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UNIVERSIDADE DO OESTE DO PARANÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE ELISANGELA REDEL ENTRE A CIÊNCIA, A CRÍTICA E O DRAMA: O IMIGRANTE ALEMÃO EM CANAÃ, UM RIO IMITA O RENO E A FERRO E FOGO CASCAVEL PR 2014

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UNIVERSIDADE DO OESTE DO PARANÁ

CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL DE

MESTRADO E DOUTORADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE

ELISANGELA REDEL

ENTRE A CIÊNCIA, A CRÍTICA E O DRAMA:

O IMIGRANTE ALEMÃO EM CANAÃ,

UM RIO IMITA O RENO E A FERRO E FOGO

CASCAVEL – PR

2014

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ELISANGELA REDEL

Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – nível de Mestrado e Doutorado – área de concentração Linguagem e Sociedade.

Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados.

Orientadora: Profª. Drª. Rita das Graças Felix Fortes

CASCAVEL – PR

2014

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

R314e Redel, Elisangela

Entre a ciência, a crítica e o drama: o imigrante alemão em Canaã, Um rio

imita o reno e A ferro e fogo. / Elisangela Redel — Cascavel, 2014.

176p.

Orientadorª: Profª. Drª. Rita das Graças Felix Fortes

Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel, 2014

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras 1. Literatura brasileira. 2. Imigração alemã. 3. Estereótipo. 4. Identidade. I.

Universidade Estadual do Oeste do Paraná. II. Título. CDD 20.ed. 808.3

Ficha catalográfica elaborada por Helena Soterio Bejio – CRB 9ª/965

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AGRADECIMENTOS

- À minha orientadora, Professora Rita das Graças Felix Fortes, meu respeito e

admiração pelas encantadoras e sábias orientações, de que só uma grande mestra

é capaz;

- Ao curso de Letras Português-Alemão da Universidade Estadual do Oeste do

Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, em especial aos meus primeiros

orientadores de pesquisa, professores Stéfano Paschoal e Izabel Cristina Souza

Gimenez;

- Ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, da Universidade

Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior (CAPES) por viabilizarem a realização deste trabalho;

- Ao Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), pela bolsa concedida para

que eu pudesse realizar parte desta pesquisa na Alemanha;

- À Professora Elise Schmitt (UNIOESTE) e ao Professor Paulo Astor Soethe

(UFPR), pelo carinho e pelo grande apoio durante toda a minha trajetória acadêmica;

- À Franciele Martiny, Deysielle Draeger e à Ana Paula Luchesi, pela amizade e pelo

carinho;

- Aos colegas e amigos Bruna, Job, Elizete, Patricia, Maricélia e Franciele pelo

companheirismo e pelos momentos inesquecíveis;

- À minha família, descendente daqueles que um dia, a ferro e a fogo, também

plantaram suas raízes no Brasil e

- Ao Ilton, pelo seu amor.

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Quando compreendemos o passado,

o que compreendemos é a

personalidade humana e é através

da personalidade humana que

compreendemos tudo o mais. E

compreender uma existência

humana significa redescobri-la em

nossa própria experiência potencial

(Erich Auerbach – A língua literária e

seu público).

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REDEL, Elisangela. Entre a ciência, o folclore e o drama: leituras do imigrante alemão em Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo. 2014. 176 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel.

RESUMO

A importância da imigração de grupos de diversas nacionalidades para o Brasil está,

dentre outros fatores, em sua contribuição para o processo de mestiçagem,

elemento constitutivo fundamental à identidade pluralista do país. A participação de

alemães e seus descendentes, como comenta Freyre (2004), constitui-se no fato de

que estes não perderam totalmente seus costumes, sua língua e sua cultura, cuja

diferença atuou no sentido de enriquecer a heterogeneidade brasileira. Assim, na

presente pesquisa, tendo como foco os romances Canaã (s/d), de Graça Aranha,

Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, e A Ferro e Fogo (1972/1975), de

Josué Guimarães, objetiva-se analisar o modo pelo qual tais romances representam

o imigrante alemão e sua interação e/ou oposição em relação à cultura brasileira.

Sob perspectivas espaciais, históricas e sociais distintas, as obras revelam um

gradativo processo de aceitação e reconhecimento da contribuição destes

estrangeiros para a formação da sociedade brasileira. A partir das análises

realizadas, chega-se à conclusão de que Graça Aranha, Vianna Moog e Josué

Guimarães trazem, respectivamente, um viés cientificista, folclórico e dramático

sobre a temática, contribuindo para um panorama mais aberto, complexo e profundo

sobre a representação do imigrante alemão na literatura brasileira do século XX. A

análise dos três romances é fundamentalmente sociológica e encontra em Homi K.

Bhabha, Walter Benjamin, Aleida e Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,

Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sérgio Buarque de Holanda

e Zilá Bernd, dentre outros autores, o principal suporte teórico.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira, imigração alemã, estereótipo, identidade.

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REDEL, Elisangela. Entre la ciencia, el folclore y el drama: lecturas del imigrante alemán en Canaã, Um rio imita o Reno y A ferro e fogo. 2014. 176 h. Disertación (Maestría en Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel.

RESUMEN

La importancia de la emigración de grupos de diferentes nacionalidades hacia el

Brasil está, entre otros factores, en su contribución para el proceso de mestizaje,

elemento constitutivo fundamental a la identidad plural del país. La participación de

los alemanes y sus descendientes, como dijo Freyre (2004), constituye el hecho de

que estos no perdieron totalmente sus costumbres, su lengua y su cultura, cuya

diferencia ha actuado para enriquecer la heterogeneidad brasileña. Así, en esta

investigación, que tiene como foco las novelas Canaã (sin fecha), de Graça Aranha,

Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, y A Ferro e Fogo (1972/1975), de

Josué Guimarães, se objetiva analizar la forma como estas novelas representan el

imigrante alemán y su interacción y/u oposición con relación a la cultura brasileña.

Bajo perspectivas espaciales, históricas y sociales distintas, las obras revelan un

gradual proceso de aceptación y reconocimiento de la contribución de estos

extranjeros para la formación de la sociedad brasileña. A partir de los análisis

realizados, se llega a la conclusión de que Graça Aranha, Vianna Moog y Josué

Guimarães traen, respectivamente, una tendencia cientificista, folclórica y dramática

sobre el tema, contribuyendo para un panorama más abierto, complejo y profundo

sobre la representación del imigrante alemán en la literatura brasileña del siglo XX.

El análisis de las tres novelas es fundamentalmente sociológico y encuentra en Homi

K. Bhabha, Walter Benjamin, Aleida y Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,

Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sérgio Buarque de Holanda

y Zilá Bernd, entre otros autores, el principal aporte teórico.

PALABRAS CLAVE: Literatura brasileña, emigración alemana, estereotipo,

identidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

1 BRASIL- ALEMANHA: CINCO SÉCULOS DE HISTÓRIA ................................... 19

1.1 DAS PROJEÇÕES DO ALEMÃO NO BRASIL À MEMÓRIA LITERÁRIA ........... 29

2 RACIALISMO, HUMANISMO E DESENCANTO EM CANAÃ ............................... 37

2.1 O IMIGRANTE ALEMÃO COMO POSSIBILIDADE DE BRANQUEAMENTO ..... 52

2.2 O CASO DE MARIA PERUTZ E O ESFACELAMENTO DA UTOPIA RACIAL ... 59

3 SOLIDÃO E HOSTILIDADE EM UM RIO IMITA O RENO .................................... 69

3.1 IMAGENS E RECURSOS VERBAIS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE

BLUMENTAL ............................................................................................................. 78

3.2 CONFLUÊNCIAS DO ESPAÇO/TEMPO EM BLUMENTAL ................................ 85

3.3 CORDIALIDADE BRASILEIRA VERSUS AUSTERIDADE ALEMÃ .................... 93

3.4 VIANNA MOOG: UM CRÍTICO DESTEMIDO ..................................................... 98

4 ENTRE A RESISTÊNCIA E A RENDIÇÃO: OS ALEMÃES EM A FERRO E FOGO ...................................................................................................................... 103

4.1 DE IMIGRANTE A BICHO DO POÇO: A METAMORFOSE DE DANIEL

ABRAHÃO LAUER SCHNEIDER ............................................................................ 115

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 134

APÊNDICE .............................................................................................................. 144

ANEXOS ................................................................................................................. 150

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INTRODUÇÃO

Na presente pesquisa, tendo como foco os romances Canaã (s/d), de Graça

Aranha, Um rio imita o Reno (1973), de Vianna Moog, e A Ferro e Fogo (1972/1975),

de Josué Guimarães, objetiva-se analisar o modo pelo qual tais romances

representam o imigrante alemão e sua interação e/ou oposição em relação à cultura

brasileira. As obras em análise foram publicadas originalmente em 1902 (Canaã),

1939 (Um rio imita o Reno) e 1972/1975 (A ferro e fogo) e para esta pesquisa serão

utilizadas, apenas, as seguintes edições: Canaã, edição Ediouro, s/d; Um rio imita o

Reno, edição de 1987, da José Olympio, e A ferro e fogo, respectivamente edições

Sabiá Limitada, 1972 e José Olympio, 1975. Josué Guimarães havia previsto que a

obra A ferro e fogo seria composta por uma trilogia, entretanto, foram publicados,

somente, dois volumes, sendo que o primeiro intitula-se A ferro e fogo: tempo de

solidão, e o segundo A ferro e fogo: tempo de guerra.

Naturalmente, além de Graça Aranha, Vianna Moog e Josué Guimarães

outros autores se ativeram em suas obras ficcionais à temática do imigrante alemão

no Brasil, dentre os quais se destacam Visconde de Taunay, Augusto Meyer, Mário

de Andrade, Assis Brasil, Érico Veríssimo, Vivaldo Coaracy, e autores

contemporâneos como Lya Luft, Charles Kiefer, Sérgio Metz, dentre outros.

Os critérios de seleção das obras analisadas no presente estudo justificam-

-se pelo fato de que, com Graça Aranha, tem-se no início do século XX a primeira

referência efetiva a imigrantes alemães na literatura brasileira, ou seja, trata-se da

primeira tentativa de posicionamento sobre a contribuição, ou não, da vinda de

imigrantes alemães ao Brasil.

Na sequência, Vianna Moog trará à cena, na década de 30, a problemática do

etnocentrismo e do racismo presentes em comunidades alemãs no Brasil. Na

década de 70, Josué Guimarães publica um dos mais significativos romances sobre

a saga dos imigrantes alemães, tendo como foco uma visão dramática e heroica

sobre o assunto. Dado este recorte de tempo de aproximadamente 75 anos, é

possível verificar que houve mudanças na visão dos escritores sobre o imigrante

alemão.

Entretanto, além da intenção de analisar três perspectivas diferentes sobre o

mesmo tema, e como estas se apresentam ao longo do século passado, há também

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uma motivação pessoal para a presente pesquisa, visto que sou de origem alemã e

o fato de eu ter sido criada em uma comunidade preponderantemente constituída

por descendentes de imigrantes alemães fez com que eu convivesse com o discurso

estereotipado sobre estes. Portanto, subjacente à presente escolha há um

enfrentamento destes estereótipos que, preservados de geração para geração,

foram representados na literatura brasileira e estão presentes na minha trajetória

pessoal.

A literatura escrita possui esta capacidade de expansão e arquivamento dos

textos culturais considerados relevantes (GALLE, 2010), em contraposição à

memória biológica do indivíduo, que se estende, no máximo, a três gerações. Assim,

ao propor esta pesquisa, as recordações de infância se atualizam, pois dizem

respeito, primeiramente, ao desenvolvimento de uma identidade pessoal e, em uma

segunda instância, só se tornam simbólicas pelo distanciamento que se operou em

relação a elas, do qual surge a possibilidade de se construir significações

(ASSMANN, 2011).

A importância da imigração de grupos de diversas nacionalidades para o

Brasil está, dentre outros fatores, em sua contribuição para o processo de

mestiçagem e de identidade do país, o que implicou na sua estrutura pluralista. A

participação de alemães e seus descendentes, como comenta Freyre (2004),

constitui-se no fato de que estes não perderam totalmente seus costumes, sua

língua e sua cultura, cuja diferença atuou no sentido de enriquecer a

heterogeneidade brasileira.

Alguns destes traços culturais dos imigrantes alemães perduraram na região

Oeste do Paraná até o presente momento, visto que muitas famílias ainda falam

usualmente alemão. Isto não implica que a presente pesquisa partiu de uma

premissa etnocêntrica ingênua em relação a esta cultura, mas, do reconhecimento

da participação de alemães – assim como a dos mais diversos povos que imigraram

para o país – na formação da cultura brasileira. A questão da participação dos

alemães na formação do Brasil e das relações históricas entre alemães e brasileiros

é tratada no primeiro capítulo deste estudo, no qual ainda se discute sobre o papel

da literatura enquanto memória cultural.

Canaã, Um rio imita o Reno e A Ferro e fogo são obras que, sob perspectivas

espaciais, históricas e sociais distintas, revelam as mudanças que se operaram ao

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longo do tempo no processo de integração/resistência dos imigrantes alemães no

contexto brasileiro.

Em Canaã, obra considerada pré-modernista, escrita em 1901 e publicada em

1902, Graça Aranha representa modelarmente o cenário conflituoso de opiniões –

sobretudo do círculo de intelectuais da Escola de Recife – sobre a realidade

brasileira do final do século XIX, ainda sob o domínio do pensamento cientificista tão

marcante naquele período. Tendo como base histórica o contexto do início da

colonização alemã, no Espírito Santo – entre 1859 e a Abolição da Escravidão, em

1888 – no romance há um debate sobre os problemas sociais, econômicos e

culturais brasileiros da época, e como estes tiveram implicações no processo

emigratório, bem como no recrudescimento – entre alguns grupos da elite brasileira

– do ideal eugênico1 de clareamento, em voga no Ocidente.

Estão claramente delimitados no romance dois eixos ideológicos representados

pelos imigrantes alemães Lentz e Milkau. Lentz exige maior profundidade de análise,

ao se constituir enquanto um tipo, um discurso social que representa, para além de

um comportamento etnocêntrico, uma personalidade extremamente autoritária.

Recorrendo ao discurso da raça, Lentz defende que o Brasil, para ser habitável,

deverá ser povoado por uma raça “superior” – a alemã – à qual a personagem se

refere enquanto exemplo de autossuficiência, de competência, de progresso nos

negócios, de facilidade de assimilação e de energia no trabalho. O brasileiro torna-

se o objeto sobre o qual ele se fixa e sobre o qual reafirma o estereótipo de

pertencimento a uma civilização de mulatos que os tornariam eternos escravos. Ou

seja, para a personagem, a superioridade econômica, social e cultural de um povo

1 Eugenia se refere a um grupo de ideias baseadas na obra de Charles Darwin, A origem das espécies (1859), criado, em 1883, por Francis Galton. Esta “ciência” diz respeito ao melhoramento da espécie humana através da seleção genética artificial, visto que o cientista preconizava que as condições de vida dos indivíduos já estão preconcebidas pelas condições biológicas, ou seja, que a inferioridade e a superioridade dos povos eram determinadas pela própria natureza. Assim, para resolver a situação de atraso do Brasil, em vista de seu povo miscigenado e “inferior”, seria necessário melhorar a raça, objetivo principal do ideal de branqueamento subjacente à emigração ao longo da segunda metade do século XX. A máxima de tal equívoco científico se revelou com o nacional-socialismo, a exemplo das experiências de campo em Auschwitz, da higiene racial, dos campos de concentração, do extermínio em massa de judeus e da “melhoria genética” que tinha como objetivo final a produção em massa de bebês arianos, superdotados. Sobre eugenia, ver Maciel (1999) e Pedrosa (2013), “Eugenia: o pesadelo genético do século XX. Parte III: a ciência nazista”. Disponível em:<http://www.montfort.org.br/old/index.php?secao=veritas&subsecao=ciencia&artigo=eugenia_ciencia_nazista&lang=bra>. Acesso em: 11 de jul. de 2013.

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está baseada na classificação genética e biológica, que determinaria os seus

privilégios e hierarquização social.

Milkau é um idealista que acredita no futuro da nação brasileira e compreende

que seu progresso se encontra potencialmente na fusão das culturas, cujo processo

de miscigenação deve rejeitar a ideia de prevalência de uma raça, de uma língua e

de uma cultura sobre as demais. Não obstante, embora Milkau não compactue com

as teorias de Lentz, nem com sua visão preconcebida sobre as desigualdades

raciais, ele tem traços desta mentalidade arraigados em sua formação cultural,

traços estes que se revelam quando ele classifica os povos em “atrasados” versus

“adiantados”, “selvagens” versus “civilizados” (PAES, 1991). Tal ato falho

compromete seu posicionamento ideológico em relação à miscigenação que ele

defende, uma vez que anula a existência de um entremeio, isto é, de um terceiro

elemento, síntese dos anteriores, capaz de dissolver as fronteiras raciais.

Assim, se por um lado estes traços do perfil de Milkau apontam para o caráter

pré-modernista de Canaã, ao reconhecer a manifestação dos “selvagens” no

processo civilizatório (PAES, 1991), por outro, esta participação é considerada sob a

perspectiva do tipo genético a ser superado e substituído pelos brancos europeus,

de acordo com o ideal do branqueamento – processo também chamado de

arianização –, que foi o objetivo racial de uma elite preocupada com a evolução do

Brasil. É sob esta perspectiva que Milkau reafirma a responsabilidade do branco

europeu na construção da nacionalidade brasileira e o provável destino dos alemães

de substituírem a civilização, a cultura e a língua do povo brasileiro.

O romance abriga ainda, um terceiro eixo a ser analisado, ao desvelarem-se

as tensões sociais de forma cruenta e animalesca, através da personagem Maria

Perutz, filha de imigrantes alemães nascida no Brasil. Sua condição de miséria e

abandono coloca em xeque o mito eugênico da superioridade do povo alemão e

problematiza o paradoxo de que, se a Alemanha era composta, apenas, por uma

raça superior, competente e autossuficiente, conforme defendia Lentz, como

justificar, ao longo de mais de um século, que parte de sua população emigrasse por

falta de condições de sobrevivência? Os imigrantes alemães, da mesma forma que

os demais povos, quando emigram, lutavam por melhores condições de vida. Nesse

sentido, Maria Perutz revela que, independentemente de raça, são as contingências

históricas, econômicas e políticas que determinam a trajetória dos personagens.

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No segundo capítulo será analisado o romance Canaã, no qual se

estabelecerá a contraposição de dois estereótipos alemães, que são subvertidos

pela trágica condição de Maria Perutz. O primeiro corresponde a Lentz, personagem

que representa o viés racionalista europeu e a defesa do mito da superioridade da

raça ariana e o segundo a Milkau, que representa o viés humanista. Por meio destas

personagens, Graça Aranha procura se posicionar de forma crítica em relação aos

ideais europeus, mas paradoxalmente, deixa ressoar a força da sua formação

cultural, na qual estão cristalizados traços culturais marcantes à época em relação

aos mitos eugênicos. Também é analisada a tragicidade da personagem Maria

Perutz, que revela as reais condições de muitos que emigram e, de modo

conclusivo, analisa-se a inexistência de um diálogo entre o eu e o outro, o alemão e

o brasileiro, aquele recém-inserido em um contexto de mestiçagem ainda incipiente,

marcado por relações de conflito, exclusão e preconceito.

Deslocando-se do contexto do Espírito Santo para o do Rio Grande do Sul –

Estado que recebeu o maior número de imigrantes alemães – a temática da

colonização alemã reaparece na década de 30 na literatura sulista, obscurecendo o

prestígio de relatos ufanistas do/sobre o gaúcho, conforme análise de Zilberman

(1982).

Clodomir Vianna Moog, no romance Um rio imita o Reno, inspira-se nas

comunidades de imigrantes alemães e seus descendentes para desvelar as

alterações, transformações e conflitos sociais implícitos ao processo de

adaptação/rejeição destas novas populações ao contexto brasileiro. Na obra –

escrita em 1938 e publicada em 1939 – subliminar à história de amor entre Geraldo

Torres, engenheiro caboclo do Amazonas, e Lore Wolff, filha de imigrantes alemães,

a discussão principal de Moog centra-se no racismo e no nazismo alemão.

O autor trouxe à pauta na imaginária Blumental o etnocentrismo de uma

comunidade de imigrantes alemães e seus descendentes, obcecada pela ideia de

sua superioridade, agravada com os postulados eugênicos apregoados pelo

nazismo.

No capítulo três, cujo principal objeto de análise é o romance Um rio imita o

Reno, partindo da análise do espaço ficcional da imaginária cidade de Blumental, na

qual transcorre a história, ater-se-á aos elementos que compõem tal cenário, dentre

os quais se destacam: a arquitetura germânica, os letreiros do comércio em língua

alemã, pratos típicos, expressões, provérbios, saudações e demais falas corriqueiras

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em língua alemã. Tais elementos são desvelados através da percepção do entorno

(SOETHE, 1999) do protagonista, Geraldo, cujas percepções – por ser ele um

“estrangeiro” – apontam para a tentativa da comunidade de se manter o mais

próximo possível da “pátria distante”.

Entretanto, esta cidade é, apenas, um simulacro, pois, para além dos seus

limites, o que existe de fato é a vastidão do Brasil, com todos os seus contraditórios

traços culturais. Com o intuito de preservarem seus traços identitários originais, os

habitantes são caracterizados pelo autor como racistas, nazistas e,

consequentemente, reacionários em relação à interação com os brasileiros.

Além desta análise da tentativa de se transmigrar a pátria perdida para o

Novo Mundo, também ater-se-á à análise da cidade de Blumental como se esta

fosse uma espécie de grande casa que se contrapõe à vastidão à volta, ou seja,

tudo que extrapola os limites da cidade. Sob esta perspectiva, a cidade será

analisada em analogia ao estudo dos espaços íntimos da casa, conforme analisa

Gaston Bachelard (1978), compreendendo-se que Blumental representa,

simbolicamente, uma grande casa para os alemães e seus descendentes e, como

tal, ameniza o estranhamento e as dificuldades causadas pela imigração.

A análise ater-se-á, ainda, à maneira como os indícios temporais se fundem

aos espaciais, de maneira que Vianna Moog, subliminarmente à frustrada história de

amor entre Geraldo e Lore Wolff, denuncia o racismo e o etnocentrismo de grupos

de imigrantes e descendentes de alemães, contrapondo-se à ideia de superioridade

racial defendida pelos mesmos.

Será discutido, ainda, como o autor abordou a questão da infiltração da

ideologia nacional-socialista entre os imigrantes e como são representadas as

relações entre brasileiros e alemães face ao contexto histórico subjacente ao

romance. O tempo desta narrativa se justapõe ao tempo histórico, visto que o

romance foi escrito no ano anterior ao início da segunda guerra mundial, quando o

nazismo, ao mesmo tempo em que assustava grande parte do Ocidente, também

seduzia e passava a ter muitos simpatizantes, inclusive no Brasil, e quando o Brasil

– em função da ideologia do Estado Novo – impusera o projeto nacionalista

implantado por Getúlio Vargas.

Também será analisado como Vianna Moog se atém aos estereótipos do

homem “cordial” brasileiro e à aversão dos alemães ao sentimentalismo. E, por fim,

tratar-se-á da subversão dos equívocos raciais da pretendida superioridade dos

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alemães, ao ser revelada a descendência judia da família Wolff, a qual compactuava

com a ideia do extermínio dos judeus e considerava o negro um ser híbrido e

inferior. O amor entre Geraldo e Lore invalida a manutenção do preconceito e das

diferenças, o que também é desvelado, de forma encantadora, pela personagem

Paulchen Wolff que, a despeito da repressão da família, convive harmonicamente,

com absoluta naturalidade, com mulatos, negros e demais grupos não germânicos.

A abordagem dessa temática terá uma perspectiva bem diferente e mais

trágica três décadas mais tarde, com a trilogia inacabada de Josué Guimarães A

ferro e fogo I: tempo de solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975),

que se atém à saga do imigrante alemão no Sul do Brasil sob a perspectiva

microcósmica da família de Daniel Abrahão Lauer Schneider e Catarina, bem como

da personagem Gründling. Josué Guimarães situa temporalmente a narrativa na

primeira metade do século XIX e faz remissão a episódios históricos importantes à

época e que são fundamentais na construção do enredo e da trajetória das

personagens. Tais episódios históricos estão presentes, sobretudo, em A ferro e

fogo II: tempo de guerra.

A análise de A ferro e fogo tem dois focos principais. O primeiro é a fluidez

das fronteiras espaciais no contexto ao qual se reporta o romance. Trata-se de um

território fronteiriço e aberto às relações transculturais, onde a solidão e a fragilidade

humana transcendem as questões raciais. O segundo foco de análise está centrado

na personagem Daniel Abrahão Lauer Schneider, um seleiro alemão, cujos traumas

advindos com a imigração e da violência de tantas guerras transformaram-no em um

“bicho do poço”. Tais traumas resultarão em um surto psicótico, consequência da

experiência migrante de ruptura de referências, por causa do deslocamento de lugar,

e do confronto com o outro (FERREIRA; GIL, 2007). Através de tal personagem são

tematizados os conflitos advindos com a imigração não só de alemães, como de

diversos povos, responsáveis pelo desbravamento e povoamento de vazios

demográficos, e pelo caráter pluralista do Brasil, do qual participaram as culturas

europeias, africanas, ameríndias e orientais.

Quanto ao suporte teórico que sustenta este estudo como um todo, ele é

eclético e foi se constituindo à medida da necessidade da análise. Ou seja, em cada

romance foram selecionados determinados aspectos que melhor permitem

compreender e analisar a configuração ficcional estética do imigrante alemão. E a

partir desta escolha é que se justifica tal variação teórica. De todo modo, a análise

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dos três romances está preponderantemente amparada nos seguintes autores: Homi

K. Bhabha, Walter Benjamin, Aleida e Jan Assmann, Julia Kristeva, Giralda Seyferth,

Stuart Hall, Marie Jeanne Gagnebin, Gaston Bachelard, Sergio Buarque de Holanda

e Zilá Bernd, dentre outros.

A partir do desenvolvimento desta pesquisa na Alemanha, através da Bolsa

concedida pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD)2 e do acesso à

Biblioteca Estadual de Munique3 e à Biblioteca Central da Ludwig Maximilians

Universität, um novo aporte teórico foi acrescentado, permitindo, sob a perspectiva

alemã, a ampliação da visão sobre a temática da imigração alemã para o Brasil, das

relações entre Brasil e Alemanha e dos estudos culturais de modo geral. Para tanto,

também contribuiu o acesso a arquivos e livros considerados raros e de difícil

acesso, alguns dos quais se considerou pertinente anexar a esta pesquisa como

forma de exemplificar, ilustrar e difundir materiais originais pouco conhecidos.

A temática explorada permite que se fale de uma dupla comparação na

medida em que não apenas os autores Graça Aranha, Vianna Moog e Josué

Guimarães estão em diálogo, mas também os respectivos romances estabelecem

previamente em seus enredos a comparação entre as culturas alemã e brasileira.

Nebrig e Zemanek (2012, p. 185) ressaltam esta questão ao afirmarem que os

Estudos Comparados devem analisar discursos literários, “que são por si mesmos

globais, por outro lado desenvolvem discursos científicos nacionais que funcionam

como globais, que se desprendem de tradições nacionais científicas e tornam

diferentes práticas científicas compatíveis entre si” 4.

Tendo em vista a história da formação da cultura brasileira, o país

analogicamente se assemelha a um container cultural: ele é hibridamente

constituído, mas ainda pouco participativo das relações literárias internacionais,

apesar de que, como apontou Hall (2003, p. 31), “nossos povos têm suas raízes nos

quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia; foram forçados a se juntar no

quarto canto, na ‘cena primária’ do Novo Mundo”.

É relevante ter em vista esta perspectiva do processo de internacionalização

da literatura, posto que um dos maiores problemas que o Brasil ainda enfrenta é a

2 Tradução: Deutscher Akademischer Austauschdienst. 3 Tradução: Bayerische Staatsbibliothek München 4 Tradução: “die sich selbst als globalen verstehen, andererseits selbst global funktionierende Wissenschaftsdiskurse entwickelt, die sich von nationalen Wissenschaftstraditionen lösen und unterschiedliche Wissenschaftspraktiken miteinander kompatibel machen“.

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redução de sua rica heterogeneidade por meio da constante retomada de

estereótipos. No catálogo da Feira do Livro de Frankfurt, realizada em 1994, Affonso

Romano de Sant’ Anna fez uma abertura provocativa nesse sentido, questionando:

O que é afinal a literatura brasileira? O que pode interessar aos leitores alemães e ao público de outros países em uma cultura tropical, da qual a imprensa hoje apenas informa, quando se trata de carnaval e futebol, devastação de floresta, morte de crianças de rua ou problemas com indígenas?5

Pergunta semelhante foi lançada por Vianna Moog, em 29 de outubro de

1942, na conferência Uma interpretação da literatura brasileira: um arquipélago

cultural. O texto analisa a questão literária, mas também social e cultural do Brasil,

sob a perspectiva de sete ilhas ou núcleos culturais que constituiriam o arquipélago

cultural brasileiro.

De acordo com a publicação na Alemanha, A essência da Literatura

Brasileira6 (s/d), o autor argumenta que, em contraposição a uma leitura cronológica

e homogênea do Brasil, “nós nos encontramos muito mais em um mundo cultural

insular. E este arquipélago é constituído por numerosas ilhas culturais, que são mais

ou menos autônomas e mostram seu próprio perfil” (MOOG, s/d, p. 15)7.

A despeito da internacionalização da literatura brasileira e da

heterogeneidade cultural do país, foi somente após a II Guerra Mundial, em virtude

de muitos alemães terem se exilado no Brasil – foi o segundo país a acolher o maior

número de refugiados na América Latina – e das melhores condições do mercado

editorial alemão8, que o Brasil e sua literatura passaram a ter alguma visibilidade na

Alemanha, pois escritores exilados, como Stefan Zweig, Ulrich Becher, Helmut

Gaupp, Frank Arnau, Susi Bach Eisenberg, Carl Fried, Paul Frischauer, Johannes

5Tradução: “was ist eigentlich brasilianische Literatur? Was kann den Deutschen Leser und das Publikum anderer Länder an einer tropischen Kultur interessieren, von der heute die Presse nur berichtet, wenn es um Karneval und Fuβball, des Urwaldes, Ermordung von Straβenkindern oder Probleme mit Indianern geht?“ (SANT’ ANNA, 1994, p. 13). 6 Tradução: Das Wesen der brasilianischen Literatur. 7 Tradução: “Wir befinden uns vielmehr auf einer kulturellen Inselwelt. Und dieses Archipel besteht aus zahlreichen Kulturinseln, die alle mehr oder minder autonom sind und eine eigene Prägung zeigen“. 8 As condições favoráveis do mercado editorial alemão se exemplificam com a tradução e publicação

de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, na Alemanha, pela editora Kiepenheuer & Witsch,

em 1964, tratando-se do primeiro autor latino americano a ser publicado por esta editora

(CECCHETTA, 2011).

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Hoffmann, Paula Ludwig, segundo Cecchetta (2011), passaram a incluir temas sobre

o Brasil em suas produções.

A análise da representação do imigrante alemão na literatura brasileira e de

sua relação com o brasileiro não implica a tentativa ingênua de inverter valores

sociais e ideológicos por outros mais convenientes, mas, como entendeu Bellei

(1992), envolve, senão a interrupção, ao menos a compreensão daquilo que impõe,

manipula e reafirma a resistência e o distanciamento entre polaridades que se

negam. É a oportunidade de mostrar o espaço produtivo que pode ser estabelecido

entre o eu e o outro, entre brasileiros e alemães que, atualmente, trabalham juntos

no sentido de estreitar os laços por intermédio das relações culturais, científicas e da

literatura, que é, por excelência, o espaço mediador do leitor de um país ao outro.

Os exemplos de preconceitos e estereótipos mais evidenciados em Canaã e

Um rio imita o Reno são traços culturais preestabelecidos e dos quais desprender-se

é uma prática complexa. Se a diferença é o signo de revisão e reconstrução do

passado, como propõe Bhabha (2005), deve-se ter a clareza de que traduzir ou

reescrever o imaginário social e negociar ideologias contraditórias é um sacrifício

que demanda o trabalho de gerações, até que novos fenômenos irrompam dos

entre-lugares e provoquem uma ruptura histórica.

Este processo de ressignificação já se verifica através de cooperações

interinstitucionais brasileiras e alemãs e demais órgãos envolvidos e se estende para

a mobilização acadêmica entre estudantes e pesquisadores de ambos os países em

um momento histórico de descentralização e apagamento de diferenças,

cooperando no processo de internacionalização da literatura brasileira na Europa,

implicando, também, na divulgação da literatura alemã no Brasil. Pois é temerário

que, em tempos politicamente corretos, estereótipos e preconceitos persistam nas

gerações mais jovens, já que, além de consolidarem visões equivocadas sobre o ser

humano, inibem a abertura das pessoas para a diversidade cultural e racial, tão

marcante e positiva na formação da variada população brasileira.

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1 BRASIL- ALEMANHA: CINCO SÉCULOS DE HISTÓRIA

Há um longo lastro de relações entre o Brasil e a Alemanha9, cujos laços se

intensificaram – seja através da resistência, seja por meio da rendição, ou da troca

cultural – com o processo migratório. O Brasil que, evidentemente, desde o início da

colonização, sempre recebeu imigrantes preponderantemente portugueses, passou

a ser também o destino de imigrantes de vários países da Europa, processo este

que teve início em 1818, ano em que a imigração alemã para o Brasil foi oficialmente

liberada na Alemanha.

Os resultados das primeiras tentativas de colonização foram bastante

efêmeros, aponta Seyferth (2002). De acordo com Neumann (2004, p. 11),

os primeiros emigrantes alemães se estabeleceram em 1818 no Brasil e fundaram no Estado da Bahia a colônia Leopoldina; seguem-se Nova Friburgo, Rio de Janeiro (1819) e São Jorge dos Ilhéus, também na Bahia (1822). As primeiras tentativas de estabelecer assentamentos foram realizadas por empresários, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Todavia foram organizados sem levar mais em consideração a cultura, a língua, o clima e o tipo de trabalho agrícola. Por isso, entre outros fatores, os quatro primeiros assentamentos, não bem sucedidos, foram desfeitos após um curto período de tempo10.

O projeto de imigração alemã só foi concretizado com a colônia de São

Leopoldo, em 1824, na qual predominou a instalação de alemães que migraram da

região do Hunsrück, no Sul da Alemanha: na época uma das regiões mais pobres do

país. Trinta e nove imigrantes alemães foram selecionados por Schäffer, os quais

chegaram a Porto Alegre em 25 de julho de 1824 – data até hoje comemorada na

região como o “Dia do Colono” – e foram provisoriamente instalados na Real Feitoria

do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, atual São Leopoldo.

É importante explicar que a expressão “colônias alemãs”, no contexto da

imigração, não deve ser confundida com o que se entende por possessão e domínio 9 Ver apêndice sobre as primeiras relações travadas entre alemães e brasileiros. 10 Tradução: “die ersten deutschen Einwanderer haben sich 1818 in Brasilien niedergelassen und die Siedlung Leopoldina im Bundesland Bahia gegründent; es folgen Nova Friburgo in Rio de Janeiro (1819) und São Jorge dos Ilhéus, ebenfals in Bahia (1822). Die ersten Versuche, Siedlungen zu schaffen, wurden von privaten Unternehmern in dem noch vom portugiesischen Königreich abhängigen Brasilien unternommen. Die wurden jedoch organisiert, ohne gröβere Rücksicht auf Kultur, Sprache, Klima und Form der Landarbeit zu nehmen. Unter anderem deshalb sind die vier ersten Siedlungen nach kurzer Zeit ohne Erfolg aufgelöst worden“.

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de terras estrangeiras – como foi o caso do continente americano – pois esta

remete, aqui, aos grupos de migrantes que deixaram sua terra de origem para

povoar e cultivar terras em outro país, as quais, no presente estudo, se denominam

colônias. Tais colônias alemãs:

são divididas na literatura em “velhas colônias” (colônias primárias) e em “novas colônias” (colônias filha). Aquelas são os assentamentos que foram diretamente fundados em 1824 por áreas de emigrantes de língua alemã. Estas últimas são tanto colonizadas por emigrantes vindos diretamente da Alemanha, assim como por membros de famílias, que já estavam estabelecidos nas antigas colônias

(BUENO-ANIOLA, 2007, p. 23)11.

Além de São Leopoldo, ainda no século XIX, outras colônias foram fundadas

nos três Estados do Sul, a saber: São Pedro de Alcântara (1829), Santo Ângelo

(1857), Nova Petrópolis (1858), Pomerode (1861), Blumenau (1850), e Dona

Francisca, depois chamada de Joinville (1851). Além destas, também foram

fundadas colônias no Espírito Santo, como Santa Isabel (1847), e no Rio de Janeiro,

como Petrópolis (1845).

A trajetória migratória dos alemães para o Brasil se deu em um contexto

histórico e social ainda profundamente precário, sendo que o maior contingente de

imigrantes europeus se estabeleceu nos Estados Meridionais – Rio Grande do Sul,

Santa Catarina e Paraná –, mas também, em menor escala, no Sudeste – São

Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo – e Nordeste – Bahia e

Pernambuco. Conforme Freyre (1971), este último teria atraído os melhores

marceneiros alemães.

Segundo Willems (1980), a procedência dos imigrantes alemães que

chegaram ao Brasil era heterogênea, embora, como ocorreu no Sul, a variante

dialetal do Hunsrück tenha absorvido, em partes, as demais variantes de alemães de

outras regiões, “[...] deixando assim a impressão de uma homogeneidade que a

princípio não existira” (WILLEMS, 1980, p. 38).

11 Tradução: “werden in der Literatur in ‚alte kolonien‘ (Primärkolonien) und in ‚neue Kolonien‘ (Tochterkolonien) eingeteilt11. Jene sind Siedlungen, die ab 1824 direkt von Einwanderern aus deutschsprachigen Gebieten gegründet worden sind. Letztere sind sowohl von direkt aus Deutschland kommenden Einwanderern als auch von Angehörigen von Familien, die bereits in den ‚alten Kolonien“ ansässig waren, besiedelt worden“

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O autor informa que, das 3.185 famílias que se estabeleceram no Rio Grande

do Sul, 1.186 vieram da Pomerânia – atualmente, localizada no Norte da Polônia –,

Baixa Saxônia e Westfália, e 1.509 da Renânia, Palatinado e Hesse. Com base nos

dados de Willems (1980), o historiador Valdir Gregory (2011) elaborou uma tabela

(Anexo VII), destacando a procedência dos fluxos iniciais de imigrantes para

algumas localidades do Brasil durante o século XIX.

No Espírito Santo, onde Graça Aranha situou espacialmente Canaã, a

colonização alemã parece haver se efetivado somente em 1869 (GROSSELI, 2008).

Em razão da falta de assistência do governo e dos ataques de índios, explica o

autor, muitos alemães da primeira leva de imigrantes, desiludidos com as

adversidades da terra paradisíaca sonhada, retornaram ao país de origem.

A maioria dos imigrantes que se fixou no Espírito Santo era descendente de

pomeranos e Hunsbucklers, ou seja, cujos antepassados vieram do Hunsrück12,

região Sul da Alemanha composta por agricultores hábeis no trabalho agrícola,

conforme postulava o perfil do imigrante ideal. Assim, no relatório do presidente da

Província do Espírito Santo, a classificação dos imigrantes quanto à sua aptidão

para o trabalho na colônia se assemelha às descrições de Seyferth (2002) em

relação às características que o colono ideal deveria ter: ser bom agricultor, trabalhar

em família e se adaptar às dificuldades na nova terra:

[...] a tentativa de colonização nesta província obteve todos os efeitos desejados; levando-se em conta o breve período de tempo entre esta data e o seu estabelecimento, foram muito além do esperado. A melhor garantia de que não são ilusórias as esperanças que nutro, é a nacionalidade dos colonos. Realmente os alemães, trabalhadores por índole e hábito, dotados de tenaz perseverança e possuidores ao máximo grau de amor pela família, que é a única e verdadeira base do patrimônio, e o apego ao lugar onde um dia se estabeleceram e fizeram fortuna, serão um dia também cidadãos brasileiros que contribuíram para a grandeza da pátria (Relatório do Presidente L. A. Fernandes Pinheiro apud GROSSELLI, 2008, p. 210).

A legislação migratória partiu do princípio civilizatório e de povoamento de

vazios demográficos públicos, uma vez que a população nativa era considerada

nômade e incivilizada (SEYFERTH, 2002). Nos projetos colonizadores a opção por

imigrantes alemães não se originou de premissas raciais, afirma a autora, visto que

12 Willems (1980) explica que, entre os primeiros emigrantes que se estabeleceram no Espírito Santo, alguns eram provenientes da Renânia, Prússia, Saxônia, Hesse, Palatinado, Holstein e Nassau, mas que foram absorvidos, principalmente, pelos pomeranos, provenientes de uma região atualmente situada no Norte da Polônia, conforme já mencionado.

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estava articulada à classificação do colono alemão como agricultor eficiente,

habilidoso no trabalho com a terra e que emigrava em família.

Tais características positivas dos alemães parecem terem sido confirmadas

pelo governo brasileiro, dados os ótimos resultados e o progresso das colônias por

eles povoadas. Assim se lê no jornal alemão Süddeutsche Auswanderer-Zeitung, de

1921, n.º13 que, conforme publicado no Correio da Manhã em 16 de março de 1921,

o elemento alemão significava uma grande ajuda para o desenvolvimento

econômico do Brasil, dadas sua força e inteligência, a exemplo das colônias do Sul.

Por isso, estes seriam sempre bem-vindos.

Entretanto, quando Seyferth (2002) pondera que havia uma noção hierárquica

de civilização subliminar à simbologia da cor branca enquanto indicativo de

superioridade, compreende-se que havia um intuito racial no projeto de colonização,

embora este não fosse claramente explicitado, pois, deve-se levar em conta a

situação de dependência do Brasil em relação à Europa, naquele contexto e,

certamente, a importação de ideias e teorias, bem como o fato de que, na primeira

metade do século XIX, o continente europeu já discutia há tempos questões de

ordem racial.

Na avaliação do estrangeiro ideal, os alemães ocuparam o topo da lista e a

legislação imigratória deixou ressoar seu critério ambíguo nesta seleção, como notou

Seyferth (2002), uma vez que referências raciais se tornaram visíveis no campo

semântico da palavra imigração, enquanto signo de uma prática voltada

exclusivamente à Europa.

Durante o debate sobre a política migratória, o discurso acerca da

superioridade e da competência germânica fica evidente em 1850, quando teve

início a colonização particular13 de terras públicas, por meio de “[...] relatórios e

escritos de propagandas produzidos por alemães [...]” (SEYFERTH, 2002, p. 122).

Tais documentos se tornaram registros de um contexto histórico e social no

qual as proporções corporais e a cor da pele eram fatores suficientes para justificar a

categorização dos homens em “superiores” e “inferiores”, seguindo a pretensão de

demonstrar que “[...] o desenvolvimento da civilização, o progresso tecnológico e a

própria estratificação social obedeciam a leis naturais” (SEYFERTH, 2002, p. 134).

13 Neste período a colonização passou a ser responsabilidade dos governos provinciais e a iniciativa privada contribuiu para a fundação de colônias como Blumenau (SC), em 1850, e a Colônia Dona Francisca (SC), atual Joinville, em 1851.

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As cartas enviadas da América pelos imigrantes e muitas músicas por eles

escritas e cantadas foram utilizadas na Alemanha, principalmente pelos agentes,

como material de propaganda. Um interessante exemplo é a estrofe abaixo:

Agora eu quero escrever para o meu irmão Ele não deve permanecer na Alemanha Ele deve vender o que tem E vir para a América. (NEUMANN, 2004, p. 45)14.

A vinda de imigrantes europeus fazia parte do processo de modernização do

Brasil, no qual o negro escravo e o índio estavam associados à degradação do

status quo do país, pois representavam um modelo econômico baseado na mão de

obra escrava e o país, segundo as teorias eugênicas, para progredir deveria,

também, embranquecer. A lei Euzébio de Queiróz, finalmente, interrompeu o tráfico

de escravos para o Brasil, sendo que a Lei de terras15 foi promulgada em 1850, ou

seja, no mesmo ano da lei Euzébio de Queiróz.

Seyferth (2002) assinala, ainda, que os negros foram diagnosticados como

inaptos para o trabalho livre como pequenos proprietários. Por isso, parece que, no

contexto da época, sua substituição por brancos estava vinculada à percepção de

que “[...] o capital investido no tráfico poderia ser usado positivamente, para chamar

a imigração branca livre e industriosa que daria ao país cidadãos exemplares e ao

imperador súditos fiéis [...]” (SEYFERTH, 2002, p. 123).

Um dos fatores que colaborou para a efetiva vinda de imigrantes alemães

para o Brasil foi o casamento de Leopoldina – filha de Francisco II, último imperador

do Sacro-Império Romano Germânico – com D. Pedro I, pois, ela tornou viável que o

país recém-independente recebesse imigrantes alemães.

Leopoldina tinha uma relação muito próxima com o Major Georg Anton von

Schäffer, principal agenciador de imigrantes alemães até 1830, que pertencia ao

Corpo de Guardas de D. Pedro I. Ele foi responsável pelo recrutamento de

14 Tradução: “Jetzt will ich meinem Bruder schreiben/Er soll nicht in Deutschland bleiben/Er soll verkaufen, was er hat/Und kommen nach Amerika“. 15 A Lei de Terras, Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, estabelecia que a obtenção de terras devolutas, a partir de então, se daria somente, pelo título de compra, isto é, a terra se tornou uma mercadoria, podendo ser vendida ou comprada, e não mais doada. Tal lei visava regulamentar a estrutura fundiária do país, tendo-se em vista o aumento e avanço das áreas colonizadas e os conflitos travados entre posseiros, estrangeiros, grandes produtores e o Estado pelo domínio e expansão das terras. (PODELESKI, 2009). Disponível em: <http://seer.cfh.ufsc.br/index.php/sceh/article/viewFile/182/157>. Acesso em: 11 jul. 2013.

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imigrantes de diversas regiões da Alemanha, além de soldados necessários para

garantir a segurança do país depois da proclamação da independência, em 1822.

Com a derrota de Napoleão Bonaparte na Batalha de Waterloo, em 1815, D.

João VI voltou para Portugal (1818), o que fez com que o Brasil voltasse à condição

de colônia. Em desacordo com esta medida, em 1822 é proclamada a

independência política do Brasil em relação à metrópole, o que gera conflitos no

país, pois as autoridades da província eram portuguesas e, muitas delas, fieis à

Coroa Portuguesa. Houve, então, a necessidade de formação de uma nova força

militar, que garantisse a independência do país e o defendesse nas posteriores

guerras, como a disputa pela província Cisplatina, que culminou na guerra entre

Brasil e Argentina (1825-1828), na Revolução Farroupilha (1835-1845) e, mais tarde,

na Guerra do Paraguai (1864-1870).

Como amigo da arquiduquesa, Schäffer recebeu pedidos diretos para trazer

muitos soldados para o Brasil, como aponta a seguinte carta, escrita por Leopoldina,

em 16 de maio de 1825:

Excelente Schäffer, Respondo agora a três de suas cartas, e o senhor já terá recebido minha carta participando-lhe terem sido atendidos todos os seus desejos. Como o General Brandt vai chegar agora, quero prepara-lo bem como o deseja Scheiner – o que se torna absolutamente indispensável é que me procure 140.000 Florins, para ver-me livre de todos aqueles pequenos assaltos, o que não será pequena felicidade. Mande-me bem depressa os livros e muitos – muitos – soldados, pois acredito que se tornam cada vez mais necessários. Assegurando-lhe minha eterna amizade e benevolência, continuo sua bem afeiçoada, Leopoldina (VÁRIOS AUTORES, 2006, p. 439 – grifo nosso).

Ou seja, Schäffer teve uma importante participação no processo migratório de

alemães para o Brasil, conforme atesta seu livro, Brasilien als unabhängiges Reich

(1824) – Brasil como Reino independente –, no qual ele descreve as condições

econômicas, climáticas, sociais, políticas e territoriais do Brasil. Tal livro é rico em

informações e, nos últimos capítulos, traz um esboço sobre a facilidade de os

alemães obterem terras no Brasil, sobre as boas condições de viagem e, ainda,

sobre o auxílio do governo brasileiro, através da doação de animais e sementes.

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Pela importância do documento original, cita-se o trecho que mais diretamente

contribui para esta pesquisa em anexo (Anexo VIII).

Em 1828, o livro Brasiliens gegenwärtiger Zustand und Colonialsystem –

Estado atual do Brasil e o sistema colonial – sem autoria, descreve a população, o

clima, as possibilidades de trabalho para os imigrantes, a existência de animais e

insetos venenosos, a localização das províncias, dentre outros aspectos. Apesar de

tecer comentários sobre os aspectos negativos do Novo Mundo, o autor recomenda

a imigração para aquelas terras, tendo em vista que:

Cada estrangeiro que desejar lá [no Brasil] crescer, recebe de graça tanta terra quanto ele, para sua manutenção e de sua família, necessitar; durante dez anos ele está livre de qualquer tarefa e de todas as obrigações dos antigos moradores; se ele desejar se juntar às colônias já existentes, ele será até lá levado e apoiado com dinheiro ou fontes naturais, até que ele estiver em condição de viver da produção de suas terras (WEECH, JEZIERSKI, VIDAURRE, 1828, p. 6)16.

Naturalmente, tais publicações de cunho propagandístico tiveram relevante

influência na imigração de alemães para o Brasil, mas, geralmente, são quatro

fatores os que justificam a imigração: religiosos, políticos, sociais e econômicos.

Nos diferentes momentos da imigração alemã para o Brasil, alguns destes

fatores se sobressaíram em relação aos outros, explica Neumann (2004). Por

exemplo, se no início a liberdade e a tolerância religiosa foram os principais motivos,

na metade do século XIX, foi o descontentamento em relação à pressão política que

levou muitos alemães a emigraram para o Brasil.

As consequências da fracassada revolução de 1848 formaram agora o motivo mais importante para o abandono da pátria. Muitos tiveram que deixar seu país por causa de perseguição política, outros queriam experimentar uma real liberdade política no Novo Mundo. Este tempo leva à emigração de um novo grupo: muitos intelectuais trocaram sua posição na Europa pela liberdade na América. Intimamente relacionados entre si estão as causas sociais. A pobreza prevalece principalmente entre a classe operária:

16 Tradução: “Jeder Fremdling, der sich dort anzubauen wünscht, erhält unentgeldlich so viel Land, als er zu seinem und der Seinigen Unterhalt bedarf; er ist während zehn Jahren von jeder Aufgabe und allen Verpflichtungen früherer Einwohner befreit. Wünscht er, sich den bereits bestehenden Kolonien anzuschliessen, wird er dahin gebracht, und so lange mit Geld oder Naturallieferungen unterstützt, bis er selbst im Stande ist, von dem Ertrage seiner Felder zu leben“.

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camponeses e artesãos deixam a Alemanha, porque eles não têm chance de uma vida melhor em sua terra (NEUMANN, 2004, p. 14)17.

Contudo, os fatores mais relevantes que motivaram tal processo emigratório

sempre foram os econômicos e sociais. “Nos anos trinta do século XIX a pobreza,

em muitas partes da Alemanha, especialmente nas classes mais baixas, é muito

grande” (NEUMANN, 2004, p. 49)18. As guerras napoleônicas entre 1802 e 1815

haviam empobrecido o continente europeu e a mão de obra disponível na Alemanha,

em vista do elevado crescimento demográfico, passou a exceder o que poderia ser

absorvido pelo mercado de trabalho. Nas regiões Sul e Sudoeste da Alemanha, “[...]

depois de cada colheita má, principalmente na Badênia e no Palatinado, a fome

forçava milhares de sitiantes alemães a emigrarem, tornando-os uma presa fácil de

estrangeiros” (GEHSE, 1931 apud WILLEMS, 1980, p. 33).

Os minifúndios, como explica Weissheimer (s/d), decorrentes de ininterruptas

divisões da terra, apresentavam baixas produções devido à excessiva exploração. A

situação se agravara com a falta de emprego nas cidades, pois, a partir da

Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, no século XVIII, a manufatura, que até

então demandara grande mão de obra, passou à produção em massa, gerando

novas modalidades de trabalho, para as quais os camponeses não tinham

qualificação.

Por fim, sob o regime reacionário da monarquia, a administração de territórios

igualmente contribuiu para o desarraigamento das populações rurais e a imigração

de muitas famílias que, sem condições de pagar os altos impostos, deixavam sua

pátria em busca de novas perspectivas de vida e de ascensão econômica

(WILLEMS, 1980). Assim, o excesso de população, as más colheitas, o rigor do

inverno, o aumento dos preços dos alimentos levou à imigração em massa dos

alemães. Tal processo implicou, inclusive, no melhoramento do setor de transportes

alemão, como a conexão marítima e ferroviária (NEUMMAN, 2004).

17 Tradução: “Die folgen der gescheiterten Revolution 1848 bilden jetzt das wichtigste Motiv zum Verlassen der Heimat. Viele müssen wegen politischer Verfolgungen ihr Land verlassen, andere wollen eine wirkliche politische Freiheit in der Neuen Welt erleben. Diese Zeit bringt die Auswanderung einer neuen Gruppe: viele Intellektuelle tauschen ihre Lage in Europa gegen die Freiheit in Amerika. Eng miteinander verbunden sind die soziale Ursachen, die Armut herrscht besonders in der Arbeiterschicht: Landarbeiter und handwerker verlassen Deutschland, weil sie keine Chance auf ein besseres Leben in ihrem land haben“. 18 Tradução: “In den dreiβiger Jahren des 19. Jahrhunderts ist die Armut in vielen Teilen Deutschlands, besonders in den unteren Klassen, sehr gross“.

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Na Alemanha – ou melhor, nos países de língua alemã da Europa – a

imigração funcionava como válvula social para controlar a crise econômica “[...] na

medida em que permitia que, nos momentos de baixa performance econômica e de

crescimento das taxas de desemprego, parte da população afetada deixasse o país,

evitando crises sociais de maior amplitude” (COSTA, 2007, p. 151). Ou seja, a

migração espontânea consistiu em uma das maneiras de controlar dificuldades

econômicas, o que se tornou comum, no século XIX, nos países europeus

(WILLEMS, 1980).

A colonização de alemães no Brasil se constituiu através de quatro

modalidades de colônias: colônias do governo, ou seja, o governo doava aos

imigrantes terras e ferramentas para auxiliar no seu estabelecimento no novo país;

as colônias advindas de uma empresa, isto é, uma empresa brasileira ou estrangeira

adquiria certa quantidade de terra no Brasil, que era posteriormente dividida entre os

alemães, algumas destas eram pagas, outras eram doadas aos imigrantes; a

terceira modalidade eram as colônias privadas, semelhantes à categoria anterior,

mas neste caso uma pessoa comprava ou recebia terras do governo brasileiro, como

foi o caso de Blumenau; por fim, as colônias em parceria, que consistiam no traslado

e estabelecimento dos imigrantes que, uma vez estabelecidos no Brasil, pagariam

com seu trabalho (NEUMANN, 2004).

De acordo com Karl H. Hunsche (1978), o processo migratório alemão para o

Brasil também pode ser dividido em seis etapas, de acordo com a tabela em anexo

(Anexo IX).

Na maioria das vezes, os imigrantes de mesma origem étnica concentravam--

se em grupos homogêneos e isolados da sociedade brasileira, o que facilitou a

preservação da sua língua, cultura e tradições.

A fundação de escolas e a circulação da imprensa alemã no Brasil

contribuíram para manter esta resistência em relação à cultura brasileira. Tais

características foram mais intensas antes do advento da República, em 1889, pois, a

partir de então, se intentou formar colônias mistas. Deve-se levar em conta, por

outro lado, que este isolamento se deu enquanto consequência natural da

colonização de vazios demográficos, distantes das capitais e demais centros

urbanos e que, nas palavras de Freyre (1971), em meados do século XIX, já se

verificava indícios de fusão de ambas as culturas.

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Apesar da importância da imigração alemã para o Brasil e do fato de que os

alemães constituíram a maioria nos núcleos coloniais até a chegada dos imigrantes

italianos, em 1875, os alemães não foram, em questão de números, a maioria. As

estatísticas sobre o contingente de imigrantes divergem de um autor para outro, não

chegando a um resultado comum, como indicou Seyferth (2007).

A despeito desta discrepância, segue-se a assertiva de Seyferth (2011), de

que, dependendo do critério empregado, no período de 1824-1950 registrou-se entre

230 e 360 mil imigrantes. A autora ainda cita os dados do IBGE, segundo os quais

entre 1824-99 chegaram ao Brasil 78.009 alemães; de 1900-39 foram 143.048 e de

1940-69 29.109.

Gregory (2011) também atenta para os números registrados em relação à

vinda de alemães ao Brasil, percebendo que a imigração foi mais intensa de 1872

até 1939, de acordo com o quadro apresentado pelo autor (Anexo X).

A heterogeneidade cultural dos alemães que aportaram no Brasil era bastante

acentuada, levando-se em conta que grande porcentagem de imigrantes deixou a

Europa antes de 1871, ano da Unificação da Alemanha, ou seja, uma época em que

as fronteiras nacionais não estavam delineadas.

Diante desta instabilidade, o que seria o “imigrante alemão” no século XIX?

Pois, tentar definir quem/quantos deles entraram no Brasil é incorrer em terreno

movediço, visto que não há como se obter um número preciso sobre sua

procedência, quando havia grupos populacionais falantes da língua alemã em

diversos países europeus – Áustria, Suíça, Luxemburgo, Polônia, Romênia, Hungria

e outros.

A preocupação com o registro do número de mulheres, homens e crianças

que saíram da Alemanha e com o seu local de destino fica evidente no Jornal Geral

dos Emigrantes19 (1858, n.º 6 p. 25 – Anexo XI). O levantamento de dados

estatísticos sobre o movimento migratório alemão resultou em uma rica produção

documental, tanto na Alemanha como no Brasil, que ainda precisa ser analisada.

Como se sabe, uma parcela significativa de imigrantes alemães que veio ao

Brasil se dedicou à agricultura, mas muitos não se adaptaram ao trabalho no campo

e foram para os centros urbanos, onde desempenharam diversas atividades, com

destaque para a indústria, o comércio e o artesanato.

19 Tradução: Allgemeine Auswanderer Zeitung.

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Atualmente, as marcas da cultura alemã se fazem presentes nos estilos

arquitetônicos, no emprego da língua alemã, que aos poucos se transformou em um

dialeto teuto-brasileiro, e nas associações culturais – a primeira associação

recreativa fundada no Rio Grande do Sul, em 23 de junho de 1855, chamada

Geselschaft Germania, ou Associação Germânica, existe até os dias atuais, estando

entre as principais do Rio Grande do Sul. Além das marcas arquitetônicas e dos

hábitos alimentares, também deve ser destacada a literatura em língua alemã

produzida pelos imigrantes e seus descendentes, chamada teuto-brasileira, que

despontou na região Sul do Brasil, bem como os anuários, jornais e revistas que

circulavam pelo Brasil a partir de 185220.

1.1 DAS PROJEÇÕES DO ALEMÃO NO BRASIL À MEMÓRIA LITERÁRIA

Ateve-se até aqui a alguns aspectos da história da imigração alemã para o

Brasil por se considerar que a dimensão social, o referente externo, é constituinte da

construção artística enquanto elaboração estética, o que a torna um elemento

interno à sua composição, convertendo-se em interno-externo.

Esta formulação teórica, sobre a qual Antônio Candido se detém em Literatura

e Sociedade (2006), chama a atenção para que a dimensão social não seja

analisada, apenas, como projeção externa, uma vez que valores sociais e

ideológicos se transmutam em conteúdo e forma.

Tendo em vista a assertiva do crítico sobre o rompimento da relação

paralelística entre literatura e sociedade, e sobre o “[...] socialismo crítico, a

tendência devoradora de tudo explicar por meio de fatores sociais” (CANDIDO,

2006, p. 16), analisar a representação ficcional dos imigrantes alemães na literatura

brasileira não se configura no paralelismo comparativo entre ficção e história, ao

modo de um trabalho detetivesco, que verifica a ocorrência desta naquela,

subtraindo o fato de que o romance inaugura um debate sobre si mesmo e sobre

outros textos. Pois, recorrer à memória deixada, atentando àquilo que não foi escrito,

20 Na preservação da história da emigração alemã para o Brasil deve ser destacado, ainda, o trabalho realizado por institutos, como o Instituto Martius Staden, de São Paulo, e museus de destaque, como o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, o Museu Nacional da emigração e colonização, localizado em Joinville, e o Museu da Emigração do Estado de São Paulo.

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e o modo pelo qual a escrita existente foi concebida, é buscar instrumentos de

análise do dizer literário.

Não se estenderá, aqui, a este respeito, mas isto remete à questão da

mimese, tão discutida pela teoria literária, porque, em consonância com O demônio

da teoria (2001, p. 97), de Compagnon, trata-se do “[...] termo sob o qual se

conceberam as relações entre a literatura e a realidade”, desde Platão a Auerbach.

De que fala a literatura? pergunta o autor. Ela fala do mundo e, por outro lado, fala

de si mesma, dado que existe uma relação arbitrária entre o trabalho artístico e a

realidade e, enquanto realização da linguagem, o que lhe interessa é a sua

composição poética, a sua poiésis.

A obra vem a ser, então, o espaço para o qual enveredam a iniciativa

individual – assim chamada por Candido (2006) – e as condições sociais, que guiam

o artista em diferentes proporções. Pelo viés da mimese moderna, o autor se

apropria do referente, da história e dos aspectos sociais, não para imitá-los, mas

para recriá-los, reinterpretá-los, desestabilizá-los e desautomatizar a percepção do

leitor.

Discussões como estas também não estão longe da questão da crise da

representação, que marca uma era de simulacros que se aproxima – ou já se

aproximou? – a passos largos do momento em que não haverá mais histórias a

serem contadas e experiências a serem narradas, diante do surgimento de um

tempo global, de curto prazo, efêmero e melancólico.

A quem pertence a história? Esta pergunta foi formulada por Aleida Assmann,

em uma conferência intitulada “Fatos e ficções na literatura memorialista

contemporânea” (2013)21, ocasião em que a pesquisadora alemã discutiu o primado

da experiência enquanto matéria-prima do espaço literário.

A temática remete a Walter Benjamin (1987), quando ele afirma que o declínio

da experiência autêntica – Erfahrung – e o enfraquecimento da arte de narrar

nasceram com o desenvolvimento da técnica, da produção industrial e mecânica e,

por conseguinte, da privatização da vida, que suprimiram o modo de produção

21 As citações de Aleida Assmann e Jan Assmann, do ano de 2013, remetem, respectivamente, às conferências “Fatos e ficções na literatura memorialista contemporânea” e “Fundamentos da memória cultural”, ministradas no Ciclo de Conferências Estudos Humanísticos e Multidisciplinaridade, realizadas no dia 17 de maio de 2013, nas dependências da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – por intermédio do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, nível mestrado e doutorado, em parceria com o Centro de Cooperação Internacional Brasil-Alemanha (CCIB)/ Associação Latino-americana de estudos germanísticos (ALEG), da Universidade Federal do Paraná.

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artesanal/manual e dessacralizaram as experiências, os valores coletivos e a

comunicabilidade.

Isto significa que o empobrecimento das experiências individuais adveio do

da modernidade, marcado pela pressa, pelo tempo vazio, homogêneo e pelo

imediatismo. Ele desponta com o advento da burguesia, no final do século XVIII, e

caracteriza-se pela despersonalização e pela perda das referências coletivas, que

Bertold Brecht tematizou no poema “Apague as pegadas”, abaixo transcrito,

mencionado por Walter Benjamin no ensaio Experiência e pobreza (1986), e citado

por Jeanne Marie Gagnebin, em História e narração em Walter Benjamin (2007).

Apague as pegadas

Separe-se de seus amigos na estação

De manhã vá à cidade com o casaco abotoado

Procure alojamento, e quando se camarada bater:

Não, oh, não abra a porta

Mas sim, Apague as pegadas!

Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em outro lugar

Passe por eles como um estranho, vire a esquina, não os reconheça

Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles lhe deram

Não, oh, não mostre seu rosto

Mas sim, apague as pegadas!

O que você disser, não diga duas vezes.

Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o.

Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato

Quem não estava presente, quem nada falou

Como poderão apanhá-lo?

Apague as pegadas!

Cuide, quando pensar em morrer

Para que não haja sepultura revelando onde jaz

Com uma clara inscrição que o denuncie

E o ano de sua morte que o entregue!

Mais uma vez: Apague as pegadas!

(Assim me foi ensinado)

(BRECHT apud GAGNEBIN, 2007, p. 60-61).

A tradição oral, que remonta às histórias preservadas oralmente ao longo do

tempo, perdeu-se na modernidade, pois o substrato da narração – a experiência –

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foi substituído e ocupado pela vivência – Erlebnis –, no sentido de uma existência

aqui e agora, passageira.

A narrativa, em sua essência, era desenvolvida em torno do trabalho manual

e artesanal, quando interagiam, segundo explica Benjamin (1994), a voz, a mão e a

alma. Por isso, ela se assemelha ao trabalho do oleiro, que precisa do barro para

criar o vaso, tal como o narrador precisa da experiência para narrar. Sobre isso,

Benjamin (1987, p. 119) conclui que: “ficamos pobres. Abandonamos uma depois da

outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-los muitas vezes

a um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda miúda ‘atual’”.

Esta realidade colocou os novos autores entre o impasse da fragilidade da

memória e, na tentativa de salvar o passado do esquecimento, eles se voltam “[...] a

determinados acontecimentos do passado porque querem ir ao encalço das

repercussões, ou porque têm a necessidade de narrar a história de uma nova

maneira” (ASSMANN, 2013). Tais autores recorrem à memória cultural e canônica

disponível, porque, se o homem moderno não sabe mais contar, parte-se do

pressuposto de que ele tampouco manteve a faculdade do ouvir que, sobretudo,

demanda tempo, já convertido em dinheiro, produção, lucro ou mera sobrevivência.

A retomada salvadora do passado é concebida por Benjamin pelo movimento

da origem – Ursprung – que rompe com a cronologia histórica oficial e resgata o

passado esquecido e mudo. Desta forma, para que um novo fenômeno tenha

origem, é necessário restaurar e reproduzir o passado, que se encontra incompleto e

inacabado para o futuro, pois perpassado no duplo sentido de vergangen – passado

e desaparecido. Tem-se, então, o eterno processo do vir a ser, na medida em que se

constrói o presente por meio do processo de rememoração do passado que permite,

de modo cíclico, a construção do futuro, potencialmente subjacente ao presente. O

que remente às Confissões (1984), de Santo Agostinho, narração autobiográfica

escrita entre 397 e 400. O teólogo discorre sobre a confluência do tempo “presente”

em três perspectivas:

[...] o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera (AGOSTINHO, 1984, p. 323).

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O movimento de origem implica não somente a restauração do passado, mas

a transformação do presente e a emergência do diferente. Seguindo este raciocínio,

Aleida Assmann (2013), em diálogo com a teoria de Benjamin, chamou a atenção

para o fato de as representações históricas serem passíveis de infinitas

reconstruções dos acontecimentos, por meio de novas fontes e aproximações ainda

não narradas, cujas lacunas – que a sociedade subtraiu do discurso oficial, ou

deixou de tematizar – poderão, então, ser (re)conhecidas.

Em virtude disso, a aceitação de que os eventos se encontrem em sua versão

definida e fechada, ou de que o tempo seja concebido enquanto cronológico e linear,

significa compactuar e alienar-se aos interesses de uma classe, dado que a história

oficial se construiu pela voz dos vencedores.

Ao criticar a historiografia progressista e burguesa, Benjamin (1987, p. 224 –

grifo nosso) conferiu importância a esta questão, ao afirmar que “[...] nunca houve

um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E,

assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de

transmissão da cultura”. Então, se escritos e monumentos permanecem, disso deve

resultar o questionamento sobre o que se buscou preservar do esquecimento, ou

quais foram os critérios da seleção.

Embora a imigração de alemães para o Brasil tenha iniciado efetivamente há

cento e noventa anos, muitos dos seus descendentes, especialmente nas

comunidades mais fechadas, mantiveram preservados traços identitários do país de

origem, que trazem à tona questões tão complexas socialmente como estereótipos,

nacionalismos e preconceitos. Analisá-las, por conseguinte, é sempre perturbador,

porque revira, vasculha e resgata da lata de lixo (ASSMANN, 2011) dos

esquecimentos outrora dispensados, momentos do passado necessários à

compreensão do sujeito atual e da realidade que o circunda. Tal análise implica,

também, perguntar-se, conforme sugere Elias (1997),

[...] se não temos imagens depreciativas ou degradantes de outros grupos em nossa cabeça e se, quando encontramos indivíduos desses grupos, não procuramos involuntariamente a prova de que é correto o quadro estereotipado do grupo que temos em mente (ELIAS, 1997, p. 28).

Nesta ordem de considerações, e alcançando a reflexão de Gagnebin (1997,

p. 73) sobre a “condição específica de seres que não só nascem, e morrem ‘no’

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tempo, mas, sobretudo, que sabem que têm consciência dessa sua condição

temporal e mortal”, posso então afirmar que minha memória biológica não tem

alcance sobre os acontecimentos que envolveram, por exemplo, a chegada dos

primeiros imigrantes alemães ao Brasil, nem, tampouco, sobre a ascensão dos

regimes nazifascistas na primeira metade do século XX, que implicaram duas

guerras e um genocídio. Sendo assim, procura-se a ponta deste novelo em tudo o

que se leu e lê enquanto patrimônio desse passado, ao qual não se tem pleno

alcance, mas do qual chega, certamente, aquilo que se preservou nas gerações

anteriores. E chega porque está mantido na memória-armazém da sociedade

(ASSMANN, 2000) que, por comportar o conteúdo temporalmente mais distante,

pode ser acessado e reativado, seja para negá-lo, ou para reafirmá-lo.

Isto quer dizer que a memória não se restringe ao indivíduo, como já havia

postulado Maurice Halbwachs (1990), de sorte que ela está amarrada ao grupo, à

memória coletiva de uma sociedade.

Para analisar ou retomar determinado acontecimento ou fenômeno, pode-se,

então, recorrer, em primeira instância, à memória biológica ou individual, na qual se

inserem as vivências pessoais que são, neste caso, via de acesso a uma infância

marcada por uma comunidade na qual grande parte dos habitantes é descendente

de alemães e preservou traços da cultura dos antepassados.

Em um segundo momento está a dimensão social, sendo esta a base

comunicativa e social da memória e, por último, e de forma mais complexa,

encontra-se a dimensão cultural, de permanência institucional, codificada nas mais

diversas formas de linguagem, que vai muito além do tempo biográfico22.

Contudo, deve ser destacado que, a despeito de se estar engajada em

determinados grupos sociais, a memória dos outros não pode mais ser evocada para

completar as lacunas e a inacessibilidades da minha. Até porque, não há mais

testemunhas que auxiliam a recontar uma história por meio da rememoração dos

momentos compartilhados. Nas sociedades contemporâneas, cada vez se ocupa

menos com o lembrar, com o narrar e com a perpetuação da história contada.

Bosi (1994, p. 59) afirma que “[...] um mundo social que possui uma riqueza e

uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos [esse mundo] pela memória

dos velhos”. Todavia, os conselhos, presentes nas narrativas e experiências

contadas, nem aos velhos é mais possível, uma vez que, em sua maioria, quando 22 Segue-se a distinção de memória apresentada por Jan Assmann (2000).

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dispensáveis ao sistema de produção do capital, são rejeitados pela sociedade e

aguardam seu fim isolados em casa, em asilos e casas de repouso, o que só pode

significar que não há mais “[...] sobrevivência à sua obra” (BOSI, 1994, p. 77). Tais

conselhos os jovens encontram em best sellers e demais demonstrações de

autoajuda da indústria cultural, cuja natureza do gênero já se associa a um monstro

flácido, que absorve todos os demais gêneros23.

Portanto, nesta linha de pensamento, resta voltar-se à memória cultural,

indiscutivelmente pela “[...] mediação do lembrar ou da leitura dos signos e dos

textos” (GAGNEBIN, 2007, p. 14), dado que, ainda segundo as palavras da

autora, “[...] não existem [...] reencontros imediatos com o passado, como se este

pudesse voltar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agarrar uma

substância, mas há um processo meditativo e reflexivo”, que se exemplifica com a

experiência da releitura. Ela pode, apenas, refazer as primeiras impressões, já que

também não se lê um texto, nas mais diversas vezes e ocasiões, da mesma

maneira, relembra Bosi (1994).

Partindo-se da premissa de que “[...] um homem não sabe o que ele é se não

for capaz de sair das determinações atuais” (BOSI, 1994, p. 81), vislumbra-se a

necessidade de retomar as produções, salvaguardadas pela memória cultural, que

abarquem um passado mais distante do que aquele de meus pais e avós. Inserida

nessa memória cultural abrangente, a literatura é um dizer sobre nós mesmos, e

tece, à sua maneira, as redes da história, por mãos de Penélopes. E não se trata de

um trabalho ingênuo, pois, no ir e vir dos fios e do movimento das mãos, salvam-se

determinados fenômenos e acontecimentos, e esquecem-se outros –

conscientemente, ou não – o que garante o trabalho de “escavação” de

pesquisadores que buscam recuperar fenômenos, encontrar outros e elucidar tantos

mais, trazendo à cena, neste caso, o modo pelo qual os imigrantes alemães foram

representados na literatura brasileira do século XX, com os escritores Graça Aranha,

Vianna Moog e Josué Guimarães, respectivamente em Canaã, Um rio imita o Reno

e A ferro e fogo.

Portanto, buscou-se neste capítulo abordar alguns aspectos sobre o contato

inicial travado entre alemães e brasileiros, sobretudo – mas não exclusivamente –

23 A referência ao “monstro flácido” faz parte da fala de Miguel Sanches Neto na conferência intitulada Proposta de leitura do romance contemporâneo, realizada durante o XI Seminário de Estudos Literários (50 anos do 2º Congresso brasileiro de crítica e história), na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Assis-São Paulo, nos dias 24, 25 e 26 de outubro de 2012.

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por intermédio da legislação imigrantista, iniciada no segundo quartel do século XIX.

Partindo desta perspectiva histórica e social, constituinte interna à composição

literária, pretendeu-se discutir a questão do papel da literatura enquanto memória

cultural, muito mais rica e abrangente que a memória pessoal, e que permite que se

tenha acesso à representação do imigrante alemão no Brasil.

Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo são obras que, por remeterem a

momentos e perspectivas históricas e temporais distintas, permitem analisar a

representação do alemão de forma mais ampla e descentralizada. Pensando-se nas

teorias literárias pós-coloniais, tem-se a tarefa de revisitar e questionar o passado, a

hierarquia, o etnocentrismo e o eurocentrismo, não no sentido da inversão de

valores, mas na inclusão de novos olhares, de novas propostas de leituras e

interpretações, “escovando tudo a contra pelos” (BENJAMIN, 1987).

Na sequência, passaremos para a análise de Canaã, no capítulo intitulado

“Racialismo, humanismo e desencanto em Canaã”.

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2 RACIALISMO, HUMANISMO E DESENCANTO EM CANAÃ

Conforme aponta Mário Luiz Frungillo (2008), mais de um século após sua

publicação, o livro Canaã ainda suscita dúvidas se seria uma obra ficcional, um

ensaio filosófico ou um ensaio sociológico.

Canaã é definido por vários críticos como um romance de tese porque, em

sua composição, há um debate de ideias sobre o atraso social do Brasil, o papel da

imigração no futuro da nação e, por fim, o sentido da vida, é em torno destas

questões que se estrutura o enredo.

Este romance pauta-se em reflexões filosóficas, éticas, religiosas e morais,

que convergem para dois eixos ideológicos: o racionalismo e o humanismo alemão.

Assim, é o caráter moralizador, didático e teórico do romance – haja vista que as

teorizações do narrador desestruturam a progressão da trama – que interfere na

recepção positiva do mesmo pelos críticos.

Segundo Roberto Schwarz, no ensaio sobre Canaã em A sereia e o

desconfiado (1981), as personagens do romance de Graça Aranha parecem

funcionar como marionetes de seu criador, pois elas se configuram enquanto porta-

-vozes das inquietações do autor e, por isso, são destituídas de vida própria,

enquanto composição ficcional.

Com efeito, o crítico mostra que há uma descontinuidade do universo

imaginário em Canaã, resultante das intervenções teóricas do autor, que transforma

a trama ficcional em pretexto para analisar a realidade brasileira. Por conseguinte,

sua tentativa de organizar esteticamente ficção e realidade – de modo a buscar

“verdades” sobre o Brasil – não se dá a contento.

Entretanto, ao destacar tais apontamentos, a crítica tende a desconsiderar a

qualidade estética da obra. Uma exceção a esta tendência é o estudo de José Paulo

Paes (1992)24, que reavalia positivamente o romance a partir do estilo e das

tendências estéticas da época de sua elaboração, bem como das ideias filosóficas a

ele subjacentes.

A despeito da “artificialidade” das personagens, estas, ao serem analisadas

em sua essência enquanto vozes sociais, desvelam ao leitor atento concepções

discursivas bastante profundas, uma vez que se trata da representação literária de

tipos sociais específicos e historicamente bem situados.

24 Ver: PAES, Jose Paulo. Canaã e o ideário modernista. São Paulo: Edusp, 1992.

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O discurso de Lentz – um dos protagonistas alemães – por exemplo,

representa em Canaã a memória de um grupo social, seus valores e preconceitos,

que elegeu o povo alemão como superior a todos os outros, e do qual o Brasil

dependeria para construir o que índios, negros e mulatos seriam biologicamente

incapacitados de fazer.

Mas isto é a lei da vida e o destino fatal deste país. Nós renovaremos a Nação, nos espalharemos sobre ela, a cobriremos com os nossos corpos brancos e a engrandeceremos para a eternidade. A velha cidade mineira da sua narração não me interessa, os meus olhos se projetam para o futuro. Porto do Cachoeiro tem mais significação moral hoje pela força de vida, de energia que em si contém do que os lugares mortos de um país que vai se extinguir... Falando-lhe com maior franqueza, a civilização dessa terra está na imigração de europeus; mas é preciso que cada um de nós traga a vontade de governar e dirigir (ARANHA, s/d, p. 22 – grifo nosso).

Na fala de Lentz há uma manobra subliminar que faz referência àqueles que

obnubilaram da história as contingências econômicas e sociais em nome da

pretensão em dominar, explorar e excluir o outro, recorrendo, para tal, à fixação de

tradições e mitos, como o da pureza racial. Ao empregar o pronome pessoal “nós”, a

personagem se inclui na homogeneidade de um grupo, reiterando seu sentimento de

pertencimento. Apregoando o domínio e a expansão do europeu no Brasil, Lentz dá

pistas ao leitor sobre si mesmo, sua personalidade preconceituosa e autoritária, que

é determinante do comportamento etnocêntrico do sujeito.

A expressão “personalidade autoritária” remete ao estudo de campo sobre o

fascismo latente da população norte-americana, realizado por Theodor Adorno e

psicólogos da Universidade da Califórnia, em Berkeley, entre os anos de 1944 a

1947, e que resultou na publicação, em 1950, de A personalidade autoritária:

estudos sobre o preconceito (1950).

Embora o livro de Adorno tenha sido publicado meio século depois de Canaã,

ele fornece orientações importantes para a compreensão do perfil de Lentz ao

mostrar que o preconceito cumpre uma função psicológica, tem motivações

emocionais irracionais e necessidades inconscientes internalizadas. Tais

características são adquiridas por meio da inserção do sujeito em um contexto

histórico e social determinado, sendo, portanto, psicossociais. Destaca-se, apenas,

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que o estudo de Adorno teve como ponto de partida Psicologia de massas e análise

do eu (1921), de Sigmund Freud.

Veja-se como Lentz, em relação ao brasileiro, traz à tona preconceitos

internalizados, os quais são a matéria-prima do comportamento discriminatório.

Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos em revoltas em quedas. Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão, a civilização sempre será um misterioso artifício, todos os minutos rotos pelo sensualismo, pela bestialidade e pelo servilismo inato do negro. O problema social para o progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida, como a dos mulatos, por europeus. A imigração não é simplesmente para o futuro da região do País um caso de simples estética, é antes de tudo uma questão complexa, que interessa o futuro humano (ARANHA, s/d, p. 25).

Lentz reproduz eficientemente um percurso teórico racial sobre o negro, do

qual se ocupará mais adiante. No primeiro momento, ressalta-se o fato de a

personagem empregar as expressões “inferioridade”, “incapacidade”, “revoltas em

quedas” e “progresso”, que parecem, a despeito de querer se referir ao outro, dizer

de si mesmo, no sentido de um lapso do inconsciente que diz para além do que se

quis dizer.

Que motivações psicossociais teria Lentz para transformar as “raças

inferiores” em “bodes expiatórios”? Tratar-se-á, talvez, do processo que Freud

(1921) denominou de projeção, ou seja, o ato de projetar no outro a frustração do

indivíduo, seus medos e traumas, transferindo para o outro a responsabilidade pelos

infortúnios de sua vida e da de seu grupo.

Recuando-se consideravelmente no tempo para o desenvolvimento histórico

da nação germânica, se entenderá que a personalidade autoritária de Lentz está

ligada à educação e à estrutura autoritária do Estado alemão, cujo processo de

formação se caracterizou em um quadro de conflitos, humilhações e traumas.

Ao estudar a maneira pela qual ocorreram a ascensão do nacional-socialismo,

as guerras, os campos de concentração e a divisão da Alemanha em dois Estados,

Norbert Elias (1997) cita alguns aspectos que contribuíram para tais consequências

– lembrando que a atual configuração espacial da Alemanha data, apenas, de 1º de

agosto de 1990.

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Após referir-se à situação instável das tribos de fala alemã, cercadas de

grupos inimigos, o autor cita a fraqueza interna e a falta de unidade do Sacro

Império Romano da Nação Germânica, consequência dos choques internos entre os

vários principados e ducados até a época de Bismarck que, em 1871, unificou-os e

constituiu o Segundo Império. Tais condições deram ensejo às diversas invasões e

ataques de outros povos.

[...] a Alemanha seiscentista tornou-se importante arena de guerra onde os líderes e os exércitos de outros países católicos e protestantes travavam suas batalhas pela supremacia. E os exércitos de magnatas regionais também se guerreavam uns aos outros em território alemão. Todos eles precisavam de alojamentos e alimentos provenientes dos campos. A insegurança cresceu. Bandos vagavam pela terra, pilhando, queimando e matando. Uma elevada proporção do povo alemão empobreceu. Especialistas calculam que durante a Guerra dos Trinta Anos a Alemanha perdeu um terço de sua população (ELIAS, 1997, p. 19).

Somadas a outros acontecimentos que contribuíram para aumentar este

quadro de fraqueza estrutural do Estado germânico – como a invasão da Alemanha,

em fins do século XVII, pelas tropas de Luís XIV, e no início do século XIX pelo

exército de Napoleão Bonaparte, sob a prerrogativa do domínio francês de unificar a

Europa – as experiências negativas desse processo histórico profundamente

violento trouxeram consequências socioeconômicas drásticas, impingindo nos

alemães uma conduta militar e autoritária.

Ao longo dos séculos, segundo Elias (1997), a história de uma nação

sedimenta-se no habitus de seus membros – termo empregado pelo autor e que

corresponde ao sentido de mentalidade – de modo que estes apresentam como

consequência sinais de depressão, humilhação e, sobretudo, perda de identidade.

Assim, do sentimento de que os alemães seriam incapazes de viver sem discórdias

e disputas internas, nasceu o desejo de unidade, tendo como contrapartida a

interiorização exagerada e doentia de grandeza, força e poder da nação alemã

(CARONE, 2002).

Quando Lentz afirma que “a vida é a luta, é o crime. Todo o gozo humano tem

o sabor do sangue, tudo representa a vitória e a expansão do guerreiro” (ARANHA,

s/d, p. 31), supõe-se que é a formação histórica e social que implicou na

mentalidade belicosa, cujos desdobramentos serão tão trágicos ao longo do século

XX. Ou seja, extrapolando o campo literário, o comportamento proceloso de Lentz e

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sua fidelidade a um ideal germânico se confirmarão historicamente no decorrer do

século XX.

Seguindo esta ordem de considerações, ao se atentar ainda ao emprego do

pronome pessoal “nós” no discurso de Lentz, é válido analisar esta personagem sob

o viés psicológico do grupo que reloca o indivíduo enquanto membro de uma família,

de uma raça e de uma nação, pois, para Freud, os indivíduos, quando

transformados num grupo, numa espécie de mente coletiva, passam a “[...] pensar

e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro [do grupo] tomado

individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de

isolamento”25. Os membros de um grupo se unem sob a força de uma ideia em

comum, ou de um sentimento capaz de torná-

-los uma só massa homogênea e invencível, conforme afirma Lentz:

[...] o homem levará ainda muito tempo a libertar-se do grupo a que pertence, a emancipar-se dessa tirania poderosa que lhes anula a individualidade e lhe traça na fisionomia as linhas de uma máscara comum e sem distinção própria, ou seja a família, ou seja a classe, ou seja a raça (ARANHA, s/d, p. 28).

Com efeito, os interesses individuais são, em certa medida, refreados em

nome dos interesses do grupo como um todo, pois a pessoa é impingida a agir da

mesma forma que os demais membros do grupo. Lentz corresponde modelarmente

a este quadro ao expressar o desejo de dominar e conquistar o Brasil. Entretanto, a

personagem não intenta fazer isto sozinha, senão com a vinda em massa de

alemães26.

E Lentz via por toda a parte o homem branco apossando-se resolutamente da terra e expulsando definitivamente o homem moreno que ali se gerara. E Lentz sorria com orgulho na perspectiva da vitória e do domínio de sua raça. Um desdém pelo mulato, em que ele exprimia o seu desprezo pela languidez, pela fatuidade e fragilidade deste, turvou-lhe a visão radiosa que a natureza do país lhe imprimira no espírito. Tudo nele agora era um sonho de grandeza e triunfo... Aquelas terras seriam o lar dos batalhadores eternos,

25 Psicologia de grupo e a análise do ego. Disponível em: <http://centropsicanalise.com.br/wpontent/uploads/2012/07/Aulas14sicologiadegrupoeaan%C3%A1lisedoego..pdf>. Acesso em: jun. de 2013. 26 A referida passagem faz uma analogia à colonização do país pelos portugueses, em 1500, ou à renovação do contato do Brasil com a Europa, no século XIX, que Freyre (2004) chamou de reeuropeização e reconquista: isto é, quando o Brasil, em sintonia com a mentalidade cientificista da época, passa a fazer parte da rota de muitos viajantes, interessados nos aspectos exóticos dos trópicos, especialmente no que se refere ao clima, à flora e à fauna.

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aquelas florestas seriam consagradas aos cultos temerosos das virgens ferozes e louras... Era tudo um recapitular da antiga Germânia. Ele percebia no seu cérebro exaltado que os alemães chegariam, não em pequenas invasões humildes de escravos e traficantes, não para lavrar a terra para recreio do mulato, não para mendigar a propriedade defendida pelos soldados negros. Eles viriam agora em grandes massas; galeras imensas e numerosas os desembarcariam em todo o país. Eles viriam numa ânsia de posse e de domínio, com sua áspera virgindade de bárbaros, em cortes infinitas, matando os homens lascivos e loucos que ali se formaram e macularam com suas torpezas a terra formosa; eles os eliminariam com o ferro e com o fogo; eles se espalhariam pelo continente; fundariam um novo império, se revigorariam eternamente na força da natureza que dominariam como uma vassala, e senhores, e ricos, e poderosos, e eternos repousariam para sempre na alegria da luz... Mas no sonho de Lentz sobre as naus que velejavam, sobre os exércitos que caminhavam, uma massa imensa e preta marchava no céu qual uma nuvem condutora, e depois se transformava numa figura estranha e agigantada, cujos olhos penetrantes desciam do alto, envolvendo as terras e os homens com uma força invencível e magnética. Então Lentz viu pairar sobre a terra do Brasil a águia negra da Germânia... (ARANHA, s/d, p. 47 – grifo nosso).

Lentz é porta-voz de uma espécie de delírio segundo o qual os alemães se

apossariam definitivamente das terras brasileiras, não só no sentido físico, mas,

também no simbólico. As virgens louras da mitologia alemã substituiriam as virgens

morenas, como Iracema, que o Romantismo havia moldado no imaginário brasileiro.

Por outro lado, a negatividade com que o alemão é representado aponta para o

temor em relação à sua vinda em massa, ao seu domínio e posse do território

brasileiro, haja vista que, com a imigração, formaram-se grupos étnicos resistentes à

interação com os brasileiros. Veja-se que, na citação acima, a voz é apenas

atribuída a Lentz, mas ela está sendo anunciada por alguém de fora – o narrador –

que repassa a ideia de um profundo conhecimento sobre as características do povo

alemão e, por isso, cogita a hipótese de uma invasão.

No contexto da obra analisada isso faz sentido, pois Graça Aranha, a exemplo

de Silvio Romero, de um germanófilo discípulo de Tobias Barreto na sua mocidade,

tornou-se, em sua idade madura, um germanófobo adepto do “perigo alemão”

(FREYRE, 1971). Tendo em vista que Graça Aranha nasceu em 1868, quando

publicou Canaã já tinha 34 anos, portanto, já estava mais maduro e distante do início

da juventude, quando cursou direito em Recife e fora influenciado “pela maior força

germanizante que já se fizera sentir nas letras brasileiras: a da Escola do Recife

dominada pela figura carismática de Tobias Barreto” (FREYRE, 1971, p. 141).

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Em 1917 – quinze anos após a publicação de Canaã – no prefácio escrito

para a edição portuguesa do livro O plano pangermanista desmascarado, de André

Chéradame, Graça Aranha deixa evidente seu posicionamento germanófobo, já que

defendeu que os alemães se constituem historicamente em um povo de rapina e de

invasão. Como estava em curso a I Guerra Mundial, Graça Aranha propôs que o

Brasil rompesse imediatamente as relações diplomáticas com a Alemanha, proibindo

a entrada de imigrantes alemães em território brasileiro.

Temos de resolver o povoamento do território dentro das forças da nossa nacionalidade, e de todas as raças que buscam o Brasil, a menos assimilável e a mais perigosa pelo seu poder de absorção é a raça allemã. [...]. O elemento allemão subsiste perigoso e repulsivo. O futuro da nacionalidade brasileira exige a parada dessa infiltração allemã [...]. Será uma medida de sabedoria prohibir no Brasil a invasão teutonica, que se prepara para se espalhar no mundo depois da guerra (ARANHA, 1917, p. 25 e 26).

Graça Aranha pensava que tal perigo tinha fundamentos, porque qualquer

intento se torna passível de realização sob a atuação do grupo, no qual o sujeito se

rende às forças mais impulsivas e, dir-se-ia, primitivas do ser humano. Este age com

mais violência, como mostra a fala de Lentz, anteriormente citada, de que os

alemães “[...] viriam numa ânsia de posse e de domínio, com sua áspera virgindade

de bárbaros, em cortes infinitas, matando os homens lascivos e loucos que ali se

formaram e macularam com suas torpezas a terra formosa [...]” (ARANHA, s/d, p.

47).

O perigo visto por Graça Aranha nos alemães está simbolicamente manifesto

na visão da águia negra antevista por Lentz ao imaginar a invasão do Brasil pelos

alemães, e que sintetiza o perfil da personagem – “então Lentz viu pairar sobre a

terra do Brasil a águia negra da Germânia...” (ARANHA, s/d, p. 47). Até porque, a

águia simboliza força, coragem e liderança, mas também,

[...] a perversão de sua força, o descomedimento de sua própria exaltação [...] por causa de seu caráter de ave de rapina que carrega as vítimas com suas garras para conduzi-las a lugares de onde não podem escapar, a águia simboliza também um desejo de poder inflexível e devorador (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 25-26).

Seguindo estas considerações, parece que o autor faz de Lentz uma projeção

da nação alemã, conforme demonstra a definição de pátria da personagem: “[pátria]

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é a raça, uma civilização particular que nos fala no sangue, o nosso eu, a nossa

própria projeção no mundo, a soma de nós mesmos multiplicados ao infinito.”

(ARANHA, s/d, p. 107).

Nota-se que, para Lentz, indivíduo e nação se fundem em um único ser,

refletindo a formação política do país que impinge em seu povo sentimento de

orgulho, implícito à ideia de unidade nacional. Daí o fato de o sujeito utilizar da

identidade nacional para se definir individualmente, conforme indicam expressões

tão corriqueiras como: “sou alemão” ou “sou brasileiro”, por exemplo. Isso acontece

porque a nação, para além de uma entidade política e territorial, também produz

sentidos com os quais as pessoas se identificam. Ela é uma comunidade simbólica

que gera sentimentos de pertencimento, lealdade e identidade. Segundo Hall (2006,

p. 50),

[...] as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

Portanto, o emprego enfático do pronome “nós” no discurso de Lentz revela o

sentimento de identidade coletiva da personagem, demarcando as fronteiras entre

os alemães como um todo em relação aos demais povos. A distinção entre “nós”, os

falantes de língua alemã, e os outros, estrangeiros, teve seu início em seguida à

fundação do I Reich (962) e remonta à tomada de consciência de uma comunidade

linguística entre diversos Stämme27, e do desprezo pelos welches28 (POLIAKOV,

1974). Poliakov (1974) explica que a importância de tal descoberta fica evidente ao

se considerar que, em geral, as línguas europeias são etimologicamente derivadas

dos nomes dos países, ao passo que, no caso alemão, esta ordem é invertida, já

que o nome da língua comum – theodiscus, diutisk – que surge no tempo de Carlos

27 Traduzível como tronco, estirpe, raça ou tribo. (Cf. LANGENSCHEIDT, 2001, p. 1078). 28 Refere-se, neste contexto, às outras línguas e culturas estrangeiras, sobretudo às latinas.

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Magno, seria, portanto, muito anterior à denominação Deutsche, que só

posteriormente dará origem a Deutschland29.

Este quadro se aproxima bastante daquele que Benedict Anderson discute

em Comunidades imaginadas (2008), obra na qual o autor afirma que a consciência

nacional teve suas origens com o capitalismo e o desenvolvimento da imprensa

como mercadoria. Isto porque na Europa, antes da invenção da imprensa, havia uma

grande diversidade de línguas faladas e o impacto da Reforma, ao contribuir para a

formação de um público leitor de massa – que passou a ter acesso a textos

importantes como a bíblia, cuja leitura, até então, era outorgada apenas a uma elite

bilíngue, que sabia o latim – mostrou que tais variantes e dialetos poderiam adquirir

valor de unidade através do capitalismo tipográfico.

Como a Alemanha estava dividida em muitos Estados, às vezes

“estrangeiros” entre si, não havia uma padronização da língua até que Martinho

Lutero, ao traduzir a Bíblia – o Novo Testamento em 1521 e o Velho Testamento em

1534 – definiu como padrão linguístico o Hochdeutsch. Em outras palavras, a

consciência nacional nasce, nesse sentido, como consciência sobre uma língua

nacional oficial, gramaticalmente elaborada, por meio da qual os falantes vieram a se

reconhecer enquanto membros de um grande grupo, que participam de uma

identidade étnica comum30. Dessa forma, as pessoas

[...] foram tomando consciência gradual das centenas de milhares, e até milhões, de pessoas dentro daquele campo linguístico particular, e ao mesmo tempo percebendo que apenas estas centenas de milhares, ou milhões, pertenciam a tal campo. Esses companheiros de leitura, aos quais estavam ligados através da letra impressa, constituíram, na sua invisibilidade visível, secular e particular, o

29 O primitivismo comunitário dos alemães em torno do princípio da língua se converteu em

pretensões políticas de hegemonia universal nos séculos XV e XVI, como demonstra, entre 1490 e

1510, o Livro dos cem capítulos, de autoria anônima, obra que prefigurou alguns ideais divulgados

séculos depois pelo nacional-socialismo, ao defender a sujeição dos povos não alemães, o massacre

do clero católico e a necessidade de um chefe supremo, que subjugasse o mundo inteiro pela força

das armas (POLIAKOV, 1974). 30 Afora Lutero, também o Sturm und Drang e o Romantismo alemão contribuíram para gerar este sentimento de germanismo e pertencimento, haja vista que Johann Gottfried Herder passou a empregar o conceito de Volksgeist – alma ou espírito alemão. Este estilo de época, conforme relembra Celeste Ribeiro de Sousa, (Literatura brasileira de expressão alemã. Disponível em: <http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/00000010500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c31.pdf>) alimentou a ideia de nacionalismo, pois, naquela época o país vivia a experiência da invasão napoleônica e necessitava de unidade política. O desejo daquele grupo de intelectuais foi também ressaltar, segundo a autora, o sentimento de pertença ao grupo, à nação, de modo que as raízes medievais passaram a ser reavivadas através dos Märchen e cantos populares, transformando, por exemplo, o rio Reno em símbolo nacional.

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embrião da comunidade nacionalmente imaginada (ANDERSON, 2008, p. 80).

Portanto, a língua é um dos elementos constitutivos da identidade e, em

Canaã, Lentz faz uma referência modelar a ela, ao afirmar a incapacidade de os

brasileiros imporem a língua portuguesa às comunidades germânicas do Espírito

Santo, ignorando a possibilidade de esta “incapacidade” estar atrelada ao fato de o

Brasil ser, ainda, um país jovem, em processo de formação: “[...] no fundo do

pensamento de Lentz houve um pequeno júbilo por essas confirmações da

insuficiência do meio brasileiro para impor uma língua. Esta fraqueza não seria a

brecha para os futuros destinos germânicos daquela magnífica terra?” (ARANHA,

s/d, p. 37).

Todavia, é preciso aqui destacar que a capacidade de disseminar a língua

portuguesa e de dialogar com diferentes culturas foram elementos fundamentais na

constituição da identidade brasileira e, consequentemente, na manutenção do seu

vasto território. Os portugueses, assim como os alemães, já haviam recorrido à

imposição de sua língua tanto aos povos autóctones quanto aos escravos e demais

imigrantes. Tal mentalidade adviria da predisposição do europeu de colonizar, impor

sua língua, cultura e costumes, como parte do projeto de colonização.

Portanto, é paradoxal na obra em análise a assimilação da língua alemã pelos

mulatos de Porto do Cachoeiro, pois, pelo viés da língua, qualquer comunidade está

aberta a novos falantes, a novos ouvintes, o que faz com que eles transitem pelo

campo nacional alemão, que Lentz julgou fechado à invasão do outro. A tentativa de

preservação da língua alemã nas comunidades de imigrantes só arrefeceu por

intervenção do Estado Novo, durante a II Guerra Mundial, haja vista que, no período

inicial da vinda de imigrantes para o Brasil, a falta de assistência do governo

brasileiro propiciou que os grupos de imigrantes abrissem escolas alemãs, com

vistas a suprir as necessidades elementares de ensino do grupo. Desse modo,

quando em Canaã Lentz questiona o agrimensor Felicíssimo sobre a existência de

professores em Porto do Cachoeiro, este responde que tem “só um, porque a língua

que se ensina por essas matas é o alemão, e os professores são alemães, exceto o

da cidade” (ARANHA, s/d, p. 18).

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Concomitantemente ao sentimento nacionalista em torno da língua, avulta em

Lentz o racismo31 e o temor de que o contato cultural, social e sexual acabe por

minar a pureza germânica. Tal visão reduz de forma estereotipada toda alteridade a

determinados traços fisionômicos e culturais negativos. Anderson (2008) destaca

que este delírio racista teve origem nas ideologias da classe aristocrática e na

tentativa de legitimar o princípio de que sua superioridade seria inata, herdada32, o

que coaduna com a fala de Milkau – o outro protagonista de Canaã: “um dos erros

dos intérpretes da História está no preconceito aristocrático com que concebem a

ideia de raça. Ninguém, porém, até hoje, soube definir a raça e ainda menos como

se distinguem umas das outras...” (ARANHA, s/d, p. 24 – grifo nosso).

A definição supracitada se aplica à visão da personagem Lentz, oriunda de

uma família importante, filho de um General, o Barão von Lentz, e a quem Milkau

atribui qualidades vinculadas aos indivíduos pertencentes às classes privilegiadas na

Alemanha: “[...] Milkau sentia-se constrangido por ter encontrado naquelas paragens

estranhas e remotas um filho de general alemão, um ser privilegiado na sua pátria...”

(ARANHA, s/d, p.15).

Este constrangimento advém do fato de ele não querer ser reconhecido por

outro compatrício como alguém que também deixou a Alemanha quando esta não

tinha mais condições econômicas de manter sua população e não oferecia a

liberdade individual que Milkau procurava. Assim, ao avistar Lentz, é como se as

condições sociais e econômicas da Alemanha, implícitas à migração, o

perseguissem e se renovassem, gerando sentimentos de mal-estar, culpa e

vergonha, mas, também, certo constrangimento por ver um membro da aristocracia

alemã na condição de mais um imigrante em busca de um lote de terra na América,

ou seja, é constrangedor tanto para o indivíduo quanto para a pátria, da qual ele teve

31 Cabe aqui destacar a distinção terminológica a respeito do vocábulo racismo, visto que o conceito traz duas acepções muito diferentes: trata-se, por um lado, de um comportamento – em geral de ódio e de desprezo pelas pessoas que estão fora de seu grupo, possuem outra cor, outras crenças, costumes, etc., – e, por outro lado, ele diz respeito a uma ideologia, ou seja, uma doutrina referente às raças humanas (TODOROV, 1993). Esta distinção é relevante, pois, como elucida Todorov (1993), aquele que é racista não é necessariamente um teórico e não consegue explicar seu comportamento cientificamente, ao passo que os teóricos que estudam as raças não possuem necessariamente um comportamento racista. Até porque, tal comportamento é muito antigo e universal, como afirma o autor, ao passo que o racialismo enquanto doutrina é um conjunto de ideias que nasceu na Europa, em meados do século XVIII. 32 “[...] do lado da aristocracia fundiária vieram as ideias de uma superioridade intrínseca à classe dominante, e uma sensibilidade à posição social, traços marcantes que se prolongaram até nos anos avançados do século XX. Alimentadas por novas fontes, essas ideias depois puderam ser vulgarizadas [sic] e se tornaram atraentes para o povo alemão como um todo, nas doutrinas da superioridade racial” (MOORE apud ANDERSON, 2008, p. 2009).

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que imigrar, a despeito de sua distinção social e familiar. Assim, este exemplo serve

também para refletir sobre a visão “refratada” de Graça Aranha na cisão entre

opositores, que, vez ou outra, solidarizam-se e relativizam o esquematismo de que

se acusa a obra.

O nacionalismo e a primazia da língua alemã são marcantes no discurso de

Lentz. Quando ele afirma que a pátria é “a raça, uma civilização particular que nos

fala no sangue” (ARANHA, s/d, p. 107), ele está remetendo a uma memória social

que alimentou a compreensão equivocada de muitos alemães sobre suas origens.

Trata-se da doutrina do “arianismo”33 e, partindo dela, o povo brasileiro seria inferior,

degenerado pela miscigenação e, por isso, propenso à extinção.

Pensando-se na configuração ficcional de Lentz, além da defesa da

superioridade da língua e do sangue alemão, há outro elemento que ele aciona e

que reacende uma das discussões mais polêmicas sobre a origem da espécie

humana.

A aversão e o desprezo de Lentz pelo mulato, em quem via a fragilidade e a

inferioridade de uma raça a ser dizimada – “Um desdém pelo mulato, em que ele

exprimia o seu desprezo pela languidez, pela fatuidade e fragilidade deste”

(ARANHA, s/d, p. 47) – expressam o narcisismo acentuado e a necessidade de

autoafirmação e preservação dos valores do grupo ao qual pertence. Pois, para os

alemães, mesmo fora da Europa, o sentimento de pertencimento à comunidade de

origem se manteve sob a forte ligação do jus sanguinis, isto é, o direito de sangue,

que fez com que os teuto-brasileiros, a despeito de estarem/nascerem no Brasil,

continuassem se considerando alemães.

É como se Lentz construísse o outro a partir de si mesmo, pois ele depende

da negação da mestiçagem brasileira para afirmar sua identidade “original”.

Conforme Gilberto Freyre (2004), foi o temor do homem branco em relação ao negro

que o levou a tornar o negro um constante alvo de sátiras no mais empedernido

período patriarcal escravista, segundo atestam os preconceituosos ditados

33 Arianos se refere a um subgrupo de europeus que povoou a Península da Índia a.C. e a designação se estendeu a diversos povos originários da Ásia Central, chamados Indo-Europeus, que falavam o protoindo-europeu. Ou seja, em nenhum momento o termo “ariano” referiu-se especificamente a “sangue puro”, “raça branca” ou aos alemães. Entretanto, apesar da desconstrução científica do mito, este subjazia à cultura de muitos emigrantes alemães que vieram para o Brasil, e que, para evitar a “degradação” da raça, segundo informa Seyferth (2002), isolaram-se e mantiveram a homogeneidade étnica como principal característica. Esta teoria foi de transição entre a Bíblia e Darwin (1809-1882), posta em dúvida em fins do século XIX.

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populares como: “negro quando não suja na entrada suja na saída”; “negro velho

quando morre, tem catinga de xexéu, permita Nossa Senhora, que negro não vá ao

céu” (FREYRE, 2004, p. 786); “em pé é um vulto, assentado é um toco, deitado é um

porco”; “macaco de luva, sinal de chuva”; “o branco descasca, o mulato raspa e o

negro come com a casca”, dentre muitos outros. Embora hoje estes ditados sejam

abomináveis, eles foram recorrentes no Brasil até a metade do século XX e, apesar

de não se aplicarem diretamente aos imigrantes alemães, apontam para o reiterado

processo cultural branco de depreciação do negro que se assemelha ao discurso de

Lentz.

Do outro lado, em frente a Milkau, estava Felicíssimo, muito nervoso, a fazer sinais de impaciência. O cearense arregalava os olhos para os seus amigos do Rio Doce, sacudia a cabeça num gesto de contrafeita resignação, em caretas sucessivas transformava a sua móvel fisionomia. Lentz não pôde deixar de murmurar com certo desdém a Milkau, que seguia complacente o agrimensor. – Que macaco! (ARANHA, s/d, p. 62 – grifo nosso).

No comentário de Lentz ecoa uma segunda voz, que reflete o percurso

histórico do discurso racial europeu sobre o negro e sobre o mestiço, haja vista que

é sabido da tentativa, com vistas a justificar a escravidão, de se criar, ora teorias

delirantes sobre a maldição bíblica de Cam – o filho de Noé, que teria povoado a

África – ora de tentar comprovar cientificamente que a raça negra seria inferior à

branca. Na afirmação de Lentz “Até agora não vejo probabilidade de a raça negra

atingir a civilização dos brancos...” (ARANHA, s/d, p. 25) ecoa a dialogicidade interna

deste discurso, porque nele está presente a voz daquele que, para além de um

comportamento racista, tem conhecimento das teorias que as justificam, sobretudo

das francesas34.

O fato de Lentz considerar o brasileiro como “macaco” está, portanto,

intimamente ligado aos intentos científicos delirantes apregoados durante os séculos

XVIII e XIX na Europa. Naquele contexto, eram recorrentes as aproximações entre

grupos humanos e animais – principalmente entre negros e símios – para comprovar

as possibilidades de cruzamentos dos quais teriam se originado as pessoas

“inferiores”.

34 Merece destaque o fato de que Graça Aranha, um diplomata de carreira que serviu na França, teve contato com teorias e influências francesas, difundidas por nomes importantes como Arthur de Gobineau (1816-1882), Ernest Renan (1823-1892), Gustave Le Bom (1841-1931), etc.

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Os negros foram diagnosticados como espécie híbrida, não desenvolvida,

intermediária entre macacos e homens, e como tal degenerada, justamente pela

ausência de pureza racial. Tais teorias corroboraram para a exploração advinda do

novo modelo de escravidão durante a colonização da América. As atuais teorias

sobre o surgimento da humanidade que, ao que tudo indica, tiveram origem na

África, fazem com que, da perspectiva atual, as teorias eugênicas sejam ainda mais

absurdas e cruéis.

Nesse sentido, quando Lentz afirma que “o problema social para o progresso

de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida, como a dos

mulatos, por europeus” (ARANHA, s/d, p. 25), a personagem está acionando um

discurso profundamente negativo sobre o mulato, que se solidificou através da

sistematização das raças, enquanto verdade preestabelecida. Tal discurso se

disseminou, embora ele nunca tenha sido consensual.

Portanto, seja por meio de símbolos, da língua ou do sangue, o imigrante

Lentz é a projeção negativa que Graça Aranha faz dos alemães. Da perspectiva

desta personagem, a imigração alemã para o Brasil configura-se pela negação e

choque entre culturas, e não pelo contato e interação mútuas. Pois, para Lentz, o

brasileiro se torna um fetiche (a leitura de Bhabha (2005) sobre o estereótipo é

proposta em termos de fetichismo), isto é, um objeto de fixação que mascara a

diferença, como se ser negro/mulato/mestiço fosse a mesma coisa.

Neste discurso que designa o outro como “macaco” há um jogo de linguagem

baseado na metáfora e na metonímia – são os tropos do fetichismo empregados por

Bhabha (2005). A metáfora implica uma substituição, ou seja, quando Lentz diz

“macaco” para o cearense, a diversidade tão marcante do povo brasileiro sofre um

processo de homogeneização, no qual negro, mulato, índio e mestiço são arrolados

em um arquétipo negativo. A metonímia, por sua vez, é o registro da falta percebida,

pois o todo foi substituído pela parte, em outras palavras, a hibridez do povo

brasileiro é canalizada sob o signo de “macaco”. O que Lentz está negando é,

certamente, aquilo que dá acesso ao reconhecimento da diferença e esta fixação

sobre o negro é resultante da fantasia primária do sujeito que não quer ter a sua

“originalidade” ameaçada pelas “diferenças de raça, cor e cultura” (BHABHA, 2005,

p. 117).

Desta perspectiva,

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o ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem que se torna o bode expiatório de práticas discriminatórias. É um texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes “oficiais” e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista... (BHABHA, 2005, p. 125).

Por outro lado, a construção ficcional de Lentz é positiva, pois, se o leitor

atentar para o desfecho de Canaã, perceberá que, longe de seu grupo e da sua

terra, na solidão da selva do Espírito Santo, Lentz, independentemente do seu

racionalismo e preconceito, também revela a fragilidade resultante da sua condição

de imigrante. Ao acompanhar Milkau em uma visita a Maria Perutz na prisão, Lentz

se depara com a imagem da miséria, que não é só econômica, mas, também,

existencial e, portanto, diz respeito ao mal-estar e à angústia que atinge todas as

pessoas. A despeito da crença na força e na superioridade dos alemães defendida

por ele até então, a personagem se rende às reais circunstâncias de abandono,

sofrimento e miséria, encarnados em Maria Perutz.

Durante o tempo que aí passaram, Lentz ficou silencioso. Pela primeira vez se via num cárcere, misturando-se com criminosos e réprobos. A sua velha alma aristocrática estremecia de repugnância, e o espírito de sonhador soberano e forte, que não se lhe tinha extinguido de vez, estranhava o contato da miséria, revoltava-se por se libertar da moleza, da piedade, ardendo em remontar às alturas do silêncio e do império. Mas era tarde: a garra da compaixão o prendia ao mundo, que ele também assim fecundava com o seu quinhão de sofrimento. Na rua, quando saíram da cadeia, Milkau ouviu, como um eco do seu próprio coração, estes murmúrios: – Pobre mulher! Como é triste a vida! (ARANHA, s/d, p. 136 – grifo nosso).

É a partir do contato com a pobre Maria que ocorre em Lentz um

deslocamento sobre si mesmo, pois neste encontro entre um alemão de origem

aristocrática e uma filha de imigrantes miseráveis, confrontam-se duas visões e

condições sociais opostas, que remetem a um mesmo país de origem. Tal confronto

abala Lentz, pois Maria reflete uma imagem oposta à que ele apregoava e da qual

estava convicto.

A compaixão de Lentz por Maria Perutz é um fator positivo que desvela seu

lado humano, até então escondido sob sua impermeável capa de preconceitos. Tal

processo é contínuo, pois, as pessoas se reinventam, se redescobrem e percebem

novos “eus” a partir do contato com os outros. Assim, a mudança de comportamento

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de Lentz indica que o homem está inserido num espaço contraditório e ambivalente,

no qual a negociação entre culturas possibilita a criação de um entre--lugar

(BHABHA, 2005).

Através de Lentz, Graça Aranha se atém à questão do isolamento e do

preconceito das colônias germânicas no Brasil em relação à população brasileira,

mestiça desde a sua formação. Por outro lado, ao funcionar como instrumento de

crítica a tal realidade, Lentz não deixa de ser o estereótipo do sujeito alemão que

nunca se mistura, dada sua “superioridade” racial e cultural.

Afora isso, cabe colocar que este imigrante – a despeito do parecer de

Schwarz (1981) sobre a “artificialidade” das personagens de Canaã – não deve ser

considerado como desprovido de vida própria, pois personagens ficcionais não

surgem “do nada”, mas advêm de contextos espaciais, históricos e sociais.

2.1 O IMIGRANTE ALEMÃO COMO POSSIBILIDADE DE BRANQUEAMENTO

A ideia da inferioridade inata dos negros e da superioridade dos brancos foi

aceita pelos brasileiros como um determinismo histórico muito conveniente, pois o

Brasil foi um dos países da América que mais recebeu escravos e foi o último a

abolir a escravidão, portanto, sua economia até o final do século XIX dependia da

mão de obra escrava.

A partir do último quartel do século XIX, este modelo produtivo se tornou

escandaloso, pois, historicamente, a escravidão não se sustentaria por muito mais

tempo e alguns Estados, à revelia do poder central do Império, já a haviam abolido.

Os problemas sociais e humanos implícitos à escravidão, que formou uma

sociedade sádica e violenta (FREYRE, 1980), associado ao discurso eugênico, fica

evidente em Canaã, como exemplifica a fala do agrimensor Felicíssimo ao distinguir

o povo alemão do brasileiro. Segundo ele, os alemães tinham faro para os negócios

e grande dedicação ao trabalho:

estes alemães tem olho... Se fossem brasileiros, estava tudo arrebentado. E o agrimensor continuava, nesse tom, a fazer o elogio das virtudes germânicas para os negócios, a economia, a facilidade de assimilação, a energia no trabalho, dando, como contraste a elas, as qualidades inferiores dos brasileiros, que ele se comprazia em proclamar, no gáudio de se mostrar, aos companheiros de passeio... (ARANHA, s/d, p. 16-17).

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Isto revela que a ausência de um posicionamento intelectual crítico e

independente no Brasil era o indício de sua condição de ex-colônia, pois, apesar da

imagem negativa lançada sobre a América Latina como um todo, a intelectualidade

europeia era – e ainda é – uma referência para o Brasil e funcionava como um

centro de onde partiam mercadorias e, sobretudo, ideias (RAMOS; MAIO, 2010).

A relação de portugueses com o Brasil foi de ocupação, exploração e

implantação da cultura europeia, escravizando não só fisicamente, mas cultural e

intelectualmente índios e, posteriormente, negros, renegando-os à marginalização e

à invisibilidade. Essa submissão, cabe ressaltar, permitiu a muitos portugueses

enriquecer, pois o que eles vinham buscar na terra de Vera Cruz, por eles

“descoberta”, eram riquezas obtidas com o trabalho escravo de índios e,

posteriormente, de negros: “o que o português vinha buscar era, sem dúvida, a

riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A

mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias

e os metais preciosos ... (HOLANDA, 1995, p. 49).

Assim, se por um lado a abolição da escravatura representou um avanço para

o país, por outro, desconsiderou a inserção do negro na sociedade produtiva

moderna e ele foi relegado por longo tempo à marginalização. Não havia espaço

para ele, pois era negro, não tinha dinheiro, não tinha casa, nem possibilidade de

emprego, visto que, após a abolição, muitos latifundiários optaram pelo trabalho do

imigrante.

O tempo e o contexto de Canaã estão em consonância com este quadro, pois

remetem ao final do século XIX e evidenciam as marcas da abolição recente e seu

complexo processo de substituição pela mão de obra livre. Tais evidências são

apresentadas ao leitor através da personagem Milkau que, ao se dirigir de Queimado

ao Porto do Cachoeiro, descreve o cenário de terras abandonadas que avista. Um

antigo escravo diz para Milkau:

- Ah, tudo isso, meu sinhô moço, se acabou... Cadê fazenda? Defunto meu sinhô morreu, filho dele foi vivendo até que Governo tirou os escravos. Tudo debandou. Patrão se mudou com a família para Vitória, onde tem emprego; meus parceiros furaram esse mato grande e cada um levantou casa aqui e acolá, onde bem quiseram. Eu com minha gente vim pra cá, pra essas terras de seu coronel. Tempo hoje anda triste. Governo acabou com as fazendas, e nos pôs todos no olho do mundo, a caçar de comer, a comprar de vestir, a

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trabalhar como boi para viver. Ah! Tempo bom de fazenda! A gente trabalhava junto, quem apanhava café apanhava, quem debulhava milho debulhava, tudo de parceria, bandão de gente, mulatas, cafuzas... que importava feitor? Nunca ninguém morreu de pancada. Comida sempre havia, e quando era sábado, véspera de domingo, ah! meu sinhô, tambor velho roncava até de madrugada (ARANHA, s/d, p. 11).

O discurso de Milkau é a expressão mais otimista sobre o futuro do Brasil, a

ser formado com as novas gerações, que teriam origem na fusão entre as diferentes

raças. Milkau assume posicionamento ideológico contrário ao de Lentz em relação à

definição de raça. Contudo, o ideal de miscigenação de Milkau, longe de ocupar um

espaço intersticial, no qual se vislumbre um elemento intermediário, síntese das

qualidades de brancos, negros, índios e mestiços, evidencia um discurso de

assimilação, cuja ação seletiva ascenderia a uma depuração dos mestiços pelo ideal

do branqueamento. Em outras palavras, se, por um lado, ele não compactua com a

definição preconcebida sobre raça postulada veementemente por Lentz, por outro,

ele se perde em sua fala ao classificar os povos enquanto “atrasados” versus

“adiantados”, de modo que aqueles nada teriam a acrescentar a estes, que, como

tábulas rasas, absorveriam a cultura, a civilização e os progressos impingidos pelos

brancos “puros”.

Se não tivesse havido a fatal mistura de povos mais adiantados com populações atrasadas, a civilização não teria caminhado no mundo. E no Brasil, fique certo, a cultura se fará regularmente sobre esse mesmo fundo de população mestiça, porque já houve o toque divino da fusão criadora. Nada mais pode embaraçar o seu voo, nem a cor da pele, nem a aspereza dos cabelos. E no futuro remoto, a época dos mulatos passará, para voltar a idade dos novos brancos, vindos da recente invasão, aceitando com o reconhecimento o patrimônio dos seus predecessores mestiços, que terão edificado alguma coisa, porque nada passa inutilmente na terra ... (ARANHA, s/d p. 130).

Em todo o período da República Velha que se seguiu à abolição e à

proclamação da república não houve um projeto político e cultural sistemático que se

empenhasse, de fato, a resolver os problemas sociais advindos tanto da abolição da

escravatura quanto da exclusão de parte do trabalhador brasileiro branco e mestiço

que, também, vivia – e ainda vive – à margem do processo de integração

econômica.

Neste aspecto, Milkau se torna profundamente contraditório, pois, ora ele

estende seu discurso humanitário sobre todas as raças, ora identifica e reproduz

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modelarmente o papel desigual dos povos, concebido pelo discurso elitista de

exploração e interesses. Ao tentar se desvencilhar do ideário europeu e alemão de

superioridade, a personagem apresenta traços que a desmascaram, uma vez que

fica claro que Milkau não se opõe à extinção de negros, índios e mestiços que se

daria através do processo de miscigenação, no qual a raça branca – por ser “pura” –

suplantaria a negra, portanto, “impura”. “[...] por ora nós somos apenas um

dissolvente da raça desta terra. Nós penetramos na argamassa da Nação e a vamos

amolecendo; nós nos misturamos a este povo, matamos as suas tradições e

espalhamos a confusão ...” (ARANHA, s/d, p. 22).

Para assegurar a evolução do país rumo ao progresso, era preciso se

desvencilhar daquele velho modelo colonial e escravocrata e a solução adviera da

imigração branca. Aí está o sentido racista da imigração, segundo o qual se sanaria

a pobreza e a imoralidade do país, diminuindo o elemento negro, “[...] criminoso em

potencial, inimigo da civilização e do progresso, que os discursos imigrantistas

repudiavam abertamente, em uma época que as teorias raciais ainda estavam longe

de cair em desuso” (AZEVEDO, 2004, p. 134).

Tais inquietações são evidentes no diálogo entre Milkau e o juiz Paulo Maciel

(p. 126-130), quando eles discutem sobre o futuro do Brasil, dada sua

heterogeneidade racial e sua falta de patriotismo. Eles se atêm ao caráter infantil do

povo brasileiro, à arbitrariedade dos governantes e à disparidade entre as classes

sociais. Para Maciel,

isso, que chamamos de nação, não é nada, repito; aqui já houve talvez uma aparência de liberdade e de justiça, mas hoje está tudo acabado. É um cadáver que se decompõe este pobre Brasil. Os urubus aí vêm ... [...] – De toda a parte, da Europa, dos Estados Unidos ... É a conquista (ARANHA, s/d, p. 127).

Os brasileiros seriam impotentes em face de tal processo, dada a realidade

de um país ainda muito jovem, heterogêneo, racialmente “indefinido”, resultante de

uma formação colonial, escravocrata e, portanto, atrasada e miserável. Nisso se

assentaria a diferença entre as terras cultivadas por brasileiros e por imigrantes

europeus, porque estes estavam “civilizadamente” e “culturalmente” mais aptos a se

engajarem no desenvolvimento do Brasil. Ou seja, recai sobre a população a

responsabilidade pelo insucesso do país:

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é admirável a ordem e o asseio desta colônia [de alemães]. Nada falta aqui, tudo prospera, tudo nos encanta... Que diferença em viajar nas terras cultivadas por brasileiros... só desleixo, abandono, e com a relaxação a tristeza e a miséria. E ainda se fala contra a imigração! [...] para mim era indiferente que o País fosse entregue aos estrangeiros que soubessem apreciá-lo mais do que nós... (ARANHA, s/d, p. 83-84).

Sobre a questão nacional, há os que defendem o país da “invasão” de

estrangeiros, como o escrivão mulato – “os senhores podem querer entregar a Pátria

ao estrangeiro, podem vendê-la, mas enquanto houver um mulato que ame este

Brasil, que é seu, as coisas não vão tão simples, meus doutores” (ARANHA, s/d, p.

84) – em cujo discurso ressoa a voz de Graça Aranha, a lamentar a tacanha

organização do país, e há os que estão a favor da invasão:

diga-me você: onde está a nossa independência financeira? Qual é a verdadeira moeda que nos domina? Onde o nosso ouro? Para que serve o nosso miserável papel senão para comprar a libra inglesa? Onde está a nossa fortuna pública? O pouco que temos, hipotecado. As rendas das alfândegas nas mãos dos ingleses; vapores não temos, estradas de ferro também não, tudo do estrangeiro. É ou não o regímen colonial com o nome disfarçado de nação livre? Escute. Você não me acredita; eu desejaria poder salvar o nosso patrimônio moral, intelectual, a nossa língua, enfim, mas a continuar esta miséria, esta torpeza a que chegamos, é melhor que viesse de uma vez para cá um caixeiro de Rothschild para governar as fortunas, e um coronel alemão para endireitar isto (ARANHA, s/d, p. 85).

Trata-se de uma situação cultural na qual a dependência intelectual de países

periféricos em relação à Europa e, atualmente, aos Estados Unidos da América,

abre espaço à imposição de ideias estrangeiras, que intervêm ideologicamente por

intermédio de teorias que operam a favor dos interesses de certa elite privilegiada

social e economicamente. As vozes do escrivão mulato e do juiz Maciel estabelecem

ficcionalmente um confronto de posicionamentos sobre o país. Paradoxalmente, a

mesma sociedade que abandonou os negros à própria sorte, sem prepará-los para

se integrarem à nova realidade econômica e social advinda da abolição, está sendo

defendida por eles na voz do escrivão. Isso mostra que a negação do negro e do

mulato não vem, apenas, do outro, do estrangeiro e imigrante, mas, também, da

sociedade brasileira, cuja mentalidade colonial e senhorial deu continuidade a

práticas racistas de seleção. Se os negros não eram considerados aptos a

trabalharem pelo desenvolvimento do Brasil, isso se deveu ao modelo do regime

escravocrata não ter desaparecido por completo após a Abolição, persistindo na

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mentalidade e no comportamento da sociedade. Ainda, se os negros não estavam

preparados para competir com os imigrantes europeus, o discurso de Maciel revela

que tampouco o governo e a elite intelectual estavam em condições de perceber o

problema do país, posto que, quem se posiciona a favor dos interesses brasileiros é

o escrivão mulato, que representa aquela pequena parcela negra/mulata da

população que conseguiu conquistar seu espaço na sociedade.

Em sintonia com a mentalidade cientificista do século XIX, parte da elite

brasileira acreditava que o crescimento econômico da Europa se devia a fatores

hereditários e climáticos, e, partindo desta premissa, o Brasil jamais alcançaria a

condição de uma civilização evoluída, pois grande parte dela era negra. Não é à toa

que Arthur de Gobineau – representante da escola histórica de teoria racial – ao

conhecer o Brasil, desprezou-o por conta de sua aparência “preta” e excessivamente

“feia”, fadada ao desaparecimento devido a sua degenerescência genética: “Todo

mundo é feio aqui, mas incrivelmente feio: como macacos” (GOUBINEAU apud

SKIDMORE, 1976, p. 47)35.

Voltando ao perfil de Milkau, este representa o caráter pré-modernista de

Canaã, ao reconhecer a participação dos “selvagens” no processo civilizatório

(PAES, 1991). Entretanto, esta “participação” é considerada sob a perspectiva do

tipo genético a ser superado e substituído pelos brancos europeus. Disso

depreende-se o posicionamento engajado do escritor em trazer à pauta a discussão

sobre o futuro do Brasil, se ele deveria ser entregue aos estrangeiros e ao processo

35Ao longo do século XIX emergiram três escolas principais de teoria racista. A primeira foi a

etnológico-biológica, sistematizada nas décadas de 1840 e 1850, nos Estados Unidos, que pretendeu

sustentar a criação das raças humanas através da mutação de diferentes espécies. Esta escola

acreditava que havia diferentes espécies humanas e que a diferença entre elas estava diretamente

relacionada aos traços físicos, de modo que os cientistas passaram a rotular, a partir de tabelas e

medidas cranianas e do esqueleto, a raça branca como superior em qualidades mentais e sociais.

Louis Agassiz, um dos principais representantes desta escola, contribuiu para disseminar estas ideias

no Brasil. Ainda nos Estados Unidos, segundo Skidmore (1976), surgiu a escola histórica, cujos

integrantes e simpatizantes divulgavam que a raça era o fator determinante da história humana,

sendo a raça branca superior a todas as outras. A terceira escola de pensamento racista, citada pelo

autor, é o darwinismo social, que despontou com Herbert Spencer (1820 – 1903), o qual defendia que

a evolução da espécie humana prosseguiria sob o impulso da raça mais forte, e com Darwin (1809-

1882), que partilhava da ideia de que a seleção natural obrigaria algumas raças à extinção, pois o

contato entre elas faria com que a mais forte absorvesse as demais inferiores, até exterminá-las. Será

apenas em finais do século XX e início do século XXI que as ciências genéticas chegaram à

conclusão de que as teorias raciais são apropriadas, apenas, para a biologia de espécies animais,

mas inválidas no caso dos seres humanos (MAIO; SANTOS, 2010).

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de branqueamento, ou se conseguiria se desvencilhar das forças estrangeiras e

buscar sua própria independência.

Esta posição dual reflete as incertezas de um grupo de intelectuais sobre o

futuro do Brasil, num contexto em que a maioria absoluta da população era

analfabeta e vivia à beira da miséria, envolta por uma atmosfera de instabilidade,

que

[...] envolveu todo o período de decadência do Império e consolidação da República. Uma sensação de fluidez e falta de pontos fixos de referência se difunde e palpita incessantemente na profundidade dos textos (SEVCENKO, 2003, p. 106).

Graça Aranha fazia parte deste grupo de intelectuais, pois participava da

Escola de Recife e, inserido em um contexto de modernização da cultura brasileira,

traz em Canaã a discussão sobre a necessidade – ou não – de o país desvencilhar-

-se do passado e da imperativa influência europeia.

A “Escola de Recife”, ou “Geração de 1871” surgiu na Faculdade de Direito de

Recife – atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – e se

constituiu em um movimento intelectual, filosófico, poético, sociológico e folclórico

liderado por Tobias Barreto entre 1860 e 1880. Além de Graça Aranha, outros

intelectuais faziam parte do grupo, como Silvio Romero, Araripe Júnior, Capistrano

de Abreu, Joaquim Nabuco, Castro Alves, e outros.

A faculdade de direito não atuava, apenas, como centro de formação de

bacharéis, mas servia de espaço para encontros e discussões polêmicas sobre

variados campos do saber que diziam respeito ao futuro do Brasil. O grupo de

liberais, abolicionistas e republicanos defendia o estudo e a investigação sobre o

caráter nacional – a primeira obra de fôlego dedicada à história da literatura

brasileira foi publicada em 1888, por Silvio Romero e fazia parte deste grande

projeto –, o cruzamento das raças, o monismo, o evolucionismo, enfim, diversas

correntes do pensamento europeu. Tobias Barreto36 foi também um dos maiores

divulgadores da língua, cultura e das teorias alemãs no Brasil. No último quartel do

36 Sobre a vida e obras de Tobias Barreto, ver Mostra bibliográfica da exposição Tobias Barreto: as marcas de um homem: 170 anos de nascimento, 1839-1889. Disponível em: <http://www.ufpe.br/ccj/images/folder/catalogo_tobias1.pdf>. Acesso em 26 jul. 2013. Sobre Silvio Romero, ver o artigo de Ana Helena Krause, O gosto pelas coisas intelectuais tedescas: o pensamento alemão na História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/contingentia/article/view/6505/3873>. Acesso em: 26 jul. 2013.

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século XIX, auge da influência de Auguste Comte, este grupo de intelectuais

brasileiros buscou ampliar a influência do germanismo como forma de fortalecer, via

tal assimilação cultural, o caráter nacional brasileiro.

Naquele contexto de tomada de consciência sobre a realidade nacional, o real

dilema de Graça Aranha em Canaã foi sintetizado por Skidmore (1976, p. 128) da

seguinte forma: “poderia um país tropical luxuriamente dotado pela natureza, tornar-

-se um centro de civilização pela fusão de correntes imigratórias formadas de

europeus e mestiços brasileiros?”. Pensando-se no caráter distópico do desfecho do

romance, em que a fuga de Milkau e Maria Perutz para a terra prometida de Canaã

não se concretiza, fica evidente que, como bem apontou Celeste Ribeiro de Souza

(2004), a tarefa de transformar o Brasil numa Canaã só seria alcançada através da

fusão entre brasileiros e imigrantes brancos e do consequente branqueamento da

população.

Da ferrenha tentativa de Graça Aranha em compreender e achar a solução

para os problemas da sociedade brasileira resultou o caráter controverso, teórico e

enfadonho de Canaã, conforme apontou Schwarz (1981). Não obstante, concorda-

se que há um fundamento que percorre toda a narrativa e estabelece uma relação

muito próxima entre a obra literária e o contexto social ao qual ela se reporta, porque

a linguagem do romance é, indiscutivelmente, social e ideologicamente impregnada

(BAKHTIN, 1988).

Por fim, a conclusão dessa emulação literária do debate proposto por Graça

Aranha pode ser, inclusive, a de que as abordagens empregadas é que são o

problema, e daí há a inadequação das conclusões.

2.2 O CASO DE MARIA PERUTZ E O ESFACELAMENTO DA UTOPIA RACIAL

O que move um indivíduo a emigrar? De todos os fatores, as motivações

econômicas se sobressaem, pois implicam a necessidade de sobrevivência e a

busca por melhores condições de vida.

Contudo, há outros fatores que impelem as pessoas a deixarem a sua terra,

dentre os quais se destaca o que em alemão chama-se Fernweh, uma espécie de

saudade projetada no futuro, um desejo de conhecer o diferente, aquilo que não se

tem em casa, o utópico, o edênico, ressalta Celeste Ribeiro de Souza (Literatura

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Brasileira de Expressão Alemã37. Aos olhos dos imigrantes alemães o Brasil

configurava-se como este refúgio, “seja para ficar rico, seja para fugir da justiça

europeia ou da discriminação social, seja para fugir das guerras”, afirma a autora.

Eles trouxeram para o Brasil a certeza de encontrar um paraíso tropical, fantasia

esta construída no imaginário europeu através das narrativas de viagem, da

literatura e dos relatos de cronistas.

Em Retratos do Brasil: hetero-imagens literárias alemãs (1996), Celeste

Ribeiro de Sousa explica que a primeira imagem do Novo Mundo foi comparada à

tradição judaico-cristã do jardim do Éden e a reprodução de tais mitos tornou-se

conhecida pelo nome de mitos de conquista, ou mitos da conquista da América. Ao

tratar do paraíso, a autora reporta-se mais especificamente ao registro bíblico de

Pentateuco, no livro “Gênesis”, como o primeiro lugar habitado na terra pelo primeiro

homem. A autora ressalta que há, ainda, outras passagens bíblicas nas quais são

feitas referências à terra de Canaã, lugar que ficou aberto às perspectivas de retorno

do homem.

Na representação e interpretação do mito do paraíso, Celeste Ribeiro de

Sousa – com base no estudo de Reinhold Grimm – cita três tendências:

[...] uma tendência estabelece que o paraíso se localiza em um espaço celestial, além da terra – é uma realidade metafísica; uma outra tendência interpreta a descrição do paraíso como alegoria de um estado de alma, portanto, o paraíso seria o interior do homem; e uma terceira mostra a descrição do paraíso de um espaço físico existente na terra (SOUSA, 1996, p. 30).

As imagens edênicas sobre o Brasil se fazem presentes nos documentos

sobre a nova terra, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha, até as crônicas de Pero

Magalhães Gândavo. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (1977),

afirma que diversos mitos que estavam presentes na tradição literária e no

imaginário do Velho Mundo vieram a se tornar realidade, pois se constituíram nas

ferramentas usadas pelos conquistadores para interpretar e denominar as terras

descobertas, tão diferentes da realidade europeia:

presos como se achavam aqueles homens, em sua generalidade, a concepções nitidamente medievais, pode supor-se que, em face das

37 Disponível em: <http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c31.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2013.

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terras recém-descobertas, cuidassem reconhecer, com os próprios olhos, o que em sua memória se estampara das paisagens de sonhos descritas em tantos livros e que, pela constante reiteração dos mesmos pormenores, já deviam pertencer a uma fantasia coletiva (HOLANDA, 1977, p. 170).

O autor chega à conclusão de que a visão medieval do paraíso, que os

conquistadores repetidas vezes demonstraram conhecer, alimentava-se de duas

fontes básicas: o texto bíblico do Gênese e a tradição literária greco-latina, composta

de diversos textos, como as narrativas homéricas. Este mito do Novo Mundo como

terra de abundância foi representado por Gottfried em Historia Antipodium, em 1631

(Anexo XII).

Esta fantasia edênica em relação ao Novo Mundo foi atualizada no segundo

quartel do século XIX – quando teve início a imigração alemã para o Brasil – e é

exemplificada por Celeste Ribeiro de Sousa38 por meio de Jedem sein Paradies – A

cada um seu paraíso – de Otto Grellert, texto que exemplifica como falantes de

alemão vieram para o Brasil atraídos por ofertas fantasiosas:

Deutscher! Warum arbeitest du noch als Knecht für fremde Herren? Warum hungerst du noch auf einer ungenügenden Landfläche? Mache dich auf nach Brasilien. Das reichste Land der Welt mit seinen unermesslichen Urwäldern wartet auf dich. Da kannst du auch Herr werden auf eigenem Grund und Boden. Das allerbeste Land Brasiliens wird gerade jetzt aufgeteilt und ausverkauft. Der Platz ist schon abgesteckt, wo die modernste Stadt gebaut werden soll mit Kirchen, Schulen, Krankenhäusern, Banken und Geschäften. Der Plan ist schon ganz fertig. Erstklassige, breite Verkehrsstraßen werden demnächst gebaut, und auch mit dem Bau der Eisenbahn ist bald zu rechnen. Fast auf jeder Kolonie steht soviel Nutzholz, daß allein damit der Kaufpreis bald gedeckt werden kann. Arbeiter! Kleinbauer! Eilt! Sichert euch und euren Kindern die Zukunft! Sichert euch den besten Boden Brasiliens! SERRA-POST KALENDER, 1954, p. 173. Disponível em: <http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c31.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2013)39.

38 Literatura Brasileira de Expressão Alemã. Disponível em: <http://martiusstaden.org.br/files/conteudos/0000001000500/69/a64dca980c9180086f181bc840213c31.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2013. 39 Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa:

Alemão! Por que trabalhas ainda como servo para senhores estranhos? Por que sofres ainda de

fome num pedaço de terra acanhado? Vai para o Brasil! O país mais rico do mundo com suas

florestas virgens incomensuráveis espera por ti. Lá podes, também tu, tornar-te um senhor, em solo e

terra próprios. As melhores terras do Brasil estão sendo divididas e vendidas em nossos dias. Já está

demarcado o lugar onde deve ser construída a cidade mais moderna, com igrejas, escolas, hospitais,

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Portanto, a ideia de que a América seria um paraíso foi disseminada na

Europa ao longo do tempo e, segundo Holanda (1977), seduziu os imigrantes

enquanto lugar a ser conquistado através do desenvolvimento da civilização, embora

também o fosse o contrário, ou seja, um mundo perigoso, cheio de monstros e

canibais.

Desde a descoberta da América, paralelamente à encantatória ideia de

paraíso, havia também o temor em relação à existência de monstros, antropófagos e

uma série de situações assustadoras. Conforme Bellei (2000, p. 177), “a

antropofagia é essencialmente aquela prática real ou imaginária que marca a

alteridade do bárbaro primitivo que habita o outro lado da linha da fronteira”.

O conceito de “mundo novo” apareceu pela primeira vez em 1503 como título

do caderno de Amerigo Vespucci, no qual ele relatou suas observações durante uma

expedição portuguesa de 1501/1502 à Costa brasileira (KÖNIG, s/d). Como reação

ao estranhamento provocado pelo continente, os descobridores escreviam ou

representavam os monstros, homens selvagens, amazonas e homens sem cabeça

que teriam sido vistos neste “novo mundo”.

Era este cenário que os europeus queriam ver, e não o que realmente viam.

Um repertório muito interessante de monstros e seres estranhos que, supostamente,

faziam parte do Novo Mundo, está presente no Liber Chronicarum (Anexo XIII), o

livro de crônicas sobre a história universal, publicado em 1493 pelo médico,

humanista Hartmann Schedel (1440-1514). O livro, que foi publicado em latim e em

alemão, é também chamado de Nuremberg Chronik – Crônica de Nüremberg – e Die

Schedelsche Weltchronik – A crônica do mundo de Schedel40:

Em grande estilo eles [europeus] coletavam e ilustravam os novos e velhos relatos sobre a América e com isso concluíam a primeira parte da descoberta jornalística do Novo Mundo. As representações ambivalentes do Novo Mundo, por um lado como câmara de

bancos e lojas. O planejamento já está concluído. Estradas largas e excelentes deverão em breve ser

construídas e também se pode contar para logo com a construção da estrada de ferro. Em quase

todas as colônias há tanta madeira disponível, que ela por si só poderá cobrir, em pouco tempo, o

preço da compra. Trabalhador! Pequeno agricultor! Apressai-vos! Assegurai para vós e para vossos

filhos o futuro! Assegurai para vós o melhor solo do Brasil! 40 Decisivo para a disseminação de tais informações, em parte reais e em parte inventadas, foram dois fatores, segundo Siebenmann (1992), a gráfica de Theodor de Bry (Amerika, 1590-1630) e a de Levinus Hulsius (Schiffahrten, 1598-1650).

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horrores, por outro lado, como um paraíso distante para os europeus, já foram cedo solidificados (SIEBENMANN, 1992, p. 185)41.

Enquanto habitantes naturais do grande continente descoberto, os índios

foram representados como monstros devoradores de pessoas, como exemplifica a

publicação de 1527, de Lorenz Fries, intitulada Uslegung der Mercarthen (Anexo

XIV). A famosa xilografia mostra os canibais no Novo Mundo com cabeça de

cachorro – cinocéfalos – o que remete à ideia de antropofagia do período medieval.

No centro da foto um destes seres está decepando aparentemente uma perna,

enquanto outras partes de corpo humano estão dependuradas na parte superior,

dando a ideia de um açougue.

O título do romance de Graça Aranha, Canaã, faz referência a esta ideia

imemorial do Éden, de um paraíso bíblico abundante e perdido, mas também

selvagem e perigoso. Entretanto, tal referência leva Canaã ao paradoxo de que, se

no Brasil estava a terra prometida, isto quer dizer que a Alemanha não tinha

condições de oferecer a realização econômica e individual ao povo, o que

prontamente anula a ideia de autossuficiência alemã defendida por Lentz. Aquele

país se valeu da imigração como válvula de escape para contornar a situação

econômica de emergência que impedia a sobrevivência da população, mas a

questão econômica como causa da vinda dos imigrantes para o Brasil fica subliminar

em Canaã, de modo que a narrativa é conduzida por Lentz e Milkau: aquele, de

família importante, filho do general Barão von Lentz, e este, filho de um professor

universitário, portanto, de família instruída, de Heidelberg.

A decisão de quem abandona o seu país é sempre corajosa e exige o esforço

da aceitação de uma nova cultura, de uma nova língua e de novos costumes. O

desafio se torna ainda maior ao refletir-se sobre o desespero de quem deixa o seu

país, não por vontade própria, mas tangido por uma força maior: a necessidade de

sobreviver. Entre a utopia de Lentz sobre a vitória do arianismo e o devaneio de

Milkau sobre a integração harmoniosa de todos os povos, Maria Perutz é a

personagem que chama a atenção para as reais condições de muitos daqueles que

emigram, pois ela difere profundamente dos demais colonos abastados do Porto do

Cachoeiro.

41 Tradução: “In groβem Stil sammeln und illustrieren sie altere und neuere Berichte über Amerika und schlieβen damit den ersten Abschnitt der publizistischen Entdeckung der Neuen Welt ab. Die ambivalenten Vorstellungen der Neuen Welt einerseits als Gruselkabinett, anderseits als fernes Paradies für Europäer hatten sich somit schon früh verfestigt“.

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Tratada com descaso pelos seus patrícios, Maria Perutz vivia em condições

subumanas, dada sua extrema pobreza. Nascida já no Brasil, ela trabalhava na casa

da família Kraus, não conhecera o pai, que morrera durante a viagem e, após a

morte da mãe, permanecera com a família de Augusto Kraus. Ela teve um

relacionamento com Moritz Kraus, o filho dos seus patrões, engravidando do

mesmo.

Entretanto, a despeito de Maria Perutz ter a mesma origem que seus patrões,

sua condição econômica miserável se sobrepõe à racial. Ou seja, cor e raça não

estabelecem vínculos suficientemente estreitos ao ponto de suplantar a exclusão

econômica, social e de gênero, ao contrário, no contexto do romance, a despeito de

sua origem, Maria é o elemento dissonante que desvela para seu grupo a falácia da

superioridade racial ariana. A gravidez de Maria é um acontecimento decisivo na sua

trajetória, uma vez que um filho arruinaria a cepa dos Kraus, cujo objetivo era casar

Moritz com uma moça socialmente bem situada:

Os velhos não tinham mais ilusão sobre o estado da rapariga, e vendo-a mover-se pela casa, num passo trôpego, com ar transfigurado que lhe punha a amargurada maternidade, sentiam um ódio surdo contra ela, erguida ali como um estorvo ao desafogo da ambição deles. Viam desfeito o casamento do filho com a herdeira dos Schenker... (ARANHA, s/d, p. 93).

Contrapondo-se aos discursos sobre superioridade racial, são as condições

econômicas que definem a trajetória da personagem. Ela é a sombra de um passado

que deve ser esquecido e apagado da memória dos imigrantes que ascenderam

economicamente. O fantasma da pobreza ainda assombrava alguns deles, e a

presença de Maria Perutz atualizava as contingências adversas vividas na Alemanha

e superadas na nova terra. A miséria de Maria Perutz afronta este processo de

idealização, por isso, ela, que comunga os valores do seu grupo, também tem poder

de revelar sua condição:

[...] era quase sem pudor que pedia trabalho de casa em casa. Ninguém a queria; repeliam-na, escorraçavam-na, num instinto de apertada defesa. Ali, na tranquilidade do povoado, na conchegada e bonançosa vida aldeã, não era ela o estranho fantasma da miséria? (ARANHA, s/d, p. 99).

A citação acima demonstra claramente que Maria está inserida em uma lógica

de ascensão econômica baseada na lei do mais forte, que privilegia determinados

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grupos, explora e exclui outros. A tragicidade da personagem remete ao fracasso da

experiência humana, que não se vincula, apenas, a princípios raciais, mas, também,

às estruturas socioeconômicas vigentes.

Após ser expulsa da casa da família Kraus – visto que sua gravidez

comprometeria o futuro dos patrões – e passar por diversos infortúnios, Maria Perutz

dá à luz em uma mata, seu filho é devorado por porcos selvagens e ela é acusada

de ter matado a criança.

Em torno fungavam os porcos, remexendo as folhas secas do cajueiro, chegando mesmo alguns mais atrevidos, mais vorazes, a lamber afoitamente o chão... Maria, horrorizada, queria afugentá-los, mas as dores a retomavam, imperiosas; nem mesmo tinha forças para um grito agudo, e só podia gemer estrebuchando numa mistura de sofrimento e de gozo, que a estimulava estranhamente... E os porcos insistiam sinistros, ameaçadores... Subitamente, ela caiu extenuada, largando a árvore... Um vagido de criança misturou-se aos roncos dos animais... A mulher fez um cansado gesto para apanhar o filho, mas, exangue, débil, o braço morreu-lhe sobre o corpo. Uma vertigem turbou-lhe a visão, enfraqueceu-lhe os ouvidos [...]. E os animais sedentos enchafurdavam-se, guinchando, atropelando-se no sangue que corria. Um novo gemido saiu do peito de Maria, despertando-a, em sobressalto. Os porcos afastaram-se espantados, e ela, meio consciente, contorceu-se, mirou atônita a criança, que vagia estrangulada. Depois, quando um grande vácuo se lhe fez de todo nas entranhas, a dor cessou e Maria mergulhou afundada em outra vertigem. Os porcos, sentindo-a sossegada, precipitaram-se sobre os resíduos sangrentos, espalhados no chão. Devoraram tudo, sôfregos, tremendos; sorveram o sangue e na excitação da voracidade arremessaram-se à criança, que às primeiras dentadas soltou um grito forte, despertando a mãe... Quando esta abriu os olhos, deu um salto brusco e pondo-se de pé, lívida, hirta, alucinada, viu o filho aos trambolhões, partilhado pelos porcos, que fugiam pelo campo afora (ARANHA, s/d, p. 116).

O estado de degradação da personagem demanda refletir sobre as

consequências do poder, da exploração e da desigualdade, ao desnudar de forma

grotesca uma situação de impotência face às condições econômicas. A cena acima

transcrita é chocante pelo fato de o bebê ser estraçalhado pelos porcos – “símbolo

dos desejos impuros, da transformação do superior em inferior e do abismo amoral

da perversão” (CIRLOT, 1984, p. 472) – e o efeito provocado por uma imagem tão

forte implica um renascer mimético, uma forma especial de reflexão sobre a vida.

Trata-se de uma modalidade de crítica que visa desconstruir os estereótipos,

preconceitos e hierarquias sociais que emanam do discurso que busca legitimar a

superioridade alemã e a superioridade humana de sua racionalidade e auto-ilusão

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quanto à liberdade em relação aos condicionantes naturais: alimentação, segurança,

saúde, civilidade, etc.

Tal episódio desvela que, ao serem deslocados os pressupostos raciais e

etnocêntricos, é o lado mais profundamente humano dos homens que define sua

existência, sendo, também, indiscutível que as contingências econômicas e sociais

se repetem, a seu modo, no velho e no novo mundo.

A desconstrução da ideia de uma superioridade alemã se desvela, ainda, em

outra cena grotesca, cujo foco é a morte de um velho imigrante alemão que vivia

solitário às margens do Rio Doce. A imagem é a do estado de decomposição de seu

corpo que, conforme é devorado por corvos, transforma-se num espectro cadavérico

e monstruoso. Trata-se do grotesco, o extremo, hoje ainda muito em voga em certa

estética de massa.

Os homens [...] entontecidos pelo cheiro sufocante, estacaram indecisos e apavorados diante de um quadro medonho. Dentro, os urubus comiam um cadáver humano que jazia por terra, o corpo do solitário e abandonado imigrante. Os olhos tinham sido devorados e as cavidades imensas e rubras escancaravam-lhe a testa. Alucinados em seu gozo satânico, os corvos, sem dar fé da gente, continuavam a picar, a comer, avidamente, embebidos (ARANHA,

s/d, p. 111).

O corpo, delido pela putrefação e pela voracidade com que os urubus se

debruçam sobre ele, transforma-se em uma espécie de caricatura, cujos traços

horripilantes se convertem em destronamento do discurso oficial. Ou seja, a

condição de miséria, abandono e solidão de Maria Perutz e deste velho imigrante

subvertem ironicamente o discurso apregoado ao longo do romance por Lentz e por

Milkau.

Subliminarmente, a cena descrita discute a questão paradoxal de que o

paraíso edênico idealizado pelo imigrante abaixo da linha do Equador, também pode

ser selvagem. É no avesso desta natureza idílica, pois, que uma criança é devorada

após nascer e os urubus comem o corpo do imigrante em decomposição.

A ideia deste cenário selvagem que a todos devora aparece exemplarmente

em Fliegende[n] Blätter, um folhetim semanal publicado pela primeira vez em 1844,

em Munique. A publicação, de cunho extremamente satírico, criticava a burguesia

alemã da época. Trata-se de um poema no qual alguns países são apresentados

como destino para a imigração alemã, estando entre eles, o Brasil (Anexo XV).

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Tal imagem do Brasil remete à ideia de um lugar primitivo, selvagem, onde

impera a lei da natureza: o crocodilo devora a mulher inteira e os insetos são

gigantescos. Contudo, os versos abaixo da imagem reiteram que é para o Brasil que

se queria emigrar:

Para o Brasil, Para o Brasil/ Abarcam-me agora meus sentimentos/ Onde o besouro facilmente salta/ Onde o jacaré fica em pé/ onde ousa o mandril/ entre as raras plantas escorrega/ Para lá, velho, deixe-me ir!42 (FLIEGENDEN[N] BLÄTTER, 1844, p. 111).

Os dois episódios supracitados de Canaã, além da alusão óbvia à fragilidade

da condição humana em relação à miséria e à morte, também desvelam o lado

infernal do edênico paraíso tropical, onde a população – imigrantes ou não – está

sujeita à própria sorte, dados os desmandos e as contingências da incipiente e

inoperante República Velha.

De modo semelhante a Euclides da Cunha, em Os sertões (1979), Graça

Aranha demonstra preocupação com o papel do brasileiro na construção do país,

mas ele não hesitou em dar a Canaã um cunho contraditório, assim como Milkau

que, apesar de defender o caráter positivo da miscigenação dos povos, não abre

mão de classificá-los como “atrasados” e “adiantados”.

Todavia, invertendo este quadro, a trajetória de Milkau e Lenz aponta para a

revisão e reelaboração dos valores a despeito de suas radicais posturas iniciais,

visto que: o racionalismo radical de Lentz é atenuado pelo sentimento de compaixão

pela desgraçada vida de Maria Perutz e Milkau, o idealista humanista, não alcança a

terra prometida.

A despeito do caráter controverso de Canaã, pode-se concluir que: ao criticar

a tendência germânica ao isolamento e, sobretudo, a ideologia racial de

superioridade dos alemães, fica evidente, também, a carga de preconceitos inerente

a tais estereótipos, que ocorreram reciprocamente entre alemães e brasileiros, na

medida em que defendem o seu próprio grupo, ou seja, “[...] se existem preconceitos

e estereótipos dos brasileiros sobre os imigrantes, a recíproca também é verdadeira,

na medida em que as ideologias étnicas são carregadas de etnocentrismo, isto é,

supõem a superioridade do seu próprio grupo étnico” (SEYFERTH, 1990, p. 81 -

42 Tradução: “Nach Brasilien, nach Brasilien/Reissen mich jetzt die Gefühligen/Wo der Käfer leichtend hüpft/Wo sich bäumt der Krokodile/Wo verwegen der Madrile/Durch die seltnen Pflanzen schlüpf- Dahin/Alter, lass mich ziehen“.

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grifo nosso); e, ao tentar esboçar um panorama sobre o Brasil, o autor reflete a

imaturidade daquele contexto recém-republicano, não deixando claro se as

implicações do movimento migratório e do processo de branqueamento seriam, com

efeito, positivas ou prejudiciais ao país.

Ao problematizar tais inquietações, Graça Aranha reapresenta para a elite

brasileira – e para outros grupos do exterior, haja vista que esta obra de estreia de

Graça Aranha, um ano depois de publicada no Brasil, foi traduzida na França – as

diversas correntes europeias sobre as doutrinas raciais que legitimaram a

“inferioridade” e a “incapacidade” de o brasileiro “civilizar-se”.

Também o diálogo entre o eu e o outro, o alemão e o brasileiro, e a aceitação

de que a alteridade do branco constitui o negro, e vice-versa, são complexas, porque

estes estão inseridos em um contexto de mestiçagem ainda incipiente, marcado por

relações de conflito, exclusão e preconceito. Não há a negociação das diferenças,

haja vista que os alemães foram subordinados ao caldeamento racial, apenas, com

a implantação do projeto nacionalista de Getúlio Vargas, que propunha a formação

da identidade nacional unitária, unidade esta até então rechaçada pelos imigrantes

alemães e seus descendentes, bem como pela maioria das comunidades de

imigração no contexto do início do século XX.

É importante destacar que a visão preconceituosa dos alemães e seus

descendentes, analisada em Canaã, não significa que, mesmo nas comunidades

germânicas mais fechadas no Brasil, não houvesse pessoas mais abertas e porosas

em relação à miscigenação racial e cultural. Entretanto, esta porosidade não está

presente no contexto ficcionalizado por Graça Aranha no fictício – mas não tanto –

Porto do Cachoeiro.

Entretanto, se a fusão das raças não está representada naquela comunidade,

ela já se esboçava timidamente na fusão das línguas, e na faculdade natural do

brasileiro em dialogar com diferentes culturas: “admirara-se Lentz do modo corrente

por que o mulato falava alemão, apesar de rechear a frase de vocábulos brasileiros.”

(ARANHA, s/d, p. 37). Isto é o indício de que as mudanças se operam com o tempo,

entre idas e vindas, falhas e acertos, que tão bem caracterizam a condição humana.

Na sequência, o capítulo três se aterá à análise do romance Um rio imita o

Reno, de Vianna Moog.

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3 SOLIDÃO E HOSTILIDADE EM UM RIO IMITA O RENO

Era uma pacata cidadezinha de colonos alemães, onde crianças

louras se misturavam despreocupadamente com seus vizinhos caboclos, enquanto os adultos se debatiam em surdos conflitos por

questões de raça. Um romance da imigração germânica, acompanhado com agudo olho crítico a integração de duas culturas

contrastantes. (VIANNA MOOG, Um rio imita o Reno).

O espaço ficcional de Um rio imita o Reno não se limita a uma categoria

física, social ou geográfica na qual as personagens atuam. Há um conjunto de

elementos que compõe a realidade visual do romance e que funciona como

estruturador de seu meio físico ficcional, a imaginária cidade de Blumental, evidente

alusão a Blumenau.

A apreensão deste espaço é perpassada pelas sensações do protagonista da

obra, o engenheiro sanitário amazonense Geraldo Torres. Dada sua condição de

caboclo da Amazônia, é preponderantemente através do seu olhar que é descrita a

configuração espacial da cidade, na qual ele sente-se, de fato, estrangeiro e é este

olhar de estranhamento que desvela a cidade para o leitor. Neste sentido,

entenderemos por espaço em literatura não a dimensão “concreta” do texto, nem a representação imitativa e pretensamente neutra do espaço físico tal como percebido no mundo real, mas sim o discurso sobre a percepção do entorno na situação específica de sujeitos ficcionais, e sobre o sentido atribuído e essa percepção... (SOETHE, 1999, p. 20).

Espaço e percepção estão intimamente ligados, tendo-se em vista que o

espaço se constitui simbolicamente através da percepção que se tem dele

(MERLEAU PONTY, 1996). Ou seja, para refletir sobre o mundo à sua volta e sobre

si mesmo, o indivíduo precisa estar inserido em um espaço determinado, de modo

que o corpo e o espaço estabeleçam um diálogo: da mesma forma que o espaço

pode provocar sensações no indivíduo, este pode conferir significados ao espaço no

qual se encontra, de acordo com as suas subjetividades.

Vianna Moog, ao conduzir o leitor a partir da visão de Geraldo em relação à

cidade de Blumental, faz da personagem a porta-voz e os “olhos” do leitor. Ao

caminhar por Blumental, Geraldo se vale de um conjunto de referências discursivas

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que traduzem suas impressões/percepções sobre a cidade e esta relação entre a

personagem e o espaço faz com que aquele atribua significado a este. Em seu

primeiro dia na cidade, a personagem passeia pelas ruas, que são captadas como

se o fossem pelo olhar de um estrangeiro e não de um brasileiro que conhece uma

cidade da sua terra:

sua atenção se concentrava no estilo das casas. Identificava-as de acordo com os conhecimentos que guardara de arquitetura [...]. Eram quase todas de tipo alemão; umas quadradas, lisas, outras com o telhado em bico e a janelinha encaixada abaixo do vértice; outras ainda com sacadas de pedra mal entreabertas para a rua. Havia também algumas construções neutras, sem estilo, afogadas entre as demais. Nada que pudesse lembrar, senão fugidiamente, os sobrados do norte ou a arquitetura colonial portuguesa. O conjunto era tipicamente germânico. Se alguma influência tinha sofrido, que lhe suavizasse os contornos, essa influência procedia dos estilos holandês e suíço. Depois a atenção do engenheiro voltou-se para as placas e letreiros, onde procurava decifrar os dizeres: Apotheke, Schuhmacher, Bäckerei. No outro lado da rua, tomando todo o quarteirão, via-se um letreiro muitas vezes repetido: KREUTZER IRMÃOS. Embaixo sucediam-se grandes armazéns de ferragens, de fazendas e armarinhos, de jóias e bijuterias, de calçados, amplos depósitos de fumo, erva-mate, de secos e molhados. Na frente, cavalos atados à sombra, soltavam longos relinchos. Encostados no fio da calçada, autos, carroças, aranhas, caminhões... (MOOG, 1973, p. 7).

Tal descrição de Blumental é intermediada pela voz do narrador, pois não é o

caboclo amazonense quem fala: há outro que enuncia em seu lugar. O discurso, que

não é neutro nem impessoal, sai dos lábios de Geraldo, mas está a “serviço das

intenções de outrem” (BAKHTIN, 1988, p. 100), ou seja, do autor-criador.

De volta ao hotel no qual se estabelecera, Geraldo abre as janelas de seu

quarto e novamente é o narrador quem descreve a vista que a personagem tem da

cidade, bem como sua percepção da mesma:

abriu as venezianas e ficou a olhar para fora. Na frente alargava-se a praça, com o edifício vermelho da prefeitura, ao centro. Do lado direito ficava o quiosque, quase oculto nas sombras do denso arvoredo; ao redor do chafariz, onde a samaritana deitava um filete d’água no tanque circular, arregimentavam-se geometricamente os canteiros de rosas vermelhas e brancas, de cravos, de azáleas, de girassóis e violetas. Os jasmins impregnavam o ar de um perfume penetrante. Geraldo agora devassava o horizonte. Mais para leste corria tranquilamente o rio, sereno, sem pressa, entre salgueiros melancólicos debruçados sobre a corrente. Olhou a serra que servia de pano de fundo à perspectiva, a torre pontiaguda da igreja protestante, a ponte que ligava os dois braços de terra, o pesado e

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soturno monumento do cais, e uma estranha sensação inundou-lhe o coração. Tinha a impressão de que não fizera uma viagem de sete horas de trem, de que em sua vida se dera uma brusca parada, cujo remate era aquele súbito despertar. Parecia-lhe que tinha cruzado os oceanos e estava longe da pátria. Em vão procurava dentro de si reminiscências onde ajustar aquela paisagem. Percorreu mentalmente as cidades que conhecia. Todas elas guardavam entre si um ar de família. Mal conseguia situar no espaço certos recantos guardados na memória, recantos de sobrados e mucambos, de solares batidos de sol e vielas estreitas povoadas de sombras, tanto essas imagens eram comuns às cidades que conhecia. Mas o que tinha diante dos olhos era diferente. Onde estaria? Percorreu novamente os pontos que sua retina acabara de visualizar. Na praça, ranchos loiros de moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés universitários, bebiam descansadamente o seu chope. Pareciam sentir-se ali tão à vontade, como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munich. Geraldo então atentou ainda mais para o quadro, retesando a atenção. Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco. Os sinos plangeram dentro da noite que se adentrava. Onomatopeia da melancolia. Como se estivesse ouvindo novamente o prelúdio do piano, um tumulto, uma angústia interior agarrava-lhe as entranhas. Geraldo teve vontade de chorar. Sentia saudades do Brasil (MOOG, 1973, p. 13).

O leitor é conduzido pelas ruas e estabelecimentos daquela pequena

Alemanha, compartilhando das percepções que a personagem tem sobre seu

entorno: são imagens, cores, locais, pessoas, sons, memórias evocadas e,

sobretudo, um profundo sentimento de estranhamento.

No entanto, como Blumental é, apenas, um simulacro da arquitetura, da

cultura, da língua e dos costumes alemães, fica evidente a tentativa baldada dos

imigrantes e de seus descendentes de reproduzirem na nova terra uma cópia da

pátria original. Deslocada nos trópicos, esta será, sempre, apenas um arremedo

nostálgico perpetrado pelos primeiros imigrantes que aportaram no Brasil, como uma

cópia fora do lugar. Em vista disso, o estabelecimento de contatos culturais, no

cenário intercultural de Blumental, é sempre perpassado pelo discurso etnocêntrico,

no qual o outro é o não branco, o não europeu, o não alemão, o que evidentemente

reforça os processos de discriminação (BHABHA, 2005).

Nesta fictícia – mas verossímil – cidade, o sentimento de pertencimento ao

Estado alemão toma tal proporção, que Geraldo, apesar de estar no Brasil, sente

saudades da pátria e não apenas do Amazonas. Entretanto, quando se desloca o

foco para a perspectiva dos imigrantes e seus descendentes, fica também evidente

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que Blumental é uma mera tentativa de eles minorarem seu estranhamento em

relação ao novo mundo à sua volta e, para se sentirem minimamente situados, eles

precisam reproduzir, mesmo que de forma falseada, seu mundo perdido. Neste

sentido, Blumental, além de ser uma cidade, é simbolicamente um lar, um refúgio

protetor em relação ao mundo “selvagem” à volta. Conforme postula Bachelard

(1978):

[...] a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros das antigas. Quando, na nova casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos revivendo lembranças de proteção. Alguma coisa fechada deve guardar as lembranças deixando-lhes seus valores de imagens (BACHELARD, 1978, p. 201).

Partindo-se desta premissa de Bachelard (1978) em relação aos recantos

íntimos da casa – que ele designa de topo análise – Blumental pode ser investida do

valor simbólico de uma grande casa para os alemães e seus descendentes. Ela

funciona por meio de um processo de duplicação e confluência entre o espaço

interior e exterior, pois as subjetividades e reminiscências simbólicas das

personagens alemãs – interior – são atribuídas ao espaço de Blumental – exterior.

No plano afetivo, é em face do desequilíbrio identitário, da desagregação da

Heimat e da força centrífuga que dissolve os valores do grupo, que a Alemanha é

reavivada no espaço de Blumental. Se tal tentativa, por um lado, ameniza a dolorosa

passagem de um mundo familiar para outro desconhecido e incerto, por outro, ela

revela o estado de alma das personagens, que não conseguem se ajustar às

mudanças provocadas pela imigração, tampouco se adaptar à nova realidade. Elas

se mantêm emparedadas a valores e preconceitos de raça, numa tentativa baldada

de preservar a “pureza” dos “arianos”: postura recorrente nas comunidades de

imigração recente àquele tempo e contra a qual Vianna Moog desfere uma crítica

ferrenha.

Dessa maneira, há que se destacar o vínculo estreito que se estabelece entre

o homem e o espaço que ele habita, pois são tais laços que perpetuam a fixação

dos habitantes alemães e teuto-brasileiros de Blumental pelo país de origem. Esta

ligação emocional se intensifica com a ameaça da perda ou do distanciamento

destes da pátria que lhes conferia identidade. Isto acontece porque, partindo da

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análise de Mircea Eliade, em O sagrado e o Profano (1992), por mais distante que o

homem moderno possa estar do homem religioso, naquele ainda subsistem traços

imemoriais deste e são estes traços que ainda tornam a relação entre o sujeito e o

espaço mediada por valores simbólicos enquanto reminiscência da imago mundi do

homem primordial.

A ideia da imago mundi, embora esmaecida e há muito deslocada da sua

força simbólica original, aplica-se modelarmente à Blumental, pois, sendo uma

projeção da Alemanha, a cidade se reconfigura enquanto território habitado, que fixa

limites, sacraliza-se e se torna um cosmos para os alemães. Tal espaço passa a se

contrapor ao “outro mundo”, o desconhecido, habitado pelos brasileiros:

o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”, mais precisamente, “o nosso mundo”, o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, “estranhos” [...]. À primeira vista, essa rotura no espaço parece consequência da oposição entre um território habitado e organizado, portanto “cosmizado”, e o espaço desconhecido que se estende para além de suas fronteiras: tem se de um lado um “Cosmos” e de outro um “Caos” (ELIADE, 1992, p. 21).

Ao se conceber Blumental enquanto uma reminiscência da imago mundi para

as pessoas que nela se inserem, deve-se considerar que aquele espaço foi

consagrado a partir do momento em que foi ocupado pelos imigrantes alemães. Nas

palavras de Eliade (1992, p. 22), “ocupando-o [o espaço] e, sobretudo, instalando-

se, o homem transforma-o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição

ritual da cosmogonia”.

A aproximação com a imago mundi é, portanto, possível, sob a perspectiva de

que, para os imigrantes transplantados para uma terra distante e selvagem, criar

“seu” espaço remete ao que foi a transformação do caos em cosmos, embora, na

acepção mais profunda, este conceito se aplique literalmente ao homem religioso, do

qual o homem moderno é apenas herdeiro.

[...] o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que quiser, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado (ELIADE, 1992, p. 166).

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Tal relação entre o “nosso mundo” e o “mundo dos outros”, estabelecida pelos

moradores de Blumental, fica evidente no momento em que Karl Wolff revela seu

desinteresse pelo Brasil como um todo, seja pela sua história, seja pelo seu povo:

ambos classificados por ele como caóticos, contrapondo-se à “cósmica” Blumental:

Karl Wolff procurava interessar-se, mas não conseguia. Um Brasil do Amazonas ao Chuí, limitado ao norte com o Mampituba ou com o Oiapoque era-lhe indiferente. Ele mesmo não sabia, nem podia compreender como o Brasil chegava a constituir um Estado independente. Por mais que revolvesse a memória, esta só lhe restituía fatos vagos, imprecisos, esfuminhados, coisas da escola, dispersas, desconexas. Primeiro uma data, 1500, depois um nome, Pedro Álvares Cabral, o seu Cabral das últimas canções carnavalescas, algumas guerras sem importância contra os franceses e os holandeses; o 7 de Setembro, onde aparecia um príncipe de espada desembainhada, cercado de cavaleiros, à margem de um riacho [...]; a guerra do Paraguai, que o Brasil não teria vencido se não fosse a ajuda dos primeiros colonos alemães; o 13 de Maio, que proclamou a liberdade da negrada, uma gente que podia afinal de contas continuar escrava e não precisava andar por aí a faltar com o respeito aos arianos. Depois, uma série de revoluções, de correrias, de requisições que só serviam para atrapalhar o comércio e a indústria, fruto exclusivo do esforço germânico (MOOG, 1973, p. 60).

Blumental é, portanto, uma cópia mal enjambrada da alhures Alemanha – o

centro do mundo – que se oporia ao caos – Brasil. Daí a dificuldade de seus

habitantes em aceitarem a “invasão” de qualquer estranho, como Geraldo, pois todo

estranho ameaça este simulacro frágil de cosmos, cujo centro situa-se muito distante

no tempo e no espaço.

Esta cidade, concebida enquanto uma grande casa, simboliza o que Fortes

(2010, p. 53) em outro contexto chama de “[...] um abrigo contra a vastidão do

mundo, um limite protetor em relação à amplitude cósmica e um elemento norteador

concreto, para onde convergem as referências do indivíduo”. É marcante no

romance a necessidade humana de demarcar seu espaço de proteção e de refúgio

em face de um mundo às avessas, onde o capitalismo é o causador de constantes

mudanças que tão facilmente dispersam os valores e as referências das pessoas.

Seguindo as considerações abordadas até aqui, o que se intenciona propor é

que Blumental se aplica com justeza à representação simbólica de uma grande

casa, de um canto no mundo, pois, as pessoas mudam de lugar, mas não sua

essência (BACHELARD, 1978).

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No imaginário dos alemães e seus descendentes daquela fictícia cidade, não

houve o distanciamento ou a perda da lealdade ao país de origem, pois, apesar de

estarem vivendo no Brasil e muitos já terem aqui nascido, eles se identificam, ainda,

como alemães. Manter a arquitetura, a culinária, a língua e demais tradições alemãs

é, então, a tentativa humanamente aceitável de os habitantes amenizarem o

estranhamento e o esfacelamento de suas identidades. As referências espaciais e

as imagens de uma realidade passada ou idealizada, ao serem rememoradas e

transformadas em realidade presente, fazem com que, apesar da distância, a cópia

alemã permaneça ao alcance daqueles que a deixaram ou daqueles que insistem

em senti-la no “sangue”.

Por outro lado, o que se sobressai é a forma fechada e narcisista pela qual a

comunidade estabelece ligação de pertencimento mútuo entre si e o espaço que ele

habita, pois, ao tentarem reestabelecer seu lugar no mundo, os habitantes de

Blumental se isolam, fecham-se e se entocam, o que evoca a ideia primitiva de

refúgio e de habitação. Citado por Bachelard (1978, p. 104), o pintor Vlaminck

afirmou que: “‘o bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mal tempo se

desencadeia, é totalmente animal. O rato em seu buraco, o coelho na toca, a vaca

no estábulo devem estar felizes como eu. Assim, o bem-estar devolve-nos à

primitividade do refúgio”. É a este sentimento primordial de construção de um lugar

no mundo que subjaz ao empenho das personagens em demarcarem uma nova

Alemanha nos trópicos.

Em vista deste laço estreito entre o indivíduo e o espaço que ele ocupa, a

participação de Geraldo nos jogos de tênis de Blumental, por exemplo, representa

uma afronta aos seus habitantes, que intervêm prontamente ao considerem-no como

“invasor” de seu espaço e como tal, uma ameaça à homogeneidade e às tradições

do grupo, como atesta a fala de Frau Marta: “–– E vocês vão admiti-lo [Geraldo]

como sócio? Até no tênis os pretos já estão entrando?! Ach! Blumental está ficando

inabitável” (MOOG, 1973, p. 88).

Ao se fazer uma analogia entre a casa e a cidade, esta última torna-se,

também, um estado de alma daqueles que estão em seu interior, segundo

compreendeu Bachelard (1978) a respeito da casa, moldada à proporção do

tamanho de quem nela se abriga. Se a casa é fechada, pode-se depreender que

existe algo a ser protegido, ou que há alguém que se esconde dentro dela. Mas, e o

que os teutos preservam em Blumental, para mantê-la fechada, resguardada da

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entrada do outro, neste caso, do brasileiro? Eles preservam suas crenças,

lembranças, medos, valores, enfim, seu patrimônio cultural, ou o que ainda sobrou

dele após a imigração.

Assim como a casa tem cômodos, sótão e porão, móveis, objetos,

decorações, portas, também a cidade tem ruas, construções, ornamentos e cenários

que evocam recordações. Os muros de uma cidade podem ser simbolicamente

comparados às portas das casas, sempre fechadas a estranhos. Isso significa que,

se a casa se fecha para proteger a família e sua intimidade, a cidade de Blumental o

faz para se proteger do forasteiro, do intruso e do estrangeiro, pois seriam

estrangeiros todos aqueles que não compartilham da mesma língua, crenças e

experiências que os alemães.

Desta forma, paradoxalmente, a minoria em Blumental é constituída pelos

brasileiros, cuja diferença é reconhecida tão somente em comparação com a cultura

europeia. Edward Said, ao propor uma semiótica do poder orientalista, tinha em

vista, afirma Bhabha (2005), intervir neste regime de verdade, “examinando os

diversos discursos europeus que constituem ‘o Oriente’ como uma zona de mundo

unificada em termos raciais, geográficos, políticos e culturais” (BHABHA, 2005, p.

110).

Filosoficamente, portanto, o tipo de linguagem, pensamento e visão, que eu venho chamando de orientalismos de modo muito geral, é uma forma de realismo radical; qualquer um que empregue o orientalismo, que é o hábito de lidar com questões, objetos, qualidades e regiões consideradas orientais, vai designar, nomear, apontar, fixar, aquilo que está falando ou pensando através de uma palavra ou expressão, que então é vista como algo que conquistou ou simplesmente é a realidade...o tempo verbal que empregam é o eterno atemporal (SAID apud BHABHA, 2005, p. 110)43.

Ainda sobre a relação analógica entre a casa e a cidade, a tentativa de

isolamento que se percebe em Blumental é baldada, pois, ao se analisar

simbolicamente a porta da casa, percebe-se que ela serve de entrada e de saída,

propicia a passagem de um local ao outro e, assim, sinaliza para a condição 43 O pertencimento dos alemães à terra de origem recai no mesmo processo descrito por Edward Said, tendo-se em vista que o Brasil, para os imigrantes alemães, se torna uma zona do mundo homogênea, onde todos são negros e sem cultura. A explicação que Bhabha (2005) oferece a este processo de fetichismo como recusa da diferença, é a cena repetitiva e similar em torno da castração, em termos freudianos: “Todos os homens têm pênis; em nossos termos: ‘todos os homens têm a mesma pele/raça/cultura’ [...] ainda, para Freud: ‘alguns não tem pênis’; para nós: ‘alguns não tem a mesma pele/raça/cultura’” (BHABHA, 2005, p. 116).

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“entreaberta” do homem. As portas de Blumental se fecham para Geraldo, de onde

ele é expulso – “Foi à sua volta da hidráulica, à tarde, que lhe entregaram o

telegrama da Companhia. Era imperativo: ‘Suspenda obras, dispense pessoal,

embarque urgente’” (MOOG, 1973, p. 158). Mas, a despeito de se querer impedir a

miscigenação e o estabelecimento de uma relação harmônica entre as novas

gerações de descendentes de alemães e os brasileiros, tais portas são forçadas a se

abrirem, como exemplifica o amor correspondido entre Geraldo e Lore Wolff.

Moog não ignora que, a despeito da resistência em relação à miscigenação

nas comunidades alemãs, esta já estava em curso entre as pessoas menos

abonadas:

havia ali [em Blumental] casais curiosos: teutos e alemães casados com cabrochas; alemãs repolhudas casadas com morenos e mestiços. A garotada que brincava junto às obras afinava pelo mesmo diapasão: meninos loiros, morenos, tipos claros de cabelo vermelho, faces cheias de sardas... (MOOG, 1973, p. 20).

A interação entre brasileiros e alemães e/ou descendentes também aparece

de forma encantadora através de Paulchen, filho de Karl Wolff e sobrinho de Lore.

Esta representação remete à possibilidade de se viver interculturalmente, tendo em

vista que não somente ao colonizado, mas também ao colonizador é negado o

acesso ao reconhecimento da diferença, que “liberaria o significante pele/cultura das

fixações da tipologia racial, da analítica do sangue, das ideologias de dominação

racial e cultural ou da degeneração” (BHABHA, 2005, p. 117).

A cena da interação entre Paulinho e os mulatos do Cardoso é extremamente

significativa no romance Um rio imita o Reno. Em outro contexto, Bhabha (2005)

explica que a criança já se defronta com os estereótipos raciais e culturais nas

histórias infantis, nas quais os heróis brancos e os demônios negros funcionam,

como pontos de identificação ideológica e psíquica.

[...] naquele instante Ema entrou na sala alvoroçada e investiu para Frau Marta: – Ach! Mein Gott. O Paulinho fugiu de novo, está lá na rua todo molhado, brincando com os moleques. Com os moleques... Que é que eu vou fazer? Frau Marta parecia imersa num sono letárgico. Lore olhou para a rua. No meio das cabeças negras e morenas havia agora uma loira. Reconheceu o sobrinho. Paulinho pulava e ria no meio dos moleques, dos mulatinhos do Cardoso e dos pequenos da vizinhança... (MOOG, 1973, p. 223).

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A ameaça que vem de fora é, inevitavelmente, o processo de hibridização das

culturas que estão em contato, presente desde os primórdios na formação dos povos

que, até chegar à configuração atual, continuamente se dizimaram, desmembraram

e aglutinaram. Esta seria a causa do estado letárgico de Frau Marta que, frente à

descoberta de seu “sangue judeu”, perdera o alicerce que sustenta as fronteiras

entre “cabeças” negras, morenas e loiras.

Nesse sentido, o medo dos habitantes de Blumental não vem, apenas, de

fora, com a ameaça de um caboclo como Geraldo arruinar o sangue dos Wolff, por

exemplo, mas está, também, dentro deles, em sua formação cultural e identitária.

Não obstante, se o perigo não está do lado de fora, como combatê-lo? Um rio imita o

Reno, para além do isolamento e da atitude racista dos alemães de Blumental,

estende-se às demais culturas e aos tempos atuais que, apesar do controle do

“politicamente correto”, mantêm internalizadas rizomáticas formas de preconceito e

exclusão.

3.1 IMAGENS E RECURSOS VERBAIS NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE

BLUMENTAL

O cenário e as impressões descritas por Geraldo a respeito de Blumental –

como a arquitetura germânica, a predominância de loiros, o estilo gótico da igreja e o

chope apreciado pela comunidade – não são meros efeitos decorativos ou exóticos,

mas estratégias fundamentais à composição do romance em análise.

Antonio Dimas, em Espaço e romance (1987), chama a atenção para a

questão da utilidade dos recursos empregados pelo narrador com vistas a situar a

ação do romance e para a necessidade de se questionar “até que ponto os signos

verbais utilizados limitam-se apenas a caracterizar ou a ornamentar uma dada

situação ou em que medida eles a ultrapassam, atingindo uma dimensão simbólica

e, portanto, útil àquele contexto narrativo” (DIMAS, 1987, p. 33).

Ora, o leitor, ao se deparar com os letreiros, pratos típicos, provérbios,

expressões, saudações e demais falas corriqueiras em língua alemã, percebe que o

autor faz questão de introduzir estes recursos ao longo do romance, como

elementos relevantes à representação de uma cidade que, conforme o título

prenuncia, seria uma imitação da Alemanha. A língua, associada ao espaço de

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Blumental, corrobora para o estranhamento de Geraldo, uma vez que também os

alemães de Blumental são representados a partir da ótica central de exclusão e

preconceito em relação aos brasileiros, conforme evidencia o discurso do secretário

ao caboclo Geraldo: “[...] os Kreutzer eram muito germanófilos, só davam emprego a

alemão, só protegiam os teutos. [...] – Ah, filho, aqui é bem assim. Quem não souber

falar alemão come do duro” (MOOG, 1973, p. 8).

O engenheiro é recebido pelo funcionário do hotel da cidade em língua alemã,

“Einen moment, bitte” (MOOG, 1973, p.1), depara-se com um provérbio emoldurado

na parede, que diz: “Grüss Gott!/Tritt ein,/Bring Glück herein” (MOOG, 1973, p. 17) e

experimenta um dos pratos típicos da casa: “Klösse” (MOOG, 1973, p. 17). Afora os

letreiros da cidade, que também estão em língua alemã – “Apotheke, Schuhmacher,

Bäckerei” (MOOG, 1973, p. 7) – Geraldo assiste ao desfile de alunos que, sob o

comando de um orientador, gritavamm: “Eins, zwei, eins, zwei”... Heil Hitler!”

(MOOG, 1973, p. 22). O protagonista, ao participar dos eventos da cidade, como a

festa do Kerb, toma conhecimento de outro provérbio: “Sorg aber sorge nicht zu viel,

es geht doch wie’s Gott haben will” (MOOG, 1973, p. 131) e de trechos de músicas

cantadas pelos alemães: “Trink, trink, Brüderlein trink. Lass doch die Sorgen zu

Haus” e “Dann ist das Leben ein Scherz” (MOOG, 1973, p. 124). Com vistas a

exemplificar e facilitar a compreensão do leitor, elaborou-se uma tabela com as

principais expressões e vocabulário em língua alemã presentes em Um rio imita o

Reno, e a respectiva tradução (Anexo XVI).

Afora isso, também o rio que corta a cidade imita o Reno, como anunciado no

título do romance. “No fundo, para o sul, a planície a perder de vista; para leste, a

serra densa e alcantilada. Geraldo procurava definir a paisagem: era bem como as

paisagens do Reno dos livros de estampa” (MOOG, 1973, p. 90). Além das

construções humanas, tão marcantes no romance, o rio44 é também um elemento

44 Lucien Febvre, em O Reno: história, mitos e realidades (2000) resgata a historiografia do Reno: “Renos, o primeiro nome do Reno, encontra um sentido nas línguas célticas: água corrente ou mesmo [...] torrente ou mar” (FEBVRE, 2000, p. 73). O Reno teve, e ainda tem, importante papel econômico, histórico, político e geográfico no contexto europeu e, por isso, é compreensível que a região tenha sido marcada para transações comerciais, demarcação natural de fronteiras, de políticas internacionais, guerras, etc. O rio, também, serviu de símbolo a lendas, como é o caso de Loreley. Segundo o mito, Loreley vivia num penhasco localizado no Vale do Reno e, ao pentear seus longos cabelos loiros, ela atraía e hipnotizava os tripulantes das embarcações com sua voz. Esta lenda foi relatada em 1801, por Clemens Brentano, que escreveu a história da bela jovem durante uma viagem pelo Reno. Também Heinrich Heine contribuiu para popularizá-la.

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com o qual os alemães se identificam, já que ele atualiza o poder simbólico do rio

Reno europeu.

Em Blumental o rio é, simultaneamente, um marco de divisão e união, pois à

medida que ele une os alemães e teuto brasileiros, também os separa dos “outros”,

os brasileiros, funcionando como uma fronteira que demarca o limite entre nós – os

alemães – e os outros – os brasileiros. Contudo, o rio, ao imitar o Reno, longe de

fazer reviver a sensação de estar e se sentir na Alemanha, transforma-se em um

elemento de evocação que, mais que suprir a nostalgia pela pátria perdida, acentua

a vacuidade e a perda do Reno original.

Todos estes aspectos dizem respeito ao cotidiano da cidade imaginária em

análise e são homólogos a seus habitantes, que se empenham em preservar a

língua e a cultura, a comida, as danças, crenças, religião, enfim, tudo que lhes foi

legado pelo país de origem.

Vianna Moog faz com que o leitor penetre nesta cidade através da visão e da

percepção de Geraldo, ou seja, pela perspectiva do distanciamento de quem vem e

olha de fora. Ao valer-se do discurso de Geraldo, o narrador – para o qual confluem

as experiências do autor – consegue transitar entre o olhar de fora e o de dentro da

comunidade de Blumental, pois, a despeito de o autor ter acompanhado de perto a

vida dos alemães no Rio Grande do Sul, ele não se absteve de suas próprias

conclusões enquanto brasileiro.

Com efeito, Vianna Moog traz duas etnias em sua origem, a lusa e a alemã e,

segundo afirma Dreher (2006, p. 4 apud AQUINO, 2007, p. 129), o romancista teria

dito em 1976 que queria ser mais “Vianna” do que “Moog”: “no enredo do livro

dedicado a Marcos Moog e a Maria da Glória Vianna Moog, seus pais, o autor deixa

claro que, pessoalmente, está entre o Vianna e o Moog, mas pende em sua

propaganda pró Estado Novo para suas raízes Vianna”.

Esta condição de um autor que fala com propriedade, a partir de suas

vivências pessoais, sobre o conflituoso processo de imigração alemã, permite-lhe

distanciar-se do objeto narrado, dando mais visibilidade e criticidade em relação à

realidade representada: o isolamento, o etnocentrismo e o preconceito de imigrantes

alemães e seus descendentes estabelecidos no Brasil.

Além da remissão à cultura alemã original, congelada no tempo e na forma de

viver pelos que emigraram, também os descendentes de imigrantes já nascidos em

Blumental, apesar de já serem brasileiros, colocam-se na condição de alemães. Isso

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faz com que os demais brasileiros que não sejam origem alemã se tornem

estrangeiros em seu próprio país, e, como tais, devem ser evitados e mantidos à

distância da vida familiar e doméstica dos alemães.

A narrativa transita pela perspectiva de Geraldo, por exemplo, ao visitar o

Salão da Sociedade Ginástica de Blumental, e da de Lore, em sua casa

marcantemente germânica. Em tais espaços são evocados valores de intimidade,

porque a pátria dos imigrantes alemães e de seus antepassados está fisicamente

inscrita nas habitações de Blumental. Como afirma Bachelard (1978), no texto

literário tais espaços constituem um conjunto de imagens que acolhem o leitor como

a um hóspede, provocando no mesmo a ilusão de estar percorrendo uma casa, uma

rua, uma cidade etc.

Na perspectiva de Bachelard (1978), as pessoas e as imagens da casa

confluem e uma se entranha na outra. Isso acontece porque, naturalmente, a casa

implica o sentido primitivo do habitar, é o canto das pessoas no mundo, seu espaço

vital, como atesta a descrição de Lore, circunscrita ao seu espaço familiar.

Lore evitava encarar a mãe e passeava os olhos pela sala. Era uma peça ampla, com o teto de estuque pintado de branco; nas paredes grená enfileiravam-se cabeças de cervos, chifres de veados nórdicos em todas as extensões. Num lado, o velho e pesado bufete de cedro, entre dois pratos de cerâmica, encimado por custosa poncheira de prata. Perto do relógio de parede, uma vista de Heidelberg, formada de fotografias justapostas, enquadradas na moldura longitudinal. Por cima do divã, forrado de almofadas e recoberto de uma fazenda de veludo, o panneau representando um moinho de largas asas e um grupo bucólico de camponeses com compridos cachinhos em torno da carreta de feno. Junto ao divã, lá estava o ninho da Páscoa do sobrinho: um belo castelo de barba de pau, com ramos de macela a ornamentar lhe as torres. Havia ainda uma estante de livros, sopesando a Bíblia, volumes de Goethe e Lessing, ricamente encadernados. E, dominando tudo, perto do abajur, no ângulo da sala, sobre a cantoneira de adorno, a figura imperiosa de Bismarck, no seu uniforme prussiano, numa magnífica reprodução em bronze (MOOG, 1973, p. 84).

O aposento mostra como os espaços são criados de forma a remeter à

Alemanha. É extremamente exótico que, em uma casa situada nos trópicos, onde a

força e a violência da natureza – fauna e flora – abundam, a decoração remeta a

uma cabana de caça europeia, inclusive com cabeças de animais empalhados da

fauna de parte da Europa. A imagem do relógio remete ao tempo passado alemão,

irremediavelmente perdido, mas que permanece enquanto lembrança e uma

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saudade imemorial, mesmo para aqueles que nunca a vivenciaram. Também os

livros, a imagem do feno e todos estes elementos fora de lugar são dominados pela

imperiosa figura de Bismarck. Tais adereços, revestidos das lembranças do perdido

– para os que emigraram – e imaginados – para aqueles que já nasceram no Brasil –

remetem às lembranças e revivem a antiga moradia/casa/pátria. Todos estes

elementos, além da evidente nostalgia, reveem a lealdade e o culto à pátria perdida

e à memória do grupo e dos antepassados.

A família Wolff vive a casa e a cidade de Blumental em sua realidade, mas,

também, em sua virtualidade, numa integração entre rememoração, recordação e

sonho. Pois, o espaço pode “recuperar” o tempo perdido, tornar imóveis as

lembranças que, quanto mais espacializadas – veja a descrição do quadro de

Bismarck, dos livros de Goethe e Lessing, das fotos da cidade alemã, Heidelberg,

por exemplo – mais se solidificam. Entretanto, estes elementos são, apenas,

lembranças deslocadas, já destituídas da força vital que ataviava o grupo à

Alemanha.

Se, como afirma Bachelard (1978, p. 243), “toda grande imagem é reveladora

de um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é ‘um estado de alma’”,

os livros, também, revelam as características, escolhas ou a personalidade de quem

os lê. No espaço do salão da Sociedade Ginástica, através de Geraldo, o narrador

descreve a biblioteca do local:

[...] Geraldo [...] espera encontrar ali a coleção dos livros de Heine, o lírico alemão de sua preferência. Nada. As estantes embutidas estão cheias de publicações recentes da Nova Alemanha: desde o Mein Kampf, de Adolf Hitler, ao Das dritte Reich, de Moeller van den Bruck; desde o Staat, Bewegung, Volk, de Hans F. K. Günther, ao Praktische Kulturarbeit im dritten Reich, de Hans S. Ziegler. Já desistiu de encontrar Heine entre eles. Ainda bem – reflete Geraldo – que colocaram Goethe e Schiller num lugar à parte. Corre agora ansiosamente as prateleiras do último armário, em busca de autores portugueses e brasileiros, na vaga esperança de deparar alguma raridade clássica, como as que surgem imprevistamente nas bibliotecas do interior. Anima-se ao ver nas duas últimas fileiras alguns títulos em português entre romances de Marlitt e Courths-Mahler. Decepção: são romances de Perez Escrich, Paulo de Kock e George Ohnet. Mas lá na última prateleira encontra afinal o que procurava: um pequeno volume de capa branca e o título gravado na lombada: PORQUE ME UFANO DO MEU PAÍS (MOOG, 1973, p. 44 – grifos do autor).

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As obras citadas são representativas do contexto e do momento histórico de

Um rio imita o Reno, visto que revelam a inclinação dos habitantes de Blumental às

novas tendências políticas defendidas pelo partido nacional-socialista. Não é por

acaso que o único livro brasileiro encontrado seja o de Affonso Celso, editado em

1900, que se tornou instrumento de fortalecimento da identidade nacional brasileira

em razão de sua função patriótica, cívica e moralizadora. O fato de não haver

nenhum livro de Heinrich Heine – poeta judeu alemão do século XIX, de clara

tendência política progressista à esquerda – na biblioteca é o indício mais expressivo

da mentalidade dos membros daquela associação: odiavam os judeus, pois o

antissemitismo era um dos princípios centrais da ideologia nazista.

Transpassando os meandros da ficção, a crítica de Vianna Moog faz sentido

quando se tem em vista que, entre 1932 e 1941, circulava, por exemplo, no Brasil o

jornal Deutscher Morgen45 – Aurora alemã – periódico publicado em São Paulo e

que foi considerado a folha oficial do Partido nazista no Brasil. Este jornal, que era

dirigido por Hans Henning von Cossel, estava voltado para a divulgação de fatos

ligados ao III Reich, pronunciamentos de Hitler, além de relatar o que acontecia na

filial do partido nazista no Brasil. A simbologia nazista – águia e suástica – são

identificadas já na capa do jornal (Anexo XVII) que, com a campanha de

nacionalização imposta por Getúlio Vargas, passou primeiramente por um processo

de abrasileiramento – Departamento de Imprensa e propaganda (DIP) – vindo a

chamar-se, em 1941, Aurora Ilustrada, deixando de circular em dezembro do mesmo

ano.

A mesma empresa responsável pelo Deutscher Morgen publicava em São

Paulo o almanaque Povo e pátria: almanaque para os alemães no Brasil46, que

45 Ana Dietrich afirma que, “um dos indícios de que boa parte da comunidade alemã no Brasil estava envolvida com o Partido Nazista, mesmo que indiretamente, era a quantidade de anúncios presentes no jornal. Alfaiatarias, relojoarias, clínicas dentárias, confeitarias, restaurantes, bares, tinturarias, livrarias, bancos e cervejarias – como a Brahma e a Antarctica – eram anunciantes fiéis”. Além do Deutscher Morgen, que teve maior periodicidade, também outros periódicos circulavam no Brasil, como O Nazista (RJ) e Para o terceiro Reich (RS). Disponível em:

<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/porta-vozes-de-hitler-1>. Acesso em 06 mar. 2014.

46 Tradução: Volk und Heimat: kalender für das Deutschtum in Brasilien. Fotos e discursos de Hitler, proferidos durante os congressos do partido nacional-socialista na Alemanha, além de seus aforismos, são exemplos do conteúdo que o almanaque reproduzia. Também artigos, crônicas e poemas eram publicados, em cujo gênero a escritora alemã Maria Kahle ocupou lugar de destaque no trabalho de reprodução e manutenção do sentimento de germanidade e de pertencimento à Alemanha. A circulação deste almanaque foi ampla, chegando a várias localidades do Rio Grande do Sul e de outros Estados do país.

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circulou de 1935 a 1939. Tais almanaques constituíram-se a partir da segunda

metade do século XIX, segundo Grützmann (2005), em umas das principais

produções culturais impressas em língua alemã no Brasil e era destinada

exclusivamente aos imigrantes e seus descendentes. O Volk und Heimat funcionava

como instrumento de transmissão dos ideários nazistas no Brasil e da trajetória dos

principais dirigentes do partido em congressos, festividades e encontros (Anexo

XVIII).

Voltando à obra ficcional, Blumental é um mundo à parte, uma cidade do

Reno extraviada no Sul da América. As formas sensoriais que Blumental provoca em

Geraldo são de estranhamento, desorientação e perturbação. Aqui, espaço e

memória se interpõem, pois, ao tentar familiarizar-se com Blumental, a personagem,

na maioria das vezes, evoca episódios de sua vida no Amazonas, bem como

lembranças de referências espaciais que amenizam o embaraço provocado por uma

realidade tão diferente da que ele conhecia: quando, por exemplo, ele toma banho

de rio, é como se fosse um estrangeiro saudoso ao reencontrar um recanto de sua

pátria.

Era uma alegria física incomparável. Dava grandes nadadas e mergulhos, tornava depois ao barranco para novos saltos, o seu prazer predileto. Ali se sentia bem. Encantado, acompanhava de longe os movimentos da gurizada. [...]. Naquele ambiente voltava aos tempos de menino, junto ao igarapé, perto da casa do seringal, pelas férias grandes. O rio aqui era mais manso. Na margem direita coberta pela mata rasteira, via Geraldo uma miniatura da muralha de verde das margens amazônicas. Bastava-lhe essa sugestão para considerar aquele lugar, um lugar amigo. Já começava a amar aquele rio (MOOG, 1973, p. 16).

Para Geraldo a natureza é o veículo através do qual ele se reencontra com a

pátria e consigo mesmo, pois o Reno – mero simulacro do original deslocado para a

América – é para ele uma reminiscência do Amazonas. Estas justaposições de

tempo e espaço que conduzem o leitor de um lado para outro, de um tempo para

outro, contrapõem o contexto amazônico, portanto tipicamente brasileiro, ao de

Blumental.

A história pessoal de Viana Moog respalda tal contraposição entre os

imigrantes de alemães do Sul e o os caboclos do Norte, pois ele foi fiscal do imposto

de consumo em Porto Alegre, e foi transferido para o Amazonas. Sua experiência no

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Amazonas lhe revelou ser aquela região uma das mais interessantes do Brasil,

conforme ele explica em entrevista a Homero Senna:

ora, desde que desembarquei em Manaus e, por dever do ofício ou

por simples curiosidade, passei a viajar pelo Estado, comecei a

sentir-me inclinado a escrever alguma coisa sobre aquele mundo

novo com o qual estava travando relações. Aliás, é conhecida a

fascinação que o Inferno Verde exerce sobre os viajantes nacionais e

estrangeiros: veja Euclides, Inglês de Sousa, Tavares Bastos, Alberto

Rangel, Gastão Cruls... Sem falar em Wallace e Humboldt. Também

eu, portanto, não pude deixar de pagar meu tributo ao sentimento

cósmico que inspira aquela região, que, como uma vez já disse, a

gente não sabe direito se é o primeiro ou o último capítulo do

Gênese... Comecei, então, a escrever, para um jornal de Porto

Alegre, uma série de artigos sobre a realidade amazônica, artigos

esses que vieram a constituir mais tarde o meu livro O Ciclo do Ouro

Negro. Qual não foi, porém, minha surpresa quando, por cartas

recebidas do Rio Grande, fui informado de que meus artigos estavam

agradando... Continuei, porque aquele era um novo meio de ganhar

dinheiro e eu não me achava, em absoluto, em boa situação

financeira no Amazonas, e quando dei por mim estava feito escritor.

(Disponível em:

<http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/VianaMoog.htm>. Acesso

em: 19 ago. 2013).

Por meio da personagem Geraldo, Vianna Moog denuncia como este apego

dos imigrantes à pátria perdida contribuiu para o racismo isolacionista e etnocêntrico

dos grupos alemães. Ao enfocar o imigrante sob tal aspecto, o escritor o representa

sob uma perspectiva negativa, mas, por outro lado, a positividade do texto está na

revisão crítica que o autor faz do equívoco de tais ideais, e no destemor com que ele

enfrenta o problema em questão, visto que ele desfere uma contundente, mas

realística crítica ao germanismo existente no Sul do Brasil, no momento em que as

ideias defendidas pelo Nacional Socialismo alemão estavam em alta e contavam

com muitos simpatizantes no Brasil, dentre os quais havia, inclusive, brasileiros de

velha cepa. A maioria destes simpatizantes só reviu esta posição após o descalabro

provocado pela II Guerra Mundial e pela barbaridade do holocausto.

3.2 CONFLUÊNCIAS DO ESPAÇO/TEMPO EM BLUMENTAL

Um rio imita o Reno foi um romance à frente de seu tempo por enfrentar e

afrontar o isolamento dos imigrantes alemães e por denunciar ecos que os

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problemas provocados pelo nazismo trouxeram para os imigrantes e seus

descendentes no Brasil. Vianna Moog transformou este cenário social, político e

cultural em ficção, mas são evidentes as referências à cidade de São Leopoldo nas

décadas de 1920-1930, segundo afirma o historiador Martin N. Dreher (2006, apud

AQUINO, 2007, p. 126):

Vianna Moog leva-nos para Blumental, indiscutivelmente, São Leopoldo. Aqui há uma hidráulica em construção, um Seminário de Formação de Professores protestantes, uma igreja protestante de interior lúgubre, com relógio que bate de quinze em quinze minutos, pastores protestantes, uma Sociedade Ginástica, indústrias alemãs.

Dessa forma, a construção da hidráulica de Blumental, motivo da vinda do

protagonista Geraldo Torres para a cidade sulina, não é alheia à realidade, já que,

de fato, em 15 de novembro de 1925, teve início a construção da Hidráulica de São

Leopoldo (GERTZ apud AQUINO, 2007).

Conforme já abordado por Aquino (2007), quando lançado, Um rio imita o

Reno resultou num grande sucesso de venda, visto que a primeira edição esgotou-

-se em apenas três semanas. Contribuiu para este sucesso o fato de a Secretaria da

Educação do Rio Grande do Sul ter adquirido grande parte da publicação para

distribuí-la às escolas do Estado.

Não se pode esquecer que a publicação do romance Um rio imita o Reno, em 1939, teve um sucesso estrondoso, que fez com que o livro tivesse esgotado sua primeira edição em alguns dias e, assim, servisse à causa da campanha de nacionalização, umas das principais metas do governo de Cordeiro de Farias. O fato de que a Secretaria de Educação tenha adquirido duzentos exemplares para distribuição às bibliotecas escolares do Estado, demonstra a simpatia que as autoridades tributavam ao livro (GERTZ apud AQUINO, 2007, p. 128).

O caráter engajado de Um rio imita o Reno serviu de estímulo ao

nacionalismo brasileiro, dado seu teor nacionalista ao criticar os alemães. Tal

posicionamento de Vianna Moog causou polêmica e o Consulado da Alemanha

interviu na circulação do livro, dispondo-se a comprar todos os exemplares. Esse

fato, segundo Aquino (2007), veio a colaborar para que autor e obra ganhassem

destaque, o que resultou no Prêmio Graça Aranha de Romance, em 1939: o maior

prêmio nacional na época.

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Portanto, há correlação entre o espaço ficcionalizado e a inserção social do

romance, até porque as categorias tempo-espaço não podem ser separadas. Como

afirma Zubiaurre (2000, p. 17), “el espacio, pues, no implica ausência de tiempo, sino

todo lo contrario. Sólo através del espacio logra el tiempo convertirse en entidad

visible y palpable47”.

Um rio imita o Reno situa seu enredo temporalmente durante o Estado Novo

(1937-1945), marcado pelo projeto nacionalista implantado por Getúlio Vargas,

quando, no contexto europeu, estava em curso a II Guerra Mundial, a partir de 1939.

A campanha de nacionalização imposta pelo Estado fez ressurgir o confronto entre

jus soli e jus sanguinis48, num processo de abrasileiramento forçado, dada a

relutância de muitos imigrantes e seus descendentes – sobretudo os alemães, que

eram mais resistentes – em aceitarem a nova cultura. Tais grupos eram “[...]

portadores de identidades étnicas fundamentadas em práticas culturais específicas e

no pertencimento primordial às nacionalidades de origem, com base no direito do

sangue” (SEYFERTH, 1997, p. 98).

Naquele período houve uma grande pressão do Estado para impor a língua

portuguesa e, com isso, quebrar a hegemonia linguística e cultural das comunidades

imigrantes, ainda muito fechadas à mescla cultural e à miscigenação racial. A

comunicação em língua estrangeira foi proibida e, como parte deste abrasileiramento

forçado, as escolas dos imigrantes foram fechadas.

Além desta quebra dos núcleos culturais, também a estrutura econômica e

social foi patrulhada com a proibição dos estabelecimentos comerciais, quase que

exclusivamente estrangeiros, bem como das associações esportivas. Segundo

Seyferth (1991), impôs-se o emprego da língua portuguesa a todos os

“desnacionalizados”, pois se acreditava que a brasilidade só seria atingida por

intermédio da educação: “os alienígenas podiam nascer brasileiros, mas não

pertenciam à nação brasileira” (SEYFERTH, 1997, p. 101).

A assimilação forçada pretendia, portanto, não a troca e interação entre as

culturas em contato, mas a imposição de uma sobre a outra, através da extinção da

alteridade. Os resultados traumáticos causados por esta campanha ficam evidentes,

em Um rio imita o Reno, na fala de Marta Wolff ao relembrar a destruição que os

47 Tradução: O espaço, pois, não implica ausência de tempo, mas exatamente o contrário. Somente através do espaço o tempo pode converter-se em entidade visível e palpável. 48 Expressões latinas empregadas por Seyferth (1997) que significam, respectivamente, direito de solo e direito de sangue.

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militares causaram na colônia. Atenta-se, não obstante, ao fato de que as memórias

daquele tempo não saem pelo discurso da personagem, mas, novamente, pela voz

do narrador:

Protestante casar com católico ainda tolerava. Mas uma alemã com um negro? ... era demais. Uma afronta ao espírito da raça. Pena não poder dizer em voz alta o que pensava, para todos ouvirem. Seria imprudente. Depois da guerra as coisas desgraçadamente tinham mudado bastante. Agora Frau Marta, com arrepio de horror, lembrava o tempo em que os principais da terra tiveram de comprar às pressas bandeiras verde-amarelas para colocá-las no frontispício de suas casas de comércio. Arrepiava-se só de pensar naquelas noites de incêndios e depredações, em que ela, o Paul e os pequenos abandonaram a cidade, para se refugiarem em casa de um colono, no alto do Wintenberg, de onde se via o fogo devorando lá embaixo o edifício da Germânia e do Kolonie-Zeitung [jornal da colônia]. Parecia o fim de tudo, de Blumental, da Alemanha, da civilização (MOOG, 1973, p. 87 – grifo nosso).

Na conturbada década de 1930, quando a II Guerra Mundial se prenunciava

como inevitável, não só os alemães, mas todos os grupos mais fechados,

resultantes da imigração, foram alvo de desconfiança face à alteridade cultural.

A despeito da gravidade de tais fatos, Um rio imita o Reno serviu de

instrumento à campanha de nacionalização dos grupos estrangeiros existentes no

interior do Estado brasileiro49. De modo diferente do que se viu em Canaã, onde os

protagonistas são imigrantes alemães, Vianna Moog dá voz a Geraldo, caboclo do

Amazonas, e a outras personagens brasileiras, para mostrar as implicações da

imigração de alemães para o Brasil sob o outro ângulo.

Assim, a necessidade de uma campanha em prol da nacionalização das

colônias alemãs ressoa pelo discurso da personagem Cordeiro, que, durante um

49 A ideologia do Deutschtum – germanidade – defendida pelos alemães e seus descendentes que estavam estabelecidos em colônias no Rio Grande do Sul, segundo analisa Vogt (2007), se contrapunha à construção de uma identidade nacional, preocupação esta do governo e de grupos de intelectuais brasileiros. A resistência dos alemães à assimilação deu origem ao mito do perigo alemão, analisado por Gertz (1991), que se baseava num “real ou hipotético patrocínio, por parte do imperialismo germânico, de uma secessão de territórios do Brasil Meridional, que deveriam ficar como área de influência econômica ou de dominação direta da Alemanha.” (VOGT, 2007, p. 226). Silvio Romero – na primeira década do século XX – foi um dos intelectuais brasileiros que mais defendeu a tese do “perigo alemão”. Afora isso, havia a disseminação de notícias que afirmavam que o perigo alemão colocava em risco o desmembramento das terras da região Sul brasileira, seguindo um projeto de criação de uma Alemanha sul-americana. Estas ideias, para René Gertz, em O perigo alemão (1991), precisam ser revisadas com maior cautela, pois, apesar de o partido nazista ter angariado a simpatia de muitos brasileiros, em todo o território brasileiro o número de filiados chegou a 2.903, porcentagem quase insignificante se comparada ao número de emigrantes alemães vindos ao Brasil entre 1824 e 1969, aproximadamente 250 mil (DIETRICH, 2007).

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discurso político proferido pelo deputado Eumolpo Peçanha, pede a palavra para

dizer que:

– saibamos dizer aos descendentes de raça germânica – continua o velho Cordeiro – que fazem das lendas do Reno o motivo exclusivo dos seus devaneios, aos que de origem italiana, polonesa ou lusa, que só estremecem de civismo com as epopeias dos seus antepassados, saibamos dizer aos representantes de todas as correntes humanas a quem o Brasil tem dado agasalho, que é preciso, de uma vez por todas, varrer essa errônea concepção de pátria, para se firmar para sempre no Brasil a unidade nacional, pela identidade de tradições, pela unidade da língua, de cultura e de educação, coisas todas do mundo moral, asseguradoras da paz dentro da nação (MOOG, 1973, p. 142).

Ora, tal discurso, indiscutivelmente, é bivocal (BAKHTIN, 1988), visto que nele

ressoam as intenções do autor de apontar para o problema da resistência dos

alemães à interação com os brasileiros. A bivocalidade pode ser percebida na

linguagem daquele que está falando: um velho, filho de fazendeiros do interior do

Rio Grande do Sul, a discursar em um comício sobre concepções tão complexas

como pátria e unidade nacional.

A personagem, ao se apropriar do discurso da intelectualidade e do governo

brasileiro, preocupados com a identidade/hegemonia do país, faz ressoar a voz, a

consciência e intenção do autor ao criticar e denunciar uma realidade de

preconceitos e conflitos. Esta é uma das características essenciais do gênero

romance, seguindo os pressupostos teóricos de Bakhtin (1988), dado que as

linguagens sociais dos gêneros, das profissões, etc., penetram no romance

materializando-se nas diversas vozes que nele ecoam. Ou seja, ao se repetir o

discurso do outro, não obstante o acento pessoal de quem o está repetindo, aquele

discurso continuará remetendo à visão de mundo do outro.

O fato é que – a despeito do reduzido número de filiados – o movimento

nazista50 se desenvolveu e expandiu no Brasil, o que confere certa fidedignidade ao

50 De acordo com Dietrich (2007), para compreender como que o nazismo se estendeu às colônias de emigrantes alemães no Brasil é válido ressaltar que este, enquanto partido, esteve presente em 83 países do mundo, e a intensidade do movimento em cada um destes países esteve atrelada ao número de alemães presentes, como foi o caso dos países que receberam levas significativas de emigrantes. Ademais, parece que o governo brasileiro, durante a era Vargas, teria se silenciado em relação à atuação nazista no Brasil, posto que, inicialmente, havia uma relação amigável entre ambos os países, baseada em interesses comerciais, visto que a Alemanha representava um importante comprador das matérias-primas brasileiras: “como maneira de otimização e mesmo como variável de negociação entre Brasil e Alemanha, foi possível ao partido nazista funcionar de1928 a 1938, oito anos durante a chamada Era Vargas (1930-1945). Só depois de uma década – quando a existência

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romance de Vianna Moog. Apesar dos riscos que a discussão e a denúncia do

racismo e do isolacionismo dos grupos germânicos poderiam acarretar naquela

época, esta questão é tratada com propriedade pelo autor que, ao criticar a

tendência ao isolamento dos imigrantes e seus descendentes, contrapõe-se à

ideologia da superioridade racial germânica, que Zilberman (1982) afirma ter sido

muito forte na época com a ascensão do fascismo da Europa e do integralismo no

Brasil.

O partido nacional-socialista se disseminou pelo Brasil, através de reuniões,

dos jornais, da literatura, das associações esportivas etc. Lopez (1992) analisa que a

ascensão do nazismo foi vista com simpatia na zona de colonização alemã, mas não

só nestas regiões. Entretanto, o autor cita que nunca houve nenhum projeto

consistente de expansão do Reich na América do Sul, visto que o nazismo tinha

interesses em estabelecer e manter um intercâmbio comercial com o Brasil, bem

como preservar a cultura germânica.

Nas comunidades de origem germânica o nacionalismo nazista reacendeu o

sentimento de preservação de tradições culturais ancestrais, o que torna verossímil

a crítica do médico Stahl à filiação da Associação de Ginástica de Blumental à

Alemanha nazista, a fim de que fossem beneficiados com revistas, aparelhos de

ginástica, barracas para acampamento etc.:

[o médico] disse que o preço exigido era muito caro. A Ginástica sempre fora independente e por tão alto preço não deviam comprar um arrependimento. Pagaria do bolso dele as tais vantagens. Se não houvesse gato escondido, deviam aceitar. Mas ele não se enganava. Já tinha percebido o que passava. Tudo obedecia aos planos da Verband Deutscher Vereine im Ausland, de Berlim, com o fim de introduzir nas colônias alemãs o espírito nacional-socialista, por meio de escolas, sociedade e igrejas, sob a direta orientação do Reich... Intercâmbio cultural, remessa de instrutores de ginástica, era só para uso externo... (MOOG, 1973, p. 153)

Em Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil (2007), Dietrich analisa que

o partido nazista se “tropicalizou”, haja vista que houve modificações de conteúdo e

de ideologia com vistas a se adaptar ao contexto brasileiro. Desta forma, no Brasil o

deste partido entrou em confronto com as diretrizes nacionais que proibiam atividades políticas estrangeiras e, ao mesmo tempo, procuravam “nacionalizar” as minorias estrangeiras, intervindo em escolas, clubes, bancos e demais associações estrangeiras, proibindo o uso de outros idiomas em público – o partido nazista se tornou alvo de investigação e controle e foi finalmente proibido em 1938” (DIETRICH, 2007, p. 119-120).

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judeu se transfigurou no negro e no mestiço, cuja diversidade racial confrontava os

fundamentos da raça pura, baseada na doutrina do arianismo.

Vianna Moog se ateve à questão da infiltração nazista através da atitude de

Karl Wolff em relação à vinda repentina de seu primo da Alemanha:

e se primo Otto trouxesse uma missão do governo alemão? Sim, era bem possível. Havia colônias alemãs em todo o sul do Brasil. Era preciso organizá-las, levar para a Grande Pátria documentos que dessem ao Führer uma ideia das possibilidades da colônia. Primo Otto... Missão secreta... Havia de lhe contar coisas, dar-lhe-ia informações preciosas (MOOG, 1973, p. 169).

Entretanto, subliminar à história de amor entre Geraldo e Lore Wolff está a

discussão central do autor rio-grandense sobre o racismo e o nazismo alemão. Em

relação a esta questão devem ser levados em conta dois aspectos importantes

sobre a visão do outro: como o alemão via o brasileiro? Como o brasileiro reagia a

esta visão? Os nazistas que se encontravam no Brasil consideravam a população

brasileira inferior pelo seu caráter mestiço, sendo frequente o emprego de

classificações pejorativas como “macacos”, conforme se evidenciou no capítulo

anterior.

nas veias de Frau Marta não corria sangue nobre, mas ela tinha orgulho de sua raça, orgulho de descender de alemães, de haver casado com um filho de alemão. Ela mesma se considerava alemã. A raça nada tinha a ver com o lugar de nascimento. Não, não havia de tolerar a ameaça de um intruso na família, um negro. Para Frau Marta quem não tivesse sangue ariano puro estava irremediavelmente condenado: era negro. Lore havia de se casar com um filho de alemão, se possível com um alemão (MOOG, 1973, p. 85).

Institucionalmente, o casamento com pessoas mestiças fora proibido pelo

partido, explica Dietrich (2007), e muitos descendentes de alemães se mantiveram

fiéis a esta ideologia. Se por um lado Hitler atuou através de um partido extremista,

antissemita e fantasista, por outro, correspondia ao líder capaz de construir a

unidade desejada pelos alemães, capaz de representar o povo e de compartilhar

com ele as mesmas necessidades emocionais implícitas à formação do estado

alemão. É a tais ideais que Marta Wollf, mãe de Lore, é leal: ela desprezava os

judeus, os negros e o Brasil, e não admitiria que a filha, uma alemã de raça “pura”,

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se casasse com um negro, “cuja cor é como signo cultural/político de inferioridade ou

degeneração, a pele como sua identidade natural” (BHABHA, 2005, p. 123).

Embora o sujeito negro e/ou mestiço se torne invisível para o homem branco,

a sua pele, como significante da discriminação, é processada como visível. Trata-se

de um esquema epidérmico, assim chamado por Franz Fanon, e não é, como o

fetiche sexual, um segredo, explica Bhabha (2005). Pelo contrário, ele é visível,

“reconhecido como ‘conhecimento geral’ em uma série de discursos culturais,

políticos e históricos, e representa um papel público no drama racial que é encenado

todos os dias nas sociedades coloniais” (BHABHA, 2005, p. 121). Portanto, há

sempre uma relação com a cor da pele, e esta relação está fixada como racismo e

estereótipo, de modo que sempre se “sabe”, de antemão, “que os negros são

licenciosos e os asiáticos dissimulados” (BHABHA, 2005, p. 117) e os alemães,

nazistas.

Com o projeto nacionalista de Vargas, o preconceito evidente dos alemães

em relação aos brasileiros precisou ser dissimulado. Entretanto, esta contenção em

relação à discriminação não significa que o preconceito havia enfraquecido, pois

este não é neutralizado a curto prazo nas estruturas psíquicas do indivíduo.

Em vista disso, em Um rio imita o Reno Viana Moog insere no romance um

caboclo que tem voz, que compartilha com o leitor a discriminação e a opressão que

sofre em Blumental em função da sua condição de mestiço tipicamente brasileiro. É

em função desta mescla de povos que, desde o início da colonização, constituiu o

que veio a ser o povo brasileiro. Ou seja, Geraldo seria um brasileiro típico e, como

tal, é classificado por Frau Marta como negro e como índio selvagem por Karl Wollf,

irmão de Lore, num processo de anulação das diferenças à medida que ser mulato,

negro, mestiço ou índio daria no mesmo, ou seja, era impuro.

Tais classificações preconceituosas e redutoras tendem a desestabilizar os

indivíduos que as sofrem, e é por isso que Geraldo passa a duvidar de seu próprio

valor e a se resignar à inferioridade com que o outro o tipifica, como bem descreve o

narrador. “Não havia dúvida. Eles o desprezavam. Eram brancos, louros, tinham os

olhos azuis, o corpo esbelto, o sangue puro. Raça de guerreiros e artistas” (MOOG,

1973, p. 145). Segundo Bhabha (2005), é extremamente relevante observar como

são construídas, no sistema textual, as diferenças nacionais e culturais a partir do

uso de semas como “mistura”, “impureza” e “estrangeiro”.

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Blumental anula a individualidade e as diferenças das pessoas, as quais

parecem sofrer um processo de canalização: ou se é branco, ou se é negro, dado

que “As lendas, estórias, histórias e anedotas de uma cultura colonial oferecem ao

sujeito um ‘ou/ou’ primordial” (BHABHA, 2005, p. 117).

No entanto, ainda de acordo com Bhabha (2005), não basta reconhecer as

imagens positivas e negativas que o texto traz, pois julgar a imagem estereotipada a

partir de uma normatividade política significa, segundo o autor, apenas descartá-la,

mas não implica necessariamente seu deslocamento.

3.3 CORDIALIDADE BRASILEIRA VERSUS AUSTERIDADE ALEMÃ

Geraldo foi expulso de Blumental, o que ocorreu através do “jeitinho

brasileiro”, associado ao “você sabe com quem está falando?”, expressões estas

analisadas em outro contexto por Damatta (1990). Paradoxalmente, a despeito de

estas características negativas remeterem à cultura brasileira, é delas que Frau

Marta se vale para afastar de Lore o engenheiro: “entre o major e Herr Wolff

estabelecera-se um pacto sujo, sórdido, ignóbil. Herr Wolff daria seu apoio ao

prefeito, desde que esse fizesse com que o engenheiro fosse compelido a

abandonar Blumental para sempre” (MOOG, 1973, p. 159-160).

Conforme analisa Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1995), é

característico do homem cordial estabelecer uma relação promíscua entre o público

e o privado, ou seja, o brasileiro compreenderia tudo o que é público como extensão

da sua casa, portanto, como seu.

Aqui está o sentido que o estudioso conferiu à cordialidade, enquanto

característica marcante do modo de ser brasileiro: a dificuldade de cumprir ritos

sociais, ou seja, a quebra da formalidade, a prevalência de relações intermediadas

pela gentileza e pela afetuosidade, o uso exagerado de diminutivos, o

estabelecimento precoce de amizade entre as pessoas, enfim, a predominância da

informalidade e da pessoalidade nas relações que demandam formalidade. Tal

cordialidade não deve ser confundida com bondade, uma vez que, embora o

brasileiro seja identificado como “bonzinho” e “pacífico”, isso não significa que ele

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tenha sempre e em qualquer situação boas maneiras e civilidade51, segundo

Holanda (1995). Isto se aplica com justeza à fala de Armando que, assim como

Geraldo, fora expulso de Blumental, neste caso, por não atender aos favores

pessoais que o prefeito da cidade lhe pedira:

imagina você que o homenzinho [o prefeito de Blumental] entendeu novamente de manobrar comigo. Queria que eu sapecasse multas nos inimigos dele e poupasse os amigos. Estrilei... Com jeito, claro, mas estrilei. E o homenzinho não descansou enquanto não conseguiu a minha transferência (MOOG, 1973, p. 201).

Portanto, Moog não se atém, apenas, aos aspectos negativos da cultura

alemã, mas também, e de forma muito pertinente, a alguns vícios entranhados na

cultura brasileira desde o início da sua formação. O prefeito busca através do

“jeitinho” impor seus interesses pessoais, tornando-os superiores ao que seria legal

e justo. Para tanto, ele se vale da hierarquia social para, em nome do “Você sabe

com quem está falando?”, transferir Armando de cidade devido ao fato de ele não ter

acatado sua ordem, camuflada por um aparente pedido cordial. Nesse sentido,

“Você sabe com quem está falando?” é um instrumento social, uma resposta à

tentativa de imposição da lei impessoal, numa sociedade em que a estrutura e a

hierarquia sociais estão baseadas nas relações pessoais, na intimidade e ou

intimidação social.

Assim, por meio do comportamento do prefeito, Vianna Moog apresenta

ironicamente o ritual brasileiro de autoridade, baseado nas hierarquias sociais. Até

porque, como compreendeu Damatta (1990), no Brasil, os conflitos são evitados

para não alterar os lugares sociais, já que o lugar que cada um deve ocupar já está

predeterminado em uma sociedade que pretende ser igualitária, mas que permite

que as leis, que deveriam ser isentas, sejam aplicadas de forma personalista,

dependendo de a quem ela se aplica.

51 Nas palavras do autor, “a lhaneza no trato, a hospitalidade, e generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir- -se em mandamentos e sentenças” (HOLANDA, 1995, p. 146).

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São traços como estes que Geraldo volta a criticar no desfecho do romance,

pois estes seriam a causa da falta de apreço dos alemães de Blumental pelos

brasileiros, com cujo posicionamento a personagem se vê obrigada a concordar:

– Aí tens... Só mesmo por um milagre de boa vontade poderiam [os alemães] ter apreço por nós. Mas, como podem nos estimar, que respeito podem ter por nós, quando examinam o elemento humano de que é composta a nossa gente? Atenta para a figura mais representativa de Blumental: o prefeito – um pulha. Olha o promotor – outro pulha. O secretário – talvez um bom sujeito, mas uma cavalgadura [...]. [personagens brasileiras] – Que antro indecente de jogatina [o Grêmio cívico 15 de novembro]! Que espelunca sórdida! Dali só saía dinheiro para o major manter a capangada... Ora, você compreende... que respeito podem ter por nós, vendo essas coisas, eles [os alemães] que são educados no culto da probidade e do respeito às leis? Terão lá seus defeitos, mas neste ponto não vejo por onde atacá-los. Que juízo poderão fazer dos brasileiros? (MOOG, 1973, p. 202-203).

Revertendo este quadro, a representação dos alemães de Blumental retoma o

estereótipo da rudeza, da frieza e da aversão deles ao sentimentalismo. No plano

afetivo, a comparação entre brasileiros e alemães é desvelada por Lore ao comparar

o comportamento de sua mãe ao dos pais brasileiros: “como era bonito o abraço

brasileiro, um pai acariciando a cabeça da filha. Sua mãe era diferente. Nunca lhe

dera um beijo. Não que não a amasse. Mas era o jeito dela. Horror ao

sentimentalismo” (MOOG, 1973, p. 79).

Vianna Moog deixa entender que tais traços seriam inatos aos alemães, ou

que estariam consolidados na formação cultural daquele povo, conforme os

aspectos citados no capítulo anterior sobre a educação e a estrutura autoritária do

Estado. A despeito da construção da personalidade e da dificuldade de transformá-

-la, Karl Wolff confirma que sua rudeza estava internalizada de modo que não

conseguia se desvencilhar desse modo de ser.

Amava Lore, à sua maneira. Sempre fora rude para com ela. De resto, era brusco e rude para com toda a gente – o pai, os empregados, os amigos, a sua própria mulher. Só ele sabia os esforços que já fizera para não ser assim, para tratar os outros com delicadeza. Mas nunca acertara em ser agradável. Era-lhe uma impossibilidade física, congênita, orgânica, mais forte que ele. Via que só conseguia magoar, mesmo quando sua intenção era agradar. Como é que os outros poderiam ser naturalmente amáveis? (MOOG, 1973, p. 183).

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Tais características estariam anulando a diferença entre as pessoas, tendo-se

se em vista que, na trajetória das personagens de Um rio imita o Reno, nem todos

os alemães são avessos ao sentimentalismo, como Lore, por exemplo.

A cozinha alemã também é um libelo contra os alemães e, para tanto,

estabelece-se na obra um diálogo intertextual entre o pensamento de Geraldo – que

é desvelado pelo narrador – e a crítica que Nietzsche lançou sobre os hábitos

alimentares dos alemães:

Estar à mesa é um verdadeiro pecado contra o Espírito Santo... A sopa antes das refeições: a carne demasiado cozida; os legumes fervidos com muita gordura e farinha; os doces, duros como ladrilhos; a necessidade verdadeiramente bestial dos alemães de beber cerveja... é de onde provém o espírito alemão: dos intestinos empanturrados (MOOG, 1973, p. 124).

Há, portanto, a reprodução de um discurso que rejeita as tradições culinárias

da cultura alemã, reduzindo-as a um conjunto limitado de características que

reafirma o estereótipo do alemão que “come e bebe exageradamente”: “todo o Ecce

Homo, partindo da cozinha alemã, era afinal um libelo contra os alemães. ‘Quando

pretendo imaginar um homem que repugne a todos os meus instintos, surge-me logo

à mente um alemão’” (MOOG, 1973, p. 135).

É natural que os hábitos alimentares variem de uma nação para outra, dado

que o seu gosto está condicionado a uma série de aspectos naturais – visto que os

alimentos disponíveis em cada região moldam o paladar e a cultura alimentar –

culturais, históricos, econômicos e religiosos que definem o que é bom ou ruim, o

que pode, ou não, ser ingerido. Por conseguinte, as diferenças culinárias de uma

cultura para a outra geram estranhamentos, de modo que os alemães se

comprazem com a carne de porco, que os judeus, por sua vez, não consomem.

Os hábitos culinários de uma nação não decorrem somente do mero instinto de sobrevivência e da necessidade do homem de se alimentar. São expressão de sua história, geografia, clima, organização social e crenças religiosas. Por isso, as forças que condicionam o gosto ou a repulsa por determinados alimentos diferem de uma sociedade para a outra. O gosto, que muitos acreditam ser próprio, é uma constelação de extrema complexidade na qual entram em jogo, além da identidade idiossincrática, fatores como: sexo, idade, nacionalidade, religião, grau de instrução, nível de renda, classe e origem sociais. O gosto é, portanto, moldado culturalmente e socialmente controlado (FRANCO, 2001, p. 23-23).

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Em vista disso, quando Geraldo rememora passagens do Ecce homo nas

quais a culinária alemã é achincalhada, é evidente a contraposição e o confronto de

tradições, valores e gostos condicionados pela cultura de cada povo. É por isso que,

na primeira refeição de Geraldo e de Armando Seixas, no restaurante do hotel em

que estavam hospedados, Armando rejeita o prato do dia, que era Klösse: “eles

usavam isso na guerra como granada de mão e querem agora dar pra gente comer”

(MOOG, 1973, p. 17).

Para além das considerações de Nietzsche sobre os alemães, Geraldo

consegue sistematizar suas conclusões sobre aquele povo quando volta de um

Kerb: “primeira realidade: povo de boa-fé, sempre à procura de um Führer, capaz de

ser conduzido para o bem ou para o mal [...]; Terceira realidade: povo sem senso

político...” (MOOG, 1973, p. 135-136). Esta afirmação remete à história da formação

do Estado alemão, segundo a qual os alemães seriam incapazes de viver sem

discórdias e disputas entre si. Da falta de senso político – que Geraldo também

menciona – resultou o desejo de unidade e de ser conduzido por um chefe, desejo

este que influenciou diretamente na ascensão de Adolf Hitler ao poder. Em outra

ocasião, esta questão é reafirmada pelo médico alemão Stahl, durante sua conversa

com Frau Marta: “desde que leram o Velho Testamento [os alemães] ficaram

malucos. Andam sempre à procura de um Moisés e com essa mania de

superioridade de raça...” (MOOG, 1973, p. 108).

Afora isso, Geraldo reconhece características muito positivas nos alemães:

“segunda realidade: povo inteligente, de inteligência lógica, metafísica [...]; Verbotten

[proibido], palavra sagrada para os alemães [...]; Quinta realidade: povo de instinto

musical e poético (MOOG, 1973, p. 135-136)”. Tais considerações desvelam que

Geraldo não se limitou a um olhar estereotipado e negativo sobre o outro, pois ele

não busca a autoconfirmação de pré-julgamentos, mas, ao contrário, tenta entender

a diversidade cultural do outro em seus aspectos positivos e negativos. Esta forma

de ver o outro é muito importante, porque, como percebeu Ina Ulrike Paul,

historiadora que está desenvolvendo um estudo sobre estereótipos, ligados ao

julgamento de alemães “o observador tem certas expectativas e deixa que elas

determinem sua percepção", afirma. "Ou seja, nossas impressões pessoais são a

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exceção: mesmo não tendo visto nenhum alemão bêbado, eles bebem demais –

como todos sabem"52.

São as diferenças e estereótipos representados em Um rio imita o Reno que

atuam como fatores de rejeição e exclusão entre alemães e brasileiros: a rudeza, a

superioridade, a inteligência, o progresso, a ordem e a frieza constituem o

estereótipo dos alemães, ao passo que o brasileiro é o estereótipo da inferioridade,

da incapacidade, da “cordialidade” e da submissão. Desconstruir tal visão que falseia

e limita a realidade é tarefa complexa, quando se percebe que a trajetória das

personagens está determinada por estereótipos profundamente arraigados na

personalidade e no imaginário e quando estereótipos são empregados para justificar

as circunstâncias nas quais grupos marginalizados se encontram. O estereótipo é “o

desejo de uma originalidade que é de novo ameaçada pelas diferenças de raça, cor

e cultura” (BHABHA, 2005, p. 117).

3.4 VIANNA MOOG: UM CRÍTICO DESTEMIDO

A oposição de Lore Wolff e do médico Stahl em relação aos brasileiros mostra

que nem todos os imigrantes eram avessos à interação e à miscigenação com

outros povos. Da página 108 à 111 há uma quebra na progressão do enredo,

quando o narrador se atém à postura do médico Stahl, que tem uma acalorada

discussão com Frau Marta e Karl a respeito da legitimidade dos princípios raciais de

pureza:

– Essas ideias são ideias de judeu. Nem parece que o doutor acaba de receber da Alemanha a sua árvore genealógica. – Atirei ao lixo o papel que aqueles idiotas me mandaram. Que me adianta saber que tenho sangue alemão desde o século XV? – Deixa, Karl. No fundo ele está bem faceiro – afirmou Frau Marta. – Ora, falar de raça pura na Alemanha e na Itália! A Itália, um ninho de úmbrios, vênetos, árabes, norte-americanos, judeus, turcos, tudo. A Alemanha, o ponto de passagem de todas as invasões bárbaras do Oriente para o Ocidente, o cadinho de cruzamento de bretões, germanos, de chineses, tártaros, mongóis [...]. Aliás, os nossos melhores pensadores e artistas, os Bach, os Händels, os Nietzsches, tinham sangue de eslavo ou de judeu nas veias... (MOOG, 1973, p. 109).

52 Disponível em: <http://www.dw.de/a-for%C3%A7a-dos-estere%C3%B3tipos-na-imagem-das-na%C3%A7%C3%B5es/a-16829694>. Acesso em: 08 de set. 2013.

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Veja-se que é da perspectiva de um alemão que parte a crítica e o

enfrentamento da ideia de pureza e superioridade racial dos alemães, pois, se os

judeus, por exemplo, eram inferiores, conforme assegurava Frau Marta, como

explicar a genialidade de Bach, Händel e Nietzsche? Sobre a “inferioridade inata”

dos negros, o médico explica para Frau Marta que ela provém da escravidão –

portanto, de contingências econômicas e sociais – não podendo ser justificada pela

raça.

– Mas na Alemanha não há negros – contraponteou Frau Marta. – O doutor vai querer nos convencer que um negro é igual a um branco? – E por que não? Se vocês pensam que a inferioridade deles vem da raça, estão enganados. Vem da escravidão, do regime em que viviam. – O doutor conhece algum negro que preste? – Uma infinidade. Os Estados Unidos estão cheio deles. Grandes escritores, grandes músicos, grandes cantores... (MOOG, 1973, p. 109).

Ao mesmo tempo em que Viana Moog traz à tona estereótipos e preconceitos

tão arraigados em relação à população negra no Brasil, há outra linha que entrecorta

o romance e enfrenta de forma contundente tais discursos. Ao fazer isso, o autor

mostra que subverter preconceitos raciais, legitimados por teorias delirantes e

arraigados na estrutura psíquica das pessoas, demanda grande empenho, conforme

se depreende da fala do médico:

– O senhor casaria com uma preta? – pergunta Karl.

– Não, não gosto de negros. Mesmo que o quisesse, por um ato de vontade, não podia. Fui educado já com preconceitos raciais. Nesse tempo a Alemanha andava maluca com as teorias de Chanberlain e Gobineau. Agora seria difícil desintoxicar-se por completo. Infelizmente, não há purgativos espirituais para lavar a gente por dentro. – Não, essa repulsa é inata no branco. – Absolutamente. Agora mesmo encontrei aí na calçada o Paulinho brincando com os mulatinhos do Cardoso... Estava alegre e não me parecia repugnado. Pelo contrário: nunca o vi tão contente... (MOOG, 1973, p. 110-111 – grifo nosso).

O médico Stahl não discrimina os negros, ou melhor, não apresenta

comportamento discriminatório, mas isto não significa que ele consiga se livrar

totalmente dos preconceitos que lhe foram inculcados. E, como a personagem

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deixou claro, uma vez entranhado, o preconceito passa a fazer parte da

personalidade das pessoas e se exterioriza nas mais diversas situações como, por

exemplo, na aversão pela escolha de uma parceira negra. Dessa maneira, o que

Vianna Moog quer mostrar é que não basta, apenas, enfrentar os preconceitos,

porque a prova da sua inverdade ou a inversão do seu conteúdo é totalmente

ineficaz face à estrutura psicológica já determinada por crenças, valores e atitudes.

Seguindo tais considerações, Vianna Moog, ao invés de mostrar a inverdade

dos preconceitos de Marta Wolff, desloca-os para a estrutura interna da

personagem, num doloroso processo de desconstrução de suas referências e

crenças. A família Wolff, no período em que Lore adoecera, recebera a visita

inesperada do primo Otto: um genuíno alemão. Entretanto, ao invés das notícias

esperadas sobre os avanços e a modernização da Alemanha em função do

nacional-socialismo, Otto revela que tal realidade não existia: “a realidade cotidiana

é negra: os campos de concentração... aperturas de toda a sorte, perseguições,

barbaridades, banimentos, assassínios...” (MOOG, 1973, p. 177).

Otto descreve para a família Wolff a censura, a miséria, o exílio dos maiores

pensadores da Alemanha, até chegar a sua revelação final: “Depois que

descobriram que nós temos sangue judeu, não duvido de mais nada [...]

Descobriram que nosso bisavô, de Francforte, tinha sangue judeu. Coisa que

nenhum de nós sabia... Vi os documentos... Não há dúvida...” (MOOG, 1973, p. 191-

192). É inquestionável que Vianna Moog foi certeiro ao subverter o olhar depreciador

e racista de Marta Wolff sobre o outro, o negro, o judeu, o não ariano. Como num

jogo de espelhos, o olhar lançado pela personagem, ao refletir no outro, retorna para

si e para os demais alemães que se consideravam arianos e odiavam judeus e

negros.

Se o inimigo estava do lado de fora da casa – cidade – dos alemães, a partir

da vinda de Otto ele passa a estar dentro, e então se torna impossível combatê-lo. A

revelação do sangue judeu de Marta é fatal, é um libelo modelar contra as

pretensões de classificação racial e de privilégios, pois volta “o feitiço contra o

feiticeiro”. Apesar da expulsão do intruso Geraldo – cujo sangue “impuro” macularia

a pureza ariana – o estrangeiro, o outro, já estava dentro da casa e nela adentrou de

forma irremediável pelas vias do sangue judeu.

Vianna Moog compreendeu que o problema do outro e da relação conflituosa

que se estabelece entre os sujeitos não se resolve pelo enfrentamento das

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diferenças, mas pelo desdobramento e descentramento da verdade preestabelecida

(BHABHA, 2005). O autor mostra que o outrem, o estranho que se revelou para

Marta, é a manifestação da invalidade de se querer defender uma identidade pura e

fechada.

Primo Otto chegara como um cataclismo que tudo destrói, transforma e subverte. A revelação de que os Wolffs tinham sangue judeu deixara Frau Marta de tal modo abalada que ela parecia ter envelhecido muitos anos naqueles poucos dias. Já não mantinha a mesma rigidez dos velhos tempos. Andava taciturna, perdera o ar autoritário, a postura orgulhosa, já não gostava de dar ordens com voz de comando. Frequentava ainda mais a igreja e, quanto à Alemanha, ao arianismo e à pureza racial, ninguém lhe ouvira mais nenhuma palavra. Não se pronunciara mais o nome de Geraldo naquela casa (MOOG, 1973, p. 195).

Neste capítulo, portanto, analisou-se como a configuração do espaço de

Blumental, a partir da percepção do protagonista Geraldo, revela uma comunidade

de imigrantes e descendentes alemães que busca reatualizar e reviver a pátria

distante e há muito transformada em um ideal e imaginário, preservando sua

identidade e tornando mais suportáveis as mudanças e o estranhamento causado

pela imigração.

Desta perspectiva, Blumental representa simbolicamente a casa dos alemães.

Entretanto, mostrou-se que naquela fictícia cidade o sentimento de pertencimento ao

Estado alemão toma dimensões trágicas, resultando no seu isolamento e

preconceito em relação aos brasileiros.

O autor aponta, também, a invalidade de preconceitos e estereótipos, pois

nas novas gerações a sua permanência estava ameaçada: ainda que Lore e

Geraldo não tenham ficados juntos, visto que os preconceitos ainda prevalecem

sobre os laços afetivos e sociais, o amor entre ambos foi recíproco.

Embora exista na obra analisada o discurso opressor que se fixa sobre o

outro e o enclausura a estereótipos e a tradições ideológicas, Lore e Geraldo, bem

como o pequeno Paulchen – promessa de futura integração cultural – mostram o

espaço produtivo que se estabelece entre o eu e o outro, bem como a invalidade da

busca por uma identidade pura e fechada, que não contenha como condição de sua

própria existência as marcas do outro (BHABHA, 2005). Quando há encontros

culturais, todos os envolvidos são afetados “[...] pelas estranhas forças da raça, da

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sexualidade, da violência, das diferenças culturais e até climáticas [...]” (BHABHA,

2005, p. 164).

A articulação social da diferença, por conseguinte, é uma negociação

complexa, que permite a emergência de hibridismos culturais em momentos de

transformação histórica (BHABHA, 2005, p. 21).

Na sequência, o capítulo quatro se aterá à análise do romance A ferro e fogo,

de Josué Guimarães.

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4 ENTRE A RESISTÊNCIA E A RENDIÇÃO: OS ALEMÃES EM A FERRO E

FOGO

Esta história começa com a chegada, no Rio Grande do Sul do bergantim Protetor, em 1824, trazendo no seu precário bojo de madeira 38 colonos alemães destinados à extinta Real Feitoria do Lingo Cânhamo, no Faxinal da Courita, hoje São Leopoldo. Depois deles, outros tomaram o mesmo caminho, trazidos a tanto por cabeça, por um aventureiro internacional, o Major Jorge Antônio Schaeffer. Muitos conseguiram sobreviver. Bem, mas então temos a história de homens e mulheres em solidão que plantaram as suas raízes, a ferro e a fogo, nas fronteiras movediças dominadas por castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses (GUIMARÃES, 1972, p. 01).

É assim que Josué Guimarães inicia a trilogia inacabada – visto que o terceiro

volume, que seria sobre os Muckers, não foi concluído – A ferro e fogo I: tempo de

solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975), sobre a temática da saga

da imigração alemã para o Rio Grande do Sul. O autor situa a narrativa inicialmente

em 1824, ano em que teve efetivamente início o processo migratório alemão para o

Brasil, com a fundação da colônia de São Leopoldo. A obra foi escrita em Portugal,

quando o autor estava exilado em razão do Golpe Militar no Brasil, de 1964, e narra

a trajetória da família de imigrantes alemães Daniel Abrahão Lauer Schneider e sua

esposa Catarina.

Nos moldes do romance histórico, a narrativa faz remissão a episódios reais,

como a Guerra Cisplatina (1825-1828), a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a

Guerra do Paraguai (1864-1870). Entretanto, as referências a estes fatos históricos e

a outros fatos regionais e biográficos se dão com a liberdade de uma obra ficcional,

portanto, não têm compromisso factual com a história.

Josué Guimarães, ao situar a saga do imigrante alemão no Rio Grande do

Sul, busca criar no leitor a ilusão de tratar-se de uma história real. Sob a perspectiva

microcósmica do cotidiano da família do seleiro Daniel Abrahão Lauer Schneider, o

autor faz uma desconstrução do discurso historiográfico e literário sobre a temática

da imigração alemã. Para tanto, de maneira dialógica, vozes sociais diversificadas

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se imbricam à narrativa com vistas a desconstruir qualquer visão ufanista tanto em

relação à nova terra quando ao país de origem dos protagonistas.

O escritor soube construir uma visão dialética da realidade, posto que funde

com muita propriedade as adversidades de uma região praticamente desabitada e

os conflitos do indivíduo em sua relação com o outro, com a sociedade e consigo

mesmo. A preocupação de Josué Guimarães, para além de dados históricos

regionais e da manutenção de um discurso estereotipado sobre o imigrante alemão,

está centrada no homem e na sua trágica existência. Tal como Simões Lopes Neto,

Josué Guimarães trabalha com a matéria regional, mas supera a ficção regionalista:

não tive maiores influências de autores gaúchos. Para citar alguns, prefiro lembrar Graciliano Ramos, Machado de Assis e o próprio Jorge Amado, pela temática popular. Além, é claro, dos grandes nomes do romance francês, dos contemporâneos norte-americanos e dos latino-americanos desse século [...]. Não posso me considerar um escritor regional, meus temas giram em torno do homem, seus conflitos e contradições: a paisagem quando existe, vale apenas para dar acabamento à pintura. Minha linguagem não é gaúcha, esforço- -me para que não seja, morei muitos anos fora daqui (GUIMARÃES, 2006, p. 13-14- grifo nosso).

Por conseguinte, o discurso literário de A ferro e fogo, ao se ater às relações

históricas e culturais entre o Brasil e outros países, neste caso, sobretudo a

Alemanha, traz uma importante contribuição para o processo de internacionalização

das tradições literárias brasileiras.

O caráter global da obra é evocado pela temática da dinâmica migratória, que

é uma das condições de definição sócio-histórica da humanidade, levando-se em

conta que “bem antes da expansão europeia [...] a migração e os deslocamentos

dos povos têm constituído mais a regra que a exceção, produzindo sociedades

étnica ou culturalmente ‘mistas’” (HALL, 2003, p. 55).

A trama de A ferro e fogo está pautada tanto nas dificuldades reais sobre o

início da imigração quanto nos conflitos entre o eu e o outro, muito diverso

culturalmente. Josué Guimarães resgata a saga do imigrante alemão para o Sul do

Brasil e confere lugar mais descentralizado – se comparado às obras Canaã e Um

rio imita o Reno, nas quais ora os imigrantes alemães são representados como

superiores pela raça, ora desprezíveis por serem germanófilos – às personagens

alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de negação e preconceito, mas,

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também, de enfrentamento das adversidades, de luta pela sobrevivência, de

coragem e de resistência face aos grandes desafios na nova terra.

Tal descentralização se opera, primeiramente, pelo fato de o romance se

situar espacialmente em uma zona de fronteiras movediças, cercada por diversos

grupos culturais em contato: índios, portugueses, castelhanos, negros e imigrantes

europeus. A ficcionalização de um espaço cultural e étnico tão diverso e conflitante é

um elemento fundamental em A ferro e fogo e ganha destaque durante um dos

principais momentos de deslocamento da família de Daniel Abrahão na narrativa,

isto é, de São Leopoldo rumo ao Chuí, na estância de Jerebatuba, uma vez que no

caminho percorrido entram em cena, por exemplo, soldados espanhóis. Esta

composição do espaço narrativo reforça a ideia de um território desprotegido em

suas fronteiras, isolado e sem dono, disputado pelas tropas brasileiras e castelhanas

pela delimitação da região.

Quanto mais perto da fronteira, mais cruzavam com espanhóis de chiripa, pele queimada de sol, olhinhos espremidos de índio. Juanito apontava para um lado e dizia soletrando as palavras “Lagoa Mirim”. Apontava para o lado contrário e dizia “Lagoa Mangueira”. Então, dizia Daniel Abrahão para a mulher, o mar não ficava bem ali. Mas o cheiro que o vento trazia era de mar, se não ficava perto era coisa de pouco além. As carroças prosseguiam inventando estradas pelos campos (GUIMARÃES, 1972, p. 21).

Ao discutir sobre os traços identitários transnacionais, marcantes na cultura

do Rio Grande do Sul, Cicero Galeno Lopes (2010) aponta que a cultura gaúcha foi

se formando entre as linhas fronteiriças atuais da Argentina, do Brasil e do Uruguai.

O transnacionalismo se constitui na premissa principal para a recusa de definições

identitárias fechadas, já que o conceito “implica um processo segundo o qual

formações identitárias tradicionalmente circunscritas por fronteiras políticas e

geográficas vão além de fronteiras nacionais para produzir novas formações

identitárias. [...]” (PETERSON, 2008, p. 96 apud LOPES, 2010, p. 362).

De acordo com Gonzáles (2010), James Clifford, em Itinerarios transculturales

(1999), discute sobre a questão das fronteiras como forma particular de

deslocamento, pois, em zonas de contato, as identidades diaspóricas, fronteiriças e

híbridas “tendem a unir idiomas, tradições, imaginários, sempre de maneira criativa,

‘articulando pátrias em combate, forças da memória, estilos de transgressão, em

ambígua relação com as estruturas nacionais e transnacionais’” (GONZÁLES, 2010,

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p. 112). Desta perspectiva, também Homi Bhabha (2005) ressalta que, enquanto

inovação teórica e importância política, é necessário “focalizar aqueles momentos ou

processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-

lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação [...]

que dão início a novos signos de identidade...” (BHABHA, 2005, p. 20).

O que se quer afirmar, portanto, é a localização estratégica das personagens

de A ferro e fogo no espaço geográfico do pampa, transnacional, propício a trocas

culturais. A partir do momento em que Josué Guimarães olha esta região sob a

perspectiva das fronteiras territoriais, linguísticas e culturais que lhe são inerentes,

ele representa um modelo de nação interculturalizado.

Afora o espaço ficcional transnacional, a representação estereotipada e

fechada do imigrante alemão é deslocada através do caráter dialético que constitui

as personagens de A ferro e fogo, pois, com elas – sobretudo com Daniel Abrahão,

Catarina e Gründling – abre-se espaço para a “encenação de a que ponto de

penúria e grandeza podem chegar as sociedades e os homens na luta pela

sobrevivência dos sonhos, ideais e ambições mais dignos ou comezinhos”

(MARTINS, 1997, p. 46).

Gründling se aproxima muito do perfil de Lentz, de Canaã, e de Frau Marta,

de Um rio imita o Reno, por ser um sujeito emparedado a preconceitos raciais, e que

se mantinha no Brasil com o propósito explícito de exploração e de enriquecimento:

“[...] é preciso que a gente que vem da civilização abra bem os olhos e trate de

ganhar dinheiro. É o que importa, meu caro, ganhar dinheiro.” (GUIMARÃES, 1972,

p. 16).

O comportamento de Gründling em relação aos negros e aos índios é de

exclusão e frieza, visto que ele os descreve como “bastos” para o trabalho braçal e

os compara aos animais, reproduzindo o discurso socialmente construído que

buscou justificar a relação de opressão e exploração do colonizador europeu em

relação ao colonizado e do senhor em relação ao escravo: “digo a vocês agora que

Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol

que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles tem mais casco que

fazem inveja de quanta mula existe por aí [...].” (GUIMARÃES, 1972, p. 7). E

acrescenta: “para domar cavalo xucro, camperear, marcar boi, castrar bicho e servir

mate, que vocês pensam que o diabo inventou? [...] que para isso o diabo inventou o

índio, o bugre, que forma com o cavalo um só corpo...” (GUIMARÃES, 1972, p. 8).

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Tal discurso respalda-se na ideologia colonial, cujo objetivo é “apresentar o

colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial

de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e

instrução” (BHABHA, 2005, p. 124). Tendo-se em vista o contexto histórico e social

representado por Josué Guimarães – quando a escravidão ainda estava totalmente

legitimada pelo discurso oficial nas colônias – as diferenças de raça, cor e cultura

são anuladas num processo automático de recusa por Gründling, que vê o índio e o

negro como animais. Estes traços remetem às relações que, desde o início do

“descobrimento do Novo Mundo”, foram estabelecidas e institucionalizadas pela

Europa em relação à América, definindo o que era civilização, cultura ou barbárie.

“No ‘novo’ mundo a atividade do descobrimento esteve, desde o início, ligada à da

conquista. Reconhecer o outro em sua estranheza era impensável”53 (RINKE, 2008,

p. 47 – grifo nosso).

Neste sentido, a fala de Gründling alude à posse violenta da terra e à

submissão dos índios ao colonizador. Posteriormente, também os negros foram

trazidos para a América e submetidos a tal jugo por um processo de escravidão

totalmente distinto daquele que imperara até então. Ao se afirmar a incapacidade

racial e cultural dos “selvagens” e dos negros escravos, está-se afirmando que eles

não têm o direito de possuir a terra, tampouco alçam à plena condição humana.

O discurso de Gründling, ao se referir à cultura local brasileira como bárbara,

diz respeito à questão da sobrevivência cultural e racial em que, conforme afirma

Bellei (2000, p. 129) em outro contexto, “se torna imperativo ativar narrativas que

venham atender ao desejo branco de autoafirmação”. Apenas recentemente é que a

análise crítica e desconstrucionista do discurso eurocêntrico encontrou lugar de

destaque, principalmente com o estudo de Edward W. Said sobre o orientalismo

enquanto construção do discurso ocidental, uma vez que “como parte da história da

colonização, a história dos não europeus foi explicada como a de ‘povos sem

cultura’”54 (RINKE, 2008, p. 45).

Josué Guimarães se atém a vários aspectos do processo de transferência

cultural dos grupos de imigrantes com a cultura local, como mostra a assimilação do

hábito do chimarrão, do churrasco e do charque pelos alemães, como exemplifica a

53 Tradução: “In der ‘neuen’ Welt war die Aktivität des Entdeckens des Fremden von Beginn an mit der des Eroberns verbunden. Das Andere in seiner Fremdheit anzuerkennen war undenkbar“. 54 Tradução: “als integraler Bestandteil der Kolonisierung wurde die Geschichte der nicht europäischen ‚Völkern ohne Geschichte‘ erklärt”.

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fala de Catarina: “Queres alguma coisa mais? - Unglaubich55, mas sinto vontade de

tomar um mate. A gente se acostuma com tudo. Minutos depois Catarina fazia

descer no balde uma cuia já preparada e uma pequena chaleira de água quente...”

(GUIMARÃES, 1972, p. 43).

Através de tais exemplos o autor mostra como a necessidade de

sobrevivência, a despeito das diversidades culturais, acaba por atenuar as fronteiras

e diferenças sociais e culturais que separa alemães, índios, negros e castelhanos.

Ou seja, para parte dos imigrantes, estas barreiras são transponíveis e as diferenças

não são absolutas. Isto indica que a distância que se estabelece entre o eu e o

outro, o alemão e o índio não é demarcada tão somente pelas suas diferenças

étnicas e culturais, uma vez que é por meio do movimento de aproximação e de

familiarização que o outro perde aos nossos olhos sua estranheza: “a relação entre

o familiar e o estranho é determinada pela dinâmica distância e aproximação”56

(BOSSE, 2013, p. 69).

Além disso, não são todos os imigrantes que têm a visão ideológica de

Gründling, como exemplificava a relação de amizade entre Catarina e o índio Juanito

– que lhe foi “dado” por Gründling quando ela e o marido se mudaram de São

Leopoldo para a Estância de Jerebatuba – cuja convivência é harmônica e de

aceitação.

No entanto, deve-se destacar que, da perspectiva de Catarina, sua relação

com Juanito está claramente pautada na visão de que a cultura indígena não possui

história própria ou religião, pois Juanito, ao se integrar à família Schneider, é

cooptado pela visão eurocêntrica dos alemães. Tanto é assim que ele e sua

companheira, para serem plenamente aceitos pela família, precisaram casar-se,

portanto, tornarem-se cristãos. Catarina “havia levado Juanito até o padre da

paróquia de Santa Vitória e lá tratara de fazer o casamento com Ceji, passando o

índio e a mulher a formar um novo casal Schneider, que era preciso um sobrenome

cristão” (GUIMARÃES, 1972, p. 115).

Esta passagem não é, apenas, uma convenção, mas – pelo menos da

perspectiva de Catarina – uma mudança de condição de gentio a “civilizado” que

deve prevalecer, inclusive, na morte, como atesta a postura de Catarina no enterro

55 Tradução: Inacreditável. 56 Tradução: “die Relation zwischen Vertrautem und Fremdem ist bestimmt durch die Dynamik zwischen Distanz und verstehender Annäherung“.

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de Ceji. Trata-se de uma transferência cultural em que a cultura dominante “A”

transfere parte de seus costumes, crenças e tradições para a cultura “B”, sem que o

processo inverso ocorra.

Quero enterro de cristão para ela – disse Catarina. O Pastor Klinglhöefer quis saber se ela era batizada. Não importa, disse Catarina, mesmo não batizada ela será enterrada como cristã. Sofrera muito, era de bom sentimento, quem dera que muito cristão fosse como a indiazinha. [...] Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham. O reverendo não conseguiu, naquele instante, imaginar quais as obras que um gentio poderia levar para a eternidade; as obras da indiazinha eram tão fracas para serem notadas pelo Senhor (GUIMARÃES, 1972, p. 199-200 – grifo nosso).

O ritual cristão e ocidental é imposto como pré-requisito para o

reconhecimento do homem bom e civilizado. Até porque, embora a imigração de

alemães para o Brasil tenha uma de suas origens na crise econômica europeia, por

outro lado, a sua relação com a nova terra foi, também, a de agente civilizador e

conquistador.

As tradições e crenças indígenas não são, portanto, reconhecidas e aceitas

pelo discurso oficializado, que se respalda numa ideologia eurocêntrica e hierárquica

de sociedade. Tal nível ideológico evidencia-se pelo casamento entre o abastado

Gründling e Sofia Spannenberger, uma jovem alemã órfã, abandonada, violentada e

miserável – que muito se aproxima das condições de Maria Perutz, de Canaã – que,

apesar de sua condição econômica, social e moral degradante, é branca e alemã, ou

seja, ela se equipara a Gründling, ao contrário dos negros, índios e demais

habitantes que não os imigrantes.

[Sofia Spannenberger] viera de São Borja para onde a família fora levada dos Sete Povos das Missões. Seu pai, Spannenberger, morrera degolado por gente de guerra. A mãe desaparecera e ela fora carregada por um gaúcho de quem não sabia o nome. Depois um outro homem ficara com ela, andando de povoado em povoado. Um dia fora deixada na casa de um velho e lá morara muito tempo. Não sabia quanto tempo. O velho morrera assassinado e um rapaz de nome Pedro ficara com ela e depois os índios o mataram e ela ficou vivendo entre os índios – um mês, um ano, não sabia bem; como os bugres andavam em guerra conseguira fugir até ser encontrada por um outro homem de melenas grandes e pretas, para quem trabalhava e com quem dormia... (GUIMARÃES, 1972, p. 72).

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Entretanto, retoma-se aqui novamente a ideia da perspectiva descentralizada

que as personagens ocupam em A ferro e fogo, porque elas não são representadas

apenas sob este viés negativo citado.

Veja-se primeiramente que, em vista das condições de miséria em parte da

Europa entre os anos de 1816/17, a América foi celebrada – também por escritores

alemães como Goethe57 e outros – como o “novo mundo” de esperança, de

liberdade religiosa, de tolerância, com melhores condições de vida, enfim, de

recomeço.

Além do trabalho de propaganda realizado por agentes, os alemães eram

influenciados por amigos, parentes e conhecidos que já haviam atravessado o

oceano e relatavam, através de cartas, sobre as vantagens de sair da Europa e

recomeçar a vida no Brasil.

No jornal Allgemeine Auswanderungszeitung, de 1859, nº37 (Anexo XIX),

encontra-se a publicação de uma carta escrita na Colônia Santa Izabel, no Espírito

Santo, na qual o autor confirma a existência de muito trabalho nas colônias alemãs

do Brasil, ressaltando que as pessoas que lá vivem têm motivos para estarem

satisfeitas. Dever-se-ia tributar àqueles que estavam insatisfeitos a responsabilidade

por tal insatisfação, que adviria da falta de vontade para o trabalho, afirma o autor,

pois sem trabalho e esforço não se alcança nem no Brasil, nem em qualquer outra

parte do mundo uma propriedade, sendo que o grande erro dos agentes europeus

seria o de mandarem pessoas para a América que não podem e muito menos

querem trabalhar.

A carta provoca o efeito de sentido desejado no leitor: encoraja-o ao trabalho,

à luta e à construção de seu futuro em outras terras que devem ser cultivadas por

imigrantes. Tal efeito se potencializa ainda mais quando dados concretos sobre a

produção e os resultados das colônias alemãs são publicados na Alemanha. O

Allgemeine Auswanderungszeitung (1859, nº5) (Anexo XX) publicou uma matéria

cujo objetivo era descrever e compartilhar com os alemães os resultados já

alcançados na colônia de São Leopoldo. A partir de dados fornecidos pelo governo

municipal de São Leopoldo, o autor afirma que – embora isso não tenha ocorrido

57 O nome “Brasil” apareceu pela primeira vez em 23 de dezembro de 1814 no diário de Goethe, cujo interesse maior eram os estudos botânicos, a mineralogia e geologia. O mais famoso poema de Goethe sobre a emigração está no romance Wilhelm Meisters Wanderjahren. O poema, segundo Neumann (2004), não foi escrito especificamente para o contexto imigratório, mas traz a representação da temática da emigração alemã (NEUMANN, 2004, p. 173).

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imediatamente: todos os colonos já possuíam suas terras demarcadas e que a

diversidade industrial e manufatureira permitiu, no ano anterior (1858), a exportação

de 25.000 sacas de feijão, 25.000 sacas de aveia, 16.000 sacas de farinha de

mandioca, 17.416 sacas de batata, 42 pipas de cachaça, 375 sacas de trigo, 25.000

frangos, 50.000 dúzias de ovos, 366 arrobas de manteiga e 3.780 arrobas de bacon.

Além disso, o autor cita o número de lojas de alfaiates, casas comerciais, moinhos

de cereais, ou seja, o crescimento da indústria e do comércio de São Leopoldo.

Portanto, o que se percebe é que a imigração alemã para o Brasil é

apresentada como uma escolha vantajosa, que exige, apenas, o trabalho e o esforço

daquele que quer e precisa encontrar novas alternativas de sobrevivência fora da

Europa. Nesse sentido, é muito pertinente a escolha do título do romance A ferro e

fogo, pois este prenuncia as adversidades e a superação dos primeiros imigrantes. A

despeito das grandes adversidades iniciais, estas foram muitas vezes sublimadas.

Por outro lado, o discurso sobre o trabalho do imigrante adquiriu, ao longo do tempo,

caráter ufanista, passando a ser associado à figura do desbravador, ou seja, aquele

que “doma” a selvageria da terra ainda não explorada, que vence os obstáculos e

inicia uma civilização.

No entanto, a grande maioria dos imigrantes não estava preparada para

enfrentar as dificuldades que a vida no Brasil implicava. Como se lê na carta em

anexo (Anexo XXI), publicada no ano de 1858 no Jornal Allgemeine

Auswanderungszeitung, nº 1, na Alemanha, a imigração alemã para a província do

Rio Grande do Sul seria recomendável, apenas, àquelas pessoas que realmente

padecessem de miséria na Alemanha e que estivessem acostumadas ao trabalho

braçal pesado. Às outras, recomenda o autor, seria melhor ficarem onde estavam.

As dificuldades tinham início durante a viagem para a América, que era

realizada sem as mínimas condições de conforto e de higiene, provocando a morte

de muitos imigrantes. “Nos breves momentos de sono profundo sonhava sempre

com o São Francisco de Paulo, durante aqueles meses de mar. Voltava ao nariz,

forte e acre, o fedor dos porões superlotados, as noites de amor coletivo...”

(GUIMARÃES, 1972, p. 47).

As péssimas condições de viagem se tornaram traumáticas para os

imigrantes, como relembra Catarina ao seu esposo Daniel que, como muitos outros

imigrantes, buscava na bebida esquecer o sofrimento e a decepção: “atravessar

todo o oceano nos porões de um navio-gaiola, feito bicho ou negro escravo, para

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enfiar nas bebedeiras em vez de amanhar a terra, plantar, colher, encher a burra –

isso não era próprio de um Lauer Schneider” (GUIMARÃES, 1972, p. 11). Henker

(2009, p. 108) comenta que „nos navios de carga foi puxado um convés, em cujo

espaço apertado e sem suficiente ventilação a massa de emigrantes foi acomodada.

A falta de higiene e a má alimentação custaram a vida de muitos emigrantes” 58

(Anexo XXII).

Depois da viagem, a vida daqueles que conseguiram chegar ao seu destino

final, neste caso, a região Sul do Brasil, foi marcada pelo abandono do governo. Em

Die Deutsche Einwanderung nach Südbrasilien bis zum Jahre 1859 – A imigração

alemã para o Brasil até o ano de 1859 – Ferdinand Schröder (1930, p. 32) cita um

exemplo das promessas feitas pelo império brasileiro para os imigrantes. Trata-se do

contrato mais antigo, assinado por D. João VI, em 1818, para a colônia Nova

Friburgo, no Rio de Janeiro. Naturalmente, depois disso as condições oferecidas aos

imigrantes passaram por constantes modificações.

Viagens marítimas e terrestres gratuitas para o Brasil; uma área de terra com uma casa provisória de graça; para uma família com 3-4 cabeças, um boi ou cavalo para criação, duas vacas leiteiras, quatro ovelhas, duas cabras, dois porcos, sementes de trigo, feijão, arroz, milho, linho, cânhamo, óleo de rícino (óleo combustível); a famílias maiores correspondia mais. Para a subsistência no primeiro ano, por cabeça e por dia, 160 Reis, no segundo ano 80 Reis; os emigrantes deveriam trazer um cirurgião e um farmacêutico junto, também 2-4 clérigos, que deveriam servir como os brasileiros. Para a construção e equipamento da capela-mor na praça da cidade, o rei teria se comprometido59.

O império brasileiro não cumpriu, ao menos não de imediato, o que

assegurava o regulamento imigratório da época, de modo que a citação acima não

condiz com a realidade da família de Daniel Abrahão, ficionalizada por Josué

Guimarães, que aguardava ao lado de outros alemães o recebimento de sementes,

ferramentas, animais e terras: “Há mais de um ano que não vemos a cor do dinheiro

58Tradução: “in die Frachtschiffe wurde ein Zwischendeck eingezogen, in dem fortan die Masse der Einwanderer auf engstem Raum und ohne hinreichende Belüftung befördert wurde. Unzureichende Hygiene und die schlechte Verpflegung kosteten vielen Auswanderern das Leben“. 59 Tradução: „freie See- und Ueberlandreise in Brasilien;ein freies Stück Land mit vorläufigem Haus; für eine Familie mit 3-4 Köpfchen ein Ochse oder Pferd zum Zug, zwei Milchkühe, vier Schafe, zwei Ziegen, zwei Schweine, Samen von Weizen, Bohnen, Reis, Mais, Lein, Hanf, Ricinusöl (zu Brennöl), Grössere Familien entsprechend mehr. Zum Unterhalt im ersten Jahr pro Kopf und Tag 160 Reis, im zweiten Jahr 80 Reis; die Einwanderer einen Wundarzt und Apotheker mitbringen, ferner 2-4 Geistliche, die wie die brasilianischen gestellt werden sollten. Für den Bau und die Ausstattung der Hauptkapelle am Statplatz wollte der König sorgen”.

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que nos foi prometido na Alemanha. Queremos a demarcação das terras, até hoje

adiada para a próxima semana, que nunca chega. Queremos os animais domésticos

que constam dos nossos contratos...” (GUIMARÃES, 1972, p. 172).

Outro problema enfrentado pelos alemães que Josué Guimarães recupera é a

forçada participação dos mesmos em revoluções em defesa do Brasil, levando-os a

lutarem por um país do qual, de fato, ainda não faziam parte e em nome de causas

que desconheciam.

trinta e sete colonos [alemães] marchariam como voluntários para os campos de batalha. O presidente achou pouco. Finalmente havia cinquenta deles, treze dos quais no laço, arrancadas das suas mãos as enxadas e colocadas no lugar delas velhas espingardas de carregar pela boca. [...] Eles não entendiam as ordens dadas em português. Meia-volta-volver, eles parados, vendo primeiro o que os outros faziam [...] Recebiam ordens e não cumpriam. Como castigo, vinte chibatadas no lombo, na frente das tropas (GUIMARÃES, 1972, p. 53).

Portanto, Josué Guimarães se refere às adversidades enfrentadas no Novo

Mundo ao mostrar que o estabelecimento de imigrantes no Brasil se deu a ferro e a

fogo. Nesse sentido, pode-se dizer que A ferro e fogo é uma narrativa de resistência,

uma obra contra o discurso pejorativo e estereotipado sobre este estrangeiro. Tal

resistência se percebe, por exemplo, através da ironia, do tom satírico do narrador

ao descrever as primeiras impressões que a nova pátria causara nos imigrantes:

uma realidade sem volta.

[...] os pretos largando o trabalho para olhar espantados aquela leva de gente branca como leite, o vento pampeiro varrendo os telhados, a rua principal atravancada de feirantes. A mesma conversa da nova pátria, os irmãos chegando, aqui vai ser o nosso lar. E aqueles horrendos pretos de olhos de gato, caras ferozes, entre eles índios bravios, cabelos compridos, negros e estorricados. À noite, na certa, andariam de arcos e flechas, tacapes e azagaias. Bem-vindo à terra da fartura. Semente cuspida, no outro dia o broto furando o chão, o arbusto verde e gordo, a árvore. O povaréu formando alas, gaúchos mirando os recém-chegados do alto dos seus cavalos, os soldados molambentos e a mão macia do senhor presidente. [...] Daniel Abrahão experimentando o chimarrão dos outros, a cuia e a mesma bombilha de boca em boca [...] Só então se apercebiam de que o Novo Mundo começava a ficar irreversível (GUIMARÃES, 1972, p. 10 – grifo nosso).

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A família de Daniel Abrahão foi submetida a contingências trágicas como

estas destacadas, que rompem, de forma cruenta, com o desejo de ascendência

econômica e social e que trazem à cena a imagem do imigrante alemão também,

como vítima desse contexto. Conforme analisa Gerson Neumann em Brasilien ist

nicht weit von hier! (2004), „os emigrantes alemães pertencem aos pioneiros da

emigração no Brasil [...] e a todos os problemas iniciais que lhe fazem parte:

interesses políticos e pessoais, financeiros, culturais, e – para não esquecer – as

dificuldades climáticas60“.

As condições de sobrevivência da família de Daniel Abrahão no Brasil eram

miseráveis, o que os levou a aceitar a proposta de trabalho de seu conterrâneo

Gründling, o abastado comerciante, amigo do Major Jorge Antonio Schaeffer,

instalado em Porto Alegre, que lhes ofereceu terras na Estância de Jerebatuba, em

troca de receber e armazenar mercadorias. “A terra da zona da Feitoria era pocilga

para negro, e até então só negro vivera ali, muito justo, o que não tinha explicação

era ele, um Schneider, mais a mulher e o filho, confinados naquele estábulo, bem

que mereciam um destino melhor” (GUIMARÃES, 1972, p. 13).

Daniel Abrahão e Catarina fugiram de São Leopoldo, mas depois descobriram

que foram enganados, pois as mercadorias eram armas contrabandeadas da Banda

Oriental, em um momento conturbado de guerra entre Brasil e Argentina pela posse

da Província Cisplatina – atual Uruguai (HUNSCHE, 1977). Assim, quando a tropa

castelhana invade a fazenda dos alemães, Catarina esconde seu marido dentro de

um poço, onde a personagem permanecerá durante anos para não ser morta pelos

soldados brasileiros e/ou castelhanos: “no meio deles, entre eles, esmagado por

eles, o velho poço com Daniel Abrahão prisioneiro, entocado, já conhecendo gringos

e brasileiros pelo pipocar surdo das patas dos cavalos” (GUIMARÃES, 1972, p. 46).

Nesse sentido, a imigração de alemães para o Brasil passa a ser

representada enquanto experiência traumática, dado o surto psicótico provocado em

Daniel Abrahão por causa da violência à qual ele e sua família foram expostos.

O que se quis mostrar até aqui é que a forma descentralizada de Josué

Guimarães representar o imigrante alemão se dá por meio do espaço no romance,

situado em um território fronteiriço e aberto às relações transculturais, e das

60 Tradução: "die deutsche Immigranten gehören zu den Pioneren der Einwanderung in Brasilien [...] mit allen Anfangsschwierigkeiten, die dazu gehören: Politische und persönliche Interessen, finanzielle, Kulturelle, und – nicht zu vergessen – klimatische Schwierigkeiten“.

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personagens que não são totalmente más ou boas, fechadas ou abertas à interação,

mas transitam entre os extremos do paradoxo humano: se Gründling reproduz a

imagem do colonizador muito bem sucedido, Daniel Abrahão, inversamente, traz à

tona a figura do colonizado. Além de abordar um tema cujo discurso já é global, a

ficção de Josué Guimarães contempla um sentido universal ao ter sempre em vista a

natureza humana, ou seja, a solidão e a fragilidade do homem diante da vida para

além de qualquer diferença.

Partindo desta perspectiva, o próximo tópico centra-se na análise das

consequências provocadas pela imigração em Daniel Abrahão, isto é, como as

adversidades encontradas no Brasil provocam um desdobramento psicológico na

personagem, transfigurando-a em um duplo estrangeiro: enquanto alemão que

emigrou para outro país e enquanto desconhecido de si mesmo (KRISTEVA, 1994).

Em consonância com Bhabha (2005, p. 36), “talvez possamos agora sugerir que

histórias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos – essas

condições de fronteira e divisas – possam ser o terreno da literatura mundial, em

lugar da transmissão de tradições nacionais...”.

4.1 DE IMIGRANTE A BICHO DO POÇO: A METAMORFOSE DE DANIEL

ABRAHÃO LAUER SCHNEIDER

Enquanto componente de um universo ficcional, a personagem Daniel

Abrahão Lauer Schneider é reprodução e invenção, porque a personagem, de modo

geral, não corresponde a um retrato mimético da realidade: ela distorce, reinventa e

traz à cena múltiplos ângulos dessa realidade (BRAIT, 1985). Isto acontece devido

ao fato já apontado na Poética de Aristóteles, de que a personagem implica o reflexo

da pessoa humana, mas, também dela se desvencilha ao constituir um signo, uma

instância da linguagem, um elemento específico do texto ficcional que está de

acordo com a verossimilhança interna da obra, não estando, portanto, sujeita ao

modelo humano social.

Partindo da pergunta de Beth Brait “de onde vêm esses seres”, Moacir J.

Scliar respondeu que:

os personagens vêm da imaginação do escritor. De muitos lugares, isto é certo. Da infância. Do dia-a-dia. De um encontro casual na rua. De uma foto ou notícia de jornal. Das páginas da História. De um

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sonho ou de um pesadelo. De uma associação de ideias. De um desejo de se auto-retratar [...] mas isso se refere à origem mais remota. Em última análise, os personagens de ficção vêm da imaginação do escritor. Não é a capacidade de bem retratar que faz um escritor de ficção, mas sim a capacidade de imaginar personagens e de criar situações... (SCLIAR apud BRAIT, 1985, p. 84-85).

A transcrição de parte do depoimento de Moacir J. Scliar não é gratuita, com

ela quer se chegar à questão do lócus de enunciação da personagem citada, ou

seja, de onde ela fala no texto literário, que é seu espaço de existência. O lugar de

enunciação de Daniel Abrahão está entre o deslocamento e a fixação do imigrante,

cuja experiência complexa de perdas e ganhos o interpõe entre a terra matricial e a

terra de acolhida, a memória e o esquecimento, o passado e o presente.

A temática da errância, da migração, do nomadismo e do exílio foi moldada

pela história e pela literatura, começando com a narrativa bíblica, que registrou o

êxodo de um povo em busca da terra prometida. Entretanto, o que deve ser frisado é

a ambivalência presente em todas as variedades de deslocamento, porque ele

implica, além do movimento exterior e físico, a mudança ontológica e interior, que diz

respeito ao estrangeiro que nos habita, à alteridade e às subjetividades do sujeito:

daí decorre a ambivalência da imagem da errância: positiva, como aventura voluntariamente assumida que, em algumas narrativas pós-modernas, evolui no sentido de desterritorialização de pertencimentos, como viagem iniciada à descoberta de si mesmo e dos outros; negativa como desenraizamento involuntário, enfocando a violência das travessias impostas de territórios, representadas pelas figuras do imigrante, do refugiado, do exilado, do marginal, errantes excluídos (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 189).

Talvez seja a partir deste deslocamento ontológico que desestabiliza o eu,

que se deve começar a analisar a personagem Daniel Abrahão. Ele não é, apenas,

um sujeito que sai do seu país, mas aquele que rompe com suas raízes em busca

“desse território invisível e prometido, desse país que não existe mas que ele traz no

seu sonho e que deve realmente ser chamado de um além” (KRISTEVA, 1994, p.

13). Em anexo (Anexo XXIII), a obra de arte de Antonie Volkman, Despedida dos

emigrantes61, de 1860, exposta no museu Deutsches Historisches Museum de

61 Tradução: Abschied der Auswanderer.

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Berlin, traz à cena a melancolia e o sofrimento causado pela despedida da terra

natal.

De acordo com a análise da obra Estrangeiro para nós mesmos (1994), de

Kristeva, embora influenciado por uma lógica edênica de imigração, a solidão e a

rejeição no país estrangeiro reportam Daniel Abrahão ao que já lhe é inacessível: o

retorno. Nesse sentido, a imigração da personagem a comprime entre a coragem de

desprender-se de suas origens e raízes, e a humilhação no país estrangeiro, que a

deixa à mercê da sorte, sem dinheiro e sem possibilidade de trabalho, onde a

igualam – e a tornam – um animal, uma toupeira.

À noite, sonhava com o cheiro de pão fresco da Europa, com o perfume das cucas açucaradas, com a fritura das grossas salsichas e do chucrute conservado na vinha d’alhos. De madrugada, estrelas ainda no céu, enquanto enfiava as botinas de sola de madeira, jurava para si mesmo que um dia, um dia não muito distante, ainda plantaria sementes de trigo na sua terra, terra de papel passado, e das sementes tiraria a farinha. Catarina e Philipp comeriam com ele o pão, um cesto deles, com o mesmo aroma que teimava em não esquecer. Que as barrigas estourassem de tanto prazer. Catarina, tenho pensado no nosso pão da Alemanha, nas cucas estufadas extravasando das formas. Sonhei com Jesus multiplicando os pães (GUIMARÃES, 1972, p. 11 – grifo nosso).

O fato de Daniel Abrahão não esquecer o gosto dos pães da Alemanha e

querer produzir trigo para dele fazer o mesmo pão é representativo do seu entre-

-lugar no mundo, uma vez que a personagem está entre a pátria perdida e a

frustação de um sonho não alcançado. E assim, „o que no início era condição

necessária para sobreviver, com o tempo transforma-se em uma reminiscência

nostálgica à cultura dos antepassados62” (HENKER, 2009, p. 119).

A problemática da migração, dos deslocamentos culturais e do confronto com

a alteridade, ao colocar o sujeito em confronto com outros mundos, reaviva o

sentimento de pertencimento, que é reconstruído através da memória. Esta

reatualiza o território de origem, o cotidiano do país natal e as tradições, mas, por

outro lado, idealiza o passado em face da realidade que se oferece a seus olhos: “a

nostalgia do país de origem é uma armadilha da memória afetiva que captura o

sujeito num passado imóvel que lhe dá segurança” (OLIVIERI-GODET, 2010, p.

204).

62 Tradução: “was in den Anfängen noch notwendige Voraussetzung für das überleben war, wandelte

sich im Lauf der Zeit in eine nostalgische Reminiszenz an die Kultur der Vorfahren“.

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A saudade da personagem traz à cena as relações subjetivas e afetivas

presentes na vida do migrante, o que é humanamente natural, sobretudo quando se

tem em vista que, pelo menos até o início do século XX, para a maioria dos pobres,

a despedida da pátria significava uma despedida para sempre. “Para visitas mútuas

a viagem era - ao menos no século XIX - muito cara e penosa. Nas canções de

despedida [os alemães] muitas vezes expressam a decepção e a raiva sobre as

condições sociais e políticas, que os forçaram a emigrar”63 (HENKER, 2009, p. 105).

Também para as primeiras gerações de descendentes dos imigrantes

alemães estabelecidos no Brasil, a saudade da terra matricial parece ter sido um dos

traços mais recorrentes, como mostra o poema “Ich habe Heimweh, Mutter”,

publicado no Brasil em 1935, no calendário Kalender für das Deutschtum in Brasilien

(Anexo XXIV). Nele o eu lírico evoca a Mutter64 para dar vazão à sua Heimweh65, ou

seja, sua saudade de casa, como um filho que é arrancado dos braços de sua mãe,

mas que se mantém ligado a ela pelos fortes vínculos afetivos e de pertencimento.

A imigração leva à conscientização da pluralidade cultural, tornando-se, desta

perspectiva, uma experiência positiva. Josué Guimarães desenvolve uma reflexão

diferente sobre a problemática migratória, assumindo uma postura crítica em relação

à visão que escamoteia a experiência dolorosa e traumática do sujeito migrante,

pois, apesar de o imigrante ser significativo/representativo para o discurso do entre-

lugar, desconsidera-se que ele, muitas vezes, não habita lugar nenhum social e

psiquicamente.

Olivieri-Godet (2010), ao se ater ao ensaio Réflexions sur l’exil, de Edward

Said, afirma que a cultura moderna elegeu a migração, o exílio e a errância como

temas enriquecedores, banalizando as mutilações causadas às vítimas. De acordo

com a leitura da autora, se a dimensão estética de tais temáticas fascina, ela não

pode apagar a experiência trágica de deslocamentos abruptos e violentos de

populações: “a dimensão estética do exílio não apaga a angústia, o sofrimento da

perda, o horror a que estão sujeitas as massas humanas expatriadas, desenraizadas

em nosso tempo” (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 196-197).

63Tradução: “Für gegenseitige Besuche war – zumindest im 19. Jahrhundert – die Reise zu teuer und zu beschwerlich. In den Abschiedslidern drücken sich oft Enttäuschung und Zorn auf die sozialen und politische Verhältnisse aus, die zur Auswanderung zwingen“. 64 Tradução: mãe. 65 Tradução: saudades de casa, do lar ou pátria.

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Para além de descrever a saga dessa imigração, Josué Guimarães denuncia

a condição trágica de miséria, violência e abandono de tais estrangeiros, numa

conturbada época de revoluções, conflitos e lutas pela demarcação de fronteiras

nacionais. Como afirma Octavio Paz, em Signos em rotação (1996, p. 126), “uma

literatura nasce sempre frente a uma realidade histórica e, frequentemente, contra

essa realidade”.

Dessa forma, Josué Guimarães trabalha com muita propriedade a passagem

de uma concepção utópica de superioridade germânica para a “dimensão do

precário que retira da saga a sanha da valentia e da virilidade grandiloquentes”

(HELENA, 1997, p. 49):

Daniel Abrahão sabia que não adiantava reclamar. O capataz não entendia uma palavra de alemão. E quando desconfiava, pelos gestos e pelas caras, que eles estavam dizendo algum palavrão, ameaçava-os com o chicote ou com os punhos; sem ir além, pois que não eram escravos, mas loiros patrícios de Dona Leopoldina, embora pagos como os negros, a tanto por cabeça (GUIMARÃES, 1972, p. 11).

A personagem Daniel Abrahão é emblemática desta passagem de uma

concepção utópica de povo “superior” para a de igualdade entre as culturas que,

apesar de suas diferenças, têm as mesmas necessidades. Isto porque a resistência

de Daniel Abrahão não é pela aceitação da outra cultura, no caso, a brasileira, mas

em relação à violência e à iminência da morte.

Graças aos cuidados da mulher Catarina, Daniel se escondeu num poço para

não ser morto pelos soldados, ora castelhanos ora brasileiros. Entretanto, de

esconderijo o poço se transformou na morada definitiva para a personagem, que

passa por um processo gradativo de despersonalização e de loucura, dado o tão

humano medo do homem em relação à morte, e à tortura psicológica ao

assistir/ouvir impotente ao sofrimento da família, sobretudo, o de sua mulher sendo

violentada por soldados.

Daniel Abrahão aperfeiçoou a toca de maneira a passar nela o resto da vida. Gostava da sua solidão, muito mais do que das vezes em que era chamado para sair do poço, nas breves e inesperadas ausências de soldados. Estava numa terra de ninguém, espremido por dois inimigos, ambos querendo o seu pescoço para ornar um galho de árvore ou sua carótida [...]. Acostumara-se à escuridão. Ela era a mãe dos seus devaneios. A luz do dia feria os seus olhos congestionados e sensíveis, mesmo ao cair da tarde, quando não

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havia mais sol no céu. Numa furna onde quase não conseguia sentar-se, ganhava uma sensação de segurança que lhe escapava quando sobre a terra. O horizonte livre e infinito representava para ele um constante perigo. O céu aberto, as nuvens e o próprio vento, podia ser uma leve brisa, passaram a ser uma permanente ameaça. A amplidão era a sua cadeia. Liberdade, para Schneider, deveria ter, para ser completa, uma tampa rústica de tábuas; sobre ela, ainda, pedras e lenha (GUIMARÃES, 1972, p. 96 – grifo nosso).

Para além do território fronteiriço habitado, o poço se torna uma alegoria da

passagem intersticial, um local excêntrico, deslocado e intermediário, que interliga o

presente a um mundo desconhecido, e que permite à personagem Daniel Abrahão

residir onde ninguém mais reside.

A submersão cada vez mais profunda do imigrante nas profundezas do poço

e de si mesmo é, simbolicamente parte de uma tarefa revisionária, porque a cada

retorno à superfície – o presente – a personagem reestabelece a ordem do mundo,

pois se nega a aceitá-la tal qual ela é (BHABHA, 2005). Como explica Bhabha

(2005, p. 28 – grifo nosso), “residir ‘no além’ é [...] ser parte de um tempo

revisionário, um retorno ao presente para reescrever nossa contemporaneidade

cultural; [...] o espaço intermediário ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no

aqui e no agora”.

Tendo em vista o espaço fronteiriço no romance A ferro e fogo, o poço no

qual Daniel Abrahão reside passa a ser, então, uma fronteira dentro da fronteira,

este espaço torna-se uma alegoria de crítica e de denúncia das mazelas sociais.

Dado que as “formas de existência social e psíquica podem ser melhor

representadas na tênue sobrevivência da própria linguagem literária, que permite à

memória falar” (BHABHA, 2005, p. 34), é como se as experiências traumáticas e

conflituosas advindas com a imigração emergissem do buraco, trazendo à tona as

vozes esquecidas e não representadas do passado.

Isso é muito importante de ser percebido, porque a linguagem alegórica à

qual se está referindo é oriunda da imaginação criadora de Josué Guimarães e está

presente em quase toda a obra ficcional do escritor, sendo Os tambores silenciosos

o exemplo melhor arrematado. Quando um autor está engajado em resgatar

ficcionalmente aquilo que comumente os livros de história sonegam, a linguagem

alegórica funciona como um dos principais instrumentos de conscientização das

adversidades. O poço é a imagem discursiva que dá voz ao silêncio de Daniel

Abrahão, é uma forma de expressão do acontecimento histórico da imigração alemã

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para o Brasil, visto como instância externa – política, social e governamental – mas

também interna, ou seja, subjetiva.

Segundo a teoria de Walter Benjamin (1984), a alegoria revela sempre novas

possibilidades de significação, porque há uma arbitrariedade entre o significante e o

significado, ao contrário do símbolo. O exercício de ressignificação vem a ser o

trabalho do alegorista, que vê na história o despojo para a combinação de

infindáveis mosaicos, na medida em que a morte do símbolo dá vida à alegoria, ou

seja, “[...] o alegorista arranca o objeto do seu contexto. Mata-o. E o obriga a

significar.” (ROUANET – prefácio – apud BENJAMIN, 1984, p. 40).

Nesse sentido, não há um significado único para o significante poço, porque a

alegoria desvaloriza o mundo aparente, anula a garantia de uma interpretação, de

uma verdade:

enquanto o símbolo aponta para a eternidade da beleza, a alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias. Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa figura perpétua de um sentido último. A linguagem alegórica extrai sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros (GAGNEBIN, 2007, p. 38)66.

O poço, portanto, constitui-se em signo alegórico porque é a partir dele que

ocorre a troca da identidade de Daniel Abrahão, sua metamorfose individual em

vários outros eus, enfim, a identidade pessoal, local, nacional são descentradas e

esvaziadas de seu sentido fechado.

Quando já estava abrigado no poço, Daniel Abrahão lembrou-se de

Gründling: “como um bicho. Lembrou-se da frase de Gründling ‘cavar a terra como

um topeira’. Um verme” (GUIMARÃES, 1972, p. 43). Ora, mais do que significar um

esconderijo, o mergulho, a entrada e a fuga de Daniel para dentro da terra aludem

ao movimento de escavação como forma de se aproximar do passado: Josué

66 A ideia de luto e jogo é a dialética imanente à palavra Trauerspiel, traduzida como barroco. Na formação deste vocábulo, tem-se Trauer, que significa luto, e Spiel, que significa jogo.

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Guimarães desenterra a saga da imigração alemã para o Brasil, pois é na terra que

se inuma o passado e os escombros.

Cita-se aqui um dos fragmentos da Crônica Berlinense (BENJAMIN, apud

SILVA, 2003, p. 403), no qual Benjamin faz referência ao significado metafórico de

cavar:

quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê- -lo como se revolve o solo, pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação, ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador...

O ato de cavar implica, também, a relação casa/mundo, da qual trata Bhabha

(2005), no sentido de que o indivíduo vai além da sua “casa”, alça voo para fora de

si mesmo, para depois retornar com um novo olhar sobre a realidade que o circunda,

a qual não será mais a mesma.

Portanto, A ferro e fogo é atravessado por uma tensão crítica, que se revela

numa modalidade de resistência metafórica, alegórica, sugerida pelo poço onde

Daniel passa a residir. Com isso, Josué Guimarães não apenas descentraliza a

temática da imigração alemã, mas, também, transforma o próprio lugar de onde o

imigrante fala no romance.

Há de se destacar que o mergulho de Daniel Abrahão para dentro do poço

está ligado à sua salvação e este mergulho se caracteriza pela entrega da

personagem ao messianismo. Dado o sentido religioso que a vida de Daniel

Abrahão adquire a partir do momento em que ele se esconde no poço, é relevante o

fato de que os dois primeiros nomes da personagem, “Daniel” e “Abrahão”, são

elementos intertextuais que remetem à tradição judaica e estão presentes na Bíblia

Sagrada.

Este nível intertextual é profícuo no romance de Josué Guimarães, pois, ao se

reportar ao texto bíblico, o autor leva em consideração que a escritura hebraica é,

também, a história de um povo em eterna busca, à espera de Canaã. O nome da

personagem, Daniel Abrahão, remete a duas importantes personagens bíblicas: o

patriarca da nação judaica, Abrahão, e o profeta interpretador de sonhos, cativo em

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Babilônia, Daniel. A definição do nome “Daniel” diz respeito àquele que “[...] tornou a

morte inofensiva [...]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993, p. 320), pois foi jogado

num poço profundo para ser devorado por leões e o segundo nome, Abrahão,

remete à tradição bíblica sobre o

homem escolhido por Deus para preservar o sagrado repositório da fé; o homem abençoado por Deus que lhe prodiga as promessas de numerosa descendência e imensas riquezas; o homem que é predestinado a um papel universal como um novo Adão e como o ancestral do Messias; seu nome significará, segundo uma etimologia popular: pai da multidão. Mas, sobretudo, Abrahão será o símbolo do homem de fé [...]. No plano psicológico, Abrahão simboliza igualmente a necessidade de desenraizamento do meio habitual familiar, social, profissional, para que se realize uma vocação ímpar e se estenda uma influência além dos limites comuns. [...]. A sabedoria de Abrahão inspirou-lhe a loucura de ser o aventureiro de Deus (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993, p. 7 – grifo nosso).

Com efeito, a personagem ficcional de Josué Guimarães evoca tais

significados, pois ela escapa da morte tal qual a figura bíblica de Daniel o fez. Nesta

ordem de considerações, a figura bíblica de Abrahão e a personagem ficcional de

Josué Guimarães se assemelham quanto às suas condições de estrangeiros: por

volta de 1800 a. C, o patriarca bíblico abandonou a Mesopotâmia e, guiado por

Deus, partiu rumo a terras desconhecidas, Canaã, onde se erradicou como

estrangeiro e perpetuou sua família. De modo análogo, não é Daniel Abrahão o

homem que, crente em Deus, parte para a América em busca de melhores

condições de vida e, diga-se, em busca de “Canaã”?

Daniel seria, como prenuncia seu nome, um patriarca, cuja fé se transforma

em fanatismo, o que fará com que ele, posteriormente, passe a fazer parte de uma

comunidade messiânica no morro do Ferrabrás. Entretanto,

para Daniel Abraão não há esperança, sonhos benéficos ou anjos descendo em revoada para lhe salvar, como em suas contrapartes bíblicas. Em A Ferro e Fogo, o homem não é um filho de Deus, é antes um filho do homem, irmão do homem, escravo do homem, vítima do homem (TAVARES, 2011, p. 109).

Ou seja, a intertextualidade que Josué Guimarães estabelece com o texto

bíblico funciona, apenas, como ponto de fuga para tratar, sob a perspectiva religiosa,

do sofrimento terreno.

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Os imigrantes alemães foram caracterizados como inclinados ao misticismo,

como exemplifica a revolta dos Muckers, que seria a temática do terceiro volume da

trilogia A ferro e fogo. A revolta aconteceu entre 1868 e 1874, provocada pelo

fanatismo religioso que se iniciou na comunidade alemã de São Leopoldo, no Morro

do Ferrabrás. Jacobina Mentz, que seria paranormal desde criança, casou-se com o

médico João Jorge Maurer. Após o casamento, João Jorge passou a incorporar aos

seus tratamentos, além do conhecimento médico e de curandeiro, componentes

místicos advindos de Jacobina, que seria “visionária” e “profetisa”. O casal agregou à

sua volta um grupo de fanáticos seguidores que, conforme crescia, passou a

perseguir e a matar todos os que se opusessem à seita. O combate em massa aos

Muckers deslocou tropas do Exército e da Guarda Nacional e, em 1874, grande

parte dos integrantes da seita, inclusive Jacobina, foi morta (SCHUPP, s/d).

Em A Ferro e fogo II: tempo de guerra, Josué Guimarães faz alusão ao início

do que culminaria na revolução dos Muckers, visto que Daniel Abrahão passou a

frequentar a casa de Jacobina Maurer, inicialmente para se tratar com ervas

medicinais e, depois, para permanecer em sua casa e auxiliar nas “curas” e

pregações religiosas. Nesta fase, Daniel Abrahão troca o poço pelo Ferrabraz, junto

a Jacobina, para se dedicar à leitura e à interpretação da bíblia. O mundo fechado

do poço é substituído pelo fanatismo, mas o abandono do poço não representa o

reestabelecimento da saúde mental da personagem, pois tal fanatismo é tão isolante

quanto o buraco.

O fato de Josué Guimarães ter conferido este caráter fanático a Daniel

Abrahão, fazendo, inclusive, uma remissão direta a um episódio histórico, faz sentido

ao levar-se em conta que, segundo o pensamento benjaminiano67, somente o tempo

messiânico pode interromper a linearidade e a homogeneidade da história. Para

Walter Benjamin a violência assume papel positivo e revolucionário, porque

representa o momento necessário à criação de uma nova ordem de valores em favor

do reestabelecimento de uma visão de história que possa reparar as injustiças e os

sofrimentos humanos.

É por meio da religião, esse sentimento denominado por Freud (1978) de

oceano de sensação de graça e eternidade, que Daniel Abrahão bloqueia

67 A teoria de Walter Benjamin está sendo empregada, apenas, como instrumento de interpretação à questão messiânica, não havendo aqui a pretensão de analisá-la, dado o aprofundamento que esta requereria.

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lembranças insuportáveis de serem rememoradas. Por isso, ao abandonar o poço na

Estância de Jerebatuba e retornar a São Leopoldo, Daniel Abrahão não se adaptou

à estranheza da nova casa, que lhe parecia demasiada grande: cavou um novo

buraco, feito um bicho, onde pudesse ficar mais próximo de si e de Deus e,

consequentemente, longe do estranho mundo para o qual ele migrara: “num pedaço

de chão do telheiro, Daniel Abrahão cavou um grande buraco, fez sobre ele uma

cobertura de madeira e bem ao centro engendrou uma porta de alçapão [...]”

(GUIMARÃES, 1972, p. 128).

Para a personagem a religião funciona como uma capa protetora contra o

sofrimento e é graças a ela que ele se reconcilia com a estranheza do outro – seja a

dor, a morte, a angústia ou as lembranças – e de si mesmo.

Muitas noites passei aqui reconstruindo só para mim a figura de Cristo, enquanto todos dormiam, outros pecavam. Catarina, eu nunca estou só, nem abandonado. Desentocou de um armário pequeno, embutido na terra, um embrulho de panos rotos e sujos: “Apenas tu conhecerás a imagem dele e mais ninguém. O olhar dos profanos destrói a Graça”. Tirou os panos, surgiu um crucifixo de madeira entalhada, a figura de Cristo em lavor de artista, as chagas, os cravos, a cabeça inclinada, cada músculo das pernas, os tendões dos braços, até a expressão de dor do rosto crispado, parecendo mover-se pela luz irregular projetada do pavio mergulhado no óleo. Catarina passou os dedos por toda a imagem, Daniel Abrahão produzira um milagre, um bicho entocado capaz de lavrar peça tão bela (GUIMARÃES, 1972, p. 194 – grifo nosso).

O crucifixo de Cristo entalhado na madeira por Daniel Abrahão remete à ideia

judaico-cristã de salvação. No contexto da obra em análise, isto significa que nada

do que aconteceu no passado pode ser soterrado e esquecido, o que exige o

comprometimento daquele que narra e testemunha o que viu. Portanto, Josué

Guimarães faz é um revisionismo crítico, resgatando as condições críticas pelas

quais os alemães passaram para tentarem sobreviver no Brasil:

quando a visibilidade histórica já se apagou, quando o presente do indicativo do testemunho perde o poder de capturar, aí os deslocamentos da memória e as indireções da arte nos oferecem a imagem de nossa sobrevivência psíquica. Viver no mundo estranho, encontrar suas ambivalências e ambiguidades encenadas na casa da ficção, ou encontrar sua separação e divisão representadas na obra de arte, é também afirmar um profundo desejo de solidariedade social... (BHABHA, 2005, p. 46).

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O anúncio do fim da Guerra Cisplatina impulsionou Catarina Schneider a

abandonar a Estância de Jerebatuba e a retornar a São Leopoldo, julgado oportuno

o momento de “[...] pôr um ponto final em todas aquelas infâmias que estavam

transformando o seu marido em animal, animal de toca, mente começando a ficar

doente, as crianças sem pai, ou tendo por pai um bicho” (GUIMARÃES, 1972, p. 107

– grifo nosso). Todavia, para Daniel Abrahão, desprender-se do poço, aquele lugar

no qual aprendeu a organizar e reelaborar as suas experiências subjetivas mais

dramáticas, significava voltar a um estágio anterior de melancolia, desespero e de

desapego à vida:

que fariam com o velho poço? Com a toca em forma de galeria, escorada, protegida, cada coisa em seu lugar, a marca de fuligem de lampião, as prateleiras para o pão, o charque, para garrafas de cachaça, as forquilhas onde descansava a espingarda, longe da umidade, a tampa de caixa onde colocava a velha Bíblia. O tempo aprisionado ali dentro, naquela pilha de varas aneladas. Cada anel assinalando um fato, uma hora de terror, posse e vigília, dores e pesadelos. Ah, os intermináveis pesadelos daqueles dias de travessia; nos ouvidos, como uma concha, o rosnar do mar bravio. O tamborilar das patas de cavalo, os gritos dos invasores. Tudo ali guardado, marcado, gravado. Os bandidos estuprando a sua mulher, quebrando a coronhadas o ombro do índio, o roubo das espingardas de contrabando, o eterno galopar dos inimigos na demoníaca roda-viva da guerra sem fim. Lá vinham eles, os ladrões, agora que a paz começava a reinar; no instante mesmo em que ele tencionava transformar a toca num profundo lago solitário (GUIMARÃES, 1972, p. 116 – grifo nosso).

Ou seja, a percepção de mundo desta personagem está condicionada ao

espaço do poço que apreende, somente, a projeção invariável de sua experiência

trágica com o outro, através de novos signos, coerentes apenas à sua experiência

migrante. Por isso, no poço, pedras, varetas, madeiras talhadas e trapos adquirem

valor simbólico para a personagem, e dos quais ela não quer se desfazer. “A noite

inteira de lampião aceso, preparando as suas coisas com minúcias, os feixes de

varas-calendário cuidadosamente amarradas. Um saco de pedras limosas, as que

lhe diziam qualquer coisa, por misteriosas razões” (GUIMARÃES, 1972, p. 116-117 –

grifo nosso).

Também os sonhos de Daniel Abrahão, enquanto atividade inconsciente da

alma, revelam sua natureza subjetiva, essencialmente messiânica e profética. Seus

sonhos e visões do apocalipse e da morte são análogos à sua experiência face ao

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medo da morte e da violência, que o rondavam e à sua família na Estância de

Jerebatuba, pois o sonho, em primeira instância, diz respeito a nós mesmos: “o

‘outro’ com quem sonhamos, não é nem o nosso amigo, nem o nosso vizinho, é o

outro em nós...” (JUNG, 1975, p. 99 – grifo nosso). Entretanto, o sonho aqui aparece

como forma de resgate inconsciente daquilo a que não se tem mais acesso: o

passado enterrado e esquecido, as cenas que ninguém testemunhou ou pôde

narrar.

Esta noite Harwerther falou comigo. Pobre Frederico. Foi degolado pelos castelhanos falando de mim. Eu nem queria olhar para a ferida que tinha no pescoço. Quando o pobre falava, saía sangue pela boca e pelo talho. E ele ainda me contou que estava ao lado de Mayer quando o infeliz foi fuzilado na batalha do Passo do Rosário (GUIMARÃES, 1972, p.133).

Afora isso, o espaço fechado do poço se, incialmente, protegeu a

personagem, garantindo sua sobrevivência, posteriormente transformou-se em uma

prisão que a impediu de se recuperar do trauma que a levou a se entocar como um

bicho acuado. Daí advém o seu silêncio, isto é, Daniel Abrahão é tomado por uma

angústia que congela suas ações como uma camisa-de-força, da qual ele não tem

como se libertar. A resignação de Daniel demonstra uma tentativa brusca de

desprendimento e abnegação do mundo externo, do vínculo com a realidade. A

raiva, o ódio e o medo, dado que não podem ser externalizados naquele momento,

provocam uma profunda implosão na personagem, que a torna indiferente a tudo e a

todos.

quando era dominado pela melancolia, trocava o prato de comida na borda do poço pela velha e surrada Bíblia que trouxera debaixo do braço desde a partida da Alemanha. Chamava Catarina, que se via obrigada a largar dos seus afazeres domésticos, para ouvir trechos do livro sagrado [...]. Voltava, então, irritada, para o trabalho e ficava a pensar se o marido não começara a endoidar. Nenhum inimigo à vista, nem do norte e nem do sul, tampouco do céu, que era mais fácil o demônio sair de sua morada debaixo da terra, e Daniel Abrahão ruminando a sua velha Bíblia à luz mortiça do lampião, detestando o ar puro e o sol, vivendo no seio da terra, morada do diabo (GUIMARÃES, 1972, p. 98).

A linguagem também pode encontrar o seu limite quando se defronta com a

história, o trauma, o sofrimento de mortos e oprimidos, afinal, como narrar o que

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muitas vezes é inenarrável? Nestes casos, “só com a arte a intraduzibilidade pode

ser desafiada” (SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 47), porque ela auxilia os homens a

lembrar do que as gerações passadas foram capazes de fazer e assim “evitar que a

catástrofe possa ainda eclodir. A arte, neste sentido, pode ser considerada uma

forma de resistência e compreende uma dimensão ética, enquanto manifestação de

indignação radical diante do horror” (FRANCO, 2001, p. 352). Dessa forma, faz

sentido a citação de Vargas Llosa transcrita na introdução de A ferro e fogo, porque

a literatura de Josué Guimarães está orientada pelas influências de sua formação

política, e é através dela, da literatura, que o escritor transcreve seu desejo de

justiça e de mudar o mundo.

escribir novelas es um acto de rebelión contra la realidade, contra Dios, contra la creación de Dios que es la realidade. Es uma tentativa de corrección, cambio o abolición de la realidade real, de su sustición por la realidade fictícia que el novelista crea. Este es um dissidente: crea vida ilusória, crea mundos verbales porque no acepta la vida y el mundo tal como son (o como cree que son). La raiz de su vocación es um sentimento de insatisfacción contra la vida; cada novela es um deicídio secreto, um asesinato simbólico de la realidade (VARGAS LLOSA, apud GUIMARÃES, 1972, p. 1).

Daí o desafio de Josué Guimarães ver aquilo que é invisível: a projeção da

alteridade, que liberta a imagem do imigrante alemão da visão estereotipada com

que foi concebido por alguns escritores brasileiros. O mergulho da personagem para

dentro si mesma vai esvaziando a noção de identidade “pessoal, regional, nacional,

antes sugerida como ‘coisa’ plena, mas que pouco a pouco se revela precária e

descentrada, impulsionada pelo jogo das diferenças da personagem consigo

mesma” (HELENA, 1997, p. 50).

Dedicado à representação do desencanto e das experiências dramáticas da

família deste imigrante, o romance de Josué Guimarães coloca a personagem Daniel

Abrahão como central e, a partir dela, a imagem da loucura como estratégia de

questionamento da situação do homem no mundo, de desvelar a verdade mais

profunda do ser humano: é “tentar dizer o indizível nos meandros da ironia” (MARIA,

2005, p. 55-56).

O enfoque que o autor confere à obra permite, naturalmente, muitas

perspectivas de análise e estudo, mas, da perspectiva que se buscou aqui, o que se

sobressai é a atualização da perecível condição humana frente às adversidades

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econômicas e sociais nos descampados do Chuí. A personagem, ao se tornar

metaforicamente uma toupeira, faz do poço sua morada, seu esconderijo, para não

se sentir estranha aos outros e a si mesmo. Ela rejeita a civilidade e transforma-se

em uma ostra fechada que necessita, para sobreviver, criar outros selfs – para usar

as palavras de Kristeva (1994).

Levando-se em conta o pensamento da época representada por Josué

Guimarães – quando ainda não se discutia sobre fronteira e alteridade – a

problemática da personagem analisada parece estar relacionada ao discurso dos

direitos humanos, consolidados na Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão, criada em 1789. O documento, longe de ser a expressão fiel da igualdade

entre os homens, estabelece a dicotomia cidadão versus homem, fazendo com que

o indivíduo se torne mais ou menos homem de acordo com a sua cidadania

(KRISTEVA, 1994), sem a qual ele é subtraído de seus direitos pessoais, de seu

lugar num mundo de fronteiras em que se acentua, cada vez mais, a dificuldade de

viver com o outro e com as adversidades.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando as questões propostas na Introdução deste estudo, o contato

entre alemães e brasileiros na obra de Graça Aranha seria preponderantemente de

estranhamento, rejeição e conflito, já que o romance, ao fazer uma reflexão sobre o

futuro do Brasil e sobre o papel do estrangeiro em seu desenvolvimento, reacende

questões polêmicas como a classificação dos povos em superiores e inferiores, com

base nas velhas teorias raciais de pureza e miscigenação. A partir destas, Canaã,

uma das obras inaugurais da literatura brasileira sobre a temática da imigração

alemã, traz uma visão negativa e pessimista sobre o alemão, cuja relação com o

brasileiro tenderia a ser assimétrica, como se viu a partir das personagens Lentz e

Milkau. Parece haver certa relutância do autor em aceitar a realidade precária e

incerta do Brasil recém-republicano, na qual se fazia necessária a vinda de

estrangeiros, de modo que a trajetória funesta de Maria Perutz talvez funcione como

bode expiatório da aversão que Graça Aranha, em sua maturidade, revelou em

relação aos alemães.

Quase quatro décadas depois de Canaã, se observa no romance Um rio imita

o Reno, de Vianna Moog, uma contundente crítica ao isolamento dos imigrantes

alemães e seus descendentes e sua tendência de rechaçar qualquer integração com

os brasileiros e sua cultura. Tal romance foi escrito e publicado quando na Alemanha

o conceito ariano de pureza foi radicalizado com a ascensão do Nacional Socialismo.

Isto provocou reações absurdas de descriminação, exclusão e violência, que a

folclórica Blumental procura imitar, dando vazão ao preconceito que estaria

entranhado naquela imaginária comunidade desde os primórdios da colonização.

No entanto, além das circunstâncias históricas que drasticamente se alteram

de Canaã para Um rio imita o Reno, a maneira de Vianna Moog se contrapor e

combater as atitudes de hostilidade e preconceito extremado das comunidades de

alemães se dá com mais maturidade e habilidade estética. A preconceituosa

personagem Frau Marta se assemelha a Lentz, mas Moog não critica sua conduta

racista e procelosa com um “contra olhar” também de descriminação e desprezo: o

autor desconstrói o discurso de Frau Marta ao desvelar, através de sua ascendência

judia, que o mito da pureza ariana é uma falácia e que inexiste a propalada pureza

racial.

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A despeito dos tempos sombrios, o autor, através da imaginária Blumental,

aponta para um futuro mais otimista que o vislumbrado por Graça Aranha, pois, a

tentativa cada vez mais expressiva de rompimento das barreiras da cor e da raça,

como exemplifica o caso apenas ensaiado entre Geraldo Torres e Lore Wollf, talvez

possa se consumar com o pequeno Paulchen: o que prenuncia uma possível

integração da nova geração de descendentes de alemães com os brasileiros, pois,

as tão propaladas diferenças raciais não se sustentariam por muito mais tempo.

A Ferro e fogo, de Josué Guimarães, ao narrar a saga de uma família de

imigrantes nos primórdios da imigração, se distancia não apenas temporalmente em

relação às obras supracitadas, mas principalmente, pela importância que confere à

temática da imigração alemã. Josué Guimarães se atém a uma perspectiva mais

trágica sobre o imigrante enquanto sujeito, pois, o principal foco narrativo centra-se

na representação das fragilidades humanas, seus medos e sua busca pela

sobrevivência e pela salvação espiritual, para além dos estereótipos de raça e cor.

Entretanto, fugindo de uma tipificação simplista, o autor se atém, também, àqueles,

como Gründling, que compactuam das mesmas crenças e comportamentos das

personagens Lentz e Frau Marta, cujo interesse é, apenas, se sobressair e para tal

manipulam todos à sua volta, inclusive, seus patrícios.

Este estudo ateve-se, principalmente, aos aspectos históricos e sociais das

obras em análise com vistas a discutir visões diferentes sobre o imigrante alemão e

como essas diferenças se operam temporalmente, historicamente e socialmente de

Canaã a A ferro e fogo. Quando o romance de Josué Guimarães foi escrito e

publicado a história da imigração alemã para o Brasil já havia completado um ciclo

de aproximadamente 150 anos, tempo suficiente para que boa parte dos alemães e

descendentes já tivessem assimilado a cultura local e para que mais elementos da

saga daquele povo pudessem ser ficcionalizados de uma perspectiva menos

passional que em Canaã e menos assustadora que em Um rio imita o Reno.

Portanto, a partir das análises realizadas, conclui-se que Graça Aranha,

Vianna Moog e Josué Guimarães trazem, respectivamente, um viés científico,

político/folclórico e trágico sobre a temática da imigração alemã para o Brasil. Estes

vieses, apesar de distintos, estão em diálogo e desvelam um panorama mais aberto,

complexo e profundo sobre a representação do imigrante alemão na literatura

brasileira do século XX, de modo que, ao longo do presente estudo, procurou-se

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responder à pergunta: quem é o imigrante alemão para o escritor brasileiro do século

XX?

Este olhar que é depreciativo em Graça Aranha, crítico em Vianna Moog e

solidário em Josué Guimarães sobre o imigrante alemão é relevante, visto que não

escamoteia a realidade na qual estas obras se pautaram, pois se ativeram a

aspectos negativos e positivos sem recaírem na tentativa ingênua de ignorar o

passado através de uma reconstrução supérflua e não crítica das tramas históricas e

sociais que definiram a trajetória da sociedade.

Assim, se por um lado, as personagens Lentz, Frau Marta e Gründling

reproduzem a imagem dos alemães enquanto sujeitos opressores, fechados à

interação com brasileiros, e obsedados por crenças que estabelecem uma hierarquia

entre as raças, claramente Maria Perutz, Lore Wolff, Daniel Abrahão e Catarina

Schneider se contrapõem a eles, pois representam seres humanos como quaisquer

outros.

Seja na selva do Espírito Santo, no início da República, seja na folclórica

Blumental, às vésperas da II Guerra Mundial, ou nas precárias circunstâncias em

que os primeiros colonos alemães chegaram a São Leopoldo em 1824, não há

apenas alemães totalmente bons ou maus, abertos ou fechados, preconceituosos ou

isentos de preconceitos. Isto significa que, não obstante as motivações históricas,

sociais e ideológicas que impõem o que é certo ou errado, os homens não se

distinguem entre si, dada sua natureza essencialmente contraditória e incompleta.

Para chegar até estes resultados a presente pesquisa ateve-se a alguns

aspectos mais importantes sobre as primeiras relações travadas entre a Alemanha e

o Brasil e a história da imigração alemã para os trópicos, uma vez que esta base

sócio-histórica é fundamental na constituição das obras analisadas. A seguir,

realizou-se uma reflexão sobre o papel da literatura enquanto memória cultural na

temática estudada, na qual se tem acesso à representação do imigrante alemão no

contexto brasileiro. Nos capítulos dois, três e quatro se analisou os romances

Canaã, Um rio imita o Reno e A ferro e fogo, sendo que o que se selecionou dos

romances para este trabalho foram os elementos relevantes para compreender a

representação do imigrante alemão e sua relação com os brasileiros, o que significa

que há muitas outras possibilidades e vieses de análise que poderiam ser

explorados, mas que extrapolariam a presente proposta.

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Este trabalho trouxe respostas sobre como o imigrante alemão foi

representado na literatura brasileira do século XX, mas ainda persistem outras

questões em aberto, por exemplo, se a partir da obra de Josué Guimarães o

imigrante alemão ainda foi tematizado por escritores brasileiros, por quais, como, e

que mudanças ocorreram neste percurso? A título de exemplo, sobretudo na

produção romanesca sul-rio-grandense, as marcas culturais alemãs continuaram

sendo retomadas por escritores como: Lya Luft, que reflete subliminarmente a

herança da cultura alemã em A asa esquerda do anjo (1981); Charles Kiefer, em A

valsa para Bruno Stein (1986) e A face do abismo (1988); Rui Nedel, em Te arranca

alemão batata (1986); Assis Brasil, em Videiras de Cristal (1990); Pedro Stiehl, em

Bárbaros no paraíso (2001); destacam-se, ainda, Luiz Sérgio Metz, Roberto Velloso

Eifler, Nilson Luiz May, Valeska de Assis, Fernando Neubarth.

Por fim, resta reiterar que com a temática trabalhada teve-se em vista, desde

o início da pesquisa, o fortalecimento, a abertura e o diálogo entre o campo literário

brasileiro e o alemão, com base na valorização do diverso, na troca cultural e no

posicionamento ativo e recíproco por parte dos interlocutores de ambos os países.

Finalmente, encerrando com as motivações pessoais implícitas à opção pelo

presente estudo, ao longo da presente pesquisa pude compreender melhor a origem

dos preconceitos subjacentes em algumas comunidades alemãs, pois, como bem

afirma Guimarães Rosa (2001, p. 80), “o real não está na saída, nem na chegada:

ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. E é por isso que a memória do

passado não deve ser soterrada, mas resgatada e compreendida, para que as novas

gerações não cometam os mesmos equívocos tão sombrios do passado.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE

As primeiras relações estabelecidas entre Brasil e Alemanha remontam às

expedições ibéricas que levaram à descoberta da terra de Vera Cruz, das quais

também alemães fizeram parte, sobretudo por meio de uma rica produção de

cartografias, mapas e globos (DONATO, 1999/2000).

O astrônomo e cosmógrafo Meister Johann talvez tenha sido o primeiro

alemão a pisar em terras brasileiras. Físico e cirurgião do rei português Dom Manuel,

ele viajou na expedição de Pedro Álvares Cabral, sendo o responsável pelas

primeiras observações astronômicas brasileiras em 27 de abril, e autor da carta68 a

Dom Manuel, em 1º de maio de 1500, na qual informou sobre as suas observações

e registrou em um desenho o Cruzeiro do Sul.

Naquele contexto de expedições e descobrimento, houve uma polêmica

discussão entre os alemães sobre o direito de terem descoberto o Novo Mundo,

visto que foi o alemão Martin Behaim quem localizou a região conhecida como

Estreito de Magalhães69, no extremo Sul da América, antes de Fernão de

Magalhães, conforme mapa de 1492 do acervo da Biblioteca Estadual de Munique

(Anexo I).

Lindgren (1992) explica que o nome América só foi cunhado por volta de

1507, com o mapa-múndi de Martin Waldseemüller. Considerado o mais antigo da

América, este mapa foi baseado na Cosmografia de Claudius Ptolemaeus e mostra

parte do Norte e do Sul da América. Uma das fontes do conhecimento e das

informações de Waldseemüllers foi Américo Vespucci, bem como as informações

que eram publicadas na Alemanha através de jornais (LINDGREN, 1992).

Ao se ater à imagem da América Latina na historiografia alemã, König (1992)

comenta que há uma produção relevante de textos e materiais cartográficos que

remetem à época do descobrimento da América, pois os alemães estavam de fato

68 Esta carta, datada do mesmo dia da carta de Pero Vaz de Caminha, está disponível na Torre do Tombo, em Lisboa, e foi publicada pela primeira vez no Brasil, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1843, Tomo V, nº 19, p. 342-344). 69 Ou seja, não se tratava, exatamente, do descobrimento das terras brasileiras, visto que o estreito de Magalhães localiza-se no extremo Sul da América, separando o continente americano do arquipélago Terra do Fogo, cuja ponta mais ao Sul é o Cabo Horn. Trata-se de uma passagem de complicada navegação, que interliga os oceanos Pacífico e Atlântico, e que recebeu este nome pelo fato de Fernão de Magalhães ter sido o primeiro europeu a navegar pelo estreito, em 1520.

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interessados na descoberta e conquista do Novo Mundo e no encontro pessoal com

os estrangeiros.

Na época das grandes viagens marítimas, a imprensa alemã tinha boas

relações com o Sul da Europa e, por conseguinte, fácil acesso às informações sobre

o descobrimento do Novo Mundo. Naturalmente, uma das primeiras e mais

importantes fontes de informação sobre o continente descoberto é a carta de

Cristóvão Colombo, de 1493, que teve doze reproduções na Europa entre os anos

de 1493 e 1497, sendo duas delas impressas na Alemanha, uma em latim e outra

em alemão.

Naquela época o interesse da Alemanha estava na impressão e no comércio

deste material. As informações eram publicadas na forma de relatos de testemunhas

oculares, descrições de viagens, crônicas e cosmografias e, sobretudo, folhetos,

panfletos e os chamados Newen Zeytungen, ou seja, novos jornais, que eram

apreciados por um público seleto de leitores que aguardava informações e

atualidades sobre o Novo Mundo e seus habitantes.

Estes jornais continham também xilogravuras (Anexo II), como a retirada do

primeiro documento em língua alemã sobre as terras brasileiras de 1515, intitulado

Newen Zeitung auss Pressilg Landt – Nova gazeta da terra do Brasil – impresso em

Augsburg. Embora muitos destes textos tenham se perdido, uma cópia deste jornal

está disponível na Biblioteca Estadual de Munique.

Em relação ao conteúdo do material que era produzido sobre a América,

König (1992, p. 217) afirma que:

partindo da perspectiva de que eles [europeus] não se ocuparam especificamente com a América, mas sim, na abrangência das obras concebidas como história universal, mal versam sobre esse continente, se comparado à Europa, Ásia e África. Eles descreveram o povo americano no contexto da descoberta e dos relatos da conquista, na maioria das vezes, de forma generalizada, quase sempre com a imagem negativa de cruéis canibais70.

Wolfgang Neuber (1992) escreveu um interessante capítulo intitulado

Amerika in deutschen Reiseberichten des 16. Und 17. Jahrhunderts – América em

70 Tradução: “abgesehn davon, dass sie sich nicht speziell mit Amerika beschäftigten, sondern im Rahmen ihrer als Universalgeschichten konzipierten Werke Amerika im Vergleich zu Europa, Asien und Afrika nur knapp behandelten, beschrieben sie im Kontext der Entdeckungs- und Eroberungsberichte die amerikanischen Menschen meist generalisierend, oft mit dem Negativbild vom grausamen Kannibalen“.

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relatos de viagem alemães dos séculos XVI e XVII – trazendo de forma cronológica

alguns exemplos de como o novo mundo foi representado pelos viajantes alemães

que estiveram na América nos séculos XVI e XVII. Naquele contexto inicial de

descobrimento, havia poucas informações concretas sobre o novo continente e „para

a área da língua alemã podia-se se contar, em diferentes edições, com menos de

uma dúzia de textos, os quais foram propagados aqui em latim como também em

Língua alemã” (NEUBER, 1992, p. 37)71.

Entre os aventureiros que alcançaram o Novo Mundo, pode-se citar Titus

Neukomm, Hieronimus Köhler, Phillip von Huten, Hans Staden, Nikolaus Federmann

e Ulrich Schmidel. Hans Staden foi, talvez, uns dos mais conhecidos, pois ele esteve

por duas vezes no Brasil, permanecendo no país por nove meses no ano de 1554

como refém de índios tupinambás.

Em 1557, ao retornar de sua viagem, Hans Staden publicou na Alemanha

Wahrhaftig Historia und Beschreibung eyner Landschaft der Wilden, Nacketen,

Grimmigen Menschenfresser Leuthen, in der Newen Welt America – A verdadeira

história e descrição dos selvagens nus e ferozes, devoradores de homens,

encontrados no Novo Mundo, América – obra que só foi traduzida e publicada no

Brasil em 1892, na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Conforme Cecchetta (2011), esta obra de Staden foi revisitada por inúmeros autores,

como Monteiro Lobato e, até meados de 1950, representava o texto fundador das

relações entre Brasil e Alemanha.

Evidentemente o relato da exótica fauna e flora brasileira, bem como o de

rituais antropofágicos de tribos indígenas criou prontamente no imaginário europeu a

ideia de um lugar extremamente selvagem e perigoso. “As primeiras imagens

autênticas impressas do Novo Mundo se encontram em Historia de Hans Staden”72,

afirma Neuber (1992, p. 48).

Na capa do livro de Staden supracitado (Anexo III), a figura que está na parte

inferior prenuncia o conteúdo do livro, pois há um homem deitado na rede comendo

um pé humano e, à sua frente, estão sendo assados outros pedaços de carne

humana. O ritual antropofágico é ilustrado exemplarmente em outra imagem (Anexo

71Tradução: “für den deutschen Sprachraum hat man, in verschiedenen Ausgaben, mit weniger als

einem Dutzend Texte zu rechnen, die hier in lateinischer wie auch in deutscher Sprache verbreitet

wurden“. 72 Tradução: “Die ersten im Druck verbreiteten authentischen Bilder der Neuen Welt finden sich in Hans Stadens Historia”

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IV), na qual Hans Staden, enquanto prisioneiro dos índios, é obrigado a assistir à

cena impactante.

Ao longo do século XIX, os relatos de viagens, escritos por alemães

naturalistas que realizaram expedições em várias regiões do Brasil para estudarem a

fauna, a flora, bem como línguas e costumes de algumas tribos indígenas,

reforçaram os laços entre ambos os países.

Ao aportar no Rio de Janeiro, em 1817, a esposa de D. Pedro, a

arquiduquesa Maria Leopoldina, trouxe cientistas e botânicos alemães, dentre os

quais se destacam Karl Friederich von Martius e Johann Baptist Ritter von Spix.

Ambos realizaram grandes incursões pelo Brasil e tanto os dados quanto os

materiais coletados em tais expedições ainda têm grande importância. Embora o

mérito de Spix tenha sido quase suplantado pelo de Martius, ambos são

considerados os mais importantes estudiosos da América do Sul naquela época.

Spix foi o primeiro zoólogo a explorar a região amazônica e o responsável

pelo conhecimento básico que se tem atualmente sobre a fauna do continente. O

texto Como se deve escrever a história do Brasil, de Martius, foi premiado, em 1843,

em um concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pois colaborava com a

memória nacional através da divulgação de documentos históricos, etnográficos, e

com o estudo da formação brasileira73.

A primeira vinda ao Brasil do naturalista e cientista Georg Heinrich von

Langsdorff74 foi em 1803, quando permaneceu quatro meses. Em 1813 ele retornou

ao Brasil como Cônsul Geral da Rússia e aqui permaneceu por 15 anos, tendo,

inclusive, comprado uma fazenda que se transformou em um ponto de referência

para viajantes e cientistas estrangeiros, dentre os quais Spix e Martius.

A referida fazenda foi visitada, também, por D. Pedro I e pela Princesa

Leopoldina. Publicado no livro Viagem pitoresca através do Brasi75, o desenho

“Mandiocca” (Anexo V) faz menção à fazenda e é de autoria de Johann Moritz

73 A documentação de Martius encontra-se na Biblioteca Estadual de Munique; o material etnográfico reunido por Spix está no Staatliches Museum für Völkerkunde, na cidade de Munique, e as coleções zoológicas permanecem no Zoologische Staatssammlung München. 74 Ao lado de Langsdorff devemos citar Alexander von Humbold (1769-1859) pela sua importância e interesse pelo Brasil. No entanto, ele não chegou a vir ao Brasil para explorar o rio Amazonas, como pretendia. 75 Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acerevo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P66.html>.

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Rugendas,76 (1802-58) que havia sido contratado por Langesdorff para acompanhá-

lo na sua expedição pelo Brasil. Mas, por ter se desentendido com seu contratador,

Rugendas voltou à Europa com as gravuras e desenhos produzidos.

A Fazenda Mandioca era uma espécie de centro científico no Brasil, visto que

se constituía em um espaço em que reuniões e discussões científicas eram

realizadas. Também nela foi realizada a pouco conhecida experiência de Langsdorff

com imigrantes alemães trazidos por ele em 1822, sobre a qual ele publicou em

Paris em 1820 um livreto intitulado Memórias sobre o Brasil para servir àqueles que

nele se desejam estabelecer, e em 1821, em Weimar e Heilderberg, publicou

Bemerkungen ueber Brasilien: mit gewissenhafter Belehrung fuer auswandernde

Deutsche (1821) – Observações sobre o Brasil: com exatas instruções para

imigrantes alemães. A obra trata das vantagens e desvantagens de se emigrar para

o Brasil, seus custos e condições políticas, geográficas e climáticas. No Brasil a

iniciativa de Langesdorff de incentivar a imigração de alemães foi vista com

desconfiança, pois, à época, o trabalho livre era motivo de estranhamento em um

país cuja produção estava baseada na mão de obra escrava.

Embora tenha permanecido esquecido por muitos anos, Langsdorff produziu

um vasto material sobre suas expedições pelo Brasil, o qual foi redescoberto e em

1990 foi criada a Associação Internacional de Estudos Langsdorff – AIEL, em

Campinas, e em 1997 seus Diários de viagem pelo Brasil foram publicados em três

volumes no Brasil, pela FIOCRUZ.

Quando se trata das relações Brasil-Alemanha, outra figura importante que

não pode deixar de ser citada é Johann Wolfgang von Goethe. O escritor alemão

demonstrou profundo interesse pelo Brasil – o que está também relacionado à

abertura dos portos do Brasil às nações amigas, que representou praticamente uma

segunda “descoberta” do país.

O conhecimento de Goethe sobre a botânica brasileira pode ser explicado por

seu contato pessoal e por correspondência com muitos naturalistas que viajaram

pelo Brasil e demais países da América Latina, como Alexander von Humboldt que,

apesar de nunca ter estado no Brasil, era muito admirado por Goethe. Na lista de

76Alguns desenhos e aquarelas de Rugendas estão disponíveis para acesso online na página da Pinacoteca do Estado De São Paulo: < <http://www.pinacoteca.org.br/pinacotecat/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=J&cd=3572>. Toda a obra Viagem pitoresca através do Brasil está disponível em língua alemã no seguinte link: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P69.html>.

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contatos de Goethe podem ser citados o chamado “pai da geologia brasileira”,

Wilhelm Ludwig von Eschwege, o qual fundou a primeira usina de ferro no Brasil e

foi nomeado por D. João VI para o cargo diretor de seu gabinete geológico das

minas de ouro (1810). Além de Eschwege, Goethe também se encontrou

pessoalmente com Carl Philipp von Martius.

A biblioteca de Goethe em Weimar confirma esta rede de relações e contém

dezenas de livros sobre temas relacionados ao Brasil, além de outros objetos de

origem brasileira. Ou seja, a viagem de Goethe ao Brasil se deu através dos livros e

das ricas informações que viajantes naturalistas como Martius publicavam na

Europa. Tal interesse foi estudado por Sylk Schneider em Goethes Reise nach

Brasilien: Gedankenreise eines Genies. De acordo com o autor, em 1932, no

bicentenário do nascimento de Goethe, a Academia Brasileira de Letras se

encarregou de homenageá-lo, plantando no jardim do Petit Trianon, no Rio de

Janeiro, uma Goethea das florestas brasileiras, descoberta em 1817 por Maximiliano

de Wied.

No mesmo ano foi inaugurada a segunda Reserva Natural do Brasil, Reserva

da Goethea, na restinha de Itapeba, em Jacarépagua, Rio de Janeiro. Todas estas

informações, bem como a consulta à obra de Martius, Flora Brasiliensis, estão

disponível no link <http://www.goethebrasil.de>. A imagem da Goethea, do gênero

mokoyana, de região próxima a Vitória, extraída da Flora Brasiliensis (vol. XII part.III,

prancha 105) está em anexo (Anexo VI).

Nomes como Meister Johann, Hans Staden, Johan Baptist von Spix, Karl

Friederich Philipp von Martius, Johann Moritz Rugendas, Georg Heinrich von

Langsdorff e Johann Wolfgang von Goethe são aqui rapidamente citados como

referências sobre a presença de alemães no Brasil desde o século XVI, tendo-se em

vista que o número de exploradores, cientistas, viajantes e escritores alemães que

travaram contato com o país é relevante e merece atenção77.

77 Parte das informações aqui citadas também encontram-se na Revista E os alemães descobriram o Brasil, ano V, nº15, 2011, que trata, sob a perspectiva de diferentes áreas de estudo, das relações históricas, sociais e culturais entre a Alemanha e o Brasil, desde o descobrimento deste.

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ANEXOS

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ANEXO I

Behaim, Martin. Geographische Vorstellung eines Globi welchen Anno 1492, Herr Martin Behaim im Diametro bey 20. Zollen zu Nürnberg exibiert. Tradução: Representação geográfica do mundo no ano de 1492, por Martim Behaim. Fonte:Biblioteca Estadual de Munique.

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152

ANEXO II

Copia der Newen Zeytung auss Presillg Landt Nurenberg ca. 1515.

Tradução: Cópia do novo jornal do Brasil (1515).

Fonte: Biblioteca Estadual de Munique

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ANEXO III

Hans Staden. Wahrhaftig Historia und Beschreibung eyner Landschaft der Wilden,

Nacketen, Grimmigen Menschenfresser Leuthen, in der Newen Welt America (1557).

Tradução: A verdadeira história e descrição dos selvagens nus e ferozes,

devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, América (1557).

Fonte: Biblioteca Estadual de Munique.

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ANEXO IV

Hans Staden. Dritte Buch Americae, Darinn Brasilia (1593)

Tradução: Terceiro livro América, Brasil (1593).

Fonte: Biblioteca Estadual de Munique.

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155

ANEXO V

“Mandiocca”. In: Viagem pitoresca através do Brasil Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/acerevo_digital/div_iconografia/icon94994_item1/P66.html>.>.

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ANEXO VI

Goethea. In: Flora Brasiliensis (vol. XII, part.III, prancha 105). Disponível em:

<http://www.goethebrasil.de>.

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ANEXO VII

Tabela 1 - Procedência dos fluxos iniciais de imigrantes alemães.

Fonte: GREGORY (2011). Informações de WILLEMS (1980, p. 38-39).

Localidade Fundação Origem

São Leopoldo RS 1824 Hunsrück, Saxônia, Württemberg,

Saxônia Coburg

Santa Cruz RS 1849 Renânia, Pomerânia, Silésia

Santo Ângelo RS 1857 Renânia, Saxônia, Pomerânia

Nova Petrópolis RS 1859 Pomerânia, Saxônia, Boêmia

Teutônia RS 1868 Westfália

São Lourenço RS 1857 Pomerânia, Renânia

Blumenau SC 1850 Pomerânia, Holstein, Hannover,

Braunschweig, Saxônia

Brusque SC 1860 Bade, Oldenburgo, Renânia,

Pomerânia, Schleswig-Holstein,

Braunschweig

Joinville SC 1851 Prússia, Oldenburgo, Schleswig-

Holstein, Hannover, Suíça

Joinville SC 1851 Prússia, Oldenburgo

Curitiba PR 1878 Teutos do Volga

Santa Isabel ES 1847 Hunsrück, Pomerânia, Renânia,

Prússia, Saxônia

Santa Leopoldina ES 1857 Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia

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ANEXO VIII

“Você quer saber, valente homem alemão! o que os seus esperam no Brasil, então ouça.

Primeiro um outro, mesmo no sul, país mais quente, onde há outros costumes, outras

plantas, outros animais, outra vida – tal como atrás do forno europeu, mas onde, assim que

você chega, você e os seus são cuidados. Se você confirmar que está na Europa sob a

proteção de um homem de quem você está convencido de que ele está agindo sob as

ordens do seu imperador e seu governo, assim este, caso você não consiga pagar de todo

ou parcialmente os custos da passagem, garantirá para os seus e o deles livre embarque.

Sobre uma caixa, a qual chamamos de navio, é claro, não tem tanto espaço como em sua

espaçosa casa, mas cada um recebe seu devido espaçozinho, para si mesmo como para a

esposa e filhos, e sobre um navio impera rigorosa ordem, de modo que você não tem nada

a temer, se você é um amigo de ordem e da limpeza. À noite você pode dormir com a sua

mulher no quarto do navio e você não precisa fazer nenhum guarda, pois os maridos são

dispensados em tais navios. A viagem, que demora no máximo dois meses, vai para a

capital do Brasil, para o próprio imperador, que ama todos os seus cidadãos, mas também

seus novos cidadãos, aos quais lhe oferecerá seu coração e tudo voluntariamente, com

cuidado paternal. Os navios brasileiros de colonização estão abundantemente providos com

comida e água. Um tal navio está carregado apenas com pessoas e o que elas precisam; há

um médico, um diligentemente selecionado, graduado médico alemão, juntamente com

vários cirurgiões e uma farmácia à bordo para resolver qualquer caso de emergência [ ...]; 1-

Você vai ser mantido, durante um ano e meio, sob as custas do governo; 2- Você receberá

gado, cavalos, vacas leiteiras, ovelhas, cabras e porcos [...]; 3- semeadura, de acordo com a

localização do assentamento, ou mudas de café, arbustos de algodão, arroz ou trigo, feijão,

batata, milho, mudas de rícino (para óleo), linho, cânhamo, etc; 4- pertence-lhes a terra, a

qual vocês precisam cultivar e plantar, como herança e peculiar; 6- todos os colonos são

cidadãos brasileiros livres, têm todos os direitos, mas também todas as obrigações dos

cidadãos brasileiros, como vocês podem reler no apêndice da Constituição. Seus filhos

estão submetidos à conscrição, e eles mesmos estão, em caso de necessidade, ligados à

defesa de sua pátria. Cada colônia recebe um médico e um pregador, um dos protestantes

da sua fé, que deve ser pago pelo governo” (SCHÄFFER, 1824, p. 402-405)78.

78 Tradução: „Willst du, Wacker deutscher Mann! Wissen, was Deiner in Brasilien wartet, so höre. Erst ein anderes, selbst im Süden, wärmeres Land, wo es anderes Sitten, andere Pflanzen, andere Thiere, ein anderes Leben gibt – wie hinter dem Europäischen Ofen, wo aber, so wie du landest, für Dich und Deinigen gesorgt wird. Begibst du dich n Europa unter dem Schtuz eines Mannes von dem du überzeugt bist, dass er auf Befehl seines Kaisers und seiner Regierung handelt, so wird dieser, im Fall du die Ueberfahrtskosten gar nicht und noch nicht einmal zum Theil zu bezahlen im Stande bist, für Deine und Derjenigen freie Einschiffung sorgen. Auf einem solchen Kasten, den man ein Schiff nennt, ist freilich nicht so viel Platz, als in deinem geräumigen Hause; doch empfängt jeder sein angemessenes Plätzchen für sich, so wie für Weib und Kinder, und auf einem Schiffe herrscht strenge Ordnung, so dass du nichts zu besorgen hast, wenn du ein Freund der Ordnung und Reinlichkeit bist. Nachts kannst du bei deinem Weibchen im Schiffraum schlafen und brauchst keine Wache zu tun, wovon die Ehemänner auf solchem Schiffe dispensiert sind. [...] Die Fahrt, die höchtens zwei Monate dauert, geht nach Brasilien nach Brasilien Hauptstadt zu dem Kaiser selbst, der alle seine Bürger liebt, besonders aber auch seine neuen Bürger, die ihm ihr Herz und ihr Alles freiwillig darbringen, mit väterlicher Sorgfalt aufnimmt. [...]. Die Brasilischen Kolonistenschiffe sind reichlich mit Lebensmitteln und Wasser versehn; ein solches Schiff ist nur mit Menschen und mit dem, was sie bedürfen, beladen; es ist ein Arzt, ein mit Sorgfalt, ausgewählter, graduirter, deutscher Arzt nebst einigen Wundärzten

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ANEXO IX

Tabela 2 – Fases do processo migratório.

Fonte: HUNSCHE (1978).

und eine Schieffsapotheke an Bord, um jedem Nothfall abzuhelfen. [...] 1- Sie werden anderhalb Jahr lang auf Kosten der Regierungs verpflecht; 2- Sie erhalten Rindvieh, Pferde, Milchkühe, Schafe, Ziege und Schweine [...]; 3- Die Aussaat nach Verhältnis der Lage der Ansiedlung, entweder Kaffeepflanzen, Baumwollenstauden, Reis oder Weizen, Bohnen, Kartoffeln, Mais, Ricinuspflanzen (zu Oel), Lein, Hanf, etc. 4- Gehört ihnen das Land, welches sie urbar machen und anpflanzen müssen, erb- und eigenthümlich; [...] 6- Die sämtlichen Kolinisten sind freie Brasilische Bürger, haben alle Rechte, aber auch alle Verpflichtungen Brasilischer Bürger, wie si in dem im Anhange mitgetheilten Konstitutionsentwurfe nachzulesen sind. Ihre Söhne sind der Konscription unterworfen, und sie selbst sind im Nothfall zuer Vaterlandsvertheidigung verbunden. Jede Kolonie erhält eine Arzt und eine Prediger, die Protestanten einen ihres Glaubens, die von der Regierung besoldet werden“ (SCHÄFFER, 1824, p. 402-405)

Fase 1

1824-1830

Começa com a fundação da colônia de São

Leopoldo sendo interrompido em 1830 com o corte

de recursos para a colonização estrangeira no

país.

Fase 2

1845-1859

Com o fim da Revolução Farroupilha (1835-1845) o

processo é retomado. Neste período são

estabelecidos os limites da colonização alemã, desde

o Rio Grande do Sul até Minas Gerais, além da

criação da Lei das Terras (1850), determinando a

venda e não mais a doação de lotes aos colonos.

Fase 3 1859-1889 O fluxo imigratório é afetado por diversos

acontecimentos, como o Restrito de Heydt (1859),

promulgado pela Prússia para dificultar a vinda dos

imigrantes, dado o não cumprimento de acordos e as

más condições de vida dos imigrantes; Guerra do

Paraguai (1864-1870); Guerra Franco Alemã (1870-

1871); abolição da escravatura (1888), que acentuou a

necessidade de mão de obra nas lavouras brasileiras.

Fase 4 1889-1914 Início da Proclamação da República (1889) até o início

da I Guerra Mundial.

Fase 5 1919-1939 Depois da I Guerra Mundial até o início da II.

Fase 6 1945-1976 Depois da segunda Guerra Mundial até o final.

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ANEXO X

Tabela 3 – Número de imigrantes no Brasil.

Período

Total Médias anuais

1824-47 8.17 6 355

1848-72 19.523 813

1872-79 14.325 2046

1880-89 18.901 2100

1890-99 17.084 1898

1900-09 13.848 1539

1910-19 25.902 2878

1920-29 75.801 8422

1930-39 27.497 3055

1940-49 6.807 756

1950-59 16.643 1849

1960-69 5.659 629

Fonte: Gregory (2011). Baseado em Mauch et al., (1994, p. 165).

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161

ANEXO XI

Levantamento de dados estatísticos sobre o movimento migratório alemão. Fonte:

Allgemeine Auswanderer Zeitung (1858, n.º 6 p. 25).

Tradução: Jornal Geral dos imigrantes.

Fonte: Bayerische Staatsbibliothek München.

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162

ANEXO XII

Der Reichtum Amerikas. Frontispiz aus Johann Ludwig Gottfrid: Historia Antipodim

(1631).

Tradução: A riqueza da América. Frontispício de Johann Ludwig Gottfried.

Fonte: Knefelkamp; König (1988). Die Neuen Welten in alten Büchern.

Biblioteca Central da Universidade Ludwig Maximilians de Munique.

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163

ANEXO XIII

Das Repertoire von Monstern und Fabelwesen.

Tradução: O repertório de monstros e criaturas míticas.

Fonte: SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. 1493

Bayerische Staatsbibliothek München.

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164

ANEXO XIV

Uslegung der Mercarthen. Lorenz Fries (1527). Bayerische Staatsbibliothek München.

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165

ANEXO XV

Fliegende[n] Blätter [Folhas voadoras] um folhetim semanal publicado pela primeira vez em 1844. Wanderlust – zum Declamieren für die Deutsche Schuljugend. Bayerische Staatsbibliothek München.

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166

ANEXO XVI

Expressões e vocabulário em língua alemã presentes em Um rio imita o Reno.

Vocabulário em língua alemã Tradução

Einen moment, bitte p.1 Um momento, por favor

Grüss Gott!/Tritt ein/Bring Glück herein

p. 17 Cumprimente a Deus, entre e traga sorte

Klösse p. 17 Nhoque

Apotheke, Schuhmacher, Bäckerei p. 7 Farmácia, sapateiro, padaria

Eins, zwei, eins, zwei ... Heil Hitler p. 22 Um, dois, um, dois... Salve Hitler.

Mein Kampf p. 44 Minha luta

Das dritte Reich p. 44 O terceiro império

Staat, Bewegung, Volk p.44 Estado, movimento, povo

Praktische Kulturarbeit im dritten Reich

p.44 Prático trabalho cultural no terceiro império

Kerb p. 9 Festa típica com culto religioso, dança e comida

Sorg, aber sorg nicht zu viel, es geht doch wie’s Gott haben will

p. 195 Preocupe-se, mas não preocupe-se muito, as coisas vão como Deus quer

Trink, trink, Brüderlein trink. Lass doch die Sorgen zu Haus Dann ist das Leben ein Scherz

p. 195 Beba, beba, irmão beba. Deixe as preocupações em casa Então a vida é uma piada

Sehr schön gewesen p.53 Foi muito bonito.

Morgenstund hat Gold im Mund p. 77 As horas da manhã tem ouro na boca

Lied p. 77 Canção

Gesangverein p. 78 Coral

Hausfrau p. 82 Dona de casa

Kolonie Zeitung p. 86 Jornal da Colônia

Das grosse S p. 87 O grande „S“

Wie geht’s, Schatz? p. 118 Como vai, tesouro?

Pelznickel p. 118 Papai Noel

Grossvater p. 119 Avô

Mein Gott p. 112 Meu Deus

Meine Herren p. 143 Meus senhores

Tante Lore p. 179 Tia Lore

Gemütlich p. 168 Confortável

Verboten p. 126 Proibido

Grüne p.130 [o] Verde

Verband Deutscher Vereine im Ausland

p.142 Associação de clubes alemães no exterior

Der mythus des zwangzigsten jahrhunderts

p.171 O mito do século XX

Doppelgänger p. 172 Duplo

Reichsautobahnen p. 175 Rodovias do Império

Deutschland p. 178 Alemanha

Reis, Mehl, Bohnen, Salz, Zucker p. 183 Arroz, farinha, feijão, sal, açúcar

Familienfreude p. 200 Alegria da família

Fonte: Elaborado por Elisangela Redel.

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ANEXO XVII

Deutscher Morgen [Aurora Alemã], São Paulo, 1938. Fonte: Biblioteca Digital da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP): <http://unesp.br/bibliotecadigital/index.php<. Parceira com o Instituto Martius-Staden <http://martiusstaden.org.br/>.

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ANEXO XVIII

Dia do Partido em Nürnberg, 1934. Fonte: Volk und Heimat: kalender für das Deutschtum in Brasilien (1935, p. 152). Bayrische Staatsbibliothek München.

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ANEXO XIX

Carta escrita em alemão na Colônia Santa Izabel, no Espírito Santo. Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung [Jornal Geral da Imigração], de 1859, nº37 (p. 148). Bayerische Staatsbibliothek München. ,

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ANEXO XX

Dados sobre a produção e os resultados das colônias alemãs no Brasil. Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung (1859, nº5). Bayerische Staatsbibliothek München.

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ANEXO XXI

Carta de nove de agosto de 1857, de São Leopoldo. Fonte: Allgemeine Auswanderungszeitung, 1858, nº 1. Bayerische Staatsbibliothek München.

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ANEXO XXII

Auswanderer auf dem Rheim [Imigrantes sobre o Reno]. Fonte: Jornal "Die Gartenlaube", de 1864. Bayerische Staatsbibliothek München.

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ANEXO XXIII

Abschied der Auswanderer [Despedida dos imigrantes], de Antonie Volkman (1860).

Fonte: Arquivo pessoal (fotografia). Deutsches Historisches Museum Berlin.

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ANEXO XXIV

Poema Ich habe Heimweh, Mutter [Eu tenho saudades de casa, mãe]. Fonte: Kalender für das Deutschtum in Brasilien. 1935. Bayerische Staatsbibliothek München.

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Tradução do poema: Eu tenho saudades de casa, mãe Oh, dor que queima Meus olhos se perdem e vagueiam Até o céu da pátria E ainda não podem encontrar A distante, distante terra. Eu tenho saudade de casa, mãe Oh, dor tão angustiante Eu não posso forçá-lo à calma Todo o coração saudoso Eu não posso forçá-la à calma A multidão que insiste pelos seus desejos Os quais sempre cantam Do que já se foi Eu tenho saudade de casa, mãe Mãe, você me compreende? Eu não procuro a pátria Eu procuro a mim mesmo Eu procuro as sedas marrons Onde as rosas uma vez floresceram Eu procuro as verdes florestas Da luz da noite, brilhantes Eu estou procurando, mas não a pátria Eu procuro o passado Eu tenho tantas saudades de casa, mãe Mãe, você me compreende?