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UNIVERSIDADE DO CONTESTADO - UnC PROGRAMA DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO REGIONAL CANOINHAS 2017

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UNIVERSIDADE DO CONTESTADO - UnC

PROGRAMA DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL

ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK

DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO

CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

CANOINHAS

2017

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ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK

DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO

CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Dissertação apresentado como exigência para a obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Regional do Curso Mestrado em Desenvolvimento regional pela Universidade do Contestado – UnC, Campus Canoinhas, sob a orientação do professor Dr. Alexandre Assis Tomporoski.

CANOINHAS

2017

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DISPUTAS FUNDIÁRIAS NO PÓS-CONTESTADO: A LUTA PELAS TERRAS DO

CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES E SEUS REFLEXOS SOBRE O

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

ANA CLAUDIA DE LEMOS FLENIK

Esta Dissertação foi submetida ao processo de avaliação pela Banca

Examinadora como requisito parcial para a obtenção do Título de:

MESTRE EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL

E aprovado na sua versão final em 24 de fevereiro de 2017, atendendo às

normas da legislação vigente da Universidade do Contestado – UnC e Coordenação

do Curso do Programa de Desenvolvimento Regional.

___________________________

Prof. Dr. Argos Gumbowsky

Coordenador do Programa

BANCA EXAMINADORA

____________________________

Presidente: Prof. Dr. Alexandre Assis Tomporoski

____________________________

Membro: Prof.Dr. Fabio Francisco Feltrin de Souza

____________________________

Membro: Prof. Dra. Maria Luiza Milani

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3

AGRADECIMENTOS

Pelo incentivo, companheirismo e persistência em não me deixar desistir

sempre que achava ser o caminho mais fácil, ao meu irmão de alma e coração,

Ernani Bortolini, minha maior gratidão à sua lealdade e generosidade em me provar

a cada dia, a importância do estudo e da leitura.

Ao meu filho Matheus, que por longas horas ficou sem a minha presença,

mas compreendeu a importância de que estudar sempre vale a pena, o meu eterno

amor.

Ao meu marido Hirohito, que através do meu exemplo se propôs a retomar

seus estudos. Por muitas vezes presenciou meu desânimo, meu cansaço, mas

agora dividirá a minha alegria pela conclusão deste trabalho.

A minha família, meus irmãos e minha mãe que se fizeram sempre presentes,

vibraram a cada etapa concluída e acreditaram no meu potencial, meu eterno

agradecimento.

Aos colegas de Mestrado, em especial a minha amiga Valéria, que tornava as

aulas e as viagens menos cansativas. A convivência durante estes dois anos me

proporcionou um encontro de almas e a certeza de uma amizade eterna.

Ao meu orientador, Professor Alexandre, meu maior incentivador, por vezes

me dizia que era possível, acreditou em mim quando nem eu mesma acreditava,

minha eterna gratidão, admiração e agradecimento.

A professora Soeli Regina da Silva Lima, que me forneceu vasto material para

a pesquisa e sempre se demonstrou interessada pelo resultado final, o meu

agradecimento.

E por fim, mas não menos importante, ao meu Deus, que me concebeu a vida

e a capacidade para concluir mais uma etapa de estudos. A Nossa Senhora

Aparecida, que sempre me guiou durante as várias viagens rumo a Marcílio Dias.

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LISTA DE ABREVIATURAS

APROSESC ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTOS E SEMENTES DO ESTADO DE

SANTA CATARINA

CC CÓDIGO CIVIL

CF CONSTITUIÇÃO FEDERAL

CIMH CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES

CPC CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

DECOM SERVIÇO ESPECIAL DE DEFESA COMUNITÁRIA

EMBRAPA EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA

EPAGRI EMPRESA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA E EXTENSÃO

RURAL

IBDF INSTITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL

IDH ÍNDICE DESENVOLVIMENTO HUMANO

IDHM ÍNDICE DESENVOLVIMENTO HUMANO MUNICIPAL

INCRA INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA

AGRÁRIA

ONU ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Mapa da divisão da área por glebas e propriedades................................ 49

Figura 02: Gráfico do tamanho de área (em há) das propriedades

desapropriadas .......................................................................................................... 54

Figura 03: Audiência Pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva

em 14 de outubro de 2014 ........................................................................................ 71

Figura 04: Invasão do Campo de Instrução Marechal Hermes ................................. 98

Figura 05: Militar, montado sobre um tanque de guerra, ouvindo as reivindicações

dos invasores. ........................................................................................................... 99

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de

1994 ........................................................................................................................ 114

Quadro 2: Atualização de perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no

ano de 1994 ............................................................................................................ 115

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8

2 PROPRIEDADE ..................................................................................................... 15

2.1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE ..................................................................... 15

2.1.1 O Direito de Propriedade na Legislação Brasileira ........................................... 16

2.1.1.1 O Regime Militar ............................................................................................ 24

2.1.2 A Função Social da Propriedade ...................................................................... 27

2.2 O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO ............................................................. 29

2.3 CONTESTADO ................................................................................................... 32

2.3.1 O Capital Estrangeiro e a Construção da Ferrovia ........................................... 37

2.3.2 A Decadência da Lumber e seu Impacto na Região ........................................ 44

3 CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES ................................................ 48

3.1 DA ESTATIZAÇÃO DA LUMBER À INSTALAÇÃO DO CIMH: ........................... 49

3.2 EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO ADMINISTRATIVA ......................................... 62

3.2 UMA NOVA TENTATIVA DE SOLUÇÃO JUDICIAL ........................................... 72

4 DESENVOLVIMENTO ........................................................................................... 80

4.1 Das Privações das Liberdades Substantivas e Instrumentais, Consequências da

Desapropriação ......................................................................................................... 88

4.2 O Acampamento “São João Maria” ..................................................................... 95

4.3 DENÚNCIAS DE IRREGULARIDADES E INJUSTIÇAS ................................... 102

4.3.1 Consequências Econômicas da Desapropriação ........................................... 109

4.3.2 A Luta Continua .............................................................................................. 118

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 122

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 128

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1 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa surgiu a partir da curiosidade em compreender as

disputas fundiárias no Pós-Contestado, a luta pelas terras desapropriadas do Campo

de Instrução Marechal Hermes e seus reflexos sobre o desenvolvimento na região.

Durante o período escolar, na adolescência vivenciada na cidade de

Canoinhas, os estudos sobre a Guerra do Contestado não foram suficientes para

dimensionar a importância dos movimentos de resistência ao Estado e ao capital

estrangeiro iniciado no século XX e com reflexos no século seguinte, influenciando

na formação do território norte catarinense.

Após a conclusão da graduação no curso de Direito e a prática da advocacia

exercida em outras regiões, o ingresso no Programa de Mestrado em

Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado proporcionou a retomada

da temática através dos estudos e aprofundamento conceitual e teórico que

explicam como a luta dos posseiros e pequenos proprietários de terra configurou a

região do Planalto Norte Catarinense e impactou o (sub) desenvolvimento da região.

Por um viés jurídico foi possível conhecer a história e os reflexos das

questões fundiárias, a luta antioligárquica e a resistência aos abusos do capital

estrangeiro e seu impacto no Pós-Contestado. Os acontecimentos históricos, ao

longo do tempo, são responsáveis pela formação do território e da identidade do seu

povo e a luta e a resistência são características marcantes e arraigadas nos

minifundiários desta região.

Assim, através dos estudos e aprofundamentos teóricos apresentados pelo

economista indiano Amartya Sen, especificamente sobre o seu escrito

“Desenvolvimento como Liberdade”, identifica-se, num primeiro momento, a

semelhança entre a temática e a proposta do autor. É a partir deste encontro, entre

a análise histórica e jurídica da luta pela terra com os estudos das liberdades

substantivas e instrumentais como fim e meio de desenvolvimento, que se iniciaram

as inquietações e questionamentos sobre as garantias elementares e constitucionais

dos cidadãos em contraposição à prática reiterada do Estado de políticas dotadas de

autoritarismo, desprovidas de qualquer participação popular, gerando privações nas

escolhas e oportunidades dos norte-catarinenses.

A semelhança entre o conflito armado da Guerra do Contestado e a luta pela

terra Pós-Contestado na mesma região se configura na similaridade das partes

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envolvidas e na resistência dos pequenos agricultores em entregar passivamente

suas terras, seja ao capital estrangeiro ou ao Estado. Não aceitam a violação dos

seus direitos e se socorrem, neste século, não a uma guerra armada, mas na

confiança que depositam na Justiça e nas instituições para a solução do conflito.

O impasse fundiário estabelecido entre os anos de 1956 até os dias atuais

ainda é resquício da inserção do capital estrangeiro no início do século XX na região

e envolve a empresa Brazil Railway Company e sua subsidiária Lumber Company,

situada na região de Três Barras/SC. Por descrédito público e interesse nacional foi

estatizada através do Decreto-Lei n. 2.346/40 e culminou na transferência de parte

do patrimônio da empresa estrangeira ao Exército e posteriormente na

desapropriação de áreas contíguas para a instalação do Campo de Instrução

Marechal Hermes.

A licitação dos bens encampados, a legalidade dos atos de transferência do

patrimônio da empresa estrangeira ao Ministério da Guerra, a participação do

Governo Catarinense na indicação da área a ser desapropriada, a forma violenta

como foi cumprido o ato de expulsão dos agricultores de suas terras, bem como o

não cumprimento da Constituição Federal de 1988 no que tange ao pagamento de

justas indenizações, foram motivos de calamidade social na região e configuram

fortes indícios de satisfação de interesses escusos de uma minoria em detrimento do

povo norte catarinense.

Partindo da concepção de que o desenvolvimento pode ser considerado como

a eliminação das privações de liberdade que possam limitar as escolhas e as

oportunidades das pessoas de exercerem sua condição de agente inserido em

determinada sociedade e em determinado território (SEN, 2016), constitui-se o

seguinte problema: Como o processo de desapropriação das terras utilizadas

para a formação do Campo de Instrução Marechal Hermes, em Três Barras/SC,

impactou sobre o desenvolvimento daquele território?

Em um primeiro olhar, o que ocorreu na desapropriação de extensa área

produtiva de terras no Planalto Norte Catarinense para a instalação de um Campo

de Instrução de forma alguma condiz com os preceitos constitucionais vigentes à

época.

Diante desta ilegalidade, a justificativa desta pesquisa se apresenta sob dois

enfoques: teórica e prática.

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A relevância teórica do estudo, por meio da análise desta temática, se

configura no aprofundamento e conhecimento do contexto fundiário na região para

que outros pesquisadores usem como base e ampliação do tema em pesquisas

futuras. Trata-se de uma contribuição com a ciência do desenvolvimento, a partir da

análise dos aspectos sociais, políticos e jurídicos de determinado território em

processo de desenvolvimento, comparando com a abordagem da liberdade como

fim e meio de desenvolvimento.

Para a ciência do direito, a análise aprofundada das etapas processuais,

considerando o posicionamento da Procuradoria da República em confronto com os

argumentos dos agricultores, a presente pesquisa se mostra relevante

principalmente para o direito civil e processual civil, uma vez que esclarece os

pronunciamentos judiciais de órgãos inferiores e Tribunais Superiores do Poder

Judiciário, através do conhecimento do teor dos documentos que compõem o

Processo n. 501.114/87 e suas aproximadas 600 páginas.

A jurisdição exerce-se processualmente. Mas não é qualquer processo que legitima o exercício da função jurisdicional. Ou seja: não basta que tenha havido um processo para que o ato jurisdicional seja válido e justo. O método-processo deve seguir o modelo traçado na Constituição, que consagra o direito fundamental ao processo devido, com todos os seus corolários [...] (DIDIER JR, 2016, p. 30)

Em que pese o estudo aprofundado deste conflito manter-se no plano

bibliográfico, a pesquisa se apresenta com importante relevância prática, pois possui

a pretensão de descritivamente apontar se o Estado atuou nos exatos termos da

legislação, considerando as regras da Desapropriação por Utilidade Pública. Ainda,

analisa se limitou os pequenos posseiros e proprietários de terra às escolhas e

oportunidades de se inserirem como agentes naquela sociedade, considerando a

possibilidade de desenvolvimento nestas condições.

A pesquisa científica trará a oportunidade de esclarecer se o Estado agiu de

forma opressora e retirou daquela região a possibilidade de desenvolvimento através

da exploração produtiva e rentável dos recursos naturais da área, com a

investigação do material humano e documental presente à época.

Ainda, os resultados apontados na presente pesquisa servirão para trazer a

lume à questão processual que paira sobre a expectativa dos proprietários em

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receber a indenização por perdas e danos e dimensionar os efeitos desta longa

disputa fundiária.

A partir destas concepções, a pesquisa poderá contribuir na divulgação deste

impasse fundiário, o qual atravessa longos 60 anos, para o conhecimento da

sociedade local, regional e nacional da realidade vivenciada pelos desapropriados e

suas expectativas em busca de justiça. Pode, também, tornar-se objeto de ações

articuladas dos agentes e instituições para a mudança do cenário social atual da

região.

É necessário pesquisar se a atuação do Estado na região do Planalto Norte

Catarinense criou condições para que o indivíduo se reconheça como pessoa

humana e sob tal pressuposto, contemplou as liberdades reais, atingindo o objetivo

do desenvolvimento através da abordagem do autor.

O objetivo consiste em identificar as desapropriações fundiárias para

composição do Campo de Instrução Marechal Hermes em Três Barras/SC, que

configura como parte do processo de luta pela terra na região do Contestado e seu

impacto sobre o desenvolvimento regional.

Para tanto, deverá descrever o processo histórico de disputa fundiária na

região do Contestado com especial atenção à atuação do Estado em diferentes

contextos, bem como explicar a trajetória da disputa legal pelas terras do Campo de

Instrução Marechal Hermes. Ainda, pretende examinar o impacto da disputa pelas

terras do CIMH no desenvolvimento da região com a perspectiva do

desenvolvimento como resultante do exercício da liberdade.

A hipótese que direciona a pesquisa se apresenta pela seguinte proposição:

Se a Constituição Federal e a Legislação Ordinária garantem a individualidade do

direito à propriedade e somente o interesse coletivo e o bem estar social autorizam

mediante uma justa indenização a quebra deste individualismo, então identifica-se a

presença autoritária do Estado e a atuação limitadora dos indivíduos, quando se

viola a norma regulamentadora. Desta forma, haverá antagonismo entre a condição

de excluídos destes desapossados e o principal fim do desenvolvimento, na

abordagem assentada na liberdade.

Na obra dos juristas Ferreira; Gonçalves (2008) a propriedade só existe se o

Estado a mantém. Dos direitos fundamentais talvez seja a propriedade o que mais

deva ao Estado. De fato, o senhorio do homem sobre as coisas, numa larga medida,

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é uma benesse do Estado que o protege contra a cobiça dos outros homens. Sem

polícia, sem justiça, de que valeria a propriedade?

Na perspectiva do autor, a luta pela terra desapossada é justa e legalizada. O

conflito fundiário estabelecido na região causou o aumento da desigualdade social, e

a justificativa de utilidade pública do ato expropriatório não parece ter atendido a

função social de bem estar coletivo ou segurança nacional, necessitando de um

maior esclarecimento sobre como se deu o processo de luta pela terra ao longo de

todo o lapso temporal.

Sob tais pressupostos, torna-se possível questionar as condições de

desenvolvimento desta região sob as perspectivas da necessidade de expansão das

liberdades e as contradições inerentes da omissão do Estado em solucionar o

problema social gerado pela desapropriação.

Desta forma, a partir da análise dos procedimentos adotados pelos

desapropriados, da invasão e interferência dos movimentos sociais (Movimento dos

Sem Terra) e da participação das mais diversas autoridades ao caso, será possível

analisar e correlacionar à prática de desenvolvimento humano, social, político e

econômico da região, o que talvez, poderá contribuir não só na busca de uma

solução ao impasse, mas na melhoria dos índices de desenvolvimento humano, de

qualidade de vida e a diminuição da desigualdade social e fundiária presente no

território em que estes estão inseridos.

No tocante à estrutura capitular da dissertação, assim se apresenta: o

primeiro capítulo procura discorrer sobre a evolução histórica do instituto da

propriedade, considerando o paradoxo entre o individualismo e a supremacia do

bem estar coletivo. Para tanto, vale-se do diálogo proposto por Motta e Zarth (2008)

que discorrem sobre a importância da questão do acesso a terra como uma das

principais preocupações da histografia internacional, com a intenção de deslindar as

variadas formas de seu acesso. Nakamura (2013) contesta a propriedade absoluta

afirmando que a propriedade é um direito natural, o qual deve ser exercido de

acordo com uma função social, não só em proveito do titular, mas também em

benefício da coletividade. A propriedade deve ser produtiva e útil. Um bem não

utilizado ou mal utilizado é constante motivo de inquietação social. A má utilização

da terra e do espaço urbano gera violência. Ainda, será apresentada a legislação

brasileira acerca do tema e a importância da Lei de Terras (Lei n. 601/1850) como

célula embrionária do instituto da propriedade.

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Em continuação, é feita uma análise sobre o Instituto da Desapropriação, o

surgimento e permanência nas Constituições Brasileiras, com destaque aos

preceitos da Carta Magna de 1946, vigente à época desta temática, e a legislação

ordinária através do Decreto-Lei n. 3.365/41, que rege as regras a serem aplicadas.

Segundo Venosa (2011) sempre se admitiu a possibilidade do Estado intervir no

domínio privado e o crescente intervencionismo no patrimônio privado tornou o

problema mais patente. A desapropriação diz respeito também à utilização social da

propriedade, a qual deve passar ao domínio do Estado em razão de interesse social

que supera o interesse individual, justificando o ato de desapropriação como ato de

soberania.

Finalizando o capítulo, apresentam-se as razões e as consequências da

inserção do capital estrangeiro e a construção da Ferrovia São Paulo-Rio Grande, as

quais modificaram o panorama social, econômico e político da região. A partir do

intercurso dialógico entre Thomé (1993) e Machado (2001) mostra-se como a região

do Contestado passava no início do século XX por um severo processo de

transformação, caracterizado principalmente pela penetração de novas forças

políticas e econômicas que impôs novas relações. Encerra-se o capítulo

correlacionando as similaridades e as consequências que a Guerra do Contestado

gerou no território do Planalto Norte Catarinense.

Partindo destas considerações, no segundo capítulo coloca-se em discussão

o procedimento e a legalização da estatização da empresa estrangeira Brazil

Railway Company e sua subsidiária Lumber Company e a transferência de parte do

patrimônio ao Ministério da Guerra para a instalação do Campo de Instrução

Marechal Hermes. A partir da análise dos depoimentos, jornais e documentos

apresentados por Lima (2016) e Tomporoski (2016), colocam-se em debate as

condições, interesses e consequências que o capital estrangeiro e a imissão de

posse de terras produtivas pelo Exército causaram nos pequenos posseiros e

proprietários da região.

No terceiro e último capítulo procura-se demonstrar a relação entre a luta pela

terra, a liberdade e o desenvolvimento. Inicialmente apresenta-se a abordagem de

Amartya Sen quanto ao conceito mais social de desenvolvimento, considerando as

liberdades reais e as privações do indivíduo na sociedade, para, em seguida,

relacioná-la ao (sub) desenvolvimento da região devido à improdutividade de

extensa área de terras e a baixa qualidade de vida que ficaram expostos os

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desapropriados. Para encerrar, têm-se os depoimentos, notícias divulgadas pela

imprensa e apelos que definem o posicionamento da questão pelos desapossados,

bem como a justificativa para as decisões desfavoráveis do Poder Judiciário no

desfecho dos processos judiciais.

Destarte, a pesquisa sugere uma leitura desprovida de qualquer tese

defensiva inerente ao exercício da advocacia, pois será necessário conceber os

desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes como indivíduos iguais

em direitos e participações nas decisões políticas fundiárias da região. Já com

relação ao Estado e o direito de desapropriar sob a justificativa de utilidade pública,

é necessário considerar a legislação vigente à época, a supremacia da coletividade

e da segurança nacional em detrimento do individualismo da propriedade. Mas na

atual realidade, têm-se mais de 2000 mil pessoas, direta ou indiretamente, atingidas

pelo ato expropriatório, vivendo na expectativa de retrocessão de suas terras ou

pagamento justo de indenizações para compensar ou amenizar a extrema miséria,

pobreza e a falta que a terra lhes fez para proporcionar uma vida digna a si e aos

seus familiares, já que o Estado não compreende o despropósito em que esta

sociedade está inserida e que reflete nos limites do desenvolvimento.

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2 PROPRIEDADE

2.1 O INSTITUTO DA PROPRIEDADE

Ao longo da história o instituto da propriedade assumiu diferentes modelagens

até se consolidar como direito exclusivo e irrevogável, porém não absoluto. Deste

modo, a propriedade tornou-se a espinha dorsal do direito privado, contudo com

prevalência do bem comum ante a individualidade.

Essa modelação, representada atualmente pela função social da propriedade,

não prevalecia, quando estava sob a influência das revoluções burguesas e do

liberalismo, apresentando, naquela época, o status individualista.

A discussão acerca da fundamentação do direito à propriedade, já se iniciava,

para Locke, diante das concepções de Hobbes – que concebia a propriedade como

direito positivo; ou a doutrina apresentada por Pufendorf que a adotava como “direito

puramente natural”.

Na formulação de Locke, o direito à propriedade é um direito natural e

inalienável, servindo para a criação do governo civil e para a atribuição de direitos

políticos dos indivíduos. Tratando-se da aquisição da propriedade, o autor considera

que o trabalho é uma propriedade inalienável e que serve como instrumento para se

obter a propriedade privada. Como “Deus deu a terra para todos”, haveria uma

igualdade no direito à terra: sendo a propriedade um direito natural (pré-existente ao

Estado) que pode ser alcançado através da razão e do individualismo1, cita Enzo

Bello no artigo “A teoria política da propriedade para Locke e Rousseau: uma análise

à luz da modernidade tarde” (p.3).

Nota-se que a propriedade tornou um direito sagrado, inviolável e uma

exteriorização da própria pessoa, tendo como única exceção a necessidade pública

que prevalecia diante do individualismo.

A consagração da teoria individualista da propriedade foi repetida na

Constituição Francesa de 1791, no artigo 544 que publica o conceito: “A propriedade

é um direito de usar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, com a condição

de não fazer uso proibido pelas leis ou regulamentos” (ROCHA, 1992, p. 24).

O modelo francês que destacou o individualismo da propriedade passou a ser

1 Nesse sentido, Locke assevera que “a terra é mais produtiva quando apropriada individualmente”

(J.LOCKE, op. cit. p.37)

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inserido nas legislações ocidentais, as quais seguiram o conceito como direito

fundamental. Todavia, com o passar do tempo, a propriedade absoluta foi perdendo

força, novos fatores de ordem econômica, social e política resultaram na diminuição

dos poderes do proprietário e o Estado Liberal não conseguiu contemplar a tarefa de

assegurar a prestação dos serviços fundamentais individuais.

Uma vez estabelecida a democracia, presente na maioria das nações, o

Estado precisou assumir esta tarefa de proteção à sociedade como um todo e não

como um somatório de individualidades. Para tanto, interveio nas relações privadas

e no direito de propriedade dos particulares.

Com o surgimento da Democracia Representativa Ocidental, o direito à

propriedade passou a depender de proteção e intervenção, ao passo que poderia

ser esbulhada a qualquer momento. A propriedade somente se mantém se o Estado

a garantir.

Dos direitos fundamentais talvez seja a propriedade o que mais deva ao Estado. De fato, o senhorio do homem sobre as coisas, numa larga medida, é uma benesse do Estado que o protege contra a cobiça dos outros homens. Sem polícia, sem justiça, de que valeria a propriedade? (FERREIRA; GONÇALVES, 2008 p.309).

Deste modo, o direito à propriedade no estado contemporâneo não é absoluto

e não tem mais aquela configuração individualista de outrora, coaduna com o ideal

liberal, mas se amolda à supremacia do interesse público pelos ditames da justiça

social.

2.1.1 O Direito de Propriedade na Legislação Brasileira

No ano anterior à Independência, o Brasil detinha a condição de Reino Unido,

e a partir de Decretos de Dom Pedro I surgiram mudanças importantes e

significativas em relação à distribuição de terras.

Por sua vez, em 18222 foi proibida a cessão de terras através do Regime de

Sesmarias 3 , e esta condição permaneceu inalterada até a regulamentação da

2 Resolução 17 de julho de 1822 (CAVALCANTI, 2003, p. 02).

3 Entre 1702 a 1822, Portugal decide por estabelecer as Sesmarias como regime básico de gestão

fundiária, que tem como característica a inexistência da propriedade absoluta da terra, com a Coroa transferindo ao sesmeiro o usufruto condicionado ao cumprimento de algumas exigências, como o cultivo, a mediação, a demarcação e a posse.

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questão fundiária através da Lei de Terras (1850). Segundo Quaresma (2010), neste

período de limbo (1822 – 1850) a única forma de acesso a terra era pela posse.

Todavia, a questão da distribuição de terras no Brasil se tornava algo

complexo após a suspensão do Regime de Sesmarias, e havia a necessidade de

regularizar as áreas apossadas após a Independência do Brasil, bem como

organizar as doações de terras do início da colonização portuguesa.

Segundo Cavalcanti (2003), neste momento da história brasileira o posseiro

passava a ter protagonismo no cenário social, pois a Resolução o reconhecia como

parte integrante do desenvolvimento da agricultura, e muitos viam no regime de

sesmarias o responsável pela miséria e pelo atraso da agricultura no país. A nova

legislação fundiária promoveria alterações fundamentais nesta questão.

Angelo (2007), em seu artigo sobre a Lei de Terras, retrata o contexto

existente em 1850 e a necessidade da regulamentação da legislação:

Entre os séculos 16 e 18, contudo, as capitanias foram, pouco a pouco, voltando para o domínio da Coroa portuguesa, através da compra ou do confisco. Afinal, as terras não eram de propriedade dos donatários, que tinham apenas a posse sobre os territórios, mas sim de Portugal. Em 1759, sob determinação do Marquês de Pombal, primeiro-ministro da Coroa, as capitanias hereditárias foram finalmente extintas e o Brasil passou a dividir-se em capitanias reais, doadas a fidalgos e religiosos portugueses. Nesse contexto, portanto, é que foi sancionada a Lei de Terras de 1850, a fim de regularizar a questão fundiária e responder, ao mesmo tempo, aos novos desafios colocados pelo fim do tráfico negreiro e a necessidade de mão-de-obra estrangeira. (2007, p. 2)

Para Cavalcanti (2003), a organização política do país gerou um caos diante

do descontrole da distribuição de terras, fato este que motivou inúmeros debates.

Uma das vozes ativas neste contexto foi a de José Bonifácio de Andrada e Silva, um

dos pioneiros a apresentar um projeto de revalidação das concessões de Sesmarias

e para regularização da posse. Segundo ele, “não era possível apenas terminar com

o regime de Sesmarias sem antes criar políticas para normalizar as terras”.

Em seu projeto, José Bonifácio propunha também beneficiar os europeus pobres, índios, os mulatos e os negros forros. Porém este projeto nunca saiu do papel. [...] Tratava-se de um projeto de intervenção pública na distribuição de terras e, portanto, limitava o poder dos senhores e possuidores de terras, que estariam submetidos aos interesses mais gerais da coroa. Suas propostas não foram levadas adiante (CAVALCANTI, 2003, p. 02).

O modelo de Sesmarias permaneceu como forma de distribuição de terras até a Independência do Brasil e as terras que não foram doadas neste modelo continuava pertencendo à Coroa Portuguesa.

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Mesmo com o crescimento descontrolado do número de posseiros após a

cessação do Regime de Sesmarias surge, após sete anos do projeto proposto por

José Bonifácio, Padre Diogo Feijó, responsável por outro projeto para a solução da

questão fundiária no Brasil. Segundo Feijó, o parcelamento das terras devia basear-

se na unidade familiar; em outras palavras, era a consolidação de pequenas

unidades familiares, que aumentavam à medida que crescia o número de

componentes, incluindo os escravos (CAVALCANTI, 2003, p. 03).

Similares, os projetos de Bonifácio e Feijó tinham cunho social e inclusivo,

visavam conter os abusos de sesmeiros e dos grandes posseiros, que detinham

grandes glebas de terras, mas não as empregavam na produção.

No entanto, o projeto que foi enviado à Câmara dos Deputados do Império em

1843, e posteriormente tornou-se a célula embrionária da legislação fundiária no

Brasil, não foi o pioneiro que levantara a questão social do acesso a propriedade,

mas outro, de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário Miranda

Ribeiro. Estes unificaram as ideias apresentadas por Bonifácio e Feijó, baseando-se

no principal objetivo de promover a imigração de trabalhadores pobres.

A Lei de Terras, denominação atribuída a Lei n. 601/1850 foi sancionada pelo

Imperador Dom Pedro II duas semanas antes da Lei Eusébio de Queiróz, a qual

abolia o tráfico de escravos no Brasil. Com o intuito de suprir a necessidade de mão

de obra dos fazendeiros, que se opunham à mão de obra nacional por entender

desqualificada, e também devido ao alto índice de mortalidade dos ex-escravos

restantes no país, a legislação sancionada pelo Imperador tratou de incentivar a

importação de trabalhadores estrangeiros, imigrantes particularmente vindos da

Europa. Entre outros pontos, o projeto propunha: a compra de terras devolutas -

desocupadas - por meio de pagamento à vista, em dinheiro e sob altos valores; a

legalização das sesmarias doadas até 1822 e das áreas que a partir daquela data

estivessem ocupadas por mais de um ano; o registro de todas as terras num prazo

de seis meses, sob pena de confisco; a medição e demarcação dos terrenos, sob

risco de serem considerados áreas devolutas, e a criação de um imposto sobre as

terras, que seriam confiscadas em caso de não pagamento por três anos

consecutivos ou alternados.

Tratava-se de um projeto polêmico, com a imposição de penas em caso de

descumprimento, inclusive a expropriação, e sinalizava um regime tributário na lei.

Seguindo ao Senado, o projeto foi aprovado com algumas mudanças do texto

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original, que passou a atender aos interesses dos grandes proprietários ante a

questão social inicialmente proposta e evidenciava a força política dos latifundiários

na discussão. No texto final, os senadores suprimiram a expropriação e a cobrança

de imposto territorial e substituíram pelo pagamento de multa em caso de não

cumprimento da lei.

A terra, nessa nova perspectiva, deveria transformar-se em uma valiosa mercadoria, capaz de gerar lucro, tanto por seu caráter específico quanto por sua capacidade de gerar outros bens. Procurava-se atribuir à terra um caráter mais comercial e não apenas um status social, como era característico da economia dos engenhos do Brasil Colônia (CAVALCANTI, 2003, p.01)

A Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 teve como principal destaque a forma

única de aquisição de terras. Estava definitivamente encerrada a obtenção de terras

pelo Regime de Sesmarias ou pela posse ilegal, senão apenas pela compra das

terras devolutas 4 , consideradas: aquelas que não se aplicavam ao uso público

nacional, provincial ou municipal; as que não se achavam no domínio particular de

qualquer título legítimo e nem que haviam sido sesmarias e outras concessões do

Governo Geral ou Provincial; ou aquelas que não se achavam doadas por sesmarias

ou outras concessões do Governo, mas que foram revalidadas por esta Lei.

Eis o significado crucial da Lei das Terras: até 1850 poder-se-ia falar de posseiro, concessionário ou sesmeiro, mas não de proprietário (nos moldes em que modernamente esse termo é compreendido). A partir de então, finalmente, seria possível ver emergir de modo claro a figura do proprietário, quer fosse o proprietário particular quer fosse o proprietário Estado (FONSECA, 2003, p.109)

Somente a partir da Lei de Terras implantada no Brasil é que as posses e

sesmarias passaram a ser registradas em cartório, através do Decreto n.1318, de 30

de janeiro de 1854. Os registros de terras no Brasil eram feitos, até então, nas

paróquias da igreja que, nesta época colonial, era unida oficialmente ao Estado.

Surgiram como documentos a identificar informações acerca do modo que as

pessoas viviam, se aquela terra havia sido herdada, ocupada ou doada, a área

limítrofe, a região onde se localizava e como era constituída a mão de obra.

4 No período colonial, o termo “terra devoluta” era empregado para designar a terra cujo cessionário

não cumpria as condições impostas para sua utilização, o que ocasionava a sua devolução para quem a concedeu: a Coroa. Com tempo, esse termo passou a ter o significado de vago (CAVALCANTI, 2003, p. 04-05).

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A Lei das Terras criou normas e parâmetros sobre a posse, manutenção, uso

e comercialização da terra. O maior objetivo da criação desta lei foi estabelecer a

compra como única forma de obtenção da propriedade da terra, desconsiderando a

doação e os sistemas de posse para aquisição da propriedade privada. Com isso o

governo pretendia arrecadar mais impostos e taxas com a necessidade de registro

das terras.

Esses recursos teriam como destino o financiamento da imigração

estrangeira, voltada para a geração de mão de obra, principalmente, para as

lavouras de café. Além disso, também se pretendia dificultar a compra ou posse de

terras por pessoas pobres, favorecendo o uso destas para fins de produção agrícola

voltada para a exportação. Esse foi o velado objetivo alcançado pelo governo, pois

esta lei provocou o aumento significativo nos preços das terras no Brasil e favoreceu

os grandes proprietários rurais, que passavam a ser os únicos detentores dos meios

de produção agrícola, principalmente a terra, no Brasil.

Antes da promulgação da Lei de Terras, os lotes eram cedidos gratuitamente aos colonos, que se instalavam por conta própria, por conta do governo ou por conta das companhias de colonização. Após essa lei, em regra, o governo cedia gratuitamente as terras às companhias, que por sua vez as revendiam aos imigrantes em condições lucrativas (CAVALCANTI, 2003, p. 05).

Segundo Angelo (2007) a promulgação da Lei não alcançou o seu real

objetivo. Embora tenha sido um passo importante na regulamentação da questão

fundiária, a Lei de Terras teve pouca consequência prática, com exceção da

dificuldade criada às camadas mais pobres da população e aos imigrantes, que

também em decorrência do processo de concentração fundiária, viram-se obrigados

a trabalhar nas grandes fazendas de café.

Grande parte das sesmarias e das posses não foi legalizada; as terras do Império continuaram a ser ocupadas de forma ilegal e sistemática; boa parte das propriedades nunca foi medida nem demarcada; as multas, quando aplicadas, poucas vezes foram pagas. Na medida em que elevou o preço da terra, exigindo também o pagamento à vista e em dinheiro no ato da compra, a lei n. 601 contribuiu para manter a concentração fundiária que marca a realidade brasileira até hoje (ANGELO, 2007, p. 03)

Costa sintetiza o estatuto jurídico da terra em dois momentos distintos:

Quando a terra era uma doação real, o rei tinha o direito de impor certas

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condições, regulamentando o seu uso, sua ocupação e limitando o tamanho do lote e o número de doações recebidas por cada pessoa. Quando a terra tornou-se uma mercadoria adquirida por indivíduos, as decisões concernentes à sua utilização passaram a serem tomadas por esses mesmos indivíduos (1987, p.129)

A Lei de Terras representou um importante marco para a consolidação do

poder dos grandes proprietários e para a preparação do país para o fim do cativeiro

e a imigração de trabalhadores europeus. Havia um regime de terras livres e de

trabalho cativo que, tendo em vista o fim do tráfico africano e a necessidade do

trabalho livre, deveria ser substituído por um regime de terras cativas, para a

sobrevivência da grande propriedade. Se as terras continuassem livres para libertos,

nacionais e imigrantes, não haveria braços disponíveis para as grandes lavouras. É

inegável que a regularização das terras seria benéfica aos proprietários (MACHADO

2011, p.05).

A Lei de Terras foi a legislação agrária que tratou sobre a aquisição e

distribuição de terras e reafirmou a tradição latifundiária brasileira que igualmente

persistiu nas primeiras legislações constitucionais que estavam por vir.

Com a promulgação da Constituição Imperial em 1824 no Brasil, o direito à

propriedade passou a adotar forte tendência liberalista proveniente dos ideais

franceses. Este direito foi declarado em sua plenitude, mantendo a ressalva do

direito à expropriação apenas por necessidade ou utilidade social, ou seja, naquela

situação em que restaria comprovado o uso do bem público em desfavor da

propriedade do cidadão. No entanto, esta exceção deveria ser analisada por lei

própria a ser regulamentada, bem como a avaliação e os parâmetros de indenização

ao proprietário expropriado.

Fonseca (2003, p. 107) menciona:

Vê-se aqui no Brasil – num país que na primeira metade do século XIX era marcadamente dependente do trabalho escravo das lavouras (e assim continuaria até 1888) e que herdava um sistema de terras juridicamente colorido por institutos feudais e por práticas de ocupação – a presença de um sistema jurídico constitucional flagrantemente iluminista e liberal (no âmbito formal) é de forma surpreendente.

Esse paradoxo presente na Constituição Imperial demonstra a tendência

presente na cultura jurídica brasileira em receber e adaptar de modo especial os

princípios jurídicos europeus e, em particular, o de propriedade (BENEDETTO,

2002, p.27-29).

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Segundo Quaresma (2010) a Constituição Republicana de 1891 não

discrepou dos ideais liberais da Carta Magna Imperial. A novidade ficou por conta da

equiparação de estrangeiros nos direitos políticos e civis, previstos no artigo 725: “A

Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à

propriedade”. Em termos similares manteve o individualismo da propriedade6.

Em 18 de julho de 1934 foi promulgada uma nova Constituição Brasileira. O

novo preceito constitucional foi influenciado parcialmente pela Constituição Alemã da

República de Weimar 7 e também pelos movimentos revolucionários europeus

advindos do proletariado, que acabava por misturar princípios liberais e autoritários.

Na nova Carta Magna, o conceito clássico de propriedade como direito

exclusivamente individualista, consagrado no Código Romano de Lei Civis (Corpus

Juris Civilis), em que se operava a propriedade como direito de usar, gozar e dispor

das coisas de forma absoluta, sofreu mudanças significativas, segundo Venosa

(2011).

A conveniência do interesse coletivo passou, no entanto, a limitar o

individualismo. Para Rocha (1992), a nova Constituição (1934) era influenciada pelo

pensamento filosófico que opunha limitações ao liberalismo exacerbado do século

XIX com as chamadas “questões sociais”, e o atributo dado à faculdade de possuir,

de poder absoluto sobre a propriedade, implantado pela Revolução Francesa, cedia

espaço para as considerações de interesse coletivo. Ainda segundo o autor, a

Constituição de 1934,

Inovou e tratou no seu artigo 125 a figura do usucapião pro labore ou especial, valorizando o trabalho e realçando especial proteção a quem viesse ocupar por dez anos contínuos, tivesse a posse mansa e pacífica, e não sendo proprietário rural ou urbano de gleba de terra até dez hectares e ainda tornando-a produtiva por seu trabalho bem como estabelecendo aquela terra como moradia, adquiria mediante sentença declaratória a propriedade do solo (1992, p. 34).

5 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm

6 Uma reforma constitucional realizada em 1926 especificou outras restrições, que se referiam às

minas e jazidas necessárias à segurança e defesa nacional. 7 PINTO, Tales dos Santos. "República de Weimar e a ascensão do nazismo" A República de Weimar

foi o período da história alemã compreendido entre os anos de 1919 e 1933, entre o fim da I Guerra Mundial e a ascensão do partido nazista ao poder. Os acontecimentos históricos deste período são resultado da reação de setores da sociedade alemã à derrota na I Guerra Mundial e influenciaram a eclosão da II Guerra Mundial. A existência da República de Weimar pode ser dividida em três fases: uma fase de instabilidade política e econômica, entre 1919 e 1923; uma fase de recuperação e estabilização, entre 1923 e 1929; e uma nova fase de crise, decorrente da quebra da Bolsa de Nova Iorque e com a ascensão do nazismo, entre 1929 e 1933. (p.11).

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Este dispositivo constitucional de 1934 deixa transparecer a limitação da

propriedade privada e de seu caráter absoluto em detrimento da produtividade da

terra, definindo que, mediante o trabalho, se adquiria o domínio sob a alegação de

interesse de cunho social.

O direito à propriedade passa a ser subjetivo e condicionado ao bem comum:

O mau uso da propriedade, portanto, em face dessa Constituição não poderia prejudicar a sua finalidade essencial de forma a admitir o seu exercício contra o interesse social ou coletivo. Resguarda-se o direito à mesma como direito subjetivo do seu titular, condicionado, porém, ao bem comum, aos relevantes interesses da sociedade que, ultima racio, resultam do somatório dos interesses individuais (ROCHA, 1992, p. 33).

Com o golpe civil-militar de 10 de novembro de 1937, foi instituído o Estado

Novo e, de imediato, ocorreu a outorga de uma nova Constituição, que deu

sequência no tratamento conceitual da propriedade.

Há autores, tais como Ferreira (2007) que afirmam que a Constituição

outorgada no Estado Novo apresentou retrocessos quanto à forma explícita para

regulamentação do exercício da propriedade:

Na constituição de 1937 o artigo 122 número 14 ao cuidar “Dos Direitos e Garantias Individuais” apenas assegurou o direito à propriedade e fez vaga referência que o conteúdo e limites seriam definidos nas leis que regulassem este exercício (FERREIRA, 2007, p. 07).

No entanto, Rocha (1992) discorda sobre este retrocesso no caráter explícito

do exercício da propriedade na constituição de 1937. Segundo o autor, no artigo

122, ao tratar "Dos Direitos e Garantias Individuais" deixou assente:

A Constituição [de 1937] assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade. Assegura o direito de propriedade cujo conteúdo e limites atribui à lei ordinária. Essa redação, aparentemente menos explícita do que a adotada pelo artigo 112 de Constituição de 1934, aponta, entretanto, desde logo, a existência de parâmetros necessários à propriedade privada, em seu conteúdo, e com referência ao exercício dos direitos que lhe são peculiares (1992, p. 34).

Constata-se que Constituição de 1937, na esteira das demais cartas magnas

reafirmou o direito de propriedade, porém sobrepondo o interesse coletivo ao direito

privado, e deixou a encargo do legislador a criação de lei ordinária para a

regulamentação.

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Posteriormente, esta situação foi modificada com o retorno do Estado de

Direito após a queda do Estado Novo. O dispositivo constitucional de 1946 inovou ao

tratar, pioneiramente, sobre a função social da propriedade no artigo 141, § 16 e

artigo 147.

A inédita questão elevava a legislação fundiária a um patamar de grande

alcance, segundo o qual o uso da propriedade estaria condicionado ao bem-estar

social e, desta forma, a promover a justa e igual distribuição da propriedade a todos

(ROCHA, 1992).

A análise do texto constitucional de 1946 evidencia um distanciamento cada

vez maior do conceito liberal da propriedade - tão presente na Constituição Imperial -

tal como a superação da orientação ditada pelo dispositivo constitucional de 1934 e

ampliada pelo de 1937, com uma índole bem mais socializadora do direito à

propriedade.

Além de inovar quanto à função social da propriedade, a Carta Magna de

1946 previu o Instituto da Desapropriação por interesse social, visando à justa

distribuição da propriedade, que seria regulamentada dezesseis anos mais tarde,

através da Lei n. 4.132 de 1962 (Quaresma, 2010, p.69). Uma legislação necessária,

porém insuficiente no que diz respeito aos imóveis rurais para fins agrários, tema

considerado uma lacuna na legislação.

2.1.1.1 O Regime Militar

Faz-se necessário relembrar que no ano de 1961, após a renúncia do então

presidente Jânio Quadros, a solução pacífica encontrada pelo Congresso Militar a

fim de evitar uma guerra civil tendo em vista a insatisfação do militares com a posse

do Vice-Presidente eleito João Goulart, foi a implantação do regime parlamentarista

no país.

O parlamentarismo implantado pelo Congresso como medida conciliadora, no

que tange à questão fundiária, acenou com uma política punitiva para terras

improdutivas. Contudo, os lavradores e trabalhadores do campo estavam em grande

agitação e em processo de tomada de consciência da luta social. Precisavam e

queriam mais.

Após a tão protelada efetivação de João Goulart na Presidência da República,

verificou-se uma mudança significativa na política agrária. Durante sua reduzida

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presidência, João Goulart propôs uma efetiva reforma agrária, prevendo o

pagamento de indenização após a desapropriação de terras, ou seja, modificações

consideráveis a fim de se instituir uma legislação fundiária distributiva. Esta foi, entre

outras, uma das causas do golpe de estado de 1964.

Entre março e outubro de 1963, travou-se outra grande batalha institucional do governo Jango: a luta pela reforma agrária “pela lei”, e não “na marra”. Entre a reforma agrária possível na negociação institucional e a desejada pelos movimentos sociais (ou mesmo pelo governo) havia um abismo. Formalmente, pelo menos até o começo de 1963, nenhuma força política era contra a reforma agrária, pois o latifúndio era um monstro que todos os deputados denunciavam (mas alguns criavam no quintal) (NAPOLITANO, 2014, p.38).

A famosa frase dita por Darcy Ribeiro sobre o presidente deposto: “Jango caiu

não por defeitos do governo que exercia, mas, ao contrário, em razão das

qualidades dele”, retrata o sobrepujamento do poder da minoria sobre a rediscussão

da questão social latifundiária no país (NAPOLITANO, 2014). Dando continuidade a

uma tradição liberal oligárquica, na qual imperava o autoritarismo pragmático,

profundamente excludente e conservador, a efetivação do projeto político de Goulart

acabou por justificar um golpismo histórico.

[...] a derrota de um projeto político pode ser reveladora das suas fragilidades, mas também das suas virtudes. A grandeza daquele momento histórico, situado entre os anos de 1950 e meados dos anos de 1960, se traduz como um ponto de tensão, um momento de acúmulo tal de energias que destruiu tudo o que veio antes e criou tudo o que veio depois. (NAPOLITANO, 2014, p. 10).

Após a mudança do modelo político, a referida Constituição de 1946 sofreu

profundas modificações provenientes da Emenda Constitucional n.10/1964, que

dispôs de uma exceção quanto ao pagamento da indenização motivada pela

desapropriação de terras rurais, substituindo o pagamento em espécie para títulos

especiais da dívida pública8.

8 Art. 5º Ao art. 147 da Constituição Federal são acrescidos os parágrafos seguintes:

"§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Impôsto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc10-64.htm - Acesso em 12.01.2017

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Com a emenda constitucional n.10/64, surge o Estatuto da Terra (Lei n.

4.504/64), legislação agrária pioneira entre as legislações latino-americanas, a qual,

se não definiu a função social da propriedade, ao menos regulamentou os requisitos

essenciais de tal tratativa. Com a criação deste dispositivo legal foi concedida a

competência da União para legislar sobre direito agrário, definindo autonomia

legislativa a este ramo do direito.

Para que esta ruptura do modelo político anterior pretendido por Jango fosse

algo mais palatável, os textos constitucionais deveriam ser modificados, mas em

tese permaneceram iguais, assegurando na teoria, e apenas nela, o acesso a terra

às classes menos privilegiadas.

Com a promulgação da Constituição de 1967 a função social da propriedade

foi mantida e ainda adquiriu o status de Princípio da Ordem Econômica e Social,

com o escopo de promover a justiça social e o desenvolvimento nacional. Em 1967,

o regime de governo não havia sido alterado, pois os militares permaneceram no

poder até 1985.

A Ditadura excluiu, entretanto, do texto da lei, o Instituto do Usucapião

Especial ou pro labore, previsto na Constituição de 1934 e mantido nos demais

dispositivos constitucionais. Esta exclusão teve como consequência relevante um

aumento na dificuldade do trabalhador em adquirir a propriedade através deste

instituto.

Em 1969 surgiria a primeira Emenda à Constituição de 1967, que repete a

redação do dispositivo anterior, considerando a propriedade como direito inviolável a

brasileiros e estrangeiros. Contudo, inclui texto que abrangia a aquisição da

propriedade rural por pessoa jurídica, conforme passou a dispor o emendado artigo

15, parágrafo 34 (ROCHA, 1992, p. 38).

Em 1988, o panorama político institucional era completamente novo. A

distensão ou abertura dos governos militares iniciada no governo do General

Ernesto Geisel e culminada no último mandatário militar, general João Batista

Figueiredo gerou a possibilidade da instauração de um governo civil, eleito pelo

Colégio Eleitoral.

Com a assunção de José Sarney à presidência em substituição a Tancredo

Neves, em janeiro de 1985 inaugura-se uma fase democrática que culminaria com a

convocação da Assembleia Geral Constituinte para as eleições de 1986 e

promulgação da Carta Cidadã (1988) dois anos após, em um regime, portanto, de

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estado democrático de direito e aliando-se ao garantismo jurídico.

A vigente Carta Magna de 1988 tratou de equilibrar o direito à propriedade,

ora considerando a propriedade privada inviolável, acentuando o caráter privado do

instituto, outrora atendendo não só a função social da propriedade como a sua

função socioambiental.

Quanto ao indivíduo em si, o inciso XI do artigo 5 da constituição de 1988,

dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela pode penetrar sem o

consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para

prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (CF/88 p. 06). Há,

portanto, uma ampla proteção da propriedade no ordenamento constitucional

vigente, seja no tocante aos direitos da coletividade ou no interesse individual.

O direito à propriedade, tratado como direito subjetivo ao longo do tempo, não

é absoluto, assume com a Constituição Cidadã uma situação objetiva,

precipuamente de obrigações impostas aos proprietários, que cumprindo as

prerrogativas constitucionais atendem a um interesse coletivo.

2.1.2 A Função Social da Propriedade

A inevitável interferência do Estado na propriedade privada é sentida em

maior ou menor peso por todas as nações. O liberalismo pleno torna-se inviável e o

individualismo não é a solução para os problemas sociais.

A propriedade não deve ser utilizada tão somente em proveito do titular, mas

em benefício de uma coletividade e é dever do Estado prover os instrumentos

jurídicos legais e eficazes para que o proprietário possa defender o que é seu, de

seu sustento, de sua família e de seu grupo social.

A intervenção do Estado deve proporcionar os meios legais e justos para

tornar todo e qualquer bem útil em produtivo; o contrário, a má utilização ou não

utilização da terra gera inquietação social e violência.

A justa aplicação do instituto da desapropriação deve encontrar um ponto de

equilíbrio entre o coletivo e o individual e dissociar do individualismo histórico

buscando não apenas coibir os abusos como também inseri-la no contexto de

utilização para o bem comum.

Segundo Maldaner e Azevedo (2010), para legitimar a argumentação, os

autores civilistas (e/ou constitucionalistas) recorrem à história para demonstrar, por

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meio de uma pretensa erudição, que os conceitos de propriedade e função social

casaram-se. A harmonização de seus significados atravessaria diferentes regimes

jurídicos, para chegar ao momento de maturidade em que contribuem,

mandatoriamente, por se tratar de disposição da Carta Política, para uma realidade

menos desigual.

Segundo os autores, a função social é responsável, nessa união, pela melhor

elaboração da ideia de propriedade, conformando-a e limitando-a. A produção

jurídica atual reconhece em León Duguit o “pai” desse avanço, posto ser de sua

autoria a Teoria da Função Social da Propriedade, a qual inspirou os legisladores

brasileiros.

Segundo Gomes (2010, p.121) pela influência que a obra do começo do

século exerceu nos autores latinos:

Leon Duguit pode ser considerado o pai da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário.

A função social e socioambiental da propriedade está elencada na legislação

brasileira através de dispositivos legais que tratam da solução dos conflitos sociais,

do acesso a terra, do aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, da

preservação do meio ambiente e da utilização apropriada dos recursos naturais,

considerando o legislador que sobre a propriedade pesa grave hipoteca social.

Tartuce (2016), civilista jurídico, acredita que as ideias constitucionais

relativas à aplicação da função social à propriedade são revolucionadoras:

A propriedade seja ela urbana ou rural, assim como ocorre com os demais institutos privados, deve ser interpretada e analisada de acordo com o meio que a cerca, com os valores de toda a coletividade. Sendo assim, a propriedade deve atender não somente aos interesses do seu dono, mas também das pessoas que compõem a sociedade. O solidarismo constitucional, previsto no art. 3, I, do Texto Maior, deve entrar em cena para o preenchimento do conceito de função social. Por certo é que essas ideias são revolucionadoras, uma vez que a propriedade, em nosso País, historicamente, sempre foi utilizada pra atender aos interesses da minoria, detentoras de poder e do capital (2016, p. 24).

Esse entendimento reforça ainda mais a percepção de que o interesse social

deverá prevalecer sobre o interesse privado, o qual só tem razão de ser quando,

ainda que secundariamente, atenda ao interesse de toda a coletividade.

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29

Também deve ater-se que a função social prevista na Constituição Federal de

1988 é um avanço no que tange a (ao menos a se propor) não mais defender os

interesses de uma minoria possuidora de capital em detrimento de uma maioria

subjugada às necessidades da mesma minoria.

2.2 O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO

Tomando como ponto de partida o fato de que o ser humano vive em

sociedade, não existe direito cujo exercício seja ilimitado. É preciso compatibilizá-lo

com os demais membros da sociedade e com os interesses do Estado.

Desde a outorga da Constituição Imperial é permitida no Brasil a possibilidade

do Estado intervir na propriedade privada. A propriedade individual inserida em

todas as Constituições confere ao seu titular a plenitude do direito de uso, gozo e

disposição do que lhe pertence, criando inclusive institutos jurídicos de proteção e

defesa dos seus direitos quando injustamente esbulhados.

Todavia, o interesse social assinala a limitação, supressão ou transferência

compulsória do objeto da propriedade pelo Estado, que nem limita, nem extingue o

direito de propriedade, determina, apenas, para satisfação da necessidade ou

utilidade de ordem pública, a modificação do seu titular.

Segundo Venosa (2011, p.268), o poder de expropriar do Estado é

comparado ao poder de polícia ou ao poder de tributar, e justifica-se como ato de

soberania. A desapropriação não se confunde com a compra e venda, porque se

trata de transferência compulsória por ato unilateral da Administração. Igualmente

distingue-se do confisco em que existe a ocupação da propriedade sem indenização.

A desapropriação é o oposto de apropriação, ou seja, é modalidade de perda

da propriedade e caracteriza-se por um processo administrativo pelo qual o Estado

adquire a propriedade por aquisição coativa mediante o pagamento de indenização.

Nas palavras de Meirelles (1988 apud VENOSA, 2011, p. 269), “a

desapropriação é a mais dramática das formas de manifestação do “poder do

império”, ou seja, da Soberania interna do Estado no exercício de seu “domínio

iminente” sobre todos os bens existentes no território nacional”.

Para Rocha (1992) a universalização do instituto da desapropriação

configurou-se com a Declaração dos Direitos do Homem em 1789, que passou a

considerar a propriedade um direito sagrado e inviolável; ninguém pode ser dele

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30

privado, salvo se a necessidade pública legalmente constatada o exigir, e sob a

condição de uma justa e prévia indenização.

Aparentemente o interesse social violenta o direito individual, ao passo que

este surge já condicionado pelos direitos da sociedade. Todavia, posteriormente, se

beneficiará diretamente ou através de seus descendentes dos benefícios

resultantes.

Haveria, momentaneamente, uma violência aparente, se considerássemos, por absurdo, o homem isolado de seu meio; mas como ele, por si, por sua estirpe, por sua descendência, não pode desintegrar-se da sociedade em que vive, segue-se que direta ou indiretamente há de usufruir dos benefícios em nome dos quais se lhe desapropria certo e determinado bem. O homem por sua origem e destino é solidário com o seu meio. Está nessa solidariedade o fundamento moral da desapropriação. (ROCHA, 1992, p. 51).

Ao desapropriar um bem particular o Estado exerce um direito não apenas

funcional e deve ser legitimamente exercitado dentro dos limites constitucionais. A

iniciativa da desapropriação pode emanar da União, dos Estados e dos Municípios e

através de concessionários de serviços públicos, estes mediante autorização legal.

O instituto da desapropriação esteve presente em todas as Constituições

Federais. No entanto, a primeira previsão legal através de Lei Ordinária foi um

Decreto datado de 21 de maio de 1821, por D. Pedro I, Príncipe Regente, três anos

antes da Constituição Imperial, que cuidou da desapropriação como a única exceção

ao direito de propriedade por ela assegurado em toda a sua plenitude, mediante

indenização prévia (ROCHA, 1992).

Em 1826 surgiu a Lei n. 4229 regulando pela primeira vez a desapropriação

por necessidade ou utilidade pública. Os casos de necessidade pública eram

verificados pelo Poder Judiciário e os de utilidade pública, pelo Poder Legislativo.

Em seguida, pela insuficiência de texto legal anterior, foi sancionada a Lei n.

353 de 12 de julho de 184510, a qual atribui ao Executivo as hipóteses que eram

anteriormente atribuídos ao Poder Legislativo e a fixação da indenização feita por

um corpo de jurados.

9 Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38537-26-agosto-1826-

567030-publicacaooriginal-90475-pl.html - Acesso em 12.01.2017. 10

Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-353-12-julho-1845-560442-publicacaooriginal-83257-pl.html - Acesso em 12.01.2017.

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31

Posteriormente, o Decreto n. 1.664 de 27 de outubro de 185511, substituiu o

júri civil por um juízo arbitral coato ou necessário, para cuja composição, o

expropriante nomearia dois árbitros, o expropriado, outros dois, e o Governo, um

quinto, desempatador.

Durante a vigência deste Decreto ficou estabelecido que nenhuma autoridade

judiciária ou administrativa poderia admitir reclamação ou contestação acerca da

desapropriação decretada pelo Poder Executivo, sinalizando o autoritarismo com

que o Estado atuava diante da propriedade particular.

Somente com a primeira Constituição Republicana em 1891 que se deferiu ao

Estado a competência para regular os processos de desapropriações promovidos

por ele ou seus municípios.

A legislação brasileira até então não fora nenhum modelo de perfeição, adotando para a fixação da indenização a modalidade do juízo arbitral coato, não mais encontrado na legislação geral relativa ao processo civil. O laudo dos árbitros tinha caráter decisório e o juiz togado tivera suprimida a faculdade de intervir na fixação do preço da indenização (ROCHA, 1992, p. 61).

A Lei Ordinária que passou a regulamentar o Instituto da Desapropriação foi o

Decreto-Lei n. 3.365 de 21 de junho de 1941, que com significativas modificações

veio a atender uma premente necessidade do direito processual. “O diploma legal

tratou de excluir a dicotomia – necessidade pública e utilidade pública – o qual

fundiu as duas espécies sob a denominação de utilidade pública” (HARADA, 2015,

p. 17).

O Decreto-Lei n. 3365/41 continua sendo na atualidade a lei básica do

Instituto da Desapropriação. As modificações, necessárias ao longo do tempo, no

texto original, além da supressão da dicotomia entre necessidade e utilidade pública

anteriormente existente, igualmente extinguiu o juízo arbitral coato, conferindo ao

magistrado a atribuição de fixar o valor da indenização, através de decisão

fundamentada e motivada do seu convencimento.

Atendendo ao texto constitucional vigente, a desapropriação direciona-se em

duas categorias, a que cumpre função social (motivo de necessidade ou utilidade

pública), situação em que a legislação aplicada é o Decreto n. 3365/41

subsidiariamente ao Código de Processo Civil; àquela que não cumpre a função

11

Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1664-20-outubro-1855-558675-publicacaooriginal-80175-pe.html - Acesso em 12.01.2017.

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social (hipótese de interesse social) a legislação a ser aplicada é a Lei n. 4.132 de

10 de dezembro de 196212, que igualmente ao Decreto n. 3365/41, condiciona ao

pagamento de justa e prévia indenização, todavia é paga em títulos da dívida pública

e não em espécie, como na hipótese da necessidade ou utilidade pública.

Segundo Venosa (2011), o poder de expropriar está inserido nas

constituições brasileiras desde a Carta Imperial, no entanto cumpre ao Estado

indenizar o desapropriado sob pena de inviabilizar os paradigmas da propriedade

privada. Igualmente, cabe ao administrador sopesar, no caso concreto, a

necessidade de fazer sobrepujar o interesse social ao interesse privado.

2.3 CONTESTADO

Inicialmente é necessário contextualizar a região contestada, os atores

envolvidos e os motivos que deflagraram a guerra sangrenta do início do século XX,

mas com resquícios ainda percebidos na atualidade.

Segundo Auras (2001) ao sul do rio Iguaçu e norte do rio Uruguai, numa área

aproximadamente 28 mil km² do território interiorano catarinense, viviam, na época

que circunda a Proclamação da República (1889), milhares de pessoas, espalhadas

pelos campos e matas ou agrupadas nas sedes e distritos dos municípios.

A região do Planalto Norte Catarinense foi povoada de forma diversificada e

distinta das ocupações do litoral. A densa Mata Atlântica que cobria as escarpas

serranas e a população indígena Kokleng que respondia às agressões de invasores

de seu espaço contribuíram para o distanciamento de duas grandes regiões

catarinenses, a litorânea e a planáltica.

Vários eventos apontados pela história sulina contribuíram para a abertura

das terras do planalto norte e centro-oeste catarinense, entre eles: O comércio de

gado entre São Paulo e Rio Grande do Sul (século XVIII), que ao passar por Santa

Catarina fez surgir nos locais de pouso os primeiros moradores permanentes,

tornando os campos de Lages numa estrutura necessária à longa caminhada dos

rebanhos e condutores; a Revolução Farroupilha em 1835 que eclodiu no Rio

Grande do Sul, mas atingiu a cidade catarinense de Laguna, onde é proclamada a

República Juliana, incluindo o município de Lages (parte integrante da mesma) e,

12

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4132.htm

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33

sobretudo, a Guerra Federalista (1893-1895), que mesmo tendo como epicentro o

estado sul-rio-grandense, o planalto catarinense foi longamente percorrido pelos

revolucionários e legalistas em luta. Durante a primeira década do século XX

milhares de novos moradores, imigrantes estrangeiros e brasileiros vieram

acrescentar à população Serra-Acima.

Os limites entre os estados de Santa Catarina e Paraná começam a ser

contestados a partir de 1853, quando os paranaenses desmembrados da Província

de São Paulo reivindicam ao seu já extenso território a posse de terras do norte e

oeste catarinense.

Tem-se, nesse sentido, a título de exemplo, o caso de um Francisco de Paula Pereira, grande proprietário de terras em São Bento, Paraná, que abandona sua região por causa de perseguições políticas e alcança os rios Putinga e Canoinhas. Entendendo que o local era bom para estabelecer-se, volta para buscar sua família e agregados. Ali surge o que viria a ser a sede municipal de Canoinhas. Região rica em erva-mate, o Estado do Paraná a reivindica como parte do seu território, mas Francisco de Paula Pereira repele a autoridade policial paranaense e não se submete à jurisdição do vigário de Rio Negro (PR). Ao mesmo tempo, fazendo contato com Curitibanos (SC), vence a longa distância que o separa dessa localidade e se coloca sob a proteção de Albuquerque, “coronel”, e chefe político do lugar. (MONTEIRO, 2011, p. 74).

A contenda entre os estados que, inicialmente, não passava de rixas

puramente políticas começa a se concretizar através de derrubadas de pontes,

destacamentos policiais e a criação de fiscais sob a área em litígio. Os ânimos foram

sendo, aos poucos, inflamados pela imprensa dos dois estados e os contrapontos

eram formados pelo coronelismo e o messianismo, diante da ausência do Estado no

conflito.

Somente com a presença de um terceiro reclamante – a Argentina, que

entendeu por direito estender as fronteiras do seu país ao alcance das terras do

oeste catarinense, as mesmas já então reclamadas pelo estado do Paraná, é que o

Governo Imperial, em 1881 acorda para a questão. Houve a interferência externa do

Presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, que considerou o Brasil como

legítimo detentor das terras demarcadas.

Todavia, a solução externa à contenda não alcançou a problemática interna

entre os estados catarinense e paranaense; ao contrário, aguçou ainda mais a

disputa territorial, pois a partir da Constituição de 1891 passou a assegurar ao

Estado o direito de decretar impostos sobre exportações de mercadorias de sua

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propriedade e legislar sobre as questões fundiárias. Isso aguçou a disputa pela

região contestada.

Alguns anos antes da eclosão da Guerra Santa, já se manifestara claramente o significado do poder local e a natureza de suas relações com as autoridades estaduais. Demétrio Ramos, que fora combatente rebelde em 1893, resiste às autoridades paranaenses na localidade contestada de Canoinhas, arregimentando para isso um bando armado, forte, de seiscentos homens, mantido pelo governo de Florianópolis e por algumas casas comerciais. Pouco mais tarde, aquele que viria a ser um dos mais notáveis chefes rebeldes da Guerra Santa, Aleixo Gonçalves, capitão da Guarda Nacional e antigo maragato, comanda quinhentos homens e, ajudado pela polícia catarinense, invade território sob controle paranaense e expulsa os agentes do fisco encarregados de taxar a erva-mate. (MONTEIRO, 2011, p. 112).

Paralelamente à escalada das tensões entre os dois estados, a questão

chegou ao Supremo Tribunal Federal que, em 1904, concede razão ao estado de

Santa Catarina à demarcação da área contestada. Inconformado com a decisão, o

estado do Paraná representado pelo causídico Rui Barbosa, arrasta a questão

litigiosa até 20 de outubro de 1916, quando o governador do estado catarinense,

Felipe Schimidt, e Afonso Camargo, paranaense, intermediados pelo Presidente da

República Wenceslau Bráz, assinam um acordo que pôs fim ao litígio e demarcou os

limites atuais entre os discordantes.

Uma vez situada a região a ser estudada, é necessário descrever a ordem

política-econômica-social durante os anos de conflito da Guerra do Contestado.

Imperava naquele local o coronelismo e seu despotismo, estreitamente entrelaçados

pela ajuda mútua do governo do Estado que revestia os grandes fazendeiros de

poder e do destino dos que lhes pertenciam:

O mecanismo estatal, na percepção dos homens do campo, lhes parece, na sua composição jurídica e impessoal, o longínquo mistério das sombras. No máximo, o presidente e o governador corporificam os donos da República ou do Estado, super-fazendeiros que dispõem de tudo, da vida e do patrimônio dos cidadãos. O homem do sertão, da mata e do pampa sabe que o chefe manda e ao seu mando se conforma, sem que o socorra, para levantar o quadro de domínio, a ideia de representação (FAORO, 1977, p. 633).

Segundo Leal (1978), em 1831, o governo imperial criou a Guarda Nacional.

No seu quase um século de existência, chegou a possuir um Regimento em cada

município brasileiro. O posto de coronel era geralmente concedido ao chefe político

local, que, via de regra, era o mais opulento fazendeiro ou comerciante.

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35

À pergunta “quem é você?”, o caboclo respondia “sou do coronel fulano”. E quando o “coronel” dizia “esta gente é minha”, queria dizer que eram pessoas nas quais ele depositava confiança (LEAL, 1978, p.20-21)

Quanto à atividade econômica na região, as primeiras fazendas criadas pelos

paulistas situavam-se nos campos de Lages. Devido ao comércio seguro da

atividade pastoril, à medida que aumentava o rebanho foi necessário estender as

grandes propriedades, contribuindo para o povoamento desta nova região.

Para Campos e Bender (2012), o Planalto Catarinense possui um quadro

natural de grande diversidade, coexistindo extensas áreas de campos naturais com

áreas de formação florestal, com o domínio da chamada floresta ombrófila mista, em

que se conjugam espécies de grande valor comercial, como o pinheiro brasileiro

(Araucária angustifólia), a imbuia (Ocotea porosa), a erva-mate (Ilex paraguariensis).

Este quadro físico-natural refletiu no processo de formação e dinâmica

socioeconômica regional através do desenvolvimento das economias do gado,

ervateira e madeireira, feições básicas que, embora alteradas em sua constituição

original, se mostram presentes na área do planalto do território catarinense até a

atualidade (TOMPOROSKI; MARCHESAN, 2016).

Os vastos ervais nativos igualmente contribuíram para a economia da região,

considerado o “ouro verde” dos fazendeiros, era encontrado em grosso volume e

destinado à exportação. Inicialmente, era escoada pelo Porto de Paranaguá (PR) até

a construção da Estrada Dona Francisca, que ligou a área de Joinville a Mafra, Rio

Negro e Porto União, passando o escoamento a ser feito pelo Porto de São

Francisco (SC).

[...] pode-se constatar a importância da erva-mate para a economia de SC, bem como inferir suas implicações para a deflagração armada do Contestado. Ao levantar os produtos exportados anualmente, no período de 1892 a 1920, [...] o mate o mais importante, dado seu valor comercial. Em 1900, por exemplo, atingiu 31% do valor total das exportações (ALMEIDA, p.13, 1979).

Com a ascensão da erva mate, as terras do Planalto Catarinense tornaram-se

alvo de cobiça, e a rentabilidade da exploração só era possível em largos espaços

campestres. Desta forma, atendendo a interesses daqueles que possuíam poder

político junto ao Governo imperial e republicano, grandes fazendeiros adquiriram

vastas porções de terras, concentrando em latifúndios formalizados por títulos de

propriedade cedidos pelo Estado sobre terras devolutas.

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Aos que não pertenciam a este seleto grupo privilegiado, restavam as terras

mais distantes, na situação de posseiros para a atividade de exploração da erva

mate e pastoril, e que, frequentemente migravam de lugar na medida dos interesses

expansionistas dos latifundiários.

Segundo Auras (2001), nas terras dos coronéis, os agregados e os peões,

durante longo tempo, podiam servir-se dos ervais porventura existentes, sem

qualquer proibição. Quando, porém, o mate viu seu valor comercial ser

crescentemente reconhecido e, na medida em que escasseavam as terras

devolutas, os coronéis começaram a coibir o que denominavam de coleta abusiva do

mate em terrenos de sua propriedade.

Em relação ao ervateiro restavam-lhes apenas duas opções: a primeira era

entregar o produto às bodegas mais próximas às contas já de espera de pagamento

ou aqueles em que o coronel permitia exercer a coleta da erva mate em seus

domínios, a conta de entregar-lhe o produto final, evidentemente por um preço

abaixo do mercado.

Contudo, um conjunto de razões como a majoração da alíquota do imposto de

exportação do mate, a grande oferta no mercado platino e, consequentemente, a

queda do valor do produto bem como a dissolução da Companhia Industrial13 que já

havia dominado o ciclo produtivo desde a coleta até a exportação, contribuíram para

o decréscimo da atividade econômica da erva mate na região.

Merece destaque também o fato de que, ao longo desse referido período, os anos de 1915-16 acusam abrupto e acentuado decréscimo na participação da erva-mate na pauta de exportações. E foi exatamente nesses dois anos que a luta no Contestado se tornou mais intensa e se encaminhou para o desfecho. Tudo indica que a coleta do mate havia sido realizada por muitos sertanejos que estavam, então, engrossando a população dos redutos (ALMEIDA, p.89-98, 1979).

Para Auras (2001), se considerar que a população da área contestada sofreu,

entre 1905-10, abrupto e significativo acréscimo, o desmantelamento da estrutura

exploratória do mate, ainda que incipiente, foi certamente, também, fonte geradora

de inconformismo entre os homens que dela dependiam, agravando a tensão social

13

No trabalho de Almeida, verifica-se que os fundadores da Companhia eram imigrantes europeus que, embora inicialmente com poucos conhecimentos acerca do mate, foram aprendendo a ganhar dinheiro com tal comércio. Em 1900, as quatro maiores empresas exportadoras do Paraná ligadas a esse produto não possuíam capital social igual ou superior ao da Companhia em referência. Três de seus diretores, ainda no período de sua vigência, foram, inclusive, prefeitos de Joinville.

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em toda aquela área.

No que tange à estrutura social na região contestada, pode-se considerar que

havia a presença marcante das oligarquias (grupos minoritários que possuíam a

posse legal e formalizada de grandes latifúndios), um significativo grupo de

ervateiros, além de pequenos proprietários e uma maioria de posseiros, além dos

agregados e peões. A pobreza era generalizada e o cotidiano se estabelecia apenas

para os mínimos vitais.

Nestas grandes propriedades havia os agregados que residiam com suas

famílias e tinham na lida com o gado a sua tarefa básica e à mulher cabia a tarefa da

agricultura e a criação de porcos e galinhas para manter a subsistência, utilizando-

se das terras vizinhas à grande propriedade e cedidas pelo coronel (QUEIROZ,

1966, p. 47).

Ao agregado e sua família não havia possibilidade de ascensão social, os

poucos que conseguiam aumentar o seu rebanho eram compelidos pelos grandes

proprietários a se deslocarem para terras ainda não ocupadas e possíveis de

apossamento, distantes das grandes propriedades.

Para a lida mais pesada com o gado, existiam os peões, geralmente

descendentes de indígenas que dormiam pelos galpões, considerados os homens

de confiança dos coronéis, estando sempre à sua disposição, como uma espécie de

força paramilitar, prontos para agir, nas ocasiões em que a situação exigia defesa

(AURAS, 2001, p. 38).

No entanto a formação social do Planalto não era constituída apenas por

proprietários das fazendas e agregados. Conjugava também uma população de

pequenos e médios sitiantes independentes, cuja posse consistia na principal forma

de acesso a terra. Trata-se de uma população miscigenada (índio, negro e branco

de origem ibérica), conhecida por cabocla, que possuía inúmeras práticas sociais de

caráter coletivo, constantemente procedendo ao uso comum de áreas de florestas

através da extração de recursos naturais e da criação de animais à solta (CAMPOS;

BENDER, 2012, p. 201)

2.3.1 O Capital Estrangeiro e a Construção da Ferrovia

Diante deste panorama social e econômico da região contestada, faz-se

necessário discorrer sobre a inserção do capital estrangeiro e as transformações

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38

que a construção da ferrovia produziu, bem como para os abusos do Estado diante

da população catarinense.

A implantação da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que atravessou

o território do Contestado no início do século XX, constituía aos olhos do Estado um

catalisador de desenvolvimento para o meio oeste e norte catarinense. Foi através

desta ferrovia que se povoou importantes cidades, todavia à custa de muita luta,

resistência e mortes de pessoas que se recusavam a terem suas vidas destruídas

em prol do desenvolvimento prometido pelo Estado.

Acontece que é impossível dissociar os trilhos da terra, a ferrovia de todas as circunstâncias antecedentes e consequentes. Diríamos que os trilhos foram o fio condutor da História Catarinense, a ela vinculando-se intimamente (THOMÉ, 1983, p.11)

Após a Independência do Brasil, quando da Regência do Padre Diego Feijó,

surgiu nos meios empresariais brasileiros a possibilidade de dotar um novo e

revolucionário meio de transporte que viesse a substituir as tropas de burros e a

facilitação, inclusive com a diminuição do custo, para o escoamento de produtos

para a exportação.

A proposta do Regente Feijó foi implantar no país a construção de ferrovias,

que além de acelerar o processo de desbravamento dos sertões, poderia atrair

capital estrangeiro, por meio da proposta de pagamento de juros sobre os capitais

empregados no país.

Pela Lei n. 101 de 31 de outubro de 1835, o Governo Imperial ficava

autorizado a contratar com particulares a construção de ferrovias, que unissem a

Corte (Rio de Janeiro) aos pontos mais convenientes das províncias de São Paulo e

Minas Gerais, garantindo aos investidores o pagamento de juros mínimos de 5% ao

ano, sobre os valores dos capitais aplicados, pelo prazo de até 30 anos (THOMÉ,

1983, p. 13).

Uma vez implantado o sistema ferroviário no país e mesmo quando ainda

províncias, no Império, ou estados, no início da República, Rio Grande do Sul, Santa

Catarina, Paraná e São Paulo tinham seu sistema ferroviário independente uns dos

outros. A exceção era a Estrada de Ferro São Paulo- Rio Grande, que foi planejada

pelo Governo Imperial e executada no início do Governo Republicano.

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39

Considerado na visão do Governo Imperial como um dos Decretos14 mais

importantes para o desenvolvimento da Região Sul, e sancionado seis dias antes da

Proclamação da República, deu início à história da Estrada de Ferro São Paulo –

Rio Grande, a qual influenciou significativamente o processo de configuração da

Região do Planalto Norte Catarinense, bem como a percepção da atuação do

Estado para com a população catarinense.

Todavia, com a Proclamação da República, o Decreto n. 10.432 não foi

aprovado pelo Poder Legislativo, e tampouco o contrato fora assinado. Retomado o

assunto apenas em 1890, o governo republicano reconhece a concessão,

modificando, entre outras, duas cláusulas importantes: a primeira reduzia de 30 para

15 quilômetros para cada lado da estrada o limite de cessão de terrenos, e a

segunda, deixou sem efeito os planos iniciais de colonização (THOMÉ, 1993, p. 33).

Várias modificações nas cláusulas contratadas foram feitas ao longo do

tempo, até que uma Companhia que administrava e arrendava uma gigantesca

malha ferroviária pelos Estados do Sul foi monopolizando o transporte e passou a

ser a grande empresa construtora da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande.

Trata-se da empresa Brazil Railway Company, fundada em 1906, em

Portland, Estado de Oregon (EUA), que após a visita de Percival Farquhar, a convite

do catarinense Lauro Muller, resolve operar no setor ferroviário. Formada por capital

europeu. Começava a surgir no Brasil o Sindicato Farquhar15.

Em apenas oito anos, levantou capitais no exterior para suas empresas na ordem de 53 milhões de libras esterlinas, uma quantia astronômica, se

14

Decreto n. 10.432, de 09 de novembro de 1889. Concede privilégios, garantia de juros e terras devolutas, mediante autorização legislativa, para a construção, uso e gozo de uma estrada de ferro, que partindo das margens do Itararé, na Província de S. Paulo, vá terminar em Santa Maria da Bocca do Monte, na Província do Rio Grande do Sul, com diversos ramaes. Atendendo o que Me requereu o Engenheiro João Teixeira Soares, Hei por bem Conceder à companhia que o mesmo organizar [...] Hei por bem, outrossim, não só conceder à referida companhia a garantia de juros de seis por cento (6%) durante trinta (30) anos para o capital que for necessário à construção da linha principal, até o máximo de trinta e sete mil contos ( 37.000:000$), mas também fazer-lhe cessão gratuita das terras devolutas em uma zona máxima de trinta quilômetros para cada lado do eixo de linhas de que se trata. Para se tornarem effectivos os mencionados favores, ficam, porém, dependentes da aprovação do Poder Legislativo, na parte que se refere à quantia de juros e cessão das terras devolutas, bem como em tudo subordinados à observância das clausulas que com este Decretam baixam, assignadas por Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, do Meu Conselho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas, que assim o tenham entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro em 09 de novembro de 1889, 68 da Independência e do Império. 15

O Sindicato Farquhar era comparado a um polvo: não tinha forma e adquiria todas as formas, não tinha cor e adquiria todas as cores; por onde lançava os tentáculos, aplicava suas ventosas, corrompia e sugava a riqueza nacional (THOMÉ, 1983).

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levarmos em conta que o Império, em 63 anos, contraiu empréstimos de 68 milhões, e a República, nos primeiros 25 anos, 51 milhões de libras esterlinas (THOMÉ, 1983, p. 11).

A Brazil Railway Company rapidamente emergiu no cenário nacional e tornou-

se a principal “holding” do Sindicato Faquhar, e não demorou para adquirir o controle

da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, que estava em plena construção, isso

porque dominava todas as malhas ferroviárias ao entorno.

No entanto, nenhuma empresa teve tanta força, hegemonia e poder na região do que o Grupo estadunidense comandado por Percival Faquhar, que já possuía ou viria a possuir inúmeros negócios no Brasil.[...] a partir de 1907 com a Brazil Railway Company, adquirindo o controle acionário da Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, então composto por capital nacional, através do Decreto n. 10.432, de 09-11-1889, decreto este que permitia, entre outras coisas, a “cessão gratuita das terras devolutas, incluindo sesmarias e posses, numa faixa de 30 km para cada lado do eixo das linhas da ferrovia”, alterado pelo Decreto n. 305, de 07-04-1890, para 15 km, ampliando o período de concessão de 15 para 50 anos (CAMPOS; BENDER, 2012, p.201).

Além da construção da estrada de ferro, cabia à Companhia a concessão

para atividades de exploração madeireira, bem como promover a colonização das

terras devolutas, daí a necessidade de constituição de uma subsidiária. Em 1909 o

Sindicato Farquhar organizou a Southern Brazil Lumber and Colonization Company,

com a finalidade de explorar os grandes pinhais existentes na região dos vales dos

rios Negros, Iguaçú, Timbó, do Peixe e Canoinhas e também desenvolver os

serviços de colonização das terras ao longo da estrada de ferro.

No Sul, quando a Brazil Raiway Company já era senhora de 34.800 quilômetros quadrados [...] o Sindicato estabeleceu a Southern Brazil Lumber and Colonization Company, que adquiriu, mais modestamente, 3.248 quilômetros quadrados de terras com pinhais, implantando diversas serrarias, sendo que só uma – a de Três Barras – tinha capacidade para produzir cinco milhões de pés de madeira por mês. (THOMÉ, 1983, p.75).

A região escolhida para a instalação da empresa estrangeira subsidiária do

Sindicato Faquhar não podia ser melhor, pois atendia ao escoamento rápido da

produção via ferroviária diretamente ao Porto de São Francisco e estabelecida em

meio aos pinhais. Esta primeira região adquirida era conhecida por Três Barras,

ainda pertencente ao município de Canoinhas. A Lumber instalou o maior complexo

industrial de exploração madeireira da América do Sul (CARVALHO, 2010), nunca

igualado em toda a história, com equipamento trazido diretamente da Europa e dos

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Estados Unidos, e importando a tecnologia canadense.

Esta quase inacreditável produção era obtida em vista da rara e primorosa técnica empregada, através de apenas 800 empregados, na maioria imigrantes ou descendentes destes, sendo que para obter produção idêntica, se fosse o caso, pelos meios habituais da época seria necessário um mínimo de cinco mil homens. (THOMÉ, 1983, p.125).

Sob a perspectiva do Estado, o capital estrangeiro traria desenvolvimento a

esta região, promovendo uma série de facilitações destinadas às companhias

estrangeiras. Além disso, o Sindicato Farquhar cooptou autoridades em todo o Brasil

e, inclusive, nos estados do Paraná e Santa Catarina. A título de exemplo, o

governado do Paraná, Affonso Camargo, também desempenhava a função de

advogado da Lumber Company. A influência política junto ao Estado, além de

promover uma série de outros benefícios às companhias, facilitava a aquisição de

áreas cada vez maiores.

A atuação do Estado atendia aos interesses de uma minoria, baseado na

troca de favores, muitas vezes confundindo-se com a representatividade da empresa

estrangeira. Outro caso exemplar da atuação das companhias para “evitar

embaraços legais e obter facilidades administrativas” (MACHADO, 2004, p. 267), no

estado de Santa Catarina, recai sobre o então advogado de Lages, Nereu Ramos

(filho do ex-governador Vidal Ramos e que, futuramente, seria também Presidente

interino da República). Ele “era representante oficial dos interesses da Lumber junto

ao governo de Santa Catarina”. Por sua vez, Henrique Rupp, prefeito de Campos

Novos, foi inspetor de terras da Brazil Railway.

Toda esta facilitação do governo para o fim de atender aos interesses da

empresa estrangeira possibilitou a exploração imensurável de riquezas naturais e a

tornou uma das maiores serrarias do mundo, que para o Estado atendia ao fim de

promover desenvolvimento na região do Planalto Norte Catarinense.

Porém, do outro lado das trincheiras, sendo perseguidos e injustiçados pelo

Estado e pelas classes dominantes (representadas pelos coronéis locais e pelos

interesses do capital estrangeiro) estava a população local, os caboclos. Para

implementar o projeto republicano nacional foi 'necessária' à expulsão dos posseiros

das terras, a base de muita violência e opressão.

Neste momento histórico vivido pelos sertanejos a prática de apossamento de

terras era considerada costumeira e tida como forma recorrente de apropriação

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territorial. Esta prática, na visão dos caboclos, estava calcada pelo tempo, como

direitos morais adquiridos.

Para fazer valer seu controle sobre a terra, as empresas estrangeiras

promoveram a criação de grupos paramilitares, chamados de Corpo de Segurança,

com centenas de homens armados, que representavam um efetivo superior ao do

Regimento de Segurança de Santa Catarina, que possuía, em 1910, 280 homens

[...], espalhados por todo o estado (MACHADO, 2004, p.149).

Durante a demarcação das terras que recebeu por meio da concessão, a

Brazil Railway iniciou a expulsão dos posseiros empregando o seu Corpo de

Segurança da Companhia, que se contrapunha aos direitos de posse entendidos

como adquiridos pelos sertanejos, aumentando a tensão social sobre aquela região.

Em decorrência, o processo acabou por reforçar as tradições e valores construídos

ao longo do tempo por aqueles caboclos. O processo de retirada dos caboclos de

suas terras contou com requintes de crueldade:

Chegavam na marra na casa das pessoas e botavam pra correr dizendo que o governo tinha dado aquela terra para eles. Quando não expulsava os moradores, a Lumber simplesmente retirava a madeira sem pedir autorização e sem pagar (MACHADO, 2004, p.154).

Muitos relatos confirmam a opressão que a força paramilitar exercia sobre a

população, “sem a maior complacência contra o caboclo, incendiando-lhes as casas

e as roças, e, às vezes, até massacrando suas famílias” (AURAS, 2001, p.78).

A atuação violenta das empresas estrangeiras veio a somar-se com as

reprimendas dos coronéis, ricos latifundiários e, muitas vezes, chefes políticos, que

há muito tempo açambarcavam as terras dos caboclos, ocupantes legítimos

daquelas terras:

Os jagunços queixam-se que o coronel Artur de Paula e outros chefes políticos lhes tomaram as terras que habitavam e agora lhes impedem de recorrer às terras devolutas do Governo, por se terem apossado delas pessoas conhecidas e que têm facilidade de obter de governos, grandes territórios nos dois Estados (Peixoto, 1995, p.156).

A violência desencadeada pelos coronéis e sua atuação promíscua (e dos

governos sob sua influência), com as empresas estrangeiras, ampliou o grau de

repressão, que passou a ser sentida também pelos empregados, através dos

constantes conflitos entre o corpo de segurança e os trabalhadores. Para AURAS

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(2001) há relatos de conflitos armados pela falta de pagamento dos salários e pelos

desmandos dos feitores, o que demonstra o poder de coação das empresas do

grupo perante seus empregados.

Para Monteiro (1974), os estabelecimentos da Brazil Railway, como também

da Southern Lumber na área, fez com que surgissem modalidades novas de

controle, de violência e de repressão. Se ambas dispunham de polícia própria,

distinguia-se esta dos bandos tradicionais de capangas por estar a serviço de

interesses econômicos anônimos e não à disposição dos interesses pessoais de

determinados “coronéis”.

Este conflito histórico, segundo Machado (2004) mostra como a região do

Contestado passava no início do século XX por um severo processo de

transformação, caracterizado principalmente pela inserção de novas forças políticas

e econômicas. Assim, foram impostas novas relações, ora retirando os caboclos à

força, com capangas, ora obrigando-lhes, ardilosamente, assinar papéis em branco,

com a falsa promessa de regularização das terras.

Com a instalação da empresa estrangeira, as antigas relações de trabalho

nas fazendas, ainda que opressoras, e que pareciam aos sertanejos legítimas e

justas, foram substituídas por relações capitalistas que significaram um processo

rápido de desconstrução social.

Tão logo o início da instalação da empresa, a Lumber acaba por se envolver

na Campanha do Contestado ao lado de diversos coronéis da região, que já eram

alvo dos sertanejos revoltosos.

Nós estava em Taquarassú tratando da noça devoção não matava e não robava, o Hermes mandou suas força covardemente nos bombardiar onde mataram mulheres e crianças portanto o causante de tudo isto é o bandido do Hermes e portanto nós queremos a lei de Deus que é a monarchia. O governo da República toca os Filhos Brasileiros dos terreno que pertence a nação e vende para o estrangeiro, nós agora estamos disposto a fazer prevalecer os noços direito. (PEIXOTO, 1995, p. 64-65)

O bilhete transcrito cuidadosamente pelo autor, mantendo a grafia e a

gramática para preservar a riqueza da fonte faz referência explícita ao processo de

instalação das empresas Brazil Railway e a Southern Lumber na região.

Os direitos humanitários dos caboclos que eram permanentemente infringidos

e desprovidos de qualquer proteção do Estado não eram considerados em relação

às reivindicações da Lumber junto ao Governo.

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Boa parte da população cabocla tornou-se revoltosa, e a luta pela terra e a

opressão se opuseram contra a empresa estrangeira, as tradicionais forças

regionais latifundiárias, ao coronelismo e a igreja, ingressando por vez na Guerra do

Contestado.

A partir de fins de 1914 e durante o ano de 1915, o movimento enfrenta o

cerco implementado pelo General Setembrino de Carvalho, o qual dispunha de

aproximadamente 6 mil homens do exército brasileiro, e de outros mil vaqueanos,

capangas dos coronéis da região, contratados para trabalhar na repressão. A

desagregação do movimento se completou com a prisão do último líder rebelde,

Adeodato, em julho de 1916.

2.3.2 A Decadência da Lumber e seu Impacto na Região

Apesar das empresas de Farquhar ter importante relevância para a economia

brasileira e representava a confiabilidade do capital estrangeiro no país,

gradativamente o Sindicato permitiu que se levantassem dúvidas, descontentamento

e impontualidade no pagamento de dividendos dos acionistas. Administrada por

conveniência pelos amigos pessoais de Farquhar, as decisões sobre o rumo da

empresa acatavam rigorosamente suas orientações, ou seja, obtenção de altos

lucros sem importância dos meios empregados.

A bonança era dividida desproporcionalmente, cabendo a menor proporção

aos acionistas e aos investidores europeus e a maior parte entre os administradores,

advogados e autoridades subornadas, causando um descrédito no exterior.

No final da década de 1930, o então Presidente da República, Getúlio Vargas,

considerando que a atividade desenvolvida pela empresa era de alto interesse

nacional e que a impontualidade da companhia gerava descontentamento e dúvidas

quanto ao crédito público, decide pela estatização da companhia e delega a um

Superintendente subordinado ao Ministério da Fazenda a função de assumir a

administração, levantar o ativo e passivo da empresa, normalizar a atividade e

realizar as liquidações legais. "Era o maior império econômico da América do Sul,

que desmoronava tragicamente, ante a ação enérgica, ainda que tardia, do governo

brasileiro" (THOMÉ, 1983, p. 77).

O Decreto-Lei n. 2.346, de 22 de julho de 1940, assinado por Getúlio Vargas,

em plena vigência do Estado Novo, decretou a estatização da empresa Brazil

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Railway Company e suas subsidiárias que atuavam por anos sob o controle

estrangeiro.

O Sindicato Farquhar acumulava uma dívida, em 1940, de

CR$152.983.000,00 e foi necessária a incorporação ao Estado dos bens móveis e

imóveis, direitos e obrigações através da criação da Superintendência das Empresas

Incorporadas ao Patrimônio Nacional (SEIPN), com sede no Rio de Janeiro e

nomeado o Prof. Haroldo Renato Ascoli para administrar o maior ato de

encampação promovido pelo Governo Brasileiro.

A estatização ocorreu em favor dos “interesses nacionais”. Essa foi a justificativa apontada pelo decreto presidencial. A expressão tem um forte viés econômico e financeiro. O fato da Brazil Railway Company e suas filiais controlarem setores de fundamental importância para o Brasil, quais sejam, ferroviário, portuário, energético e de colonização, contribuiu para a estatização. Entretanto, os problemas decorrentes da má gestão nas companhias do grupo Farquhar influenciavam, sobremaneira, a economia nacional. Os atrasos no cumprimento de obrigações com credores de capitais – alavancados em bolsas europeias – geraram descontentamento e abalaram a confiança dos investidores estrangeiros na economia nacional. Isso constrangia a administração pública do país. Com base nessa justificativa, o primeiro artigo do decreto incorporou ao patrimônio da União os bens e direitos tanto da Brazil Railway Company – existentes em território nacional – quanto de suas dependentes, caso da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, além de outras onze companhias (TOMPOROSKI, 2016, p. 08).

O legado resultante do domínio e exploração que o capital estrangeiro impôs

à região do Planalto Norte Catarinense, desde a construção da ferrovia até o a

década de 1940, teve consequências marcantes.

A superexploração da natureza e da sociedade através de ações conjugadas

das empresas e do Estado acabou por dizimar grande parte da população cabocla

na Guerra do Contestado, e impactou fortemente sobre aquele território nas décadas

subsequentes.

Cidades empobrecidas, constante migração e invisibilidade social do caboclo nativo é o que se percebe no dia a dia da região, mesmo que novas forças econômicas e políticas de então, aliadas a uma distância temporal menor do seu fim [...] pode explicar o não saudosismo da população nativa ainda existente. [...] Além de que a intervenção do Estado oligárquico, aliado ao capital estrangeiro, realizou uma ruptura total no que se refere à economia, cultura e principalmente à expropriação das terras de posseiros e caboclos. Os atuais descendentes da população cabocla de então constituem-se numa minoria basicamente “invisível” perante o poder econômico e politico, e praticamente esquecidos na historiografia em geral (CAMPOS, BENDER, 2012, p. 209-210).

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Os acontecimentos históricos ao longo do tempo são responsáveis pela

formação deste território e da identidade do seu povo. O conflito fundiário Pós

Contestado que novamente se instaurou nesta região demonstra que a luta e a

resistência dos oprimidos permanecem arraigados nesta parte da população

catarinense, que luta pelo direito à propriedade e se socorrem, não a uma luta

armada com o Estado, mas na confiança que depositam na justiça para a

salvaguarda de seus direitos.

No decorrer das décadas subsequentes ao término da guerra, o trauma

associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impôs, à

população que reside no território Contestado, sentimentos impregnados de

vergonha, cominando no silenciamento. Este fato se evidencia no amplo

desconhecimento - não apenas em âmbito nacional, mas, também, no próprio

território que fora palco do movimento - acerca das novas pesquisas que se

produziram sobre o Contestado, que estão desconstruindo estigmas e mitos.

Além do trauma que deixou marcas indeléveis naquela população, uma

estratégia de omissão em relação à memória do movimento, implementada pelos

poderes públicos, resultou no silenciamento do Contestado. É razoável considerar,

dentre as razões para isso, a atribuição, as oligarquias políticas, de uma parcela de

responsabilidade sobre a deflagração do conflito, caso do então governador, Coronel

Vidal Ramos. Por outro lado, o Contestado caracterizou-se como movimento não-

branco (apesar da presença de imigrantes e descendentes nas fileiras rebeldes),

levado a cabo por uma população indesejada, residente em um estado no qual a

narrativa da epopeia imigrante tornou-se fundamental. Ainda, justifica políticas

públicas que ao longo do tempo privilegiaram regiões de ocupação imigrante –

especialmente alemães e italianos – em detrimento de outras regiões habitadas por

não-brancos, que não receberam os mesmos recursos econômicos e benefícios

estruturais.

Hodiernamente, a maioria dos municípios que integram o território do

Contestado enfrenta um processo de expansão fundiária, outrora já vivenciado, que

promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes

proprietários rurais e de empresas multinacionais. Em decorrência deste processo,

ocorre a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no

extrativismo, que gera enorme passivo ambiental, particularmente devido à

silvicultura. Além disso, mantém uma estrutura social desigual e injusta, fato que na

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atualidade se manifesta através dos baixos índices de desenvolvimento humano,

identificados no território do Contestado.

Há que se considerar que muitos processos contundentes de exclusão dos

mais pobres permanecem vigentes em toda a região do Contestado. Conquanto, em

perspectiva, percebe-se um longo processo de exploração e exclusão, uma leitura

diametralmente oposta permite vislumbrar que a resistência, a organização e a luta

dos excluídos, em prol do reconhecimento e cumprimento de seus direitos, constitui

uma tradição sólida, a qual atingiu seu auge no movimento sertanejo do Contestado

(1912-1916), e nas décadas subsequentes foi reinventada de modo dinâmico e

ininterrupto (TOMPOROSKI, 2016, p.22).

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3 CAMPO DE INSTRUÇÃO MARECHAL HERMES

O direito à propriedade no Brasil se alinhou de acordo com os rumos

democráticos que as nações do Ocidente tomaram. Considerado um direito

individual, necessita da proteção do Estado. Todavia, o direito coletivo, em prol de

um bem estar social, deve prevalecer diante do individualismo. A questão essencial

é buscar o equilíbrio destes direitos, de forma justa, compensadora, e que garanta

ao desapossado a dignidade na continuidade de sua atividade laboral e a

subsistência mínima de sua família.

Caso o equilíbrio destes direitos não seja alcançado pela intervenção estatal,

prevalece o autoritarismo, a truculência e a insatisfação social, modificando o

cenário econômico e político de uma região, satisfazendo apenas o interesse de

uma minoria e não o bem estar coletivo.

[...] vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas [...]. Para combater os problemas que enfrentamos, temos de considerar a liberdade individual um comprometimento social. (SEN, 2016, p. 10)

Através do enfoque da liberdade como ferramenta principal de fim e de meio

de desenvolvimento, a pesquisa analisa como a privação deste direito limita as

escolhas e as oportunidades, modificando por completo o destino de um

determinado território.

A análise de conflitos fundiários no Pós-Contestado, objeto desta

dissertação, debruça-se sobre as alterações no cenário político, econômico e social

que a instalação do CIMH promoveu na região do Planalto Norte Catarinense. Sem

qualquer participação social, a decisão política gerou efeitos limitadores aos

desapropriados, que, sem qualquer opção, viram-se obrigados a entregar suas

terras a mercê de um processo judicial, moroso e burocrático,para, quiçá,receber do

Estado o pagamento de uma justa indenização.

O recorte territorial desapropriado corresponde a uma área total de 7.595 ha

(LIMA, 2016, p. 02) que foi regulamentado pelo Decreto n. 40.570, de 18 de

dezembro de 1956 e retificado pelo Decreto n. 44.458, de 03 de setembro de 1958.

De acordo com o documento, a área foi dividida em duas glebas, sendo que a Gleba

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A integrava 48 propriedades, e a Gleba B41 propriedades, distribuídas conforme o

mapa.

Figura 01: Mapa da divisão da área por glebas e propriedades

Fonte: Processo 501.114/87, p.438

Ao analisar o mapa, constata-se que a desapropriação atingiu uma extensa

área de terras, com limites entre as cidades de Três Barras, que havia se

municipalizado em 1960, e Papanduva. O CIMH mantém sua sede na Avenida

Rigesa, no centro de Três Barras, mas utiliza esta área para a prática de manobras

e treinamentos do Exército brasileiro.

3.1 DA ESTATIZAÇÃO DA LUMBER À INSTALAÇÃO DO CIMH:

A trajetória da disputa legal das terras desapropriadas teve início com a

estatização da empresa Brazil Railway Company, através do Decreto-Lei n.2.346, de

22 de julho de 1940, assinado pelo Presidente da República Getúlio Vargas, em

plena vigência do Estado Novo. Com a criação da Superintendência das Empresas

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Incorporadas ao Patrimônio Nacional (SEIPN), passou-se a encampação dos bens

móveis e imóveis, direitos e obrigações da empresa estrangeira, atingindo também a

sua subsidiária Lumber Company, situada em Três Barras16.

Somente em 1948 o Estado autorizou a SEIPN a vender, mediante

concorrência pública, através da Lei n. 253/48 17 , o patrimônio da Lumber para

liquidação do saldo de dívidas aos acionistas na Inglaterra.

Para Thomé (1983, p. 139) a alienação dos bens foi vencida por um consórcio

de empresas (Sociedade Madeireira e Colonizadora São Roque Ltda, Sociedade

Pinho e Terras Ltda e Indústrias Gropp Ltda), sendo que todas eram controladas

pelo mesmo empresário, Alberto Dalcanale, que atuou na colonização do sudoeste

do Paraná e Oeste de Santa Catarina.

Ainda, segundo o autor, o pagamento foi acertado em Cr$8.550.000,00,

pagáveis em 12 prestações e incluía a Fazenda São Roque, então com

39.028.713,9 hectares; além das terras, aproximadamente 400 mil pinheiros e outras

madeiras de lei adultas, cinco serrarias instaladas, vagões da estrada de ferro, e

demais instalações, bem como os contratos de compra e venda de terras até então

realizadas com imigrantes, lavrando-se a escritura no Tabelião do 6º Ofício de Notas

do Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 1950.

O ponto inicial de todo este negócio aparentemente desventuroso, que

envolveu a transferência inicial da Lumber Company ao empresário Dalcanale,deu-

se já no edital de concorrência pública, com a estipulação de valoresabaixo da

avaliação dos bens da companhia. Este é o marco embrionário de toda a

negociação escusa que ocorreu.

Houve irregularidades no edital de concorrência e na posterior divisão dos bens da Lumber. A proposta vencedora foi a única representada, com excedente de apenas Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiro) em relação ao preço básico estipulado de Cr$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de cruzeiros). Apesar do edital de concorrência pública não permitir a divisão dos bens da Lumber, após a negociação, parte deles foi rapidamente escriturada em nome de terceiros (TOMPOROSKI, 2014 p. 102).

Quanto ao restante de terras pertencentes à antiga Lumber, no tocante a

quase três mil quilômetros quadrados, a maior parte foi alienada a particulares,

16

Três Barras não havia passado pelo processo emancipatório, sendo Distrito de Canoinhas-SC. 17

Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1940-1949/lei-253-18-fevereiro-1948-367226-norma-pl.html

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reservando à União apenas 2 mil hectares na região de Três Barras e Papanduva.

Esta gleba de terras foi escriturada ao Ministério da Guerra que as destinou ao

Exército Brasileiro, a fim de serem utilizadas pela 5.ª Região Militar como área de

manobras, instalando-se o Campo de Instrução “Marechal Hermes”. Junto à sede da

empresa, surgiria mais tarde a cidade de Três Barras. (THOMÉ, 1983, p. 140).

Apesar da aquisição desta área pelo Exercito Nacional, a mesma ainda era

insuficiente para os treinamentos e manobras com tanques de guerra, havendo a

necessidade de extensão com terras limítrofes ao CIMH.

Em 1952, o Ministério do Exército recebeu, da SEIPU, diversas áreas pertencentes ao acervo da Southern Brasil Lumber & Colonization CO, destinadas ao Campo de Instrução Marechal Hermes, em Três Barras, SC. Verificou-se, já em época anterior ao recebimento que, havendo necessidade de se incorporarem outras mais, a fim de que se dessem condições operacionais ao Campo. Foram iniciados então, acordos, entendimentos com o Estado de Santa Catarina, ficando acertada a permuta das áreas sem destino para o Ministério por outras necessárias ao Campo a serem desapropriadas pelo Governo Estadual. (PROCESSO N. 501.114/87 – Parecer da Assistente Jurídica do Patrimônio – p. 205).

Sabedor do interesse do Ministério da Guerra em adquirir terras no Estado, o

Governador Catarinense Ireneu Bornhausen, parecendo atender aos interesses do

empresário Alberto Dalcanale, indicou ao Exército a área contemplada por ele na

concorrência pública, o que atendia perfeitamente a intenção do Exército de

estender as suas terras com áreas limítrofes.

A narrativa da assessoria jurídica do exército confirma que o governo estadual já havia se comprometido, ainda que informalmente, de desapropriar áreas no entorno das já incorporadas ao patrimônio pelo Decreto 40.570, de 18 de dezembro de 1956.E, segundo o relato, o período entre 1956 até 1961, não foi um período de desinteresse do Ministério do Exército, e sim, de aguardar um posicionamento do governo estadual de Santa Catarina sobre a desapropriação da área, conforme tratativas anteriores (Processo n. 501.114/87, p. 195-196).

Com argumentos ardis e bem elaborados, características de um próspero

empresário como Dalcanale, com a intermediação do Governador do Estado,

obtiveram êxito na transferência do patrimônio da Lumber Company ao Ministério da

Guerra. Após os ajustes jurídicos, em 11 de setembro de 1952, a área onde outrora

funcionara a Lumber Company, passou ao controle do Exército brasileiro.

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Aqueles bens com potencial de otimizar a geração de lucros para as empresas adquirentes, controladas por Alberto Dalcanale – entre os quais uma grande propriedade em Calmon, a fazenda de São Roque, com duas serrarias, desvios ferroviários, trezentos e cinquenta mil pinheiros, imbuias, etc., permaneceram com o empresário [...]. Em contrapartida, sob a responsabilidade do exército, permaneceram a serraria de Três Barras – transferida por Dalcanale ao Ministério da Guerra – praticamente imobilizada, assim como o conjunto de antigos trabalhadores da Lumber. O custo estimado com os encargos decorrentes de eventual demissão dos trabalhadores poderia atingir cinquenta milhões de cruzeiros (TOMPOROSKI, 2014, p. 106)

A transferência das terras necessárias para composição do Campo de

Instrução (exceção feita àquelas povoadas por pinheiros)consistiu em uma

estratagema do empresário Alberto Dalcanale para transferir, além das terras, os

ônus da antiga Lumber para uma instância pública – no caso, o Ministério da Guerra

– desincumbindo as empresas do referido empresário das obrigações trabalhistas

dos pagamentos de salários, encargos sociais e possíveis indenizações aos

operários da companhia (TOMPOROSKI, 2014, p.105).

Segundo Lima (2015, p. 13):

Com o término das atividades da Lumber, através da Portaria n.º 75.952 N.º RG 4252 de 19 de agosto de 1952, sob o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, ocorre a transferência do patrimônio da Lumber para o Ministério da Guerra. A área passa a pertencer ao Ministério do Exército, destinada à implantação de campo de instrução militar, dando origem ao CIMH - Campo Instrução Marechal Hermes.

De certo modo, a transferência de parte do patrimônio da

Lumber,configurando uma empresa praticamente imobilizada, e todos os encargos

trabalhistas decorrentes do vínculo com os empregados ao Ministério da Guerra,

contemplou, ainda que indiretamente, os interesses patrimoniais das famílias

Dalcanale e Bornhausen.Ou seja, ambos atuaram para que permanecesse sob o

controle dos seus a parte valorizada do acervo. "No dia 04 de fevereiro de 1954, a

filha de Alberto Dalcanale, Ivete Terezinha, e o filho do governador Ireneu, Paulo

Konder Bornhausen, casaram-se" (TOMPOROSKI, 2014, p. 108).

Para Lima (2016), visando dar operacionalidade ao campo militar, ainda havia

a necessidade de desapropriar mais terras no entorno das já adquiridas pelo CIMH.

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53

Através dos Decretos n. 40.570 de 18.12.195618, modificado pelo Decreto n. 44.458

de 03.09.1958, as desapropriações foram legalizadas.

A área definida para a desapropriação, segundo o Cel. Oromar Osório,

Comandante da Divisão de Infantaria, foi aquela que reunia as terras

Registradas na carta levantada pelo Serviço Geográfico do Exército, com base nos limites estabelecidos pela Comissão de 1952, que, a grosso modo, tem os seguintes pontos de referência: da Capinha ao Monte Castelo e de Canoinhas ao São João. Terreno de forma irregular, mas contínuo (JORNAL CORREIO DO NORTE, 24 de setembro de 1959).

O governador enviou instruções ao prefeito de Canoinhas, orientando-o para

que, juntamente com o representante da Companhia de Madeiras, principal empresa

compradora do acervo da Lumber, compusesse uma comissão com o objetivo de

localizar uma área de terras que atendesse aos interesses dos militares. Dessa

forma, o governador do Estado de Santa Catarina, no uso de suas atribuições,

delegou a responsabilidade sobre a seleção e, ato contínuo, desapropriação da área

de terras destinada à constituição do campo militar, a uma comissão composta tanto

por representantes do Ministério da Guerra quanto pelo proprietário das companhias

que iriam explorar ulteriormente os bens integrantes do acervo da antiga Lumber.

Certamente o poder para selecionar e desapropriar terras não deveria ser transferido

a uma comissão constituída, paradoxalmente, por representantes de empresa

privada. (TOMPOROSKI, 2015, p. 103-104)

Para este feito, fez-se necessária a retirada, ainda que por meios legais, de

uma área de 7.595 ha., consistente em 89 propriedades, distribuídas entre 68

famílias, sendo a maioria pequenos posseiros e proprietários. O decreto assinado

pelo Presidente Juscelino Kubitschek e Henrique Teixeira Lott, Ministro da Guerra,

foi fundamentado no Instituto da Desapropriação por Utilidade Pública, prevista na

Constituição de 1946 e aplicada à época dos fatos.

Os desapropriados da área em questão formavam um grupo, em sua grande

maioria, de pequenos proprietários rurais, cujos meios de sobrevivência eram

baseados exclusivamente no trabalho agropastoril. A produção classificava-se em

dois tipos: a extrativista (madeira, erva-mate e mel) e pelo cultivo da terra,

basicamente de subsistência. Estocavam em paiol e no momento necessário

18

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-40570-18-dezembro-1956-330304-publicacaooriginal-1-pe.html

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comercializavam. Tinham como principais características: residência rural;

agricultura familiar, praticada em pequenas propriedades; apego ao solo, à

comunidade local e à tradição. Usavam da mão de obra familiar, frequentemente

completada pela ajuda comunitária, através do “pixirum”.19

Entre os legítimos ocupantes das terras havia aqueles que possuíam documentos (escrituras), havia posseiros, havia empregados das grandes fazendas aquinhoados com pequenas glebas para plano de sobrevivência, havia herdeiros do Contestado, pessoas que ficaram por ali após a guerra que estabeleceu as divisas; havia casas com lustres e vidros trabalhados e havia casebres cobertos de sapé (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.02)

Os 68 proprietários desapropriados, possuíam propriedades com dimensões

territoriais representadas no gráfico.

Figura 02: Gráfico do tamanho de área (em há) das propriedades desapropriadas

Fonte: Decreto nº 40.570 de 18/12/1956

O gráfico demonstra que a maioria dos proprietários eram minifundiários e

suas terras não ultrapassavam 50.000 ha, comprovando a dependência daqueles

desapropriados da atividade agropastoril para subsistência.

19

O pixurum acontecia quando família vizinhas se organizavam para trabalhos específicos em conjunto e como formas de pagamento recebiam um grande almoço, geralmente acompanhado com um baile à noite.

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Para o Estado, a desapropriação daquelas terras demonstrava que o

individualismo sobre a propriedade, ainda que produtiva, não se sobrepunha ao

interesse coletivo da necessidade de instalação de um Campo de Instrução Militar

naquela área, características da legislação vigente à época, como a Constituição

Federal de 1946 e o Decreto-Lei n. 3.365 de 21 de junho de 1941, que já previam a

função social da propriedade e a unificação da dicotomia necessidade – utilidade

pública.

Contudo, havia entre a sociedade local uma desconfiança acerca da

implantação do campo de instrução e sua contribuição para o desenvolvimento da

região, pois terras produtivas com enormes riquezas naturais deixariam de serem

exploradas. A imprensa local alertava à época:

O Campo de Manobras, embora traga para o município contingente das forças armadas, talvez não compense, - quando se analisa os fatos sob o prisma do fator tempo, - a inutilização de vastíssima zona produtora de mate, na qual existe apreciável parcela aproveitada em extensas lavouras, além de vastas áreas de pastagens, talvez as melhores para criação de gado, neste município e no de Papanduva. Seja como for, os responsáveis pelos destinos nacionais, estaduais e municipais, não têm o direito de cruzar os braços ante o drama que vivem os servidores da ex-Lumber. Por outro lado, a grande vila-cidade que é Três Barras, também tem seu direito a um lugar ao sol do progresso geral, e não pode ser entregue ao sabor de um destino adverso (BARRIGA VERDE. Ano XVI. Nº 839. Canoinhas, 24/03/1954).

A preocupação era compreensível diante da transformação social, política e

econômica que a desapropriação causaria na região. A imprensa local alertava

quanto ao interesse militar parecer apenas uma politicagem desesperada e que era

preciso priorizar o futuro da vila de Três Barras e de toda a região.

Para Tomporoski (2015, p. 109) a desconfiança na Instituição do Ministério do

Exército era fruto do descaso com os trabalhadores da Lumber. Junto com parte do

acervo, Dalcanale transferiu os duzentos e sessenta e quatro trabalhadores da

empresa e os correspondentes encargos trabalhistas. Todavia, apesar da atribuição

institucional, o Ministério do Exército não reconhecia a imputação de

responsabilidade para com os trabalhadores e, por conseguinte, não cumpria as

determinações da legislação trabalhista, abandonando-os à própria sorte.

Enquanto as famílias Dalcanale e Konder Bornhausen celebraram sua união por intermédio do matrimônio de Paulo e Ivete, os quase trezentos trabalhadores da Lumber e suas famílias, num total aproximadamente de

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mil e duzentas pessoas, padeciam com o segundo longo período de atrasos nos salários. Surgiam os “flagelados de Três Barras”. Os trabalhadores permaneciam com seus vencimentos em atraso, com a fome “invadindo os lares de muitos operários”. (TOMPOROSKI, 2015, p. 109).

Ambos os envolvidos nas negociações fizeram todo o possível para livrar-se

da responsabilidade sobre os trabalhadores, seus encargos trabalhistas e eventuais

indenizações decorrentes de demissões.

Contudo, a desapropriação parecia mesmo se efetivar quando o Ministério da

Guerra, através da Emenda n. 157, levantou a quantia de CR$8.000.000,00 (oito

milhões de cruzeiros), para a composição do campo militar em Três Barras,

destinando os recursos ao pagamento de indenizações.

Sei que o Exército dispõe de 8 milhões de cruzeiros depositados em Curitiba há 4 anos para o ônus da desapropriação de parte dessa área, mas infelizmente, ainda não foi possível atingirmos esse objetivo. Em que pese isso, podemos afirmar que o Campo atende perfeitamente às necessidades de exercícios da envergadura deste (JORNAL CORREIO DO NORTE, 24 de setembro de 1959).

Com a abertura do procedimento e com a promessa de uma justa

indenização, inicialmente foram realizadas as avaliações das áreas abrangidas e

solicitação aos proprietários da documentação pertinente às suas áreas, bem como

uma lista discriminatória dos bens existentes na propriedade, o que foi prontamente

atendido pela maioria dos proprietários (LIMA, 2016, p. 04).

Entre esses primeiros atos expropriantes, logo após a publicação do Decreto,

em 1956, até o ano de 1961, os proprietários afirmam ter havido um limbo quanto ao

avanço dos processos expropriatórios. O poder público emudeceu-se por completo

com relação ao destino do Decreto e das pessoas por ele atingidas, dando a

entender aos desapropriados que os planos de implantação do campo de manobras

do Ministério do Exército haviam sido abandonados (Processo n. 501.114/87, p. 05)

Na esperança de valer-se do direito à justa indenização, os proprietários

atingidos tinham em mente a valorização de suas terras, compostas de madeiras e

ervais nativos, além do solo apropriado para a atividade agropastoril. Até então,

nada opuseram quanto ao prosseguimento do processo.

A tramitação do processo expropriatório seguiu seu curso, e atendendo ao

pedido dos proprietários, o juiz determinou que novas avaliações fossem realizadas

nas áreas desapossadas. Os peritos nomeados foram Antonino Nicolazzi e José

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Stockler Pinto, os quais apresentaram planilhas de cálculos individuais de cada

expropriado, considerando as terras, as árvores de lei e as benfeitorias (Processo n.

501.114/87, p. 376-397).

Comparando-se os valores declarados nos decretos desapropriatórios

(anos1956-1958) com os valores indicados pelos peritos (ano 1964), a diferença nas

avaliações é exorbitante, o que reforçava o descontentamento dos proprietários com

os valores propostos como indenização.

Segundo Lima (2016, p. 05), a partir do depoimento de Walfrido da Silva

Lima, que era proprietário de 16.964 ha., no Decreto sua propriedade estava

estimada em Cr$ 24.826,50 e na avaliação de 1964 a mesma área passou ao valor

de Cr$ 2.990.265,00. Esta discrepância também estava presente em outras

propriedades, como a de José Silva de Lima com 495.601 ha., no valor de Cr$

677.796,80 pelo Decreto de 1956 e na avaliação de 1963, sua área era passou a ser

estimada em Cr$ 16.185.416,00.

Em entendimento contrário, a partir da análise da opinião manifestada pelo

governo através de sua assessoria (Processo n. 501.114/87, p. 205), constatou-se

que estas avaliações estavam distorcidas da realidade em relação os valores iniciais

indicados no Decreto Expropriatório. A avaliação realizada inicialmente naquela área

se atribui ao fato de que, após as indicações de valores, houve uma ampla

exploração do assunto por parte de políticos influentes da região, inclusive com

abaixo-assinados destinados às altas autoridades, tanto em nível local, como

também em nível estadual e nacional. Esta ampla divulgação teria motivado os

desapropriados a não mais concordarem com os preços já previamente fixados.

A assessoria ainda noticia que mesmo após as avaliações das propriedades,

os expropriados venderam cerca de 80 mil pinheiros, localizados nas áreas já

decretadas como de utilidade pública, para firmas particulares durante este período.

As firmas compradoras dos pinheiros começaram a pleitear a retirada das

plantas, o que gerou um impasse, pois se o poder público permitisse a retirada dos

pinheiros, era necessária uma nova reavaliação dos terrenos e benfeitorias das

glebas A e B, pois, consequentemente teriam menor valor ainda.

Por esse motivo, uma desapropriação amigável se distanciava, pois a cada

dia, segundo a assessora (Processo, p.207) apareciam mais problemas com o

objetivo único de que a desapropriação não se ultimasse.

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Todavia, a União ingressou com a demanda judicial após quase cinco anos

da publicação do Decreto Desapropriatório e o Poder Judiciário através de impulso

oficial20, iniciou a fase de citação21 do processo das 41 famílias identificadas e que

tinham toda a documentação comprobatória de suas propriedades.A citação do

processo pelo réu é preceito constitucional, que atende ao Princípio do

Contraditório22, é o momento processual em que é formada a tríplice relação entre o

autor da demanda, o demandado e o Poder Judiciário.

Segundo documento anexado ao processo (Processo 501.114/87, p. 06), por

razões desconhecidas, muitos dos proprietários deixaram de ser regularmente

citados, ficando alheios a tudo que se passava, tendo seus processos

desapropriatórios julgados à revelia23.

O aprofundamento do estudo através da análise dos processos

desapropriatórios que tramitaram na Comarca de Canoinhas certamente

esclareceriam esta questão jurídica de falta de citação de alguns proprietários,

contudo não é este o enfoque desta pesquisa.

Em contra-argumentação, por meio da análise do parecer, a assessoria

jurídica do SEIPN reconheceu a existência de algumas falhas, mas afirma que o

procedimento ocorreu dentro da legalidade.

Uma vez prosseguido com o processo, as injustiças cometidas àqueles

desapossados começam a transparecer. A União, para cumprir os requisitos da lei e

se apossar das terras, efetivou os depósitos judiciais baseados nos valores

levantados no Decreto Desapropriatório (1956-1958), sem correção monetária e

muito aquém dos valores estimados nas avaliações posteriormente realizadas,

gerando descontentamento aos beneficiários.

20

O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo às exceções da previstas em lei. (Artigo 2º do Código de Processo Civil) 21

Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. ( Artigo 5º,LV da Constituição Federal) 22

Do contraditório resultam duas exigências: a de se dar ciência aos réus da existência do processo, e aos litigantes de tudo o que nele se passa; e a de permitir-lhes que se manifestem, que apresentem suas razões, que se oponham à pretensão do adversário. O juiz tem de ouvir aquilo que os participantes do processo têm a dizer, e, para tanto, é preciso dar-lhes oportunidade de se manifestar, e ciência do que se passa, pois que sem tal conhecimento, não terão condições adequadas para se manifestar. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015) 23

A revelia é uma ato-fato processual, consistente na não apresentação tempestiva da contestação. A revelia é ato-fato que produz o efeito material de presunção de veracidade das alegações de fato feitas pelo demandante. (DIDIER, Fredie Jr, 2015)

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Os valores atribuídos como indenização encontravam-se naquele ano (1963)

totalmente defasados, porque o lapso temporal de 10 anos entre a avaliação e o

depósito foi desconsiderado, ademais já se verificava naquela época uma

desenfreada inflação. Os anos 1950 haviam registrado uma substancial elevação do

patamar inflacionário, com aumento acumulado próximo de 460%, mais que

dobrando a taxa de crescimento dos preços em relação à década anterior. A década

de 1960 traria novas surpresas para quem imaginava que os desajustes monetários

dos anos 1950 viriam a ser logo superados. Diferentemente, o que se viu foi um

extraordinário salto das taxas de inflação, logo ao iniciar-se o decênio, pois o

crescimento dos preços elevou-se rapidamente, passando dos pouco mais de 30%

registrados em 1960 para mais de 90% na variação dezembro/dezembro ao final de

1964 (MUNHOZ, 2008, p.12). Esta situação resultou na impossibilidade de compra,

com os valores da indenização, nem sequer de 3% das áreas que estavam sendo

despojadas (Processo n. 501.114/87, p. 06).

O ano de 1963 ficou marcado na memória de cada proprietário daquelas

terras. Uma vez cumprida à exigência da legislação, a União estava autorizada a

tomar posse daquelas terras.

Desse modo, os valores oferecidos em depósito causaram o

descontentamento geral e não mais possibilitavam a aquisição de novas terras nas

mesmas proporções.

A morosidade da justiça, nesse caso, tem proporcionado seríssimo desequilíbrios sociais, considerando serem os impetrantes lavradores que desconhecendo os efeitos da Lei, tudo tem que pagar para obterem seus direitos. (JORNAL CORREIO DO NORTE. Canoinhas, 08/05/1965).

Com os depósitos, ainda que defasados, o Juiz de Direito da Comarca de

Canoinhas determinou o prazo de 48 horas para a desocupação voluntária das

propriedades;caso contrário, autorizava o Ministério do Exército a proceder com a

expulsão forçada. Todos aqueles que estavam direta ou indiretamente ligados aos

fatos foram tomados de surpresa por aquela decisão judicial (Lima, 2016, p. 07).

Tão logo a decisão de imissão de posse tornou-se pública, e numa rapidez

atípica do Poder Judiciário, foram emitidos os mandados que autorizavam a autora

da ação a tomar posse das propriedades.

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Alguns poucos proprietários conseguiram se restabelecer no prazo concedido

pela justiça; os demais, a grande maioria, apesar de prósperos produtores, não

conseguiam se reabilitar. Os que tinham parentes mais próximos migraram para

outras regiões. Aqueles que não possuíam suporte familiar precisaram contar com a

benevolência de terceiros, ou ficaram sujeitos a subempregos ea condições indignas

de subsistência.

Quanto aos animais, os poucos afortunados arrendavam24 do próprio Exército

suas terras a fim de conservar suas reses, o que por si, desvia por completo a

finalidade da desapropriação.

Ao final da década de 1960 e início da década de 1970 foram proferidas as

primeiras sentenças judiciais, nas quais faziam respeitar os valores das novas

avaliações periciais e a aplicação de correção monetária. Se não atendiam

totalmente aos interesses dos desapropriados, ao menos, se equiparava as perdas

inflacionárias do período.

Demonstrando inconformismo com as sentenças proferidas pelo Juiz da

Comarca de Canoinhas e discordando dos novos valores avaliados e da incidência

de correção monetária, a União Federal recorreu aos Tribunais Superiores visando à

reforma das decisões de primeira instância.

Submetidos ao reexame e passados entre quatro a seis anos, foram as

sentenças iniciais reformadas no tocante ao valor atribuído para as indenizações. Na

nova decisão, os ministros decidiram pela redução em 40% a 50% do valor

sentenciado e, ainda, sem qualquer incidência de correção monetária, que somados

à inflação atribuída ao período, explica os valores irrisórios que se tornaram as

indenizações.

24

Segundo Lima (2016, p.09): Contrato de arrendamento, celebrado entre o Ministério do Exército/Campo de Instrução Marechal Hermes e o Sr. Jose da Silva Lima, firmado em 27 de junho de 1969. Contrato de arrendamento n. 10/FA/70, celebrado entre o Ministério do Exército e o Sr. Joao Gonçalves de Lima Filho, firmado em 14/02/70. Contrato de arrendamento n.11/FA/70, celebrado entre o Ministério do Exercito e o Sr. Argemiro Gonçalves de Lima, em 14/02/70. Recibo de Cr$ 67,20 passado em 22.11.71 pelo tesoureiro do Quartel em Três Barras, em favor de Argemiro Gonçalves de Lima, quitando o arrendamento de pastagem para criação de 8 reses pelo prazo de 1 ano. Recibo de Cr$ 84,00, passado em 16/11/71 pelo tesoureiro do Quartel em Três Barras em favor de Victor Gonçalves de Lima, quitando o arrendamento de terra para criação de 10 cabeças de gado vacum. Contrato de Arrendamento n. 2-FA/73, celebrado entre o Ministério do Exército e o Victor Gonçalves de Lima, firmado em 15/05/73. Carta de autorização expedida pelo diretor do CIMH em Três Barras, em 02/04/74, para Victor Gonçalves de Lima usar a título precário a pastagem da área de manobras de gado, mediante o pagamento com trabalhos de roçadas nas margens das estradas das áreas de manobras.

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O texto escrito por Luís Veríssimo no jornal de Santa Catarina (Processo n.

501.114/87, p. 14) noticiava a forma como a decisão do Tribunal atingia as famílias

do norte Catarinense:

[...] para as poucas famílias que receberam o valor foi “irrisório”, como aconteceu com a família de Aristides Guebert, que recebeu a primeira precatória (número 2779, de 23 de junho de 1970), julgada pelo Tribunal Federal de Recursos. Segundo a reavaliação de preços feita em 1964, o valor da indenização seria de Cr$25.711,75 – cruzeiros velhos), mas o TFR estabeleceu em apenas Cr$ 14.953,62, ou seja, um valor inferior ao estipulado seis anos antes, sem incluir juros e correção monetária. Este valor corresponde a 372 hectares de terras férteis.

Segundo o advogado dos proprietários, Dr. Francisco Vital Pereira 25 ,

constata-se o pronunciamento de um Ministro do Tribunal Federal de Recursos, que,

ao expressar-se a respeito da indenização fixada em sentença que lhe era então

submetida, declarou: “estar-se pretendendo fazer um carnaval, em Canoinhas, com

o dinheiro da União” (Processo n. 501.114/87, p. 07). A frase citada, proferida pelo

Ministro, indica que os direitos reivindicados pelos desapossados eram tratados

como uma forma de enriquecimento ilícito, quando, ao contrário, eram valores

providos de avaliações judiciais, realizadas por profissional habilitado e imparcial,

que soube mensurar quanto as terras valiam para aquelas pessoas.

Todavia, apenas alguns poucos proprietários, através de seus advogados

constituídos, recorreram a tempo ao Supremo Tribunal Federal e lá, nos termos da

súmula 475 do STF26 e da Lei n.4.686, de 21 de junho de 196527 (estabelecia a

incidência da correção monetária no campo imobiliário e a aplicação imediata aos

processos em curso), conseguiram reestabelecera sentença de primeiro grau e a

incidência da correção monetária foi aplicada aos valores das indenizações.

[...] a questão do pagamento, das terras desapropriadas, foi complexa, devido à atuação dos advogados, onde apenas dez desapropriados receberam formalmente. Houve casos de advogados receberem via procuração e não repassaram aos clientes, diante do fato dos mesmos

25

Advogado da questão representando os desapropriados no período de 1984 a 2005(Lima, 2016). 26

“A Lei 4.686, de 21/06/65, tem aplicação imediata aos processos em curso, inclusive em grau de recurso extraordinário”. (https://www.legjur.com/sumula/busca?tri=stf&num=475) 27

Art 1º O atual parágrafo único do art. 26 do Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941 (Lei de Desapropriação de Utilidade Pública) passará a ser o § 1º, acrescentando-se ao mesmo artigo a seguinte disposição: "§ 2º Decorrido prazo superior a um ano a partir da avaliação, o Juiz ou o Tribunal, antes da decisão final, determinará a correção monetária do valor apurado". (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4686.htm)

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ignorarem o que estava acontecendo; em outros casos os desapropriados optaram por não retirar os valores depositados aguardando o pagamento justo e em algumas situações de não receberem qualquer indenização. (SCHIOCHET, 1993, p.10).

Os demais desapropriados, que não tiveram as mesmas condições, se

declararam vítimas de uma grande injustiça, e, embora desiludidos, persistiram no

intuito de reaverem as propriedades ou receberem uma indenização justa.

Há as que têm seus títulos de posse devidamente registrados em cartório, há as que desistiram de brigar por não terem documentos legítimos; há as que julgaram mais cômodo simplesmente esquecer o caso e procurar outros meios de sobrevivência. Há que se considerar, e muito, o fato de, na época, os próprios cartórios terem dificuldade para estabelecer medidas e tamanhos exatos das áreas e o governo não ter sequer a noção exata de sua localização. Não havia mapas confiáveis e, hoje, discute‐se a razão de cada um em virtude, também, de toda a incerteza que cerca a questão. Os que possuem documentos brigam baseados em fatos, números e dados concretos, mas a grande maioria, aqueles menos esclarecidos, nem tomam conhecimento da possibilidade de reaver suas propriedades ou de receber, mesmo que tardiamente, a indenização, pois não possuem documentos legais. Assim apenas aquelas famílias mais ricas ainda nutrem a esperança de, um dia, fazerem valer seus direitos (CORREIO DO NORTE, 2014, Ed. 3756, p.02-03).

Aqueles que não puderam insistir por vias judiciais, passaram a organizar-se

através de movimentos sociais no intuito de pressionar o governo e a opinião pública

na direção de uma solução amigável.

3.2 EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO ADMINISTRATIVA

Paralelamente à morosidade do Poder Judiciário em rediscutir a questão

referente aos valores a serem pagos a título de indenização nas instâncias

superiores, o caos se instalou na região de Três Barras. Compôs-se um cenário,

para alguns, de esperança no recebimento das indenizações atualizadas e na

possibilidade de um recomeço; outros sucumbiam expostos a uma situação precária,

sem moradia ou meios de subsistência, desacreditando na Justiça, mas confiantes

numa solução administrativa para o caso, através de sua organização e luta por

meio de movimentos sociais.

Na tentativa de mobilizar as autoridades pela via administrativa, ao passo que

pela via judiciária, aos olhos dos proprietários não se fez justiça, inúmeros

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requerimentos, ao longo de 20 anos, foram dirigidos às mais diversas autoridades,

civis e militares, solicitando uma intervenção no caso, porém todos os esforços

restaram infrutíferos.

Segundo LIMA (2016), no ano de 1973, mais precisamente no dia 31 de

março, foi encaminhada uma correspondência ao Presidente da República, expondo

a situação dos desapropriados e solicitando uma audiência para uma comissão de

seis representantes. Vejamos parte desta correspondência:

Permita, V.Exa., que uns humildes patrícios tomem a liberdade de dirigirem-se ao Ilustre Chefe da Nação, a fim de fazerem um pedido que representa muito para uma classe de antigos lavradores, de bons brasileiros que só almejavam trabalhar e produzir para o progresso de nossa pátria e de que de uma hora para outra, foram injustiçados pelo Governo Federal e pelo Exército Nacional, despojados de suas propriedades e muitos dos quais acham-se atirados na mais completa miséria, chegando ao cúmulo de mendigar pelas ruas, outros, trabalham em setores diversos, mal aproveitados, como na coleta de lixo, abertura de valas, ou sujeitando-se a trabalhar em fábricas ou pelo sistema de meação em lavouras de proprietários não atingidos pelo Decreto de Desapropriação n. 40.570 de 18 de dezembro de 1956 (CORRESPONDÊNCIA, 1973)

28

Outros documentos 29 foram enviados às autoridades pelos proprietários,

herdeiros e sucessores, expondo o angustiante drama que já se arrastava por duas

décadas, causando problemas da mais larga repercussão social da região.

Nos referidos apelos, os desapossados denunciavam a forma que o Ministério

do Exército recebeu as áreas de terras constantes do acervo da Southern Brzil

Lumber & Colonizations CO, destinadas ao CIMH. Citavam também que a referida

transação, por si, não atenderia à extensa área de terras necessárias para o campo

de manobras, e que a desapropriação ao entorno, já prevista, atendeu a interesses

políticos do empresário Dalcanale e ao Governador do Estado de Santa Catarina, e

não aos interesses dos pequenos proprietários que exerciam ativamente a

agricultura e a pecuária.

Noticiaram também a insegurança e intranquilidade com que os processos

desapropriatórios tramitaram na justiça, e que a rapidez com que a União recebeu

28

Esta correspondência continha 65 assinaturas de desapropriados e herdeiros, registrada no 2 Tabelião de Notas “Agenor Vieira da Corte”, de Canoinhas-SC. (LIMA, 2016) 29

Datado de 15 de julho de 1976, destinado ao Presidente da República, General Ernesto Geisel, ao DD. Ministro do Exército, General Sylvio Couto de Frota, ao DD. Comandante da 5 Região Militar e ao DD. Diretor do Campo de Instruções Marechal Hermes, Tenente Coronel Nilson Santos Walback. Ao documento foram acostados diversos documentos que retratavam a situação em questão. (Processo n. 501.114/87, p. 25)

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autorização para imitir-se na posse, não foi igualmente aplicada no pagamento das

indenizações. Relataram a forma como foram desalojados de suas casas e de suas

terras e impedidos de nelas praticar qualquer ato, tudo deixando, desde plantações

até benfeitorias.

Os desapossados indicaram ainda às autoridades a disparidade dos valores

atribuídos aos imóveis e os compararam aos valores à época, denunciando à

injustiça que ora vinham sofrendo. Demonstraram através da equiparação dos

valores apurados por hectare, que sequer compravam um “cafezinho” e somente a

soma de 03 hectares compravam uma “caixa de fósforos” (Processo n. 501.114/87,

p. 27).

Como se não bastasse, os proprietários ainda relataram a forma como

sumariamente foram arrancados de suas casas, alguns buscando abrigo em casas

de parentes, outros, mais infortunados, ficaram ao relento, sem alimentação, sem

emprego, com suas mulheres e seus filhos na mais terrível miséria.

A injustiça noticiada pelos proprietários através deste documento ainda

esclarecia que além da decisão reformada, o valor médio fixado para as terras não

chegava a 1% do seu valor real, pois não haviam considerado as benfeitorias como

paióis, mangueiras, cercas e muito menos a madeira existente.

Para finalizar o documento, os proprietários ainda argumentaram quanto a

outro ponto, por certo o mais importante: que as áreas desapropriadas, naquela

época (ano de 1976) eram inadequadas à finalidade pretendida (utilidade pública) e

que o campo de instrução, naquela região, já não tinha mais viabilidade pela sua

localização.

Alegaram que a localização do Campo de Instrução 30 não era mais

aconselhável, considerando que os carros de combate do exército eram equipados

de arma de alcance de até 20 km e poderiam colocar em risco as cidades e as vias

de comunicação ao redor. Ainda, que o custo de transportes de tropas de distantes

regiões, bem como de equipamentos, consumia vultosas somas em combustíveis,

além dos carros de combates, que necessariamente teriam que transitar pela BR

101 e certamente destruiriam o leito asfáltico.

30

Sendo 12 km de Três Barras, 8 km de Canoinhas e Papanduva e 4 km de Major Vieira e ainda distava 4 km de duas importantes vias: a estrada federal BR 116 e a estrada de ferro TPS – Tronco Principal Sul

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65

Este custo elevado para o funcionamento do campo de instrução se fazia

desnecessário, pois as manobras raramente aconteciam, às vezes transcorriam

vários anos sem que nenhuma manobra fosse realizada.

Somado a este fator, os proprietários ainda informaram que, conforme

relatório do INCRA, 90% das terras eram consideradas férteis, planas e

agricultáveis, de alto potencial produtivo. Na área delimitada pelo INCRA era

possível produzir anualmente, de 300 a 400 mil sacas de trigo, feijão, soja, arroz e

batatas, considerando a atividade desenvolvida nas lavouras circunvizinhas.

No texto final da argumentação dos proprietários junto às autoridades

endereçadas, lembraram que o Decreto n. 40.570, que desencadeou todo o

problema da região, foi anterior à Revolução de 1964 e que os erros, os equívocos e

as injustiças que em nome dessa desapropriação cometeram, não poderiam ser

debitadas ao atual governo; eram próprios do Governo da Revolução, que implantou

no país uma nova ordem, moralizando a administração pública, e que deveria dar o

exemplo do trabalho honesto e produtivo. Sob a égide da justiça e do direito, deveria

corrigir as anomalias que lhes eram denunciadas, razão pela qual os proprietários

formularam o presente apelo.

Os proprietários, no início do processo expropriatório com a promessa do

pagamento de uma justa indenização, imaginavam adquirir novas terras idênticas e

promissoras como àquelas desapropriadas. Com o passar do tempo e a inércia de

uma solução judiciária ou administrativa, a ilusão foi substituída pela esperança no

"governo revolucionário" para lhes garantir o direito à retrocessão, ou seja, restituir-

lhes as terras aos seus legítimos proprietários.

Como garantia à retrocessão, os proprietários propuseram a devolução de

qualquer quantia recebida por eles ou por seus procuradores e se comprometiam a

acertar diretamente com seus advogados eventuais honorários devidos(Processo n.

501.114/87, p. 36).

Desse modo, finalizaram o documento com 65assinaturas 31 , dos 68

proprietários das 89 propriedades desapropriadas, devidamente reconhecidas em

cartório, se comprometendo que, em caso de necessidade pública, em nome da

31

Os signatários, quando não os próprios primitivos proprietários das áreas desapropriadas, são os legítimos sucessores deles, quer os filhos, quando já falecidos aqueles, quer os que, depois do decreto de desapropriação, mas antes da propositura da ação, mediante escritura pública devidamente transcrita, adquiriram as áreas, respectivamente. ( Processo n. 501.114/87, p. 39)

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segurança nacional, e se imprescindível às manobras militares, colocariam as terras

à inteira disposição do Exército.

Todas estas reinvindicações dos proprietários junto às autoridades

demonstrava que estavam dispostos a colaborar com a solução do impasse, na

forma mais concreta para esse fim.

Como resposta, demonstrando ainda aparentemente uma predisposição ao

acordo, fora emitido um Ofício32. O teor deste mencionava que a carta encaminhada

ao Presidente da República, abordando a questão referente à desapropriação de

terras no município de Três Barras/SC, estava sendo tratada com a devida atenção

no âmbito daquele ministério e com o maior interesse em ver solucionado, no mais

curto prazo o assunto.

O memorial enviado às autoridades pelos proprietários gerou diversos ofícios

na tentativa de justificar o impasse formado na região de instalação do CIMH.Entre

as manifestações produzidas, a de maior expressão foi no sentido de esclarecer as

razões da morosidade e da injusta indenização, emitida pelo Procurador-Chefe da

União33, advogado que atuou no interesse do Governo no processo, e que poderia

fornecer uma razão conclusiva para o impasse até aquele momento.

Por certo que o parecer da Procuradoria em nada concordava com as

reivindicações dos produtores. Alegou inicialmente que as ações já vinham

merecendo, desde a sua propositura, tratamento jurídico e judiciário mais adequado

possível. Ainda, a despeito dos percalços da morosidade, a mesma se dava em

razão da pertinente legislação atinente à matéria e ao desinteresse dos

desapropriados, fazendo com que os respectivos processos se arrastassem mais do

que o normal.

Pontuou ainda que das setenta ações propostas, cinquenta e sete já

possuíam decisões definitivas, estando arquivadas em virtude do pagamento já

efetuado, e outras aguardavam iniciativa dos desapropriados, no sentindo de

receberem pagamento já à sua disposição, e outros mais em fase de execução da

decisão final.

Com esta informação, a Procuradoria atribuiu aos proprietários a

responsabilidade pela morosidade na tramitação dos processos desapropriatórios e

32

Ofício n. 109 remetido pelo Ministério do Exército ao Ilmo. Sr. Mario Theodoroviz. ( Processo n. 501.114/87, p. 46) 33

Oficio n. 288/77, pelo Procurador-Chefe da União.

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67

que os apelos administrativos eram injustificáveis. Isso porque, a seu ver, a maioria

dos proprietários já havia recebido as indenizações e arquivado os processos,

demonstrando satisfação pelo crédito recebido.

Por fim, a Procuradoria justificou a impossibilidade de Procuradores da

República realizarem qualquer tipo de acordo ou composição, pura e simplesmente

em juízo, por depender de expressa anuência do Procurador Geral da República, o

que atribuiu como causa impeditiva de solucionar o problema.

A análise da legislação vigente na época dos fatos desconstrói, um a um, os

argumentos apresentados pela representante da União, demonstrando, na prática,

que o Governo não se interessava em solucionar o impasse fundiário estabelecido

naquela região.

Não obstante, a Procuradoria sugeriu como solução ao impasse um acordo

na esfera administrativa, entre o Ministério do Exército e os interessados, para

posteriormente, proceder a homologação judicial.

A sugestão apontou para o mesmo interesse dos proprietários, ou seja, uma

solução administrativa e célere. As medidas propostas seriam: a)determinar os

valores atuais e justos dos imóveis apropriados; b) convocar os desapropriados,

para que providenciassem títulos atuais de sua propriedade, tendo em vista a

existência de herdeiros e sucessores; c) assinatura de acordos dos desapropriados

com o Ministério do Exército para que os primeiros concordassem com os preços

oferecidos por seus imóveis e o segundo oferecesse e pagasse o referido preço

obviamente, com a prévia obtenção de recursos perante órgãos governamentais

competentes; d) encaminhamento dos termos destes acordos à Procuradoria da

República, para que esta requeira judicialmente sua homologação, pondo fim

definitivamente ao impasse, com a transcrição dos imóveis em nome da União

Federal.

A única ressalva condicionante para o acordo seria sobre a aplicação da

correção monetária aos valores indenizatórios. A União não aceitava a aplicação da

Súmula 475 do STF, que autorizava a incidência da correção em processos já em

curso, o que demonstra que o acordo não atenderia totalmente às reinvindicações

dos proprietários nem aos direitos legalmente previstos, mas traria ao Governo a

pacificação do movimento social fundiário na Região do Planalto Norte Catarinense

acerca da questão.

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68

No entanto, nada avançou. A falta de comprometimento na efetivação dos

acordos propostos pelo governo aflorava ainda mais a impaciência dos produtores,

que passaram a organizar manifestações na região. Neste momento, o sentimento

de revolta e insatisfação com a retirada das terras produtivas e praticamente

inutilizadas pelo CIMH alcançou uma mobilização maior, atingindo também

empresários e autoridades locais.

A morosidade no impasse mobilizou os movimentos sociais e representativos,

como a Associação dos Municípios do Planalto Norte Catarinense (AMPLA). Esta

emitiu um documento subscrito por seu Presidente Plácido Gaissler, em 18 de

outubro de 1979, representando os municípios de Canoinhas, Irineópolis, Itaiópolis,

Mafra, Major Vieira, Monte Castelo, Papanduva, Porto União e Três Barras,

endereçado ao Presidente General João Batista de Oliveira Figueiredo, com o

argumento de que no município de Papanduva, dentro de uma área desta

associação, havia a Sociedade Núcleo Rural Papuã 34 , cuja entidade tinha por

objetivo o desenvolvimento rural (agropecuário) e os ideais que defendiam era o

desenvolvimento socioeconômico da região e da própria nação brasileira.

Sobre esta organização, o Sr. Valfrido esclarece: “[...] Nós fizemos, resolvemos, de criar uma associação só pra essa finalidade: de correr atrás dos direitos de propriedade. Daí, que foi formado uma associação no município de Papanduva [...]. (LIMA, 2016).

Estes movimentos sociais se manifestavam no sentido de expandir suas

atividades e os seus diretores desejavam levar ao Presidente da República, de viva

voz, as suas pretensões, solicitando uma audiência com o chefe da nação,

reiterando um pedido já enviado em 14 de setembro do mesmo ano por telegrama, e

que não havia sido atendido. (Processo n. 501.114/87, p.48).

Nota-se que o decreto expropriatório passou a atingir e a interessar não

apenas aos proprietários diretamente, mas sim a toda a Região do Planalto Norte

34

Grupo organizado de forma mais sistematizada, fundado no município de Papanduva em 09/09/1978, a Sociedade Núcleo Rural Papuã. Segundo o Estatuto foram 128 os sócios fundadores, que tinha no seu Estatuto, inciso I a seguinte finalidade: "I – Empenhar-se, em todos os sentidos e por todos os meios pacíficos e lícitos para promover a desativação e consequente extinção do Campo de Instrução Marechal Hermes – CIMH, na posse do Ministério do Exército, com o fim exclusivo, de utilizar toda a sua área em NÚCLEO RURAL PAPUÃ – NRP, dedicado inteiramente à produção agropecuária, especialmente de produtos nobres, como trigo e soja, exploração da erva-mate nativa, escolas rurais, instituições de pesquisa agrária, indústrias afins, armazéns e silos, mecanização rural, irrigação, formação de profissionais, centros de saúde, seleção de sementes, inseminação artificial e outras atividades similares" (ESTATUTO, 1978:03).

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Catarinense. Isso porque a referida área, após quinze anos, era tomada por mato e

capoeiras, uma verdadeira ilha de improdutividade, absorvendo uma vasta gleba de

terras férteis.

A intenção da associação era produzir naquelas áreas, aumentar o

desenvolvimento da região, e não podiam ratificar a situação na qual aqueles

proprietários expurgados se encontravam. Deste modo, acreditavam que,

pessoalmente, apresentando as razões ao Presidente da República, algo poderia

ser feito.

O apelo surtiu parcialmente efeito. O desapossado João Florindo Schadeck

foi recebido, não pelo Presidente da República como queriam, mas pelo Ministro

Chefe do Gabinete Civil da Presidência, que apontou para a concordância em

permutar o CIMH para outra área a ser encontrada nos estados de Santa Catarina

ou Paraná.

Para reforçar esta nova proposta de permuta, o Governador de Santa

Catarina, Jorge Konder Bornhausen emitiu um ofício ao Chefe da Casa Civil

(Processo n. 501.114/87, p. 21), ratificando a intenção de não medir esforços para

que a permuta ocorresse. A manifestação do Governador catarinense dava indícios

de que a desavença estava por acabar e que a solução da permuta atendia aos

interesses de ambos os lados.

A área indicada a ser permutada pertencia ao Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Núcleo de Adrianópolis, situada em

território dos municípios de Bocaiúva e Adrianópolis, no Paraná, e que segundo as

informações da época não prestava para a lavoura e preenchia as condições para

ser utilizada pelo Exército como campo de provas.

O INCRA, em atendimento à pretensão formulada pelos expropriados e diante

da concordância da permuta pelas autoridades, propôs que o CIMH fosse instalado

em uma área inclusa no Projeto Integrado de Colonização Marquês de Abrantes,

situada nos municípios de Adrianópolis e Bocaíuva do Sul, estado do Paraná, que

poderia atender aos objetivos propostos (Processo n. 501.114/87, p. 19-20).

A referida área compreendia 5.892 hectares e constituía parte da denominada

Gleba “C”, que embora encravada em terras do aludido projeto, encontrava-se

registrada em nome de particulares. Acenou ainda o INCRA que se o Ministério do

Exército concretizasse a permuta, propunha-se a providenciar o levantamento

cadastral das propriedades e posses, bem como a avaliação de benfeitorias, para

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que a Secretaria de Estado pudesse promover a desapropriação por utilidade

pública da referida área.

A permuta parecia, à época, uma solução viável aos interesses do Ministério

do Exército e dos expropriados, e renovou a esperança numa solução

administrativa. Foi noticiada na imprensa de Santa Catarina a seguinte situação:

[...] o exército ainda vai tentar uma solução para o problema. O exército não pretende mesmo continuar usando como campo de instrução áreas de terras férteis como aquela."Temos todo o interesse em conseguir uma outra área improdutiva e, se possível, deixar os agricultores voltarem às suas antigas propriedades”.“Na época, há dois anos, o General Jofre Sampaio, deixou uma esperança às famílias, afirmando que o “Governo do Estado” e o Incra já estão estudando outras áreas de fácil acesso para todas as unidades da 5ª.R.M, a fim de transferir o campo de instrução” (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1980. Processo n. 501.114/87 p. 14).

Em que pese a permuta parecer solucionar por completo o impasse que se

instaurou na Região do Planalto Norte Catarinense e as mobilizações de autoridades

e empresários afiançarem a causa dos produtores, novamente o Governo recuou e

não efetivou os esforços necessários para concretização de mais uma tentativa

administrativa de solução ao impasse:

O exército silenciou as negociações de permuta com outras áreas para a transferência do campo militar, “concluindo-se que não seria viável a permuta por não solucionar a questão, podendo inclusive, agravar a situação já formada pela desapropriação através dos Decretos n. 40,570/56 e 44.458/58, sendo mais prudente, proceder a uma reavaliação das áreas do CIMH” (CHEREM, 2006, p. 14)

Uma nova tentativa de solucionar o impasse ocorreu a partir de uma

audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva e na

presença de proprietários, herdeiros, sucessores e autoridades e indivíduos de

vários segmentos sociais e com a intermediação da Comissão da Verdade e da TV

Assembleia fez renascer a expectativa de, enfim, resolver a questão.

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Figura 03: Audiência Pública realizada na Câmara dos Vereadores de Papanduva em 14 de outubro de 2014

Fonte: Jornal Correio do Contestado, 2014, Ed. 3756, p.03

A notícia divulgada no jornal Correio do Contestado sobre a nova tentativa de

solução à questão que parecia ser insolúvel informava:

Na audiência desta terça feira, 14 de outubro de 2014, na Câmara de Vereadores de Papanduva, com a presença da Comissão da Verdade, da TV Assembleia e outros órgãos de imprensa, de proprietários e herdeiros lesados pelo Exército, de autoridades e enviados especiais de vários segmentos sociais; de políticos e de lideranças religiosas, sob lágrimas e depoimentos pitorescos e emocionantes e em clima de “agora vai”, renasceu, mais uma vez, a esperança de solução para um caso que, aparentemente, não tem solução. (JORNAL CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.03)

Nesta audiência foi sugerido por algum dos participantes:

Uma das sugestões apresentadas na audiência promovida pela Câmara de Vereadores de Papanduva é de que se poderia revogar o decreto que promoveu a desapropriação, isto é, fica o dito pelo não dito: o governo devolve as terras e liquida o assunto. E aí, como é que fica? Algumas famílias que receberam a indenização voltariam para suas terras e sairiam no lucro; teriam recebido um presente de Papai Noel. Para as que não receberam seria feita a justiça e, aquelas que nem existem mais ou estão perdidas por aí, deixariam uma área de mão beijada para o MST e a “função social da terra” estaria cumprida? Haveria injustiça na redistribuição da área, podendo levar a conflitos violentos e até mortes se cada caso em particular não for resolvido a contento” (JORNAL CORREIO DO NORTE, 2014, Ed. 3756, p.04)

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A reunião de lideranças e autoridades sob a intermediação da Comissão da

Verdade, indicada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, não obteve

grandes avanços, apesar da narrativa de alguns proprietários retratar a realidade

daquela questão:

Sob o pretexto de estar liderando um movimento que deveria beneficiar todos os envolvidos, indistintamente, 3 ou 4 herdeiros que sabem falar e pegar um microfone, chamaram para si a atenção ao discurso explicitamente direcionado a defender os seus próprios interesses. Narrativas emocionantes ou engraçadas, cheias de ódio e sentimento de vingança, procuravam colocar o público presente, principalmente o grupo da Comissão da Verdade e os representantes políticos, a par da realidade que poucas pessoas conhecem (JORNAL CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.02)

Sem avançar qualquer solução administrativa para o pagamento justo das

indenizações, alguns proprietários decidem por novamente acionar a Justiça a fim

de resgatar o debate da questão e, enfim, corrigir na visão destes agricultores, a

injustiça cometida nos processos desapropriatórios promovidos nas décadas de

1950 e 1960.

3.2 UMA NOVA TENTATIVA DE SOLUÇÃO JUDICIAL

Aproximadamente trinta anos após o Decreto Expropriatório, todas as

tentativas de solução administrativa ao impasse restaram infrutíferas. Alguns

proprietários, entre herdeiros e sucessores35, resolveram contratar o advogado, Dr.

Francisco Vital Pereira, para que através de um novo processo, se reavaliasse a

área desapropriada, atualizassem os valores indenizatórios anteriormente fixados,

bem como fossem cobradas as perdas e danos, por todo lapso temporal que o

Governo demorou na solução da questão.

35

Espólio de Aristides Guebert:Inventariante: José Hass Guebert; Espólio de José da Silva Lima: Inventariante Ebrahin Gonçalves de Oliveira; Espólio de Silvestre Boiko: Inventariante Ernestina Simas Boiko; Espólio de Candido Branco Pacheco: Inventariante Alceu Pacheco; Espólio de Joao Francisco Domingues: Inventariante Antonio Domingues; Espólio de Ana Volochate Boiko: Inventariante Joao Boiko; João Florindo Schadeck; Olímpio Raulino Schadeck Osni Schadeck; Luiz Schadeck; Antonio Silvio Schadeck; Rosa Schadeck Ciupka; Helena Schadeck Werka; Ana Lucia Schadeck Grabovski; Antonio Carlos Damaso da Silveira; Sergio Damaso da Silveira; Reginaldo Damaso de Oliveira; Ivan Damaso de Oliveira; Argemiro Gonçalves de Lima; Aleixo Gonçalves de Lima; Joao Gonçalves de Lima Filho; Manoel Gonçalves de Lima; Vitor Gonçalves de Lima; Walfrido da Silva Lima; Maria Rita de Souza Simas; Benvinda Pacheco Theodoroviz; Francisco Calixtro Pacheco dos Santos Lima: Sucessor – Escritura Pública de Cessão de Direitos Hereditários – Victor Pietroski; Sofia Boiko (Processo n. 501.114/87, p. 76)

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Entendiam os proprietários, que os processos expropriatórios da década de

1950 e 1960 foram julgados sob um regime autoritário, em que prevalecia o

militarismo, e que a injustiça cometida poderia ser corrigida através de um novo

julgamento. Neste ponto, Armartya Sen nos auxiliar na definição de "injustiça":

Define-se injustiça como uma perda agregada da utilidade em comparação com o que poderia ter sido obtido. Uma sociedade injusta, nessa perspectiva, é aquela na qual as pessoas são significativamente menos felizes, consideradas conjuntamente, do que precisariam ser (SEN, 2016, p. 318).

Os atingidos pela desapropriação nutriam pelo exército um sentimento de

revolta, de privação de liberdade de escolha e lhe atribuíam a responsabilidade pela

desgraça social que deixou várias famílias improdutivas na região. Por certo, este

descontentamento não atingiu a esperança de reaver o que era de direito e tentaram

novamente uma solução pacífica e fundamentada na lei. A ação judicial proposta foi

embasada pelos dispositivos em vigor à época (1985) consubstanciada nos artigos

153, parágrafo 22 da Constituição Federal; artigo 1059 do Código Civil; artigos 46 e

282 do Código de Processo Civil 36 .A demanda foi proposta em face da União

Federal, na pessoa do representante legal, o Procurador da República.

Com todos os documentos das partes, o juiz da 1ª Vara determinou a

redistribuição do processo para a competência 37 do Juiz Federal da 5ª Vara,

conforme atendimento ao Provimento n. 330/87 e artigo 4 da Lei 7.583 de 06 de

janeiro de 1987 e artigo 6 da Lei 7.595 de 08 de abril de 1987.O processo então

obteve nova numeração (nº 501.114/87) e passou a tramitar na Seção Judiciária de

Joinville/SC e consiste em uma das fontes primárias nas quais se referencia esta

dissertação.

De um lado do processo, alguns proprietários, herdeiros e sucessores; de

outro, a União Federal. Os propósitos continuavam os mesmos, o inconformismo se

contrapondo à resistência.

36

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm 37

Costuma-se dizer que a competência é o limite ou a fração ou a medida da jurisdição. É preciso, contudo, ressalvar essa afirmação: o exercício da função jurisdicional é cometido não apenas a um órgão, mas a vários deles; cada um é investido pela lei das mesmas atribuições, devendo atuar de acordo com os critérios previamente fixados. A competência estabelece quando cada órgão deve exercer tais atribuições, que são as mesmas para todos. (CUNHA, Leonardo Carneiro, 2013)

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A partir da análise da defesa do Procurador da República em sua

contestação 38 , que foi integralmente baseada nas informações prestadas pela

Consultoria Jurídica do Ministério do Exército (Processo n. 501.114/87, p. 204-

209),constatou-se que os argumentos contrariavam as alegações dos autores,

afirmando que não haviam atendido aos requisitos para a propositura da ação.

Inicialmente afirmaram que os autores propuseram a demanda sem a devida

exibição dos títulos de propriedades das terras que alegam serem proprietários, e

tampouco apresentaram o levantamento das importâncias depositadas no processo

expropriatório ou apontaram os que deixaram de receber. Por tal situação

inicialmente narrada, afirmaram que a ação em comento era inepta39, merecendo ser

rejeitada.

Ainda na análise, verificou-se que o parecer do Ministério do Exército, quanto

ao mérito, aponta que o pedido de indenização por perdas e danos não merecia ser

acolhido pelo juiz em razão de que os autores não provaram a condição de

proprietários das terras, bem como não exibiram as provas do alegado prejuízo

sofrido em razão de perdas e danos. Por estas alegações, não havia como

prosperar a presente ação40.

O parecer justifica que o motivo pelo qual a União Federal recorreu de todas

as sentenças desapropriatórias causando morosidade no pagamento das

indenizações, foi devido ao cumprimento do artigo 28, parágrafo 1º do Decreto-Lei n.

3365, de 21 de junho de 1941. Segundo este dispositivo de lei, todas as sentenças

que condenam a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro oferecida estarão

sujeitas ao duplo grau de jurisdição.41

38

A contestação está para o réu como a petição inicial está para o autor. Trata-se de instrumento da exceção exercida (exercício do direito de defesa), assim como a petição inicial é o instrumento da demanda (ação exercida). É pela contestação que o réu apresenta sua defesa. (DIDIE, Fredie Jr, 2015) 39

A inépcia da petição inicial impede o desenvolvimento válido e regular do processo. As hipóteses de inépcia estão previstas no artigo 295, parágrafo único do CPC. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015). O caso de inépcia da petição inicial deve ser apontado pelo réu, em sua defesa. Como a inépcia se relaciona ao pedido ou à causa de pedir, o silêncio do réu, na defesa, pode levar ao entendimento de que ele conseguiu defender-se do que foi pedido, e assim, não seria mais o caso de rejeitar a petição inicial por esse defeito. (DIDIER, Fredie Jr, 2015) 40

A contestação é por excelência, a peça de defesa do réu, por meio da qual ele pode se contrapor a pedido inicial. Ao apresentá-la, ele formula a pretensão de ver o pedido inicial desacolhido, no todo ou em parte, apresentando os argumentos e fundamentos que servirão para convencer o juiz. Daí a pretensão contida na contestação; e sempre declaratória negativa, de que o juiz declare que o autor não tem razão, desacolhendo o pedido. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015). 41

O que se pode dizer, no entanto, é que a Constituição Federal, ao criar juízos e Tribunais, a quem compete, entre outras coisas, julgar recursos contra decisões de primeiro grau, estabeleceu um sistema em que, normalmente, há o duplo grau, que serve para promover o controle dos atos

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Quanto à alegação dos autores de desvio de finalidade do ato expropriatório,

com a exploração dos recursos naturais, venda de pinheiros e arrendamento de

terras, proporcionando enriquecimento ilícito por parte do Ministério do Exército,

constata-se que a União justifica dizendo que uma vez sendo autorizada à imissão

da posse legalmente, através de ordem judicial que autorizou o ato, sua posse sobre

a área é de boa-fé e sendo assim a lei civilista torna o uso da terra e a exploração

dos frutos perfeitamente legal.

Após o conhecimento dos argumentos e contra argumentos apresentados

pelas partes no processo, o juiz, em uma decisão provisória, entendeu queo primeiro

pedido dos autores, a reavaliação dos imóveis, era juridicamente impossível, porque

a matéria já tinha sido discutida nos processos expropriatórios das décadas de 1950

e 1960. Assim, por segurança jurídica, não podiam ser objeto de novo julgamento, o

que causou inconformismo aos autores desta decisão, que recorreram ao Tribunal.

Diante desta decisão e mesmo aguardando o resultado da reanálise pelo

Tribunal, o processo seguiu seu curso, com a análise e apresentação das provas

quanto ao pedido de indenização por perdas e danos (Processo n. 501.114/87, p.

315).

Os autores insistiram na produção de prova pericial, testemunhal e o

depoimento dos proprietários envolvidos. Entendiam que se o magistrado ouvisse

suas reivindicações, verificasse os números exorbitantes a serem apurados pela

perícia do montante que deixaram de receber durante a litigiosidade e,considerasse

principalmente o depoimento das pessoas que vivenciaram e poderiam retratar o

impacto que a desapropriação causou nas pessoas e no desenvolvimento da região,

certamente corrigiria a injustiça cometida anteriormente.

No entanto, o seguimento do processo não ocorreu da forma esperada pelos

produtores. A perícia foi realizada e apurou minuciosamente os valores dos lucros

cessantes e perdas e danos, que devido a sua importância será objeto de estudo

aprofundado no próximo capítulo. Todavia, o processo foi sentenciado sem que o

juiz realizasse sequer uma audiência para ouvir o que as testemunhas e os

proprietários tinham a informar sobre a questão.

judiciais, quando houver inconformismo das partes, submetendo-os à apreciação de um órgão de superior instância, composto, em regra, por juízes mais experientes. (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios, 2015)

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76

A decisão foi proferida em 1996, pelo juiz substituto, Doutor Luis Humberto

Escobar Alves, que decidiu pôr fim ao litígio julgando improcedentes os pedidos dos

autores. Quanto à reavaliação dos imóveis, confirmou a decisão provisória

anteriormente proferida, afirmando que o pedido é juridicamente impossível, porque

afeta a coisa julgada material já produzida nos autos de desapropriações referentes

aos imóveis em questão. Ao pedido de indenização, negou pela fundamentação de

falta de provas e que a perícia, ainda que minuciosamente mensurasse as perdas

dos agricultores, não eram suficientes para embasar uma condenação à União

Federal (Processo n. 501.114/87, p. 466-468).

Diante deste novo julgamento, a esperança que os agricultores novamente

depositaram na justiça para desfazer tamanho prejuízo e restabelecer seus direitos

na região, restou desmantelada. Além de julgar improcedente a ação, o magistrado

ainda condenou os autores aos ônus sucumbenciais em quatro salários mínimos e

custas processuais finais de R$1.500,00, causando ainda mais revolta e

inconformismo.

Juridicamente, este inconformismo se figurou na apresentação de Recurso de

Apelação (Processo n. 501/14/87, p.469) para reapreciação da questão pelo

Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Segundo THEODORO JUNIOR, vigora no sistema processual brasileiro a

garantia da dualidade de jurisdição:

Para a generalidade dos casos decididos pelos juízos de primeiro grau, em nosso sistema processual, vigora o princípio da dualidade de jurisdição, segundo o qual as causas decididas pelos juízes de direito são passíveis de reexame e novo julgamento pelos Tribunais de segundo grau, mediante provocação por meio da apelação (2016, p. 771)

Analisando as razões recursais apresentadas pelo advogado dos

proprietários, nota-se que atribuíram à sentença monocrática um “apressamento do

juiz”,o qual teria deixado de analisar aspectos de maior relevância e inegavelmente

esclarecedores do contexto em que se inserem os fatos narrados.

O recurso foi finalizado e segundo o advogado dos autores (Processo n.

501.114/87, p. 469) a fundamentação da sentença do magistrado não passava de

subterfúgio e, portanto, desprezível e carecedora de mínima razoabilidade e que o

Tribunal, por medida de justiça, deveria modificar. Os proprietários consideravam a

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fundamentação da decisão do juiz como algo incoerente, em contraste com as

provas que foram produzidas e deveria ser reanalisada pelo órgão superior.

É certo que desde o ato expropriatório (décadas de 1950 e 1960) até o

ajuizamento desta nova ação se passaram 28 anos, e com o recurso ao TRF, outros

12 anos, sem qualquer solução para o caso. Não era possível aos desapropriados

compreenderem que durante este lapso temporal afastado de suas terras, não

haveria, por parte do Poder Judiciário, um reconhecimento do descaso do Estado

diante destes menos favorecidos, podendo ser compensado mediante a condenação

a uma justa indenização.

Mas ao contrário do que esperavam os proprietários, o recurso foi distribuído

à relatoria42 do Desembargador Amaury Chaves Athayde, que entendeu que razão

assistia ao juiz que proferiu a sentença e considerou igualmente necessário que o

pedido deveria minimamente ser melhor instruído.

Ao analisar o voto deste Desembargador, constatou-se que a decisão foi

novamente desfavorável aos proprietários, pela única razão de que, no

entendimento deste novo julgador, não foram informados no processo os valores

avaliados das terras nas décadas de 1950 e 1960, sendo esta informação

fundamental para eventual procedência da ação e incumbência dos autores.

Esta decisão proferida pelo desembargador necessariamente deveria ser

remetida ao julgamento colegiado43.Ao longo de quase sete anos, o recurso de

apelação permaneceu no gabinete da relatoria aguardando julgamento. Somente em

10 de novembro de 2004 a sessão de julgamento foi marcada e confirmada por

unanimidade de votos. Negaram provimento, mais uma vez, ao apelo dos

expropriados44(Processo n. 501.114/87 p. 497).

42

Durante a tramitação do processo há um membro do colegiado que assume posição de relevo, por caber-lhe a direção do feito, inclusive no que toca à coleta das provas. Trata-se do relator, que é escolhido por sorteio (distribuição) entre os componentes do órgão julgador. (THEODORO JR, 2016, p. 778) 43

A causa submetida à competência do órgão colegiado do tribunal é decidida pelo voto de todos que compõem a turma julgadora. Após a leitura da relatoria e a sustentação oral, se houver, procede-se à votação dos juízes. (THEODORO JR, 2016, P. 785) 44

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇAO POR PERDAS E DANOS DECORRENTES DE DESAPROPRIAÇAO. PROVAS – AUSÊNCIA. IMPROCEDÊNCIA. Descabe acolher o pedido de indenização de perdas e danos advindos de desapropriação quando insubsistentes e não demonstradas as alegações dos promoventes, certo que a discussão sobre o preço (e pagamento) do imóvel – e seus imanentes consectários – tem sede adequada na própria expropriação. Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Porto Alegre, 10 de novembro de 2004. (Processo n. 501.114/87)

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Demonstra-se que a decisão colegiada do Tribunal Regional Federal foi

substanciada em dois fundamentos. O primeiro foi quanto ao pedido de perdas e

danos, que restou improcedente por não considerarem suficientes as provas

produzidas no processo, assim como entendeu o juiz na primeira sentença.

O segundo fundamento se refere ao preço (pagamento) do imóvel e sua

reavaliação. Essa questão confirmou o também entendimento do juiz da primeira

sentença, que por segurança jurídica afirma ser o pedido juridicamente impossível,

em razão de que já havia uma decisão nas ações iniciais desapropriatórias e não

poderia, em novo processo, haver outra sobre a mesma matéria.

De qualquer modo, os expropriados não concordaram com os fundamentos

do seu julgamento e interpuseram Recurso Especial junto ao Superior Tribunal de

Justiça. Essa seria a última instância a proferir um julgamento sobre o processo e

teria o condão de prevalecer diante das decisões desfavoráveis anteriormente

proferidas. Para Theodoro Jr (2016, p. 812): “O acórdão proferido pelo órgão

colegiado competente vinculará todos os juízos e órgãos fracionários”.

O Recurso Especial n. 843.574 – SC (2006/0070039-8), julgado pelo STJ,

teve como Relatora a Ministra Denise Arruda a qual entendeu que o recurso

proposto pelos autores não apresentava os requisitos de admissibilidade

necessários para o conhecimento do mesmo, estando então, sequer possibilitado ao

julgamento do mérito da decisão recorrida.

O recurso interposto pelos proprietários não preencheu os requisitos de

admissibilidade por não ter sido elaborado adequadamente ao ato atacado, o que

inviabilizou o julgamento do mérito, ou seja, do pedido dos autores.

O fundamento exposto pela Ministra do STJ que não “conheceu do recurso”

foi justificado pela aplicação da Súmula n. 283/STF que dita: “É inadmissível o

recurso especial quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento

suficiente e o recurso não abrange todos eles”.

O advogado dos autores, quando da elaboração do recurso, não atendeu

adequadamente à legislação imposta pela Súmula n. 283/STF, ou seja, se a decisão

anterior foi baseada em dois fundamentos, o Recurso Especial ao STJ

obrigatoriamente deveria impugnar os dois fundamentos, e não apenas um, como

fez o procurador.

Evidencia-se que na decisão da Ministra o recurso não merecia ser conhecido

e sequer julgado, por verificar que o advogado dos autores limitou a impugnar o

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fundamento (a) que tratava das perdas e danos, mas silenciou quanto a impugnar o

fundamento (b), que discutia sobre o preço e valor do imóvel.

Diante da falta deste pressuposto, o recurso em última instância, que poderia

modificar todas as decisões anteriormente desfavoráveis aos expropriados, sequer

prosseguiu a um julgamento de mérito.

Ainda cabendo uma última e derradeira medida processual, os autores

solicitaram a confirmação da decisão monocrática da Ministra através de uma

decisão colegiada. Em 12 de dezembro de 2006, o Agravo Retido no Recurso

Especial n. 843.574-SC, por unanimidade confirmou o improvimento do recurso e

acabou, por vez, com qualquer esperança de reparar, através de uma decisão

judicial, o que os expropriados do CIMH entendiam por injustiça.

Esta ação proposta no ano de 1985, e que culminou numa decisão

desfavorável e irrecorrível no ano de 2006, encontra-se, desde 28 de março de

2007, arquivada na 2ª Vara Federal de Seção de Joinville/SC.

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4 DESENVOLVIMENTO

Objetivando compreender o atual cenário político, econômico e social vigente

na região do Planalto Norte Catarinense, que faz parte do território do Contestado,

faz-se necessário reconstruir a história da luta travada pela terra. No período

compreendido entre outubro de 1912 e agosto de 1916 o território do Contestado

tornou-se palco de um dos maiores movimentos sociais no Brasil, denominado

Guerra do Contestado.

Naquele contexto, o Estado, ao privilegiar o capital estrangeiro em detrimento

do capital humano, menosprezou a capacidade produtiva dos filhos da terra, que

eram caboclos e imigrantes acaboclados, em sua maioria posseiros e pequenos

proprietários, e privou aquelas pessoas da oportunidade de exercerem a condição

de agentes na sociedade em que estavam inseridos.

No mesmo sentido, a atuação parcial do Estado, no período examinado nesta

dissertação, reproduziu injustiças que incidiram, novamente, sobre os setores

sociais mais fragilizados do planalto Norte Catarinense. Após a usurpação do acervo

formado por bens da empresa estrangeira Lumber Company, e o posterior abandono

dos trabalhadores na condição de pobreza extrema, o Estado novamente atuou de

forma negligente e preferiu a defesa dos seus interesses (e dos proprietários do

capital, cujas relações promíscuas ficaram evidenciadas). A justificativa era a de

ampliar a segurança nacional mediante a instalação de um Campo de Instrução

Militar, impedindo que agricultores prosperassem na atividade que exerciam.

Embora se trate de duas situações distintas, separadas por décadas,

assumem tal similitude que os argumentos utilizados para defender os caboclos, na

Guerra do Contestado, aplicam-se identicamente à defesa daqueles que, na

atualidade, lutam pela terra e pelo direito à liberdade de exercerem sua atividade.

O professor e filósofo Sandro Luiz Bazzanella, no artigo “Centenário da

Guerra do Contestado”, publicado na obra Crônicas do Desenvolvimento II (2012),

estabelece a seguinte premissa: “pode-se anunciar a importância da reflexão em

torno do acontecimento da Guerra do Contestado, como abertura e desafio à

compreensão do tempo presente em sua potencialidade vital”. Pela perspectiva do

autor, a concepção de tempo é marcada pela transitoriedade dos fatos e dos

acontecimentos:

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Ou então, o acontecimento da Guerra do Contestado pode permitir-nos conceber o tempo na perspectiva do filósofo italiano Giorgio Agamben, como “tempo que resta”. O tempo que resta é o tempo de agora, o tempo presente que pode permitir a experiência do pensamento, refletindo as condições de possibilidade de qualificação de vida. Assim, as lutas, as derrotas, as vitórias, a dor e o sofrimento das gerações que nos antecederam podem se apresentar em sua potencialidade como a condição de afirmação do que somos, permitindo o reposicionamento de nossas relações sociais, políticas, econômicas e culturais, permitindo ao Planalto Norte a constituição de condições qualitativas de vida a seus indivíduos e à sociedade em geral. (BAZZANELLA, 2012, p. 146)

Na discussão acerca da guerra deflagrada na região do Contestado,

identificam-se influências econômicas, políticas, sociais, culturais e ambientais, que

até hoje caracterizam e implicam diretamente em peculiaridades antropológicas,

econômicas, religiosas e sociais, inerentes a este povo cuja herança se liga, direta

ou indiretamente, à região. Ainda de acordo com Bazzanella (2012), neste “tempo

que resta”, são estas marcas que necessitam de reflexão, visando a potencialização

das formas de vida que se veem em cada instante, em cada acontecimento nas

terras do Planalto Norte Catarinense (2012, p. 147).

Amartya Sen, economista indiano, que através de sua obra “Desenvolvimento

como Liberdade” (2000), ganhou o prêmio Nobel de Economia, em 1998, cuja

autoria estabeleceu o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, adotado pela

Organização das Nações Unidas - ONU, afirma que o desenvolvimento pode ser

entendido como a eliminação das privações de liberdades que possam limitar as

escolhas e as oportunidades das pessoas de exercerem sua condição de agente

inserido em determinada sociedade e em determinado território.

Sob este enfoque, compreende-se que a atuação do Estado, na região do

Planalto Norte Catarinense mostrou-se crucial na dinâmica do desenvolvimento,

uma vez que para SEN (2000), a privação de liberdade – que para ele caracteriza-

se, especialmente, pela pobreza, tirania, carência de oportunidades econômicas e a

destituição social, pela negligência dos serviços públicos e pela intolerância ou

interferência excessiva de Estados repressivos – afeta o desenvolvimento.

Cabe destacar, também, que o autor aponta para a violação da liberdade

como resultante da negação de liberdades políticas e civis, impostas por regimes

autoritários, assim como de restrições impostas à liberdade de participar da vida

social, política e econômica da comunidade. (SEN, 2016, p. 17).

Desta forma, para Sen (2016), a liberdade assume condição central no

processo de desenvolvimento, por duas razões: a primeira, para que se possa

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avaliar o progresso, é preciso verificar, primordialmente, se houve aumento das

liberdades individuais; e, a segunda, o alcance do desenvolvimento depende

inteiramente da livre condição de agir das pessoas. É o que o autor denomina de

razão avaliatória e razão de eficácia.

Sob esta perspectiva, a região do Planalto Norte Catarinense não demonstrou

– em decorrência das disputas fundiárias do Contestado e Pós Contestado – avanço

na participação social dos pequenos proprietários e posseiros. Ou seja, restringiu-se

a liberdade nas decisões políticas que envolveram questões sobre a terra e que

modificaram significativamente o panorama vivenciado por estes minifundiários.

Os direitos consagrados nas declarações do final do século XVIII e nas

constituições do século XIX e XX partem do pressuposto da liberdade, em que o

homem tem a livre escolha de suas opiniões e comportamentos, salvaguardando

aos indivíduos sua autonomia frente aos limites da intervenção do Estado (RIVERO,

1985).

Segundo Sen (2013, p.10), a expressão da liberdade é o principal fim e meio

para o desenvolvimento. No entanto, na visão do desenvolvimento como liberdade, é

necessário considerar diferentes argumentos que devem ser analisados e avaliados.

Este fato é reconhecido pelo autor, no seguinte excerto:

É difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de empobrecer – a vida humana. (SEN, 2016, p. 22)

Neste âmbito, a atuação do Estado, na região, impossibilitou a

potencialização da capacidade constitutiva da liberdade dos que lutaram e lutam

pela terra, restringindo a participação na dinâmica do desenvolvimento, e

influenciando a desintegração destes no seio da sua comunidade.

Essa afirmação é corroborada pelos argumentos apresentados por Amartya

Sen:

A ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades são ainda influenciadas pelo exercício

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das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o progresso dessas oportunidades (SEN, 2016, p. 18)

Portanto, a abordagem de Amartya Sen, apesar de não conceituar o que

sejam liberdades substanciais, define-as de forma ampla como “as oportunidades

reais que as pessoas têm, dadas as suas circunstâncias pessoais e sociais” (SEN,

2000, p. 31), o que permite compreender que a utilidade da riqueza está nas coisas

que ela nos permite fazer.

Além disso, na abordagem do autor, o papel constitutivo relaciona-se à

importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana. Qualquer

indivíduo, independente de classe social, que seja impedido de se expressar

livremente ou de participar de decisões públicas, de fato, está sendo privado de algo

que tem motivos para valorizar. O processo de desenvolvimento quando julgado

pela ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação das privações

dessa pessoa (SEN, 2016, p. 56)

Todavia, Sen pondera a perspectiva das instituições e das liberdades

instrumentais como uma tentativa de ver o desenvolvimento como um processo de

expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Na visão do

“desenvolvimento como liberdade”, as liberdades instrumentais ligam-se umas às

outras e contribuem com o aumento da liberdade humana em geral (SEN, 2016, p.

25).

É preciso salientar que cinco tipos distintos de liberdade, provenientes de uma

perspectiva “instrumental”, são investigados particularmente nos estudos empíricos

de Amartya Sen (2016, p. 25). Em primeiro lugar, figuram as liberdades políticas,

amplamente concebidas, que incluem os direitos civis e políticos associados à

democracia e se referem à possibilidade que as pessoas têm de escolher seus

governantes, fiscalizar seus feitos e expressar livremente a opinião, abarcando

oportunidades de diálogos, dissensão e críticas.

Quanto as facilidades econômicas são definidas como as oportunidades que

o indivíduo tem para utilizar recursos econômicos com o propósito de consumo,

produção ou troca. Todavia, na relação entre a renda e a riqueza nacional, as

considerações distributivas são importantes em relação às agregativas.

As oportunidades sociais as quais, segundo o autor, são as disposições

estabelecidas que influenciam a liberdade do indivíduo de viver melhor, tais como a

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garantia do acesso à terra, à moradia e de uma vida digna. Essas facilidades são

importantes não só para a condução da vida privada, mas também para uma

participação mais efetiva em atividades políticas e econômicas.

As garantias de transparência, que possuem um papel instrumental

importante, pois agem como inibidoras da corrupção, da irresponsabilidade

financeira e de transações ilícitas. A liberdade de se relacionar é assegurada pelo

dessegredo e pela clareza. Quando essa confiança é gravemente violada, a vida das

pessoas, envolvidas direta ou indiretamente, pode ser afetada negativamente.

No tocante a segurança protetora, não importa o modo como se opera um

sistema econômico, há pessoas que se encontram no limiar da vulnerabilidade e

podem sucumbir a uma privação que afete significativamente suas vidas. A

segurança protetora é necessária para proporcionar uma rede de segurança social,

impedindo que a população afetada seja reduzida à miséria abjeta e, em alguns

casos, até mesmo à fome e à morte.

Pode-se sintetizar esse conjunto de ideias afirmando-se que as liberdades

não são apenas o fim primordial do desenvolvimento, contam-se também entre os

meios principais. As liberdades políticas (sob a forma de livre expressão e eleições)

ajudam a promover a segurança econômica. As oportunidades sociais (sob a forma

de serviços de educação e de saúde) facilitam a participação econômica. Os

dispositivos econômicos (sob a forma de oportunidade de participar no comércio e

na produção) podem auxiliar a gerar tanto a riqueza pessoal como os recursos

públicos destinados a serviços sociais. As liberdades de diferentes espécies podem

reforçar-se umas às outras.

Desta forma, essas liberdades instrumentais, além de incrementarem

diretamente as capacidades das pessoas, também as suplementam mutuamente:

Embora a análise do desenvolvimento deva, por um lado, ocupar-se dos objetivos e anseios que tornam essas liberdades instrumentais consequencialmente importantes, deve ainda levar em conta os encandeamentos empíricos que vinculam os tipos distintos de liberdade um ao outro, reforçando sua importância conjunta. De fato essas relações são essenciais para uma compreensão mais plena do papel instrumental da liberdade. O argumento de que a liberdade não é apenas o objetivo primordial do desenvolvimento, mas também seu principal meio relaciona-se particularmente a esses encadeamentos (SEN, 2013, p.58).

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Corroborando com essa abordagem e enaltecendo a importância da liberdade

na relação da sociedade e instituições, afirma o filósofo francês Alexis de

Tocqueville, em sua obra: “A Democracia na América”:

Nunca será dizer demais: não há nada mais fecundo em maravilhas do que a arte de ser livre; mas não há nada mais difícil do que o aprendizado da liberdade. O mesmo não se aplica ao despotismo. O despotismo se apresenta muitas vezes como o reparador de todos os males sofridos; ele é o apoio do direito justo, o arrimo dos oprimidos e o fundador da ordem. Os povos adormecem no seio da prosperidade momentânea que ele faz nascer e, quando despertam, são miseráveis. A liberdade, ao contrário, nasce de ordinário no meio das tempestades, estabelece-se penosamente entre as discórdias civis e somente quando já está velha é que se podem conhecer seus benefícios (TOCQUEVILLE, 2014, P. 280)

A democracia que confere a liberdade nem sempre proporciona ao povo um

governo justo, o qual amiúde velado de autoritarismo se apresenta, ainda que

aparentemente, o salvador dos desvalidos, o reparador das injustiças e o propulsor

do desenvolvimento, mas quando afastados do sentimento de prosperidade, os

indivíduos se dão conta de que direitos foram tolhidos e a situação de miserabilidade

é consequência da tirania e do despotismo mascarado em um governo democrático.

Há diversas formas de alcance e potencialização da liberdade. Contudo, faz-

se necessário compreender que a concepção moderna da liberdade se materializa

nas relações entre os interesses individuais e os interesses coletivos, ou seja, que é

limitada e condicionada à vida em sociedade.

Na hipótese de ausência do equilíbrio entre a coletividade e o individualismo,

estar-se-á diante de um despotismo. Nesta linha de pensamento, se houver a

prevalência do indivíduo sobre a sociedade, ou, se a sociedade privar a realização

individual, em ambos os casos, haverá tirania. Neste sentido, o desenvolvimento

como liberdade pressupõe que sejam oportunizadas condições para o exercício

deste direito pelo indivíduo, todavia considerando que é limitado na justa medida dos

interesses coletivos, pressupostos mantidos do primórdios do estado moderno tirano

em pleno século XX.

Assumindo este enfoque, verifica-se que a luta pela terra no Planalto Norte

Catarinense, especialmente no caso do Campo de Instrução Marechal Hermes,

desenvolveu-se sob a imposição da lei, justificada por suposta utilidade pública.

Porém na prática o Estado restringiu a liberdade de participação social dos

pequenos proprietários, impossibilitando escolhas e extirpando oportunidades, por

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fim, restringindo o exercício das atividades que viabilizavam sua subsistência. Não

houve escolha ou mesmo consulta popular, pelo contrário, tirania, imposição,

privações daqueles desapropriados de exercerem o direito à propriedade, a

liberdade de produzir e de sentirem inseridos na comunidade, contribuindo para o

desenvolvimento da região.

No início do século XX, no período que precedeu a deflagração da Guerra do

Contestado (1912-1916), a privatização da terra e a restrição ao seu acesso, por

meio do apossamento, impactou a vida de significativos contingentes populacionais

daquela região. Inclusive, através do cerceamento aos ervais nativos, até então

devolutos, de onde era extraída a erva mate e, via escambo, consistia em importante

atividade de subsistência para os caboclos. Os ervais nativos, que proporcionavam

relevantes recursos para subsistência da população pobre da região, passaram ao

domínio privado dos grandes proprietários, ao longo do século XIX e início do século

XX. A mais alta exposição gráfica da luta pela terra é sintetizada em um bilhete

encontrado no bolso de um rebelde morto em combate: “Nóis não tem direito de

terras, tudo é para as gentes da Oropa” (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 246).

O embate entre posseiros, sitiantes e mesmo proprietários de maior vulto

contra a Lumber Company materializou-se através de Aleixo Gonçalves de Lima –

um dos principais líderes rebeldes que atuava na região norte do território

conflagrado – o qual mantinha com a Lumber ferrenha disputa por uma área de

terras localizada ao sul de Três Barras, registrada em cartório de Santa Catarina.

Esta disputa suscitou do fato de outra família, sobrenome Pacheco, ter ocupado

aqueles terras e promovido o registro em cartório paranaense, subsequentemente

as alienando para a companhia americana. “Afirma-se que a invocação do nome de

Aleixo fora bastante para levantar em armas centenas de sertanejos, muitos dos

quais também expulsos de suas terras graças a manobras da empresa norte-

americana...” (VINHAS DE QUEIROZ, 1966, p. 166).

Sendo assim, parece razoável a afirmação de que um dos motivos mais

contumazes para a adesão dos sertanejos aos redutos, durante o movimento

sertanejo, foi a sublevação contra as amplas doações de terra feitas às empresas

estrangeiras e sua expansão fundiária, processo que os afugentava das terras que

consideravam suas por direito e justiça. Certamente a leitura feita pelos integrantes

do movimento compreendia a expulsão das terras como parte de um processo mais

amplo, que tinha origens políticas e classistas profundas: “[...] O governo da

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República toca os Filhos Brasileiros dos terrenos que pertence à nação e vende para

o estrangeiro, nós agora estemo disposto a fazer prevalecer os nossos direitos”

(PEIXOTO, 1995, g. 74).

Acerca das motivações para o início do movimento sertanejo, Tomporoski

(2016), pondera que:

Com base nas motivações dos integrantes do movimento, podemos atribuir ao mesmo um caráter de conflito social, no qual os alvos dos rebeldes revoltosos demonstraram a racionalidade intrínseca do movimento: o capital estrangeiro; o domínio político e fundiário dos coronéis; a exclusão da população nacional em detrimento do assentamento de estrangeiros; a injustiças praticadas por aqueles que ocupavam cargos nos governos das esferas estadual e federal (p. 04).

O autor expõe as principais causas que motivaram os caboclos a lutar.

Apesar de seu enfoque contextualizado ao início do século XX, as palavras são

perfeitamente aplicáveis aos dias atuais, nos quais permanece a luta pela terra na

região. Através do mesmo descaso e da invisibilidade dos menos favorecidos diante

dos interesses prioritários do Estado, o progresso na região continua limitado, em

descompasso com outras regiões do estado Catarinense.

Ainda de acordo com Tomporoski (2016), no século XXI se manifestam

consequências daquela guerra para a região:

[...] é razoável delimitar três fatores vigentes no território do Contestado que geram entraves à implementação de estratégias de desenvolvimento territorial sustentável: o trauma associado ao conflito social e ao genocídio praticado contra os caboclos, impondo, à população que reside naquele território, sentimentos de vergonha e consequente silenciamento; a expansão fundiária, outrora já vivenciada, que promove a concentração da propriedade da terra, sob controle de grandes proprietários rurais e de empresas multinacionais; a perpetuação do modelo econômico baseado primordialmente no extrativismo (TOMPOROSKI, 2016, p. 5).

Conquanto o crescimento econômico e a expansão dos programas sociais

permitirem amenizar desigualdades históricas da sociedade brasileira, os municípios

que integram o território do Contestado apresentam, hodiernamente, alguns dos

mais baixos índices de desenvolvimento humano do estado de Santa Catarina

(IBGE, 2010), de acordo com sua classificação no IDHM (Índice de Desenvolvimento

Humano dos Municípios), compondo um bolsão de pobreza e exclusão,

precipuamente nas áreas onde a luta sertaneja foi mais intensa.

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A razão do subdesenvolvimento, segundo a abordagem de Amartya Sen,

deve-se às privações de liberdade nas escolhas e oportunidades que foram tolhidas

pelo Estado, ou seja, a falta das liberdades instrumentais contribui, direta ou

indiretamente, para a liberdade das pessoas viverem como desejarem. Este

comportamento estatal influenciou diretamente a capacidade das pessoas de

contribuir para o desenvolvimento da região.

4.1 Das Privações das Liberdades Substantivas e Instrumentais, Consequências da

Desapropriação

Considerando o desenvolvimento como um processo de expansão das

liberdades reais dos indivíduos, (papel constitutivo), e, também, a extensão da

liberdade como simultaneamente o fim e o meio do desenvolvimento (papel

instrumental), esta pesquisa demonstrou as privações de liberdade – em ambos os

papéis – a que foram submetidos os desapossados do Campo de Instrução

Marechal Hermes, ao longo de toda esta questão fundiária, que iniciou na década de

1950 e avança até a atualidade.

Para os desapropriados de Três Barras, as privações de liberdade se

iniciaram logo após a publicação do Decreto Desapropriatório em 1956. Aguardando

o pagamento da indenização prevista na Constituição de 1946, os desapropriados

permaneceram em suas propriedades até 1963. Porém, o Estado não respeitava a

posse plena que aquelas famílias ainda detinham como direito.

Este período é retratado através de depoimentos de pessoas que vivenciaram

a violação do direito ao exercício da propriedade pelo Ministério da Guerra, que não

respeitava a presença das famílias na área, e que iniciou, ainda que ilegalmente, as

manobras militares.

Segundo Lima (2016), apesar da inércia processual durante aquele período,

as manobras aconteciam regularmente, mesmo antes da conclusão da

desapropriação, conforme entrevista com o desapropriado Walfrido da Silva Lima:

Eles vinham, avisavam todos os proprietários o dia que eles iam fazer a manobra. Então eles vieram, avisaram e pediram pra nós sair de manhã cedo. Deram um horário. Pra nós sair às 6 da manhã, e só retornar à propriedade, às 6 da noite. Eu lembro, na época, que meu pai tinha uma carroça e já tinha um fordinho, daqueles 29. O meu pai saiu com o ford [...] A família era grande nós era 10 filhos, 5 mulher e 5 homem. Nós saímos.

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Pra onde que nós íamos? Nós procuramos os vizinhos mais longe da área [...] A Dona Boiko, essa mulher não quis sair. Ela disse: - Eu não vou sair da minha casa. E quando ela ficou dentro da casa começou a manobra, de 6 da manhã. E ali começaram a jogar bomba e as bombas ultrapassaram o alvo e caíam em cima da casa dela. Eu lembro hoje, como jovem, ainda, que da minha casa enxergava a casa da Ana Boiko, que era minha madrinha. E as bombas chegavam. Dava um estouro que você escutava as bombas chiando, passando por cima da casa.[...]. A velha ficou dentro da casa. Não aconteceu nada.[...] (LIMA, 2016)

Constata-se que durante o período desapropriatório, as manobras ilegais

expuseram os moradores ao risco de morte, deixando suas marcas na memória dos

expropriados:

E daí um dia, antes de saírem, a aviação teve lá e tocou bomba até dentro da mangueira da velha Boiko. Falecida Boiko, uma velhinha de oitenta e poucos anos, que os filhos acharam que tinham matado [...]. Assim, ele foi lá na casa da mãe dele que era a Dona Boiko. Chegou, a velhinha estava ajoelhada e rezando pros santos. A mangueira destruída, que a bomba arrebentava tudo o que tinha por perto. Mas graças a Deus a velhinha não estava lá fora. E não atingiu ela, nem a casa. Se atingiu, foi algum, mas nela não pegou, e daí o povo tratou de sair (LIMA, 2016).

A cena descrita impressiona pelo incrível ato de resistência de uma

camponesa, idosa, que arriscou sua própria vida para desafiar aquilo que

considerava injusto. Por outro lado, a cena também choca por materializar a

violência do Estado contra as camadas subalternas da sociedade.

Segue a descrição deste evento, que abalou a região e deixou marcas

indeléveis na memória da população:

[...] quando chegou as 6 horas nós retornamos. Dá uns doze quilômetros quando nos afastamos da nossa propriedade, do José da Silva Lima. Eu lembro que eu estava na carroça. Meu pai estava num automóvel, num pé de bode; nós dizia, num 29. Quando nós tava chegando em casa, ali perto das 6 hora, que nós tava retornando eles estouravam as bombas lá. Eu lembro até hoje que eu tava dentro de uma carroça de cavalo e quando tava chegando na frente de casa, eles largaram uma granada. A granada caiu mais ou menos da carroça, mais ou menos uns, eu imagino hoje, uns, uns trinta, quarenta metros da carroça e os cavalos se assustaram. E aquelas bombas nós só fomos ver no outro dia, os fiapos de caco de bomba. E hoje não esqueço daquilo que a gente teve, parecia uma guerra (LIMA, 2016, p. 06).

Os militares agiram sem qualquer autorização judicial, uma vez que os

processos desapropriatórios foram propostos somente no ano de 1962, e, até que

ocorresse uma determinação judicial, que autorizasse a imissão da posse, os

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proprietários poderiam usufruir, de forma exclusiva e plena, do seu direito à

propriedade.

Outro episódio, por certo ainda mais traumatizante, sob o aspecto de privação

da capacidade daqueles indivíduos de conduzirem o modo de vida que valorizavam,

decorreu da truculência do Estado na retirada definitiva dos desapropriados de suas

terras. Simplesmente ignorara os desafios que a maioria dos agricultores enfrentaria

longe das lavouras.

Esse fato foi noticiado pela imprensa:

Tivemos 48 horas para sair das terras. É um pesadelo do qual não acordamos até hoje. Nossas casas foram demolidas, nossos porcos ficaram perdidos no mato, a lavoura o que pudemos, colhemos, o resto ficou tudo lá, e hoje não tem mais nada. Algumas famílias foram despejadas na Praça Lauro Muller no centro de Canoinhas. (BOLETIM INFORMATIVO, 1985)

O evento ficou marcado pela remoção abrupta daquelas famílias, retiradas de

suas propriedades, não obstante através de autorização judiciária. O cumprimento

do mandado, após o prazo de 48 horas para desocupação voluntária, foi executado

com violência e despido de qualquer compaixão.

[...] porque quando o Exército chegou, na época lá, quando o exército se apossou mesmo, que avisou todo mundo era pra todo mundo sai, daí as autoridades deram um prazo de 48 horas para nós desocupar as casas. Nesse prazo, todo mundo saiu, cada um tirou sua mudança. Um ia pra casa de um parente, outro pra lá (LIMA, 2016)

Muitos proprietários, sem ter qualquer alento ou local para abrigar sua família

e seus rebanhos, foram retirados de forma violenta, por meio de caminhões do

exército, e despejados apenas com seus pertences pessoais na Praça Lauro Muller,

em frente à Prefeitura Municipal de Canoinhas.

Na época da expulsão, as pessoas foram jogadas numa praça de Canoinhas com suas coisas. A maioria passou a trabalhar como faxineiros na Prefeitura daquela cidade. “Esta expulsão gerou um problema social”, acrescenta o Prefeito de Papanduva (JORNAL SANTA CATARINA, 1980; Processo n. 501.114/87 p. 14)

A memória ficou assim marcada:

[...] Eles quando iam tirar o pessoal de lá, milico e oficial de justiça, prometiam pra todo mundo que com 30, 60 dias, no máximo, o governo

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pagava todo mundo. [...] A velha ( referindo-se a Sra. Boiko) eles jogaram em praça pública [...] (Entrevista Walfrido Simas, LIMA 2016)

Com o ato de expulsão, os desapossados se viram na situação de completo

abandono por parte do poder público. Não foi oferecida qualquer assistência

material, deixando a maioria na mais completa miséria. Quanto ao destino dos

desapropriados, após a saída de suas propriedades, o seguinte relato é assaz

esclarecedor:

[...] Mas nós passamos fome, menina. E não só nós, muita gente. Nós passamos fome, chegamos em Canoinhas em 50. [...] O meu tio fez ela compra um terreno dos Bora ainda, que eu acho que não existe nenhum mais vivo, e mudou a casa de Três Barras lá em Canoinhas. [...] O meu tio pegou um homem lá, ele veio e desmanchou a casa aqui, e veio ajudar a carregar pra nós lá em Canoinhas. Daí o Tulio levou, daí ele e um filho, tal de Bastião, fizeram a casa pra nós. A casa desmanchada, de madeira velha, cheia de prego. E aquele tempo era tão difícil que nem prego novo não pudemos comprar pra fazer a casa. Já pensou na miséria? Aquilo que é miséria! [...] (Entrevista de Simas, LIMA, 2016, p. 08)

Dentre aqueles prósperos agricultores, muitos não conseguiram se reabilitar.

Alguns foram vendendo seus bens para adquirir nova moradia, os que tinham

parentes mais próximos foram migrando para outros locais. Segundo entrevista do

desapropriado João Schadeck:

Diversos agricultores perderam tudo após a desapropriação sem indenização ocorrida em 1956. Franco, o que lhe é peculiar, Schadeck assinala ainda que a família, além das terras do campo Marechal Hermes tinha outras posses em 1963, quando os agricultores tiveram que deixar a área. Tivemos por isso condições de prosseguir sem maiores dificuldades. O mesmo não aconteceu com diversas famílias desapropriadas. Como não houve indenização ficaram no olho da rua (A NOTÍCIA, 1986, p. 09).

Se não bastasse a situação a que os desapropriados foram expostos, ainda

havia a questão dos animais, que ao contrário dos agricultores, não podiam ser

jogados em praça pública. Entre os proprietários despejados, alguns prósperos

lavradores foram obrigados a se desfazer dos seus rebanhos a preço vil, ou arrendar

suas próprias terras ao Ministério do Exército.

[...] Meu pai tinha na fazenda umas 220 cabeças de gado. E a orientação da autoridade era que nós tinha que vender tudo, pra sair dali. Então, eu lembro, quando meu pai começou a se preocupar em vender o gado. Eu lembro, meu pai tinha umas 220,230, 240 cabeças de gado.[...] Porque assim, como nós corria risco de vida nossos animais: gado e galinha, porco

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também. A gente começou se desfazer. Na época eu lembro que os matadores de gado tinha um matador em Itaiópolis; [...] Eu lembro, que meu pai, com aquela preocupação, ele apressou-se em vender o gado. Ele vendeu 75 vacas tudo enxertada com terneiro na barriga [...] Vendeu tudo por preço mais baixo, pra pode diminuir o rebanho (LIMA, 2016)

Estima-se que havia cerca de cinco mil cabeças de gado na área

desapropriada, e não houve tempo hábil para que seus proprietários destinassem

adequadamente os animais.

Em junho de 1962, oficiais do exército, acompanhados por oficiais de justiça,

visitaram os proprietários e deram um prazo de 48 horas para desocuparem as

terras, baseando-se no decreto-lei nº. 40.570, de 18 de dezembro de 1956. O prazo

foi obedecido, segundo lembra João Schadeck, um dos herdeiros da família

Schadeck:

Muitas famílias venderam o gado pela metade do preço. O meu pai também cumpriu o prazo e conseguiu vender o gado bem barato, mas muitas outras famílias não encontraram compradores. Depois de abandonarem suas propriedades, elas não conseguiram transferir os seus gados. Assim, depois de apelarem bastante, o exército decidiu cobrar um arrendamento da pastagem (Processo n. 501.114/87, p.14).

Após a apropriação da área pelos militares, os agricultores solicitaram

autorização para explorar a madeira, o que lhes foi negado. Todavia, há vários

depoimentos que citam o arrendamento da área a terceiros, realizado sob

autorização do Exército, desviando por completo a finalidade da desapropriação.

Quando os proprietários tiveram conhecimento da desapropriação, quiseram cortar nos seus terrenos as árvores industrializáveis, no que foram terminantemente proibidos. Mesmo no curso das ações desapropriatórias, tentaram, sem êxito, obter as autorizações para a extração, com a justificativa de que as terras interessavam ao poder publico tais como se encontravam, em seu estado natural, especialmente as áreas cobertas de matas nativas. A solicitação para extração da madeira pelos proprietários se dava em razão do valor atribuído ao pinheiro adulto, na época Cr$ 2.500,00 e que em um hectare, composto de pinheiros, facilmente se encontravam mais de 500 pinheiros. Daí a intenção da extração pelos proprietários antes da desapropriação (Processo n. 501.114/87, p. 08).

A análise documental revelou o caso da Sra. Maria da Gloria Wojciechovski,

que havia anteriormente obtido autorização do Instituto Brasileiro de

Desenvolvimento Florestal – IBDF, para a venda de 1000 metros cúbicos de madeira

à Madeireira Indústria de Madeiras Planalto Ltda. Posteriormente, sem qualquer

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motivação, o Delegado Estadual do IBDF cassou a autorização, que motivou a

impetração de Mandado de Segurança contra este ato proibitivo. O que se destaca

neste caso, em particular, foi a manifestação em favor da agricultora, emanada do

juiz que analisou a questão, acerca da injustiça daquela situação conflituosa, que

envolvia a área expropriada pelo Ministério do Exército:

A Portaria 475/83 pretende de golpe incorporar ao patrimônio da União o que não logrou obter perante o Poder Judiciário ao longo de mais de duas décadas, em notável atentado ao mais reconhecido dos princípios constitucionais: o dever de indenizar justa e previamente, qualquer apropriação imobiliária de bem de terceiro. A Portaria em exame é tristemente nula (Processo n. 501.114/87, p. 526-530).

Outro caso exemplar foi narrado pela advogada Mariângela Senna, na

audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores do município de Três Barras,

em 2014, quando declarou o absurdo da imputação criminal ao seu cliente, acusado

de furto do seu próprio patrimônio e prática de crime ambiental. Nas palavras da

advogada, publicadas no Correio do Contestado:

A advogada Mariângela Senna abordou um caso que diz bem o que está se

passando na área do exército. Ela defende um cliente, ex‐proprietário de terras no campo de manobras, que está sendo acusado de furto de madeiras do seu próprio terreno. A área em que isto ocorreu não está sendo usada pelo exército e, ou é ainda do antigo proprietário, já que ele não recebeu a indenização, ou é terra de ninguém, já que o exército não tomou posse daquela parte da área. O agricultor corre o risco de ser preso por retirar madeira do seu próprio terreno. Além disso, está sendo processado por crime ambiental. Pode ir parar na cadeia. Isto é: não pode mexer no que é seu, pois, se mexer, vai pra cadeia (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.06).

As ações empreendidas pelo exército, junto aos desapropriados, resultaram

em algumas prisões, e, aos olhos dos desapropriados, havia ilegalidade no

procedimento truculento dos militares, os quais alertavam para a possibilidade de

mortes naquele conflito:

O Edilson foi preso [...]. O Hamilton, mais foi preso lá no rio. Estavam tomando banho e passou pra beirada deles. E eles cataram ele. E daí judiaram bastante. Ficaram um semana com o rapaz preso em Rio Negro. Era o “diabo”. Eles são maldosos mesmo (Entrevista de Simas, LIMA, 2106, p. 12)

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Após instrução criminal, os dois jovens, ambos familiares dos expropriados e

que mantinham ligação com as terras em conflito, foram absolvidos com a seguinte

fundamentação:

De qualquer forma, comprovado ficou que os dois primos ora acusados tinham ido se banhar no rio Papanduva [...]. Não se pode negar que, até poucos dias daquela data, a área vivia um clima de intensa agitação, em razão do acampamento dos denominados “sem terra”, que, exatamente naquele local, permaneceram por muitos meses” (PROCESSO N. 501.114/87, P. 372).

O pronunciamento da sentença demonstra a desnecessidade da atuação

autoritária e ilegal dos militares, pois não tratavam de bandidos, apenas de pessoas

miseráveis e injustiçadas.

Outras prisões foram relatadas:

A Tia Nena agarrou o Walfrido pela camisa, achando que iam matar ele, com o tanque de guerra e tudo. E foi e discutiram. O Walfrido, também, era bom de papo, dai meteu-lhe a boca no major, no coronel. E o major disse: - “prendam esse homem!”. Cataram o Walfrido. A tia Nena saiu de quatro, ao pé agarrada na camisa, dai tirou a metade da camisa do Walfrido. Não queria deixar eles levarem ele. Mas não tem né, 2, 3 não leva, tem 50 para empurrar, lá pra dentro. E afinal, foi aquele sururu desgraçado. [...] (Entrevista Simas, LIMA, 2016, p. 12)

O clima tenso tomava conta da região. O Exército mostrava-se cada vez

mais truculento e impaciente com as reivindicações dos desapropriados. Em

contrapartida, entre os agricultores submetidos à condição de miserabilidade e

tomados pela revolta, havia aqueles que estavam propensos a buscar na violência a

redenção de seu sofrimento. Não aguentariam aguardar o pronunciamento da justiça

acerca do pagamento das indenizações. Essa situação ocorre no episódio que

envolveu o Senhor Honorato Branco Pacheco, após a expulsão de suas terras:

[...] o senhor Honorato encontrou o Coronel e sacou de um revolver para dar um tiro no militar. Rapidamente conseguiram evitar um incidente fatal. Mais tarde, as autoridades tentaram prendê-lo, mas o juiz aceitou o argumento do advogado, que alegou perturbação mental de seu paciente. Garantem alguns membros de sua família que residem em Canoinhas, que o Sr. Honorato faleceu de “desgosto” porque suas terras foram tomadas (Processo n. 501.114/87, p. 15).

A situação dos agricultores se tornara precária, não lhes restando outra

alternativa, senão convocar a pressão da opinião pública, através de movimentos

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sociais e acampamentos no entorno do CIMH. Essas manifestações, contudo, eram

o motivo que o Ministério do Exército aguardava para mostrar o seu modus

operandi, em desfavor daqueles “sem terra”.

4.2 O Acampamento “São João Maria”

O sentimento predominante nos atingidos pela desapropriação, direta ou

indiretamente, consistia numa mistura de esperança e revolta. Cansados de

aguardar uma solução por parte do Governo, fosse judicial ou administrativa, com o

transcorrer do tempo, os revoltosos, apoiados por movimentos sociais que

despontaram na década de 1980, passaram a se manifestar de forma mais explícita,

através de várias ocupações de terra.

Para Schiochet (1993 p. 78), a decisão de organizar acampamentos em

locais estratégicos é atribuída aos seguintes fatores: mudança na concepção política

dos desapropriados e herdeiros (cansados de viagens e tentativas de diálogo com

representantes da União) e o uso das terras pelos militares para outros fins.

O estopim para a invasão foi a denúncia do Capitão Heitor Freire de

Albuquerque Filho45. O Exército estava permitindo que particulares extraíssem toda

a produção de erva mate desta área, uma safra prevista de 1.500 toneladas, ao

preço de Cr$ 50 mil a tonelada. Na concepção dos agricultores, este montante, de

aproximadamente Cr$ 75.000.000,00, não pertencia ao exército, pois a finalidade do

Decreto Desapropriatório consistia em proporcionar uma área descampada, para

manobras militares.

Este argumento se fortalecia em razão dos processos desapropriatórios,

ainda em curso. Por isso, entendiam que, não ocorrendo o recebimento das

indenizações, a propriedade daquelas áreas ainda lhes pertencia. O Correio do

Contestado noticiou, em 2014, o enfoque da questão sob a perspectiva dos

desapropriados, com a matéria “Vergonha Nacional”:

45

O Capitão Heitor Freire de Albuquerque Filho formulou denúncia das irregularidades que ocorriam no interior da Unidade Campo de Instrução Marechal Hermes, contra os denunciados Cabo Honorário e o Comandante João Carlos Amaro Neto. A denúncia referia-se à venda de pinheiros, imbuia, erva mate, aluguel de terras aos proprietários já desapropriados, além da exploração agrícola da terra pelos próprios militares. (RELATÓRIO COMISSAO ESTADUAL DA VERDADE DO PARANÁ, 2015:35).

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Mais uma. Este caso é mais uma das tantas vergonhas que a Ditadura Militar nos legou. A área foi desapropriada, mas não foi paga. Aconteceu um CALOTE. São cerca de duas mil pessoas, hoje, entre herdeiros e proprietários ainda vivos, que foram lesados nos seus direitos. Em 1986, depois de infrutíferas tentativas de reaver suas terras ou o pagamento justo e merecido pelo que lhes foi tirado, dezenas de famílias ocuparam a área que continuava, na prática, sendo sua. Foram expulsos a golpes de baioneta pelo exército. Isto é, foram expulsos de suas próprias terras. O exército está alugando, arrendando, cedendo por interesses comerciais ou políticos, ou quaisquer outros interesses desconhecidos, parte das terras para agricultores da região, incluindo alguns dos principais antigos proprietários e, especificamente, a família que tem a maior área envolvida no imbróglio para o cultivo de lavouras ou criação de gado. O exército está agindo arbitrariamente em todos os sentidos, pois tenta manter uma área que DOCUMENTALMENTE não é sua, sob o pretexto de cumprir a LEI; Lei que ele próprio não está cumprindo (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 04).

Visando sensibilizar o Governo Federal, no mês de setembro de 1980

realizou-se uma ocupação, inicialmente de 150 agricultores, que, sem autorização,

acamparam numa casa de propriedade da família Schadeck, dentro do Campo de

Instrução.

Segundo Lima (2016), percebia-se, em inúmeros momentos, o envolvimento

místico-religioso na organização do movimento, tal qual através do nome designado

ao acampamento, de "Acampamento São João Maria46”.

Munidos apenas com algumas barracas de lona, tratores, máquinas de

agricultura e agasalhos para enfrentar o frio, cerca de 400 pessoas, entre homens,

mulheres e crianças, levaram consigo grande quantidade de alimentos, com o

propósito de permanecer na área expropriada até que o governo se decidisse por

solucionar o impasse, através da devolução dos hectares expropriados ou do

pagamento de justas indenizações pela área.

[...] Dia 15, reuniram de noitinha. Começaram reunir e foram na Campininha e foram em Canoinhas e reuniram. Levaram tudo e espicharam umas loninhas e posaram por lá. Daí começaram melhorar as coisas, devagar. Mas foi sofrido ali. Daí o exército descobriu. Encheu de tanque de guerra, no morro, ali que dá no Poço Grande. Você conhece o Poço Grande? É um chapadão. Passou o rio Poço Grande, e daí tem uma subida, onde vai pra dentro da área. O exército encheu de tanque de guerra e milico, lá em cima do morro, pra amedrontar o povo. E sai, não sai. Aquela briga foi para a televisão. A Pastoral teve a sua vantagem, jogou mesmo com tudo, porque a pastoral, nada mais é que gente da política, de esquerda, na verdade. Na

46

No ano de 1987 aconteceu a 2.ª Romaria da Terra de Santa Catarina, na localidade nominada de Poço Grande, em Papanduva, divisa com a área militar em litígio. Desse evento, participaram em torno de 15 mil pessoas. O objetivo do encontro era evidente: protestar contra o descaso do governo no que se refere à luta pela terra, não se importando com mais de 136 mil famílias sem terras do Estado.

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época, unido com padre descontente, também, com a Igreja. E a Igreja tem

força. (SIMAS, 2016 apud LIMA, 2016, p. 12).47

Ao tomar conhecimento da invasão, o oficial Coronel, Diretor do Campo de

Instrução Marechal Hermes, compareceu ao local e ameaçou prender todos os

homens, caso eles não se retirassem das terras dentro de algumas horas. Pouco

depois, voltou acompanhado de dezenas de soldados do quartel de Três Barras,

município vizinho de Papanduva, dizendo que levaria presos os líderes do

movimento (PROCESSO n. 501.114/87, p. 18).

As mulheres protestaram e declararam que primeiro o oficial haveria de

prender a elas e as crianças.

Na porta de uma antiga casa, que eles consideram como sendo seu “quartel-general”, e a única benfeitoria ainda existente na área, os agricultores hastearam as bandeiras do Brasil e de Santa Catarina, ao lado de cartazes com estes dizeres: “Não atire no teu irmão injustiçado” (um recado aos soldados do campo de manobras)”. “Nosso Presidente Figueiredo apoia o pequeno agricultor” e “Você também sofre” ( outro recado aos soldados). Pelo chão, ficaram espalhados colchões, cobertores e lençóis. Na cozinha, dezenas de mulheres preparavam ensopado de carne de porco, arroz e café em grandes caldeirões. Nas barracas e num velho galpão, os homens tomavam chimarrão, enquanto todos conversavam sobre a invasão. Todos, no entanto, faziam questão absoluta de mostrar que entraram na área desarmados e que a invasão foi a ultima alternativa que encontraram para tentar uma solução para o problema.

A ocupação começou no sábado, 14 de abril, às 15 horas. Até a tarde de

domingo, o clima era de calma e normalidade, quando a chegada do exército, com

tanques, carros blindados e cerca de dois mil soldados armados com fuzis e

metralhadoras, obrigou os manifestantes a abandonarem o local, segundo noticiado

no Correio do Contestado (2014, p.07)

47

CTP – Comissão Pastoral da Terra. “Quando criamos a associação, daí nós começamos a buscar os direitos sociais. Onde existia a Pastoral da Terra e outros, como o partido político dos trabalhadores. Essas coisas. Então a gente buscou recurso de todo lado da sociedade. E lá houve orientação, pra valer, da CPT, que era Pastoral da Terra de nós, fazer a ocupação, lá nas nossas terras” (LIMA, 2016).

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Figura 04: Invasão do Campo de Instrução Marechal Hermes

Fonte: Correio do Contestado (2014, Ed. 3756, p. 07).

O contingente da 5ª Região Militar, com sede em Curitiba, estabeleceu prazo

até às 15 horas de segunda‐feira, 16 de abril, para a retirada pacífica dos

acampados:

Os números são um pouco contraditórios. Segundo o representante dos Sem Terra, que atendeu a nossa reportagem, cerca de 900 famílias, ou 4 mil pessoas, estavam acampados no terreno onde o exército realiza seus treinamentos, e a força militar presente chegava a 2 mil soldados e oficiais. Declarou, ainda, que não tinha conhecimento de que, ao longo dos 23 anos de existência do MST, uma invasão como essa tivesse conotação tão pesada, perigosa e violenta. O Coronel Marco Aurélio, comandante da operação, que também atendeu gentilmente o Correio do Contestado, não concordou inteiramente com esses números, admitindo, todavia, que o grupo era forte e estava pronto para qualquer tipo de ação (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 07).

A situação somente se acalmou com a chegada, ao local, de oficiais do 5º

Regimento de Comunicações, de Rio Negro, que ouviu todas as reivindicações dos

agricultores e assegurou que seriam transmitidas ao Comando do Exército.

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Em entrevista ao Jornal Correio do Contestado, o Deputado Federal, Claudio

Vignatti, presente no local, informou que o exército agira de forma autoritária, sem

qualquer demonstração de pacificação rumo a uma solução negociada:

Correio – Foi uma decisão arbitrária, então, do exército? Deputado – Foi. Não deixaram nem o pessoal do INCRA entrar, nem outras autoridades, ninguém que pudesse intermediar o processo de negociação e acompanhar

a saída do pessoal. Tem‐se que estabelecer um processo de negociação. O Exército, mesmo que tenha autonomia, está subordinado à Presidência da República. Essa ocupação mostrou a necessidade da negociação. É uma área que pode ser desapropriada, parcialmente, e negociada com o MST, e esse mecanismo deve ser estabelecido de agora em diante. O INCRA pode oferecer uma nova área e, dentro dessa nova possibilidade, trabalhar para que atenda os interesses da sociedade (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 08).

O processo de negociação foi documentado em uma foto do período:

Figura 05: Militar, montado sobre um tanque de guerra, ouvindo as reivindicações dos invasores.

Fonte: Correio do Contestado, Ed. 3756, p.07.

Apesar do suposto processo de negociação, a expulsão daquelas famílias

não demorou a acontecer. A promessa de que autorizariam a permanência,

enquanto não se encontrasse uma solução, não fora cumprida pelo Exército e os

agricultores foram retirados.

Estimou-se que mais de mil pessoas foram mobilizadas na ocupação, e a

ação do movimento social atraiu a atenção de autoridades e trouxe reconhecimento

nacional à situação daqueles desapropriados:

Não pudemos, infelizmente, comprovar in loco esses números, pois não foi permitida a entrada da imprensa, nem dos políticos presentes, muito menos dos representantes do INCRA. O próprio negociador dos Sem Terra, que obteve permissão para sair em busca de ônibus e outros meios para retirar

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o pessoal da área, não conseguiu mais entrar, tendo ficado do lado de fora, sendo permitida apenas a entrada dos ônibus e carros. Na saída da caravana observamos números condizentes com os declarados pelos políticos presentes: cerca de 15 ônibus lotados e vários veículos de passeio, além de algumas motos, o que permitiu calcular em cerca de 1.200 pessoas o total, com muitas mulheres e crianças. Assim, concluímos que a operação militar pode não ter sido tão transparente e pacífica como declaram os comandantes, pois, nada melhor que imagens para mostrar o que realmente estava ocorrendo. O interlocutor do Movimento fala em violência, “Operação de Guerra”, cerco total, ameaças de morte e privação do fornecimento de água; nenhum desses fatos foi confirmado pelo Coronel (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 08)

Este episódio repercutiu na impressa nacional, segundo o jornal “O Estado de

São Paulo”:

Três dias após a expulsão, em entrevista ao jornal o comandante da 5ª Região Militar, General Jofre Sampaio, garantiu depois da expulsão, que o exército ainda vai tentar uma solução pra o problema. O exército – dizia ele em setembro de 1980 – “não pretende mesmo continuar como campo de instrução uma área de terras férteis como aquela, temos todo o interesse em conseguir uma outra área improdutiva e, se possível, deixar os agricultores voltarem as suas antigas propriedades” (O Estado de São Paulo, anexado ao Processo n. 501.114/87, p. 15)

A mesma promessa já havia sido feita dois anos antes aos agricultores, e não

fora cumprida. O Ministério do Exército parecia se posicionar no sentido da

negociação, de buscar uma solução pacífica e reconhecia que o campo de instrução

já não atendia a finalidade para a qual foi constituído.

Ao longo do tempo, ficou evidenciado que o discurso pacífico do Exército não

passava de falsa declaração, pois, na prática, notava-se o tom de autoritarismo e

ameaça aos desapropriados:

A entrada é proibida e, quem entrar, vai mesmo sair a ferro e fogo, conforme declarou ao Correio do Contestado o Coronel Marco Aurélio, comandante da operação que desalojou os Sem Terra na recente invasão (2014, p. 04).

Em entrevista, um dos representantes do movimento social, Alfredo Anselmo

de Miranda, vulgo Índio, declarou que:

Foi uma humilhação, chegando até a usar o nome do nosso Pai lá em cima, Jesus Cristo, que era pra nós escolher, para nossas crianças e mulheres escolherem se queriam exatamente o massacre que iria ocorrer na noite, a dor da noite, o sangue da noite, ou se preferiam sair da área. Tentaram de todas as formas que chegou num ponto que muitas famílias, pessoas idosas, se desesperaram, uns tentando fugir pela mata, outros chorando,

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crianças perdidas das mães, a gente controlando a situação. Colocaram que a coordenação do movimento dos sem terra, a direção, estava abandonando o povo; em momento nenhum; estamos firmes, estamos negociando, estão aqui dentro, agora o pessoal está lá fora também, negociando em Brasília, vamos negociar, vamos fazer o possível para assentar essas famílias; nós vamos sair daqui de cabeça erguida, tivemos vários objetivos conquistados, vários objetivos que foram atingidos; às vezes a gente ocupa uma terra e leva até um ano para começar a negociar, aqui já estamos a caminho e vamos negociar. Correio – Houve uma ameaça de massacre? Índio – Foi uma guerra psicológica (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 10)

Na entrevista, o jornal indagou ao representante se, durante a invasão e

permanência dos ocupantes, houve alguma assistência por parte do exército.

Ofereceu assistência: um canhão mirando para as famílias, dizendo que sai ou detona tudo, foi assim; que eu sei, nem para um bandido eles não podem apontar arma como eles fizeram, gritando: Xô! Xô!, mandando os soldados deles irem empurrando e mirando o canhão, o tanque para o povo. O representante deles não queria saber, foi firme, queria que nós saísse (sic) a noite com o povo na rua; nós ia apanhar, nós ia ficar ali, nós não ia sair; nós negociamos até o último e estamos saindo pacificamente e a negociação está continuando (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 11)

Apesar de haver contradições nas versões apresentadas pelos militares e

ocupantes, a invasão atingiu o objetivo de levar ao conhecimento das autoridades

nacionais, com maior profundidade, o drama e as injustiças vivenciadas pelos

agricultores do Norte Catarinense. Segundo o Correio do Contestado, em entrevista

junto ao Prefeito de Papanduva Humberto Ribas, o movimento social contribuiu para

o reconhecimento nacional daquele impasse:

Acho que, mais cedo ou mais tarde, vai ter que ter uma solução jurídica, porque não é possível uma injustiça, uma incoerência tão grande. Esse assunto ainda não chegou na grande mídia, o povo brasileiro precisa saber o que está acontecendo e a Nação vai ficar estarrecida quando souber disso. (Nota do Editor – Lembramos ao prefeito que, agora, o assunto está ganhando manchetes a nível nacional; foi, inclusive veiculado pela Rede Globo de Televisão com imagens, mapas e comentários à respeito; apontamos, também, que com a reunião presente, agora são duas grandes forças lutando com o mesmo objetivo: o MST e as famílias expropriadas da área e que a solução pode estar próxima) (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p.05).

Com a mobilização social e a repercussão da invasão, os proprietários

passaram a denunciar às mais diversas autoridades os acontecimentos que

envolviam a sua luta pela terra.

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4.3 DENÚNCIAS DE IRREGULARIDADES E INJUSTIÇAS

Os desapropriados, no decorrer do período em que empreenderam tentativas

para obter uma solução pacífica, seja pela via administrativa ou pelo desfecho da

demanda judicial, enviaram diversos documentos, que estão acostados ao Processo

nº. 501.114/87, entre as páginas 500-570, demonstrando ao Poder Judiciário e às

demais autoridades os efeitos decorrentes da repentina mudança no padrão de vida

dos atingidos, cujos transtornos causados pela desapropriação foram

incomensuráveis.

Os desapropriados enfrentaram enorme desafio a partir do momento em que

passaram, aos olhos do poder público, da situação de proprietários estabelecidos,

com atividade agropecuária assegurada, ao status de “sem terra”, “sem dinheiro” e

de “boias frias”, mensalistas ou ainda desempregados.

Diante deste panorama, os desapropriados:

Retratavam a luta em busca de uma solução justa e que pudesse recompor, efetivamente, não apenas o patrimônio de tantos que foram despojados de seus bens, mas que o reconhecimento da injustiça cometida pelo Estado trouxesse a paz, a moral e a confiança das instituições públicas, abaladas em consequência de tamanhas arbitrariedades e injustiças contra os mesmos cometidas, se mantém fortalecida ao longo do tempo e que não irão sucumbir enquanto não alcançada a satisfação dos seus inequívocos direitos (PROCESSO N. 501.114/87, p. 500).

Alguns documentos, que evidenciavam a situação precária em que se

encontravam os proprietários, foram emitidos por órgãos do próprio governo, os

quais denunciavam ao Poder Judiciário a dimensão das injustiças cometidas.

Falavam, ainda, sobre o alcance dos danos provocados pela nefasta desapropriação

e a sequência de procedimentos equivocados levados a efeito pelo poder público,

com o acobertamento da situação de estado de exceção que prevaleceu nos

períodos negros da ditadura.

O primeiro documento trata-se de um parecer do Serviço Especial de Defesa

Comunitária (DECOM), órgão pertencente ao Ministério Público, através do qual o

Procurador da República, Rui Sulzbacher, dirigiu-se ao então Procurador Geral da

República, José Paulo Sepúlveda Pertence, em 04.12.1985, cujo pronunciamento

inicial expressa:

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Solicito providências para um problema antigo, que periodicamente volta à tona pela situação de injustiça, causada com o decorrer do tempo, em desprestígio ao Ministério do Exército, da Procuradoria da República e da Justiça e que cuja solução satisfatória seria um acordo extrajudicial” (PROCESSO N. 501.114/87, p.507-508)

A análise deste documento revela que o Procurador reconhecia as

incoerências, ao afirmar que:

Durante algum tempo foi desvirtuada a finalidade do CIMH através de arrendamentos de frações aos desapropriados ou terceiros. Outro aspecto conflitante era a dificuldade de transcrição dos lotes em nome da União e as dúvidas quanto aos limites do campo de instrução nas faces sul e oeste. A carência de dados e certidões que impediam a transcrição da propriedade fez com que o INCRA cobrasse, injustamente dos expropriados, o Imposto Territorial Urbano – ITR (PROCESSO N. 501.114/87, p. 508).

Apesar da desapropriação das terras em prol da União e da dificuldade em

registrar a propriedade junto às matrículas dos imóveis, o INCRA promoveu a

execução fiscal de débitos contra os desapropriados, que segundo a matrícula eram

os legítimos proprietários. A partir de tamanha insensatez, os desapossados foram

submetidos a mandado de penhora ou pagamento do imposto das áreas que então

estavam apossadas pelo Ministério do Exército, aumentando a indignação dos

agricultores (PROCESSO N. 501.114/87, P. 541-549).

Um segundo documento é o parecer do Procurador da República, Carlos

Antônio Fernandes de Oliveira, dirigido ao Subprocurador Geral da República, Arthur

Pereira de Castilho Neto, emitido em 21.10.1992:

Salienta-se que este Procurador da República atuou na defesa da União nos processos expropriatórios e afirma que embora tivesse atuado na defesa não poderia deixar de se furtar em externar profunda indignação com a lastimável injustiça cometida contra os proprietários dos imóveis em questão. A primeira injustiça cometida foi de que as ações desapropriatórias foram tumultuadas desde o início, posto que propostas no prazo de validade do decreto expropriatório e as áreas nele descritas não correspondiam à sua real situação, inclusive em relação aos seus legítimos proprietários. A segunda injustiça foi que após obter informações junto a autoridades e a alguns expropriados, quando a União foi imitida na posse dos imóveis, os desapropriados tiveram que arrendar da própria União parte de suas terras para manter a criação de gado. A injustiça se configurava no valor pago pelos arrendos entre 1964 a 1980 que eram bem superiores aos valores recebidos de indenização (PROCESSO N. 501.114/87, P.509).

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Conforme entendimento do Procurador, as terras desapropriadas eram férteis

e, além da pecuária e agricultura, apresentavam vasta cobertura vegetal, portanto,

prosseguia a exploração da erva mate pelo Exército, através de licitações.

Constata-se, ademais, a preocupação do Procurador em obter um desfecho

amigável, propondo uma solução que, embora difícil, não era impossível, pois havia

uma relação de dependência entre a União e os desapropriados no interesse de

solucionar o impasse.

Portanto, de um lado se encontravam os desapropriados, requerendo a justa

indenização, e de outro, a União, com o interesse jurídico na transcrição dos

imóveis, a seu ver, somente exequível através da unificação dos registros em uma

única transcrição, fato que, por sua vez, dependia exclusivamente da participação e

da anuência dos expropriados (PROCESSO N. 501.114/87, P.509-552).

Com o intuito de findar o conflito fundiário que se estabeleceu na região do

Planalto Norte Catarinense, verificam-se, no parecer do Procurador, sugestões para

duas soluções alternativas. Na primeira, de forma administrativa, a União devolveria

todos os imóveis aos desapropriados e transferiria o Campo de Instrução para outro

local, mediante regular processo desapropriatório, ou, o pagamento da indenização,

mediante acordo, a todos os desapropriados e herdeiros destes, tendo como

parâmetro novos valores apurados mediante laudo pericial.

A segunda alternativa, na forma judicial, consistia na reunião, como autores

do processo, de todos os expropriados para um acordo. Contudo, era imprescindível

a extinção de todas as ações já propostas contra o Exército, assim como a

transferência imediata do imóvel ao domínio da União Federal. Apesar da boa

vontade do Procurador, as suas sugestões não se concretizaram.

Um terceiro documento, no sentido de denunciar a injustiça praticada contra

os expropriados, foi um ofício emitido pelo Procurador Geral da Justiça, destinado ao

Governador do Estado, Esperidião Amin, no qual:

Reconheceu após um estudo e observou que as ações expropriatórias foram propostas sem observância das cautelas legais, e como resultado desta ilegalidade estava a dificuldade da transcrição dos registros imobiliários das áreas atingidas (PROCESSO N. 501.114/87, p. 514-515).

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Em análise ao pronunciamento do Promotor de Justiça, Luís Adalberto Villa

Real, membro do Serviço Especial de Defesa Comunitária do Ministério Público do

Estado de Santa Catarina – DECOM, verifica-se no parecer que:

Após contato com os agricultores retratou a ânsia desesperada dos mesmos em retornarem às suas terras e que tal manifestação de vontade é resultado da falta de uso da área pelo Exército Nacional, que arrendava as terras para os próprios expropriados ou para terceiros para promoverem o cultivo agrícola ou a criação de pecuária (PROCESSO N. 501.114/87, p. 516-519).

Havia preocupação quanto ao aspecto social suscitado na região do Planalto

Norte Catarinense, pois o impasse fundiário já atingira duas mil pessoas e parecia

longe de terminar. O Correio do Contestado já noticiava a iminência da prática de

atos violentos para a retomada das terras, por alguns dos proprietários mais

revoltados. Na audiência pública em Papanduva, no ano de 2014, houve discussão

entre os que defendiam o exército e o desapropriado Gerson Wojniechovski.

Conforme relatado em jornal:

O Sr. Gerson Wojciechovski, bastante alterado, inclusive com a imprensa, declara: 'Vai dar morte e eu, inclusive, não vou morrer sem levar um junto comigo. A minha sogra recebeu 80%, deu R$ 380 mil cruzeiros dia 24 de janeiro de 1964 e a parte do perito que fez a avaliação deu R$ 503 mil, meio mês depois. É a mesma coisa que você encostar o carro para consertar um pneu e ter que vender o veículo para pagar o conserto. O Governo não pode simplesmente abrir mão do seu patrimônio!!! (disse um vereador). Depois de novo “vozerio irritado” dos presentes, Gerson levantou de sua

cadeira e dirigiu‐se em tom ameaçador ao autor da frase:– Mas que patrimônio? Do exército? Olha, infelizmente você, como vereador, não sabe das coisas que fala. Você não sabe da verdade! (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 04)

Após o depoimento do proprietário, Sr. Gerson Wojciechovski, a balbúrdia se

manifestou, os ânimos se exaltaram e foi necessária a intervenção do Presidente da

Câmara.

Suplantada a animosidade dos participantes, outros proprietários, como o

Senhor Hebrahin Gonçalves de Oliveira, pôde, educadamente, expor a sua

condição:

Em 1986, quando nós fizemos aquele movimento para tentar uma solução para o caso, fomos ao Presidente da República, que fez um despacho para o Incra resolver o assunto e foi decidido que a Dra. Ella W. W. de Castilho (Procuradora) fosse a Brasília, onde convenceu o Ministro do Exército que era melhor devolver a área para os legítimos proprietários e o Ministro

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Leônidas Pires concordou; eu tenho um documento dele, comprovando que não era ruim a ideia levantada pelo reivindicante de uma permuta de área que atendesse as duas partes. Assim que o Estado fornecesse uma área eles transfeririam o campo de manobras e devolveriam a área para nós. Aí fomos chamados na Procuradoria da República em Santa Catarina e o Dr. Rui Subake fez uma proposta para nós de devolução da área desde que nós não reclamássemos as perdas dos anos que nós deixamos de usar as

terras e as benfeitorias, os pinheiros, a erva‐mate, e arrendamento da terra que havia sido feito. Então, todos concordaram em voltar para a terra na situação em que ela se encontrava, sem benfeitorias, sem os pinheiros, sem

erva‐mate, aí o Dr. Rui falou que era um acordo feito a facão, que o nosso direito era voltar para a terra, a devolução da terra, e a indenização pelo tempo em que eles usaram o terreno, mas se nós aceitássemos a devolução assim, sem ônus para a União, eles a devolveriam. Fizemos esse acordo através do advogado Dr. Francisco Vital Pereira que foi junto conosco e, três meses depois, quando voltei à Procuradoria, o Dr. Rui me mostrou o documento que ele recebeu do Ministério do Exército dizendo que a proposta da Procuradoria da República estava oficializando o roubo do exército em cima da área pela venda dos pinheiros e demolição das benfeitorias que existiam na área. Dessa maneira, não devolveriam mais o terreno e puseram um “marco zero” na história e acabou encerrando todo o processo pelo qual nós lutamos tanto e deixaram de devolver a terra para os legítimos proprietários. Então, como se vê, a gente já chegou a um ponto de acordo para devolver a terra e simplesmente o Exército voltou atrás e disse que não devolveria mais (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05)

Na manifestação deste desapropriado, denunciava-se a ameaça concreta de

prisão, por estar reivindicando os seus direitos junto às autoridades, e continua seu

depoimento:

[...] Ela foi avisada de que a Procuradora esteve conversando com o Ministro Leônidas Pires e eu fui chamado no dia 04 de abril de 1987 pelo Diretor Geral de Patrimônio do Ministério do Exército, em Brasília. Inclusive, a Dra. Ella me alertou: "leve advogado que o senhor vai ser preso”. Então eu levei o Dr. Francisco comigo, o Sr. Acácio Pereira também foi junto comigo e é testemunha. Eu fui interrogado durante três horas e quinze minutos por dois generais e dois coronéis. O General do momento estava transmitindo o cargo para o General Oswaldo Pereira Gomes e o Coronel Calazans, que era assessor de gabinete do Ministro do Exército, estava presente e o Coronel Vianna, que era assessor de gabinete do Diretor de Patrimônio. Tivemos três horas e quinze minutos de audiência com eles. Na minha saída ele agradeceu, dizendo que eu esclareci fatos obscuros que eles não sabiam do que vinha ocorrendo aqui, dos aluguéis de terras e vendas de pinheiros. Nós temos aqui uma pessoa, que até citei o nome dele para o General, que cortou madeira durante cinco anos dentro do campo, chegou a cortar madeira do terreno do pai dele para ser vendida pelo exército. Então é isso que dói na alma. Falei para o General: eu pago uma passagem para essa pessoa vir confirmar o que eu estou dizendo. Acabaram me agradecendo e disseram para eu voltar e continuar lutando que não ia me acontecer nada. Eu fui lá para ser preso, a própria Procuradora da República falou que eu ia ser preso em Brasília (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05)

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A crítica publicada pelo jornal Correio do Contestado denuncia o resultado

daquela audiência pública:

Como vimos, esta última audiência pública realizada na Câmara de Vereadores de Papanduva nesta terça feira, 14/10/2014, foi alavancada em fatos reais e doloridos, em problema de difícil solução. Os depoimentos foram, basicamente, em cima de situações narradas com maior ou menor grau de intensidade e realismo. Desde a enfadonha e prolongada manifestação oral do senhor Edilson Schadeck e seus parentes, reivindicando soluções próprias para suas respectivas famílias; passando pelo depoimento dramático da Senhora Maria da Glória, viúva de Gerson Wochieskovski, que fez o público rir pela narrativa de sua visita,

acompanhada pelo ex‐deputado Haroldo Ferreira, ao ex‐governador Jorge Bornhausen com um revólver calibre 38 escondido na bolsa, (que desistiu de usar na última hora) e, ao mesmo tempo, se emocionar solidariamente com suas lágrimas; pela narrativa do Pastor Fuchs, que teve prisão decretada e executada parcialmente por tentar ajudar os desapropriados; pelo singelo e abrangente depoimento do Senhor Hebrahin Gonçalves, um dos líderes mais atuantes do caso, a reunião serviu para, mais uma vez, levar ao Estado de Santa Catarina e ao Brasil a verdade que o Exército Brasileiro e o Governo Federal tentam esconder do povo. Uma clara demonstração de que, apesar da democracia vigente, quem manda e decide no país ainda continua sendo a força militar, que não se submete nem mesmo ao poder central que, em tese, estaria hierarquicamente acima do seu comando. Note‐se que a desapropriação ocorreu antes da ditadura, num governo civil, e, passados muitos anos de governo democrático, não se encontrou uma solução para o caso pela impostura radical do Exército (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 13).

Um quarto documento utilizado no desenvolvimento desta pesquisa indica

que o Comando do Campo de Instrução Marechal Hermes concedia, ao

desapropriado José da Silva Lima, vulgo Maurício, o arrendamento das terras, e que

este, em harmonia com os interesses dos militares, mediante bom pagamento, era

autorizado a circular na área desapropriada. Inclusive detinha poder para “prender”

qualquer outro indivíduo – que tentasse retirar qualquer bem daquelas terras – e

conduzi-lo à presença do Tenente Coronel Ovídio Souto da Silva, diretor do CIMH

(PROCESSO N. 501.114/87, P. 570).

Embora houvesse as denúncias e os apelos às autoridades, uma solução

pacífica estava cada vez mais distante. Alguns proprietários faleceram imbuídos na

esperança do recebimento das indenizações ou na devolução de suas terras. Esses

sentimentos de impotência e desilusão trespassaram gerações e as histórias foram

contadas e recontadas, através de depoimentos.

Dentre as situações narradas (PROCESSO N. 501.114/87, P. 14.15), uma

versava sobre a história de duas famílias que moravam às margens da estrada que

liga os municípios de Papanduva e Itaiópolis. Tratava-se de descendentes de

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poloneses que também foram expulsos da área desapropriada. Em entrevista, o

senhor Isidoro Kluska afirmou que possuía procuração para representar as duas

famílias Kluska na justiça, além de outras 100 pessoas, que permanecem à espera

da devolução das terras.

Eles possuíam cerca de 140 hectares de terras na área desapropriada e, desde o despejo realizado em 1962, trabalhavam com dificuldades em terras arrendadas. Disse que possuía 9 filhos espalhados pelo mundo sem terem um lugar onde morar, não escondendo sua revolta com esta situação. Afirmou que sua família possui estas terras lá e não pode tirar nem um cavaco de madeira e que seus pais saíram dela e deixaram para trás um rebanho de ovelhas, uma casa com arvoredo e que atualmente não tinham mais nada disto, não receberam nenhum pagamento por este rebanho desaparecido.

O outro chefe da família Kluska, senhor Pedro, afirmou em entrevista ao jornal

que possui 11 filhos e detinha 28 hectares de terras (“ainda tenho”) e relata ter

passado por muitas dificuldades depois de ter sido obrigado a abandonar suas

terras.

Estas terras são arrendadas e meus filhos e netos trabalham para sustentar a família, eu estou muito velho, mas meus filhos ainda sonham em trabalhar nas minhas terras de lá, as coisas estão meio paradas, mas mesmo assim ainda tenho esperanças (JORNAL DE SANTA CATARINA,1980).

Segundo levantamento da Sociedade de Núcleo Rural Papuã, havia centenas

de famílias em condições idênticas às da família Kluska, e o episódio da

desapropriação era transmitido de pai para filho, mediante narrativa impregnada do

viés da injustiça.

De acordo com a imprensa, a terceira geração dos desapropriados, situada

na faixa etária entre 14 e 18 anos, era a mais revoltada, e não escondia sua

antipatia pelos militares, dada a situação relacionada ao Campo de Instrução

Marechal Hermes.

Na oportunidade, o neto do senhor Pedro Kluska afirmou que:

era uma injustiça o exército ocupar suas terras férteis para apenas uma vez por ano fazer manobras, e sua família estava ali, sem terras para plantar, e afirma que faria de tudo para não servir ao exército no próximo ano, quando do seu alistamento (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1980).

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Os desapropriados, ainda hoje, percebem o conflito fundiário pelo viés da

injustiça, da privação da liberdade de escolha e pela usurpação das oportunidades

pelo Estado. Contrariamente a esse entendimento, os militares e alguns

procuradores que representam o Estado, analisam esta questão sob a ótica da

legalidade, referendada pelo Poder Judiciário. Apesar de não deterem o título de

propriedade (escrituras devidamente registradas), consideram legitimados no

apossamento.

Um Informativo militar, anexado ao processo, expõe a contrariedade dos

argumentos dos militares, a partir da seguinte justificativa:

A continuidade dos processos foi prejudicada por inúmeros percalços tais como o desinteresse e omissão de vários desapropriados ou sucessores e a falta ou insuficiência de documentos comprobatórios da propriedade. A situação é, em resumo, a seguinte: definitivamente julgados: 78; sem julgamento definitivo: 7; não localizados (processos com situação e paradeiros não conhecidos: 4: Total: 89 [...] O Exército, em nome da União e com amparo em imissão de posse concedida por autoridade judiciária competente, vem ocupando todas as áreas desapropriadas. É óbvio, todavia, que o Exército tem, por enquanto a obrigação inafastável e indiscutível de zelar, em nome da União, pela preservação do imóvel em cuja posse foi legalmente imitido. Não se cogita, é claro, de simplesmente abrir mão da área. É preciso que se entenda, de uma vez por todas que o Ministério do Exército não possui acervo patrimonial próprio e que, sendo mero usuário dos imóveis da União, tem a obrigação de preservá-los e não tem competência legal para transferir a propriedade ou a posse dos mesmos (PROCESSO N. 501.114/87, p. 579).

Essa dicotomia de entendimentos, além das privações e injustiças, ocasionou

a improdutividade de extensa área de terras, a extração e venda de árvores nativas

e demais perdas e danos que, uma vez mensurados, resultam em valores

expressivos, que poderiam ter influenciado positivamente o desenvolvimento

econômico da região.

4.3.1 Consequências Econômicas da Desapropriação

A possibilidade de mensuração das perdas e danos ocasionados pelo ato de

desapropriação, e, consequentemente, o impacto sobre o desenvolvimento

econômico da região, foi viabilizada por meio de um documento anexado ao

processo. Essa fonte foi aqui analisada, e determinou a realização de uma perícia

minuciosa, com o objetivo de apurar, em números, as perdas e danos que os

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desapropriados tiveram ao longo do período, entre 1963, ano que marcou a

desocupação da área, até 1994, ano em que foi realizada a perícia.

Sob a perspectiva de Amartya Sen (2016, p. 28) “a riqueza evidentemente

não é o bem que estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de

alguma coisa”. A mensuração das perdas e danos, durante o período em que os

proprietários foram afastados de suas terras, é algo relevante, pois, sob a ótica do

autor, é preciso considerar não apenas o impacto no crescimento econômico da

região, mas, também, o fato de que as riquezas, além de desejáveis, são meios

admiráveis para se incrementar a liberdade e conduzir o modo de vida almejado.

Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da

acumulação de riqueza, do crescimento do Produto Nacional Bruto e de outras

variáveis relacionadas à renda (SEN, 2016). No entanto, pese a importância do

crescimento econômico, que em última instância visa apenas a maximização da

renda ou da riqueza, é necessário que o processo de desenvolvimento transcenda

este fator e considere outras dimensões.

A prova pericial, solicitada pelos proprietários, para fins de mensuração das

perdas e danos, demonstra o interesse em avaliar o resultado da privação que o

Estado impôs àqueles desvalidos, tenha sido em desfrutar das riquezas naturais ou

produzir naquelas terras.

Através do enfoque de Sen (2016, p. 29): “[...] é possível compreender que a

expansão das liberdades não só torna a vida mais rica e mais desimpedida, mas

também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática

nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse

mundo [...]”.

Ao limitar o direito social ao trabalho48, garantido pela Constituição Federal, o

Estado privou aqueles desapropriados da oportunidade de se inserirem na

sociedade em que viviam, impossibilitando-os de contribuírem para o crescimento

econômico da região.

A despeito da prova pericial, foi executada pelo perito Adelmo Balsanelli,

mediante apresentação de planilhas em 10 de abril de 1995 (PROCESSO N.

501.114/87, p. 324), elaboradas a partir de um minucioso trabalho que se compunha

48

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. CF/88, artigo 6º.

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de entrevistas com herdeiros dos proprietários, visitas aos Órgãos Oficiais (EPAGRI,

EMBRAPA, APROSESC e IBDF), às imobiliárias, obtenção de informações

independentes junto a produtores rurais, consultas realizadas à cerealistas da

região, comércio de materiais de construção e de madeiras, a fim de se apurar o

montante das perdas resultantes da improdutividade daquelas terras.

Após a obtenção dos dados, o perito apresentou seu laudo pericial, em

comparativo com as avaliações realizadas na década de 1960, pelos peritos

Antonino Nicolazzi e José Stockler 49 , os quais, através de demonstrativos

individuais, pormenorizaram a área de cada proprietário, classificando-as por tipo de

atividade econômica (árvores de lei, considerando a quantidade de pinheiros,

cedros, imbuias e pinheirótes), quantidade de benfeitorias (cercas, fios, casa,

rancho, chiqueiros e demais construções), e qualidade da terra (de mato com ou

sem erval, terras para arroizeiras, terras de culturas e terras de campos com

pastagens).

As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz (CÓDIGO CIVIL, 2016, ART. 369)

Verifica-se que a intenção dos desapropriados consistia em comprovar, ao

juiz incumbido de analisar a questão, a dimensão do prejuízo econômico que a

inutilização daquelas terras havia causado, privando aqueles indivíduos,

concomitantemente, de prosperarem na sua atividade laboral e contribuírem para a

economia da região.

A título de exemplo, considerando que a região do Planalto Norte

Catarinense seguia uma trajetória de crescimento econômico nas décadas de 1960

a 1990, a Associação dos Produtos de Sementes do Estado de Santa Catarina -

APROSESC, divulgou um estudo acerca de uma das principais culturas produzidas

na região, a batata-semente:

Sobre os dados da produção e custo da batata fornecido pela APROSESC, que apresenta estudo indicando o estado de Santa Catarina é a região do planalto norte do estado como o maior produtor nacional deste insumo e o começo da cadeia produtiva da bataticultura brasileira e que movimenta

49

Os documentos comprobatórios do laudo pericial estão todos anexados (PROCESSO N. 501.114/87, P. 360-461), como Anexo 01 a 81, incluindo os laudos apresentados pelos peritos Antonino Nicolazzi e Jose Stockler, em 1963 e 1964, individualizados por autor (p. 376-393).

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112

mais de 2 bilhões de reais. E que a região de Canoinhas produz aproximadamente 1.500.000 caixas de 30 kg de batata-semente das classes básicas, registrada e certificada e ocupa atualmente uma área de 4.000 ha, sendo que o custo de produção para a implantação de 1 hectare de lavoura de batata-semente é de 4800 reais, com uma produtividade média de 400 caixas por ha, o que significa um custo médio de produção de 12,00 reais por caixa. A região do Planalto Norte vende anualmente a batata-semente para 10 estados brasileiros produtores de batata para consumo e gera o valor de 37,5 milhões de reais, envolve aproximadamente 2.500 pessoas que são empregadas durante o plantio, colheita e beneficiamento do produto (PROCESSO N. 501.114/87, 2014, p. 402).

O Estado de Santa Catarina é um tradicional produtor de batata-semente no

Brasil, em decorrência das ótimas condições climáticas observadas no planalto

Catarinense. Em algumas regiões, é possível o cultivo em duas safras por ano. Por

esta razão, a região constitui-se numa região climática altamente favorável à

produção de batata-semente de ótima qualidade fitossanitária. A maior parcela da

produção catarinense é comercializada em outros estados, contudo, a produção está

concentrada nas regiões do Planalto Norte (Canoinhas, Papanduva, Mafra, Major

Vieira, etc.). (ABBA, 2001, Ano 1, Numero 03)50

Desde o final da década de 1960, com a chegada de produtores de origem

japonesa, ligados à antiga Cooperativa Agrícola de Cotia, a região se destacou na

produção de batata semente, devido às condições favoráveis, tal qual a presença de

áreas cobertas por matas nativas, que após desmatadas para plantio de batata,

proporcionavam terras livres de doenças. Nas décadas de 1970 até 1980, esta

região obteve hegemonia nacional na produção de batata semente. Entretanto, a

partir da década de 1990, começou a perder este posto, seja pela mudança do

112e112s de produção para o centro-oeste, em lavouras com irrigação, seja pelo

processo de verticalização promovido pelos produtores de batata para consumo, que

também ingressaram no segmento de batatas para sementes (ABBA, 2001, Ano 1,

Numero 03).

Nesse contexto, os desapropriados do CIMH foram impossibilitados de

contribuir com a sua produção justamente na época em que a região do Planalto

Norte Catarinense tornou-se o principal centro produtor de batatas sementes no

Brasil.

50

Albanêz Souza de Sá - ABBA - Vice-Presidente Batata-semente. Disponível em (http://www.abbabatatabrasileira.com.br/revista03_019.htm)

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113

Se o ponto de partida da abordagem é identificar a liberdade como principal objetivo do desenvolvimento, o alcance da análise de políticas depende de estabelecer os encandeamentos empíricos que tornam coerente e convincente o ponto de vista da liberdade como perspectiva norteadora do processo de desenvolvimento. (SEN, 2016, p. 10).

A destinação de extensa área de terras para a finalidade de instrução e

manobras militares retirou daqueles desapossados a possibilidade de agregar, à

economia da região a produção resultante de sua atividade laboral. A maioria

daqueles desvalidos dependia exclusivamente da atividade agropastorial, sua única

fonte de trabalho e renda.

É plausível afirmar que na década de 1950 preponderou uma política

segregatória adotada pelo Estado, levada a efeito através da promulgação do

Decreto de Desapropriação. Esse cenário diverge da perspectiva adotada por Sen

(2016), ao considerar que há fortes indícios de que as liberdades econômicas e

políticas se reforçam mutuamente, em vez de serem antagônicas.

Após a descrição do impacto social que a instalação do CIMH ocasionou no

território sob análise, faz-se necessário apresentar a mensuração deste impacto

econômico. A partir de dados coletados do Processo n. 501.114/87, disponíveis nos

anexos 01-81, apresentados nas figuras verifica-se que o laudo pericial pormenoriza,

através de tabelas, as perdas e danos de cada agricultor, considerando parâmetros

variáveis como a área, as benfeitorias, as árvores nativas e a produção de diversas

culturas.

A partir da análise dos valores evidenciados é possível tabular os dados e

apresentá-los sucintamente no quadro a seguir:

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114

Quadro 1: Perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de 1994

Proprietário(s) Perdas e Danos apurados até 1994 – Valores expressos em R$

Benfeitorias Madeiras Produção Terras Total

Sofia Boiko 5.450,00 - 204.389,00 27.142,00 236.981,00

Maria Rita Simas - 10.647,00 393.345,00 89.056,00 493.048,00

Miguel Pietrowski 150.650,00 - 279.652,00 32.137,00 462.439,00

Fermino e Pedro Pacheco

dos Santos Lima 46.350,00 268.951,00 6.754.704,00 2.516.800,00 9.586.805,00

Honorato Branco Pacheco 28.400,00 353.248,00 4.404.888,00 809.856,00 5.596.392,00

Aristides Guebert 15.125,00 329.613,00 3.908.145,00 595.328,00 4.848.211,00

José da Silva Lima 40.020,00 61.658,00 4.575.096,00 778.442,00 5.455.216,00

Silvestre Boiko 9.360,00 - 336.670,00 54.286,00 400.316,00

Candido Branco Pacheco 5.950,00 16.472,00 935.323,00 117.860,00 1.075.605,00

João Francisco Domingues 1.000,00 - 505.295,00 58.080,00 564.375,00

Ana Volochate Boiko 11.425,00 9.184,00 1.091.465,00 131.338,00 1.243.412,00

Jacob Schadeck 53.810,00 282.214,00 4.863.613,00 906.048,00 6.105.685,00

João Gonçalves de Lima 4.050,00 105.920,00 1.170.198,00 230.192,00 1.510.360,00

Walfrido da Silva Lima - 321,00 172.788,00 27.104,00 200.213,00

TOTAL 371.590,00 1.438.228,00 29.595.571,00 6.373.669,00 37.779.058,00

Fonte: Autora (2017)

É preciso salientar que os valores apresentados no Quadro 1 referem-se

exclusivamente ao período compreendido entre a emissão de posse por parte da

União até o ano de 1994. Objetivando apurar o montante atualizado, desde a data

de elaboração do laudo pericial, no ano de 1994 até os dias atuais, torna-se

necessário aplicar índices acumulados de correção monetária, especificamente o

Índice Nacional de Preços ao Consumidor - INPC e, além disso, computar juros

remuneratórios à taxa de 1,0% ao mês 51 . Em decorrência desta atualização,

evidenciada no Quadro 2, obtêm-se valores extremamente significativos, mormente

quando se considera o impacto que sua inserção teria ocasionado na economia da

região.

51

Disponível em http: www.drcalc.net/juridico.asp em 16.02.2017

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Quadro 2: Atualização de perdas e danos apurados em laudo pericial elaborado no ano de 1994

Proprietário(s) Atualização das Perdas e Danos (2017) – Valores expressos em R$

Benfeitorias Madeiras Produção Terras Total

Sofia Boiko 88.252,12 - 3.309.681,25 439.511,76 3.837.445,13

Maria Rita Simas - 172.407,40 6.369.455,13 1.442.088,23 7.983.950,76

Miguel Pietrowski 2.439.482,94 - 4.528.418,74 520.396,04 7.488.297,72

Fermino e Pedro

Pacheco dos Santos

Lima

750.547,85 4.355.136,91 109.379.257,70 40.754.667,53 155.239.610,00

Honorato Branco

Pacheco 459.882,61 5.720.162,43 71.328.570,40 13.114.038,47 90.622.653,91

Aristides Guebert 244.919,88 5.337.439,70 63.284.786,29 9.640.175,90 78.507.321,77

José da Silva Lima 648.045,85 998.431,06 74.084.757,01 12.605.350,01 88.336.583,93

Silvestre Boiko 151.566,95 - 5.451.714,06 879.055,90 6.482.336,90

Candido Branco

Pacheco 96.348,65 266.731,91 15.145.731,84 1.908.512,84 17.417.325,24

João Francisco

Domingues 16.193,05 - 8.182.267,06 940.492,33 9.138.952,44

Ana Volochate Boiko 185.005,59 148.716,97 17.674.147,02 2.126.762,77 20.134.632,35

Jacob Schadeck 871.348,01 4.569.905,33 78.756.727,13 14.671.680,31 98.869.660,78

João Gonçalves de

Lima 65.581,85 1.715.167,83 18.949.074,40 3.727.510,50 24.457.334,58

Walfrido da Silva Lima - 5.197,97 2.797.964,67 438.896,42 3.242.059,06

TOTAL 6.017.175,35 23.289.297,51 479.242.552,70 103.209.139,01 611.758.164,57

Fonte: Autora (2017)

Acerca da improdutividade daquelas terras, entrevista concedida pelo prefeito

de Papanduva, Humberto Ribas, relata sua preocupação com os impactos

econômicos da desapropriação:

O município está sendo prejudicado, pois se trata de uma área que deixa de ser produtiva; é uma região que poderia estar produzindo recursos, gerando empregos, então espero que, mais cedo ou mais tarde, se sensibilize os dirigentes do exército, que são setores que têm que acatar as decisões judiciais (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 05).

No mesmo periódico, há uma declaração do então Deputado Federal, Claudio

Vignatti, sobre as consequências econômicas do longo período em que os

desapropriados estiveram afastados de suas terras:

Vamos imaginar que tenha 400 famílias assentadas aqui. Quanto de dinheiro mais iria circular no município de Papanduva e seus vizinhos, com todas essas pessoas comprando e gastando aqui? Então você imagina o

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116

quanto a sociedade de Papanduva ganharia com 400 famílias morando aqui. É esse cálculo que temos que fazer porque é essa a função social da terra (CORREIO DO CONTESTADO, 2014, Ed. 3756, p. 06).

As manifestações de algumas autoridades favoráveis à causa dos

desapropriados e, principalmente, daquelas autoridades que legitimavam as

reivindicações sobre perdas e danos, evidenciavam a preocupação coletiva acerca

dos impactos econômicos decorrentes das desapropriações.

Para Amartya Sen, em suas discussões recentes, ao se avaliar o mecanismo

de mercado, o enfoque tende a recair sobre os resultados da produção, como, por

exemplo, a geração de rendas ou utilidades. Essa questão é relevante, contudo, há

outros aspectos que devem ser considerados.

O montante atualizado de R$ 611.758.164,57, consiste nas indenizações que

14 proprietários desapossados impetraram ao Poder Judiciário. Apesar da

relevância, esta cifra corresponde às indenizações requeridas apenas por uma

parcela dos desapropriados, os quais ingressaram com novas demandas junto ao

Poder Judiciário.

Retomando a abordagem de Amartya Sen, acerca do mercado privilegiar os

resultados da produção, advém a necessidade de suplementá-los com a criação de

oportunidades sociais básicas para a obtenção de equidade e justiça social (SEN,

2016, p. 190).

Embora ressalvada a necessidade de deduzir, do montante atualizado de R$

611.758.164,57, as verbas indenizatórias decorrentes da terra e das benfeitorias, o

saldo remanescente, correspondente ao somatório, no Quadro 2, dos valores

consignados nas colunas madeira e produção, totalizando R$ 502.531.850,21.

Evidencia-se o montante que presumivelmente deixou de circular na economia da

região, influenciando a classificação, do Planalto Norte Catarinense, dentre as

regiões do Estado que apresentam os menores índices de desenvolvimento.

Segundo os professores Walter Marcos Knaesel Birkner e Luciane Tischler Rudnick,

no artigo “Algumas reflexões sobre o desenvolvimento socioeconômico do planalto

norte catarinense”, o baixo índice de desenvolvimento pode ser assim explicado:

Os municípios que compreendem a região de Canoinhas (Bela Vista do Toldo, Irineópolis, Major Vieira, Porto União e Três Barras) apresentam indicadores socioeconômicos inferiores a outras regiões catarinenses. O modelo de desenvolvimento econômico baseado no extrativismo da erva-mate e da madeira resultou, nas últimas décadas, na estagnação

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117

econômica da região. Outro fator que interfere na mudança dessa realidade é a falta de participação política e de organização da sociedade local, o que favorece as relações políticas clientelistas e a consequente falta de um projeto de desenvolvimento regional que realmente envolva toda a sociedade.

No contexto dos países em desenvolvimento, adquire importância crucial as

iniciativas do poder público visando à criação de oportunidades sociais. As

recompensas do desenvolvimento humano transpõem a simples melhoria na

qualidade de vida, e influenciam as habilidades produtivas das pessoas. Portanto, o

crescimento econômico, nesta conjuntura, depende de uma base amplamente

compartilhada (SEN, 2016, p.191).

Em consequência de uma política de privações, adotada pelo Estado naquela

região, os montantes apurados de perdas e danos, particularmente aqueles oriundos

da produção, certamente impactaram no crescimento econômico da região do

Planalto Norte Catarinense. Contudo, o maior impacto gerado por esta política

segregatória, sob a perspectiva do conceito de desenvolvimento de Amartya Sen,

consiste na limitação das liberdades reais destes agricultores, que passaram de

promissores produtores e agentes econômicos, à condição de famílias socialmente

excluídas.

O Jornal JMais, na edição digital publicada em 15 de dezembro de 2016,

divulgou uma análise comparativa entre as cidades do Planalto Norte Catarinense:

Na região, os dois maiores municípios – Canoinhas e Mafra – seguiram em carreira ascendente com crescimento, mas com uma variação significativa entre eles. Mafra cresceu 11% em relação a 2013, enquanto Canoinhas não passou do 0,8%. O maior crescimento registrado na região está em Três Barras (28%), que teve sua indústria impulsionada pelas expansões da MWV Rigesa (hoje WestRock) e da Mili SA. A maior queda foi sentida por Papanduva, que viu o PIB encolher 45% em 2014 se comparado a 2013. O secretário de Administração da cidade, Fábio José Padilha, disse não saber o motivo da queda considerando que não houve fechamento de indústria significativo em 2013.

A divulgação pela impressa de que a cidade de Papanduva apresentou a

maior queda do PIB, pode ser justificada em função da extensa área de terras

improdutivas, desapropriadas neste município para a instalação do CIMH. Se, ao

contrário, tivessem sido oportunizadas à atividade agropastoril, desenvolvidas pelos

desapossados, certamente teriam contribuído para elevar o percentual deste

indicador econômico.

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O depoimento de um canoinhense, Sr. Wilson Wiese, publicado em sua

coluna virtual no dia 09 de abril de 201252, relata o impacto da desapropriação,

através do viés da impossibilidade de expansão urbana da cidade de Três

Barras/SC:

Agindo desta forma, o exército está atravancando o progresso e desenvolvimento urbano da cidade. O Exército no caso do Campo de Instrução, não finalizou o processo de desapropriação, apropriou-se da área, usa e abusa do desvio de finalidade, loca parte do imóvel e não permite que um município possa desenvolver sua área urbana, além de usurpar dos herdeiros o direito de recuperar sua posse e domínio. A prefeitura municipal de Três Barras buscou a aquisição da sede do C.I.M.H., na área urbana, com aproximadamente quatro alqueires (9,68 ha.), mas sempre encontrou resistências de toda ordem. Esta área permitiria o alargamento da cidade, onde poderiam ser feitos loteamentos e obras públicas, fato que hoje é impossibilitado. Questionado por telefone, o prefeito municipal Dr. Elói José Quege, diz que “vê com tristeza e inconformismo a atitude da corporação militar onde prestou serviços por oito anos”. Segundo ele, “preferem plantar soja e milho a oportunizar o crescimento da cidade.” Na entrada da área militar há uma placa que diz: “CIMH – Nestas terras um dia contestadas o seu Exército adestra-se para defendê-las”.

As palavras destacadas na placa afixada em frente à sede do CIMH, em certo

sentido, retratam a disposição do exército em privar e se defender de qualquer

reivindicação dos desapropriados. Sob esta perspectiva de limitação e expulsão das

terras, os desapossados parecem se imbuir das características peculiares e

marcantes, oriundas da herança dos caboclos, impondo resistência e oposição e

mantendo viva a luta pelo direito às suas terras.

4.3.2 A Luta Continua

A ocupação do Campo de Instrução pelas famílias de desapropriados, que

contou com o apoio de movimentos sociais, autoridades políticas e da imprensa,

ocorrida em 1980, representou a materialização da insatisfação daquelas pessoas.

Tal insatisfação evidenciou-se novamente nas audiências públicas, realizadas a

partir do ano 2000, com a presença de desapropriados e descendentes. Todavia,

essas manifestações não lograram o efeito desejado, ou seja, não foram suficientes

52

Disponível em http://megabuzz.com.br/denuncia_exercito_planta_soja_em_area_de_manobras_militares/, acesso em 17.02.2017

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119

para convencer o Estado de que aquele ato desapropriatório, estabelecido em 1956,

privara aquelas pessoas de suas liberdades substanciais e instrumentais.

A atuação do exército, durante este longo período de disputas, seja no regime

militar ou democrático, demonstrou aos catarinenses e brasileiros a opressão que há

tempo o Estado impunha à região, através da violação de direitos fundamentais,

como a dignidade humana, o direito à propriedade, à moradia e, principalmente, a

privação de oportunidades.

Dos proprietários atingidos foram tolhidas as mais diversas formas de

liberdade. No entanto, a conduta do Estado não obliterou a esperança destes

desvalidos, cujas histórias vivenciadas são transmitidas de geração em geração,

reavivando injustiças e reafirmando a disposição da luta pela terra na região do

Planalto Norte Catarinense:

Hoje, 18 de dezembro, completam-se 30 anos da assinatura do Decreto de Desapropriação de nossas terras [...]. Hoje, 18 de dezembro faz um ano que estivemos em audiência com o Presidente José Sarney, reivindicando a devolução de nossas terras. Sem qualquer notícia final de solução e sem qualquer motivo para comemorar chegamos a mais um final de ano, debaixo de uma barraca, lutando por justiça e pela devolução das terras que legalmente nos pertencem. Durante estes 30 anos, lutamos, falamos, reivindicamos e não fomos ouvidos. Muitas vezes fomos chutados, presos e torturados nos quartéis, nos palácios, fomos ironizados, enganados e mandados embora [...]. Nos Tribunais fomos interrogados e humilhados... Nos últimos tempos nossa luta ficou conhecida no mundo inteiro. A solidariedade nacional e internacional é grande [...]. Somos desapropriados e não indenizados. Temos as escrituras e não podemos sequer passar por dentro de nossas terras [...]. Não queremos nada de graça. Queremos o que é nosso! [...]. Nestes 30 anos não houve autoridade civil ou militar, estadual ou nacional que não fosse procurada por nós [...]. Hoje estamos cansados, mudos, silenciosos e nossa tristeza e dor já está sendo passada em nosso sangue, geração em geração. A luta, a esperança e a resistência também [...]. Os avós lutaram hoje, os netos lutam amanhã e os bisnetos lutarão. Este conflito só terá um fim com a instauração da justiça!. (Carta redigida pela Comissão dos Desapropriados do Acampamento São João Maria) (PROCESSO N. 501.114/87, p. 560)

Ao contrário do que cogita o comando do exército brasileiro, os

desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes, em sua causa, não

buscam clemência, migalhas ou qualquer complacência. Entendem que a luta ao

longo dos anos é legítima, fundamentada na legislação e no cumprimento da

Constituição Brasileira, e que sempre estiveram predispostos a uma solução

negociável, inclusive submetendo várias propostas para apreciação.

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120

Na percepção de Adam Smith, citado por Sen (2016), acerca dos méritos da

troca econômica, discutida na obra A riqueza das Nações, delineia que:

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter nosso jantar, e sim da atenção que dá cada qual ao próprio interesse. Apelamos não para sua humanidade, mas para o seu amor-próprio [...] (SEN, 2016, p. 326)

Dada a propensão ao autoritarismo e ao descaso, nada foi feito. Os

desapossados, na visão do Estado, permanecem na condição de excluídos sociais,

concebidos como agentes problemáticos, em busca de causa sem propósito.

Entretanto, a história não permite ocultar a verdade. Os depoimentos,

manifestações e escritos, propagados de geração em geração, dão conta que a luta

destes desapossados é justa, legítima e imprescindível.

Com o propósito de enriquecer a abordagem sobre desenvolvimento,

proposta por Amartya Sen, a situação analisada nesta pesquisa pode ser reforçada

pela leitura “smithiana” que o autor faz :

Precisamos começar observando que Smith era profundamente cético quanto aos princípios dos ricos – nenhum ator (nem mesmo Karl Marx) criticou com tanta veemência as motivações dos economicamente privilegiados contra os interesses dos pobres. Muitos proprietários ricos – afirmou Adam Smith em Teoria dos sentimentos morais, publicada em 1759 – empenham-se, “com seus egoísmo e rapacidade naturais”, apenas por “seus desejos vãos e insaciáveis” (SEN,2016, P.325).

Não obstante, em muitas circunstâncias, outros podem se beneficiar dos atos

daqueles proprietários, pois as ações de diferentes pessoas podem ser

produtivamente complementares (SEN, 2016, p. 326). Através desta concepção,

ainda que argumentos de utilidade pública e segurança nacional justificassem a

desapropriação de terras – durante as décadas de 1950 e 1960 – suplantando o

direito à propriedade, tais argumentos, nas décadas subsequentes, não se

sustentam. O incremento na produção agropecuária e o avanço no desenvolvimento

humano, que poderia ter sido proporcionado pela área desapropriada,

indubitavelmente prepondera sobre o interesse do exército em treinar militares para

a guerra.

Esta pesquisa não tem a pretensão de encontrar possíveis soluções para a

situação de injustiça vivenciada pelos desapropriados do Campo de Instrução

Marechal Hermes, tampouco criticar a atuação negligente do advogado que impediu

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121

o conhecimento do mérito final da questão pelo Superior Tribunal de Justiça, mas

dar clareza do que aconteceu nesta região. Pretende-se, tão somente, reconhecer

que a sociedade, as autoridades, e os governos local, regional e nacional, possuem

dificuldade de compreender o exercício das liberdades substantivas e instrumentais

indicadas por Amartya Sen, que integram o dinâmico processo de desenvolvimento

de uma região, mas que por imposição do capital e da relação de poder dos

dominadores continuam imperando sobre os aportes legais.

O ideal de liberdade, proposto por Amartya Sen, vai de encontro à atuação

limitadora do Estado na região, e, transcorrido mais de um século desde a

deflagração da Guerra do Contestado, decorridos mais de sessenta anos desde o

advento do decreto desapropriatório, a instalação e manutenção do Campo de

Instrução Marechal Hermes, em detrimento do direito à terra, reivindicado de modo

legítimo por dezenas de famílias, representa um autêntico paradoxo em tal

sociedade.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente dissertação abordou a luta pela terra na região do Planalto Norte

Catarinense, enfatizando a resistência contra os abusos do capital estrangeiro no

Pós-Contestado. Seu objetivo principal consistiu em identificar as desapropriações

fundiárias para fins de composição do Campo de Instrução Marechal Hermes, em

Três Barras/SC, examinando os impactos para o desenvolvimento regional.

Diante deste contexto, após a análise dos aspectos históricos e jurídicos

decorrentes da estatização das empresas estrangeiras Brazil Railway Company e

sua subsidiária, a Lumber Company, procedeu-se ao exame da legalidade dos atos

licitatórios e verificou-se as condições desumanas a que foram submetidos os

desapropriados, durante a execução do ato de imissão de posse.

Em sintonia com o pensamento de Amartya Sen, que se propõe a definir

desenvolvimento a partir da supressão das privações de liberdades das pessoas,

eliminando restrições às escolhas e oportunidades e viabilizando a condição de

agentes inseridos em determinado território, a pesquisa pôde demonstrar que no

recorte territorial atingido pelo decreto expropriatório, ocorreram privações na

liberdade de escolhas e restrições à participação dos pequenos posseiros e

proprietários nas decisões políticas.

Anteriormente ao processo de desapropriação, aquelas pessoas estavam

inseridas na sociedade e contribuíam para a geração de emprego e renda.

Entretanto, a participação autoritária do Estado impossibilitou o exercício das

liberdades reais e substantivas daqueles desvalidos, que assumiram,

repentinamente, a condição de excluídos, imersos em um panorama social e

econômico modificado significativamente pelo ato desapropriatório.

Considera-se, por seu turno, que sob a justificativa velada de incrementar os

índices de crescimento econômico e interiorizar o progresso, o Estado autorizou a

instalação do capital estrangeiro na região. Em retrospecto, tal fato não se coaduna

com as concepções do economista indiano Amartya Sen, que afirma ser necessário

considerar diferentes argumentos em prol do processo de desenvolvimento, por

duas razões: (i) para avaliar o progresso, é preciso verificar, primordialmente, se

houve aumento das liberdades das pessoas; (ii) o alcance do desenvolvimento

depende, fundamentalmente, da livre atuação das pessoas, na condição de agentes.

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Acerca das questões fundiárias no período Pós Contestado, os registros

históricos – concernentes aos atores que testemunharam os eventos – revelam que

a atuação do Estado conduziu aos mesmos abusos praticados na época da Guerra

do Contestado, outrora restringindo o direito à propriedade para construção de uma

estrada de ferro, as expensas da população local, permitindo que o capital

estrangeiro usurpasse as terras e exaurisse os recursos naturais.

Em que pese a similaridade dos conflitos – no período da Guerra do

Contestado, oriundo da restrição ao direito de propriedade a terra em favor do

capital estrangeiro e, no período Pós-Contestado, proveniente do ato de

desapropriação de terras em benefício da instalação de um campo de instrução

militar, – o transcurso de um século não foi suficiente para que o Estado suprimisse

políticas fundiárias dotadas de autoritarismo, consentindo para a continuidade do

processo de usurpação dos bens materiais e imateriais dos pequenos proprietários

de terras.

A admissibilidade desses pressupostos permite demonstrar que as

desapropriações de terras, realizadas na década de 1950, apresentam indícios de

ilegalidades e foram dotadas de uma celeridade inusitada ao Poder Judiciário. A

primeira evidência de ilicitude recai sobre a escolha da área a ser desapropriada,

que contou com a participação direta do Governador do Estado de Santa Catarina e

do licitante vencedor dos bens encampados da Lumber Company, o empresário

Alberto Dalcanalle.

A pesquisa bibliográfica demonstrou que o processo licitatório esteve envolto

em irregularidades, com bens arrematados por preços inferiores à avaliação de

mercado, por um consórcio de empresas administrado por Dalcanalle. Tendo em

vista o interesse do Ministério da Guerra em instalar, na região, um campo de

instrução e manobras militares, o empresário, que passara a ter laços de parentesco

com o governador – a partir do matrimônio contraído por seus filhos – apresentou a

proposta de ceder o patrimônio da Lumber Company, adquirido na licitação,

desvinculando-se dos passivos trabalhistas e da administração da empresa, apesar

de ainda manter, dentre o acervo de bens licitados da Lumber, extensa área de

terras na região de Santa Cecilia, bem como inúmeros pinheiros e madeiras de lei,

ou seja, bens destituídos de quaisquer contingências passivas.

Ainda por conta de um parecer da Procuradoria da República, esta pesquisa

comprovou que já havia, por parte do Governador Catarinense, a promessa de

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desapropriar áreas contíguas àquelas adquiridas pelo Ministério da Guerra, para

suprir a demanda por uma área maior, destinada a manobras do exército.

Diante deste posicionamento do governador e da proximidade de interesses

com o empresário Dalcanalle, evidencia-se que o decreto desapropriatório – das

áreas destinadas ao Campo de Instrução Marechal Hermes – não foi fundamentado

no interesse coletivo e no bem estar social, mas no cumprimento de uma promessa

do Governador Catarinense, em decorrência da cessão do acervo passivo da

empresa Lumber ao Ministério da Guerra.

ROCHA (1992) reconhece que a propriedade é um direito inviolável e

sagrado, ninguém pode ser privado de seus bens, exceto quando a necessidade

pública, legalmente estabelecida, assim exigi-lo, embora através de uma

compensação justa e prévia.

A partir da hipótese de que a positivação do direito em relação ao instituto da

desapropriação deve ser atendida em todos os seus requisitos, e ainda, que os

interesses coletivos devem se coadunar com a utilidade pública da área, em

detrimento do individualismo, a violação da legislação, por parte do Estado,

compromete os direitos basilares e fundamentais dos indivíduos, diante da

prevalência de interesses particulares.

Sob este enfoque vislumbra-se, em conformidade com as ideias de Amartya

Sen, um retrocesso no desenvolvimento, pois o processo de desapropriação

resultou na privação de liberdade, que se caracteriza pela pobreza e a tirania, a

carência de oportunidades econômicas e a destituição social, bem como a

negligência dos serviços públicos e a intolerância ou a interferência excessiva de

Estados repressivos, restringindo a participação dos indivíduos nas decisões

políticas e sociais.

Não obstante o cumprimento de uma determinação judicial derivada da Lei

das Desapropriações, o governo não conduziu, de forma digna, o afastamento das

famílias de suas propriedades. Tratou aqueles desapropriados como preteridos e

despejou a maioria deles, ao relento, em condição de miserabilidade e sem qualquer

possibilidade de prosseguir com sua atividade agropastoril.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5, inciso XXIV, dispõe que a lei

estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade

pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.

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Entretanto, a análise, através de um viés jurídico dos documentos que

compuseram a Ação Ordinária de Reavaliação, cumulada com indenização por

perdas e danos, proposta pelos desapropriados, bem como os inúmeros pareceres

da Procuradoria da República, do Ministério do Exército, cartas, documentos oficiais

e demais manifestações constantes nas 600 páginas do Processo n. 501.114/87,

indicam que os valores arbitrados nos processos originários eram defasados e não

atendiam aos preceitos constitucionais.

Todavia, uma vez posicionada juridicamente e revestida de imparcialidade, a

pesquisa demonstra que não basta apenas ter direitos violados, é necessário

obedecer às regras processuais que ditam o correto procedimento na busca da

prestação jurisdicional.

Ainda que julgado improcedente em instâncias inferiores, antes do julgamento

final e derradeiro do processo, movido pelos desapropriados, era possível recorrer a

uma Corte Superior e eventualmente reverter as decisões desaforáveis. No entanto,

o recurso impetrado pela defesa dos proprietários não teve o seu mérito analisado

pelo Superior Tribunal de Justiça, por falta de preenchimento de requisito essencial

ao recebimento.

Portanto, no desfecho do processo, não se manifestou o entendimento da

Corte Superior sobre a matéria em discussão, por razão de não ter tido, sequer, um

julgamento de mérito, devido ao não cumprimento de regras processuais pela

defesa dos proprietários, permanecendo, então, a decisão das cortes inferiores, de

improcedência ao pedido de indenização.

Através da metodologia utilizada na pesquisa, foi possível compreender que o

direito foi aplicado, mas tal fato não significa que os interesses em conflito foram

solucionados de modo equilibrado. A luta e a resistência dos pequenos posseiros e

proprietários transcende o passar do tempo e a injustiça se perpetua justamente na

morosidade pelo cumprimento da lei.

Enquanto existir prevalência de interesses escusos, desmandos de

oligarquias e omissões de governos descompromissados com os menos

favorecidos, o desenvolvimento da região permanecerá limitado, pois impossibilita a

potencialização da capacidade constitutiva da liberdade daqueles que lutaram e

lutam pela terra, restringindo o alcance de uma maior participação na dinâmica do

desenvolvimento, influenciando a desintegração destes desvalidos no seio da sua

comunidade.

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A região do Planalto Catarinense, nas décadas de 1960 a 1990, encontrava-

se em ascensão econômica, devido ao cultivo de batatas-semente, segundo a

APROSEC. No entanto, a desapropriação das terras, em prol do Ministério da

Guerra, expurgou um contingente de pessoas da atividade agrícola, contribuindo

para o decréscimo e estagnação dos índices de crescimento econômico da região.

Os documentos oficiais, disponíveis para a execução desta pesquisa,

permitiram dimensionar os expressivos valores que deixaram de circular na

economia local, em consequência do decreto desapropriatório e da falta de

pagamento das justas indenizações.

Nesse contexto, a questão norteadora do estudo foi corroborada pelo fato de

que o não pagamento das indenizações, ou, a realização de depósitos irrisórios,

acrescidos do lapso temporal de mais de 60 anos, durante o qual os proprietários

mantiveram a expectativa em receber, do Estado, a justa indenização pelas perdas e

danos suscitada no período, impactaram no desenvolvimento regional daquele

território, uma vez que a perda econômica de uma parcela dos desapropriados pôde

ser dimensionada através de perícia.

Por outro lado, sob a perspectiva de Amartya Sen, que considera outros

fatores além do crescimento econômico, é plausível afirmar que a perda da

identidade e assunção da condição de excluídos daqueles desapropriados, perante

a sociedade em que estavam inseridos, são imensuráveis. O fato de que as

riquezas, além de desejáveis, são meios admiráveis para ter mais liberdade para

conduzir o tipo de vida que almejavam e valorizaram, se coaduna com as

concepções daquele autor, que considera: “riqueza evidentemente não é o bem que

estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de alguma coisa”.

Contudo, ainda é possível mudar esta realidade. Se a aplicação do direito não

fez justiça aos desapropriados do Campo de Instrução Marechal Hermes,

intensificando o sentimento de impotência destes “sem terras”, em contrapartida,

através da cooperação e da integração das instituições, viabilizar-se-ia a inserção

destes desvalidos ao lugar que merecem.

Enquanto a sociedade “fechar os olhos” para a questão fundiária e para a

desigualdade social no Brasil, não se cumprirá a função social da propriedade. E

num país, cuja extensa territorialidade permite a distribuição igualitária de terras, os

pequenos agricultores devem ser elevados à condição de agentes econômicos.

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Dentre as alternativas para solucionar definitivamente esta questão fundiária,

a pesquisa conclui que a devolução das terras, pelo Ministério do Exército aos

herdeiros e sucessores dos desapropriados, no campo de um consenso

administrativo, é o caminho mais apropriado e justo para o alcance do

desenvolvimento e liberdade no plano regional. Para levar a efeito esta estratégia,

basta ao governo desarmar seu espírito, dialogar e se dispor a entender que a

região não precisa de manobras de guerra, apenas terras para serem cultivadas.

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