destes “sem terras”, em contrapartida,
através da cooperação e da integração das instituições, viabilizar-se-ia a inserção
destes desvalidos ao lugar que merecem.
Enquanto a sociedade “fechar os olhos” para a questão fundiária e para a
desigualdade social no Brasil, não se cumprirá a função social da propriedade. E
num país, cuja extensa territorialidade permite a distribuição igualitária de terras, os
pequenos agricultores devem ser elevados à condição de agentes econômicos.
127
Dentre as alternativas para solucionar definitivamente esta questão fundiária,
a pesquisa conclui que a devolução das terras, pelo Ministério do Exército aos
herdeiros e sucessores dos desapropriados, no campo de um consenso
administrativo, é o caminho mais apropriado e justo para o alcance do
desenvolvimento e liberdade no plano regional. Para levar a efeito esta estratégia,
basta ao governo desarmar seu espírito, dialogar e se dispor a entender que a
região não precisa de manobras de guerra, apenas terras para serem cultivadas.
128
REFERÊNCIAS
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