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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Letras Maria Lilia Simões de Oliveira Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas adaptações Rio de Janeiro 2007

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Letras

Maria Lilia Simões de Oliveira

Nas dobras da memória: a linguagem

dos clássicos e de suas adaptações

Rio de Janeiro

2007

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Maria Lilia Simões de Oliveira

Nas dobras da memória: a linguagem

dos clássicos e de suas adaptações

Tese apresentada como requisito a obtenção do título de

Doutor ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de

Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Área de concentração: Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Teresa G. Pereira

Rio de Janeiro 2007

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B

O48 Oliveira, Maria Lilia Simões de. Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas

adaptações / Maria Lilia Simões de Oliveira. – 2007. 169 f.: il. Orientador : Maria Teresa Gonçalves Pereira. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Instituto de Letras. 1. Linguagem – Teses. 2. Literatura - Adaptações – Teses. 3. Dom

Quixote - Adaptações – Teses. 4. Literatura infanto-juvenil – Adaptações – Teses. I. Pereira, Maria Teresa Gonçalves. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.

CDU 800

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Maria Lilia Simões de Oliveira

Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas adaptações

Tese apresentada como requisito a obtenção do título de

Doutor ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de

Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Área de concentração: Língua Portuguesa.

Aprovada em___________________________________________________________ Banca Examinadora:

Professora Doutora Maria Teresa Gonçalves Pereira – UERJ

(Orientadora) Professora Doutora Eliana Yunes – PUC-Rio Professora Doutora Elizabeth Vasconcelos – UFRJ Professor Doutor José Carlos de Azeredo – UERJ Professora Doutora Maria Cristina Lírio Gurgel – UERJ Professora Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ Professor Doutor Cláudio Cezar Henriques – UERJ

Rio de Janeiro

2007

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DEDICATÓRIA

A Cristiane e Daniel, razão que me faz continuar, sempre

A toda minha família, por entender minha ausência

Aos que se foram, tão presentes nos momentos de solidão da escrita

À Fernanda Namora, por suas lições sobre música, sobre leitura e, principalmente, sobre a arte de viver

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me presentear com amigos tão generosos, com professores competentes e dedicados, com alunos curiosos e desafiadores

À professora Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira, minha orientadora, por sua cumplicidade nesta jornada, pela leitura atenta ao trabalho e por me fazer acreditar no impossível

Ao professor José Carlos Azeredo, por me presentear com sugestões, por apontar rumos e, principalmente, por partilhar saber e amizade

Aos meus professores, Eliana Yunes, Elizabeth Vasconcelos, Luci Ruas, Maria Cristina Lírio Gurgel, Cláudio Cezar Henriques, pela leitura crítica da tese, pelo tanto que me ensinaram

A toda equipe da Pós–Graduação em Letras da UERJ

Ao Instituto Cervantes, em especial, ao bibliotecário Carlos, pela ajuda na pesquisa bibliográfica; aos funcionários da Biblioteca Nacional; aos funcionários da biblioteca da PUC-Rio

A Denise Salim, por me presentear com livros, pela ajuda na pesquisa e pelo afeto de irmã.

A Marília Clara Nogueira, pela leitura minuciosa do trabalho, pelas palavras amigas, sempre confortadoras

A Maria de Fátima Marques, pela amizade, pela paciência de ouvir e pelo estímulo diário

A Lúcia Ramineli, pelo carinho, pelo riso amigo, pelo apoio nas questões de informática e pela confecção dos slides para a apresentação A Solange Garrido, pelo abstract

A Maria do Carmo Cardoso, pelo resumen

A Lúcia Helena, a Celina Rondon, a Marina, a Bartolomeu, pela contribuição bibliográfica

Aos alunos de ontem e amigos de hoje, Maurício, Cléssio, Verônica, Hélio, Zu, Fernanda Freitas, por tudo que vocês fizeram e representam

Minha gratidão, sempre

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HOMENAGEM

À profa. Dra. Glória Pondé (In memoriam) ,

minha orientadora no Curso de Especialização,

pela suavidade, pelo conforto, das palavras

ditas em momentos de angústia

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Muitas vezes peguei na pena para escrevê-la,

e muitas a tornei a largar por não saber o que escreveria

(Dom Quixote, I,Prólogo)

A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos,

que aos homens deram os céus:

não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra,

nem os que o mar encobre; pela liberdade,

da mesma forma que pela honra,

se deve arriscar a vida,

e, pelo contrário,

o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens.

(Dom Quixote, II, LVIII)

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RESUMO

OLIVEIRA, Maria Lilia Simões de. Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas

adaptações. 169 f., il. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Estuda-se na tese a linguagem das adaptações de clássicos universais para leitores

iniciantes. No Brasil, a preocupação com a leitura para crianças e jovens torna-se mais intensa

com Monteiro Lobato – escritor, tradutor, editor e o principal responsável pela divulgação de

obras canônicas, lidas anteriormente em seus idiomas de origem. Observa-se na pesquisa a

importância da competência lingüística do escritor, para que possa desempenhar com eficácia o

papel de autor-adaptador, pois somente será bem sucedido na tarefa de verter um texto de uma

língua para outra, aquele que se dispuser a buscar a índole da “língua de chegada”. Considerado

um dos livros mais representativos do cânone ocidental, Dom Quixote de la Mancha, narrativa

escolhida para análise, é exemplar, no que concerne ao trabalho com a língua, uma vez que os

jogos semânticos, a seleção lexical, os diferentes usos de níveis de linguagem, entre outros

recursos, são primorosos, servem de modelo a escritores iniciantes. Por imposição do corpus,

procura-se observar a obra em outros códigos. A saga do “Cavaleiro Andante” ultrapassa

barreiras, impregna-se nas histórias em quadrinhos, no cordel, na música, na poesia, em outros

textos literários etc. Como a tese privilegia a tríade Língua Portuguesa-Ensino-Leitura, busca-se,

pelo cotejo entre a versão integral – dos Viscondes de Castilho e Azevedo – e as paráfrases de

Monteiro Lobato e de Ferreira Gullar, observar a capacidade de o autor-adaptador trabalhar

esteticamente o texto adaptado, elaborado numa linguagem mais acessível, mantendo, no entanto,

a marca do original, do prototexto.

Palavras-chave: Linguagem; Clássicos universais; Texto adaptado.

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ABSTRACT

The thesis focuses on the language used in the adaptations of the universal classics for

beginner readers. In Brazil, the concern with reading for children and youngsters became more

intense with Monteiro Lobato – a writer, translator, editor and the main responsible for

publicizing the canons, previously read in their original language. It has been observed in the

research the importance of the writer’s linguistic competence so that the role of author-adapter is

played effectively, for one will only accomplish the task of translating a text from one language

to another if he is willing to seek the nature of the “target language”.Regarded as one of the most

representative books among the western canons, Dom Quixote de la Mancha, the narrative

chosen for analysis, is exemplary in respect to the work with the language since the semantic

games, the lexical choice, the different uses of levels of language, among other resources, are

exquisite, serve as models to beginner writers. As imposed by the corpus, the work has been

observed in other codes. The saga of the “Walking Knight” surpasses boundaries, impregnates

itself in cartoons, “cordel”, music, poetry, in other literary texts etc. As this thesis privileges the

triad Portuguese language – Teaching - Reading, by contrasting the unabridged version – by the

Viscounts of Castilho and of Azevedo – with the paraphrases by Monteiro Lobato and Ferreira

Gullar, it was observed the ability of the author-adapter to work the adapted text aesthetically, to

elaborate it in a more accessible language, though keeping the original mark of the prototext.

Keywords: Language; Universal classics; Adapted text.

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RESUMEN

En esta tesis se estudia el lenguaje de las adaptaciones de clásicos universales para

lectores iniciantes. La preocupación con la lectura para niños y jóvenes en Brasil se intensifica

con Monteiro Lobato - escritor, traductor, editor y el principal responsable de la divulgación de

obras canónicas, leídas anteriormente en sus idiomas de origen. En la investigación se observa la

importancia de la competencia lingüística del escritor, para que pueda desempeñar con eficacia el

papel de autor-adaptador, pues solamente obtendrá éxito en la tarea de verter un texto de una

lengua a otra, aquel que se disponga a buscar la índole de la “lengua de llegada”. Considerado

uno de los libros más representativos del canon occidental, Don Quijote de La Mancha, obra

elegida para nuestro análisis, es ejemplar en lo que concierne al trabajo con la lengua, ya que los

juegos semánticos, la selección léxica, los diferentes usos de niveles de lenguaje, entre otros

recursos, son excelentes y sirven de modelo a escritores principiantes. Por imposición del

corpus, se procura observar la obra en otros códigos. La saga del “caballero andante” ultrapasa

barreras, se impregna de los cómics, del cordel, de la música, de la poesía, de otros textos

literarios, etc. Como la tesis se basa en la tríade Lengua Portuguesa-enseñanza-lectura, se busca a

través del cotejo entre la versión integral de los Viscondes de Castilho y Azevedo y las paráfrasis

de Monteiro Lobato y de Ferreira Gullar, observar la capacidad del autor para trabajar

estéticamente el texto adaptado, elaborado en un lenguaje más accesible que mantiene, sin

embargo, la marca del original, del prototexto.

Palabras clave: Lenguaje; Clásicos universales; Adaptaciones.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 14

I. A LINGUAGEM: PONTO DE PARTIDA, PONTO DE CHEGADA ..............................

20

1. Clássico e seus conceitos: ponto por ponto....................................................................... 24 1.1 Modelo do bem escrever: linguagem e memória do cânone........................................... 31 1.2 Clássico e tradição: linguagem e memória construídas................................................... 33 1.3 Clássico e modernidade: linguagem e memória em construção...................................... 36 II.A LINGUAGEM: PONTO DE INTERSEÇÃO..................................................................

38

1.Clássico fundador da cultura ocidental: a Bíblia................................................................ 38 1.1Texto e intertexto: uma questão polifônica........................................................................ 43 1.2 Parábolas e alegorias: uma questão discursiva.................................................................. 46 III.A LINGUAGEM: PONTO DE INTERROGAÇÃO..........................................................

48

1. Clássicos na Escola: tradição e permanência..................................................................... 48 1.1 Linguagem babélica: a tradução possível......................................................................... 51 1.2 Linguagem parafrástica: a adaptação necessária.............................................................. 56 2. Clássicos adaptados: forma e conteúdo em questão.......................................................... 58 2.1 Nas dobras da memória, na ponta da língua: Rei Artur, Robinson, Alice ...................... 68 2.2 Duelando com os moinhos: o porquê de Dom Quixote................................................... 71 IV. A LINGUAGEM: PONTO FINAL....................................................................................

75

1. Um clássico em múltiplas linguagens: possibilidades de representação do Cavaleiro da Triste Figura.....................................................................................................

75

1.1 A imagem de Quixote na memória popular: a revista....................................................... 76 1.2 O Cavaleiro Andante e célebres pintores.......................................................................... 77 1.3 O Engenhoso Fidalgo nos poemas.................................................................................... 80 1.4 A saga quixotesca na música............................................................................................. 81 1.5 Dom Quixote e o burlesco das charges.............................................................................. 83 1.6 O clássico nas histórias em quadrinhos............................................................................. 84 1.7 O fidalgo cavalheiro por um fio: o cordel......................................................................... 88 2. Os "encantadores” nas adaptações literárias de Dom Quixote: recursos lingüístico- discursivos...............................................................................................................................

99

2.1Quem conta um conto aumenta ou diminui um ou mais pontos: a língua como instrumento de mediação...................................................................................................

101

3. “Soberana Senhora”: a língua nos planos léxico-semântico e morfo-sintático .............. 106

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3.1 Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato.............................................................. 106

3.1.1 Lugares-comuns: narrativas incomuns..................................................................... 116

3.1.2 Jogos com diferentes níveis de linguagem................................................................. 117

3.1.3 Formalismo de Dom Quixote: a língua a favor da imaginação.................................. 119

3.1.4 Termos arcaizantes: vestígio do barroquismo literário.............................................. 120

3.1.5 Coloquialismo de Sancho: a estilística dos provérbios.............................................. 121

3.1.6 Comparações como estratégia para a construção do cômico..................................... 123

3.1.7 Expressões metafóricas e sua dupla vertente: da fala popular e da fala culta........... 124

3.1.8 Antíteses e suas artimanhas........................................................................................ 126

3.1.9 Sinônimos voluntários: um reforço na expressividade............................................... 128

3.1.10 Repetições deliberadas, expressivas......................................................................... 129

3.1.11 Jogos de palavras: o engenho e a arte do escritor..................................................... 130

3.1.12 Artesania nos Nomes................................................................................................ 131

3.1.13.Ludismo e forma gramatical.................................................................................... 135

3.1.13.1 Os adjetivos nas malhas do burlesco........................................................... 135

3.1.13.2 O léxico e seus sortilégios........................................................................... 138

3.1.13.3 Um jogo interessant(íssimo) com o superlativo.......................................... 140

3.1.13.4 As onomatopéias: valorosa sonoridade ...................................................... 141

3.1.13.5 A formação verbal e o neologismo: humor e liberdade de criação............. 142

3.1.13.6 As quixotices dos gêneros e da negação enfática........................................ 143

3.1.14. Expressividade com a metalinguagem..................................................................... 143

3.2 Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar................................................................ 145

3.2.1 As vozes entrecruzadas............................................................................................... 147

3.2.2 A polifonia da voz narradora....................................................................................... 147

3.2.3 Quixote: a construção do personagem pela língua(gem)............................................ 149

3.2.4 A linguagem formal do fidalgo................................................................................... 150

3.2.5 A linguagem coloquial do Cavaleiro Andante............................................................ 150

3.2.6 A voz de Sancho: a voz do povo, seus provérbios e coloquialismos......................... 152

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3.2.7 A voz que narra e a voz dos personagens................................................................... 153

CONCLUSÃO............................................................................................................................. 157

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 160

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INTRODUÇÃO

E fez-se o homem pelo Verbo de Deus tornado palavra. É a palavra – ferramenta de nossa

comunicação diária – que nos impulsiona, que nos leva adiante. Buscar a palavra certa, a

expressão exata, é exigência de cada momento. A vida pulsa em “verbo”, até mesmo quando

silenciado, pois, de um lado, falam em nós as palavras adâmicas, fundadoras, antigas,

adormecidas em nossa memória; de outro, porém, estão as novas, as por proferir, aquelas em

processo de germinação, principalmente as que dormem em nossos discursos, tomadas por

empréstimos – conscientes ou não – do discurso do outro.

Dizem alguns escritores que muitas pessoas escrevem para escapar da solidão, para buscar

um encontro consigo mesmas, para encontrar-se com o imaginário...Tomo emprestadas, de Italo

Calvino, as palavras através das quais ele ensina que De certo modo, acho que sempre

escrevemos sobre algo que não conhecemos, escrevemos para dar ao mundo não escrito uma

oportunidade de expressar-se através de nós... 1. Escrever este trabalho é, sem dúvida, uma

proposta de encontro – com minha infância, com as leituras que fiz, com as que gostaria de ter

feito, com minha trajetória de professora de Língua Portuguesa, com a palavra sagrada, comigo

mesma e com o outro que me habita travestido em signo.

Entre utopias seguimos... Esta tese é fruto de um sonho, ou melhor, de um desejo: estudar

a linguagem das adaptações de clássicos para leitores em formação.

Na década de 90 havia poucas publicações de clássicos adaptados para leitores iniciantes;

o tema é polêmico e controverso, sem dúvida. Existia, até então, uma corrente, bastante

prestigiada e de grande poder persuasivo, que se mostrava contrária a recontos em linguagens

mais “facilitadoras” para o público infantil/juvenil. Defendia, também, o ponto de vista de que a

obra canônica deve permanecer inalterada e só deve ser dada a ler ao leitor como foi concebida,

na íntegra. Devido a tal ideologia, os textos de autores nacionais ganharam espaço e quase

exclusividade nas escolas brasileiras durante algumas décadas.

Em nossa história da literatura, o destaque vai para Monteiro Lobato, que assume, no

início do século XX, o papel de mediador entre textos canônicos e leitores pouco proficientes nas

artimanhas da língua(gem) rebuscada e do estilo aristocrático das obras consideradas clássicas

1 Endereço eletrônico: o http://www.ricesu.com.br/colabora/n4/homenagem/index.htm

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universais, como as que giram em torno das aventuras de Robin Hood, de Quixote e de outros

personagens. A década de 70 é um marco para a literatura infantil brasileira, que se apresenta

plena, exuberante. Entram em cena os “filhos de Lobato”, escritores como Ana Maria Machado,

Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Bartolomeu Campos de Queirós, Lygia Bojunga que,

confessadamente, seguiram as pistas deixadas pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo, espaço

democrático em que a polifonia era a principal característica, são ouvidas todas as vozes: a da

negra Nastácia, a dos personagens das histórias fabulosas, a das lendas e mitos nacionais e

estrangeiros.

A literatura brasileira produzida para os leitores iniciantes ocupou durante quase vinte

anos um espaço generoso nas escolas; os textos universais ficaram extra-muros. É sabido, porém,

que a história da leitura de cada indivíduo deve ser construída de forma plural. Alguns

professores reconheceram que a leitura de textos jornalísticos, a presença de gêneros variados nas

aulas e a exclusividade da literatura brasileira não era o suficiente para ampliar o conhecimento

enciclopédico do aluno. Percebia-se a limitação imposta a jovens que, talvez, tivessem na Escola

a única chance de entrar em contato com personagens que vêm atravessando fronteiras espaciais

e temporais.

Foi na década de 60 que a editora Tecnoprint (atualmente Ediouro) resolveu promover a

circulação de obras consagradas; ao lançar uma coleção de clássicos estrangeiros, trazia a público

um material bastante lucrativo, tanto para os editores quanto para os consumidores, no caso os

responsáveis pela compra do acervo escolar, espaço em que tais títulos deveriam circular, a

priori. Os autores convidados a escrever as adaptações eram escritores conceituados: Carlos

Heitor Cony, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Maria

Clara Machado...

As competências literária e lingüística dos adaptadores garantiriam o bom resultado do

trabalho. O objetivo era, sem dúvida, tornar os textos mais concisos, mais “leves”. Somente

escritores experientes poderiam recontar as narrativas tradicionais sem, contudo, banalizá-las.

Sabiam reconhecer-lhes o valor estético. Por isso, mantiveram-se, sempre que possível, fiéis ao

artista, ao texto primeiro, ao texto de linhagem, como diz Foucault em A ordem do discurso

(1996).

O que nos move na pesquisa, como já dito, é a linguagem, em geral; e a palavra,

em particular. Clássico é a primeira palavra que nos interroga, a fonte desta tese, que busca

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entender tal conceito e a relação entre ele e a linguagem que o engendra. Por que um texto é tido

como clássico? Há uma linguagem própria para a literatura? Há realmente a necessidade de

adotar uma linguagem diferente para que a obra atinja maior número de leitores? Eis algumas das

questões que levantaremos no decorrer do trabalho.

Clássico nos levou longe: aos textos bíblicos. Considerada clássico dos clássicos,

a Bíblia é o livro mais lido no mundo ocidental. O discurso fundador em que se forjou o discurso

divino é a base ideológica de uma comunidade, quer religiosa quer agnóstica. O discurso

religioso, travestido em parábolas de Cristo, reforçou no povo do ocidente o gosto pelas

narrativas. Contar e ouvir histórias, dizer-se através de palavras, isto é o que diferencia o homem

dos outros animais. Dos textos bíblicos muito poderíamos dizer, principalmente se tomássemos o

conceito de intertextualidade. O diálogo com a palavra inspirada é recorrente e vem atravessando

séculos. Da mais simples conversa de nosso cotidiano ao mais elevado trabalho literário, muitos

são os discursos que se apropriam de alguma sabedoria passada por aqueles textos – sagrados

para uns, históricos para outros – a fim de produzir determinado efeito de sentido. Sabe-se que,

em muitos lares, o único livro existente era (é) a Bíblia Sagrada que, em tempos antigos, era lida,

em voz alta, diariamente em grupo, com a família reunida. Não se pode deixar de reconhecer,

portanto, o valor literário das Escrituras.

Se clássico é o texto que nunca terminou de dizer o que tem para dizer, como ensina

Calvino (1993), a Bíblia se encaixa perfeitamente na definição. Ela e outros tantos livros

poderiam desfilar ao longo das páginas desta pesquisa. Os limites, porém, determinam caminhos

e escolhas, bastante difíceis, visto que selecionar é também rejeitar. Escolher alguns títulos

significava deixar de fora outros. A decisão foi tomada, tendo Dom Quixote vencido a peleja. Por

ser o segundo livro mais lido no ocidente – perde apenas para a Bíblia – e por ser um dos

trabalhos mais bem realizados por Monteiro Lobato em matéria de adaptação, o livro de

Cervantes foi escolhido para corpus da tese. Outro fator concorreu para que a obra figurasse

como protagonista dos dados analisados: o quarto centenário do livro em 2005 contribuiu para

que, no mundo inteiro, houvesse grande movimento editorial; muitos livros (re) lançados, várias

adaptações escritas, recontos em diferentes linguagens... Como não reconhecer o valor literário

do Quixote na pena de Ferreira Gullar (2002)! Como não se encantar com o traço do quadrinista

Caco Galhardo (2005), ao levar para a história em quadrinhos Quixote, Sancho etc.! Como não

se deleitar com a paródia de J. Borges e Jô Oliveira (2005) no Quixote em cordel!

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O caminho escolhido para estudar o amplo universo das adaptações de Dom Quixote foi a

análise de parte do material disponível em discos, em fitas, em livros, em charges... Precisou-se

delimitar, dentro do possível, o espaço ocupado pelo personagem cervantino no imaginário e na

cultura populares. A seguir, o foco voltou-se para as obras cifradas em língua portuguesa. O

ponto de partida foi o livro traduzido pelos consagrados viscondes de Castilho e Azevedo (1876-

1878), obra tradicional, reconhecida pelo rigor e pelo estilo apurado; fonte para o reconto de

Monteiro Lobato, fato comprovado na passagem Mas você devia respeitar esta edição que é rara

e preciosa. Tenha lá as idéias que tiver, mas acate a propriedade alheia. Esta edição foi feita em

Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de

Castilho e pelo Visconde de Azevedo.(Dom Quixote das crianças: 2004, p.9).

Existem ótimas traduções brasileiras, porém não foram utilizadas; primeiramente porque

nos afastaríamos do objetivo da pesquisa – cotejar a tradução (texto integral) com a respectiva

adaptação, a fim de observar o trabalho com a linguagem; depois, porque as traduções brasileiras,

reconhecidas pela crítica, só foram publicadas após nossa escolha do tema. Em 2002, Sérgio

Molina apresenta a primeira tradução bilíngüe da obra de Cervantes no Brasil; tem o trabalho

condecorado, em 2004, com o 3o lugar no prêmio Jabuti, na categoria “Tradução”. Em 2005,

Carlos Nougué, em parceria com o espanhol José Luis Sanchez, traduz o texto de Cervantes; a

obra também recebeu premiação – 7o lugar – pelo júri do “Jabuti” em 2006.

Curioso é saber que em Portugal a primeira tradução de Dom Quixote só aconteceu em

1794. Na França, o livro foi traduzido em 1612; na Inglaterra, em 1614. Os estudiosos atribuem o

“atraso” em terras lusitanas à semelhança entre as línguas dos dois países. Para os portugueses, a

leitura do original de Cervantes não apresentava maiores dificuldades.

Na década de 50, é lançada pela editora Bertrand a tradução feita por Aquilino Ribeiro; a

obra não teve, contudo, a consagração necessária para desbancar a dos viscondes.

Vale lembrar, ainda, a tradução brasileira feita por Almir de Andrade e Milton Amado. O

texto, publicado pela editora José Olympio em 1952, tornou-se valioso pelo prefácio escrito por

Luiz da Câmara Cascudo. O Quixote de Gullar (2002) estampa na capa a palavra “tradução”,

porquanto o poeta afirma ter escrito a paráfrase/ a adaptação a partir do original, em espanhol.

O passo seguinte levou-nos em direção ao confronto entre o texto dos viscondes –

tradução integral do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – e os que se publicaram de

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forma compactada, com o propósito de diminuir o grau de dificuldade da linguagem, a fim de

possibilitar a recepção da obra por leitores em formação.

Para as reflexões e análises lingüístico-discursivas, nos ajudarão os pressupostos teóricos

de Merleau-Ponty, de Foucault, de Barthes, de Bakhtin, de Kristeva, principalmente os conceitos

de linguagem, discurso, dialogismo, polifonia, intertextualidade, interdiscursividade. Outros

caminhos dos estudos da linguagem vêm em nosso auxílio: recorreremos à semântica e à

estilística para observar alguns recursos léxico-sintáticos e destacar aspectos fônicos,

morfológicos capazes de conferir à obra adaptada valor estético.

Buscaremos a literatura teórica sobre leitura e ensino, uma vez que esta pesquisa transita

pelas veredas da Escola, lugar da educação formal, espaço da leitura e da escrita, em que os

textos canônicos reinam absolutos; espaço em que, talvez, o indivíduo tenha a única chance de

deparar com personagens consagrados como Ulisses e Penélope, Quixote e Sancho, Romeu e

Julieta, Sherazade e Shariar, Peer Gynt, Cyrano de Bergerac entre outros...

Observar a artesania com a palavra na árdua tarefa de recontar uma história, sem que o

escritor-adaptador se deixe levar apenas pelo decalque, sem tornar a linguagem redutora; dar ao

mediador da leitura condições de reconhecer os diferentes trabalhos em múltiplas linguagens

sobre o mesmo tema, de modo que a seleção e a indicação da obra possa acontecer de maneira

criteriosa, observando-se o perfil do público-alvo; eis nossa proposta. Cada professor,

bibliotecário, pai, mãe, responsáveis em geral por apresentar os clássicos a crianças e jovens,

deve conhecer os diversos modos de se contarem as histórias.

É lícito dar a ler as obras adaptadas? Como reconhecer uma boa adaptação? Os recontos

servem à tradição e à permanência do clássico? Estas são algumas de nossas indagações.

A pesquisa acompanhará dentro do possível as trilhas do gênero textual a que se alinha

uma tese. Partindo de um arcabouço teórico sobre linguagem/língua, rumaremos em direção aos

textos adaptados. Antes, porém, há que se recorrer a teorias sobre obras canônicas. Como se

escolhem as que merecem figurar no cânone? Buscaremos, por meio de entrevistas e

questionários, argüir alunos de Letras, professores, a fim de saber o que consideram clássico.

O foco da pesquisa, entretanto, é mesmo o estudo da língua que aparece nas adaptações.

Para isso deveremos: a) observar a seleção lexical feita pelo autor-adaptador; b) perceber a opção

que ele faz pela língua formal ou informal; c) avaliar se o reconto caminha pela paráfrase ou pela

paródia. Para que tais metas sejam alcançadas é imperioso um trabalho de leitura e releitura das

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diferentes adaptações. O cotejo entre o texto integral e as respectivas adaptações é o método

principal da análise.

Acreditamos na relevância desta pesquisa por reconhecermos a necessidade de um estudo

mais aprofundado dos inúmeros textos que surgem no mercado editorial – muitas vezes sem

qualidade literária, sem valor estético. Um leitor comum, dificilmente, saberia avaliar, diante de

tantas ofertas, o texto bem elaborado, bem escrito; um texto que, mesmo bebendo na fonte do

clássico, não se apequena e impõe sua identidade; um texto que reverencia o original, mas que

marca um novo território – o de clássico do clássico – e lá se coloca, permanecendo.

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I. A linguagem: ponto de partida, ponto de chegada.

A perfeição da língua é de fato passar despercebida Merleau-Ponty2

A escolha do filósofo Maurice Merleau-Ponty para iniciar a reflexão sobre linguagem

deve-se ao interesse que nos move nesta pesquisa: a língua, como estratégia discursiva, como

suporte de ideologia, como mediadora de atividades interacionais.

Tomando como ponto de partida o livro A prosa do mundo (2002), nosso olhar voltar-se-

á, nesta seção do trabalho, para os postulados deste professor da Sorbonne e um dos mais

importantes filósofos do século XX. Merleau-Ponty faleceu em 1961, aos 53 anos de idade. O

livro, publicado postumamente, ainda na década de 60, revela as idéias do autor sobre linguagem;

consideradas de grande importância, nelas encontramos eco para nossas crenças.

O que chama a atenção para as idéias apresentadas é a acuidade demonstrada em relação

aos “mistérios” da linguagem. Para o filósofo francês, uma língua pode assinalar o que não foi

visto. Mas só pode fazer isso porque o novo é feito do antigo. (Op.cit, p.23).

A afirmação vem-nos ajudar a compreender o fenômeno lingüístico que orienta os

diferentes modos de contar a saga dos heróis clássicos, uma vez que toda significação nova parte

de “significações-chave”. Ao apreender uma língua, toma-se posse do mundo, inicia-se o

processo de significação. É a língua que nos permite exprimir um número indefinido de

pensamentos ou de coisas com um número infinito de signos escolhidos. (idem, p.24).

A língua, como potencialidade, traz em si o germe de todas as significações possíveis.

Precisa-se apenas encontrar a frase feita que habita o “limbo da linguagem” e captar as palavras

secretas que cada ser murmura.

Para Merleau-Ponty: Quem fala ou quem escreve está inicialmente mudo, voltado para o que ele quer significar, para o “que vai dizer”, de repente o fluxo das palavras vem em socorro desse silêncio. (ibidem, p.26)

Desde sempre muitos estudiosos buscam explicações para o fenômeno essencialmente

humano: competência lingüística. Pesquisam-se as origens da linguagem humana. Fala-se em

linguagem adâmica. Busca-se a protolíngua. Investiga-se a língua pré Babel... Deixemos, todavia,

esta investigação para outros pesquisadores. 2 Merleau-Ponty:2002,p.32.

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A verdade é que a língua está aí com seu vocabulário, com suas formas, com seus torneios

e arquiteturas. É para ela que nossa atenção se volta nesta jornada. Como Merleau-Ponty,

acreditamos que ela é tesouro de tudo que se pode ter a dizer. Nela já está escrita toda

experiência futura. Ela responde sempre ao apelo e presta-se a exprimir tudo.(p.26).

A língua, bem simbólico do ser humano, torna-o capaz de compreender seu semelhante,

porque sabemos de antemão o sentido das palavras que nos foram dirigidas. Segundo a linha

teórica aqui apresentada, só se compreende o que já se sabia (p.28). O ato comunicativo e

interpretativo é, pois, de (re)conhecimento. Só posso (com)preender um romance enquanto

gênero textual porque tenho posse da competência genérica; só posso entender aventuras

quixotescas porque conheço romances de cavalaria – reapresentados por Cervantes nas páginas

que contam a saga do fidalgo de la Mancha. E este raciocínio pode ser ampliado para outros

campos, como, por exemplo, para os estudos lingüísticos propriamente ditos; reconheço um

neologismo (quixotar) como verbo, porque domino o paradigma dos verbos na Língua

Portuguesa.

Digno de destaque nos estudos de Merleau-Ponty é o fato de que existem, a serviço da

expressão, duas linguagens: a “falada” e a “falante”. A primeira desaparece diante do sentido do

qual é portadora; a segunda se faz no momento da expressão. O processo vai do signo ao sentido.

Quando o falante sabe expressar-se, a interlocução ultrapassa os signos – constituídos de

significante e significado – para ancorar-se no sentido, produzido pelo contexto. Vale voltar à

epígrafe com o propósito de recuperar a idéia-chave do teórico que nos guia. A língua “perfeita”

é capaz de nos projetar para longe das palavras. O triunfo da linguagem é apagar-se e dar-nos

acesso para além das palavras. (p.32).

Eis o mistério da linguagem: é a partir do todo que compreendemos cada frase. À medida

que sou cativado por um livro não vejo mais as letras nas páginas. (p.31).

Um grande livro fica em nossa lembrança de forma compactada, como um todo

indissolúvel. Isto é instigante e aparentemente paradoxal. Se um texto me seduz porque o

conteúdo é atraente, sou arrebatado e afetado por intermédio da linguagem em que se forja tal

conteúdo. Quanto mais elaborada – no sentido mesmo de labor, de trabalho – for a linguagem da

obra, mais prazer estético provoca no leitor, como nos ensina Roland Barthes em O Prazer do

texto: ele [o texto] produz em mim o melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se,

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lendo-o, sou arrastado a levantar muitas vezes a cabeça, a ouvir outra coisa. (1973: 35). Pode-

se dizer que este é um processo de autodescoberta de si.

O desafio nesta pesquisa é buscar na lingua(gem) marcas capazes de revelar em que

medida o autor foi exímio estrategista e mostrou competência para produzir um texto segundo os

pressupostos apontados por Merleau-Ponty e por Barthes. Em outras palavras, como fazer, por

meio de palavras (imagens), com que um texto mobilize o interlocutor a ponto de nada mais na

obra nos deixar indiferentes. O livro deve instalar-se em nós, em nosso mundo.

Somente um exercício nos leva a “desler” as linhas para ler as entrelinhas, como ensina o

poeta Mário Quintana (Educação, Caderno H). É preciso “desmontar” o brinquedo, como nos

tempos da infância, a fim de tentar entender seu funcionamento. O prazer de leitor

“descompromissado” dará lugar a outro tipo de prazer: ao do investigador, ao do leitor que volta

ao lugar conhecido em busca de detalhes, de explicações, de justificativas. Muitos porquês

ficarão sem respostas; outros encontrarão soluções possíveis; este é o percurso do pesquisador. É

impossível dar conta de todo o conhecimento, sabemos. Um fio, porém, junta-se a outro para

compor a trama que se tece no tear das investigações científicas. Uma pesquisa soma-se a outra

que virá unir-se à seguinte...

Nossa contribuição pretende seguir pelas trilhas lingüístico-discursivas, pelas quais

caminharam autores que se propuseram a recontar as aventuras de um dos mais famosos

personagens da literatura universal: o Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. A língua –

foco desta tese – será observada, principalmente, pelo binóculo da estilística e da análise do

discurso. Seria a lingua(gem) elemento de suma importância para a manutenção de um texto tão

tradicional como Dom Quixote? Ou o suporte teria maior responsabilidade pela divulgação de

uma obra que atravessou quatro séculos? Quixote permanece em nossa memória porque conta

uma história (ou várias histórias)? A língua de Cervantes é sedutora a todas as gerações, em todas

as épocas? O que dizer das traduções e das versões da obra espanhola? A intervenção do

adaptador colabora para manutenção de um clássico?

Não é nossa pretensão responder a todas as perguntas do parágrafo anterior, tarefa por

demais difícil para uma única tese. Elas mostram tão-somente por onde caminham nossas

inquietações.

O objetivo da pesquisa é observar a lingua(gem) de versões do texto de Miguel de

Cervantes de Saavedra escolhidas pela eficácia no uso de signos e ícones. Queremos, pelo estudo

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da língua principalmente, refletir a respeito do processo de um trabalho que se pretende novo,

embora partindo do antigo, observando de que maneira o autor-adaptador procura ajustar seu

discurso ao discurso do interlocutor do texto adaptado.

É pela língua(gem) que me comunico. Se quero comunicar-me com o outro, primeiro

preciso de uma língua que nomeie as coisas visíveis a mim e a ele (Merleau-Ponty, p.42 ).

Foucault, em A palavra e as coisas, afirma que O mundo está coberto de signos que é

mister decifrar (1966:54). Para ele, conhecer é interpretar. Foucault diz também que a

linguagem é lugar das revelações; é espaço em que a verdade se manifesta, se enuncia (p.59).

Introduz-se neste ponto o conceito bakhtiniano de dialogismo – interlocutivo e

interdiscursivo – que muito nos vale quando pensamos na linguagem das adaptações de clássicos

para jovens. A idéia de alteridade destacada nas últimas décadas contribuiu bastante para os

avanços no que concerne aos estudos lingüísticos. O valor que se dava ao texto passou a ser

dividido com o interlocutor da obra. Os efeitos de sentido são produzidos também no momento

da recepção – defendem os que seguem esses postulados. Destaca-se hoje, pelas teorias do

discurso, o relevante papel do receptor. Fala-se em público-alvo, em leitor implícito, em leitor

modelo... As relações dialógicas são estabelecidas, também, entre todos os enunciados

produzidos sobre o mesmo objeto.

Enfim, reafirma-se o que disse Merleau-Ponty: A leitura é confronto entre os corpos

gloriosos e impalpáveis de minha fala e da fala do outro. (p.35)

Vale mencionar o valor do corpo na obra de Maurice Merleau-Ponty. Para o filósofo, o

corpo é visto como mediador de nossa relação com o objeto. Em nota de Marilena Chauí, no livro

Textos escolhidos de Maurice Merleau-Ponty (1984), da coleção Os Pensadores, encontramos o

ponto central do pensamento merleau-pontiano: a reflexão não é um evento que ocorra no

pensamento mas é um ato corporal. (Chauí, in Merleau-Ponty, p.137).

Destacamos da obra citada as seguintes passagens:

Cada ato de expressão literária ou filosófica contribui para cumprir o voto de recuperação do mundo, voto pronunciado com a aparição de uma língua, isto é, de um sistema finito de signos que, em princípio se pretendia capaz de captar todo ser que se apresentasse. (p.139) O escritor, como tecelão, trabalha às avessas: preocupa-se unicamente com a linguagem e em sua trilha vê-se de repente rodeado de sentido (...) O escritor instala-se por entre signos já elaborados, num mundo

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falante, e de nós nada requer a não ser uma capacidade de reordenar as significações conforme indicação dos signos que propõe. E se a linguagem exprimir tanto pelo que fica entre os vocábulos quanto por eles mesmos? Pelo que “não diz” quanto pelo que “diz”? E se houver, oculta na linguagem empírica, uma linguagem à segunda potência, onde de novo os signos levem a vida vaga das cores e as significações não independam de todo do comércio dos signos? (p.145).

1. Clássico e seus conceitos: ponto por ponto

A palavra clássico é recorrente na vida intelectual dos homens, todavia as divergências

são inúmeras quando buscamos definição (limites) ou conceituação (avaliação) daquele termo.

É a seguinte a etimologia apresentada no dicionário Houaiss:

lat. classìcus,a,um 'que pertence à primeira classe, que é de primeira ordem, de elite', der. de classis,is 'classe'; inicialmente, classìcus era o cidadão que, por sua riqueza, pertencia à 1ª das cinco classes em que a reforma censitária atribuída a Sérvio Túlio (578-535 a.C.) teria dividido a população de Roma; Aulo Gélio, gramático e crítico latino do sII d.C., já usa a expressão classicus scriptor para designar o escritor que, pela correção da linguagem, pode ser considerado de 1ª classe, de 1ª ordem; essa idéia ganha corpo entre os eruditos alexandrinos, que selecionaram os escritores greco-latinos considerados modelares; nos sXVII-XVIII, embora se mantivesse o sentido de escritor modelar, em Sebillet (1512-1589), p.ex., classìcus é o autor lido e comentado nas escolas, sentido que se originou no b.-lat., quando o vocabulário foi associado às classes escolares; no sXIX, clássico perde o sentido ligado a 'autor modelar, autor estudado nas escolas' e passa a indicar corrente estético-literária; cp. classicismo; ver class-

Da etimologia cruzam-se duas definições latinas:

(i) Clássico é o escritor notável pelo magnífico trabalho com a linguagem. Ser um autor clássico, neste

caso, é ser um bom autor, é ser escritor que domina a língua. Nesta linha de pensamento, seriam clássicos

os antigos, assim como os modernos; mesmo aqueles não lidos na escola;

(ii) Clássico é o escritor lido nas classes, como um modelo de boa linguagem. Por este viés, Rui Barbosa

não é clássico, pois seus textos não aparecem em livros didáticos.

Ser clássico é utilizar com perfeição a língua; é escrever com propriedade, com elegância.

Em 1535, escreve o professor doutor Diogo de Gouvêa, docente em Paris: Em imitar hos

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escriptores de boa lingoagem, apreciados por sua pureza, e por isso chamados classicos, he que

aprendemos os segredos do bem escrever [sic]. (Apud Assis Cintra: 1922:10).

Segundo Assis Cintra, para que um escritor possa ser apontado como clássico, necessita de

várias qualidades que assegurem a pureza do falar, a elegância da expressão, a propriedade do

vocabulário, a simplicidade da idéia, a nitidez da observação. (idem, p.16). Cintra, quando fala

das qualidades de um clássico, reporta-se a três ilustres escritores em séculos diferentes:

(i) Padre Antonio Vieira, em Vida de S. Domingos, aponta as qualidades de um clássico: 3

O estilo claro com brevidade, discreto sem afetação, copioso sem redundância, e tão corrente, fácil e notável que, enriquecendo a memória, e afeiçoando a vontade, não cansa o entendimento... – dizendo o comum com singularidade, o semelhante sem repetição, o sabido e vulgar com novidade e mostrando as coisas (como faz a luz) cada uma como é, e todas com lustre.

(Assis Cintra, 1922:17)

(ii) No século XVIII, José Freire, referindo-se também às qualidades de uma obra clássica,

sintetiza: [...] abundância de termos cheios de propriedade e energia, a afluência de

expressões genuínas, nascendo tudo de um estilo claro e correto. (idem)

(iii) No século XIX, José Vicente Gomes Moura também nos ensina:

Para que na linguagem se dê a clareza cumpre: primeiro, que as palavras se liguem sempre por todas as noções fixas e bem determinadas; segundo, que se fixe o número das significações de cada um daqueles vocábulos que podem ter muitas; terceiro, que nela haja a maior regularidade possível na derivação e composição dos vocábulos, na sintaxe a colocação dos mesmos, e portanto nas inflexões dos vocábulos declináveis. – É copiosa a linguagem que não carece do cabedal de vocábulos necessários para fins sobreditos; e que quando lhe falte possa supri-lo antes do seu próprio fundo que recorrendo às línguas estranhas. – Será breve, quando exprima o maior número de idéias pelo menor número de vocábulos. – Corrente ou fluida, quando for de pronúncia tão fácil que fatigue o menos possível o órgão oral de quem fala; e os sons simples de cada palavra possam ser distintamente percebidos por quem ouve, depois de distintamente percebidos por quem fala. – Viva, quando retratar com a maior viveza as imagens dos objetos, e com a maior sensibilidade os sentimentos do espírito; versátil quando tiver cabedal apto para todos os estilos (idem, p.18)

Inúmeras definições sobre os clássicos poderiam desfilar ao lado das apresentadas pelo

dicionário, ou pelo viés da qualidade do texto considerado clássico.

3 Optou-se por atualizar a linguagem, a fim de facilitar a leitura do texto, escrito em 1922, e que se remete a outros anteriores.

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O escritor Italo Calvino é, porém, o mais citado em qualquer estudo sobre o tema. Sua

obra consagrada Por que ler os clássicos (1993) aparece como referência em todas as listas das

pesquisas cujo assunto seja a leitura de obras que se perpetuaram através dos tempos.

No primeiro ensaio, o crítico busca uma definição para clássicos. O que ele oferece ao

leitor, para surpresa deste, é um leque de definições; são 14 tentativas de pôr em palavras um

conceito bastante complexo: 1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer:

“Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”.

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas

constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores

condições de apreciá-los.

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e

também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo e individual.

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a

nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente

na linguagem ou nos costumes).

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas

continuamente a repele para longe.

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se

revelam novos, inesperados, inéditos.

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos

talismãs.

11. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e

talvez em contraste com ele.

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele,

reconhece logo o seu lugar na genealogia.

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não

pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Cada leitor certamente tem a sua definição de clássico, como tem o seu livro-clássico

preferido. Elas não se afastariam, no entanto, de algumas das apresentadas por Calvino.

Com o objetivo de comprovar a hipótese de que leitores mais ou menos proficientes

trazem consigo um conceito de clássico muito semelhante, uma vez que foi disseminado por uma

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ideologia dominante, realizou-se uma pesquisa no ano de 2006 com alunos universitários. Dos

questionários, foram colhidas algumas definições sobre o termo.

Alunos de graduação da PUC-Rio, do curso de Letras (30), de Informática (15), de

Engenharia (30); alunos de pós-graduação do curso de Letras da Faculdade de Filosofia Santa

Dorotéia (27) receberam uma folha (em anexo) em que havia 10 questões sobre os clássicos. Vale

ressaltar que o grupo da FFSD é formado, em sua maioria, por professores de Língua Portuguesa

e de Literatura. Na pesquisa, contudo, são considerados alunos.

O resultado mostrou que, em algumas áreas (informática e engenharia), boa parte dos

entrevistados-graduandos afirmam não ter um clássico (universal) preferido, pois a bagagem de

leitura do jovem não contempla tais obras. Outros (alunos de Letras), todavia, revelaram

dificuldade para escolher um título, pois elegeram vários clássicos como prediletos. Já alguns

alunos-professores, pós-graduandos, apontam os clássicos universais – a Ilíada, Os Lusíadas,

Romeu e Julieta, Madame Bovary, os Contos de Grimm – como seus preferidos; grande parte

deste grupo, entretanto, ficou restrita à literatura nacional; surgem, então, os livros de Machado

de Assis, de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, como os escolhidos.

Muitos apontaram dois ou três títulos como “seu clássico preferido”. É digno de nota o fato de

ninguém citar obras poéticas como clássicas.

Definir um clássico, contudo, não foi difícil para os jovens universitários de qualquer

área. Vejamos algumas definições que eles apresentam:

Aluno1: Obra literária renomada e tradicional. Tal conceito é atribuído pela comunidade literária, pelos leitores e pela crítica.

Aluno 2: É um livro que perdura atualizado no tempo.

Aluno 3: É a obra aceita pelos especialistas como parte da literatura que influenciou o pensamento de uma sociedade. Aluno 4: Clássico possui uma qualidade acima da média das demais obras, agrada grande parte do senso comum e é eternizado.

Aluno 5: Livros que marcam uma época e são tomados como referência.

Aluno 6: Um livro conhecido, em linguagem culta.

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Aluno 7: Obra que tem valor universal independentemente da época em que foi escrita.

Aluno 8: Clássica é toda obra que causa ao leitor uma certa estranheza, por fugir do lugar-comum e por inovar a linguagem e a visão de mundo.

Aluno 9: É uma obra que desperta infinitas possibilidades de interpretação – todas complexas, elucidativas, relacionais.

Aluno 10: Considero clássico o que atravessa uma época e continua sendo lido, ouvido, estudado.

Aluno 11: Clássico: é uma obra literária cuja construção perdura por longos anos como modelo; seu conteúdo é alvo de estudos ao longo da história.

Aluno 12: Clássico, de acordo com a origem da palavra, vem de classe, isto é, os livros eram dados nas classes da escola. Hoje clássico é uma obra de reconhecido valor estético que se perpetua através dos tempos.

Aluno 13: Uma obra que teve grande importância no processo artístico de sua época, a ponto de tornar-se uma fonte de referência básica para um estudo diacrônico, ou para uma formação erudita.

O grupo de alunos repete, em geral, um discurso pronto, ouvido na escola e na família,

provavelmente. Muitos deles, porém, não são leitores de obras clássicas. Dos citados acima,

quatro não apontaram o clássico preferido; um escolheu a Bíblia; outro optou por Romeu e

Julieta; um outro aluno destacou Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Outros títulos

aparecem como resposta, pois os critérios do leitor para escolher seu livro predileto são bastante

subjetivos.

Vale comentar o quadro apresentado. Sem dúvida, a Bíblia, Romeu e Julieta e Reinações

de Narizinho merecem destaque pelo muito que representam. Shakespeare é um escritor

canônico, considerado pelo crítico Harold Bloom (2001) como centro do Cânone Ocidental; para

Bloom, somente Cervantes pode ladear Shakespeare.

A Bíblia foi durante muito tempo a leitura oficial e obrigatória em muitos lares; é texto

fundador, ainda hoje texto-base para muitos escritores. As obras do “bardo” ficaram

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imortalizadas e continuam influenciando escritores até os dias atuais. Lobato, por sua vez, é o

clássico da literatura para crianças no Brasil, precursor desta linhagem.

Portanto, nossos leitores demonstram, pela escolha dos títulos, que adotam critérios

passados ideologicamente pelos discursos da sociedade. Não apontaram textos de escritores

contemporâneos, de autores desconhecidos; ficaram apegados à Tradição e ao material canônico.

Talvez porque não tenham bagagem de leitura para assumirem o lugar de críticos e expandirem o

cânone, ou porque ficar ao lado da unanimidade é mais seguro.

O questionário aplicado à turma de Engenharia da PUC-Rio (curso Compreensão e

produção do texto técnico) provocou uma reação inusitada: um aluno daquela turma –Tiago C.

Fernandes – ofereceu-se para investigar junto a duas turmas de 4a. série, para as quais ele

ensinava Matemática, o conhecimento do grupo sobre Dom Quixote. Os resultados (em anexo)

mostram que a maioria dos 40 alunos consultados – quase todos na faixa de 10 anos – revelaram

desconhecer o personagem de Cervantes; quando o conhecem, o contato foi feito pela televisão,

através do programa O Sítio do Picapau Amarelo, que sofreu inúmeras críticas das crianças.

Vejamos algumas respostas dos alunos para as perguntas “Você conhece Dom Quixote?

Como ficou conhecendo?”:

Aluno1 Sim. Porque escutei na entrada do programa do Sítio do Picapau Amarelo: “Vamos para o mundo de Dom Quixote”. (Vitória Oliveira,11 anos). Ela acha o programa horrível, porque é muita criancice. Aluno 2. Sim. Por textos muito legais que a minha professora entrega em sala de aula” (Moniky D. da Silva, 10 anos). Aluno 3. Sim. Ouvi dizer na televisão que ele é o protetor das crianças e que a espada dele pode até parar um carro.” (Matheus Mesquita, 10 anos). O menino mostra ser leitor da obra de Monteiro Lobato; cita O Minotauro, A chave do tamanho e As reinações de Narizinho. Conhece os personagens de Lobato de livros e pela televisão; Matheus afirma gostar muito do Sítio do Picapau Amarelo “porque tem muita aventura, é criativo, e porque a leitura fortalece o português das pessoas”!. [grifo nosso]

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Passemos, a seguir, a observar os dados fornecidos por professores:

Grupo I, formado por professores da rede municipal de ensino, responsáveis pelo

trabalho em Salas de Leitura que atendem a leitores de diferentes níveis de escolaridade, da CA à

oitava série.

Professor 1 Clássicos são livros reconhecidos internacionalmente e de linguagem por vezes sofisticada.

Professor 2 É o que possui beleza e graça e perdura através dos tempos.

Professor 3 Um texto de conhecimento (pelo menos parcial) dos leitores de literatura. Textos bastante conhecidos e utilizados por estudiosos. Professor 4 É o que não passa, não fica esquecido, é lembrado de geração em geração” Professor 5 É história que surgiu em outro século e é escrita, conhecida e contada até hoje.

Grupo II: Professores de Língua Portuguesa (todos mestres/mestrandos). Para a pergunta

“O que clássico?”, encontramos estas definições:

Professor 1 “ É a literatura atemporal que veicula valores humanos universais e, por isso, atravessa os tempos despertando o interesse dos leitores.” Professor 2 “ É uma obra que, de algumas formas, serve de referência para outras obras, possivelmente pela qualidade de sua produção, pelos ensinamentos que transmite. Um modelo a ser seguido, aproveitado” . Professor 3 “ Um clássico é um livro que nunca vou terminar de ler.”

Os professores chamam a atenção para (i) a universalidade de valores humanos, (ii) para o

caráter modelar e (iii) para a permanência das obras clássicas.

Quanto às outras perguntas, o quadro não se modifica muito: leram poucos clássicos

universais; até porque antigamente nas escolas era recomendada (obrigatória) a leitura de obras

de autores nacionais. Poucos leram Dom Quixote na versão integral; a maioria só o conhece por

filmes ou fragmentos da narrativa. Alguns títulos preferidos do grupo I: Romeu e Julieta, Rei

Lear, Odisséia, Bíblia, Gulliver, Robinson Crusoé, Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e

outras obras do universo infantil. No grupo II, citaram Alice no país das maravilhas, A

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Tempestade, Madame Bovary. Nota-se que também não ousam ampliar o cânone; ou o conceito

de clássico leva imediatamente o leitor da pergunta para os séculos passados. O grupo ressalta a

intertextualidade da narrativa de Cervantes em outras obras, através das quais alguns chegaram

ao Cavaleiro Andante. Muitos leram e recomendam as adaptações, desde que estas mantenham o

máximo possível a estética do original e que tenham sido escritas por autores que demonstrassem

competência no trato da língua de uso literário, pois, segundo as opiniões recolhidas, a linguagem

deve-se adequar ao público-alvo, sem, porém, tornar-se reducionista.

Não poderíamos deixar de trazer a contribuição da consagrada escritora, com vasta

experiência no magistério na área de literatura, Ana Maria Machado. O livro Como e por que ler

os clássicos universais desde cedo, publicado em 2002, período em que as idéias para esta tese

começavam a tomar corpo, trouxe o argumento de autoridade de que necessitávamos. Diante de

muitos trechos do livro, nos reconhecíamos; parecia que Ana lera nossos pensamentos. Como

exemplo, transcreve-se a passagem O que interessa mesmo a esses jovens leitores que se

aproximam da grande tradição literária é ficar conhecendo as histórias empolgantes de que

somos feitos. (p.12).

Era isso que vínhamos fazendo nas “aulas de leitura” em turmas de ensino fundamental e

de ensino médio. Dar a ler as aventuras de Quixote, de Robinson Crusoé, de El Cid, de Ulisses,

do Rei Artur, mesmo que recontadas, era mostrar àqueles leitores em formação o grande tesouro

que herdamos e ao qual temos direito. E, com Ana Maria, dizemos: Direito e resistência são duas

boas razões para a gente chegar perto dos clássicos. Mas há mais. Talvez a principal seja o

prazer que essa leitura nos dá. (Op.cit, p.19).

1.1 Modelo do bem escrever: linguagem e memória do cânone

Basta passarmos os olhos por algumas definições sobre os clássicos e encontraremos em

muitas delas a ligação entre clássico e a arte de bem escrever. Clássico, para alguns, é referência

e modelo para quem deseja escrever corretamente, com estilo.

A quem cabe a responsabilidade de julgar uma obra e rotulá-la de clássica? Quais os

critérios para pertencer ao cânone? As repostas para tais perguntas estão na obra de Harold

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Bloom: O cânone ocidental (2001). Segundo Bloom, a estranheza e um tipo de originalidade são

requisitos para tornar canônicos o autor e a obra. O ensaísta americano defende em seu livro a

autonomia da estética, pois literatura não é simplesmente linguagem; é também vontade de

figuração, o desejo de ser diferente, de estar em outro lugar (p.20), como nos ensina o autor no

prefácio do livro.

No livro de Harold Bloom, encontra-se a definição de Cânone:

palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, quer se interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais. Alguns partidários recentes do que se encara como radicalismo acadêmico chegam mesmo a sugerir que as obras entram no Cânone devido a bem-sucedidas campanhas de publicidade e propaganda. (p. 27-28)

No Houaiss (2001), buscamos a etimologia da palavra:

Lat. canonìcus,a,um 'relativo a uma regra, a uma medida, relativo a uma contribuição, canônico', do gr. kanonikós,ê,ón 'feito conforme as regras, relativo a regras ou à teoria da música, relativo aos cânones da Igreja, relativo às regras do cálculo'; para a acp. de orn, orig.obsc.; ver canon-; f.hist. sXV canoniquo, sXV canonjco .

Canônico é, pois, o texto que segue regras. Ele vai também determinar as regras seguidas

pelos sucessores. Entende-se por regras, basicamente, o uso da língua. Saber usar as palavras com

força poética, ou seja, o autor deve fazer a junção dos seguintes elementos: domínio da

linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento; o artista deve buscar a

eficácia da palavra, a fim de conseguir um resultado de valor estético.

A obra que trabalha bem com os elementos destacados acima vai exigir releitura, sem o

que não se qualifica.

A leitura (releitura) dos clássicos deve ser, como nos ensina Ana Maria Machado (2002)

uma leitura crítica, porém amorosa, como se dialogássemos com certos idosos que trazem grande

bagagem de experiência, de sabedoria.

Muitos de nós, em algum momento, têm a curiosidade de saber como se forma o cânone.

Quem determina que tal livro é clássico? Quem aponta os critérios para uma obra ser alocada no

cânone ou ficar fora dele? A resposta parece óbvia a princípio: a classe dominante, a que tem o

poder de manipular os bens de uma sociedade, inclusive os simbólicos. A ideologia do poder

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passa pela escola, pela imprensa, pela mídia. As listas dos livros eleitos por críticos são

publicadas e divulgadas em revistas e jornais. Antes, o valor da obra podia ser aferido pelas

citações em gramáticas e antologias. Havia um intercâmbio entre as gramáticas e os textos

clássicos, usados como modelo da boa escrita. O círculo se fechava: é clássico está nas

gramáticas; está nas gramáticas é clássico.

A formação de um cânone reflete sempre interesses de classe.” (Bloom, p.499)

Os cânones sempre servem indiretamente ao social e ao político e na verdade aos interesses e objetivos das classes mais ricas de cada geração. É preciso capital para cultivar valores estéticos.(idem, p. 39)

O crítico Harold Bloom apresenta uma lista em seu livro O cânone ocidental. Mais tarde,

em entrevista à revista Veja (2001), revela arrependimento de ter listado os títulos, pois, mesmo

assumindo que o Cânone Ocidental existe para impor limites, para estabelecer padrão de medida,

e que o conhecimento não pode prosseguir sem memória, Bloom admite um alto grau de

subjetividade na seleção das obras.

A língua é, sem dúvida, medida relevante, uma vez que nas obras clássicas, o discurso

literário é a estilização da língua geral, comum, com finalidade estética. Daí que saber utilizar os

recursos estilísticos da língua, realizar um primoroso trabalho discursivo é o que vai conferir à

obra – ao lado de um tema sedutor – o valor capaz de consagrá-la.

1.2 Clássico e tradição: linguagem e memória construídas

Há conceitos que se cristalizam através do tempo como verdades absolutas. Um deles é o

de “clássico”, noção polêmica que sofre um alargamento nos dias atuais. Ligar a palavra

“clássico” à palavra “tradição” é quase inevitável, pois a obra se torna clássica à medida que

sobrevive às marcas do tempo. Em outras palavras, clássico em literatura é o texto que dialoga

com leitores em diferentes épocas. Ele fica nas “dobras da memória” do leitor, forma o

imaginário de um povo, atravessa as barreiras geográficas e temporais.

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Há consenso, parece, quando se afirma que a linguagem e a memória de uma geração são

construídas por meio de atos interativos. O homem se faz leitor de modo singular, ímpar; cada

indivíduo constrói sua história de leitura. Respeitadas as preferências pessoais, há, todavia, um

conjunto de textos que se entrecruzam na cadeia social, construindo, assim, o alicerce forte para

caminhos mais solitários durante a atividade leitora.

A memória guarda em si a lembrança e o esquecimento. Os que vivem em sociedade

letrada tomam contato com uma gama enorme de textos ao longo da vida, porém, somente alguns

permanecem vivos em nós. Por que não retemos todos os textos lidos? Isso nos remete a Adélia

Prado (1991), quando diz: o que a memória ama fica para sempre4. Então, podemos inferir que

nossa memória, seletiva por excelência, armazena o relevante e apaga o restante. Uma das

características marcantes de um clássico: permanecer na memória coletiva e ser imediatamente

reapresentado por meio da memória pessoal, quando solicitado.

O leitor das obras canônicas não tem, de início, liberdade para selecionar e construir seu

acervo mnemônico; a mediação da família e da escola acaba por interferir, ditando o que deve ser

lido, repetido, memorizado, enfim. A repetição, própria do ludismo infantil, acontece também nos

textos tradicionais; voltamos a eles do mesmo modo que a criança pede ao adulto para recontar

uma determinada história várias vezes. Embora saibam que vão sentir medo do Lobo Mau em

determinada passagem da história de Chapeuzinho Vermelho, as crianças não aceitam que o

contador salte esta passagem, pois precisam passar por aquela experiência novamente.

Algo semelhante acontece com nossas leituras dos clássicos. Voltamos a eles, mesmo

sabendo o desfecho. Quixote /Alonso Quejana morre ao final do segundo livro, mas nem por isso

deixamos de reler a obra-prima de Cervantes. Revisitamos o texto pelo desejo de sentir o

“prazer” de que fala Barthes, inclusive quando partilhamos a dor do personagem, quando nos

solidarizamos com o sofrimento do Cavaleiro da Triste Figura. O que nos move é, decerto, a

artesania da linguagem. O prazer do leitor consiste em perceber o quanto de epifania existe

naquele arranjo verbal. Quanta beleza e lucidez encontramos na linguagem rebuscada de Quixote,

mesmo nos momentos de desvarios! Quanta sabedoria nos passa Sancho Pança, em sua variante

lingüística menos formal! Eis uma das razões de tais obras permanecerem arquivadas na

memória.

4 Fragmento do poema “Para Zé”. In Poesia reunida

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Nossa memória é construída. À medida que entramos em contato com a tradição, com os

textos seculares, vamos ampliando nosso acervo de leitor (das letras e do mundo). Os

responsáveis por formar e aumentar tal acervo, como sabemos, são as instituições. Daí a

importância da mediação. Podemos chegar aos personagens canônicos por diferentes caminhos,

mas é na Escola que deparamos com eles de fato. Nosso encontro com Ulisses é forte e

instigante quando lemos a Odisséia. Jamais esquecerá Penélope, tecendo durante o dia e

desmanchando o trabalho à noite, o leitor daquelas maravilhosas páginas de Homero. O exemplo

é bastante eloqüente, pois não são comuns, na sociedade, referências – quer na publicidade quer

na música etc.– da figura da mulher de Ulisses, assim como nos defrontamos com a dupla

Quixote e Pança, que entram para a memória do leitor, tanto pelas palavras (orais/escritas)

quanto por outros códigos e suportes.

Falar de memória não é simples, nem é o centro deste estudo, no entanto, cabe trazer à

cena Jacques Le Goff (1996) que, recorrendo a Piaget, nos ensina: o “comportamento narrativo”

é o ato mnemônico fundamental. Narramos para passar informações sobre acontecimentos ou

objetos que não estão diante dos olhos de nosso interlocutor. A narrativa tem, pois, a “função

social” como principal característica. Aqui intervém a linguagem, ela própria produto da

sociedade.

É a esta memória especificamente que nos referimos, quando falamos em memória

construída e memória em construção.

As narrativas orais e escritas ficam armazenadas na memória individual para, a seguir,

formarem a memória coletiva, uma vez que esta última é constituída da reunião de várias da

primeira. De boca em boca, de leitura em leitura, os textos fundadores e mantenedores do cânone

chegam até nossos dias. A escrita, sem dúvida, muito contribuiu para perpetuar a tradição. Forte

aliada da memória, é mais duradoura. Hoje, os recursos eletrônicos também contribuem, e muito,

para a memorização do que nos é informado. Quem escreve, quem grava, quem conta, afinal, os

gestos da humanidade é quem tem autoridade para isso, é aquele que domina as principais

instituições (família, igreja, escola, mídia). São esses os responsáveis pelo que fica gravado. Aqui

cabe lembrar que história e memória caminham de mãos dadas. A história, que também é

discurso, abastece nosso imaginário, nosso banco de dados com o qual desenvolvemos nossa

memória.

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Voltamos a Ana Maria Machado, que sugere a leitura dos clássicos universais

desde cedo, mas alertando seus leitores para o caráter subjetivo das indicações

Nenhuma lista de livros fundamentais, porém, vale coisa alguma se não for acompanhada por uma discussão honesta sobre o chamado cânone literário. Ou seja, a própria listagem. Por que esses títulos e não outros? Por que considerar que justamente esses livros são essenciais e não levar em conta outras obras? Por que tantos autores homens? Tantos brancos? Tantos europeus? Por que sempre esses? Por que não fazer outra lista, um cânone alternativo? (p.132).

1.3 Clássico e modernidade: linguagem e memória em construção

As perguntas feitas por Ana Maria Machado nos ajudam a refletir sobre permanência e

alteração do cânone. Para tanto, nos orientamos, primeiramente, pelas idéias de Wolfgang Iser,

que em O ato da leitura (1996) chama a atenção para o fato de que a obra literária tem dois

pólos que podem ser chamados pólos artístico e estético. O pólo artístico designa o texto criado

pelo autor e o estético a concretização produzida pelo leitor. (p.50).

A partir desse postulado, as margens para a entrada ou não no cânone alargaram-se. Se a

responsabilidade pelo sentido do texto é, também, do leitor, devemos deduzir que haverá tantas

leituras quantos leitores para uma obra literária. Logo, se o leitor do século XXI é bem diferente

do leitor dos séculos anteriores, a leitura que se fizer hoje será bastante diversificada da feita no

passado. O texto de Homero não pode ser lido hoje da mesma maneira como era por nossos

antepassados. Isso nos leva a pensar nas mudanças de valores no que tange à seleção dos títulos

considerados dignos de leitura. A linguagem atual não é a mesma de outrora. A vida pulsa, o

mundo gira e a língua se movimenta. Atualizar a linguagem é estratégia necessária para que se

mantenha a permanência de uma obra antiga, pois o contrário afastaria o receptor do texto, uma

vez que o leitor abandonaria a leitura por conta das dificuldades em decodificar mensagens e

operar sentidos. Exemplo: A língua de Cervantes não é a mesma dos escritores espanhóis da

atualidade. Se para o leitor contemporâneo de Cervantes as histórias de cavalaria estavam tão

presentes, para o leitor de hoje, devido à distância temporal, esta temática atrai principalmente

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pelo valor histórico que traz em seu bojo. Logo, os textos antigos devem passar por um processo

de atualização da linguagem para que possam continuar dizendo seu verbo a mais gente.

O leitor em formação precisa contar sempre com a mediação da linguagem. A pluralidade

de linguagens trouxe mais visibilidade a textos tradicionais, a textos literários, que ficavam

restritos a um pequeno grupo de leitores privilegiados. Esses fatores colaboram para um

(re)arranjo do cânone. Aceitar o texto de um autor fora do cânone ou inserir o nome de um

escritor contemporâneo nesta lista privilegiada não é tão simples quanto possa parecer,

entretanto, já há uma receptividade maior de nomes novos que se tornam abonados pela crítica .

A nossa memória não interrompe seu processo de expansão. Todo um circuito volta a se

apresentar. O texto foi instigante, teve valor estético: vou armazená-lo em meu acervo; posso

dividir com outro(s) o prazer que o discurso literário me proporcionou. A teia se forma, mais

leitores vão passando adiante e assim pode cair no gosto da coletividade e ser incluído nas listas

dos melhores.

Novos títulos são publicados; os critérios da crítica transformam-se; novos clássicos vão-

se apresentando...assim o cânone se movimenta; afaga uns, rechaça outros.

Voltamos a Ana Maria, mais uma vez, para encerrar com palavras da escritora as

reflexões desta seção:

Com mais gente lendo mais e melhor, podendo comparar, argumentar, refutar, é bem possível que alguns títulos e autores passem também a ser menos valorizados, abrindo espaço no cânone. As substituições virão naturalmente pela prática leitora crescente de novas camadas da população alfabetizada. Da mesma forma que não creio que uma listagem velha deva ser imposta de cima para baixo, não creio que alguém individualmente tenha o direito de determinar o índice de proibições ou um novo cânone. (p. 134)

O cânone se mantém pela memória construída ao longo dos séculos; por outro lado, sofre

alterações pela memória em construção. E este círculo é ampliado infinitamente, porque sempre

haverá textos que fascinarão gerações e gerações de leitores.

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II. A linguagem: ponto de interseção

1. Clássico fundador da cultura ocidental: a Bíblia

Muitos são os chamados poucos os escolhidos

(Mateus,cap.XXII,14)

Ao convocar Adão a nomear os seres, Deus decretou que o Homem estaria fadado – pela

linguagem – a interagir, a dialogar e a se (des)entender com seus semelhantes. Sabemos que, ao

se apropriar de uma língua histórica, o indivíduo recebe toda a carga cultural do grupo que dela

se utiliza. Projetando-se no tempo ou recuando na memória, o ser humano – via linguagem – vai

registrando seus valores, sua ética, seu ponto de vista, enfim.

É inegável o valor das Escrituras Sagradas na formação das mentalidades5 no Ocidente.

Ao lado da influência tão marcante da mitologia greco-latina em nossa formação, a Bíblia (livro,

em grego) é, sem dúvida, o texto mais impregnado em nossas memórias. Esta narrativa ancestral

traz relatos fundamentais que até mesmo os sem crença religiosa conhecem ou devem conhecer,

uma vez considerados fundadores.

A Bíblia, como “palavra inspirada” – aquela soprada para dentro (in+spiro) – sendo

palavra de Deus, é também literatura, poesia, história e narrativa.

A “língua bíblica” influenciou, por meio de traduções, as línguas comuns dos povos

cristãos. Basta observar o recurso da intertextualidade que a todo momento nos reapresenta

passagens do Livro Sagrado. Como linguagem plural, o discurso da Bíblia pode ser classificado

como “discurso lúdico”, no dizer de Eni Orlandi (1996), devido ao alto grau de

plurissignificação, pois admite múltiplas leituras e sua interpretação é inesgotável.

Enquanto linguagem, os Livros Sagrados apresentam diversidade de uso da língua. Ora

estilizada (Gênesis) ora com grande refinamento (Jó), pois, sendo linguagem de cultura, ela sofre

influências diversas. De início, os textos bíblicos eram transmitidos oralmente, devido às

circunstâncias da época, principalmente o alto índice de analfabetismo. Aos poucos, surgem as

transcrições e, segundo historiadores, é possível encontrar em velhos palimpsestos poemas

5 O conceito da expressão história das mentalidades é explicado por Chartier: “irredutível especificidade de uma maneira nacional de pensar as questões”. (1990, p.30)

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bíblicos escritos nos séculos XI e X aC. Este processo de “cópia” possibilita a potencialização da

língua comum; daí chega-se ao discurso literário, muito recorrente na Bíblia. Curioso também é o

fato de ter sido produzida uma edição da Bíblia somente com imagens; a Bíblia pauperum (Bíblia

dos pobres) buscava um interlocutor pouco proficiente nas letras góticas. Esta obra expunha suas

imagens aos fiéis, dia após dia; portanto a nossa era, tida como a da imagem, vem sendo

“forjada” desde há muito tempo. E a preocupação com o leitor, interlocutor da obra, também não

é novidade dos últimos séculos.

Com isso percebemos a importância e a força das Escrituras na formação de um código

de valores no Ocidente.

Embora a Igreja considere os testamentos livros sagrados e canônicos, pois foram

inspirados pelo Espírito Santo e têm Deus como “autor”, é inegável a maestria do homem que

põe em letras aquelas mensagens e ensinamentos.

Intencionalmente ou não, grande parte da Bíblia emprega linguagem literária; mesmo que

os autores não buscassem valor estético em seus escritos, muitas vezes esse é o resultado. Alguns

acreditam que falar de poemas bíblicos, de obras literárias bíblicas e da Bíblia como literatura é

tirar-lhes a importância reveladora e, portanto aniquilá-los. (Schökel,1992;171). O autor

defende que falar da Escritura como obra literária não é diminuir-lhe a importância.

A Bíblia é um livro, uma antologia; logo, produto da mente humana. Tal obra reúne um

conjunto de escritos produzidos por pessoas reais, que viveram em épocas históricas marcadas,

concretas, que usaram suas línguas nativas e formas literárias disponíveis na ocasião. Não fosse a

concepção religiosa tradicional, os textos bíblicos, em alguns aspectos, não seriam diferentes das

obras de Shakespeare, por exemplo.

Não nos podemos esquecer de que em muitos lares a Bíblia é o único livro existente. O

mérito é sua abrangência; é literatura em sentido amplo e estrito, pois em suas páginas não só

encontramos material das belles lettres: poesia, contos romances...como também leis, decretos

reais, epístolas, genealogias, mensagens proféticas, narrativas históricas... Esta notável

diversidade faz do conjunto de tais textos uma obra clássica, berço para as que vieram depois.

Como características básicas podemos apontar: (i) todo texto bíblico exprime um “tema”,

não um objeto. Em Gênesis, por exemplo, o tema é a concepção de como o Universo foi criado.

(ii) existe uma autoria, mesmo que desconhecida: o autor bíblico (os autores) é (são), como

qualquer outra pessoa, aquele que dá – via linguagem – expressão a um tema. A autoria na Bíblia

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oculta uma história complexa, uma vez que quase toda a obra é produto de colaboração. O

material foi produzido por diferentes autores, separados no espaço e no tempo, pessoas que não

se conheciam. Por ser produto coletivo, a Bíblia apresenta-se formalmente como uma antologia;

não revela unidade, como concebemos nos livros atuais; não há na obra um estilo único, bíblico;

há vários pontos de vista e várias mensagens. É concebida em total polifonia.

Percebe-se a tentativa de unificar as diferentes vozes por meio da figura do redator. Fala-

se em tentativa, porque o objetivo não foi totalmente atingido: ainda aparecem duplicações ou

aparentes contradições, como, por exemplo, o desacordo, em Gênesis 37, quanto a quem levou

José para o Egito: os ismatitas ou os madianitas. Teria passado pelo crivo dos redatores? São

“contradições” intencionais?

No que diz respeito ao Novo Testamento, a atividade redacional fica evidente nos

evangelhos sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas –, cujos redatores teriam sido os próprios

autores.

Ao fazer uma abordagem da literatura da Bíblia, segundo Gabel e Wheeler (1993), os

estudiosos estariam limitando o valor dos Livros Sagrados. Os autores de A Bíblia como

literatura afirmam que tais estudos aproveitam narrativas como as de Adão e Eva, Caim e Abel;

ensaios morais: Sermão da Montanha; poemas, como o Cântico de Moisés, o Cântico de Débora;

os Salmos 1 e 23 ... Embora com materiais mais atraentes, essa abordagem seletiva é, segundo os

autores, redutora. Para eles a Bíblia é uma coletânea que tem sua própria existência como

literatura.

Há uma tentação natural de extrair dele [Antigo Testamento] as narrativas famosas que parecem ter vida própria como documentos humanos, que apresentam personagens com realismo psicológico e cujo enredo é estruturado com tal sutileza e habilidade que produz impressionantes resultados para a análise literária. (1993, p.26)

Ao estudar a Bíblia como literatura, pode-se fazer um levantamento de formas e de

estratégias literárias que o livro sagrado apresenta. No Antigo Testamento, a forma mais comum

é a narrativa, embora possam ser encontrados vários gêneros naqueles escritos. A vitória de

Moisés em Êxodo 15 é cantada na forma de poesia patriótica. A narrativa, no entanto, é

exuberante e assume várias formas: (i) etiológicas, as que vão contar histórias sobre a atribuição

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de nomes; (ii) narrativas de nascimento; (iii) milagres; (iv) teofanias: aparecimento de Iahweh a

Moisés; (v) histórias heróicas: façanhas de Sansão, de Daniel...

No Novo Testamento, também aparecem as formas literárias tradicionais, porém uma das

mais populares é, sem dúvida, a parábola – estratégia bastante utilizada por Jesus para passar seus

ensinamentos. Por sua importância, dedicaremos adiante um espaço maior a tal gênero textual.

Encontram-se ainda nos evangelhos outras formas tradicionais: relatos de julgamento, narrativa

de nascimento, alegorias...

Quanto às estratégias, a literatura da Bíblia nos mostra que os autores sempre usaram,

desde o início da cultura literária, os mesmos meios para a obtenção de efeitos. Os autores

bíblicos beberam na mesma fonte que ainda hoje nos abastece.

Hipérbole, metáfora, simbolismo, alegoria, personificação, ironia, jogos de palavras,

poesia são alguns dos mais recorrentes mecanismos usados para garantir expressividade do texto.

Exemplifiquemos, com Gabel e Wheeler:

Hipérbole: exagero deliberado para alcançar algum efeito; ressalta a preocupação

com o interlocutor; recurso eficaz na busca da interatividade. Os estudiosos apontam

trechos da narrativa de Daniel e em todo livro de Ester como o auge do uso da

hipérbole nos textos bíblicos.

Se a tua mão ou teu pé são a causa de tua queda, corta-os e atira-os longe; melhor entrares na vida mutilado ou manco do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançado no fogo eterno. E se teu olho é causa de tua queda, arranca-o e atira-o longe... (Mateus 18,8-9)

Metáfora: mecanismo em que uma palavra, que é literal nos contextos onde costuma

ser encontrada, é usada em contexto diverso. O uso excessivo da metáfora tende a

fazê-la voltar à literalidade, ignorada ou transformada em clichê. As metáforas podem

ser bem ilustradas no Livro dos Salmos.

Deus é uma torre forte (9,9) O homem em geral é um sopro (144,4) Simbolismo: embora qualquer um dos sentidos humanos possa estar envolvido no

simbolismo, este costuma ser visual.

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A figura de Cristo no Apocalipse 1,12-19 A imagem do sonho de Nabucodonosor em Daniel 2

Alegoria: recurso que depende da associação entre duas áreas de sentido. O exemplo

mais ilustrativo é a parábola.

Parábola do banquete nupcial: O Reino dos Céus é semelhante a um rei que celebrou as núpcias de seu filho(...)Com efeito, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos. (Mateus, 21-22)

Personificação: neste recurso, objetos inanimados ou grupo de pessoas (tribo, nação)

são tomados como única pessoa e recebem atributos humanos.

Batam palmas os rios todos,/e cantem as montanhas de alegria...” (Salmo 98,8).

Ironia: (i) dramática: esta estratégia envolve duas idéias opostas, não só diferentes,

mas irreconciliávies. O contraste entre a percepção – completa – do leitor(público) e a

percepção parcial dos personagens (atores)gera a ironia.

O exemplo que nos é apresentado conta o episódio em que Raquel revela esperteza ao esconder os teraphim (“deuses domésticos”) na bagagem que transportava quando Jacó decidiu fugir de servidão a Labão. Jacó, que de nada sabia, foi acusado do roubo. Labão envia dois homens atrás da família fugitiva; eles revistam a tenda; Raquel senta sobre a bolsa em que escondia os objetos procurados e nada pode ser provado.

A ironia é gerada, nestes casos, pelo contraste entre a percepção parcial dos personagens e

a percepção total, completa, do leitor.

(ii) ironia lingüística: recurso em que as palavras são usadas de maneira dúbia. A

linguagem é superficialmente favorável, mas pretende ter o efeito oposto. Quando

a ironia é mais aguda denomina-se sarcasmo.

Como exemplo, transcrevemos a passagem em que Iahweh mostra sua onipotência ao

falar a Jó durante a tempestade: Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se é que sabes tanto. Quem fixou as suas dimensões? Tu por certo o sabes. (...) sem dúvida sabes tudo isso; pois já tinhas nascido, tão grande é o número dos teus anos. (Jó 38, 4-5.21)

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Não há sutilezas. Iahweh pretende silenciar Jó, e consegue.

Jogos de palavras

Fica difícil visualizar os jogos de palavras nas traduções dos textos bíblicos. Sabe-se,

porém, que na língua original, tais textos apresentam muitos daqueles jogos.

1.1 Texto e intertexto: uma questão polifônica

O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma “primeira” vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a invenção, nunca tão nova que não se apóie sobre o já-escrito. (Shneider, 1990:71)

No que se refere à linguagem, clássico é um texto que serve de modelo, é exemplar, na

opinião de muitos estudiosos. Tal característica dá a ele o estatuto de proto-texto, observadas as

palavras do filólogo Antonio Houaiss que, em seu dicionário, ensina: do gr. prôtos,é,on

'primeiro; o que está à frente; o excelente, o mais distinto, o principal. O conceito de texto aqui

referido é trazido por Charaudeau e Maingueneau (2004:467), quando citam Halliday e Hasan:

texto é uma unidade de uso da língua em uma situação de interação e como uma unidade

semântica.

A Bíblia – obra em tela nesta seção do trabalho – por sua importância histórica, é o

proto-texto por excelência. É dele que partem tantos outros produzidos ao longo de milênios.

Podemos encontrar, na vasta produção literária, inúmeros autores que fazem suas obras com base

nos Livros Sagrados. O diálogo que se estabelece entre os textos produzidos – intertextos – e o

texto(proto) é muitas vezes sutil. O termo intertexto está também definido no Dicionário de

Análise do Discurso, organizado por Charaudeau e Mainguenau, como conjunto de fragmentos

convocados (citações, alusões, paráfrase...) (op.cit.,p.289). Avançando um pouco nos estudos

das relações explícitas ou implícitas entre textos de diferentes épocas, Julia Kristeva (1974:64)

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afirma que qualquer texto se constrói como mosaico de citações e é a absorção e transformação

de um outro texto. É de Kristeva, pois, a responsabilidade sobre o termo intertextualidade.

Bakhtin falava de polifonia (heterogeneidade enunciativa) e de dialogismo (i) no que concerne à

interação verbal entre o enunciador e o enunciatário e (ii) diálogo entre textos da cultura e, antes

dele, outros teóricos da literatura já apontavam para essa característica formal na estruturação de

textos, como observa Edward Lopes no ensaio O discurso literário, publicado no livro

organizado por Diana Luz Pessoa Barros e José Luiz Fiorin (2003).

Dialogismo, polifonia e intertextualidade são termos intercambiantes. Recorremos a tais

conceitos por percebermos, com estudiosos, como Schneider – citado na epígrafe – e com Julia

Kristeva, que os textos são o resultado de vozes entrecruzadas; um texto dialoga em maior ou

menor grau com outros de idêntica ou diversa formação discursiva. Pode-se afirmar que

adaptações são textos cujo grau de intertextualidade é alto, e bastante explícito.

Voltando à Bíblia, vale citar alguns dos muitos exemplos de textos literários que dialogam

com os Textos Sagrados: Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, Cântico do Calvário, de

Fagundes Varela, Tempo e eternidade, de Murilo Mendes, Grande Sertão, de Guimarães Rosa,

Mar Morto, de Jorge Amado, Esaú e Jacó, de Machado de Assis, Escritura, de Bartolomeu

Campos Queirós, O dia da criação, de Vinícius de Moraes, Oráculos de maio, de Adélia Prado

etc. Estamos impregnados desta narrativa ancestral. Somente perceberemos a relação intertextual

entre a Bíblia e os outros textos, se tivermos o conhecimento prévio desse patrimônio da tradição.

No livro de Cervantes, há referências à Bíblia, como no momento em que Dom Quixote

conversa com seu escudeiro, no capítulo X da primeira parte (Dom Quixote, 1993:128): _Não

tenhas cuidado, amigo – respondeu D. Quixote; – das mãos dos caldeus te livraria eu. Nesta

passagem, Cervantes se refere a um dos livros da Bíblia, o de Jeremias, cap.L. O trecho mostra o

momento em que Iaweh dirige a Jeremias a palavra sobre as nações, especialmente sobre a

Babilônia, terra arrasada dos caldeus. Ou ainda, no mesmo capítulo, na página 130, quando Dom

Quixote é ferido na orelha e faz um juramento prometendo vingança: _ Faço juramento ao

Criador de todas as coisas, e aos quatro Santos Evangelhos, onde mais por extenso eles estejam

escritos (...) tomar inteira vingança de quem tal cortesia me fez. Para finalizar a exemplificação,

reapresentamos o trecho (p.134) em que Dom Quixote convidou Sancho para sentar à mesa e

comer com o amo; o escudeiro, porém, declinou do convite. Dom Quixote, então, adverte: _

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Apesar disso hás de te sentar, porque quem mais se humilha mais se exalta. (São Lucas, XIV,11

e XVIII,14).

A relação intertextual nas adaptações será estudada mais adiante, quando fizermos

análises das obras e cotejarmos o texto integral com os respectivos recontos. Algumas

reapresentarão o texto de forma a preservar sua estética; embora haja cortes, nestes casos, o

proto-texto (o texto integral de Cervantes)6 se impõe. Outras adotarão um processo

palimpséstico: o texto original é quase apagado, dando vez a um outro que, ao ser reescrito, deixa

entrever apenas as “sombras” do original. Quando a adaptação é feita de forma redutora,

podemos dizer que tal fenômeno aconteceu. Como exemplo, entre tantos, citamos o livro O meu

primeiro Dom Quixote, adaptado em espanhol pela equipe editorial Destino, do grupo Planeta, e

traduzido pela escritora portuguesa Alice Vieira, reconhecida como autora de livros infantis. A

saga do Cavaleiro andante é recontada para um leitor iniciante, uma criança. Fazemos a

afirmativa com base: (i) no título “O meu primeiro Dom Quixote”: pelo uso do numeral

“primeiro”, podemos pressupor que haverá, pelo menos mais um – o segundo; (ii) a capa dura no

formato de livros para leitores iniciantes; (iii) o uso de cores, tanto no título (Quixote está em

vermelho sobre um fundo branco) quanto nas ilustrações; (iv) as poucas páginas não são

numeradas; (v) a linguagem simples e o discurso bastante didático deixam entrever a intenção do

narrador em resgatar o universo infantil com princesas presas em torres e príncipes que as

libertarão:

Dom Quixote era um homem de bom coração. Tinha lido tantos livros de aventuras que, na sua imaginação, a vida real não passava de um conto. Um conto fantástico, cheio de gigantes e guerreiros, de princesas prisioneiras em altas torres de castelos longínquos que ele teria de libertar com muita valentia. [grifos nossos] (Vieira, 2005)

O exemplo de Alice Vieira nos mostra como acontece o fenômeno de que nos fala Julia

Kristeva, quando estuda a questão da intertextualidade, pois, como “mosaico de citações”,

percebemos as vozes dos contos de fadas perpassando a dicção da narrativa que pretende

dialogar com a obra de Cervantes.

6 Não estamos levando em conta as múltiplas influências sofridas por um texto até sua publicação, pois sabemos que editor, revisor e muitos envolvidos com o processo editorial acabam por interferir na obra; sendo assim, só poderíamos chamar de proto-texto o original manuscrito.

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O texto que resulta de um trabalho de adaptação é dialógico porque é resultado do embate

entre muitas vozes sociais, e polifônico, na medida em que traz um texto(proto) dentro de um

outro que se apresenta como novo, construindo o discurso literário. Pode-se falar, portanto, que

as adaptações apresentam polifonia lingüística – situada no nível da língua – e polifonia literária

– a que estabelece um jogo entre várias vozes, a que diz respeito às múltiplas relações que

mantêm autor, personagens, vozes anônimas, diferentes níveis estilísticos etc.

(Mainguenau/Charaudeau, 2004:388).

1.2 Parábolas e alegorias: uma questão discursiva

Os textos canônicos desejam levar a uma reflexão e a uma possível mudança de

comportamento; falam a todos. Seguindo o caminho dos que defendem a Bíblia como clássico-

fonte das narrativas atuais, voltaremos nossa análise para as parábolas e alegorias bíblicas –

textos imagéticos por natureza – por entendermos que nesses gêneros está a base das narrativas

modernas. Sabe-se que o Jesus histórico fez uso das parábolas para falar a seu povo; ele não foi,

todavia, o criador de tais narrativas. Os hebreus já usavam as parábolas, textos que surgem

primeiramente na oralidade, pois Moisés, ao receber a tábua com os mandamentos que

precisavam ser transmitidos ao povo, simples e iletrado, recorre a estratagemas das histórias

orais, e seus seguidores acabam por difundir as parábolas.

Usar alegorias e parábolas foi estratégia encontrada também por Jesus Cristo para levar a

seus interlocutores a palavra e os ensinamentos de Deus, e deixar à margem aqueles que não

seriam seguidores legítimos. Umberto Eco define língua natural como sistema que se organiza

além da sintaxe e da semântica; ela vive, também, com base na pragmática, em regras da praxe,

que levam em consideração as circunstâncias e os contextos de emissão (2001:43). Eco nos

alerta, ainda, para a organização do sistema da língua em dois planos: o da expressão e o do

conteúdo. Ensina, também, o semiólogo e crítico literário, que a língua – sistema holístico –

enquanto estrutura implica uma visão de mundo a direcionar olhares.

Mais do que escritores, os autores bíblicos são compiladores que buscavam nas histórias

contadas/ouvidas pelo povo os dados necessários à sua tarefa. O homem nasceu para narrar; para

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tanto utiliza diferentes estratagemas discursivos. É grande a eficácia da alegoria – tropo que se

caracteriza por apresentar algo no lugar de outra coisa. Juntamente com outras figuras de estilo –

comparação, metáfora, imagem –, funda o discurso bíblico, criando possibilidades de textos

como as parábolas. Concretizar o abstrato em malhas discursivas é a proposta da linguagem

(alegórica) que, numa espécie de jogo de sombras, vela e desvela sentidos para interlocutores de

maneira diversificada. Só entende a alegoria o interlocutor que consegue unir os dois pontos: a

idéia e a sua representação, visto que a alegoria contém a contradição: o que diz e o outro que não

é dito, mas é recuperado pelo dito.

Sob o signo da convivência, as narrativas sempre reuniram pessoas. Comparadas às

fábulas e aos apólogos, as parábolas tinham caráter didático. Parábola é, na sua origem

etimológica, “palavra” ou parabolé, em grego, que significa “pôr ao lado de”, “comparar”.

Por serem engendrados em linguagem figurada, os discursos alegóricos possibilitam

mobilidade no tempo e a interação com eles se atualiza, sempre. Imagem e doutrina são dois

elementos materiais dessas narrativas a que o termo da comparação dá forma específica.

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III. A linguagem : ponto de interrogação

1. Clássicos na escola: tradição e permanência

Não me lembro do que li ontem, mas tenho bem vivo o Robinson inteirinho – o meu Robinson dos onze anos. A receptividade do cérebro infantil ainda limpo de impressões é algo tremendo.7

No Brasil, é na escola e não em bibliotecas ou livrarias que os clássicos literários são

consumidos. Considerados “difíceis” e de linguagem mais elaborada, os textos canônicos

precisariam de um mediador (professor) para ajudar o leitor iniciante em seus primeiros

contatos com obras consagradas.

Manter a tradição – na acepção de herança cultural, conjunto de valores veiculados por

tais obras – era (é) objetivo da Escola, espaço de formação e de legitimação. A perseverança, o

instinto de sobrevivência e a capacidade de se relacionar com um outro (personagem Sexta-

feira), revelados por Robinson Crusoé, são modelos exemplares cujo valor pedagógico é

inegável, sem, contudo, apresentar qualquer tom “didatizante”; em Alice no país das

maravilhas, uma menina que cresce e diminui ao longo da narrativa alimenta o imaginário do

leitor; o amor impossível entre adolescentes de famílias adversárias é punido com a morte;

Romeu e Julieta podem espelhar bem a triste história de amores, também impossíveis, entre

jovens de comunidades, ditas carentes, “impedidos” de transitarem por determinadas áreas da

favela.

Os clássicos são, em geral, narrativas exemplares em sua forma e conteúdo; a leitura de

tais textos mexe com mentalidades, pois atualiza no leitor um conhecimento da própria

humanidade, um saber universal de todos os seres humanos.

Reconhecendo a força das narrativas consagradas ao longo dos séculos, a Escola busca

preservar este acervo cultural, transmitindo-o a cada nova geração que, sem dúvida, produzirá

novos sentidos para textos antigos, como nos ensinam os pressupostos teóricos da estética da

recepção. Indicar um título que atravessou a barreira do tempo é mais uma garantia de que a

história lida por diferentes leitores, já recebeu o aval para circular.

7 LOBATO. A Barca de Gleyre, 2o. tomo, p.346

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Uma obra clássica se renova sempre, uma vez que possibilita múltiplas interpretações. Cada

época lê com a ética de seu tempo, elege seus títulos favoritos a partir de uma ideologia

vigente.

Por ser a Escola a principal fomentadora da leitura das obras canônicas, a ela cabe, também,

a responsabilidade de abrir espaços para as paráfrases das referidas obras. Vale lembrar sua

função reguladora, pois várias adaptações e recontos têm sido alterados pelas paráfrases a fim

de atender a um tipo de censura imposto por aquela instituição (Monteiro, 2006). De controle

dos textos, conforme as exigências morais e religiosas, nos fala Chartier (1990) em Textos,

impressos, leituras.

Além das mudanças, atenuações nos temas, a fim de que a narrativa não passe valores e

ensinamentos para os quais, segundo os responsáveis pelo ensino, as crianças e os jovens não

estariam preparados, as paráfrases escritas para o leitor em fase escolar são trabalhadas também

no plano da linguagem.

O primeiro nome lembrado na área de tradução é o do professor Carlos Jansen, alemão

naturalizado brasileiro. Desde logo o professor do Colégio Pedro II percebeu as deficiências no

terreno da literatura infantil e juvenil em nosso país. Em 15 de novembro de 1887, o professor

Jansen escreve uma carta a Rui Barbosa com o intuito de pedir-lhe um prefácio para a

adaptação que fizera de Viagens de Gulliver. O tema foi transformado por Rui Barbosa em

“magnífico ensaio” sobre Swift. Transcreve-se a seguir o trecho da carta, publicada no livro de

1968 – Literatura Infantil – de Leonardo Arroyo:

Como sabe, criei entre nós uma biblioteca juvenil, para ensinar a ler a geração presente. Foram publicados já: Contos Seletos de Mil e Uma Noites, prefaciados por Machado de Assis; Robinson Crusoé, com introdução de Silvio Romero; Dom Quixote, patrocinado por Ferreira de Araújo. Tenho agora no prelo As Viagens de Gulliver, obra de que lhe envio algumas folhas e os cromos que devem acompanhar o texto, – e tenho a ousadia de pedir-lhe uma introdução, como o Sr. Conselheiro, bom amante da instrução, as sabe fazer. (...) Contento-me com as adaptações das boas obras que em original nos faltem.

Cabe citar em nosso breve estudo historiográfico das traduções e adaptações dos clássicos

no Brasil o nome de Figueiredo Pimentel. A importância do referido estudioso se deve ao fato

de ter apresentado uma nova orientação – popular – sobre a literatura infantil e juvenil.

Anteriormente as edições visavam exclusivamente ao público escolar. Ele traduz em 1896

contos de Perrault, de Grimm, e os publica sob o título Contos de Fadas. Na mesma década,

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apresentara os Contos da Carochinha, História da Baratinha, entre outros. Figueiredo Pimentel

foi buscar tais narrativas em livros franceses e portugueses, traduzindo-os e adaptando-os em

linguagem brasileira (Arroyo,1988).

No final do século XIX início do século XX, alguns professores perceberam que a leitura

dos clássicos de várias línguas era “pesada” para as crianças.

O escritor-tradutor-adaptador Monteiro Lobato foi um dos mais importantes do grupo dos

pioneiros, no Brasil, a preocupar-se em levar às nossas crianças os clássicos universais em

linguagem mais acessível a um leitor iniciante. O criador de O Sítio do Picapau Amarelo

entendia a adaptação como atualização de um discurso literário; defendia a nacionalização da

literatura. Como editor, investiu na qualidade gráfica, cuidava da apresentação dos livros,

importou máquinas etc. Entrou no mercado editorial para concorrer com o mercado estrangeiro,

que dominava nosso país.

José Bento Monteiro Lobato já percebia um grande filão editorial: o livro de leitura para a

adoção escolar. Era, pois, um brasileiro escrevendo e editando livros para brasileiros que, antes,

consumiam tão-somente os importados.

Durante a década de 1930, as narrativas que recontavam os chamados clássicos universais

tiveram bastante prestígio, pois finalmente estávamos formando leitores por meio de livros

nacionais e não estrangeiros.

Este sentimento de nacionalidade instalou-se na base das orientações transmitidas aos

professores, porque durante anos houve a recomendação para que a leitura dos clássicos

nacionais ocupasse, soberana, a grade curricular. Este fato contribuiu para o “empobrecimento”

cultural do leitor em fase escolar, uma vez que os clássicos universais permaneceram fora dos

muros escolares em nosso país, tão carente de bibliotecas e livrarias; as poucas existentes se

concentram em grandes centros urbanos.

Não se pode esquecer da rede social no que se refere à formação do professor. Com a

democratização do ensino, as classes menos favorecidas tiveram acesso a cursos antes

procurados pela elite. A desvalorização do papel do professor também é um fator considerado

no processo, porque um professor não-leitor dificilmente conseguirá estimular nos alunos o

gosto pela leitura. A rede é complexa. A má-formação do professor aliada à falta de recursos

(acervo, formação continuada, bibliotecas escolares...) mostra que a maioria dos professores

não está preparada para tarefa tão importante: a de dividir com o outro o seu acervo de leitor.

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Se o mediador desconhece a memória da tradição clássica, como será possível repartir um

conhecimento que não possui?

Viver nesse paradoxo e círculo vicioso é o que revela a realidade da sala de aula. Há que se

trabalhar em diversos lugares; portanto, falta tempo para uma efetiva formação continuada; os

baixos salários não dão muita chance para a atualização dos mestres; os alunos, oriundos de

classes populares, não têm condição de adquirir o material; o sistema governamental é

complexo e emperrado; além disso, a Escola precisa competir como os novos recursos

eletrônicos. Enfim, o professor sabe o quanto é importante o estofo cultural trazido, sem

dúvida, pelas obras canônicas, todavia ele não está devidamente preparado para tarefa tão

desafiadora. Em tal encruzilhada surgem as soluções possíveis. Uma delas é a que provocou

esta pesquisa: trabalhar com a tradição da literatura clássica de acordo com as condições

oferecidas pela sociedade moderna, pela sua conjuntura. A tradução e a adaptação surgem de

uma necessidade social. Ideal seria que lêssemos os textos na íntegra em suas línguas de

origem. Isto, contudo, é utopia. Dar a ler um reconto das obras consagradas ou deixar de fora

do acervo pessoal tais monumentos da tradição cultural da humanidade? O destino dos

clássicos seria ficar reservado a um pequeno grupo dos “escolhidos”? Cada um, como diz Dom

Quixote, “é artífice de sua própria sorte”. Cabe a nós, porém, favorecer a “sorte” dos jovens que

passam por nossas salas de aula. Eis a questão!

1.1 Linguagem babélica: a tradução possível

Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não verbal e em segundo lugar, porque todo signo e toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase. Entretanto, esse argumento pode ser modificado sem perder sua validade: todos os textos são originais porque toda tradução é diferente. Toda tradução é, até certo ponto, uma criação e, como tal, constitui um texto único.

(Otávio Paz8)

Neste ponto, nossas reflexões direcionam-se para outro tema instigante e polêmico:

perdas e ganhos da tradução. Muitos estudos sobre o assunto vêm sendo realizados pelos

pesquisadores da área. Dos vários textos lidos, nossas idéias foram buscar abrigo no ensaio de

8 Apud ARROIO, ROSEMARY:2002, p.11.

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José Paulo Paes, Tradução: a ponte necessária (1990). Com larga experiência, o autor traduziu

textos do inglês, francês, espanhol, italiano e grego moderno. A partir da prática, Paes escreve

suas reflexões sobre aspectos culturais, teóricos e práticos da arte de traduzir. Deixo a voz do

especialista falar com mais competência um pouco sobre a história da tradução no Brasil:

A tradução, entendida como atividade regularmente exercida para atender à demanda literária de um público ledor, não existiu nem poderia jamais ter existido no Brasil colonial. Durante três séculos em que se esteve sob a tutela sufocante do absolutismo português, a vida intelectual do país foi mofina. Interessado tão-só nos produtos agrícolas ou no ouro que daqui extraía, e na exclusividade do mercado de que aqui dispunha para as suas mercadorias, Portugal fez o quanto pôde para manter a sua colônia transatlântica em estado de inferioridade mental. Não só proibiu a instalação no Brasil de uma universidade e de tipografias como também, através de uma censura férrea e de um ensino jesuítico de índole retrógrada e imobilista, cuidou de impedir a circulação de perigosas “idéias estrangeiras”. Se se tiver em conta que o papel da atividade tradutória é precisamente o de pôr as “idéias estrangeiras” ao alcance do entendimento nacional, não será difícil entender por que ela praticamente inexistiu durante nosso período colonial. (Paes, p.11-12).

José Paulo Paes vai explicar o uso do advérbio “praticamente”, apresentando-nos alguns

gestos isolados na atividade da tradução ao longo da história. O primeiro marco apontado pelo

autor está datado em 1618, quando o padre Antônio Araújo prepara e publica, em Portugal, um

Catecismo na língua brasílica. Não é uma obra de natureza literária, pois o texto revelava uma

intenção pragmática, uma vez que deveria servir de instrumento no trabalho missionário da

catequese. Nota-se que a tradução, “ponte” entre duas línguas estrangeiras, atendia à

necessidade de adaptar a doutrina cristã à língua dos silvícolas. Vale observar que, neste caso, a

língua estrangeira era o português.

Outro marco – desta vez com índole literária –, apontado pelo ensaísta, está na obra de

Gregório de Matos; é o que Paes chama de “tradução adaptativa”. Trata-se de paráfrases ou

imitações de Quevedo e Gôngora, realizadas pelo poeta barroco. Os críticos divergiam a

respeito do assunto; alguns consideravam plágios tais trabalhos, outros diziam que os “plágios”

não ficavam devendo nada ao original.

O percurso histórico vai mostrar que, ao final do século XVIII, principalmente entre os

poetas do arcadismo mineiro, a tradução sofre um “arejamento” e as barreiras vão um pouco

além do universo mental português; alargam-se para os amplos horizontes da literatura italiana

e francesa. Cláudio Manuel da Costa traduziu sete peças de Pietro Metastasio, criador do

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melodrama poético; José Basílio da Gama também fez a tradução de um poema de Metastasio.

Muitos textos, como Nova Heloísa, de Rousseau, que, por serem censurados, não puderam ser

editados em livros, foram, porém, traduzidos por dois padres carmelitas da Bahia e circularam,

clandestinamente, copiados à mão.

Foi somente com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808 que nosso país pôde abrir-se

para o mundo, porque, a partir de então, a impressão de jornais e livros tornou-se possível.

Do período romântico vale ressaltar a influência da literatura francesa, com traduções dos

textos de Lamartine e Hugo, entre outros. Dos grandes escritores do romantismo, o destaque

vai para Gonçalves Dias, um dos poucos conhecedores da língua alemã; verteu para o

português textos de Schiller e Heine, além de ser um sensível tradutor de Victor Hugo. José

Paulo Paes recorda que, durante o período romântico, os clássicos não ficaram esquecidos,

informando-nos que, em 1846, na Bahia, João Gualberto Ferreira dos Santos Reis editou a sua

tradução de Eneida . Ofereceu tal obra a D. Pedro II; poliglota, o imperador estudou árabe para

ler As mil e uma noites no original, que começou a traduzir, e hebraico, para conhecer melhor a

história do povo hebreu.

No terreno da prosa de ficção, Paes destaca, ainda no período romântico, o nome de

Caetano Lopes de Moura, considerado nosso primeiro tradutor profissional. Médico por

formação, com residência fixada em Portugal, Lopes sofreu as conseqüências da guerra civil de

1834 e, para sobreviver, dedicou-se profissionalmente à tradução. Na lista dos autores

traduzidos por ele, constam Alexandre Dumas, Walter Scott etc. Estava no auge, na França, o

romance-folhetim, moda seguida com muito entusiasmo em nossa pátria.

Na fase do realismo-parnasianismo, destaca-se o nome de Machado de Assis, tradutor de

poesias, tornando-se célebre sua versão de O corvo, de Edgar Alan Poe. O poema, como sabido,

é um dos mais citados em livros que discutem o tema da tradução, pois são inúmeras as versões

encontradas. Dois grandes autores, no entanto, colocam-se em posição privilegiada na lista dos

tradutores do famoso poema de Poe: um, já citado, é o brasileiro Machado de Assis; o outro,

não menos importante, é o poeta português Fernando Pessoa.

Nos últimos anos do século XIX e no início do XX, período do simbolismo e pré-

modernismo, vê-se a influência de Baudelaire. Eduardo Guimaraens foi o maior tradutor do

poeta francês; dos 158 poemas de As flores do mal, Guimaraens nos brinda com 81 versões

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(Paes, p. 24). Vale citar, ainda como representante desse momento histórico, o nome de João do

Rio, tradutor da peça Salomé, de Oscar Wilde.

A tradução como atividade profissional só encontra condições mínimas para ocupar um

espaço na sociedade no século XX, a partir dos anos 30, porque tal ofício está diretamente

ligado a editores e a leitores. Com o crescimento quantitativo e qualitativo do público-leitor e

com uma indústria editorial verdadeira, tendo como pioneiro no ramo Monteiro Lobato, os

textos estrangeiros puderam chegar até nós. Lobato exerceu o ofício de tradutor por toda a vida;

traduziu Jack London, Hemingway, Saint-Exupéry, entre outros. É considerado o primeiro

escritor brasileiro a reabilitar o gênero tradução, deixando, até então, em total “apagamento” a

identidade do tradutor, quer pelo total anonimato quer pelas simples iniciais de seu nome no

livro.

Muitos são os que seguiram pelas veredas da tradução em nosso país. A editora José

Olympio, do Rio de Janeiro, e a editora Globo abriram as portas para este novo produto. Nomes

como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queirós, José Lins do Rego,

Rubem Braga etc. surgem nos estudos sobre o tema.

Uma breve releitura dos autores-tradutores citados nos leva a uma conclusão óbvia: os que

mais demonstram competência na arte de traduzir são os escritores que dedicaram parte de seu

tempo à tarefa de “recriação tradutória” (Paes, p.31). Isto porque as duas atividades se

entrecruzam. Criar um texto original ou recriar uma obra produzida em outra língua,

traduzindo-a, são gestos que exigem as mesmas competências. Talvez seja este um dos motivos

de a nossa memória reter os nomes de escritores e apagar os dos tradutores.

Em Arrojo (2002) encontramos três princípios básicos da boa tradução, apresentados por

Alexander Fraser Tytler e, segundo a autora, ainda exemplares. O primeiro diz que a tradução

deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; o segundo afirma que o estilo da

tradução deve ser o mesmo do original; e o terceiro recomenda: a tradução deve ter toda

fluência e a naturalidade do texto original (p.13).

Para ilustrar suas reflexões sobre os princípios apontados por Tytler, Rosemary Arrojo

recorre ao famoso conto de Borges: Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, o autor discute os

mecanismos de linguagem no processo de tradução. O projeto do personagem Menard, poeta e

tradutor, é pretensioso e impossível, pois pretende recuperar não apenas a totalidade do texto

de Cervantes, mas também o contexto em que fora escrito (p.19); talvez por isso Menard chame

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esse trabalho de obra “invisível”. Para que seu objetivo fosse alcançado, o tradutor pensa em

transformar-se em Cervantes, isto é, conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica,

guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de

1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes (Borges, 2001, p.57-58). Menard abandona o projeto

e se impõe a tarefa de repetir um texto estrangeiro, escrito em outra língua, por um outro autor

e num outro momento, sem deixar de ser ele próprio, isto é, sem poder anular seu contexto e

suas circunstâncias (Arrojo, p.20). O que nos ensinam as palavras ficcionais de Borges? Que

traduzir não é simplesmente transportar significados de uma língua para outra; até porque o

significado apresentado pelo texto na língua de partida só pode ser determinado no momento da

leitura; portanto, é provisório. O texto funciona como “máquina de significados em potencial”.

A autora de Oficina da tradução: a teoria na prática afirma:

O “palimpsesto” passa a ser o texto que se apaga, em cada comunidade cultual e em cada época, para dar lugar a outra escritura(ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do “mesmo” texto. Assim, como nos ilustrou o conto de Borges, o texto de Dom Quixote não pode ser um conjunto de significados estáveis e imóveis, para sempre “depositados” nas palavras de Cervantes O que temos, o que é possível ter, são suas muitas leituras, suas muitas interpretações – seus muitos “palimpsestos”. A tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que protege os significados “originais” de um autor, e assume sua condição produtora de significados; mesmo porque protegê-los seria impossível, como tão bem (e tão contrariamente) nos demonstrou o borgiano Pierre Menard. (p. 22-23)

Para endossar as idéias apresentadas até aqui, vale trazer as palavras de Jaques Derrida em

Torres de Babel: A tradução não buscaria dizer isto ou aquilo, a transportar tal ou tal

conteúdo, a comunicar tal carga de sentido, mas a remarcar a afinidade entre as línguas, a

exibir sua própria possibilidade. (2002, p.44).

Falar de tradução é falar de reescritura, de equivalência, de relação intersubjetiva, de

apagamento do sujeito-tradutor; enfim, a teoria é ampla, porém, para o objetivo do trabalho, as

idéias apresentadas até aqui nos parecem suficientes para nos transportar a outro ponto: o das

adaptações.

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1.2. Linguagem parafrástica: a adaptação necessária

Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem. Monteiro Lobato

Quando procuramos nas páginas da internet textos que apresentem a discussão sobre obras

adaptadas, surgem várias opções de leitura, no entanto, a maioria delas trata das adaptações

para cinema. Grande parte dos estudos lidos sobre o assunto revela que a crítica, em geral,

reconhece que um texto literário perde muito quando transposto para o código fílmico. A

palavra, quando trabalhada esteticamente, plena de plasticidade, é soberana e insubstituível. O

bom cinema, todavia, ajuda a divulgar as tradicionais histórias constituintes de nosso acervo

cultural.

É consensual a idéia de que não existe permanência sem mutação. Os clássicos

permanecem porque são forjados em discurso literário, que se atualiza sempre. Embora possa

parecer paradoxal, acredita-se que as obras canônicas são duradouras exatamente por sofrerem

(pequenas) mudanças, tanto na forma quanto no conteúdo, de acordo com o meio sociocultural,

marcado por um tempo em determinado espaço. É na adaptação para as telas que encontramos a

maioria das transgressões; mudanças bruscas e violentos cortes são defendidos com o

argumento da atualização e da adequação ao momento, ao público-alvo etc.

Não nos é possível enveredar pelas sedutoras trilhas do cinema. A atenção volta-se para o

texto literário e suas respectivas paráfrases também literárias.

Defende-se a necessidade das adaptações, paráfrases, recontos e quantos mais

substantivos pudermos encontrar para o exercício de apresentar o clássico literário a um leitor

que ainda não dispõe de material lingüístico e enciclopédico para interagir com obra de grande

porte, pois

A leitura dos clássicos universais é fundamental. Por meio da aproximação da grande tradução literária, conhecemos as histórias empolgantes de que somos feitos. Lidos preferencialmente na infância ou na adolescência passam a fazer parte indissociável da bagagem cultural e afetiva incorporada pela vida afora, ajudando-nos a ser quem somos, construindo a personalidade. As paixões, as aventuras, os sentimentos, as ações, qualidades e defeitos do gênero humano estão

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todos lá, à espera de resgate, da maneira peculiar de cada leitor buscá-los. Matéria inesgotável para reflexão, contribuem para a formação do indivíduo ético, tocando o íntimo da sua natureza humana.

(Pereira: 2005)

As palavras de Maria Teresa Gonçalves Pereira ecoam as idéias de Ana Maria Machado,

de Monteiro Lobato, de Carlos Heitor Cony, de Marina Colasanti, de Ferreira Gullar e de

tantas vozes que se colocam a favor de um texto intermediário, um texto que prepararia o

leitor para o verdadeiro encontro com a obra integral, ordenada, eminente em seu gênero.

A necessidade das adaptações para o público juvenil está diretamente ligada à formação

de uma bagagem cultural. A leitura dos clássicos (adaptados ou não) nos possibilita um

acesso mais tranqüilo a textos posteriores, uma vez que a intertextualidade é um recurso

bastante utilizado por todos os autores; é comum encontrarmos alusões e referências àquelas

obras. Só pode perceber o jogo intertextual o leitor que tiver posse do texto-base, aquele de

onde partiu o autor para dialogar com o passado, trazendo-o de volta de maneira renovada,

em forma de fábula ou de relato.

Os postulados da narratologia, apresentados por Mieke Bal (2002), crítica literária, foram

trazidos por Monteiro (2005), que os adequou aos estudos das adaptações. Ele resume com

clareza as idéias de Bal e mostra os três níveis básicos de narrativa apresentados por ela:

fábula (fabula), relato (story) e texto (text). Na fábula, os acontecimentos aparecem descritos

e obedecem a uma ordem cronológica; no relato, não há a preocupação com a cronologia, ele

pode ser apenas um recorte ou um resumo; no texto, o relato é tratado de modo a alcançar o

máximo de valor estético. Para Mário Monteiro

As adaptações escolares baseadas em clássicos da literatura, por serem paráfrases, não se referem mais aos textos anteriormente escritos (e canonizados), mas aos relatos e às fábulas pré-existentes. As melhores adaptações do ponto de vista literário são as que se referem aos relatos (stories). As que se propõem a ser meramente fábulas, mesmo que corretas e válidas pedagogicamente, são as que tendem a ser classificadas como medíocres. (Monteiro, p.13)

O processo de adaptação muito se parece com o de tradução, pois ambos são processos de

produção de um novo texto; no caso das paráfrases, a tradição é apresentada de maneira

atualizada no contexto histórico no momento da produção.

Talvez pudéssemos, ainda uma vez, destacar a estratégia discursiva dos textos em foco.

No caso da tradução, percebe-se a intenção do tradutor: “apagar-se”. Parece que ele deseja dar ao

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leitor a impressão de que estaria lendo o original. Em geral os nomes dos tradutores são

desconhecidos; é possível que se compre (leia) o livro pela “grife” do autor.

Já no caso da adaptação, o caminho iria na direção contrária: a “marca” valorizada seria

a do escritor-adaptador. A autoridade, expressa pelo nome de quem adapta, convence o leitor a

ler a obra. A tradução ganha credibilidade se realizada por escritor de reconhecido valor literário.

Se, por exemplo, Clarice Lispector ou Ferreira Gullar traduziram, então o texto deve ser bom,

pois são grandes escritores.

2. Clássicos adaptados: forma e conteúdo em questão

De tanto escrever para elas [as crianças], simplifiquei-me, aproximei-me do certo (que é o claro, o transparente como o céu).

Ah, Rangel, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não compreender isso e considerar a criança “um adulto em ponto pequeno”, é que tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno.

Monteiro Lobato

Como vimos na seção anterior, Carlos Jansen e Figueiredo de Pimentel já demonstravam, no

século XIX, preocupação com textos lidos por crianças e jovens. Com a escolarização da leitura,

Monteiro Lobato, no século XX, passa a se ocupar do material oferecido aos jovens leitores; o

escritor-editor torna-se o grande responsável pela execução dos planos iniciados pelos ilustres

estudiosos.

Adequar o conteúdo dos clássicos universais, atualizando a forma para expressá-lo com

clareza, foi proposta apresentada e defendida, com galhardia, por Lobato ao longo de toda sua

vida. Por esta razão, o autor de Emília no país da gramática mereceu ocupar um espaço bastante

generoso na pesquisa. Ele é fonte obrigatória para quem deseja compreender o processo de

adaptação dos clássicos para leitores iniciantes. Sua crítica ácida aos dogmas da gramática

perpassa pela obra inteira. Emília, ao visitar o país da gramática, expressa as dúvidas de muitos

leitores. Ela é transgressora e propõe modificações radicais no sistema da língua.

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Lendo as cartas de Lobato, principalmente as endereçadas a Godofredo Rangel, percebe-se a

preocupação do “pai da literatura infantil brasileira” em escrever para um público cuja

competência lingüística ainda se encontra(va) em processo de desenvolvimento.

Nas primeiras décadas do século XX, as histórias estrangeiras chegavam pelas traduções

portuguesas. A língua de Portugal era muitas vezes uma barreira para leitores brasileiros,

porquanto apresentava palavras desconhecidas em nossa variedade. Outras vezes o leitor caía em

verdadeiras armadilhas, quando se defrontava, por exemplo, com palavras iguais, porém de

significados diferentes.

Lobato desejava que os brasileiros compreendessem a essência das histórias. Em 1925,

escreve a Rangel: Estou a examinar os contos de Grimm, dados pela Garnier. Pobres crianças

brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem.

(1959, p.275).

Eis o seu propósito: dar ao público a oportunidade de conhecer os clássicos na língua

portuguesa do Brasil. Lobato, como tradutor ou como adaptador, deixa marca própria, pois

elabora o texto com a mesma artesania apresentada em seus trabalhos autorais.

A amizade com Anísio Teixeira, comprovada pela alentada correspondência entre os dois,

propicia um olhar para o universo infantil, provocando uma reflexão sobre o papel da Escola na

formação dos brasileiros. Em carta de 1934 a Francisco José de Oliveira Viana, professor de

Direito, Ministro do Tribunal de Contas da República, membro da Academia Brasileira de Letras,

o autor de Emília no país da gramática afirma:

Há caminhos novos para o ensino das matérias abstratas (...). O livro como temos tortura as pobres crianças – no entanto poderia diverti-las, como a gramática da Emília o está fazendo. Todos os livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra infantil. A química, a física, a biologia, a geografia prestam-se imensamente porque lidam com coisas concretas. O mais difícil era a gramática e é a aritmética. Fiz a primeira e vou tentar a segunda. O resto fica canja. (1986, p.96)

O projeto lobatiano demonstrava o desejo de luta contra a educação proposta pelos

“pedagogos reformadores”. Estava nos planos do autor fundar um Centro de Educação Moderna,

caso ficasse rico. O inconformismo e a esperança eram companheiros do homem que, em

diversos momentos, usava o recurso da ironia para dizer “verdades”. Nem mesmo nas situações

mais sérias, abandonava o tom sarcástico.

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No ano de 1911, em carta a Rangel, anuncia: fundei aqui um colégio para aproveitar

duas coisas: um casarão imenso deixado pelo meu avô e um parente que não conseguiu estudar.

Que fazer de quem não conseguiu aprender, senão pô-lo a ensinar? (1o. tomo, p.305).

Ao escrever para Anísio Teixeira, reconhece o valor do educador baiano: Você é o líder,

Anísio! Você é quem há de moldar o plano educacional brasileiro (...) Com escolas

especializadas, com jornais e revistas, com casa editora, com livrarias, com cinema, com

estação de rádio própria, com estação teleemissora de imagens... 9 (1986, p.100-101).

No trecho da carta, observa-se a visão bastante moderna de educação. O reconhecimento

da importância de se trabalhar com diferentes linguagens, em sua multiplicidade de códigos com

os quais o indivíduo convive no cotidiano, revela a profissão de fé de um homem que não se

resignava à inércia cultural de um país grandioso como o Brasil.

Leituras – no plural – preconizava José Bento Monteiro Lobato. Defensor de diferentes

suportes, preocupou-se, desde cedo, com o problema da leitura na infância. Não tardou em

perceber a importância da leitura de entretenimento para a educação das crianças; em 1920, a

editora e gráfica Monteiro Lobato lança o álbum ilustrado A menina do narizinho arrebitado. Ele

próprio distribuía seus livros pelas escolas. Os textos do grande contador de histórias foram,

porém, alterando sua rota: de pura imaginação para a preocupação com o ensino. Sem abandonar,

contudo, o mundo do divertimento, passa a “ensinar matérias escolares”: História (História do

mundo para as crianças), Geografia (Geografia de Dona Benta), Gramática (Emília no País da

Gramática), Aritmética (Aritmética da Emília). Como afirma Cassiano Nunes, na introdução do

livro Monteiro Lobato Vivo (1986), fazendo referência às palavras de Lúcia Miguel Pereira:

Lobato dera de maneira brilhante a sua contribuição ao modernismo brasileiro. Note-se que Lobato realizou sua literatura infantil instigado por três necessidades: a de influir espiritualmente no país; a de se manter e manter também suas campanhas ruinosas, e, por fim, a de se esquecer das angústias da vida, se divertir. (p.18)

Para atingir seus objetivos, o escritor lança mão de todas as possíveis influências capazes

de interferir no universo infantil. Voltou-se então, na série Sítio do Picapau Amarelo, para as

adaptações de textos infantis: Peter Pan e os piratas, Os trabalhos de Hércules, Hans Staden. Já

no primeiro volume da obra, Reinações de Narizinho, os personagens do sítio vão ao país das

9 Grifos nossos

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fábulas e lá encontram La Fontaine e Esopo. Ele não deixou de fora os desenhos animados. Traz

ao sítio o Gato Félix e o marinheiro Popeye.

Em O Picapau Amarelo, o leitor vê desfilar personagens do mundo fantástico: Pequeno

Polegar, Hänsel e Gretel, Alice, Barba-Azul, Sherazade, Menina da Capinha Vermelha, Gata

Borralheira, Branca de Neve, Capitão Gancho, Barão de Münchausen... Para o sítio foram,

também, personagens da mitologia grega: Medusa, Perseu, Rei Midas, Centauros, Netuno...

O sítio de Dona Benta apresenta-se como um espaço democrático, pois abriga todos, sem

preconceitos. As vozes de adultos e crianças se misturam, assim como as histórias universais.

Dos hóspedes do sítio, a dupla Dom Quixote e Sancho Pança recebe um tratamento especial por

parte do narrador e de Emília que, entusiasmada, declara: Acho Dom Quixote o suco dos sucos. A

loucura chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes interessantes que há no

mundo. (Picapau Amarelo, p.169). Os personagens cervantinos foram homenageados por Lobato

com o livro Dom Quixote das crianças, escrito especialmente para contar a história do Cavaleiro

Andante. Sobre tal obra reservamos adiante uma seção especial.

Dona Benta recebe em sua casa o Cavaleiro de la Mancha. Ele, agradecido, dirige

algumas palavras à velha senhora: _ Ilustre dama – disse ele –, muito me penhora a gentileza de

tão alta acolhida. O vosso palácio me será de repouso e o vosso convívio me demonstrará que o

mel da bondade ainda flui dos nobres corações. (idem, p.170).

Neste ponto fica bastante clara a intenção de Lobato: refletir sobre o uso de diferentes

formas de linguagem, pois a fala seguinte é de Emília que, cochichando com Narizinho, critica o

modo de falar do herói espanhol: _ Que mania a dele falar complicado! _ É estilo antigo –

explicou a menina. – As palavras de dantes dançavam o minueto e usavam anquinhas e saias-

balão. Eu não entendo lá muito bem, mas gosto. (ibidem, p.170).

É recorrente na obra o valor dado aos bens culturais da humanidade. Lobato pretende

(re)apresentar os textos fundadores da nossa história, aqueles que formam a base do saber

universal. Em seu discurso, traz à cena, sempre que possível, temas relevantes para a reflexão. Ao

pedir a Belerofonte que falasse de sua vida, da vitória sobre a Quimera, Emília nos leva a

Homero, “um cego que andava pelas ruas contando histórias” (Picapau Amarelo, p.200). Lobato

põe diante dos leitores jovens o grande poeta da Antigüidade e os principais poemas daquela

época –Ilíada e Odisséia. Aí está mais uma oportunidade para o escritor passar suas crenças, suas

ideologias. Pela voz do herói grego, ouvimos o recado de Monteiro Lobato:

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_A Ilíada e a Odisséia!10 Vovó já nos falou neles. _Mas não basta conhecê-los de nome – observou o herói; – é preciso lê-los. _ Vovó diz que ainda é cedo – que há uma leitura para cada idade. _ E tem razão. Realmente ainda é cedo para vocês compreenderem Homero – disse o grego. (idem, p.200)

Emília, irreverente como sempre, interrompe a fala do herói grego e pede que ele conte as

aventuras para vencer a Quimera, apagando-lhe o fogo. Belerofonte começa, então, a buscar

velhas recordações a fim de descrever a cena em que se bateu contra o hediondo monstro de três

cabeças – uma de leão, outra de cabra, outra de serpente. O grego relata que, em sua época, era

comum os jovens saírem em busca de aventuras. Mais uma vez a boneca de pano interrompe para

comentar: _Tal qual o Senhor dom Quixote – lembrou Emília. –Ele também varejava a Espanha

atrás de aventuras – mas apanhou demais, o coitado. Cada sova... (ibidem, p.201).

Devemos destacar a habilidade discursiva do grande escritor. Observa-se a preferência

pelo diálogo, marca do estilo de Lobato. O uso de tal estratégia é intencional, por reconhecer que

a narrativa fica mais “viva”, uma vez que dela todos podem participar, opinando, questionando,

discutindo pontos de vista. A fusão do novo e do velho é outro recurso bem utilizado. No mesmo

episódio em que Belerofonte é protagonista, ouvimos a voz de Pedrinho, neto de Dona Benta,

trazendo notícias do mundo moderno; ele fala em Mauser, em bala dundum, em lança-chamas

usados pelos alemães na guerra. Percebe-se a troca de saberes entre tradição e modernidade.

Preocupado com os dois extremos da cultura, Lobato intercala forma e conteúdo da

tradição com forma e conteúdo da modernidade. Dona Benta, para ampliar o repertório de

contadora de histórias, escreve a um livreiro em São Paulo a fim de fazer algumas encomendas.

Ao grito de Nastácia: __ É hora!, todos corriam para ouvir as histórias contadas/lidas pela avó

que, como ninguém, sabia adequar a linguagem a seus interlocutores: _ Leia da sua moda, vovó! – pediu Narizinho. A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia“fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele” – e ficava o dobro mais interessante.

(Reinações de Narizinho, p. 194)

10 Grifamos os títulos das obras para distingui-los do restante do texto.

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Com Lobato, o livro para adoção escolar nacionalizou-se. A alma do povo do Brasil se

fazia presente. Nada escapava ao humor de Emília. Por meio de paródias, os personagens do Sítio

exerceram forte influência sobre os “forasteiros” da literatura estrangeira.

Monteiro Lobato escrevia para crianças com o desejo de contribuir para que elas fossem

adultos melhores. A fim de alcançar seus objetivos, traduzia e adaptava para o público jovem os

clássicos universais, como Pinóquio, Contos de Grimm, Andersen, Robinson Crusoé. Ele não

fazia a tradução literal; realizava uma “ordenação literária” do texto. Garantem os especialistas

que, às vezes, as traduções de Lobato superavam os originais. A preocupação com a forma e com

o conteúdo era constante. Não banalizar, não reduzir as obras recontadas, era o principal objetivo

do consagrado escritor paulista, que desejava colaborar na formação de indivíduos críticos.

Muitos jovens e crianças questionam a linguagem usada por Monteiro Lobato.

Considerada difícil por uns, é muitas vezes empecilho para a leitura da obra. Há que se refletir

sobre as múltiplas possibilidades do leitor diante da diversidade de mídias. O menino de hoje não

é o mesmo do século XX. Os clássicos, porém, continuam a nos encantar, desde que apresentados

em “embalagem” mais atual, daí publicações em quadrinhos, adaptações para cinema, TV,

teatro... Não nos devemos esquecer, todavia, da lição do criador da boneca falante: Um país se faz

com homens e livros. (América, p. 45)

Recomenda-se, então, que, seguindo as trilhas de Monteiro Lobato, levemos aos leitores

em formação livros em que os leitores tenham vontade de morar (1959, 2o. tomo, p.293).

Para que as crianças e jovens, principalmente, se interessem por ler um livro, é

fundamental a linguagem não funcionar como barreira; usar modos de dizer que se aproximem do

leitor iniciante. Tal postulado pode ser conferido na extensa obra lobatiana. À guisa de

exemplificação, destacamos algumas passagens em que a modalidade oral da língua se faz

presente, quer pelo uso de variantes mais prestigiadas quer pelo uso de falares mais populares.

É pela utilização dos mecanismos de linguagem que aproximamos a obra de Cervantes à

de Lobato. Veremos, inicialmente, o funcionamento da língua no discurso literário lobatiano.

Destacamos uma série de fragmentos para exemplificar os jogos com as palavras, as construções

de valor estético; enfim, o fazer artístico do autor. Mais adiante, procederemos à análise

lingüístico-discursiva do reconto Dom Quixote das crianças, fazendo um cotejo entre o texto

original e sua respectiva adaptação. Tal análise nos possibilitará perceber o quanto se

aproximam, pela linguagem, os personagens Sancho e Tia Nastácia. Distantes pelo tempo e pela

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geografia, ambos são egressos das camadas populares. Cervantes e Lobato se aproximam no que

tange ao trabalho com a linguagem, porquanto usam recursos semelhantes.

Tia Nastácia, a negra empregada de D. Benta, se expressa em língua do “povo”, do

segmento não escolarizado:

_Acuda, sinhá! Estão pulando pela janela! Olhe quem está atrás de mecê! Um bichinho de óculos, que é verdadeiro “felómeno...” (Reinações de Narizinho, p.122)

A maneira de se expressar da negra Nastácia é bem característica de um grupo brasileiro.

O uso do substantivo “sinhá” – forma de tratamento com que os escravos designavam a senhora

ou patroa – consta no dicionário como regionalismo de uso informal. O pronome de tratamento

“você” é encontrado, também, na forma “mecê”: uso informal da língua em determinadas regiões

do Brasil. Lobato destaca com aspas a palavra fora dos padrões da língua: “felómeno”.

Café, criançada! Seu “Bolorofonte”, café!... (Picapau Amarelo, p.229)

A dificuldade em pronunciar palavras novas e “difíceis” leva a um equívoco, o que

provoca o riso. Neste caso – uso de Bolorofonte no lugar de Belorofonte – um leitor mais

proficiente vai jogar com a idéia de “bolor”, o que proporcionará um tom de humor no texto,

pois o herói grego estaria embolorado, mofado e, por extensão de sentido, ultrapassado, obsoleto.

1. _São eles, sinhá. Vem tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria... (Reinações de Narizinho, p.282)

No uso mais cuidado da língua, Nastácia deveria dizer “Vêm todos encarapitados em um

burro”. A negra, todavia, desconhece as regras da gramática de prestígio, da variante das pessoas

escolarizadas. 2. _ Nossa Senhora! Isto vai virar “hospiço”. (Picapau Amarelo, p.156)

Tia Nastácia revela desconhecimento da pronúncia correta – segundo a variante de

prestígio – da palavra “hospício”.

3. _Sei, porque quando um canta um número os outros não “correge”. _Corrigem, boba. Correge é errado. (Aritmética da Emília, p.228)

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As crianças revelam maior conhecimento no trato da língua de prestígio. Têm consciência

do “certo” e do “errado” no uso da língua. Vale ressaltar que a Lingüística ainda não havia nos

ensinado a observar o valor das variedades da língua. O espaço reservado à linguagem do “povo”,

todavia, denota uma abertura para diferentes modos de dizer; o discurso popular adentra o

universo literário pela pena dos escritores pré-modernistas e modernistas.

4.Pois é este Senhor Visconde que está me bobeando – explicou a negra. _Eu aqui quieta escamando estes lambaris para o almoço, e o “estrupício” aparece de livrinho na mão e começa a mangar comigo, com uma história de “seno” de “coseno” e não sei que história de “mangaritmos”. Eu estou cansada de dizer que não sei inglês, mas o diabo parece que não acredita...

_“Mangaritimos!” –exclamou o Visconde erguendo os braços para o céu – e plaft! Caiu por terra com ataque.

(Reinações de Narizinho, p.223)

Mais exemplos de linguagem informal: bobear = enganar; de regionalismo: estrupício =

coisa despropositada; de desobediência à regência verbal canônica: mangar (de) = caçoar,

debochar; de formações neológicas: mangaritmos e de onomatopéia: plaft.

A língua é um tema recorrente na obra de Lobato. Em Caçadas de Pedrinho, flagramos, a

partir de uma reflexão sobre a origem indígena de algumas palavras, o seguinte diálogo:

_Por que não falamos no Brasil a língua dos índios, em vez da portuguesa? Não era a língua natural da terra? _Quando numa região se chocam dois povos, como aqui, vence a língua do mais forte. Os portugueses suplantaram os índios; era natural que predominasse a língua portuguesa sobre a tupi. Mas a nossa língua brasileira, a que familiarmente falamos e serve sobretudo às populações no interior do Brasil, é uma verdadeira mistura do português e tupi, três quartos de português para um de tupi. _É verdade, vovó, que a nossa língua é a mais bonita e rica de todas? _É, sim, minha filha, para nós; para os ingleses é a inglesa; para os franceses é a francesa, e assim por diante. Para os índios a mais bela está claro que seria o tupi. (p.120-121).

Defesa de livros de diálogos e figuras engraçadas:

_Venha ver, Emília, quanta letra saiu de dentro do coitado – disse a menina indo ao quintal despejar o balde. _Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros. os únicos que não fazem mal são os que têm diálogos e figuras engraçadas. (Reinações de Narizinho, p.225)

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Sobre livros e leituras:

_ Mas eu li! – gritou Emília. _E que tem que você tenha lido, bonequinha? O fato de a gente ler uma coisa não quer dizer que seja exata. Os livros mentem tanto como os homens. (Picapau Amarelo, p.227)

O discurso de Emília é outra fonte interessante para análises lingüísticas. A boneca

tagarela, entretanto, não sé dá por vencida, não gosta de ceder; sempre encontra um jeito de

defender suas idéias. Ela tem algumas dificuldades com as palavras, o que se pode justificar pelo

fato de ser boneca de pano. Situada entre o mundo humano infantil e o mundo dos objetos, a

criaturinha está autorizada a dizer tudo; as asneirinhas de Emília são explicadas pelas

características da personagem. Em Reinações de Narizinho, Dona Benta propõe um concurso

para encontrar idéias novas. Vejamos como se comportou a Marquesa de Rabicó:

_Não é “círculo”, Emília, nem “escavalinho”. É circo de cavalinhos. _Mas toda gente diz assim –retorquiu a teimosa criaturinha. _Está muito enganada. Eu também sou gente e não digo assim. O Visconde, que está quase virando gente, também não diz assim. Emília teimou, teimou, e por fim acabou aceitando a metade da emenda. _Já que a senhora “faz tanta questão”, fica sendo circo de escavalinho. Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida. _É que a senhora não está compreendendo a minha idéia – explicou. _ Escavalinho é o nome do diretor do circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte Escavalinho da Silva, está entendendo? (p. 222).

Mais uma vitória para Emília que recorre, intertextualmente, a outro personagem do

folclore nacional cuja marca é a esperteza: Pedro Malazarte!

Durante a apresentação do circo, acontece um imprevisto; para resolver a situação,

Narizinho entra no picadeiro com uma tabuleta, em que se lia a palavra “intervalo”.

_Intervalo tem dois LL! – gritou o Pequeno Polegar que era partidário da ortografia antiga, a complicada. (idem,p.245).

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Emília já revela sua forte personalidade desde os primeiros momentos em que começa a

falar; é determinada, teimosa:

_ Vou lá –dizia ela – e agarro nas orelhas da Dona Carocha e dou um pontapé naquele nariz de papagaio e pego o Polegada pelas botas e venho correndo. Narizinho ria-se, ria-se... _Vai lá onde, Emília? _Lá onde mora a velha. _E onde mora a velha?

A boneca não sabia, mas não se atrapalhava na resposta. Emília nunca se atrapalhou nas

suas respostas. Dizia as maiores asneiras do mundo, mas respondia.

_A velha mora com o Pequeno Polegada.

_Polegar, Emília;

_ PO-LE-GA-DA! (Reinações de Narizinho), p.32)

Por meio da boneca e de Tia Nastácia, principalmente, Lobato cria neologismos,

onomatopéias, “desobedece” às regras da gramática canônica; “brinca” com o idioma. Passa,

implicitamente, aos leitores que a língua não é um sistema fechado; mostra que cada falante pode

manipular as palavras, jogar com elas, estimulando o ludismo da linguagem, enfim.

Inúmeros são os exemplos da criação na/com a linguagem encontrados na obra. Além dos

citados anteriormente, vale apresentar mais alguns de Emília: Vossa Cavalência (Reinações

Narizinho, p.199); Vossa Serência (Emília no país da gramática, p.60); deixe-se de fedorências...

(idem, p.99).

Voltaremos a explorar a forma dos textos lobatianos mais adiante, quando analisarmos a

linguagem de Lobato no reconto da obra de Cervantes. Em Dom Quixote das crianças, novas

reflexões serão trazidas, com o propósito de reiterar o que dissemos até aqui em relação ao

discurso produzido pelo escritor-tradutor-adaptador José Bento Monteiro Lobato, para quem, na

voz de Quindim, A língua é uma criação popular na qual ninguém manda. Quem a orienta é o

uso e só ele. (Emília no país da gramática, p.155)

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2.1 Nas dobras da memória, na ponta da língua:

Rei Artur, Robinson, Alice...

Por que alguns textos ficam para sempre armazenados em nossa memória? Talvez esta

seja, provavelmente, uma indagação feita pela maioria dos leitores. Porque falam de temas

universais, dizem uns; porque são capazes de emocionar, afirmam outros; porque são atualizados,

defende um terceiro grupo. Enfim, muitas são as razões para que as histórias se imortalizem, se

perpetuem. Um par responsável por manter vivas personagens, eternizando-as, é, decerto, o

binômio transformação/continuidade ou, nas palavras de Mário Monteiro, mutação e

permanência (2006). Indissociáveis, quando o assunto gira em torno dos clássicos, porquanto

para se imortalizar, para permanecer ao longo dos tempos, uma narrativa freqüentemente sofre

modificações no plano da forma e do conteúdo.

Cabe chamar a atenção para o fato de muitas histórias clássicas circularem entre crianças

pequenas, que jamais tiveram acesso a livros com histórias de heróis universais. Qual a forma de

acesso deste público à narrativa? Evidentemente que a recepção é por meio de um contador de

histórias – avós, pais, tias, babás, professores etc. São muitas as oportunidades de se transmitir

um conhecimento guardado na memória. No caso dos pequeninos, a transmissão acontece pela

oralidade, estratégia utilizada no passado, e não só para crianças.

As influências da comunicação de massa no mundo moderno contribuem para a

manutenção de obras canônicas. Quanto ao recurso da oralidade, sabemos que certas histórias

viajam no tempo; transmitidas por várias gerações, podem sofrer ajustes, mutações, acréscimos,

reduções.

O mesmo ocorre quando um livro é transposto para outros códigos: história em

quadrinhos, cinema, TV... Antigamente o desafio do cinema era contar uma história já lida pelo

público. Hoje, tanto o cinema quanto a televisão encontram entre seu público-alvo um grande

contingente de interlocutores que não leram a obra anteriormente. Há, portanto, uma inversão no

percurso: em geral, assiste-se primeiramente ao filme, à minissérie, ao desenho animado, para,

depois, ler o livro, caso haja estímulo e motivação. Personagens memoráveis são aqueles que

extrapolam a realidade. Uns marcam sua presença em nosso acervo de leitura pela excentricidade,

outros pelo caráter, alguns se destacam pelo inusitado, pelo inesperado. Via de regra, são seres

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valentes, perseverantes em seus propósitos; participam de aventuras, tragédias, comédias capazes

de espelhar de maneira contundente as nossas audácias ou covardias. O mistério é outro

ingrediente a colaborar com a manutenção da imagem viva de certas figuras consagradas pelos

séculos.

Tomemos, como exemplo, Rei Artur com seus cavaleiros reunidos em volta da távola

redonda, traçando estratégias para encontrar o Santo Graal. Reis, rainhas, cavaleiros dominam o

imaginário. As aventuras do rei Artur conquistam o leitor que segue os passos do herói, sofrendo

com ele a cada batalha, espantando-se com a genealogia do rei, aventurando-se atrás do Santo

Graal – imagem emblemática do mundo religioso. Artur mexe com nossa sensibilidade de

diferentes maneiras, pois todos temos uma história familiar, vivemos grandes amores, lutamos

por nossos ideais. Além disso, que maior sedução a da espada poderosa, Excalibur, entregue pela

Dama do Lago ao que possui glória eterna.

Alice nos arrebata pelo tanto de fantástico que apresenta. Suas aventuras ficarão alojadas

para sempre na memória do jovem leitor.

Robinson Crusoé, por sua vez, espanta-nos por ser resistente à solidão, pela coragem de

continuar vivendo após um naufrágio, buscando solucionar as situações mais inusitadas. A

criatividade do protagonista serve de modelo aos jovens, dando-lhes verdadeira lição de vida.

Gulliver vive no imaginário coletivo devido às suas peripécias na ilha de Lilliput, terra

dos pequeninos, ou em Brobdingnag, terra dos gigantes... O romance satírico do pastor anglicano

Jonathan Swift (1976) critica a política e os costumes ingleses da época.

Robin Hood, herói também inglês, um fora-da-lei, que roubava dos ricos para dar aos

pobres, vive na floresta de Sherwood, à margem da sociedade. De autor anônimo, a história é

transmitida como “verdadeira”. Segundo contam, o protetor dos saxões teria vivido no século

XIII. A lenda foi escrita por Walter Scott e esta versão espalhou-se pelo mundo. No Brasil, são

inúmeros os recontos da história do “justiceiro”. Monteiro Lobato, Joel Rufino, Pedro Bandeira

são alguns autores que ajudaram a perpetuar as façanhas do ladrão Robin Hood.

A título de curiosidade, vale lembrar um episódio, acontecido no Rio de Janeiro, em que

estava envolvido um marginal cujo apelido era “Robin Hood do tráfico”.

A lista é infinita, mas cabe trazer o personagem criado por Alphonse Daudet: Tartarin de

Tarascon. Tartarin era um burguês pacato, vivia numa cidade francesa, Tarascon, de onde nunca

saiu. Sua história tem muito de semelhante à de Dom Quixote. O Cavaleiro Andante é de la

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Mancha, Tartarin é de Tarascon; o herói de Cervantes possui grandes conhecimentos livrescos, o

de Daudet também. Personagem picaresco cuja mente cria ficções. Por meio de suas ilusões, ele

transmite simplicidade, poesia e humor para leitores de todas as idades.

Ulisses (Odisseu) luta na guerra de Tróia, vence o inimigo, principalmente pela astúcia.

Ao lançar a idéia do gigantesco cavalo de madeira, dentro do qual estariam alojados vários

gregos, prontos para atacar os troianos, Ulisses passa a ter um lugar de destaque entre seus pares.

Outro fator de sedução é a longa viagem que empreende de volta a sua cidade – Ítaca;

enfrentando provas e desafios preparados pelos deuses, ele se depara com verdadeiros rituais de

passagens. O leitor se solidariza com Ulisses, torce pelo retorno do herói ao lar, onde o

esperavam Penélope e Telêmaco – respectivamente mulher e filho do rei grego –, e para que

vença seus adversários.

Na Bíblia, há histórias que se perpetuam, que agradam a pequenos leitores, ficando

armazenadas na memória para sempre. Mesmo sem ler as páginas da Sagrada Escritura, a

maioria das pessoas tem conhecimento dos seguintes episódios: a expulsão de Adão e Eva do

Paraíso, a arca de Noé, a torre de Babel, a passagem do mar Vermelho, o nascimento de Jesus,

os Reis Magos etc.

Sem dúvida, Shakespeare não pode ficar de fora de qualquer lista dos clássicos

memoráveis. A obra mais popular do escritor inglês é Romeu e Julieta; o amor e a morte, temas

explorados no texto, mobilizam leitores de todas as idades. O cinema, contudo, tem sido muito

importante na divulgação de outros títulos desse autor, já que no Brasil ir ao teatro não é hábito

comum, ou porque o poder aquisitivo da população não permite ou devido a um problema

cultural. Em Otelo, Shakespeare nos leva a refletir sobre amor e ciúme, hierarquia e obediência –

sentimentos e valores comuns a todos. Hamlet, Macbeth e Rei Lear discutem o amor entre pais e

filhos, a disputa pelo poder – assuntos também universais, próprios da essência humana.

Das histórias orientais, que nos chegam basicamente pela oralidade, são inesquecíveis

Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Ali Babá e os 40 ladrões, As aventuras de Simbad, o Marujo.

Qualquer seleção é subjetiva, conforme já observamos nas primeiras páginas desta tese;

portanto os títulos citados poderiam ser outros. Acreditamos, porém, que, em se tratando de

histórias transmitidas, principalmente, pela voz de um contador, a lista apresentada não sofreria

tantas alterações.

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Luta pela vida, confronto entre o bem e o mal, superação dos limites, entre outros, são as

principais razões para guardarmos de (cor)ação os bravos personagens que desfilam diante de nós

há séculos.

2.2 Duelando com os moinhos: o porquê de Quixote

Estudar um clássico da literatura universal é desafio para qualquer pesquisador da

atualidade, uma vez que a obra já foi explorada em (quase) todos os aspectos. Enfrentar a

provocação do texto ou render-se ao “inimigo”, mesmo antes do início do “combate”, é decisão

pessoal. Marche! – diz Moisés a seu povo. Assim fizemos, marchamos em direção à obra-prima

de Cervantes, monumento da literatura.

Em alguns momentos acreditávamos, como Sancho, que eram apenas “moinhos”. A

história do engenhoso fidalgo circula entre nós há quatrocentos anos e, ao longo desse tempo,

muitos estudos foram realizados. Estaríamos, portanto, respaldados por argumentos de autoridade

que nos ajudariam a analisar um texto de tamanha exuberância. Os simples “moinhos”

transformavam-se em “frestões”, mágicos encantadores, à medida que mergulhávamos no

universo quixotesco. Diante de uma fortuna crítica que gira em torno de cinco mil estudos, nos

espantávamos, mas não nos rendemos. Aceitamos o desafio e resolvemos observar a linguagem

da narrativa de Cervantes, enfocando suas respectivas adaptações para jovens, tema pouco

explorado e, acreditamos, de relevância para a história da leitura no Brasil.

A escolha de Dom Quixote de la Mancha como o clássico a ser estudado foi subjetiva,

mas não aleatória. Cervantes revolucionou a história da literatura ocidental. Segundo a crítica

especializada, com Dom Quixote inaugura-se uma nova forma de escrever; o romance moderno

surge das penas de Miguel de Cervantes. Não só por isso se deu a escolha, mas também porque o

texto cervantino é um manancial de recursos lingüístico-discursivos, utilizados com maestria,

servindo de fonte para tantos ilustres escritores que o sucederam. Como exemplo, poderíamos

citar a artimanha do narrador em “dialogar” com o leitor, modelo seguido por Machado de Assis

séculos depois. No prólogo, deparamos com as palavras: Desocupado leitor: Não preciso de

prestar aqui um juramento para que creias que com toda a minha vontade quisera que este livro,

como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse

imaginar... (1993, p.55).

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Cervantes conseguiu! Produziu de fato uma obra ímpar, primorosa, cujo mérito principal é

a universalidade e a variedade dos elementos literários que apresenta. Do romance de cavalaria

aos episódios realistas, o livro reflete a vida, que pulsa com toda sua ambivalência, integralmente,

como ela é. Alonso Quijana é alto e magro; Sancho, baixo e gordo. O fidalgo é leitor; o

escudeiro, analfabeto. Um é solteiro, não tem filhos; o outro, casado e pai. Dom Quixote é louco,

tem visões, ao passo que Sancho Pança é racional, pragmático. Não há, porém, “o” melhor. De

toda dialética trazida às páginas do clássico espanhol, interessa-nos observar como tudo isso nos

é passado pela linguagem. Esta, sim, verdadeiro desafio de um escritor; moinhos que podem,

repentinamente, parecer gigantes.

Como os livros citados nas páginas anteriores, as aventuras de Dom Quixote, alojadas em

nossa memória, chegaram por diferentes caminhos. Câmara Cascudo chama a nossa atenção, em

Com dom Quixote no Folclore do Brasil, prefácio do livro de Cervantes (1952), para as marcas

da obra encontradas em solo brasileiro. Cascudo aponta, como prova da influência da cultura

espanhola em nossa pátria, a escolha do nome para um banco de pedra em que se instalou um

farol. Localizado na costa Atlântica do Rio Grande do Norte, o cabo fora “batizado”, em 1940, de

Teresa Pança, mulher de Sancho, fato comprovado pelos mapas de navegação. O pesquisador

encontra tal nome já mencionado em meado do século XIX, segundo o “Roteiro da Costa Norte

do Brasil desde Maceió até o Pará” (1877)11

Além desse documento, Câmara Cascudo apresenta outras pistas – agora no plano da

linguagem – da presença da obra de Cervantes entre nós. O livro chega à América logo depois do

lançamento na Europa. A primeira remessa foi enviada em 1605, ano da publicação do

Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. O Brasil iniciava sua história e grande parte do

povo não era alfabetizada; logo, conclui-se que as histórias contadas por Miguel de Cervantes se

fixaram na memória popular via oralidade. As expressões usadas por Sancho, principalmente, que

circulam até hoje, já estavam na boca do povo brasileiro desde o século XVII. Os provérbios e

frases feitas são herança de fácil comprovação, pois ainda se fazem presentes em nosso falar. Dos

mais de duzentos rifões imortalizados pela pena de Cervantes, citamos alguns bastante utilizados:

Na primeira parte do livro:

11 Pereira, Felippe Francisco. Roteiro da Costa Norte do Brazil desde Maceió até o Pará...[Recife]: TYP do Jornal do Recife, 1877.

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Vão buscar lã e voltam tosqueados (VII) Quando uma porta se fecha abrem-se outras (XXI) Uma andorinha só não faz verão (XIII) Quem canta seus males espanta (XXII) Tantas vezes vai o vaso à fonte (XXX)

Na segunda parte do livro: De noite todos os gatos são pardos (XXXIII) Para tudo há remédio, menos para a morte (XLVII) Tendo eu a faca e o queijo na mão (XLVII) Para dar e para ter muito rico é mister ser (LVIII) Deus ajuda a quem madruga (LXXI)

Não só os ditos populares ficaram. Cascudo faz um levantamento de alguns usos e

costumes de nosso povo encontrados nas páginas de Miguel de Cervantes.

Na primeira parte, lemos a expressão pouco sal na moleira (VII), cujo significado pouco

juízo consta no dicionário de Morais desde 1831, segundo o estudioso. No capítulo XII, depara-se

com a forma de tratamento senhor meu da minha alma, forma também usada pelo povo

brasileiro.

Um costume nos sertões do Brasil era o de prender o pente no rabo do boi ou de cavalo.

Percebe-se, no exemplo, eco de hábitos trazidos pelos colonizadores, revelados por Cervantes em

seu texto literário: O barbeiro fez umas grandes barbas de um rabo de boi ruço ou ruivo, em que

o taberneiro costumava pendurar o pente. (I, XXVII)

Chamado tabu de fronteira, um risco no chão cria uma linha mágica delimitadora. No

capítulo XXXIV, ainda na primeira parte, Cervantes põe diante do leitor a encenação de Camila,

que finge querer matar-se diante do próprio amante, Lotário, para dissimular, na presença do

marido, Anselmo, o adultério: Lotário, repara bem no que te digo: se te atreveres a passar esta

raia, ou mesmo a chegar a ela, no mesmo instante me atravesso com este ferro.

Delimitar espaços por meio de linhas imaginárias era costume comum no interior do

nosso país, como nos ensinam as palavras do folclorista.

O autor do prefácio mostra que muitos contos registrados no livro de Cervantes

circularam oralmente entre nós: a história da princesa Megalona, os contos sem fim, as aventuras

de Carlos Magno etc. Vale lembrar que, à época, o Brasil era colônia portuguesa e Portugal

estava sob a jurisdição espanhola, cujo reinado pertencia a D. Felipe III. Enfim, hábitos, crenças e

costumes espanhóis entrecruzavam –se em terras lusitanas e viajavam para a América nas

caravelas dos navegadores.

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Brito Broca, na introdução do livro prefaciado por Câmara Cascudo, classifica a obra de

Cervantes de novela picaresca”, gênero que surgiu na Espanha. Broca esclarece o termo pícaro:

indivíduo sem eira nem beira; semelhante a boêmio; aquele que se vai defendendo na vida de

qualquer jeito, por meio de múltiplas aventuras, conseguindo sempre se sair bem das mais

complicadas situações. O Cavaleiro da Triste Figura comporta-se, muitas vezes, como pícaro,

embora nem sempre consiga ser bem sucedido. Ele é mescla de duas linhagens: a do herói de

cavalaria, idealizado, em plena decadência no século XVI na Espanha, e a do pícaro, com suas

fraquezas e misérias.

Estas seriam justificativas suficientes para a escolha do clássico da literatura espanhola

representar todos os outros, entretanto, encontramos mais algumas: (i) o exemplo de fé: o herói é

leitor de Ignácio Loyola, cujo lema é em tudo amar e servir, fato comprovado no episódio em que

o padre e o barbeiro selecionam os livros da biblioteca de Dom Quixote a serem queimados. O

Cavaleiro andante também demonstra fé em si mesmo. Cervantes mostra pelas ações do herói

que acreditar nos ajuda a viver. Quixote (Dom Alonso) morre, quando deixa de acreditar em seus

sonhos. Vale a pena alimentar tal sentimento no leitor; (ii) o amor aos livros, o gosto que o

fidalgo demonstra pela leitura; (iii) a luta contra as injustiças, muitas vezes, às avessas, construída

via burlesco; (iv) a amizade entre Quixote e Sancho, elaborada de maneira espetacular ao longo

da narrativa. (v) o trabalho primoroso com a linguagem, a perfeição em jogar com o erudito e o

popular, indo de um lado a outro com tamanha competência etc.

Cervantes, sem dúvida, traz a público, de maneira exemplar, a essência humana, seus

pontos positivos e negativos. Nas malhas da narrativa cervantina nos enredamos, rimos e

sofremos com o Cavaleiro da Triste Figura. O jogo perdura por todas as páginas. Ao longo da

história, percebe-se o que Unamuno (1964) destaca em seu magnífico estudo: com o passar do

tempo, encontramos um Sancho quixotizado e um Quixote sanchizado. O prático, o incrédulo,

passa a sonhar, a ter visões ou afirmar que as tem, e o sonhador passa a enxergar a realidade.

Como exemplos do que acabamos de dizer, podemos citar (i) o momento do encontro entre

Quixote/Sancho e Dulcinéia(Aldonza) e outras lavradoras; (ii) o final da história, quando Dom

Quixote dá lugar a Alonso Quijana, que havia perdido o juízo para dar “vida” àquele que sairia

pelo mundo a fim de consertá-lo.

Portanto, a obra se eterniza porque apresenta forma e conteúdo singulares.

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IV. A linguagem: ponto final

1. Um clássico em múltiplas linguagens: possibilidades de representação do Cavaleiro da Triste Figura

Tanta gente se esconde do sonho com medo de sofrer Tanta gente se esquece que é preciso viver

César Camargo Mariano e Lula Barbosa

Nas primeiras páginas deste trabalho tivemos a oportunidade de conhecer definições de

clássico; algumas delas retiradas das entrevistas de alunos e de professores. Muitos confirmam

que clássico é o que perdura, o que ultrapassa as fronteiras geográficas e temporais. Vimos ainda

naquela seção que Dom Quixote é bastante popular; quase todos ouviram falar do Cavaleiro

Andante, porém pouquíssimos declararam ter lido a obra integral.

De posse dos dados trazidos pelos entrevistados, fez-se necessário observar os

mecanismos responsáveis pela manutenção da obra de Cervantes até nossos dias. Podemos inferir

que Dom Quixote tenha desembarcado no Brasil pelas mãos dos imigrantes, mas o que talvez

desconheçamos é que a história do fidalgo se ancora na oralidade. Mônica Pimenta Velloso, no

livro Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes (1996), estuda a revista satírico-

humorística D. Quixote, fundada no Brasil em 1895, pelo caricaturista Ângelo Agostini. Os

personagens de Cervantes são figuras centrais da revista, pois eles acompanham, comentando, os

acontecimentos sociais e políticos do cotidiano. A autora tenta resgatar algumas idéias de

Chartier (1992) no que diz respeito à nova relação leitor/texto, à simpatia do leitor pelo herói –

características marcantes no livro de Miguel de Cervantes. Em sua análise, a pesquisadora busca

dados em Câmara Cascudo (1976) e afirma: Em um minucioso estudo etnográfico, Câmara Cascudo (1976) comprova a presença dos personagens cervantinos, notadamente de D. Quixote, na memória popular brasileira, via tradição oral12. O autor sugere a possibilidade de aquela obra de Cervantes já ser conhecida aos olhos do Brasil seiscentista. Relembra que ela foi escrita sob o reinado de Felipe II, período em que nosso país estava sob domínio espanhol. Em 1605, ano em que foi publicado o 1o. volume do D. Quixote, já se tem registro de mais de 300 exemplares na América hispânica (Rodriguez Marin, 1911:40; e Cascudo, 1952:406). Portanto, a possibilidade de intercâmbio cultural entre esses países é um fato a ser avaliado. (p.131)

12 Grifos nossos

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Grande estudioso do nosso folclore, Cascudo analisa as interferências culturais sofridas

pelo povo brasileiro. O folclorista encontra muitos pontos de tangência entre as narrativas

populares brasileiras e as histórias e as lendas populares espanholas. Obras como O imperador

Carlos Magno e A donzela Teodora, originárias da Espanha, geralmente eram lidas em voz alta

para auditórios atentos. (Cascudo, apud Velloso, p.131)

Mônica Velloso orienta-nos a pensar na influência da narrativa espanhola em nossas

tradições populares a partir da dinâmica da “apropriação cultural” (Chartier,1992). A autora

adverte-nos: não se trata de concluir apenas que, entre nós, predominou uma leitura de

Cervantes via tradições populares, da mesma forma que soaria falso privilegiar essa leitura

através dos canais eruditos (p.132).

A construção do imaginário Dom Quixote/Sancho é resultado do entrecruzamento de

influências das culturas erudita e popular; as figuras do fidalgo e de seu fiel escudeiro, portanto,

não foram recortadas diretamente da obra de Cervantes por nossos intelectuais.

Ainda hoje personagens de Cervantes circulam entre nós. Tomaram a cena em 2005,

quando em vários países aconteciam eventos comemorativos dos 400 anos da obra. A

popularidade de Quixote levou-o às telas de cinema, aos palcos, ao mundo da música – erudita e

popular – à publicidade, aos quadrinhos, às charges, ao universo dos pintores e poetas. Enfim, a

imagem e a saga do cavaleiro andante, divulgadas oralmente, muito têm contribuído para a

imortalidade do mais famoso herói espanhol.

Rastreamos alguns momentos em que Quixote surge numa relação intertextual com outros

gêneros e em outros suportes. Escolhemos apenas alguns para ilustrar a pesquisa:

1.1 A imagem de Quixote na memória popular: a revista

A revista D. Quixote procura, através de charges, caricaturas e escritos satíricos,

expressar o caráter controverso e ambíguo da nacionalidade brasileira. Esta aparece

freqüentemente como algo ininteligível, absurdo e quixotesco. (Velloso, 1996:168). O humor, a

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ironia e o contraste passados pelos personagens de Cervantes são aproveitados pela linha dos

colaboradores do periódico, que desejam mostrar o lado ridículo e inútil do sacrifício de

intelectuais da época para criar a nação e construir o Brasil moderno. As figuras de Quixote e de

Sancho são importantes neste cenário, pois expressam, paradoxalmente, os dois lados de nosso

país: imaginário/real. A caricatura aproveita a idéia do contraste para produzir o riso. A revista

desempenha um importante papel na sociedade brasileira: transformar a história da cidade e dos

intelectuais da época em matéria de memória.

Para ilustrar, destacamos do livro de Mônica Velloso, duas capas da revista: uma da

revista em sua primeira fase (1895-1902); e outra, a segunda (1917-1927).

Figura 1: revista Dom Quixote, 1a. fase Figura 2: revista Dom Quixote, 2a.fase

1.2 O Cavaleiro Andante e célebres pintores

Na pintura, o trabalho mais famoso, no Brasil, é o do paulista Cândido Portinari, que em

1956 pintou uma série de 21 gravuras em que retratava as duas personagens da literatura

universal: Dom Quixote e Sancho Pança. Estas gravuras foram motivo de inspiração para o

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poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1972, escrever poemas alusivos à obra de Portinari. Em

2005, as gravuras de Portinari voltam a circular, agora na reescritura da saga do cavaleiro andante

elaborada por Ana Maria Machado. No livro O Cavaleiro do sonho: as aventuras e desventuras

de Dom Quixote de la Mancha, a autora faz uma parceria com Portinari; imagens e palavras

tecem, em verdadeira trança, uma narrativa para leitores em formação.

Salvador Dali e Pablo Picasso também contribuíram para a permanência dos personagens

cervantinos no imaginário popular.

Figura 3: Dom Quixote Figura 4: Dom Quixote e Sancho Pança

Dali (1946)

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Figura 5: Dom Quixote

Picasso (1955)

Figura 6: Dom Quixote

Portinari (1956)

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1.3 O Engenhoso Fidalgo nos poemas

Na literatura, especificamente em poemas, o destaque vai para o livreto com 21 poemas

de Drummond; os versos foram escritos quando o poeta completava 70 anos de vida. A título

de exemplificação:

Quixote e Sancho, de Portinari

Soneto da loucura

A minha casa pobre é rica de quimera e se vou sem destino a trovejar espantos, meu nome há de romper as mais nevoentas eras tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno. Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho, o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra e eu parto em meu rocim, corisco, espada, grito, o torto endireitando, herói de seda e ferro,

E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens, na férvida obsessão de que enfim a bendita Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.

Sagração

Rocinante pasta a erva do sossego. A Mancha inteira é calma. A chama oculta arde nesta fremente Espanha interior.

De geolhos e olhos visionários me sagro cavaleiro andante, amante de amor cortês e minha dama, cristal de perfeição entre perfeitas.

Daqui por diante é girar, girovagar, a combater o erro, o falso, o mal de mil semblantes e recolher no peito em sangue a palma esquiva e rara que há de cingir-me a fronte por mão de Amor-amante.

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A fama, no capim que Rocinante pasta, se guarda para mim, em tudo a sinto, sede que bebo, vento que me arrasta.

1.4 A saga quixotesca na música

Na música, há algumas obras merecedoras de nota, como Um sonho impossível, de Chico

Buarque e Ruy Guerra, versão brasileira para Impossible dream, de Joe Dorian, composição de

1965 para o musical da Brodway Man of la Mancha; O mundo é um moinho, de Cartola; Dom

Quixote, interpretada pelos Mutantes ; Dom Quixote, interpretação do grupo Engenheiros do

Hawaii e Dom Quixote, de César Camargo Mariano e Lula Barbosa, gravada por Maria Rita. Na

área da música instrumental, destaca-se William Pereira, violonista e compositor, que lançou, em

2004, um CD solo – Dom Quixote.

A intertextualidade nas letras das canções populares acontece de forma mais ou menos

implícita. Os famosos versos de Cartola, o mundo é um moinho/vai triturar seus sonhos, faz

alusão às aventuras quixotescas; na versão de Chico Buarque e Ruy Guerra para Impossible

dream: Sonhar / mais um impossível / lutar, quando é fácil ceder / vencer o inimigo invencível /

negar, quando a regra é ceder, também pode-se estabelecer uma relação entre o episódio em que

Quixote luta contra moinhos de vento.

O processo de recepção acaba por privilegiar sentidos ou mesmo por alterá-los. Quixote, de

início, era apenas um homem que enlouqueceu por causa das leituras dos livros de cavalaria.Ao

longo dos séculos, o personagem passou a representar o sonhador, o idealista. A teoria da estética

da recepção ajuda-nos a entender este movimento dos sentidos de um texto, pois vem mostrar que

no processo de leitura a obra literária se realiza na convergência do texto com o leitor (Iser,1996).

Como o leitor é marcado sócio-historicamente, o processo de recepção de um texto sofrerá, pois,

influências desse sujeito-leitor.

Abaixo, transcreve-se a letra da canção interpretada por Maria Rita

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Dom Quixote

Cavaleiro andante estrela marginal Sobre o Rocinante escravo de metal Um acorde rasga o céu Raio negro a cavalgar o som E cavalgar sozinho...e cavalgar Viverá pra sempre em nosso coração O moinho vento nova geração Um menino vai crescer Procurando em cada olhar o amor E caminhar, sozinho...e caminhar Tanta gente se esconde do sonho com medo de sofrer Tanta gente se esquece que é preciso viver Combater moinhos, caminhar entre o medo e o prazer Somos todos na vida, qualquer um de nós Vilões e heróis, vilões e heróis E seja onde for, qualquer lugar Levar a luz que te conduz Jamais abandonar o dom que te seduz E seja onde for, qualquer lugar Levar a luz que te conduz Jamais abandonar o dom que te seduz

Pode-se perceber a manutenção do texto de Cervantes nos intertextos – poema e letra da

música. As marcas mais visíveis são as deixadas pela seleção lexical. Nota-se a recorrência de

certas palavras, como, por exemplo, Rocinante, cavaleiro, andante, sonhar, combater, lutar,

moinhos, sagrar. Elas servem de elo entre o texto original e suas paráfrases e paródias. Existe,

como poderemos observar mais adiante nos textos literários adaptados, um conjunto de

vocábulos responsáveis por sustentar a história do engenhoso fidalgo. São palavras-chave para

a manutenção da essência da narrativa. Os escritores-adaptadores ou autores de paródias não se

podem afastar do núcleo léxico-semântico, uma vez que, se o fizerem, correrão o risco de não

serem entendidos em sua intenção de manter um diálogo intertextual com o texto-base.

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1.5 Dom Quixote e o burlesco das charges

As charges também dialogam com os personagens de Miguel de Cervantes. Em 2005,

Nani e Ziraldo exploram a figura de Quixote e do fiel escudeiro com o propósito de criticar os

atores da cena política.

Figura 6: Charge (Nani. JB, 2005)

A charge de Nani, publicada em 5/6/2005, no Jornal do Brasil, mostra dois cavaleiros em seus

cavalos: um é o Ministro Palocci; o outro, o Presidente Lula. Eles estão diante de alguns

ventiladores; dentro do balão lê-se “O problema, Dom Palocci, é o que vão jogar no ventilador”.

Vejamos o jogo intertextual.

A charge atualiza, na figura de Palocci, a idéia do louco, do sonhador; Lula nos passa a idéia

do ingênuo, do parvo.

A imagem constrói uma parte do sentido que o chargista pretende transmitir ao leitor, mas é a

palavra escrita dentro do balão que complementa a mensagem. A palavra “Dom”, como ensina

Aurélio, é Título honorífico de nobres ou de dignitários da Igreja. Ela traz imediatamente

Quixote à cena.

A sonoridade também joga no texto de Nani, pois os nomes PALOCCI e QUIXOTE têm três

sílabas, são paroxítonos e rimam na sílaba tônica. A palavra “moinho” joga com a imagem de

ventiladores, que recupera, pelo jogo de implicitude, a frase popular jogar merda no ventilador,

ou seja, estragar, deixar vir à tona a podridão, as “jogadas” ilícitas do governo. Ainda podemos

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ler na charge, pela cor da roupa de Palocci, o perfil de um sonhador, de um idealista, de quem não

perde a esperança, representada simbolicamente pela cor verde; o vermelho no colete de Lula nos

remete à cor da bandeira e da estrela do Partido dos Trabalhadores (PT).

Para finalizar a leitura, observamos o antagonismo presente nas figuras em foco: Palocci está

para Quixote (letrado, leitor, com o saber formal, de livros, representante da elite cultural) assim

como Lula está para Sancho Pança (iletrado, operário,com o saber popular, usuário de metáforas

do cotidiano, provérbios).

Com o exemplo deste texto nada canônico, podemos reiterar o que diz a boneca falante de

Lobato, ao final da história contada por Dona Benta: - Morreu nada! – dizia ela – como morreu,

se Dom Quixote é imortal (Lobato, p.91).

1.6 O clássico nas histórias em quadrinhos

Não, a história em quadrinhos não é um gênero bastardo que veicula uma subcultura nociva do agrado de voyeurs preguiçosos! Ela é um modo de expressão que já se tornou um patrimônio cultural e artístico imponente.

(QUELLA-GUIOT, 1994:5)

A leitura de imagens – procedimentos, estruturas, estéticas – atualmente vem sendo

acentuada pelos programas de ensino. A história em quadrinhos – imagética por excelência –

passou a freqüentar oficialmente a Escola a partir da década de 70. Primeiramente, a linguagem

iconográfica desse gênero textual servia de pretexto para as aulas de matemática ou para a

aprendizagem da língua pátria. Tal linguagem não deve, no entanto, ser um meio, mas um fim em

si mesmo.

Hoje já existe uma preocupação em formar o leitor dos códigos da HQ. Levar o jovem a

entender a estratégia narrativa deve ser o objetivo final do mediador da leitura, pois não só de

balões e onomatopéias se constitui a gramática da HQ, uma vez que, como todas as artes, ela

opera com matéria-prima própria, apresenta um modo particular de legendar o mundo, de

representar a realidade. Chamadas ainda de comics pelos anglófilos, as HQs podem, às vezes,

contar histórias sérias.

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Sabe-se que o público leitor de tal gênero é muito grande. Pensava-se no início que

somente crianças se interessavam por esses textos. Mais tarde descobriu-se que muitos adultos

eram leitores vorazes das referidas histórias, cujo domínio é a aventura: faroeste, romances

policiais, ficção científica, narrativas burlescas etc. Alguns ficavam constrangidos de se

revelarem leitores de tal “literatura”, avaliada como menor, menos importante.

As histórias, publicadas em jornais e lidas por adultos que apresentam dificuldade na

leitura, principalmente dos clássicos, de linguagem mais elaborada e complexa, de difícil acesso,

ganharam prestígio à medida que foi estudada e valorizada pela instituição Escola.

As narrativas apresentadas pelos quadrinistas conquistaram seu lugar no mundo da leitura;

não da clandestina, da marginal, mas da leitura institucionalizada.

Pafúncio – primeira história a atingir repercussão mundial (1913) –Tintin (1929), Asterix

(1959) e tantos outros ilustres personagens das HQs abriram as portas para esta forma de

expressão artística que, ao valer-se de imagens e palavras, engendra o mundo, muitas vezes pelo

lado humorístico.

Ditoso dia foi aquele em que o cartunista, roteirista e ilustrador Caco Galhardo aceitou

recontar a história do famoso clássico de Miguel de Cervantes – Dom Quixote de la Mancha – em

linguagem de HQ. Outros trabalhos já haviam sido publicados, como, por exemplo, o de Will

Eisner, pela Companhia das Letras e o de Márcia Williams, pela Ática, mas nenhum manteve

tamanha “fidelidade”, dentro dos limites de uma adaptação, ao texto original.

A pesquisa pretende observar algumas estratégias lingüístico-discursivas utilizadas pelo

cartunista da Folha de São Paulo na adaptação da saga do Cavaleiro da Triste Figura. Deseja,

ainda, conferir a competência de Galhardo na utilização da linguagem verbal e da não-verbal,

que, entrecruzadas, devem dar conta da intenção do artista: manter viva a tradição das Belas

Letras, sem, contudo, banir a modernidade.

Vale lembrar que o livro de Cervantes completou em 2005 – ano da publicação de Dom

Quixote em quadrinhos, de Caco Galhardo – quatrocentos anos de existência. Portanto, a

responsabilidade do autor da adaptação da obra-prima espanhola foi imensa. Inúmeros recontos

vêm surgindo ao longo dos séculos; logo há que se imprimir a marca pessoal para que o livro-

adaptação não seja mais um a contar a história de um fidalgo que enlouquece depois de ter lido

vários romances de cavalaria. Eis o desafio do autor de uma adaptação: deixar sua “grife”.

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O traço de Galhardo é singularizante, inconfundível. O Quixote que surge das tintas do

cartunista é ímpar, hilariante; provoca o riso desde a capa, quer pelo farto bigode quer pela

escassez de cabelos, contrastada pelos fiapos em forma de molas nas laterais da cabeça. Com

pitadas de exagero, próprio do mundo das HQs, o quarto e o quinto quadrinhos da página 5 já

revelam o estilo do autor: traços bem-humorados em perfeita sintonia com a narrativa que se

desenrola por meio de palavras nas legendas. No quadrinho número 4, Quixote aparece de cabeça

para baixo lendo seguidamente as novelas de cavalaria. No número 5, a imagem que vemos é a da

cabeça do herói partida ao meio; de dentro dela saem cactos, insinuando o que diz a legenda: E

assim, de pouco dormir e muito ler se lhe secaram os miolos. Colaborando para a produção do

sentido, expresso pelas palavras e pela imagem do fidalgo, há um sol escaldante. O leitor,

imediatamente, estabelece comparação e contraste com o quadro anterior, em que aparece Dom

Quixote lendo, à noite. Aí a lua brilha no céu e o texto diz: Enfim tanto ele se engolfou nas suas

leituras, que lendo passava as noites de claro em claro.

Lemos as HQs com imagens, palavras e cores... Sem remontar às grutas de Lascaux ou à

tapeçaria de Bayeux, os estudiosos apontam como ancestrais das narrativas em quadrinhos as

histórias em imagens do século XIX. Impressas em preto e branco, tais narrativas ganharam

cores e mais expressividade. Como exemplo, na página 30, no momento da luta com os moinhos

– gigantes aos olhos do cavaleiro da Triste Figura – vê-se, em quadro enorme, que ocupa toda a

página, a figura de um gigante surrando Quixote. Atrás do imenso homem, em letras também

gigantescas e em vermelho, está a onomatopéia PAF. O tamanho e a cor das letras são bastante

expressivos, revelando a violência com que o herói foi tratado.

Outra característica do texto em foco é o valor dado à língua, embora o livro apresente

algumas pranchas basicamente só de imagens, constituídas de uma única vinheta, como no citado

episódio em que Dom Quixote enfrenta os moinhos de vento (p 22-31). O recurso de usar

desenhos maiores é bastante eficaz, pois expressa a gravidade do momento e a fragilidade do

herói. Por outro lado, encontram-se, nas páginas 39-40, duas pranchas em que somente o código

verbal fica com a responsabilidade do sentido a produzir. A palavra, sem dúvida, assume um

lugar de destaque no livro. A presença do signo verbal se impõe em vários momentos. Percebe-se

o desejo de Galhardo: apresentar a exuberante arquitetura lingüística de Cervantes. Em certas

passagens, os diálogos e as falas do narrador são traduções fidedignas. A língua trazida às

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páginas do texto em estudo não é redutora, não infantiliza a expressão de Miguel de Cervantes.

Eis alguns exemplos:

Ditosa idade e século ditoso aquele a cuja luz saírem as famosas façanhas minhas, dignas de gravar-se em bronzes, esculpir-se em mármores e pintar-deste cativo coração! Praza a vós, senhora minha, memorar este vosso sujeito coração, que tanto pelo vosso amor padece!

(Dom Quixote, p.7)

Valha-me Deus! Eu não disse a vossa mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e só podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?

(Sancho Pança, p.32)

Galhardo maneja bem o material com que trabalha. Revela, com maestria, em tom chistoso,

detalhes pictóricos; explora todas as possibilidades das HQs; destaca a letragem, quando acelera a

saga de Quixote (p.42-43). Utilizando o recurso da letra cursiva para contar em poucas palavras

muitos dos episódios vividos pelo cavaleiro e seu fiel escudeiro, o quadrinista garante mais

informação sobre o romance e estimula no leitor em formação a curiosidade para buscar o

original. Outra estratégia interessante é a de fazer o contraste de cores: fundo preto e letras

brancas nos enunciados do narrador; fundo branco e letras pretas nas falas das personagens.

Enfim, o livro Dom Quixote em quadrinhos, publicado pela editora Peirópolis, não é mais

um a contar as aventuras do Cavaleiro Andante. É, com certeza, uma obra de arte, um momento

de celebração ao clássico cervantino. Contribui para o trabalho de leitura de iniciação, sem,

contudo, deixar de agradar a leitores mais proficientes. Nós – leitores iniciados – também nos

deleitamos com o texto de Galhardo que, de forma primorosa, traz à cena a pujança da narrativa

cervantina em O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Percebemos as artimanhas

lingüístico-discursivas e reconhecemos o texto original neste primoroso trabalho de

intertextualidade.

Louve-se a sensibilidade do jovem cartunista que, de forma bem humorada, dialoga com a

tradição, empreendendo uma fantástica viagem pelo mundo da literatura. O simbólico e o

iconográfico, materiais de que se serve o artista para o gerenciamento de sentidos, são

manipulados com muita competência.

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1.7 O Fidalgo Cavalheiro por um fio: o cordel

Não tinha muita comida Mas tinha muita leitura Não pensava nos problemas Da casa e da agricultura Não tinha ação, mas sobrava Imaginação e cultura (p.4)

O projeto de J. Borges e de Jô de Oliveira – autor e ilustrador, respectivamente, do livro

Dom Quixote em cordel – é louvável, uma vez que almeja divulgar e imortalizar não só a obra de

Miguel de Cervantes como também a cultura popular brasileira, com seu modo de dizer em

estrofes e rimas, num tom narrativo bastante informal.

O livro é recomendado pelo MEC para utilização nas escolas, conforme noticiou o jornal

Folha de São Paulo do dia 27 de agosto de 2005. Dom Quixote em cordel traz a marca da

originalidade porque, ao recontar as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, os autores contam

uma parte da história da cultura brasileira. Trava-se naquelas páginas um embate multicultural,

pois Quixote luta com Lampião, e Maria Bonita ocupa o lugar da formosa Dulcinéia. O cordelista

J. Borges propõe desta maneira um resgate da identidade de um povo para o qual notícias e

histórias chegam pelas pequenas páginas dos livretos, vendidos principalmente nas feiras, numa

linguagem simples, em forma de versos rimados.

O livro, em forma de cordel, faz um caminho inverso ao de Cervantes, uma vez que foi

traduzido para a língua espanhola por José Antonio Pérez. Este fato é interessante, pois os

leitores de uma outra cultura poderão entrar em contato com peculiaridades do Brasil, quer pela

história dos cangaceiros quer pelas imagens de Jô de Oliveira, que apresenta tão bem a paisagem

nordestina, com seus cactos e mandacarus, redes, peixeiras e facões, chapéus de couro etc.

Dado o primeiro passo – o livro foi lançado pela editora Entrelivros no primeiro semestre

de 2005, em Brasília –, logo a seguir veio à cena outra obra interessante, também em cordel: Dom

Quixote, do quadrinista Antonio Klévison Viana, publicado pela Tupynanquim, no segundo

semestre de 2005, em Fortaleza. Eis nossas raízes populares e o caráter artesanal do cordel

mesclando-se com o mito literário universal.

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Oriunda de Portugal, a literatura de cordel chegou no balaio e no coração dos nossos colonizadores, instalando-se na Bahia e mais precisamente em Salvador. Dali se irradiou para os demais estados do Nordeste. A pergunta que mais inquieta e intriga os nossos pesquisadores é "Por que exatamente no nordeste?". A resposta não está distante do raciocínio livre nem dos domínios da razão. Como é sabido, a primeira capital da nação foi Salvador, ponto de convergência natural de todas as culturas, permanecendo assim até 1763, quando foi transferida para o Rio de Janeiro.”13

A literatura de cordel, como ensinam o historiadores, já existia desde os tempos dos

fenícios, dos saxões, dos conquistadores greco-romanos etc. Chegou à Península Ibérica por volta

do século XVI, e de lá – via Portugal – veio para o Brasil.

Por que tal gênero ainda encanta tantos leitores? Por que depois de tantos séculos ainda há

projetos para divulgar tal literatura? Estas perguntas nos inquietam e, a partir da leitura e análise

de Dom Quixote em cordel, tentaremos comprovar algumas hipóteses formuladas.

O desejo de divulgar a literatura de cordel é tão forte no povo nordestino que levou à

implantação do projeto Acorda Cordel, coordenado pelo poeta popular, radialista e publicitário

cearense Arievaldo Viana que, em janeiro de 2006, publicou no Rio Grande do Norte um cordel

intitulado Acorda cordel na sala de Aula. Viana preocupa-se com as questões lingüísticas dos

folhetos, como nos ensina José Romero Cardoso no segmento abaixo:

Arievaldo Viana desenvolve sua verve extraordinária alertando sobre a necessidade de primar por normas ortográficas e gramaticais corretas, tendo em vista que o cordel, quando usado para a alfabetização, principalmente de jovens e adultos, deve respeitar a linguagem corrente, sem erros grosseiros que atrapalhem os objetivos propostos em seu projeto de fomento ao processo ensino-aprendizagem.14

Nosso interesse está voltado exatamente para a linguagem desse livro-folheto. Rastreando

a linguagem verbal, suas astúcias, veremos a acuidade lingüística do poeta, ao pôr em versos a

história de Quixote em solo brasileiro. Observando o texto não verbal – as ilustrações –

estudaremos suas principais características e, finalmente, refletiremos sobre o diálogo entre texto

e imagem, a complementaridade das duas linguagens em seus modos de dizer tão particulares.

A primeira característica que chama a atenção do leitor é a disposição das palavras no

texto. Em forma de sextilhas, as estrofes apresentam-se rimadas, o que dá ritmo ao texto cuja

13 Informações obtidas no site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) 14 Trecho destacado do artigo A importância do cordel em sala de aula, de José Romero Araújo Cardoso, consultado no site da ABLC

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principal característica é ser popular. A repetição da cadência melódica facilita a interlocução

com pessoas de diferentes grupos sociais, até mesmo com aquelas não escolarizadas. Vejamos o

exemplo destacado:

Existia uma grande aldeia Igual a outras havia E lá tinha um fidalgo Magro, mas sempre comia Carne, fritos e lentilhas Ovos e tudo que existia (p.3)

A primeira estrofe do texto mostra um narrador na plenitude de seu ofício: contar uma

história. O uso da forma “existia” é uma estratégia discursiva, própria das narrativas, geralmente

em prosa. O verbo que abre o texto nos transporta, tal qual os contos maravilhosos, para um

tempo distante do nosso e recupera na nossa memória as histórias contadas por pais, avós etc. O

pretérito imperfeito torna presente o passado. Sabemos que expressões como “Era uma vez” ou “

“Há muito tempo atrás” e suas formas correspondentes são, na verdade, umbral para a entrada em

um momento histórico, real ou fictício. Tal recurso de linguagem revela também um modo

enunciativo: a voz narradora é a voz daquele que sabe e que vai contar, como testemunha

credenciada, episódios acontecidos.

Estabelecido o contrato de comunicação15 o texto vai apresentar o universo cervantino,

trazendo à cena as informações sobre o fidalgo, traçando o perfil físico e psicológico do

personagem. Neste ponto vale discorrer sobre a camada lexical, fonte primária para a ligação

entre texto integral (original) e texto adaptado.

Um levantamento sobre o léxico aponta inevitavelmente para os termos recorrentes em

qualquer reconto. Um cotejo entre textos que reapresentam a história de Quixote nos mostra que

há um grupo de palavras (substantivos, adjetivos e verbos) indispensáveis. São palavras de efeitos

evocativos, capazes de tornar algo presente pelo exercício da memória ou da imaginação, pois

carregam informações e significados trazidos pelo autor do original.

Tais palavras, destacadas do livro em pauta, podem ser encontradas em quase todas as

adaptações da obra de Miguel de Cervantes:

15 “O termo contrato de comunicação é empregado pelos semioticistas, psicossociólogos da linguagem e analistas do discurso para designar o que faz com que o ato de comunicação seja reconhecido como válido do ponto de vista do sentido.” Dicionário de Análise do Discurso, p.130.

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Substantivos

aldeia Alonso Quijano amo amor armas batalha camponesa castelo

cavalaria cavaleiro cavalo dama donzela Dulcinéia escudeiro escudo

espada Espanha estalagem feiticeiros gigantes herói hospedagem hospedaria

lança leitura loucura Mancha moinhos pás pátio Quixote

Quixada romance sobrinha SanchoPança testamento ungüento vassalo viseira

Adjetivos:

amada – fidalgo – formosa – louco – magrelo – nobre – plebéia

Verbos:

adoecer – enfrentar – ler – lutar – morrer

Apresentar Quixote no Brasil é a proposta da obra em cordel. Por seguir os caminhos da

paródia – no dizer de Afonso Romano de Santana: “intertextualidade das diferenças” (1988:28) –

o livro de J.Borges e de Jô Oliveira traz um cruzamento de vozes, a fim de proporcionar uma

nova maneira de ler o convencional. Sabendo-se que a paródia vai em busca da diferença, pode-

se constatar, inicialmente pelo léxico, tal estratégia dos autores.

O livro é “fiel” à obra de Cervantes até a página 15, momento em que Dom Quixote: pensando em seu destino pensou em seus descendentes aprimorou o seu tino e descobriu que ele era brasileiro e nordestino.

Neste ponto o poema-narrativo muda o rumo e sofre uma estilização, dando forma estética

diferente ao original. Borges faz uma analogia entre o Cavaleiro da Lua Branca, personagem com

quem Dom Quixote se bate na história original, e Lampião. Ao final, a narrativa retoma o tom do

início e a história passa a ser contada tal como aconteceu no livro de Cervantes: o herói recupera

a lucidez, renega os livros de cavalaria, faz um testamento e morre.

A seguir, trazemos exemplos do universo lexical capaz de individualizar o texto em pauta:

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/

Bahia baianos bandoleiro Brasil

Campina Grande cangaceiros

facão favela

Lampião

Maria Bonita Minas Gerais

Nordeste brasileiro

O léxico da memória e da história de nosso país é acionado a partir do grupo apresentado

acima.

Na tentativa de buscar mais envolvimento com o leitor, o autor usa recursos da oralidade.

Tais recursos são elaborados e arranjados no texto literário. Dino Preti, em estudo intitulado

Oralidade e narração literária, aponta algumas características da fala transportadas para o texto

literário, para simular uma interlocução oral. Preti mostra que tal estratégia cria uma ilusão no

leitor, pois este tende a acreditar estar diante de uma narrativa falada, “Mas o arranjo reflete um

árduo e coerente processo de elaboração da linguagem pelo escritor.”(Preti: 2004)

A literatura de cordel se relaciona diretamente com os repentistas, que falam de

improviso, desempenham o papel de jornalistas, noticiando em praça pública os eventos dignos

de divulgação. A linguagem dos livretos, por esse motivo, muitas vezes, não se ajusta muito às

regras da escrita; as marcas da oralidade se presentificam por intermédio de repetições, dos

marcadores conversacionais, de reduções, da seleção lexical, das estruturas sintáticas e de redes

semânticas populares.

Algumas ocorrências:

Repetição da camada sonora: ajuda a memorização, provoca efeito lúdico.

Lia tanto que ficava delirando a vida inteira e via em sua frente bruxos, dragão, feiticeira combates e desafios que terminavam em asneira (p.4)

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Repetição do verbo ter em lugar do haver

E lá tinha um fidalgo (p.3) Tinha pouca gente em casa (idem)

Marcadores conversacionais

E nisso ele pensou (p.8) Nisto ele pediu a todos (p.40)

Reduções E pra caçar tinha dote (p.4) Pra lutar com precisão (p.23)

Seleção lexical Na boca do bestalhão (p.11) Sai daqui seu bestalhão (p.19)

No dicionário Houaiss, encontramos a seguinte acepção para o termo destacado: “Uso:

pejorativo; que ou quem é ignorante, rústico ou falto de inteligência”.

Outro exemplo de trabalho de adequação do léxico à intenção de sentido do texto e ao

gênero textual:

Todos riam e comparavam Ele com um pé de chinelo (p.12)

Houaiss ensina que a expressão “pé de chinelo” é considerada regionalismo e significa

“marginal pouco perigoso”.O substantivo composto aparece no dicionário grafado com hífen. O

cordelista não segue o rigor da gramática padrão, pois sua voz é a “voz do povo”, de uma camada

cujo saber não vem da instituição Escola, mas das vivências e experiências cotidianas, contexto

em que a língua informal tem mais espaço.

Se vierem são ralé considerados cachorro (p.20)

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O uso da palavra ralé reforça o tom coloquial da linguagem trabalhada no livro.

Encontramos, ainda em Houaiss, a explicação para o sentido: “Regionalismo: Brasil. Uso

informal: grupo que fica de fora de alguma coisa”.

A palavra cachorro também é apresentada de maneira a carregar um valor pejorativo. Para

o dicionarista, trata-se de um “diacronismo: obsoleto. Diz-se de o indivíduo cuja qualificação

social ou classe é muito baixa (p.ex: um escravo).”

50 anos tinha o cujo (p.4)

É muito comum em algumas regiões do Brasil o uso da forma substantivada do pronome

“cujo”, principalmente na variante que se apresenta em linguagem informal. No Houaiss

encontramos: “Regionalismo: Brasil. Uso: informal. Ser de que já se falou, quando não se

deseja, não se sabe ou não é possível nomeá-lo; sujeito, fulano, dito-cujo”

Ela mora na favela (p.27)

A palavra favela, originalmente, significa arbusto, muito comum em certas regiões do

Brasil (Canudos). Mudas da árvore foram trazidas para o Rio de Janeiro e plantadas em áreas

onde se estabeleciam pessoas de classes sociais economicamente menos favorecidas. Por

extensão de sentido, a palavra passa a significar “conjunto de habitações populares que utilizam

materiais improvisados em sua construção tosca, onde residem pessoas de baixa renda”.

(Houaiss)

Estruturas sintáticas

Me diga onde está Dulcinéia meu amor (p.27)

Não larga ele um só segundo (p.40)

Aqui se vê o uso dos pronomes em desacordo com a gramática padrão, a que legisla sobre o

texto escrito formal. No primeiro exemplo, o período é iniciado por pronome oblíquo,

contrariando as recomendações da referida Gramática. Na língua oral, todavia, este é uso

recorrente. No segundo exemplo, também seguindo o uso da fala, o pronome “ele” ocupa a

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posição de objeto, quando a recomendação canônica é de ocupar somente a posição de sujeito da

sentença.

Redes semânticas populares

Que acertou a venta dele (p.28) O emprego da palavra “venta” em sentido figurado, significando “rosto, cara”, é

recorrente na linguagem informal.

Deixando o mesmo moído (p.36) O autor utiliza vocábulo da língua oral, às vezes desgastado pelo uso na linguagem

popular. Ao ligá-lo a uma rede semântica que progride com o decorrer do texto, o resultado é

uma forte valorização de significado e maior expressividade do termo.

Entre o popular e o formal caminha a linguagem de Dom Quixote em cordel. Há

nitidamente a intenção de jogar com as palavras, como nos exemplos: Maria Bonita/ Maria

bonita, na página 19, onde substantivos e adjetivos produzem efeitos de sentido diversos; o

antropônimo Maria Bonita dialoga com outro – Maria – que, acompanhado do adjetivo “bonita”,

nos faz pensar na possível beleza da mulher de Lampião. Teria sido a mulher do cangaceiro mais

famoso uma mulher bonita? Sabe-se que Maria Gomes de Oliveira era uma mulher muito

interessante.

Observa-se no texto o jogo com os parônimos cavaleiro e cavalheiro nas páginas 35 e 36:

Viu um cavaleiro vir; Cavalheiro da lua branca. Neste último verso percebemos a referência ao

personagem Cavaleiro da Lua Branca que, na obra original é o bacharel Sansão Carrasco. Ele se

disfarça em cavaleiro andante, primeiramente como Cavaleiro dos Espelhos. Desafia Quixote,

mas perde a luta. Mais tarde, como Cavaleiro da Lua Branca, derrota o fidalgo ensandecido e

exige que ele honre a palavra empenhada: abandonar as armas e abster-se de aventuras,

recolhendo-se de volta à sua terra por um ano.

O epíteto usado por J. Borges “Cavalheiro da lua branca” faz referência ao lendário

Lampião, chefe do bando que andava pelo sertão a pilhar casas e pessoas. Contam os

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historiadores que Virgulino Ferreira da Silva usava chapéu em forma de meia lua, ornado com

estrelas prateadas. E foi exatamente com o perverso cangaceiro que Dom Quixote se bateu...

O texto oscila, ainda, quanto ao uso das regras da gramática padrão e da “gramática” da

língua falada. Se, em determinados momentos, as regras da primeira prevalecem, em outros, é a

segunda que domina, como nos exemplos:

1. Se estais com medo deixas (p.32)

mistura de pessoas – segunda do plural e segunda do singular.

2. Pertenço à cavalaria (p.8)

uso da regência verbal de acordo com a norma de prestígio

3. A mais formosa donzela Que penso nela toda hora (p.36)

Trabalho de coesão textual normalmente apresentada na língua oral, no lugar de *A mais

formosa donzela em quem penso toda hora.

4. A derrota motivou-lhe

Um sofrimento profundo Todos tentavam animá-lo pra não vê-lo moribundo (p.40) Mais uma vez a língua padrão surge exuberante ao lado de coloquialismos cotidianos; os

pronomes lhe, o (lo) – usados com rigor da modalidade escrita, ao lado da forma reduzida da

preposição para, recurso próprio da linguagem informal.

Esta é uma característica bastante importante para a construção de um texto que se apresenta

de forma híbrida: embora escrito, deseja manter as artimanhas da oralidade. O gênero cordel

simula na escrita a língua falada. Na obra analisada, pode-se afirmar que outro elemento entra em

cena: o desejo de ser prestigiada, pois já não é o simples livreto produzido para ser vendido em

feiras e locais populares. Dom Quixote em cordel ganhou estatuto de códice; é catalogado como

livro para ser vendido em livrarias.

As imagens de Jô de Oliveira são primorosas. Completam, em preto e branco, o universo

criado por Cervantes, adaptado por J. Borges. Os traços de Jô são fortes e dialogam com o texto

verbal em perfeita harmonia. Imitando a técnica da xilogravura, o artista plástico conta de

maneira iconográfica a saga do fidalgo que saiu pelo mundo a combater as injustiças.

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A estratégica disposição nas páginas surte um efeito excelente, pois – tomando a página

inteira – de um lado está posto o texto verbal; de outro, o não-verbal. Percebe-se que não há

privilégio de linguagem. O signo e o ícone entrecruzam-se para contar a história de Quixote,

embora os códigos mantenham suas especificidades e força narrativa.

Jô de Oliveira consegue expressar com maestria as características dos personagens. Sua

arte dá ao leitor a dupla dimensão: a do clássico e a da paródia. Somos apresentados ao Quixote

“original”, na página 21, em sua pose ao lado do escudeiro Sancho, cada qual montado em seu

animal; no entanto, ao transportar os espanhóis para o agreste do Brasil, o traço do adulto Jô de

Oliveira deixa emergir o conhecimento de mundo adquirido pelo menino Jô em suas experiências

na terra natal, Pernambuco. Surge, então, diante de nossos olhos, com força persuasiva, um Brasil

do cangaço, com uma flora bem peculiar e com uma plasticidade própria. São mandacarus,

chapéus de couro, facões, redes... que trazem para o universo do leitor um pouco do nordeste

brasileiro.

Na página 34, flagramos o encontro de Dom Quixote com Lampião. Neste momento da

narrativa, o escudeiro espanhol é derrotado pelo rei do cangaço, e segundo os versos

O Cavalheiro da lua branca Só lhe fez essas torturas Para que Dom Quixote Perdesse suas bravuras E chegasse a desistir De toda sua loucura.” (p.39)

Percebe-se a tentativa de suavizar a fama de mau de Virgulino, pois, para alguns, ele era o

próprio Robin Hood do sertão, capaz de roubar dos ricos e doar ao pobres.

Quixote e Lampião: dois justiceiros, dois loucos, duas lendas.

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Figura 7: Quixote em cordel, p.21 Figura 8: Quixote em cordel, p.34

Encerrando o testamento Sobre a cama desmaiou Dando o último suspiro A morte se aproximou Para descanso do corpo Dom Quixote se acabou. (p.43)

Lampião e Quixote. Duas figuras lendárias, sem dúvida. Um existiu de verdade: dele

vemos fotos, sabemos a data de nascimento, a cidade de origem, há provas, portanto é histórico.

Pode-se, enfim, atestar a existência física de Virgulino Ferreira da Silva. O outro é personagem

de ficção. Também tem nome, idade e cidade de origem, todavia tais dados são criados no

universo das palavras do discurso literário. Alonso Quijano, mais conhecido como Dom Quixote,

ou como Cavaleiro da Triste Figura, não teve existência física, mas vive e sobrevive até hoje

pela imaginação: de Cervantes, de J. Borges, de Jô de Oliveira, do leitor e de todos aqueles que o

imortalizaram em múltiplas linguagens.

Eis a conexão bastante feliz no livro Dom Quixote em cordel. Através de sextilhas –

recurso lingüístico próprio da literatura de cordel – e das ilustrações de Jô de Oliveira, o leitor de

qualquer idade pode tomar contato com dois (anti-)heróis da história da humanidade, de duas

lendas do ocidente. Cada um representa seu tempo e transita em espaços geográficos bem

singulares. Espanha do século XVII e cavaleiros andantes fazem parte do universo de Dom

Quixote; Nordeste brasileiro, século XX e cangaceiros são cenário de Lampião.

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Esta é a essência do livro cuja narrativa pretende recontar a história do fidalgo que

enlouqueceu por ser leitor voraz de romances de cavalaria e revelar como, em seu último gesto de

loucura, o herói e o fiel escudeiro saem da Espanha e chegam a terras brasileiras.

Para tal empreitada, dois grandes artistas se uniram para trazer a público um livro que

deveria ser bastante parecido com o folheto de cordel. Conseguiram, cada um a seu modo, com

ferramentas próprias. J. Borges faz bom uso da palavra – matéria-prima do cordelista –

essencialmente oral, visto que voltada para o popular. As rimas, as repetições, os coloquialismos,

os jogos semânticos etc. foram trabalhados com bastante cuidado para que a escrita simulasse a

fala. Jô Oliveira contribui – e muito – com imagens de grande expressividade.

2. Os “encantadores” nas adaptações literárias de Dom Quixote:

recursos lingüístico-discursivos

Dom Quixote continua encantando leitores de todas as idades. No Brasil, o número de

adaptações para jovens e crianças tem aumentado e isto está relacionado ao movimento em prol

de um público leitor em formação. Iniciado por Lobato, o projeto ganhou força na década de 70 e

se mantém cada vez mais arrojado, graças a alguns abnegados que lutam contra verdadeiros

“moinhos” interpostos em seus caminhos.

Não podemos nos esquecer do fato de que não basta apenas uma boa história para fazer

um livro. É preciso saber contá-la! Para isso, é necessário jogar com a língua, a fim de tornar a

narrativa atraente, sedutora. Um texto é o equilíbrio entre o que está sendo dito e o como se está

dizendo. O prazer de ler os cinco volumes da obra original não reside somente na oportunidade

de conhecer a saga do cavaleiro errante. Está no brilhantismo demonstrado por Cervantes ao

produzir um discurso por meio do qual nos conta as peripécias de um homem que enlouquece por

influência da leitura das obras de cavalaria, cuja hegemonia o autor deseja criticar.

Tarefa difícil a de recontar uma obra tão extensa em cem páginas. O bom contador de

histórias, no entanto, sabe captar do texto original a essência e (re)arranjá-lo com maestria, a fim

de possibilitar a interação do interlocutor com o que há de mais relevante numa peça literária.

Este estudo toma como ponto de partida a narrativa integral, editada pela Aguilar,

traduzida em língua portuguesa pelos viscondes – Castilho e Azevedo. A editora justifica a

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escolha: por conservar o sabor castiço de seus torneios e frases o que sem dúvida se deve ao

estreito parentesco existente entre as duas línguas16. A edição da Nova Aguilar, entretanto, não

se atém à tradução portuguesa; depois de cotejá-la com outras edições em língua castelhana, fez

alguns ajustes, principalmente em determinados momentos em que os autores lusitanos

suprimiram várias passagens, quer por ignorar o verdadeiro sentido ou intenção de certas

palavras, quer pelo desejo de suavizar os trechos em que se manifesta a linguagem popular da

época quer pelo uso de algumas expressões menos respeitosas em relação à Igreja. A referida

edição é enriquecida por um Esboço biográfico de Cervantes e por um Breve guia para o leitor

do Quixote; tais textos colaboram bastante com o leitor na medida em que ajudam a compreender

o momento sócio-histórico da produção e orientam o interlocutor pelos labirintos da rede

romanesca de Cervantes.

Pelo esmero, a edição em destaque é de grande valia a estudiosos da obra de Miguel de

Cervantes, principalmente aos que se debruçam sobre questões lingüísticas.

Partimos do postulado trazido por Wolfgang Iser: a recepção de uma obra literária

envolve vários fatores, por isso ser relevante o processo de editoração, a escolha de um texto

cuidado, a capa da obra... Em O ato da Leitura, Iser nos mostra o texto como processo: O texto é

processo integral, que abrange desde a reação do outro ao mundo até sua experiência pelo

leitor. (p.13). Com esse estudioso, aprendemos que existem efeitos de sentido no ato da leitura,

conceito importante para tratarmos das adaptações, pois, entendendo a noção de texto como

processo, há que se voltar para o leitor, antes colocado em um plano secundário. As paráfrases

dos clássicos pretendem levar obras canônicas a leitores iniciantes, cujo conhecimento de mundo

ainda é insuficiente para produzir sentidos em textos mais complexos.

O ato de leitura envolve cooperação, interação; e isso só acontece quando há sintonia

entre as partes envolvidas no jogo interlocutivo. Um jovem inexperiente só pode interagir com

textos cujo trabalho lingüístico não tenha atingido um grau muito elevado de dificuldade.

A estrutura da obra de que fala Iser é, portanto, um dos aspectos fundamentais para a

interação texto/ receptor. A obra literária se realiza então na convergência do texto com o leitor

(p.50). Tal estrutura é composta de um aspecto duplo: (i) aspecto verbal, que dirige a reação e

impede a arbitrariedade; (ii) aspecto afetivo, cumprimento do que está preestruturado

verbalmente pelo texto. (p.51)

16 CERVANTES, Miguel . O Engenhoso Fidalgo D.Quixote de La Mancha. Nota editorial.

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Sendo o leitor peça chave para a teoria da estética da recepção – que muito contribuiu

para a mudança de atitudes por parte dos promotores da leitura, principalmente dos professores

de Língua Portuguesa e de Literatura –, é para ele e por ele que os adaptadores escrevem de

forma mais simplificada as narrativas que atravessam fronteiras espaciais e temporais,

constituindo o repertório de leitura, permanecendo na memória dos apreciadores de boas

histórias.

2.1 Quem conta um conto aumenta ou diminui um ou mais pontos:

a língua como instrumento de mediação

Agindo como Fristão, o sábio feiticeiro da narrativa de Quixote, o autor-adaptador usa,

algumas vezes, recursos lingüístico-discursivos com o propósito de deixar o leitor encantado com

a história do fidalgo Alonso Quijano. Uma leitura atenta do início do primeiro capítulo nos

direciona para uma análise comparativa. E assim foi feito. Tomando como ponto de partida a

tradução portuguesa dos viscondes, rumamos para outros textos cujo propósito é contar a saga do

cavaleiro andante por meio de um discurso literário.

A leitura comparativa põe diante de nós algumas questões: (i) o autor-adaptador, como

todo falante, é marcado sócio-historicamente e está impregnado da língua, que se movimenta e se

manifesta numa sincronicidade; (ii) a preocupação com o público-alvo é evidente; por isso o

escritor faz ajustes lingüísticos; (iii) a percepção de um mesmo objeto muda com o olhar de

quem o vê; daí encontrarmos algumas divergências entre a paráfrase e o original.

Num lugar de “La Mancha”, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim, e galgo corredor.

(tradução integral, de Castilho e Azevedo: 1876-1878)

E Dona Benta começou, da moda dela: _ Em certa aldeia da “Mancha” (que é um pedaço da Espanha) vivia um fidalgo, aí duns cinqüenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adarga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal – cachorro de caça...

(reconto de Monteiro Lobato: 1936)

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O homem não tem importância. Era uma aldeia como tantas outras que havia na “Mancha”. Diferente era o fidalgo, um desses de lança em riste, escudo antigo, magro rocim e galgo corredor...

(adaptação de Orígenes Lessa, 1976)

Fala do narrador: Houve uma vez em “la Mancha” um homem chamado Quixada, completamente apaixonado pelos cavaleiros da Espanha antiga. Quixada gostava de ler sobre suas aventuras, e até vendeu parte de suas terras para comprar mais livros sobre cavaleiros...

(adaptação em quadrinhos de Márcia Williams:1993)

Era um homem ossudo, de uns cinqüenta anos, o tipo fidalgo às antigas que ornamenta sua biblioteca com lança, espingarda e um escudo bichado, artefatos que o ajudam a viver no passado... Michael Harrison:1995 – em inglês.

(No Brasil, tradução de Luciano Vieira Machado: 2003)

Numa pequena aldeia da “Mancha”, província espanhola, vivia um fidalgo. Homem de costumes rigorosos e decadente fortuna. Dom Quesada ou Quixano – nunca ninguém soube ao certo – vivia da exploração de suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Homem forte, altivo e nervoso, cultivava a caça como esporte e forma de abastecer melhor sua mesa.

(adaptação de José Angeli: 1997)

Na Espanha...há muito tempo... [em preto e branco dois homens conversam, Sancho e um outro. Sancho começa a contar...] Em “la Mancha”, meu povoado, morava Alonso Quixano, o tempo todo mergulhado em livros de cavalaria...

(adaptação em quadrinhos de Will Eisner, 1999)

Num lugar da “Mancha”, cujo nome não desejo lembrar, vivia, não faz muito tempo, um desses fidalgos de lança no cabide, escudo antiquado, cavalo magro e galgo corredor.

(tradução e adaptação de Ferreira Gullar: 2002)

Era um fidalgo arruinado. Vivia na região da “Mancha”, na Espanha. Possuía apenas uma casa, um pedaço de terra e um cavalo magricela. Jantava carne picada com cebola e vinagre. Comia lentilha às sextas-feiras...

(tradução e adaptação de Walcyr Carrasco:2002)

Era uma vez um velho senhor dono de uma fazenda. Vivia na Espanha, num lugar chamado “Mancha”, há muito tempo...

(adaptação de Alexandre B. de Souza: 2004)

Num lugarejo em “la Mancha”, não há muito tempo, viveu um fidalgo desses de lança pendurada, adarga antiga, rocim magro e cão bom caçador...

(adaptação em quadrinhos de Caco Galhardo: 2005)

Com certeza, vocês já ouviram falar de D. Quixote. Contam que viveu há muitos séculos em uma aldeia de “la Mancha”, entre campos de trigo e moinhos de vento. O que talvez vocês não saibam é que Dom Quixote não se chamava assim desde criança, pois na verdade havia sido batizado com o nome Alonso Quijano...

(Tradução de Marina Colasanti da adaptação de Agustín Sánchez Aguilar:2005).

Em algum lugar da “Mancha”, numa aldeia espanhola cujo nome não quero lembrar, vivia, faz muito tempo, um nobre homem. Em sua casa às vezes faltava comida. Sua idade beirava os cinqüenta anos...

(adaptação de Leonardo Chianca: 2005)

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14. Existia uma grande aldeia Igual a outras que havia E lá tinha um fidalgo Magro, mas sempre comia. Carne, fritos e lentilhas Ovos e tudo que existia

(adaptação em forma de cordel , de J.Borges e Jô Oliveira:2005)

15. ......................................

Pois numa aldeia da “Mancha” Residia, antigamente, Um fidalgo sonhador, Curioso, inteligente Que lia dias e noites De modo surpreendente

Seu nome: Alonso Quijano Figura magra e esguia Com cinqüenta e poucos anos Gostava do que possuía Comprando livros e livros De heróis de cavalaria

(adaptação em forma de cordel, Antônio Klevison Viana:2005)

Em um lugar da Espanha, cujo nome ninguém lembra, mas ficava numa região chamada “Mancha”, há uns quatrocentos anos, vivia um fidalgo empobrecido. Tinha uma lança e um escudo velhos, herdados de algum tataravô, um cachorro magrelo e um cavalo esquelético, desses que eram chamados de rocim.

(Ana Maria Machado: 2005)

Tomando como referência o texto dos viscondes, passemos a comparar o início de 15

adaptações da obra de Cervantes. O léxico salta aos olhos do leitor-pesquisador por ser a

característica de alternância mais visível. Entre aspas, destacou-se a palavra “Mancha”, nome da

região onde se localizava a aldeia em que morava o herói. Somente dois autores deixaram de

mencionar tal informação.Quando a região de la Mancha não é citada – na versão de Harisson e

no cordel de J.Borges –, pode-se inferir que os autores das paráfrases não valorizaram o espaço

geográfico onde a história se desenrola, mas dirigem suas lentes diretamente para o homem. A

maioria mostra-se, portanto, fiel ao original, mantendo o topônimo como marca fundamental do

clássico de Cervantes.

Outras palavras e expressões modificam-se, atualizando-se, como, por exemplo, fidalgo. A

caracterização do personagem dá a nítida medida do quanto é subjetivo o ato de adaptar textos,

pois envolve processo de seleção e adequação. Alguns adaptadores mantêm a palavra “fidalgo”,

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mesmo nas versões mais atuais; outros, porém, buscam formas mais próximas da linguagem do

jovem leitor. “Fidalgo” foi substituído por “velho senhor dono de uma fazenda”, “nobre

homem”, expressões em que permanece o sema da fidalguia, pois ser “dono de fazenda” ou

“nobre” era próprio dos que tinham a marca da fidalguia, da aristocracia. Vale observar as

diferentes formas de apresentação do herói: “Alonso Quixana”, “um homem chamado Quixadá”,

“Dom Quixote”, “Dom Quesada ou Quixano” “Alonso Quijano”. Trata-se do nome do herói,

portanto deveria ficar inalterado, uma vez que o nome de uma pessoa é marca individual, própria

da cada um, única. Há povos (indígenas), todavia, que nomeiam duplamente os indivíduos: um

nome para a família e outro para o restante da comunidade.

“Aldeia” é termo recorrente, quando se estuda o léxico da obra. Em alguns textos ela é

substituída por “lugar ou lugarejo”, “povoado”, ou simplesmente desaparece. “Lança” é uma

palavra que lemos em algumas versões; não há substituições para este termo.Se o autor acha

irrelevante tal informação, ele corta a palavra.

Já em “adarga antiga” (datação: 1041), o fenômeno é curioso. Somente três das quinze

adaptações usam tal palavra. Em geral ela é substituída por “escudo”: antigo, velho, bichado,

antiquado, de couro. “Rocim” é termo (datação: 1189) que dá origem ao nome do cavalo de Dom

Quixote. Nas adaptações, é substituído por “cavalo”: magro, magricela e esquelético. Nesta

seqüência de qualificadores, percebe-se com clareza que a figurativização do personagem sofre

graus de “rebaixamento”: magro, magricela e esquelético. O discurso em que tem lugar o adjetivo

magro (Gullar) ainda oscila entre o antigo e o novo, pois o autor troca “rocim” por “cavalo

magro” mas não faz o mesmo com “galgo corredor” (cão, cachorro). Já o texto em que o adjetivo

usado é “magricela” (Carrasco) mostra um “fidalgo arruinado” que “possuía apenas uma casa,

um pedaço de terra e um ‘cavalo magricela’” ; agora a descrição do personagem vai compor um

homem mais empobrecido do que o que nos apresentou Ferreira Gullar. O adjetivo “esquelético”

(Ana Maria Machado) revela um valor mais expressivo que “magricela”, além da intenção da

autora de não querer repetir palavras, uma vez que o cachorro já era “magrela”.

Outro ponto relevante destacado do confronto entre as diferentes adaptações foi a noção de

tempo. Curioso ver como em determinados textos os autores-adaptadores alteram radicalmente

esta noção. Pela categoria verbal, principalmente, o leitor recebe a informação de quando a

história acontece no passado. No “prototexto” (obra integral portuguesa: 1876) a tradução dos

viscondes informa que a história aconteceu "Não há muito [tempo]"; a enunciação está posta de

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uma forma a aproximar o “tempo” do interlocutor ao do acontecido pelo herói. O leitor inscrito

no texto de Cervantes/Castilho é um leitor colocado próximo das histórias de cavalaria; ele é,

portanto, capaz de compreender bem o narrado.

Em 2 (vivia), 3 (era) , 4 (houve uma vez), 5 (era [uma vez] um homem ), 6 (vivia), 9 (era

[uma vez] um fidalgo), 10 (era uma vez), 13 (faz muito tempo) e 14 (existia), temos um grupo

de verbos e expressões que marcam a temporalidade da narrativa. Tudo ocorreu no passado e as

versões estão de acordo em manter dessa maneira.

Recuperando o tom dos contos fabulosos, o era uma vez e suas formas variantes – houve

uma vez, era, vivia e existia – com suas nuances semânticas nos transportam para um tempo

pretérito; o “contrato” assinado pelo leitor com o texto determina um deslocamento ao passado e

a possibilidade do imaginário, presentificando o vivido. Dividindo em grupos, talvez pudéssemos

dizer que era uma vez, houve uma vez e era trazem a marca do imaginário mais forte do que

vivia (=habitava, residia) e existia (= teve existência), porquanto estes dois últimos carregam

marcas de realidade. Na versão 15, o cordelista usa a forma residia; a escolha do verbo “residir”

acrescenta um valor de “verdade”, de comprovação, pois tal forma verbal denota estar

estabelecido, morar, ter residência fixa.

O jogo comparativo fica mais interessante quando ladeamos a versão 7: Há muito tempo

(Will Eisner: 1999) com a 8: Não faz muito tempo (Ferreira Gullar:2002) e nos interrogamos:

afinal, faz ou não faz muito tempo ? Talvez pudéssemos explicar a diferença entre o discurso de

Eisner e o de Gullar: os quadrinhos de Eisner trazem uma enunciação de um presente, logo muito

afastada da enunciação do discurso cervantino; o discurso de Gullar por sua vez quer ser fiel ao

do original, de onde partiu o tradutor e adaptador da obra.

Finalizando este percurso do uso do tempo, vejamos a versão 11 (Caco Galhardo: 2005). O

cartunista também mantém fidelidade ao original e usa Não há muito tempo. Nota-se que a

manutenção da língua usada por Cervantes é opção do artista, pois ele sabe que pode contar com

o apoio do código iconográfico para explicitar o sentido ao leitor do século XXI. Em 12 (tradução

de Marina Colasanti: 2005) – Há muitos séculos – percebe-se um valor de precisão na passagem

do tempo. Em 16 (Ana Maria Machado: 2005) – Há uns quatrocentos anos – vale comentar o

tom informal trazido pelo termo indefinidor “uns” anteposto a quatrocentos anos.

Pode-se concluir que quem conta um conto transforma-o. Nos exemplos apresentados, ficou

clara a intenção de alguns autores-adaptadores: (i) ser fiel ao original; (ii) modificar parcialmente

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a história e (iii) afastar-se bastante do prototexto, buscando o caminho da paródia (cordel de J.

Oliveira) ou produzindo um discurso bastante autoral (Lobato).

Há que se destacar ainda: (i) a imposição do código e do gênero; o texto em quadrinho exigirá

estratégias diferentes do literário. (ii) o cuidado do autor na adaptação de textos para leitores

iniciantes. Vê-se o uso da metalinguagem como procedimento criador de um tom pedagógico no

texto lobatiano. (iii) o caráter subjetivo da leitura realizada pelo autor da adaptação, pois os cortes

feitos no original não obedecem a critérios gerais, são caminhos de leitura escolhidos pelo

adaptador. (iv) há, no entanto, um léxico que se impõe, não permitindo um afastamento radical do

texto a ser recontado.

3. “Soberana Senhora”: a língua nos planos léxico-semântico,

morfo-sintático

3.1 Dom Quixote das crianças: um estudo da obra de Lobato

O menino queria saber se ela [Dona Benta] estava contando a história inteira ou só em pedaços.

_Estou contando apenas algumas das principais aventuras de Dom Quixote, e resumidamente. Ah, se fosse contar o Dom Quixote inteiro a coisa iria longe! Essa obra de Cervantes é bem comprida, passa de mil páginas numa edição in-16 mas só adultos, gente de cérebro bem amadurecido, podem ler a obra inteira e alcançar-lhe todas as belezas. Para vocês, miuçalha, tenho de resumir, contando só o que divirta a imaginação infantil. (p.70)

A análise dos dados partirá fundamentalmente do estudo realizado por Ángel Rosenblat17

intitulado La lengua Del “Quijote” (1971). A princípio, pensamos em cotejar simultaneamente as

três obras: O Quixote na narrativa de Castilho e Azevedo, na de Lobato e na de Gullar. A escolha

baseou-se na importância de cada texto para sua época. O livro dos viscondes, versão integral da

obra de Cervantes, vem sendo valorizado e reconhecido desde o século XIX, quando saiu, em

Portugal, a primeira edição. Lobato celebra a obra dos autores lusitanos, fazendo referências

diretas em sua própria paráfrase, consagrada pelo tanto de originalidade que apresenta; é, sem

dúvida, a versão brasileira para as crianças (e jovens) mais relevante do século XX. Gullar,

17 Ángel Rosenblat (1904-1984). Filólogo e professor universitário, nasceu na Polônia, aos seis anos foi para Argentina, morou em Madrid, Equador, naturalizou-se Venezuelano. Discípulo e colaborador de Amado Alonso, de quem, como podemos perceber, recebeu influências.

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reconhecido poeta brasileiro, destaca-se no papel de tradutor e adaptador de Dom Quixote no

século XXI. Sua adaptação, uma das mais lidas por jovens, é cuidada, desde as ilustrações – as

mesmas do livro de Cervantes, de Gustavo Doré –, passando pela diagramação, pela capa, pelo

papel e, principalmente, pelo texto. O livro de Gullar foi premiado e distribuído pelas escolas.

Essa foi, enfim, a seleção das obras que serviram de base para a observação do trabalho

com a língua portuguesa em recontos para leitores iniciantes.

A proposta de estudar três obras concomitantemente tornou-se inviável porquanto o texto

de Lobato difere dos outros dois em termos discursivos. A estrutura do reconto lobatiano é ímpar.

Ele não parte do texto integral, selecionando passagens que devam ser cortadas. Para contar a

história do Cavaleiro da Triste Figura, Monteiro Lobato engendra duas narrativas: uma dá conta

do cotidiano do Sítio do Picapau Amarelo, leva o leitor a participar da rotina de Dona Benta, seus

netos, Nastácia e de todos os que lá habitam. Sabemos o que comem, a hora em que dormem,

presenciamos as discussões das crianças, rimos com as asneiras de Emília, enfim, passamos a

conviver com a família Encerrabodes de Oliveira. Uma vez dentro do universo lobatiano, o leitor

é levado a partilhar dos “serões” de Dona Benta, a ouvir a história lida ou contada pela avó de

Narizinho. Por obra da traquinas Emília, viajaremos para Mancha por meio das palavras de

Castilho,Azevedo e das de Dona Benta.

Era, pois, muito difícil debruçar-nos sobre as convergências e divergências encontradas

entre os três livros que contam a saga do fidalgo manchego, porque é impossível desprezar a

outra narrativa em Dom Quixote das crianças. O texto de Lobato foge aos padrões das versões,

mas não deixa romper o fio que o liga a história original ao prototexto.

Em obediência à cronologia, começaremos pelo livro de Monteiro Lobato. Emília

“descobre” o livro de Cervantes na estante da sala de Dona Benta, quando a velha senhora sai de

casa. A boneca adorava ver figuras. No caso, o narrador nos informa que as ilustrações eram de

Gustavo Doré. Ao se deparar com o nome “Saavedra” no primeiro capítulo do livro, ela

exclamou:

_Por que estes dois aa aqui, se um só faz o mesmo efeito – e, procurando um lápis, riscou o segundo a. (p.8-9)

Uma questão lingüística se interpõe desde o início.

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Dona Benta começa a leitura: _Este livro – disse ela – é um dos mais famosos do mundo inteiro. Foi escrito pelo grande Miguel de Cervantes de Saavedra...Quem riscou o segundo a de Saavedra? _Fui eu, disse Emília. _ Por quê? _ Porque sou inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente com coisas inúteis. Se um a diz tudo, para que dois?

_Mas você devia respeitar esta edição, que é rara e preciosa. Tenha lá as idéias que quiser, mas acate a propriedade alheia.

Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho

e pelo Visconde de Azevedo (...)

_ O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa, isto é, um dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o português a fundo, deve lê-lo – e também Herculano, Camilo e outros. (p.9)

Como vimos na epígrafe, as palavras da avó já traduzem o projeto de Monteiro Lobato:

selecionar da obra de Miguel de Cervantes trechos que pudessem agradar as crianças, que

alimentassem a imaginação delas.

Em sua correspondência ao amigo Godofredo Rangel, Lobato deixa clara a relação com a

língua18, como podemos constatar na passagem da carta de 17/1/1920:

Rangel:

Tens toda e não tens nenhuma razão. Tens-na no meu caso: não sou literato, não pretendo ser, não aspiro a louros acadêmicos, glórias, bobagens. Faço livros e vendo-os porque há mercado para a mercadoria; exatamente o negócio do que faz vassoura e vende-as, do que faz chouriços e vende-os. Se por acaso algum dia fizer outros livros, hei-de usar letreiros das fitas.

Na voz da boneca tagarela, a opinião do autor a respeito das regras gramaticais é revelada.

Já em 1924, Monteiro Lobato, ao publicar o conto O colocador de pronomes, expressa seu

pensamento sobre a rigidez das normas gramaticais.

Ainda nas primeiras páginas de Dom Quixote das crianças, Lobato deixa transparecer a

intenção de contar a história do clássico de Cervantes em linguagem acessível aos leitores

infantis.

18 Para este bloco do trabalho, recorreu-se à monografia produzida ao final do curso ministrado em 2004, na UERJ, pelo professor Dr. José Carlos de Azevedo, O Português escrito no Brasil: a língua literária.

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_ Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia não há muito um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.

_Che! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não...(p.10)

A avó, como boa mediadora, percebe que a linguagem está mesmo desatualizada e

negocia com as crianças: _ Meus filhos – disse Dona Benta – esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas da forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas. (idem)

Emília acrescenta: _Isso ! – berrou Emília. Com palavras suas e de tia Nastácia e minhas também – e de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevesado lá entre eles. Nós que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido. (ibidem) _ Eu gosto dos períodos simples, que a gente engole e entende sem o menor esforço. (p.86)

Estava selado o contrato de comunicação. Daí em diante a história começa e

imediatamente um trabalho instigante pode ser observado. As vozes se cruzam nos fios de

Lobato, que deixa bem evidentes os lugares da enunciação: (i) Dona Benta, como narradora,

transita pelas variedades formal e informal, ora enuncia do lugar dos viscondes ora do lugar da

avó-contadora de histórias; (ii) na fala dos personagens de Cervantes, observa-se o uso de

linguagem mais formal, quando a voz é de Dom Quixote, do padre, do bacharel, entre outros.

Quixote era fidalgo, todos os outros eram leitores. A linguagem torna-se mais coloquial quando

personagens da camada popular participam da cena, principalmente quando Sancho Pança, que

não sabia ler nem escrever, toma a palavra; sua marca principal eram os provérbios, formas

simples da sabedoria do povo.

Gostaríamos de chamar a atenção para o malabarismo lingüístico na voz narradora. O

narrador prenuncia, muitas vezes, o perfil do personagem. Antecipando o lugar da enunciação,

ele se apropria do estilo e da linguagem, mais ou menos formal, que forjam o discurso dos doutos

ou dos rudes.

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Dona Benta usa o discurso formal de Castilho:

O júbilo de Dom Quixote foi intenso e imediatamente a comichão das aventuras fez-se sentir em seu corpo e em sua alma. Correu a selar Rocinante.

(Dona Benta porta-voz de Castilho, p.17)

Foram feitas algumas perguntas ao herói escalavrado, mas Dom Quixote não queria saber de histórias. Só queria saber de comer e dormir, de modo que tiveram de o deixar em paz. (idem, p.21)

Agora, a fala da avó é simples, coloquial

Dom Quixote, porém não quis almoçar. Possivelmente vivia de brisas.

(Dona Benta, a avó, p.26)

Dom Quixote se dirige às “vagabundas” em linguagem ultraformal:

_Senhoras castelãs, não foi desventurado o acaso que me trouxe ao vosso esplêndido castelo. O meu escudeiro dir-vos-á quem sou, já que a mim não me fica bem gabar-me. Limito-me a agradecer-vos tantos e tão finos obséquios, dos quais me lembrarei eternamente. (Dom Quixote, p.36)

Sancho e os provérbios, marca da fala do escudeiro, homem simples:

_Ah, isso há de ser difícil, meu amo, porque tenho na cabeça mais rifões do que os há nos livros. Dá aos pobres que emprestas a Deus. Foi buscar lã e saiu tosquiado. Quem quer vai, quem não quer manda. Os rifões são tantos dentro da minha cachola, que quando abro a boca eles se atropelam para sair. E, afinal de contas, não constituem a sabedoria popular? (p.81)

O livro Dom Quixote das crianças é, pois, fruto da proposta lobatiana. Já no título pode-se

observar a criatividade e a intenção do autor-adaptador, uma vez que o uso da preposição “de”

em lugar de “para” revela a idéia de posse, de interação com o texto. A história é “das” crianças,

com toda a idéia de “movimento” que a preposição “de” carrega, contrariando o caráter estático

da preposição “para”, que nos passa a idéia de silenciamento, de não participação do leitor; este

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precisa movimentar-se para se apropriar. Lobato afirma em Emília no País da Gramática (1987)

que as preposições são cordinhas da língua; elas servem para amarrar as idéias.

Os pequenos poderiam alimentar a imaginação, ouvindo ou lendo as aventuras do

Cavaleiro da Triste Figura. Dom Quixote não é “para” as crianças, ele é delas. Isso nos lembra a

relação de posse afetiva demonstrada na fala infantil, quando freqüentemente os adultos

perguntam aos pequenos: “De quem é o Fulaninho?” e a resposta – “sou da mamãe” ou “sou do

papai” – é escolhida de acordo com o interlocutor, pois a criança sabe que está em jogo o amor, o

carinho, “dos” e “pelos” mais velhos.

Lobato dá às crianças do Sítio o direito de se apropriarem da narrativa, interferindo

quando bem entendem, perguntando, comentando, ou mesmo optando por não ouvir

determinadas passagens, como no episódio em que Emília, influenciada pela figura do cavaleiro

andante, afasta-se do grupo para brincar. Ela se transforma em Dona Quixotinha e, com lança,

espada e elmo, entra na cozinha montada em Rabicó, assustando Tia Nastácia, chamando-a de

“giganta Frestona” (p.72 e p.75). O desejo do autor é fazer livros “com” as crianças.

O texto de Lobato é singular pela multiplicidade de vozes que apresenta. Ouve-se a voz de

Cervantes (viscondes) na boca de Dona Benta; a linguagem fica rebuscada, “difícil”, mais formal,

como vimos. Em outros, a dicção muda completamente: a avó assume seu modo de dizer, usa

linguagem coloquial, mais informal, o tom do discurso passa a ser o de uma prosa em família.

Dona Benta, na verdade, traz à cena três vozes: a do espanhol Cervantes, a dos

portugueses Visconde de Castilho e Visconde de Azevedo e a sua própria, que representa um

discurso genérico das avós, em cuja fazenda os netos passam férias. Ao usar fidalgo, Dom

Quixote, Sancho Pança, Dulcinéia, Rocinante, Mancha etc., a narradora plasma o discurso

original produzido por Miguel de Cervantes; quando usa, porém (i)...mas Sancho que estava a

cair de sono (p.32), (ii) o cavalo correu a brincar (p.33), (iii) Vendo que não vinha mais nada,

o menino deitou a correr, gritando (p.57), (iv) _ Ah, senhor, como poderemos ir ter a castelos, se

nem de pé conseguimos ficar, segue as marcas estilísticas dos tradutores portugueses e da

sintaxe lusitana. A terceira forma é a que deixa emergir a fala simples, cotidiana. Dona Benta

conversa com os netos. Vale lembrar que o diálogo não é marca exclusiva de Lobato, o próprio

Cervantes lança mão de tal estratégia, sendo os diálogos forte característica encontrada ao longo

de toda obra cervantina.

Vejamos mais sinais da linguagem cotidiana na fala da avó:

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Aquilo era demais. Gines não agüentou. Saltando para o lado, pôs-se a bombardear o cavaleiro com pedras. Os outros fizeram o mesmo. E tal foi a chuva de balas, que o herói da Mancha rolou por terra. Um dos forçados tirou-lhe da cabeça a bacia e deu-lhe uma dúzia de baciadas no lombo. Outro furtou-lhe o casaco, outro, isto ou aquilo, tanto ao cavaleiro como ao escudeiro e por um triz não os largaram completamente nus.Feito o que, abalaram. (p.50)

Seria empobrecedora a análise que buscasse somente os recursos utilizados pelos

adaptadores em pauta. O texto de Lobato ultrapassa as fronteiras da adaptação. Recebe a “grife”

do autor.

A língua portuguesa usada no discurso literário de Monteiro Lobato é inovadora, criativa.

Ele abusa de estratégias lúdicas. Sua narrativa, de caráter coloquial, abre espaço para construções

populares, permitindo, assim, libertação das normas e, conseqüentemente, surpreendendo o leitor.

Eliana Yunes define bem o perfil de Lobato em estudo sobre o autor:

Sem romper ideologicamente com as raízes – e neste sentido não será modernista – Lobato renovou a perspectiva de sua projeção na prática, através de seu texto e portanto de sua linguagem – e neste sentido permanece moderno, atual.19

Passaremos, a partir deste ponto, a adotar, como base de nossa análise, os postulados de

Rosenblat, anunciados no primeiro parágrafo desta seção. O objetivo é cotejar a língua trabalhada

esteticamente por Cervantes e por Lobato, ao contarem a saga do engenhoso fidalgo.

Cervantes, como ensina o filólogo que nos orienta, logo no início do livro La lengua de

“Quijote”, mostrava-se bastante preocupado com a língua castelhana, dialeto dos aldeões cuja

vida literária teve início nos séculos XVI e XVII. No século XV, procurou-se enobrecer o tal

dialeto. Antonio de Nebrija escreve em 1492 a primeira gramática da língua castelhana, o

primeiro compêndio sobre as regras de uma língua vulgar que se escreveu na Europa. Não

devemos esquecer que, na Europa, os séculos XVI e XVII assistiram ao florescimento do Barroco

ou Seiscentismo , como é chamado em Portugal.

As características principais, no uso da língua no período barroco, são as figuras de

linguagem, com suas metáforas, antíteses, hipérboles..., os arcaísmos, o léxico mais elaborado

etc. É nosso objetivo verificar se as obras em foco apresentam tais elementos, e com que

propósito.

19 Yunes, Eliana. Presença de Lobato, p.45

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O discurso literário de Miguel de Cervantes é forjado a partir da língua que engendra os

textos barrocos. Cervantes, no entanto, elege o tom da crítica que se constrói pelo viés do cômico.

O projeto cervantino é o de ironizar a literatura produzida naquela época. Dona Benta explica às

crianças o porquê do livro: Cervantes escreveu este livro para fazer troça da cavalaria andante, querendo demonstrar que tais cavaleiros não passavam de uns loucos. Mas como Cervantes fosse um homem de gênio, sua obra saiu um maravilhoso estudo da natureza humana, ficando por isso imortal. Não existe no mundo inteiro nenhuma criação literária mais famosa que a sua. (p.11)

Para alcançar seu objetivo, ele trabalha com o mesmo material, com os recursos

disponíveis na língua castelhana, porém, a forma de elaborar o discurso é inovadora,

transgressora.

Seguindo o modelo de língua barroca e da proposta daquele movimento literário, Miguel

de Cervantes traz às páginas de seu engenhoso fidalgo muitas das características do discurso

barroco, como, por exemplo, a antítese, figura de destaque em tais textos. O principal exemplo

perpassa a obra inteira; a oposição entre Dom Quixote e Sancho Pança é mostrada desde as

características pessoais – um é alto, o outro é baixo; um é leitor, outro é analfabeto – até o modo

de dizer de cada um deles: um se expressa numa língua cuidada, elaborada, aprendida nos livros;

o outro se comunica por meio da língua popular, coloquial. A antítese, todavia, não pretende

mostrar a oposição simplesmente. Com este recurso, Cervantes trabalha a idéia das diferenças

que se complementam; Sancho e Quixote são dois lados da mesma moeda: da essência humana.

Rosenblat aponta em Dom Quixote de la Mancha as principais marcas do discurso

literário cervantino. Primeiramente, o estudioso chama a atenção para a “atitude de Cervantes

ante a língua”. Remete-nos ao prólogo de Dom Quixote, a fim de comprovar que ali já se observa

a perspicácia do autor. Há referências ao uso do latim, tão prestigiado pelos intelectuais da época,

em detrimento do idioma falado pelo povo de Espanha. Ao usar esta estratégia em sua narrativa,

Cervantes quer de fato ironizar o comportamento de seus pares.

Ángel Rosenblat prossegue direcionando nosso olhar. Veremos os vários jogos

lingüísticos propostos pelo criador do Cavaleiro da Triste Figura. São muitos os elementos que

colaboram na composição de um estilo pessoal, a partir dos quais podemos afirmar “isto é

próprio de Cervantes”.

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Pretendemos buscar no reconto de Lobato as marcas do estilo de Miguel de Cervantes, ou

seja, procuraremos observar se a atitude do escritor espanhol ante a língua se mantém no discurso

lobatiano.

Miguel de Cervantes, ao escrever Dom Quixote, ampliou o ideal de língua, demonstrou

constante preocupação com o idioma, inaugurando, com sua obra, uma nova fase da língua

espanhola. Trabalhou sempre as duas vertentes da linguagem: (i) crítica à afetação cultista, (ii)

prevaricações20 da fala vulgar. Aqui já se aproximam os ideais do escritor espanhol com os do

escritor paulista. Lobato também se batia contra as amarras da gramática normativa, limitadora,

segundo ele.

O fragmento destacado do capítulo XIX, da 2ª parte, “onde se conta a aventura do pastor

enamorado com outros sucessos na verdade graciosos”, ilustra, através do diálogo, o ponto de

vista de Cervantes no que concerne ao uso da língua.

A discussão gira em torno das venturas de Camacho, Quitéria e Basílio.

_Não tenho mais que dizer – acudiu o estudante, bacharel ou licenciado, como Dom Quixote lhe chamou –senão que, desde que Basílio soube que a formosa Quitéria casava com o opulento Camacho, nunca mais o viram rir, nem dizer coisa com coisa, e anda sempre triste pensativo, falando sozinho, dando assim claros e certos sinais de que lhe ourou21 o juízo. Come pouco e pouco dorme, e o que come são frutas, e dorme no campo, se dorme, em cima da terra dura, como animal bravio; olha de quando em quando para o céu, e outras vezes crava os olhos no chão, com tal embevecimento, que não parece senão estátua vestida, a que o ar move a roupa. Enfim, dá tais mostras de angustiado, que receamos todos os que o conhecemos, que proferir a formosa Quitéria amanhã o sim fatal seja o sinal da morte. _ Deus fará melhor – acudiu Sancho – quem dá o mal dá o remédio; ninguém sabe o que está para vir; de hoje até amanhã não me doa a cabeça, e numa hora cai a casa; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo; a gente deita-se são e acorda doente; e digam-me se há por ventura quem se gabe de ter travado a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher não me atrevia eu a meter a ponta do alfinete, porque não caberia; queira Quitéria de coração e deveras a Basílio, e pode este contar com um saco de ventura, que o amor, pelo que tenho ouvido dizer, olha de tal maneira que cobre lhe parece ouro; a pobreza riqueza e as remelas pérolas. _Aonde vais parar, Sancho, amaldiçoado sejas –disse dom Quixote –que em tu começando a enfiar provérbios e contos só te pode apanhar o diabo que te leve! Dize-me, animal, que sabes tu de rodas e de alfinetes, nem de coisa nenhuma?

_ Pois se me não entendem – respondeu Sancho –não admira que as minhas sentenças sejam tiradas por disparates; mas não me importa, eu cá me entendo e

20 Termo usado por Cervantes no livro, quando chama Sancho de “prevaricador da boa linguagem,” (II, XIX). Em Houaiss, encontramos a seguinte acepção para o verbo prevaricar: corromper, perverter. 21 Ourar: perder o uso da razão

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sei que não disse asneira; mas Vossa Mercê, senhor meu, é sempre friscal, dos meus ditos e das minhas ações.

_ Fiscal é que tu queres dizer – acudiu dom Quixote e não friscal, prevaricador da boa linguagem, que Deus te confunda! _ Não se agonie Vossa Mercê comigo –tornou Sancho – que não me criei na corte, nem estudei em Salamanca, para saber se aumento ou tiro alguma letra aos meus vocábulos. Valha-me Deus! Como se há de obrigar a um saiaguês a falar como um toledano, se há toledanos que falam como Deus é servido. _Sem dúvida – acudiu o licenciado – não podem falar tão bem os que se criam nas Tenerias e no Zocodóver, como os que passeiam todo o santíssimo dia no claustro da Sé, e contudo são toledanos todos. A linguagem pura e clara falam-na só os cortesãos discretos, ainda que tenham nascido em Majadahonda;disse discreto, porque nem todos os são, e a discrição é a gramática da boa linguagem, que se aprende com o uso. Eu, senhores por meus pecados, estudei cânones em Salamanca e gabo-me de dizer as minhas razões em frase clara, chã e apropriada. 22

A citação é longa, porém necessária; justifica-se, pois nos mostra o pensamento de

Cervantes sobre a língua. Vários temas para reflexão são abordados: a língua do povo,

representada pelos provérbios e trocas de letras de Sancho; o saber formal, adquirido em

Salamanca, a universidade mais antiga da Espanha; o preconceito contra o modo de dizer do

outro; a discrição como gramática da boa linguagem...

Em Lobato, a “prevaricadora” da linguagem é Tia Nastácia, quando diz:

_ Sinhá(...)Emília parece louca. Entrou na cozinha montada no Rabicó, toda cheia de armas pelo corpo com uma lança e uma espada, e uma latinha na cabeça que diz que é o “ermo” de Mambrino... (p.75).

Sancho também “erra” (prevarica) quando se refere ao elmo de Mambrino e diz “elmo de

Malino” (I, XLIV); quando fala tologias em lugar de teologia (II, XXI) ou cris quando queria

dizer eclipse; estil em vez de estéril (I,XII), presonagens quando quer falar personagens (II, III),

ou lógico por longínquos (II, XXIX).

Eis a construção do cômico por meio de palavras, pelos jogos entre “certo” e “errado” no

uso da língua. A ideologia a respeito da relação entre o poder (administrativo) e a gramática fica

evidenciada no seguinte fragmento: os que governam ilhas, pelo menos, têm de saber gramática.

(II, III)

22 grifos nossos

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Observemos alguns aspectos listados por Ángel Rosenblat ao estudar a língua de

“Quixote”: 1) lugares-comuns; 2) comparações; 3) metáforas; 4) antíteses; 5) sinônimos

voluntários; 6) repetições deliberadas; 7) jogos de palavras; 8) jogos com nomes; 9) jogos com

forma gramatical; 10) jogos com diferentes níveis de fala.

De volta a Monteiro Lobato, e de posse das pistas citadas no parágrafo anterior,

buscaremos exemplos capazes de confirmar nossa hipótese, ou seja, que revelem a competência

lingüística do escritor-adaptador. Como bom leitor e como artesão da palavra, Lobato estrutura

seu texto com os mesmos elementos lingüísticos usados por Cervantes. A diferença fica por conta

das preferências individuais, empregar mais um recurso que outro é questão de escolha ou da

“índole” da língua.

3.1.1 Lugares-comuns: narrativas incomuns

Ángel Rosenblat prova que a frase inicial da história de Dom Quixote “Em um lugar da

Mancha” revela o trabalho intertextual com o verso de um romance burlesco –“El amante

apeleado” – incluído no Romanceiro Geral desde 1600. O outro verso “em tierra de que non me

acuerdo el nombre” já aparece no Conde Lucanor. Semelhantes palavras, segundo o pesquisador,

podem ser encontradas em um conto de Decamerão, adaptado por Antonio de Torquemada;

também podem ser lidas no começo da história de Aladim, em As mil e uma noites.

Os exemplos servem para nos lembrar que a língua é um bem cultural coletivo,

propriedade de todos. Ela é, todavia, expressão individual também. A criação literária consiste

em produzir individualmente, com originalidade, efeitos estéticos a partir da língua comum.

Abundante na fala da gente do povo, o lugar-comum é bastante explorado no discurso de

Sancho Pança. ...eu próprio tinha visto aquilo com estes olhos que a terra há de comer(...) o diabo que não dorme nunca... (Castilho, I,XX)

No final do capítulo VII, em que se narra a terceira saída do cavaleiro andante:

a) Esteja descansado, senhor meu E mais servindo a um amo tão principal como é Vossa Mercê. (Castilho I, VII)

b) Os anjos digam amém Palavra de cavaleiro não volta atrás (Lobato, p.23)

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Uma análise comparativa entre o texto integral (a) e a versão de Lobato (b) mostrou-nos

que o criador do Sítio, ao transpor as idéias de Cervantes/Castilho, lança mão do lugar-comum, o

que não acontece na tradução portuguesa.

Destacam-se outros exemplos do emprego do lugar-comum na narrativa lobatiana. Dona

Benta, ao saber que Visconde tinha ficado esmagado sob o livro de Cervantes, afirma:

O que não tem remédio remediado está. (p.9)

O cura e o barbeiro mandaram fechar com tijolos a porta que dava para a biblioteca a fim de cortar o mal pela raiz. (p.21) _ Ah, senhor, como poderemos ir ter a castelos, se nem de pé conseguimos ficar? _São os ossos do ofício. (p.34)

Sancho, governador da ilha, julga causas e ouve os envolvidos.

_ “Juro por tudo que é mais sagrado que entreguei ao meu credor os dez escudos de ouro que ele me deu de empréstimo”. (p.82)

_ “Que raio de diabo é isto, brada o governador. _É então costume comer nesta terra com os olhos?” (p.82)

3.1.2 Jogos com diferentes níveis de linguagem

Dom Quixote é acolhido pelos cabreiros que lhe oferecem boa comida. Diante dos

simples homens, Quixote e Sancho discutem as regras da cavalaria, no que tange ao lugar do

escudeiro na hora da refeição; no entanto, os homens não entendiam aquele palavreado de

escudeiro e cavaleiros andantes... (Castilho, I, XI).

Saciado, Dom Quixote discursa para a platéia “inculta”:

_Ditosa idade e afortunados séculos aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro que nesta idade de ferro tanto se estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras teu e meu! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a mão e apanhá-lo das robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o seu doce e sazonado fruto...(idem)

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Em seus acessos de ira, O fidalgo perde a dignidade expressiva:

Pues voto a tal, don hijo de la puta, don Ginesillo de Paropillo. O como os lhamáis, que hábeis de ir vos solo, rabo entre piernas, con toda la cadena a cuestas. (Cervantes, XXII) Pelo Deus que me criou! – exclamou Dom Quixote já posto em cólera – Dom Filho da puta, dom Ginesillho de Paropilho, ou como quer vos chamais, que haveis de ir agora vós só com o rabo entre as pernas, com toda cadeia às costas. (Castilho, I,XXII) Pelo Deus que me criou! – exclamou D. Quixote já posto em cólera – Dom filho duma tinhosa, dom Ginezinho de Paropilho, ou como que vos chamais, que haveis de ir agora vós só com o rabo entre as pernas, com toda a cadeia às costas. (atribuído23 a Castilho, IXXII). Não aceito desculpas – gritou Dom Quixote, já tomado de cólera. _ Ordeno-te Ginesinho de Parapilha, que, com teus sócios, vás cumprir a penitência de que te falei, pois ao contrário pico-vos a todos com a espada. (Lobato, p.50)

Na voz de Dona Benta, a linguagem passa por uma censura, o termo chulo desaparece,

pois crianças não podiam ouvir nem falar palavrão. O palavrão é também um tabu lingüístico em

outros discursos, como observamos pela substituição da expressão filho da puta por filho de uma

tinhosa na versão eletrônica apresentada.

Em outra passagem, Dona Benta recrimina Emília pelo uso da palavra besteira:

_Lá vem você com as palavras plebéias! Muitas professoras, Emília, criticam esse seu modo desbocado de falar. “Besteira” Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie. Use expressão mais culta. Diga, por exemplo, “tolice”. _E não é a mesma coisa? _É, mas não ofende o ouvido das pessoas finas.(p.80)

Sancho tenta recordar os termos da carta que o amo escrevera a Dulcinéia, porém

confunde os termos mais sofisticados.

_ Valha-me Deus, senhor licenciado; se me lembra algum ponto da carta, o diabo que o leve já. Só me lembra, que no princípio dizia Alta soterrana senhora! _Não havia de ser soterrana –disse o barbeiro –havia de dizer sobre-humana, ou soberana senhora. _Tal qual – disse Sancho. (Castilho, I, XXVI)

O escudeiro, no cargo de governador, ameaça o lavrador que fora pedir seiscentos

ducados: 23 O texto, copiado da internet, da Wikisource é, segundo a página, versão dos viscondes.

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_ Voto a tal, rústico e malcriado, que, se não saís imediatamente da minha presença, com esta cadeira vos abro a cabeça de meio a meio! Filho da puta, patife, pintor do demônio em pessoa. (Castilho, II, XLVII)

3.1.3 Formalismo de Dom Quixote: a língua a favor da imaginação

Parece simples colocar em termos dicotômicos o funcionamento da língua. Sabe-se que

não existem apenas dois lados na questão. Pode-se encontrar pelo menos quatro níveis de

formalismo lingüístico: ultraformal, formal, semiformal e informal (Oliveira, 2003), que estarão

diretamente atrelados à situação de uso da língua e aos diferentes gêneros discursivos. Adotou-se,

neste trabalho, a nomenclatura formal/coloquial, pois o objetivo é observar a construção de

personagens – Quixote e Sancho, principalmente – que representariam grupos distintos, embora

suas diferenças sejam partes de um conjunto maior: a humanidade. A essência humana é formada

de características antitéticas, como já observado. Tais aspectos estão bem explicitados por

Cervantes em sua obra-prima. A língua, bem simbólico da humanidade, traz em si “oposições”.

Suas regras, como tudo relacionado ao homem, também são muitas vezes contraditórias. Se o

tempo não pára, a língua também não. E isso concorre para que as contradições e as oscilações

fiquem mais visíveis.

Apesar das polêmicas entre lingüístas, filólogos e gramáticos, ainda se faz grande

diferença entre o uso formal e o uso informal da língua. Sabemos que o falante chamado “culto”

dispõe de mais estratégias lingüísticas de variação e demonstra competência ao adequar seu

discurso tanto a situações formais quanto a informais. Isso fica evidente no texto literário em

foco. Dom Quixote, embora portador de um discurso formal, quer do ponto de vista léxico quer

do sintático, sabe transitar com naturalidade para outra margem do rio. Há momentos em que ele,

ao dialogar com personagens menos escolarizados, ajusta sua linguagem à do interlocutor.

O discurso de Quixote torna-se mais elaborado, principalmente nos momentos em que a

fantasia domina o herói que se traveste, também pela linguagem, para os tempos dos cavaleiros

andantes.

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3.1.4 Termos arcaizantes: vestígio do barroquismo literário

Para não eliminar o “gênio” da língua de partida (espanhol), Monteiro Lobato, em

alguns momentos, mantém a estrutura barroca. O discurso de Dom Quixote destaca-se pela

dicção elaborada, rebuscada. As palavras e a estruturação frasal seguem o modelo do movimento

barroco. O cômico se estabelece, principalmente, nas situações em que o desvairado cavaleiro

interpela pastores, cabreiros, prisioneiros que, evidentemente, desconhecem aquele modo de

dizer, tão longe de sua comunicação cotidiana.

O uso de termos antigos compõe um cenário, remete a um tempo também imemorial:

ao dos cavaleiros andantes, com seus ritos de sagração.

Destacam-se da obra alguns exemplos significativos:

s. abantesma –fantasma

s. avejão – assombração

Recuam os dois para uma das margens do caminho, Sancho atrás do cavaleiro. Aquilo lhes parecia avejões, abantesmas. Cerca de vinte criaturas a cavalo. (p.42)

v. atroar - fazer grande estrondo

Dom Quixote soltou um berro de atroar e exclamou... (p.27)

s. boldrié – cinturão

s. alfanje – sabre

Meia légua dali Dom Quixote tem novo encontro – um homem montado em bonita égua, com um capote de veludo verde sobre os ombros e boné do mesmo pano. ) Num rico boldrié trazia um alfanje mourisco. Botas de verniz rebrilhante, esporas também verdes. (p.69)

s. borrador – caderno de anotações

O livro devia ser um livro sagrado. Como não houvesse nenhum, ele trouxe o borrador onde fazia seus assentamentos diários (p.16)

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s. cura – vigário

O cura ficara a espiar de longe, escondido na moita. De repente, apareceu, fingindo grande surpresa de ver ali Dom Quixote. (p.55)

s. esbirro – policial O esbirro enfureceu-se e, jogando com a lanterna à cara do ex-defunto, afastou- se, rosnando mil desaforos (p.37)

v. estrugir – estrondar

Mas a Dom Quixote o vulto do arrieiro representou-se como o próprio encantador Freston, seu inimigo, que ali vinha para atacá-lo – e sentou-se na cama, preparando-se, apesar das dores, para agarrar o cruel inimigo. Quando o arrieiro passa rente à sua cama, dois braços magros o ferram, enquanto uma voz triunfal estruge. (p.32)

3.1.5 Coloquialismo de Sancho Pança: a estilística dos provérbios

Em relação à linguagem de Sancho, a marca estilística fica mesmo por conta do uso dos

provérbios (rifões), chamados por André Jolles de forma simples. É do livro de Jolles (1976) que

se destaca a definição de provérbio apresentada por Seiler: o provérbio é uma locução corrente

na linguagem popular, dotado de características didáticas e de uma forma que reflete um tom

mais elevado que o discurso comum.

O ditado existe em todas as camadas de um povo, em todas as suas classes, entre

camponeses, letrados e sábios. É empregado sempre que uma situação evoque um saber que

emana de uma experiência. Ele poupa o interlocutor do trabalho de elaborar vivências e

percepções. Talvez por isso seja mais freqüente nas camadas populares da sociedade e na língua

falada.

O saber de Sancho não vem dos livros, como o de Quixote, mas de suas experiências.

Sancho era analfabeto, sabia somente assinar o nome, porém dotado de memória prodigiosa.

Cervantes usa tais ditados para construir o perfil de um homem simples, de um camponês que,

com suas atitudes ponderadas, serve de contraponto ao tresloucado amo. As pesquisas anunciam

mais de duzentos rifões em Dom Quixote de la Mancha.

Uma pequena amostra dos provérbios empregados pelo escudeiro:

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_Prega bem quem vive bem – respondeu Sancho – e eu não sei de outras tologias. (Castilho, II, XX) _ (...) – tornou Sancho _o que estava era a dizer comigo que bem quisera ter ouvido a vossa Mercê antes de me casar, que talvez eu agora dissesse: o boi solto lambe-se todo. (Castilho, II, XXII)

Sancho fala com seu jumento:

_ Lágrimas com pão, passageiras são. (Castilho, II,LV)

Quixote e Sancho encontram-se com lavradores que transportavam imagens de santos

para o retábulo da aldeia. O fidalgo explica a Sancho que São Martinho era caritativo; conta que

o santo homem repartiu a capa com um pobre.

_ Não havia de ser isso – acudiu Sancho – mas é que ele se ateve ao rifão que diz: para dar, e para ter, muito rico é mister ser. (Castilho,II, LVIII)

Quixote chama a atenção de Sancho para que este não use provérbios exageradamente. Ao

que o escudeiro responde:

_ Muito bem, senhor meu amo! Hei de botar tento nisso, porque Deus ajuda quem cedo madruga, e tantas vezes vai a bilha à fonte que um dia lá fica. Ou, como diz o outro, quem se faz de mel as moscas atrai. (Lobato, 81)

Outros rifões encontrados:

Assinar meu nome sei eu – respondeu Sancho; quando fui bedel na minha terra aprendi a fazer umas letras semelhantes às das marcas dos fardos, e diziam que era o meu nome; tanto mais que fingirei que tenho tolhida a mão direita, e farei com que outro assine por mim, que para tudo há remédio, menos para a morte, e tendo eu a faca e o queijo na mão, é o que basta; além disso, quem tem o pai alcaiade... e eu ainda sou mais que alcaiade, porque sou governador, e metam-se comigo e verão: podem vir buscar lã e voltar tosquiados; e mais vale quem Deus ajuda, que quem muito madruga; e as tolices dos ricos passam por sentenças no mundo; e sendo eu rico, e governador liberal, como tenciono era, não haverá falta que o pareça; nada, quem se faz de mel as moscas o comem; tanto tens, tanto vales; e com teu amo não jogues as pêras. _Maldito sejas,Sancho! – acudiu Dom Quixote – sessenta mil Satanases te levem a ti e aos teus rifões; há uma hora que os estás enfiando uns nos outros, e cada um que proferes é uma punhalada que me dás. Eu te asseguro que esses rifões ainda te hão-de levar à forca; por eles te hão-de tirar o governo os teus vassalos. Dize-me aonde os vais tu buscar, ignorante? e como é que os aplicas, mentecapto? Que eu, para achar um só e aplicá-lo a propósito, suo e trabalho como se cavasse. (Castilho, II, XLIII)

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Em trecho pleno de imagens, comparações e produtividade lexical expressiva (desdigam),

elaborado para compor um novo perfil do ignorante escudeiro, Quixote elogia Sancho na segunda

parte da narrativa. Podemos dizer, com Unamuno (1964), que acontece a quixotização de Sancho,

o qual vai assimilando o modo de ser e de dizer do amo:

_ Cada dia, Sancho – disse Dom Quixote – te vais fazendo menos simplório e mais discreto.

_Pudera; alguma coisa se me há de pegar da discrição de vossa Mercê – respondeu Sancho – que as terras de si estéreis e secas, em se estrumando, vêm a dar bons frutos; quero dizer que a conversação de Vossa Mercê tem sido como um estrume deitado na terra estéril do meu seco engenho, e a cultura, o tempo em que tenho servido e tratado, e como isso espero dar frutos de bênção, tais que me não desdigam nem deslizem da boa lavoura que Vossa Mercê fez no meu acanhado entendimento. (Castilho, II, XII)

Sancho usa o discurso formal:

Todos os que conheciam Sancho Pança se admiravam de o ouvir falar tão elegantemente e não sabiam a que haviam de atribuí-lo senão a que os ofícios graves e cargos, ou melhoram ou entorpecem os entendimentos. (Castilho, XLIX)

Ao abandonar a ilha e o cargo de governador:

_Meus senhores, permitam-me que volte à minha liberdade de outrora, pois sem liberdade não há ventura. (Lobato, p.85)

3.1.6 Comparações como estratégia para a construção do burlesco

Rosenblat afirma que, por meio das comparações, se manifesta o gênio hiperbólico do

espanhol. Observemos alguns usos expressivos deste recurso.

Sancho, já governador da ilha, foi preparado para a batalha. Puseram-lhe dois escudos, um

nas costas e outro na frente do corpo, e ele:

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Ficou parecendo mesmo uma tartaruga metida na concha, ou como um pedaço de toucinho entre duas masseiras ou um barco virado na areia. (Castilho II, LIII)

...e entupiu-se com as comidas que restavam, até ficar como um chouriço que com uma gotinha mais rebenta. (Lobato, p.83) [Sancho] só não estava gostando de serem negros como carvão os seus futuros vassalos. (Lobato, p.55)

Para reaparecer na aldeia atravessado um jumento ou metido numa gaiola, pálido que nem um cadáver e por um fio. (Lobato, 65)

Gostaríamos de chamar a atenção para o último exemplo citado. Vê-se ali uma forma

comparativa (que nem) própria da língua oral.

3.1.7 Expressões metafóricas e sua dupla vertente:

da fala popular e da fala culta

O jogo metafórico, como ensina Rosenblat, está muitas vezes a serviço da metamorfose

quixotesca. Dom Quixote confunde estalagem com castelo. Alguns estudiosos vêem nesta

passagem marcas de religiosidade (remete à estrela que guiou os Reis Magos):

Olhando para todas as partes, a ver se lhe descobriria algum castelo, ou alguma barraca de pastores, onde se recolher, e remediar sua muita necessidade, viu não longe do caminho uma venda, que foi como aparecer-lhe uma estrela que o encaminhava, se não ao alcáçar, pelo menos aos portais da sua redenção. (Castilho,I,II)

Dom Quixote, no episódio do casamento de Basílio com Quitéria, discorre alegoricamente

sobre a união entre pessoas enamoradas:

A formosura, só por si, atrai as vontades de todos os que a vêem e conhecem e, como a cordeirinho gostoso, procuram empolgá-las as águias e os pássaros altaneiros; mas se à formosura se juntam o aperto e a necessidade, também investem os corvos, os milhafres e as outras aves de rapina. (Castilho, II, XXII)

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As metáforas mais freqüentes na narrativa de Lobato são as da fala informal, da vida

cotidiana 24: De tanto ler aqueles livros de cavalaria, o pobre fidalgo ficou com o miolo mole.(p.11) Por fim, lembrou-se duma camponesa das vizinhanças a quem andou arrastando a asa quando mais moço, chamada Aldonça. (p.12)

_”Dinheiro! – exclamou Dom Quixote. _Jamais li em meus livros que os cavaleiros andantes andassem munidos do vil metal.” O estalajadeiro torceu o focinho. (p.16) Disse e investiu da lança contra o mercador de língua solta. (p.19)

Ia caindo a noite quando parou à porta da casa de dom Quixote, onde tudo andava de pernas para o ar. (p.20)

Pelo menos estes não mais mexerão com a bola do senhor meu amo.(p.21) Dom Quixote tinha a bola virada. (p.25)

Estou vendo que esse Dom Quixote é o que Tia Nastácia chama de armazém de pancada. (p.25)

Dom Quixote não quis almoçar. Positivamente vivia de brisas. (p.26)

Sancho (...) deitou-se e incontinenti ferrou no sono. Dom Quixote, porém, cuja cabeça era um perpétuo vulcão de aventuras e encantamento, conservou-se de olhos abertos como uma lebre. (p.36)

Vai fincando socos e pontapés naquela massa adiposa. Sancho senta-se estremunhado, julgando ser pesadelo.(p.37)

Sancho escanchado no burrinho e com a ilha a lhe ferver nos miolos. (p.60)

Os efeitos cômicos conseguidos com as metáforas são inegáveis. Em Dom Quixote das

crianças, a linguagem, por pretender alcançar um público em fase de formação, busca uma

identificação com a fala popular, do dia-a-dia.

24 Para o estudo sobre metáforas, consultou-se Metáforas da vida cotidiana, de Lakoff e Johnson (2002). Eles defendem que “metáfora não é somente uma questão de linguagem, isto é, de meras palavras (...) os processos do pensamento são em grande parte metafóricos”. (grifos nossos). A professora Valéria Chiavegatto, numa exposição oral, apresentou a metáfora como processo de pensamento; segundo ela, as palavras são o resultado de tal processo. Chiavegatto chama a esse resultado de “expressões metafóricas”.

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3.1.8 Antíteses e suas artimanhas

A principal antítese da obra de Cervantes está centrada nas figuras dos personagens

principais: Quixote e Sancho. Por serem tão diferentes em sua formação, em sua maneira de ser,

no modo de encarar a vida, representam dialeticamente, em estratégia magistral, toda a

humanidade e seus mistérios. Esta aparente contradição será o fio condutor da trajetória do amo e

do escudeiro ao longo da narrativa que, espetacularmente, acaba por inverter, em alguns

momentos, os papéis de ambos. O leitor percebe a quixotização de Sancho e a sanchização de

Quixote, para usarmos mais uma vez os termos de Unamuno (1964). Sancho, ao sair da ilha

aproxima-se do caráter de Quixote, ao qual não interessam conquistas e bens pessoais. Dom

Quixote, em situações de ira, revela traços rudes, próprios do homem bronco, representado por

Sancho. Ao final da segunda parte, quando o herói está morrendo, a inversão é clara, pois Dom

Alonso Quijana abandona o sonho, enquanto Sancho Pança insiste com o amigo para dar

continuidade às aventuras.

Os grandes diálogos, a conversação, travados entre o simplório Sancho e o letrado

Quixote são embates de ideologias, torneios de linguagem, verdadeiras “aulas” de argumentação.

Voltando nossas lentes para a concretização das idéias, para as palavras que estruturam o

texto em si, muitos exemplos da figura mais recorrente nas obras barrocas podem ser destacados.

Vejamos alguns:

Vede caterva enamorada, que só para Dulcinéia sou massa e alfenim e para todas as outras sou pedra; para ela sou mel, e fel para vós, outras: para mim só Dulcinéia é formosa, discreta, honesta, galharda e bem-nascida, e as outras são feias, tolas, levianas e da pior linhagem; para eu ser dela e de mais ninguém me arrojou a natureza ao mundo. (Castilho, II,XLIV)

No episódio do espancamento de André, o jovem castigado pelo patrão:

Assim mesmo porém foi-se a chorar, e o amo se ficou a rir. (Castilho,I,IV)

Dom Quixote ao ser levado preso numa gaiola:

Depois que Vossa Mercê está engaiolado e encantado, como diz, já lhe deu vontade de fazer águas maiores e menores como se costuma dizer? (Castilho,I,XLVIII)

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Ao atacar um “exército” de ovelhas, Dom Quixote explica a Sancho:

_Querem-se mal – respondeu Dom Quixote – porque este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está namorado da filha de Pentapolim, que é formosíssima, e ainda por cima muito engraçada senhora, e cristã. Seu pai não quer dá-la ao rei pagão, sem ele primeiro renegar a lei do falso profeta Mafoma, e se converter à sua. (Castilho, I, XVIII)

Mais exemplos de trabalho com as antíteses; agora na narrativa de Lobato:

O [exército] da esquerda pertence ao Imperador Alifanfarrão e o da direita ao Rei Pentapolim, seu poderoso inimigo. O maometano Alifanfarrão quer impor suas malditas crenças ao Rei Pentapolim, que é um fiel seguidor de Cristo. Logo, tenho de tomar partido deste último e juntamente com ele atacar os infiéis. (p.40)

Quando vocês crescerem e lerem este capítulo de Cervantes, hão de achá-lo engraçadíssimo – e ao mesmo tempo triste. A loucura é a coisa mais triste que há... _Eu não acho – disse Emília. _ Acho-a até bem divertida. E, depois, ainda não consegui distinguir o que é loucura do que não é. (p. 52-53) O mal e o bem não são eternos. Nem um nem outro duram muito. E nunca estamos mais próximos da vitória do que quando tudo parece perdido (p. 41) _ Isso também não, Emília – disse Pedrinho Sai o mau e também o bom. Saem as invenções, saem as obras de artes , os livros, como este...(p.40)

-Mas como pôde V. Sa. ver tantas coisas em tão pouco tempo em que esteve na caverna – só alguns minutos? Saiba que vi o sol nascer e morrer três vezes durante o tempo que estive lá. (p.75)

Para encerrar a reflexão sobre as artimanhas das antíteses nas obras estudadas, trazemos

as palavras do filólogo Rosenblat: As antíteses de Cervantes nos apresentam duas visões aparentemente antagônicas, mas que se complementam e até se interpenetram. Manifestam ou destacam as duas caras de uma mesma verdade. O drama do cavaleiro com sua loucura, junto à comédia do escudeiro com sua simplicidade e sabedoria natural, se desenvolve de maneira cômica ou burlesca (...) os termos antitéticos se contrapõem e se harmonizam como peças do grande jogo cervantino de vidas e mundos em conflito. (p.113)25

25 Tradução nossa

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3.1.9 Sinônimos voluntários: um reforço na expressividade

A reiteração da idéia serve de suporte ao gênero narrativo, aproxima o discurso literário

ao da língua oral.

Sabemos que sinônimos são palavras com significação semelhante ou afim. Usados por

Cervantes como recurso de clareza ou realce expressivo, sobretudo com intenção de reiterar o

tom burlesco que se mantém em toda a obra, tal estratégia é bastante explorada na obra.

Observemos: Dom Quixote, chamando-lhes aleivosos e traidores, e acrescentava que o senhor do castelo era covarde (...) Dizia aquilo com tanto brio e denodo... continuou na vela das armas com a mesma quietação e sossego que a princípio. (Castilho, I, III)

No exemplo a seguir a sinonímia está a favor de uma idéia de gradação.

Senhor, disse Sancho, eu sou homem pacífico, manso e sossegado (Castilho, I,XV)

Alguns sinônimos apresentam uma aparente antítese:

A veces iba a escuras y a veces sin luz, pero ninguna vez sin miedo (Cervantes, II, LV)

E umas vezes ia às escuras, outras vezes com luz, mas nunca sem medo. (Castilho, II,V)

Nos fragmentos transcritos acima comprova-se uma falha de tradução. No texto de

Cervantes, temos a sinonímia confundindo-se com a antítese. No de Castilho, o sentido é

alterado, pois se instaura uma verdadeira antítese; há oposição clara de idéias.

Em Dom Quixote das crianças quase não foram encontrados sinônimos; talvez porque a

característica do discurso de uma adaptação seja o corte, a simplificação; o uso de sinônimos

voluntários acabaria por retardar a narrativa.

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Lobato, entretanto, não desprezou o estilo da “língua de partida”26, da dicção cervantina.

Exemplifiquemos com um fragmento do episódio em que o padre e o barbeiro queimam os livros

do fidalgo e mandam fechar com tijolos a biblioteca de Dom Alonso:

Mas ficou atônito ao dar com uma parede contínua, sem marca nenhuma na porta. Apalpou-a, sondou, examinou. Por fim chamou a ama. (p.21)

3.1.10 Repetições deliberadas, expressivas

Nem sempre as repetições denotam falha na elaboração de um discurso. Pode-se

perceber o emprego desse estratagema quando a intenção do enunciador é chamar a atenção

para o que é dito e/ou para instaurar o cômico. Eis o exemplo na fala de Sancho Pança:

_Esse costume, senhor escudeiro – respondeu Sancho – pode correr e passar entre rufiões e pelejantes andaluzes (...) eu quero que seja verdade e ordenança expressa pelejarem os escudeiros, enquanto seus amos pelejam (...) e, demais, impossibilita-me de pelejar o não trazer a espada, pois em minha vida nunca a cingi. (Castilho, II, XIV)

A repetição do verbo “pelejar” e do adjetivo “pelejante” pode ser atribuída ao vocabulário

limitado de Sancho, homem de poucas letras, figura picaresca.

Ao cotejar duas edições da obra, encontramos um fato digno de comentário. Os exemplos

abaixo chamam a atenção pelo jogo de coesão que apresentam:

Vio, dice la historia, el rostro mesmo, la misma figura, el mesmo aspecto, la misma fisionomia, la mesma efigie, la perspectiva mesma del bachiller Sansón Carrasco. (Cervantes, II, XIV) Viu, – diz a história, o rosto, a figura, o aspecto, a fisionomia, a efígie, a perspectiva do bacharel Sansão Carrasco! (Castilho, II,XIV)

Na tradução, desaparece o efeito estético da repetição, embora pudéssemos reconhecer um

valor do adjetivo “mesmo” por meio do recurso da elipse.

26 As expressões “língua de partida” e “língua de chegada” são recorrentes nos estudos sobre tradução. Não foi possível localizar a origem da nomenclatura.

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As repetições em Lobato estão presentes basicamente na voz de Dona Benta, quando a

avó assume a responsabilidade sobre o ato de narrar, pois a repetição expressiva é própria da

oralidade.

Alguns exemplos podem ilustrar o que dissemos:

Por isso é que ele era tão gordinho –observou a menina – Esse Sancho, aqui no desenho, parece um chouriço O que quer é comer comer comer (p.25) Dona Benta interrompeu a história nesse ponto. O relógio acabava de bater nove horas. _ Cama, cama, criançada. (p.32)

Pare com Emília, vovó! – gritou a menina furiosa. A senhora até parece Lobato – Emília, Emília, Emília. Continue a história de Dom Quixote. (p.53) O pobre Visconde segue atrás como escudeiro, vestido de uma roupa larga. Só vendo, vovó! [Emília] Está doida, doida (p.72) Os donos da barquinha exigiram cinqüenta moedas de indenização, que Dom Quixote teve de pagar. Depois de bem enxutos ao sol, os dois náufragos seguiram o seu caminho e andaram andaram andaram até o encontro duns caçadores... (p.76)

3.1.11 Jogos de palavras: o engenho e a arte do autor

O jogo começa no próprio título do livro: O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la

Mancha. O substantivo “engenho”, base para a formação do adjetivo em foco, significa “talento,

habilidade, inventiva”. Rosenblat nos fala, todavia, de um outro sentido embutido na palavra:

“delírio paradoxal, melancolia, discrição”. Cervantes jogaria com a polissemia da palavra na

busca de um efeito de sentido irônico no texto.

Os jogos de palavras, aliados a outros recursos, são recorrentes em toda a obra. Na

verdade, tudo em Quixote é jogo para realizar uma significação ou uma dupla significação. Este

recurso contribui para manter uma atmosfera de engenhosidade.

Para ilustrar, transcreveremos uma fala de Sancho.

_Lá com o gramar entendia-me eu – tornou Sancho – com ticas é que não as entendo. (Castilho, II,III)

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A discussão entre o escudeiro e o bacharel Sansão Carrasco sobre a importância da

gramática possibilitou o jogo com o verbo gramar, possivelmente, em se tratando do Pança, na

acepção de “comer de uma só vez, engolir”:

Da narrativa de Lobato, destacamos um exemplo na fala do narrador, ao descrever a

comedoria servida à noite por Nastácia:

E sempre um café coado na hora que era “da hora”, como Narizinho dizia. (p.48)

A expressão “da hora” é considerada gíria. Vale ressaltar que o uso estaria autorizado,

uma vez que tais palavras são proferidas no discurso da menina Lúcia. Sabe-se que a linguagem

dos jovens, em geral, é carregada de gírias.

Lobato revela consciência lingüística ao escrever entre aspas os termos que migraram de

um discurso para outro, ou seja, ao empregar “da hora” – expressão mais usada na região

paulista, e que significava naquele contexto histórico-social “ótimo, excelente” –, o autor mostra

que sabe adequar a língua à situação de uso. A gíria é efêmera, perde ou modifica muito

rapidamente seu sentido; “da hora” hoje ainda é uma expressão corrente, porém com sentido

diferente; usa-se tal expressão, quando se diz que algo “está na moda”, é atual, é “legal”.

Ainda outro jogo, agora com o nome de Pança:

_“Oh –exclamou Sancho (...) Mas, diga-me, senhor não acha que sejam horas de cuidar da pança? (p.25)

3.1.12 Artesania dos nomes

O nome tem um valor especial na obra de Cervantes. Logo no início, em um lugar da

Mancha de cujo nome não quero lembrar, nos deparamos com um jogo interessante de sentidos,

possibilitando múltiplas interpretações para a frase. O narrador não quer lembrar porque não

sabe? Faz questão de esquecer, porque nomear é reapresentar, e ele não quer reviver pela

memória certas experiências? Ou simplesmente quer fazer mistério, usando dessa estratégia a fim

de criar um caminho para o lúdico que se estabelece diante do leitor logo nas primeiras linhas da

narrativa?

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Lobato mantém a indeterminação do lugar, mas adota um tom didático, ao explicar pela

voz de Dona Benta onde está localizada a região chamada “Mancha”:

Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo... (p.10)

Os topônimos merecem um estudo especial, no entanto, nosso interesse no momento está

voltado para os antropônimos, espaço da criatividade de Cervantes que, tal qual um ilusionista,

cria e transforma os nomes de seus personagens, aproximadamente seiscentos, ao longo da

narrativa.

Antes de passarmos ao estudo de nomes de personagens, vale uma reflexão sobre o nome

da ilha Barataria. O topônimo sugere que Sancho recebeu barato, não pagou pela ilha da qual é

governador.

No primeiro capítulo, o narrador apresenta o fidalgo Dom Alonso, de quem não se sabe ao

certo o sobrenome. Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (...) que se

chamava Quijana. O “desocupado leitor” precisará percorrer as quase mil páginas do livro para

descobrir o verdadeiro sobrenome do herói, revelado no último capítulo, na hora da morte de

Dom Alonso: _Dai-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas sim Alonso Quijano, que adquiri pelos meus costumes e apelido de Bom. (II, LXXIV)

Dom Alonso perde o juízo e sai em busca de aventuras. Acreditando ser um cavaleiro

andante, inicia todo o ritual de sua sagração. Primeiramente, nomeia o cavalo com o qual

atravessará terras, buscando consertar o errado e fazer justiça. Batiza o animal de Rocinante que,

segundo Rosenblat, parece formado com o sufixo “ante”, já que Cervantes usa-o com certa

freqüência, como em “peleante, esperante, mirante, andante, perguntante, narigante”.

Com evidente intenção burlesca, Cervantes nos diz, no primeiro capítulo, que havia criado

o nome Rocinante com a forma “antes”, pois significava o que o cavalo tinha sido anteriormente:

um simples rocim, porque agora era o primeiro de todos os rocins do mundo.

Em Lobato, mais uma vez, a curiosidade das crianças exige uma explicação por parte de

Dona Benta.

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_Que quer dizer [Rocinante] _Nada. Talvez a palavra venha de rocim, que hoje significa animalzinho magro, cavalinho à-toa. O fidalgo achou sonoro o nome de Rocinante e com ele batizou o seu cavalo. Esse nome se tornou tão célebre no mundo inteiro que hoje quem vê um cavalo velho, magríssimo, diz logo: “Ali está um rocinante.” Passou de nome próprio a nome comum.

Lobato, por intermédio de Dona Benta, não perde a oportunidade de ensinar algo às

crianças.

Escolhido o nome do cavalo, faltava arranjar um nome para o futuro cavaleiro. Ele gastou

oito dias para escolher o nome Quixote,27 provavelmente a partir da base “Quixada” à qual se

agregou o sufixo “ote”, de valor pejorativo, como em “pipote, virote” etc. ou afetivo, como em

“muchachote, Arturote” etc. Mais um jogo com a duplicidade de sentidos, com as possibilidades

da língua. Na primeira parte, capítulo XXX, ainda encontramos outros nomes para o herói.

Dorotéia chama-o de “Dom Azote” e “Dom Gigote”. Percebe-se a intenção cômica na escolha

dos nomes dados por Dorotéia ao valoroso cavaleiro, principalmente quando sabemos que

naquela época gigote era um picadinho de carne com outros ingredientes (ensopadinho).

Depois de escolhido o nome, o herói manchego, por analogia com Amadis de Gaula,

grande herói da cavalaria, agregou o nome de sua terra e transformou-se em Quixote de La

Mancha. O título honorífico Dom confere ao cavaleiro honra, respeito e consideração. Embora

não pertencendo à linhagem dos nobres, Alonso Quijano metamorfoseou-se em Dom Quixote

de la Mancha. Uma vez nomeado, ganhou existência.

Ao desenrolar da história, Sancho, seguindo a tradição da cavalaria, agrega a Dom

Quixote outros epítetos: Cavaleiro da Triste Figura, depois de ter sido espancado e perder os

dentes; Cavaleiro dos Leões, quando conseguiu dominar os leões que iam transportados para a

corte.

Os nomes são plenos de significado e respondem ao sentido geral da obra. O antropônimo

Sancho emerge da realidade. Carrega várias acepções: (i) nome tradicional de reis; (ii) em

espanhol, significa “porco”. Combinado com Pança, surte um efeito especial na construção da

comicidade. Devemos ressaltar que o sobrenome Pança marca uma linhagem, pois o escudeiro

afirma com orgulho que tal sobrenome também tiveram seu pai e seu avô (II, XLV).

Outro sentido está na origem de “Sancho”. Do latim, sanctus, o nome do fiel escudeiro é

composto com um pouco de cada uma das características. Ele é gordo, guloso etc; aí está o

27 O sobrenome Quixote existiu na Espanha no século XVI. Covarrubias diz que “quixotes”, na armadura, são as peças que cobrem as coxas. (Castilho, p.77)

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sentido para a idéia de “porco”. Já a palavra sanctus se faz lembrada quando o escudeiro trata dos

ferimentos do amo, adverte-o dos perigos, cuida da alimentação dele; enfim Sancho vive para

comer e proteger Quixote.

A transformação cavaleiresca começa essencialmente com o nome. A lavradora Aldonça

se transforma em Dulcinéia Del Toboso.

Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa moça lavradora de muito bom parecer, de quem ele em tempos andara enamorado, ainda que (segundo se entende) ela nunca o soube, nem de tal desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não desdissesse muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares de princesa e grã-senhora, veio a chamá-la Dulcinéia del Toboso, por ser Toboso a aldeia da sua naturalidade; nome este (em seu entender) músico, peregrino, e significativo, como todos os mais que a si e às suas coisas já havia posto.28 (I,I)

A doçura da moça está representada tanto no nome Aldonça quanto no nome Dulcinéia.

Segundo Covarrubias29, citado por Rosenblat, o nome Aldonza é formado pelo artigo Al mais o

nome donza, corruptela de dolze. A amada de Quixote era moça boa e doce; a mudança do nome

da pastora, como vimos, não foi arbitrária.

Os adversários imaginários do Cavaleiro da Triste Figura têm nomes extravagantes,

como, por exemplo, Pentapolim, Sansão Carrasco.

Os nomes que apresentam o projeto de vida pastoril (II, LVII) também são dignos de nota:

Quijotiz, Pancino, Sansonino Carrascón, Nicoloso (Nicolau, o barbeiro, Curiambro (o cura),

Teresona, (a mulher de Sancho, por ser gorda). Percebe-se, por meio do jogo onomástico, a

sátira ao universo da confraria dos pastores.

Lobato também brinca com nomes. Emília, ela mesma, a voz da irreverência, transforma-

se na Senhora Emília del Rabicó e em Dona Quixotinha:

_Ai, ai! –suspirou Emília. – Quem me dera ter um cavaleiro andante que corresse mundo berrando que a mais linda de todas as bonecas era a Senhora Emília Del Rabicó... (p.27) A mim ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado – bonequinha de circo. Dona Quixotinha... (p.64)

É mesmo mágico, é alquímico, o trabalho com os nomes nas obras de escritores cuja

acuidade lingüística é inegável. O leitor entra no jogo e, se a sintonia for grande, acreditamos que

o prazer de ler fique bem próximo ao prazer de criar, de escrever. A matéria-prima do discurso 28 grifos nossos 29 Sebastián Covarrubias escreveu, em 1611, o primeiro dicionário da língua espanhola: Tesouro da língua castelhana ou espanhola

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literário, a palavra, é transmutada pelas mãos de escritores engenhosos, levando seus

“cúmplices”, os leitores, a um universo de encantamento ilimitado.

3.1.13 Ludismo e forma gramatical

3.1.13.1 Os adjetivos nas malhas do burlesco

Indiscutível a força expressiva da adjetivação em obras literárias cujo valor estético é

reconhecido. Usando a adjetivação binária, a anteposição, a posposição ou seqüência de

adjetivos, Cervantes vai construindo um universo risível.

No palácio ducal, Quixote e Sancho conversam:

[Quixote fala] _Dize-me, truão30 moderno e malhadeiro31 antigo: parece-te bem desconsiderar e afrontar uma dona tão veneranda e digna de respeito como aquela (...) Por Deus, Sancho, reporta-te e não descubras o fio, de forma que venha a perceber-se que és feito de pano grosseiro e vilão (...) Não reparas, desgraçado, que se virem que és um vilão grosseiro, ou um mentecapto divertido, pensarão que sou algum ichacorvos32 ou algum cavaleiro de empréstimo (...) |Não, não Sancho amigo, foge, foge destes inconvenientes, que quem tropeça em falador e gracioso, ao primeiro pontapé cai e dá um truão desengraçado; refreia a língua, considera e rumina as palavras, antes de te saírem da boca... (II,XXI)

Neste fragmento, flagra-se um trabalho primoroso com a adjetivação. Em primeiro lugar,

a seleção lexical é bastante eficaz. O uso de palavras rebuscadas reforça a imagem de Quixote e o

cenário formal criados pelo autor, próprios do universo dos cavaleiros.

Vale comentar que a “veneranda e digna” dona não passava de uma das amas da

duquesa que os hospedava. Dona Rodrigues discute com Sancho por causa do jumento, pois o

escudeiro queria que ela cuidasse do asno, mas a ama ficou furiosa com o pedido. Aqui vale

ilustrar, mais uma vez, o pudor do tradutor, uma vez que no texto original, Dona Rodrigues xinga

Sancho Pança de hijo da puta, porém, na tradução de Castilho, o discurso é atenuado e o palavrão

substituído pela palavra patife.

30 aquele que diverte os outros, palhaço. 31 O que é alvo de zombaria 32 ichacorvo (echacuervos em espanhol): charlatão

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Destacamos ainda o jogo com o arranjo entre palavras, como em “pano grosseiro e

vilão” e em “vilão grosseiro”, em que a palavra vilão assume inicialmente a posição de adjetivo

para, a seguir, fazer as vezes de substantivo.

A construção neológica desengraçada (des+engraçada), aliada ao substantivo truão,

provoca um certo estranhamento por parte do leitor; é possível que ele pare para pensar na figura

de um palhaço sem graça, na cena que tais palavras evocam.

Neste ponto, recorremos a Charaudeau & Maingueneau (2004) para entendermos melhor

a cenografia no trabalho de Cervantes.

Miguel de Cervantes elabora, dentro do discurso literário (cena englobante), um romance

de cavalaria (cena genérica) com o propósito de satirizar tal gênero, escrevendo uma paródia. Os

elementos textuais (cena enunciativa) são magistralmente organizados para que o objetivo do

autor seja atingido. Os adjetivos são de fundamental importância na composição da cenografia da

obra.

Os adjetivos comportam-se, em geral, da seguinte maneira: (i) emprega-se a anteposição

nas falas mais elaboradas do fidalgo e, em alguns momentos, mais solenes, nas do narrador; (ii)

usa-se a posposição nas falas mais coloquiais, como as de Sancho.

Observemos a engenhosidade de Cervantes no uso dos adjetivos.

Caso de anteposição

O duro, estreito, apoucado e fingido leito de Dom Quixote ficava logo à entrada daquele estrelado33 estábulo. (I,XVI) Então o governador disse à mulher: _Deixai cá ver, honrada e valente mulher, essa bolsa. Logo ela lha deu, e o governador restituiu-a ao homem (...) (II,XLV)

No primeiro exemplo, o narrador antepõe os adjetivos porque a descrição faz referência a

Quixote, fidalgo, cuja dicção é, via de regra, sofisticada.

Já no segundo fragmento, percebe-se no discurso de Sancho a força da formação

discursiva34 dos que ocupam lugares de poder. O fiel escudeiro enuncia do lugar de governador.

O discurso de Pança, como todos os demais, é socialmente marcado. A fala do governador

33 o adjetivo estrelado quer dizer que pelas fendas se viam as estrelas. 34 Formação discursiva: noção introduzida por Foucault e reformulada por Pêcheux

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Sancho precisa estar alinhada ao discurso das autoridades administrativas; portanto, o simples

lavrador, no cargo máximo na ilha Barataria, não poderia empregar qualquer nível de linguagem.

Anteposição em Lobato

Haja o que houver, a minha fiel espada tem que vencer no fim – e Freston será castigado. _Amém! – tornou o escudeiro e ajudou o moído amo a repimpar-se sobre Rocinante, que mal podia agüentar-se de pé. (p.24) A vitória final o entusiasmou tanto que [Sancho] correu para Dom Quixote, para ajoelhar-se e beijar-lhe a mão, dizendo: -Que vitória estupenda, meu senhor! (p.28) Sentindo-se vigoroso e alegrinho, Dom Quixote tratou de safar-se dali em procura de novas aventuras. Foi ele mesmo selar Rocinante e o burro, sobre o qual colocou o descorado e gemebundo Sancho. (p.38)

_ Sancho! Sancho! Não bebas esse pérfido licor, porque te matará! Tenho aqui comigo o maravilhoso bálsamo de Ferrabrás. (p.39) _ “Requeijões frescos, senhor? Repetiu Sancho, fazendo-se de assombrado. _Malditos encantadores! De que haviam de lembrar-se para perder-me no conceito do meu bom amo! Ma passe para cá massa, senhor, que a guardarei no meu bucho.” (p.72)

O uso dos adjetivos antepostos são abundantes, podem ser encontrados por toda a obra.

A posposição _Segue o teu conto, Sancho – disse Quixote.

_Digo pois – prosseguiu Sancho – que num lugar da Estremadura havia um pastor cabreiro, quero dizer: um pastor que guardava cabras... (I, XX) _”Ah, senhora! – exclamou o metediço Sancho – Foi uma viagem espantosa. (Lobato,p.80)

Pode-se observar o contraste entre o emprego do adjetivo metediço, anteposto na fala do

narrador, e o uso do adjetivo espantosa, posposto na voz do escudeiro. Nem sempre, porém, o

narrador se distancia da variante lingüística do personagem; muitas vezes, ele busca uma

aproximação, uma identificação com tal variante, como no exemplo: Enquanto o escudeiro ia

acomodando no bucho os requeijões esmagados, Dom Quixote enxugava a cara e a

barba...(Lobato, p.72). As palavras bucho e cara foram selecionadas por um narrador que se

deixa contaminar pelo modo de dizer do personagem. Tais vocábulos entrecruzam a voz do

escudeiro com a voz do narrador.

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A plasticidade da exuberante adjetivação merece um destaque especial:

Aqui soltou Dom Quixote um grande suspiro, e disse:

_Não poderei afirmar se a minha doce inimiga35 gosta ou não de que o mundo saiba que eu a sirvo. Só posso dizer, em resposta ao que tão respeitosamente se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria El Toboso, em lugar da Mancha; a sua qualidade há de ser, pelo menos, princesa, pois é rainha e senhor minha; sua formosura, sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos de formosura que os poetas dão à sua dama; seus cabelos são de ouro; a sua testa campos elísios; suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são tais, segundo eu conjeturo, que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las.

(Castilho,I,XIII)

Combinações inusitadas, expressões metafóricas espetaculares, ordenações incomuns e

elipses expressivas. Eis os principais elementos com que Cervantes, de maneira alquímica,

transforma a linguagem, produzindo uma peça de inegável valor estético.

3.1.13.2 O léxico e seus sortilégios

Este tema é extenso e instigante, todavia não é nossa intenção dar conta de todos os

recursos da língua utilizados por Cervantes, tampouco pelos autores-adaptadores.

Optou-se por destacar algumas formas mais recorrentes ou mais inusitadas.

A produtividade dos sufixos, verifica-se nos exemplos abaixo, é um dos recursos

responsáveis pela ambiência cômica da narrativa:36

Ada: pratarrada, livralhada, ferralhada, poeirada, quixotada, espaldeirada, peneirada, barulhada (Lobato)

Udo: Um governador...unhudo e sujo (Lobato, p.81)

(com as unhas mal cuidadas)

Partiu André algum tanto (...) trombudo (Castilho,I,IV)

(de fisionomia fechada;zangado)

barrigudo (Lobato), pançudo escudeiro (Lobato)

35 Em nota explicativa, ficamos sabendo que “Isso de minha doce inimiga é reminiscência de uma passagem do poeta italiano Serafino Aquilano. (Castilho, p.148) 36 Optamos por contextualizar os exemplos, somente quando houver possibilidade de dúvida quanto ao sentido.

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Ura: ...encontrei em baixo [do livro] uma chatura: era o pobre

Visconde.(Lobato, p.9)

Eira: Dom Quixote exausto da penitência e da caminheira (Lobato, p.57)

Ola: _Tá,tá,tá! Lá vem asneirola (Lobato, p.81), cachola (Lobato),

galinhola (Lobato)

Ona: despachadona (Castilho, I,XX)

Oso: ditoso (Cervantes, Castilho, Lobato)

Ote: Quixote (Cervantes, Castilho,Lobato, Gullar )... meninote (Lobato, p 56)

Ica: Sanchica (Castilho, II,L); palmadicas (Cervantes, I,XXV)

Ito: Maravilhar-me-ia eu, Sancho, se não misturasses no colóquio algum rifãozito. .Ora bem, perdôo-te, contanto que te emendes. (Castilho, II,XXVIII)

Inho/inha: vestidinha, barquinha, loucurinha, boazinha, gordinho, embrulhinho, picadinho, famosinha, vinhinho (Lobato) Ão: cabeção (Castilho, II, XVII) livrão, carão, gaiolão, bengalão , bioão, barbadão (Lobato)

As palavras formadas pelos sufixos inho/inha e ão em Dom Quixote das crianças

apresentam grande freqüência, pois estamos diante de uma narrativa recontada para os pequenos;

por isso a linguagem fica mais coloquial e, como se pode observar, os diminutivos e

aumentativos são marcas expressivas na língua oral.

No caso do diminutivo, a diferença é semântica porque o sufixo inho/inha tanto agrega

valor de pequenez quanto de afetividade aos seres. A maioria dos exemplos listados foi usada em

relação à boneca de pano, personagem muito especial para Lobato; nota-se um carinho muito

grande do autor por Emília, criatura autorizada a dizer as palavras irreverentes e a expressar

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idéias “interditadas” no discurso do autor; afinal, ela é só uma boneca! Já na fala de Narizinho,

percebe-se uma ponta de ciúme da menina em relação à boneca:

_ Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar as suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós (p.28).

O discurso infantil também se caracteriza pela expressividade do aumentativo.Tudo é tão

grande sob a ótica da infância! A boneca humanizada desejava os livros depositados nas mais

altas prateleiras da estante: (...) Mas como fosse muito pequena, só alcançava os da prateleira de

baixo (...).subiu na escada e alcançou os livrões. (p.7)

3.1.13.3 Um jogo interessant(íssimo) com o superlativo

Vamos abrir um espaço especial para o sufixo formador de palavras no grau superlativo,

pois que é abundante, tanto na narrativa original quanto na adaptação em foco. É uma das marcas

do estilo de Cervantes. Vale lembrar o personagem José Dias, de Machado de Assis, que se

notabilizou pelo uso das formas superlativas. Em Lobato a forma sobressai, o uso daquele

elemento é exuberante; são mais de 70 palavras formadas pelo sufixo íssimo.

. O que chama a atenção do leitor, nos textos analisados, é o uso intenso da forma

superlativa.

Exemplos de Cervantes no discurso de Dona Dolorida ao dirigir-se aos Duques, a Dom

Quixote e a Sancho:

_ Confiada estoy, señor poderosísimo, hermosísima señora y discretísimos circunstantes, que há de hallar mi cuitísima en valerosísimos pechos acogimento(...)el acendradísimo caballero don Quijote dela Manchísima y su escuderísimo Panza.

_ El Panza –antes que otro respondiese, dijo Sancho – aquí está, y el Don Quijotísimo asimismo; yasí, podréís, dolorosísima duñenísima, decir lo que quisieridísimis; que todos estamos prontos y aparejadísimos a ser vuestros servidorísimos (Cervantes, II, XXXVIII)

Bastante eficaz é o jogo na forma verbal “quisieridísimis”. Percebe-se a junção do sufixo

“isimo” à base e a manutenção da terminação de 2ª pessoa do plural (is). (quisierid+isim+is)

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O discurso da Princesa Trifaldi, a Dolorida, na versão de Lobato, segue o jogo do texto

original: A triste princesa disse:

_ “Poderosíssimo senhor, e vós, belíssima dama e ilustríssimos ouvintes aqui reunidos: não tardarei a comover-vos com minha triste história, mas antes de tudo desejava ser informada se o gloriosíssimo cavaleiro Dom Quixote de la Mancha e o seu fidelíssimo escudeiro se acham presentes.” _ “Sim, madamíssima – bradou Sancho. – Eis ali em pessoa o valentíssimo Dom Quixote de la Mancha, e cá o seu fidelíssimo escudeiro Sancho Pança. Estamos os dois prontíssimos para defender em todos os terrenos a vossa dolorosíssima beleza”. (p.78)

O uso excessivo do superlativo torna, também, superlativa a comicidade da situação.

Os exemplos são infinitos, tanto no original quanto na paráfrase. O ponto alto do jogo

com o sufixo íssimo está no momento em que os autores empregam tal elemento mórfico em

bases substantivas, o que foge à regra padrão, que nos orienta a empregá-lo com bases adjetivas.

Assim, em Quixotíssimo, Manchíssima, madamíssima e em outros substantivos o efeito cômico é

extraordinário; porém, quando Cervantes forma o superlativo a partir da base verbal “quiser” –

quiserdíssimos –, o inusitado da situação imprime intensidade no ambiente burlesco construído

pela rede textual.

3.1.13.4 As Onomatopéias: valorosa sonoridade

As onomatopéias são formações de vocábulos em busca de uma sonoridade. Não é

própria da linguagem de Cervantes. Sabe-se que tal recurso passou a ser mais explorado a partir

do simbolismo. Já em Lobato, encontram-se vários exemplos, pois o discurso em Dom Quixote

das crianças busca uma interação com o interlocutor infantil. Não podemos esquecer que Dona

Benta está contando a história para os netos. A criança gosta da teatralização, da encenação; daí o

apelo ao ludismo das formas onomatopaicas que tentam materializar o abstrato do som. Eis

alguns exemplos:

brolorotachabum - Brolorotachabum! –despencou lá de cima...(p.8)

(barulho do livro caindo da estante)

lepte! - Mas o patrão não queria saber de nada, e lepte! (p.17)

(som das chicotadas nas costas do menino)

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fugt - E Quindim em cima, fugt fugt, espetando [o patrão que surrou o rapaz] com o chifre. E eu cá a berrar... (p.24) (Emília, em sonho, se vinga do patrão)

més - [Sancho] _ “Não ouço nada do que V.Sa. diz. Ouço més de carneiros, só isso..” (p.40) puff – A mecha incendiou a pólvora que recheava o cavalo. Puff! Uma explosão. (p. 80)

3.1.13.5 A formação verbal e neologismo: humor e liberdade de criação

O jogo com a criação verbal mostra a ousadia de Cervantes.

bachillear - Soy bachiler por Salamanca, que no hay más que bachillear. (Cervantes ,II,VII) bacharelice - _Sei o que digo,senhora ama; vá e não comece com disputas, bem sabe que sou bacharel por Salamanca, que não há mais bacharelice – respondeu Carrasco. (Castilho, II, VII) escuderilmente - Vámonos los dos donde podamos hablar escuderilmente. (Cervantes, II,XII)

Vamos nós ambos para onde possamos falar escuderilmente. (Castilho, II,XII)

Afastemo-nos daqui para conversarmos à vontade. (Lobato,p.68)

bacyelmo - Y si no fuera por este baciyelmo, no lo pasara entonces muy bien, porque hubo asaz de pedradas em aquel trance. (Cervantes,I,XLIV)

baci-elmo - e se não fosse este baci-elmo não passaria então muito bem, porque apanhou naquele transe pedradas com fartura. (Castilho, I,XLIV)

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3.1.13.6 As quixotices dos gêneros e da negação enfática

machoa [Sancho] (...) este pastor, como já disse, andava enamorado de Torralva que era a tal pastora, cachopa roliça, despachadona, e tirando seu tanto para machoa, porque até bigodes tinha. (Castilho, I,XX) ilhos herdera de um rico y grande estado de tierra firme, sin ínsulos ni insulas. (Cervantes, I, XXVI)

herdeira de um rico e grande estado de terra firme sem ilhas ou ilhós (Castilho, I, XXVI)

cavaleira Emília virou cavaleira andante (Lobato,p.70)

giganta Frestona Tia Nastácia é giganta Frestona (Lobato, 72)

Mais uma estratégia para a criação do ambiente de riso, da graça, do humor. O inusitado

da formação de gênero, em harmonia com os demais recursos, ajuda a estruturar a obra

monumental de Cervantes.

3.1.14 Expressividade com a metalinguagem

Recurso usado por Cervantes e muito explorado por Lobato, a metalinguagem é elemento

recorrente na narrativa. Mais uma estratégia para mostrar dois lados: o que tem um conhecimento

e o que não o tem. Em Cervantes, o letrado se contrapõe ao iletrado. Dom Quixote emenda a fala

de Sancho, dos cabreiros e pastores, sempre que eles desviam a linguagem padrão. Em Lobato,

não só o saber adulto tem destaque, as crianças também ensinam, porém o conhecimento infantil

ainda está em processo.

Rumemos aos exemplos.

Ao tomar posse na ilha, Sancho recebe uma série de conselhos de Dom Quixote:

_Toma cuidado em não comer a dois carrilhos e a não eructar diante de ninguém. _Isso de eructar é que eu não entendo – interrompeu Sancho.

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_Eructar, Sancho, quer dizer arrotar, e este é um dos vocábulos mais torpes que tem a nossa língua, apesar de ser muito significativo, e então a gente delicada apelou para o latim, e ao arrotar chama eructar; e ainda que alguns não entendam estes termos, pouco importa, que o uso os irá introduzindo com o tempo, de forma que facilmente se compreendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso. _Eructar, Sancho, e não arrotar – observou Dom Quixote. _Pois seja eructar, e assim direi daqui por diante. (Castilho, II, XLIII)

O discurso na narrativa de Lobato apresenta mais recorrência do discurso pedagógico. É

preciso tornar claros os sentidos. Logo no início da história:

_Pois eu entendo – disse Pedrinho. _Lança em cabido quer dizer lança pendurada em cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e adaga antiga é...é... (p.10) _Nédia quer dizer gorda, desse gordo que deixa os animais lustrosos.(p.19) _Mambrino, amigo Sancho, foi um mouro, possuidor dum elmo encantado. Um dia perdeu-o para Sacripante, depois de tremenda luta. (p.42)

Há muito o que dizer sobre os recursos lingüísticos trabalhados, tanto por

Cervantes/Castilho, como por Lobato. Não é nossa intenção esgotar todas as possibilidades nesta

pesquisa, pois seu objeto é muito maior do que os limites de uma tese. Várias teses podem ser

escritas com o material oferecido por nossos escritores. Selecionamos, então, o que nos pareceu

mais marcante nos textos integrais (original e tradução) e no reconto lobatiano.

Somente para aguçar naquele que, por ventura, venha a ler este trabalho, o desejo de

buscar por si só o que faltou nestas páginas, elencamos alguns dos jogos lingüístico-discursivos

que continuam aguardando um leitor paciente para desvendá-los: (i) jogos intertextuais e

interdiscursivos; (ii) a importância do conhecimento prévio na atividade leitora, no que se refere à

presença da mitologia e da cultura helênica, por exemplo.

A análise mostrou-nos que Lobato usa possibilidades do sistema para combater o

anacronismo vigente no trato com a língua. Sua criação no plano lexical tem finalidade lúdica.

Embora ele não consiga se afastar efetivamente do tradicional, os recursos expressivos usados

pelo autor dão um ar de modernidade à obra, que respira com seu coloquialismo.

Palavras mais precisas sobre o trabalho com a língua portuguesa na obra de Lobato foram ditas

por Maria Teresa Gonçalves Pereira:

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Monteiro Lobato busca constantemente uma renovação nas possibilidades inúmeras que a língua oferece, dinamizando-a, explorando-lhe as potencialidades, as suas realizações, não se prendendo ao convencional, mesmo quando dele precisa para reavaliá-lo ou reaproveitá-lo. (1982, p.71)

Ouçamos a voz de tia Nastácia, ao acender a lamparina, anunciar: “É hora!”. Não mais de

ouvir somente as histórias contadas nos serões de Dona Benta, mas de reconhecer valor estético

nas palavras de um grande homem, de um escritor competente, que aprendeu muito com

Cervantes, sem perder, contudo, a identidade. Lobato assinou um contrato de comunicação com

leitores iniciantes, abrindo as portas para a literatura que pode ser usufruída também por crianças.

3.2 Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar

Não há dúvida de que verter um texto para outro idioma, ou mesmo para outro código, é

tarefa difícil, uma vez que, como sabemos, não basta substituir vocabulário, símbolos e ícones.

Deve-se “traduzir”, cortar, reduzir, uma obra clássica para que ela possa ser lida por leitores em

formação? Gullar aceitou o desafio e traduziu,adaptando para jovens o livro de Cervantes.

Elegemos para a pesquisa a versão do poeta por considerarmos um trabalho de qualidade

estética. Não é apenas mais uma tradução. Gullar não se afasta tanto do original e consegue

imprimir sua marca.

Retornando à epígrafe do trabalho, vale reiterar que defendemos a liberdade, o direito do

leitor. É bom que ele tenha opções.

Para tanto, os mediadores – escola, família – precisam de informação e de orientação para

ajudar o jovem em suas escolhas. Adaptações há muitas: as mais literárias, as mais imagéticas...

Neste estudo, Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar, obra editada pela Revan em

2002, se destaca porque é considerada de grande valor pela crítica especializada; recebeu da

Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 2003, o prêmio “Monteiro Lobato” de

melhor tradução para jovens. Quais os critérios adotados para premiar e consagrar um texto de

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determinada categoria? No caso, por se tratar de um texto cujo trabalho se dá pela linguagem, a

análise recai sobretudo no trabalho com a língua portuguesa, na maestria em jogar com o

léxico, com as estruturas sintático-semânticas, com as intenções de sentido, enfim.

O poeta desempenhou com brilhantismo a tarefa e nos presenteou com uma narrativa

primorosa, cifrada em linguagem literária, cuja arquitetura exige talento.

A palavra é nossa guia. É a partir dela que as relações narrador/personagem,

personagem/personagem, texto/leitor se estabelecem. Ferreira Gullar movimenta com bastante

eficácia as peças do sistema lingüístico. Sem perder de vista as duas margens que delimitam a

tarefa do autor da adaptação, o poeta (re)apresenta em grande estilo Dom Quixote de la Mancha

(2002), livro apontado pela Academia Norueguesa como o melhor romance de todos os tempos.

Gullar consegue manter o tom da obra original e tingir com tintas próprias o texto em foco,.

Ao transpor uma obra para outra linguagem: um texto literário para cinema, para

quadrinhos, ou para outro suporte qualquer, percebe-se que o público-alvo e o meio pelo qual a

história será veiculada determinarão o trabalho do artista que pretende recontar aquela história.

Estruturalmente, observa-se que a maneira de “enxugar” o texto original, além dos cortes

nas historietas enxertadas nas andanças de Quixote pela Espanha, acontece também pela força da

voz do narrador; são poucos os diálogos entre personagens. Gullar consegue um tom bastante

singular no discurso do narrador, o que reforça a idéia de um proficiente contador de histórias. A

leitura flui, mesmo quando as informações para um leitor mais atento parecem repetitivas, como

é o caso de, em vários momentos do livro, o narrador reiterar a paixão de Quixote pelas novelas

de cavalaria e, repetidas vezes, informar ao leitor que tal comportamento foi aprendido através da

leitura daquelas novelas.

O foco neste ponto da pesquisa recai, então, sobre dois eixos: a voz do narrador e a voz

dos personagens principais. Tenta-se observar em que medida a teoria de Gusdorf (1995) pode

ou não ser confirmada, quando ele afirma a influência recíproca entre os interlocutores de um

processo comunicativo que se estabelece pela língua. Até que ponto Quixote influencia o dizer de

Sancho e vice-versa; de que maneira o narrador se aproxima ou se distancia de um e de outro

pela linguagem; quais as estratégias de mediação usadas pelo narrador para fazer a comunicação

entre o texto original e o recontado.

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3.2.1 Vozes entrecruzadas

Cide Hamete Benengeli é o árabe que escreveu, segundo Miguel de Cervantes, a narrativa

original. Cervantes afirma ter comprado os cadernos de um mouro, a quem pagou para fazer a

tradução da história. Cervantes/Gullar traz ao leitor reiteradas vezes a informação de que a

história ali contada não é de sua autoria, portanto a responsabilidade do dizer recai sobre

Benengeli. Estratégia discursiva adotada em diferentes capítulos da obra: Conta Cide Hamete

Benengeli (p.53, p.172, p.176).

Este expediente deixa claro o distanciamento do narrador 2 (Cervantes/Gullar). O

compromisso com a “verdade” do que é dito fica, então, por conta do narrador 1 (Hamete). A

repetição é usada como recurso intencional de estilo, busca enfatizar a autoria do dizer.

3.2.2 A polifonia da voz narradora

A voz de Gullar se mistura com a de Cervantes e com a de Benengeli; porém, um leitor

observador percebe quando é o poeta quem fala em determinados momentos. Quer pela seleção

lexical quer pelas organizações sintáticas, a fala – concretização da língua por um indivíduo –

emerge com vigor, com suas marcas culturais, uma vez que, freqüentemente, narrador

(onisciente) e escritor acabam por se confundir numa mesma entidade. Vejamos alguns

exemplos: Veja só o vovô! – respondeu a aldeã. Não estou aqui para escutar bobagens! Afastem-se e nos deixem passar! (p.96) _ Boa piada! – exclamou o comissário. – Este cara é um gozador. (p.56) _ É melhor irmos para um lugar onde possamos falar escuderilmente... (p.102)

O humor, presente nas falas de personagens do povo (Sancho, aldeã, escudeiro), revela,

pela linguagem lúdica, o lado jocoso de Gullar. O poeta ratifica as criações neológicas de

Cervantes, como no caso do advérbio escuderilmente. Interessante observar a fala da aldeã

“Veja só o vovô!”. A ironia com que ela trata Quixote é revelada pela palavra “vovô”, que passa

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neste contexto a idéia de desrespeito aos velhos. Tal uso nos leva a pensar que o poeta tem 70

anos e que esta frase revela um “modismo” da linguagem informal de antigamente, quando

Gullar era jovem. Dificilmente um escritor jovem da atualidade cifraria o desdém da aldeã em

tais palavras.

O narrador na obra de Ferreira Gullar transita muito bem entre a linguagem formal e a

informal. O autor/adaptador soube dosar os usos da língua. Se, por um lado, o texto fica “leve”,

próximo da linguagem do povo, por outro, sem perder de vista o original, escrito em 1605 e

sem banalizar o clássico em foco, a linguagem se apresenta rebuscada, elaborada, quer pelo

barroco da fala de Quixote quer pela realidade da sociedade da época.

Para retratar o mundo dos cavaleiros andantes, Cervantes recorre a palavras que o

reapresentam. No Houaiss, buscamos informações sobre alguns termos mantidos por Gullar:

alabardada: 1596, golpe desfechado com alabarda (arma antiga).(p.121)

alimária: séc. XIV, qualquer animal, especialmente quadrúpedes. (p.99)

funda: séc. XIV, arma de arremesso. (p. 51)

galés: séc. XIII, embarcações. (p.53)

jaez: 1512, conjunto de peças que permite o cavalgamento de montarias.(p.67)

odre: século XIV, saco feito de pele para transportar líquido. (p.65)

A linguagem figurada de uso corrente, o vocabulário do cotidiano, às vezes, chulo,

obsceno, também participam da estratégia do narrador para buscar maior sintonia com o leitor

moderno. Como vemos em:

À porta da venda estavam duas moças de vida fácil (p.13)

Sucedeu que Rocinante teve vontade de transar com as senhoras éguas dos galegos. (p.32)

E correu-lhe um frio na espinha quando seu amo lhe disse... (p.93)

Eis a magia da linguagem literária apresentada pelo narrador de Gullar: sintonizar a

tradição com a modernidade pela seleção lexical, principalmente.

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3.2.3 Quixote: a construção do personagem pela língua(gem)

Ao longo da história, Quixote revela cultura livresca bastante ampla. Conhece

personagens, poemas, teorias... É, pois, uma pessoa cuja cultura foi constituída, principalmente,

pelas letras dos livros que lia.

_Creia, formosa senhora, que pode considerar-se venturosa por ter alojado neste seu castelo a minha pessoa, de cujos méritos não falarei por modéstia, mas meu escudeiro lhe dirá quem sou. (p.36)

As mulheres que quase não entenderam do que ele dissera agradeceram-lhe em língua de taverna suas referências e se retiraram. (idem)

Na fala de Quixote, flagramos recursos lingüísticos próprios de um alto grau de

formalidade, pelo léxico (formosa, venturosa, mérito) ou pelo torneio sintático em que usa o

relativo cujo. Já na referência à fala das mulheres, omitida propositalmente pelo narrador,

podemos inferir, via conhecimento enciclopédico, que as tais mulheres usavam uma variante

bastante informal, provavelmente repleta de gírias, de palavrões, bem próprios da linguagem oral

que circula nas tavernas, espaço de gente rude, pouco escolarizada.

Quixote é aquele que sabe, que conhece o que dizem os livros sobre fatos históricos; é um

homem culto a quem é dado o poder de corrigir, pois tem “autoridade” , conquistada pela leitura.

Vejamos o exemplo em que o fidalgo interpela mestre Pedro, o titereiro.

_ Isto não! – exclamou ele. –É incorreto pôr sinos repicando, uma vez que os mouros não usam sinos mas atabales, que é uma espécie de charamela . (p.124)

A fala de Quixote, preocupada com a correção, com a precisão dos fatos, revela o tom

didático do discurso, expresso pelo recurso da metalinguagem. Mestre Pedro, porém, argumenta

que as comédias estão sempre cheias dessas impropriedades. (idem)

O herói é construído a partir de um lugar “privilegiado”, do lugar da escola, do saber

institucionalizado; do livro, que, ainda hoje, é objeto para poucos, para alguns “eleitos”. Isto se

comprova na fala do narrador, na seguinte passagem:

Sancho enxugou os olhos e nada respondeu, mal dando atenção ao discurso que o seu amo começou a fazer, acerca de navegadores e navegações, linha equinocial, pólos e solstícios, coisas de que Sancho nunca ouvira falar. Nisto, avistaram grandes moinhos, situados no meio do mar... (p.130)

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3.2.4 A linguagem formal do fidalgo

Abaixo aparecem exemplos de uso da variante formal da língua na fala de Dom Quixote e

da preocupação do fidalgo em corrigir as falhas ou mostrar um conhecimento enciclopédico.

[Sancho] _ E que outra coisa poderia ser, se o homem que escreveu nossa história se chama Cide Hamete Berinjela?

_ Isso é nome de mouro – observou Dom Quixote.

[Sancho] _ Deve ser mesmo, pois sempre ouvi dizer que os mouros gostam muito de berinjelas. _Certamente disseste errado o nome desse Cide, que em árabe significa senhor. (p.83)

Cervantes (Gullar) brinca com a semelhança entre as palavras Benengeli e berinjela,

fazendo com que o parvo escudeiro troque uma pela outra.

_ Carreiro, cocheiro ou o diabo que sejas, não tardes a dizer-me quem és, aonde vais, e que gente levas nessa tua carroça, que mais parece a barca de Caronte do que uma carreta comum. (p.98)

Quixote faz alusão a Caronte, personagem da mitologia grega que servia de barqueiro

dos mortos, pois transportava pelo rio Estige as almas dos falecidos. Conta a lenda que Caronte

era muito mal-humorado. Para agradar ao barqueiro, depositava-se uma moeda sob a língua do

morto. _ Se tivesse de pagar-te o justo preço, nem todo o tesouro de Veneza e o ouro de Potosí bastariam. Vê quanto tens de dinheiro meu contigo e calcula o preço de cada chibatada. (p.205)

Mais um exemplo da vasta cultura armazenada por Dom Quixote. Mesmo que Sancho

(e/ou o leitor) desconheça que Potosí, localizada na Bolívia e uma das cidades mais ricas da

América Latina, a informação da grande quantia que Sancho vai receber para se auto-flagelar, a

fim de desencantar Dulcinéia, é passada principalmente pelo léxico: tesouro, ouro.

3.2.5 A linguagem coloquial do Cavaleiro Andante

Nem sempre o ato de fala é a expressão verdadeira dos conhecimentos do falante, de sua cultura e posição sócio-econômica, de seu “status”. As variações de situação e a mudança de registros podem revelar uma atitude lingüística de valorização de certos padrões lingüísticos (do culto ao popular, do registro formal ao coloquial), na medida em que ele julga “melhor” certo tipo de linguagem.

(Preti, 2004)

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Dom Quixote transita pela registro coloquial na obra de Gullar. Se o fidalgo está

conversando informalmente com Sancho ou com pessoas do povo, sua atitude lingüística é a de

buscar uma identificação com a fala de seu(s) interlocutor(es).

_ Sim, sim, agora te entendo, Sancho. Tenho esse desejo muitas vezes e neste instante mesmo o estou sentindo de novo. Tire-me daqui antes que me borre todo. (p.71)

O interlocutor do fidalgo no diálogo é Sancho, homem simples, que não sabia como

abordar seu amo a respeito das necessidades fisiológicas. Para tanto faz uso de metáforas,

linguagem figurada com que substitui a falta do vocabulário específico – urinar, defecar. Vemos

aí uma passagem exemplar do tabu lingüístico e da saída pelas imagens. Quixote entra na sintonia

e usa o verbo borrar (No dicionário, uso informal: sujar-se com matéria fecal) para que Sancho

entenda verdadeiramente a necessidade de o amo atender ao apelo do fluxo intestinal.

No diálogo com o cabreiro:

_ És um grandessíssimo velhaco – gritou Dom Quixote –, tu é que tens minguados os miolos. Eu, de minha parte, os tenho mais cheios do que os teve a mui filha da puta que te pariu. (p.76)

No trecho, há primeiramente que se destacar o uso superlativo do adjetivo grande. Ao

duplicar o emprego do sufixo íssimo, o adjetivo ganha maior expressividade, denota a ira

(reforçada pelo verbo gritar) com que Quixote se dirige ao cabreiro. A escolha da palavra de uso

informal miolos para fazer referência ao cérebro também reitera a tese de que um bom

xingamento deve ser mesmo cifrado em linguagem informal, mais expressiva nesses casos. À

medida que Quixote vai-se exaltando, sua linguagem torna-se mais informal até chegar à

linguagem chula, como no final de sua fala, quando usa o palavrão que, talvez, mais ofenda um

ser humano: a mui filha da puta que te pariu (p.76), pois, na ideologia (ocidental) dominante,

mãe é uma figura (quase) sagrada. Vale destaque para o advérbio mui (originado da forma

espanhola muy), termo recorrente nas cantigas medievais, ainda hoje empregado como

intensificador em nosso idioma na região sul do Brasil. Usa-se também algumas vezes o advérbio

mui para expressar ironia, como visto no exemplo.

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3.2.6 A voz de Sancho: a voz do povo, seus provérbios e coloquialismos

Não sei que má sorte é esta minha – disse Sancho –, pois não consigo dizer razão sem refrão, nem refrão que não me pareça razão, mas vou procurar emendar-me, se puder. (p.208)

Sancho é um homem simples, um lavrador que não sabia ler e tinha consciência de suas

limitações. Sua sabedoria, seu conhecimento empírico, entretanto, davam a ele muitas vezes a

clareza das situações. Seu senso prático, freqüentemente, direcionava o rumo a seguir, pois nos

momentos de delírio de seu amo era o escudeiro que tentava contornar as situações.

A linguagem deste personagem é bastante característica; ele comete “erros”, como vimos

no episódio em que troca o nome Benengeli por Berinjela; sua voz ecoa um saber popular.

Como marca de um estilo singularizante, encontramos nas falas de Pança, durante toda a

narrativa, os provérbios e os ditos populares, formas simples, no dizer de André Jolles. O

escudeiro tem consciência do modo de dizer que o caracteriza, o que pode ser comprovado no

seguinte diálogo entre Dom Quixote e Sancho Pança:

[Quixote] _ Proíbo-te de falar de agora em diante e de citar esses malditos refrãos! [Sancho] _ Se é para ficar mudo, prefiro voltar para a minha mulher e meus filhos, com os quais, pelo menos, poderei falar tudo o que deseje. (p.59)

O discurso de Sancho deixa entrever como o processo de comunicação se torna mais fácil

quando os interlocutores pertencem à mesma comunidade lingüística. Sabendo-se incapaz de se

expressar sem lançar mão das frases feitas e dos discursos cristalizados, ele reconhece que

emudeceria.

Abaixo, estão listados, destacados da fala de Pança, alguns exemplos de lexias

cristalizadas, de gírias e de expressões próprias de um registro informal:

_ Como tens passado, meu burrinho, menina dos olhos do papai,companheiro meu? (p.64)

_ Teresa disse que eu ponha com vosmecê os pingos nos ii, que fique tudo preto no branco e que mais vale um toma lá do que te darei. (p.90)

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(iii) _ Já que assim manda – disse Sancho –, tenho de obedecer, atendendo ao refrão que diz: amarra-se o burro à vontade do dono... (p.129)

3.2.7 A voz que narra e a voz dos personagens

Em Estudos de língua oral e escrita (2004), Dino Preti dedica um capítulo à oralidade e à

narração literária. Ainda sobre o assunto, escreveu sobre os níveis lingüísticos do narrador

literário em A gíria e outros temas (2001). O objetivo desses ensaios é chamar a atenção para o

nível de elaboração lingüística dos textos literários. Preti defende a idéia de que, mesmo quando a

língua da literatura tenta aproximar-se do coloquial, é elaborada.

Observando o trabalho de construção do narrador da saga de Dom Quixote, percebe-se

que o formal e o informal mesclam-se na construção de um tecido literário bastante harmonioso.

Já vimos como o fidalgo e o escudeiro se comportam lingüisticamente, os modos de dizer de

ambos, ora mais formal ora mais coloquial. Há que se pensar, também, na voz do narrador. Como

se comporta aquele que conhece a história, no caso do Engenhoso Fidalgo? É alguém que narra

do lugar da cultura, que domina o registro formal, obedece a regras da gramática padrão? Ou é

aquela voz que emana do povo, do grupo que desconhece as leis da língua “culta”?

Com base nos exemplos listados abaixo, vemos que o narrador construído por

Cervantes/Gullar para contar a história do Cavaleiro da Triste Figura é um narrador pertencente

ao primeiro grupo, alguém com conhecimento da língua de prestígio. O destaque vai, no entanto,

para a eficácia com que este narrador adapta sua voz à dos personagens em foco no momento do

relato. Sancho tentou mover-se e terminou rolando no chão, onde ficou caído feito uma tartaruga, de papo para cima. (p.178)

Este exemplo deixa nítido que o narrador tenta aproximar-se do registro coloquial, próprio

do escudeiro analfabeto. Em registro mais formal, teríamos caído como uma tartaruga em lugar

de caído feito uma tartaruga. O Aurélio registra como uso brasileiro da palavra feito, que,

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segundo o dicionarista, é classificada como conjunção, correspondente a “como, tal qual, que

nem”. Pode-se perceber na lista das conjunções uma certa preferência por umas e por outras, de

acordo com o grau de formalidade que o usuário pretende atribuir a seu discurso. Talvez uma

pesquisa profunda nos mostrasse que as formas “como e tal qual” aparecem mais na língua culta,

ao passo que as formas “que nem e feito” são escolhas mais freqüentes na língua popular.

Num lugar da Mancha, cujo nome não desejo lembrar, vivia, não faz muito tempo, um desses fidalgos (...) galgo corredor. (p.11)

O tom pomposo e aristocrático já revela que o narrador domina um registro bastante

formal. O uso do relativo cujo, a construção de um período longo, de grande complexidade, e um

léxico pouco comum – galgo, fidalgo – são provas irrefutáveis.

Para não afugentar, entretanto, leitores iniciantes, que ainda não dominam o padrão mais

formal da língua, o narrador de Gullar busca o equilíbrio, lançando mão da língua comum,

aquela que atende tanto ao registro mais formal quanto ao mais coloquial. Os textos adaptados

buscam seduzir leitores para os clássicos e a linguagem é a ponte para este processo de

sedução.

Em alguns momentos o narrador recorre a estratégias da língua popular, informal, como

no exemplo: Mas muito caminhou sem ninguém encontrar e, quando já estavam ele e seu cavalo mortos de cansaço e fome, divisou ao longe uma venda que a seus olhos transformou-se num castelo – e para lá se dirigiu. À porta da venda estavam duas moças de vida fácil que lhe pareceram ser damas graciosas ou formosas donzelas. (p.13)

Do ponto de vista de Quixote, a venda era um castelo e as moças que lá trabalhavam,

damas e donzelas, porém o narrador joga com o registro coloquial para mostrar ao leitor a visão

deturpada, fantasiosa, do fidalgo. O espaço era na verdade uma venda e lá estavam algumas

prostitutas, pois damas e donzelas não freqüentavam tabernas. Este jogo, bem elaborado na teia

do texto, vai acontecer ao longo de toda a narrativa.

Depois de muito se divertirem com Sancho, trouxeram o asno e o fizeram montar nele. Maritornes, com pena de Sancho, ofereceu-lhe um copo d’água, mas Dom Quixote gritou-lhe que não a bebesse, e sim, o bálsamo. O escudeiro, porém, se negou, alegando que não estava disposto a vomitar o resto das entranhas que lhe sobraram. Pediu a Maritornes um copo de vinho em vez de água, bebeu-o e foi embora, feliz da vida por nada haver pago, embora à custa do seu habitual fiador, isto é, seu próprio lombo. (p.43)

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Nota-se, pelas palavras e expressões utilizadas, que o narrador adota um perspectiva da

língua popular, pois as metáforas produzidas com as palavras entranhas e lombo são exemplos

de como a metáfora está infiltrada na vida cotidiana. A imagem que Sancho faz de si é meio

grotesca, pois, ao usar os termos entranhas e lombo, seu discurso, recuperado pela voz narrativa,

deixa entrever a comparação que Pança faz de seu próprio corpo com os corpos dos animais.

Ainda no exemplo, vale destacar as repetições (Maritornes, Sancho), característica forte da língua

falada, e da expressão (feliz) da vida, expressão intensificadora na língua coloquial. Esses

recursos, além de aproximar o discurso do narrador ao discurso do escudeiro, uma vez que é

deste que se fala, servem também para manter o tom da contação de história e fazer com que a

escrita, mimeticamente, se assemelhe à fala. A língua é veículo cultural de um povo, e este é

constituído de pessoas mais escolarizadas, pessoas menos escolarizadas, pessoas analfabetas etc.

Gullar corta o que considera superficial (as narrativas intercaladas nas aventuras de

Sancho e Quixote), acelera o ritmo da história, dando mais destaque à voz narrativa que aos

diálogos entre personagens. Isso, todavia, não torna simplória a história contada por ele. Dentro

do possível, o poeta se mantém bastante fiel ao mestre maior – Cervantes.

|No projeto de aceleração da narrativa, podemos incluir o tratamento dado aos títulos dos

capítulos. Na obra original, cada parte recebe títulos longos, pois o autor deseja sintetizar o

conteúdo e passar ao leitor uma idéia geral do que será contado nas próximas páginas. Lobato

mantém a estratégia cervantina, mas reduz bastante os títulos. Gullar radicaliza e elimina as

palavras do título, preferindo numerá-los, como podemos observar abaixo:

Capítulo primeiro

Cervantes: Que trata de la condición y ejercicio del famoso y valiente

Hidalgo Don Quijote de la Mancha (p.27)

Capítulo primeiro

Castilho: Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo Dom

Quixote de la Mancha (p.73)

Gullar: Capítulo I

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Como mestre da poesia e, portanto, grande artesão das palavras e dos jogos lingüístico-

discursivos, nosso escritor não só (re)apresenta a história de Cavaleiro da Triste Figura como o

faz de maneira original, à sua moda. Ele deixa a sua assinatura, quer na seleção vocabular, quer

nas arquiteturas sintáticas das frases e períodos. É, pois, um texto verdadeiramente autoral.

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CONCLUSÃO

Acreditamos que, assim como fez o herói de Cervantes ao final do romance, é chegada a

hora de tirar o elmo, a armadura, a lança... a fim de aquietar os pensamentos.

Antes, porém, de “encerrar” a pesquisa sobre a linguagem dos clássicos e de suas

respectivas adaptações, verdadeira peleja contra o tempo, desejamos trazer às páginas conclusivas

da tese alguns pontos essenciais com que nos deparamos ao longo desses anos. Primeiramente,

gostaríamos de registrar a quantidade de material sobre clássicos literários. Os estudos tornam-se

mais volumosos quando o tema abordado é a obra-prima da literatura espanhola, marco do

romance moderno: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trata-se de uma obra

inesgotável. Embora a fortuna crítica esteja por volta de cinco mil trabalhos (livros, teses,

ensaios, artigos etc.), sempre haverá algum aspecto a ser percebido e um novo ponto de vista

adotado.

Eis o argumento capaz de defender a tese que pretendeu observar o livro de Cervantes

pelas lentes da linguagem, iluminando principalmente as adaptações da saga do Cavaleiro

Andante. Privilegiamos a língua com seus malabarismos por entendermos, com Castilho, com

Dona Benta e com tantos outros, que clássicos são textos escritos com intenção estética, que

exploram as possibilidades da língua. São narrativas que ultrapassam fronteiras geográficas e

temporais e acabam alojadas nas dobras da memória do leitor, como nos ensinou Ítalo Calvino.

Seguir pelos caminhos léxico-semântico, morfo-sintático e discursivo foi opção, pois as

páginas cervantinas mostram-nos um fabuloso manancial de recursos lingüísticos.

Para nos orientar, logo no início, tivemos a preciosa colaboração das palavras de Merleau-

Ponty, no que concerne às reflexões sobre linguagem. A visão do filósofo francês sobre língua

ajudou a construir a base teórica para o trabalho. Complementando os postulados relativos à

linguagem, recorremos a Bakhtin e a outros nomes da área da análise do discurso, por sabermos

que por trás das palavras há outros fatores direcionando a interlocução. Os conceitos de

polifonia, intertextualidade, contrato de comunicação... ajudam a esclarecer as nuances

lingüísticas, quer no texto integral quer nas traduções e adaptações. Buscando equilíbrio entre

tradição e modernidade, rumamos em direção aos estudos consagrados da Estilística, por

exemplo.

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Ditoso dia aquele em que a pesquisa em andamento foi submetida a uma banca

examinadora durante o “Exame de Qualificação”, pois naquela oportunidade pudemos enriquecer

as referências bibliográficas com um título essencial ao trabalho: La Lengua del “Quijote”, de

Ángel Rosenblat. O estudo do filólogo polonês apontou a direção para a leitura crítica de Dom

Quixote das crianças, reconto primoroso elaborado por Monteiro Lobato que, sem “trair” a

essência do original, conseguiu imprimir sua marca, sua assinatura. No livro de Lobato, vê-se

Cervantes com suas aventuras cavaleirescas, porém não nos esquecemos em momento algum de

que estamos no Sítio do Picapau Amarelo, ouvindo, ao lado de Emília, Narizinho, Pedrinho e os

demais personagens, a história contada por Dona Benta, a avó generosa e paciente. Sempre é

válida uma reflexão sobre a literatura de Lobato, escritor de relevante valor na história das

traduções e adaptações de clássicos universais.

A seleção dos títulos que deveriam constituir o corpus a ser analisado ficou por conta da

importância do escritor-adaptador. Ferreira Gullar foi o segundo autor escolhido, pois é poeta e

autoridade no trato com a língua portuguesa, principalmente no que se refere ao discurso literário.

Trata-se de consagrados escritores, de renomados intelectuais que escreveram narrativas para

dialogar com Dom Quixote. Uma volta-se mais para crianças e a outra busca leitores jovens ou

iniciantes. Pelo valor literário apresentado, ambas poderiam ocupar o lugar de “clássico’’ do

clássico.

Nosso objetivo inicialmente era analisar apenas os textos de Lobato e de Gullar, no

entanto a presença de Quixote e de Sancho em outras linguagens e em diferentes suportes aguçou

o desejo de observar a obra de Cervantes em variados códigos. As tintas dos pintores, os versos

dos poetas, as letras dos compositores, os traços dos cartunistas, a linguagem dos cordelistas, a

criatividade dos diretores de TV e de cinema nos ajudaram a reconhecer a imortalidade de Dom

Quixote.

Lobato e Gullar foram fios importantíssimos que nos levaram à trama iniciada por

Cervantes em 1604. Com eles percorremos as malhas da linguagem cervantina.

Bebendo na fonte primeira da tradição, a Bíblia, os clássicos entram no cânone e lá,

geralmente, permanecem, porque (i) tratam de temas universais, atemporais, (ii) usam o gênero

narrativo e (iii) apresentam um texto magistralmente produzido.

Conclui-se que o rol dos clássicos é constituído de histórias que falam ao coração do

indivíduo, que mexem com a essência humana e por isso se eternizam. Devem ser lidos, sempre.

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A relevância da pesquisa está em provocar uma reflexão sobre a importância da leitura de

obras canônicas, buscando diminuir o preconceito em relação às suas adaptações. Acreditamos

que um texto adaptado, que apresente um trabalho primoroso de linguagem, possa estimular a

leitura da obra na íntegra. Pensamos ainda no quanto perde quem desconhece os monumentos da

literatura universal. A tese quer, então, estimular o gosto pela leitura e chamar a atenção para a

importância dos recursos da língua em que são forjadas as adaptações. Deseja abrir espaço para

um texto que não pretende, de maneira alguma, substituir o original, muito ao contrário, que

almeja ir na frente, como arauto, anunciando-o, preparando o leitor para o verdadeiro encontro.

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