165
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS SANTOS A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO Tubarão 2010

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO

Tubarão

2010

Page 2: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

1

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO

DE ALFABETIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em

Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de

Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Sandro Braga.

Co-orientador: Prof. Dra. Maria Ester W. Moritz.

Tubarão

2010

Page 3: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

2

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO

Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do

título de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada

em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências

da Linguagem da Universidade do Sul de Santa

Catarina.

Palhoça, 13 de julho de 2010.

______________________________________________________

Professor e orientador, Sandro Braga, Dr.

Universidade do Sul de Santa Catarina

______________________________________________________

Professora Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, Dra

Universidade Federal de Santa Catarina

______________________________________________________

Professora Maria Marta Furlanetto, Dra

Universidade do Sul de Santa Catarina

Page 4: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

3

Ao meu pai, Afonso Celestino (in memoriam),

pelo seu esforço e pela sua determinação; à

minha filha, Joanne, amor da minha vida; e à

minha neta, Maria Cecília, pelas belas histórias

contadas ao telefone.

Page 5: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço:

A Deus que me conduziu, passo a passo, nesta longa caminhada. A minha família

que, mesmo de longe, nos momentos de dificuldade soube estar “presente”. Especialmente, a

minha mãe, pelo incentivo e seu eterno amor. Ao Governo do Distrito Federal e à Secretaria

de Estado de Educação do Distrito Federal, pela liberação e investimento em meu potencial

acadêmico. À professora Dra. Maria Ester W. Moritz (UFSC), minha orientadora, que,

corajosamente, desde o início, acreditou na realização deste trabalho e prontamente aceitou o

desafio de estudar uma nova teoria. Especialmente, pela amizade, carinho e competência com

que me introduziu no campo da pesquisa. Ao professor Dr. Sandro Braga, por ter aceitado,

gentilmente, o compromisso de terminar a orientação deste trabalho. À professora Dra. Maria

do Carmo Pereira Coelho (UDF), pela sua amizade, carinho e pelo suporte teórico em todos

os momentos de necessidade. À professora Dra. Maria Marta Furlanetto (UNISUL), pelas

revisões e pela leitura criteriosa. À professora Dra. Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti (UFSC),

pela atenção dispensada às nossas solicitações e pelas valiosas contribuições na finalização

desta pesquisa. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade

do Sul de Santa Catarina, pela oportunidade de realização desta pesquisa. Especialmente, ao

professor Dr. Sandro Braga, à professora Dra. Jussara Bittencourt e à professora Dra. Maria

Ester W. Moritz, pela receptividade e competência com que conduziram as disciplinas. Aos

colegas professores que, de uma forma ou de outra, fizeram parte desta jornada e sempre

enfatizaram as minhas habilidades. Aos colegas de Mestrado, pelo acolhimento durante os

vinte e quatro meses de estudo. Em especial, a minha amiga Simone, pelas madrugadas de

estudos, conversas e descontração. Aos pequenos aprendizes, meus alunos, que ao longo de

vinte e cinco anos de magistério, têm tornado minha caminhada mais suave, com certeza, sem

eles seria impossível chegar até aqui. Finalmente, agradeço a minha filha, Joanne, pelo seu

amor incondicional e pela confiança depositada em meu trabalho diariamente. Obrigada!

Page 6: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

5

“Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa debaixo do céu; tempo de

nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de

matar e tempo de curar; tempo de destruir e tempo de construir; tempo de chorar e tempo de

rir; tempo de lamentar e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras e tempo de as ajuntar;

tempo de abraçar e tempo de afastar dos abraços; tempo de procurar e tempo de perder; tempo

de guardar e tempo de jogar fora; tempo de rasgar e tempo de costurar; tempo de calar e

tempo de falar; tempo de amor e tempo de ódio; tempo de guerra e tempo de paz” (Eclesiástes

3).

Page 7: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

6

RESUMO

Este estudo tem o objetivo de descrever os processos de apropriação da língua escrita

por crianças em fase de alfabetização, partindo do pressuposto que a língua é usada

socialmente como forma de ação e interação social, fundamentada no universo sócio-

histórico-cultural da criança (VYGOTSKY, 1999). A pesquisa se desenvolveu em sala

de aula com trinta e uma crianças de uma turma da primeira série do Ensino

Fundamental do Distrito Federal. Para explicar o percurso metodológico e analisar o

processo de apropriação da língua escrita, foi coletada a produção textual em três

momentos diferentes. Em 2005, a coleta da primeira amostra ocorreu em março; a

segunda amostra ocorreu em junho e, por último, coletamos a terceira amostra em

novembro. Com base na perspectiva do desenvolvimento da escrita (VYGOTSKY,

1999, 1998; LURIA, 1998) e na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,

NOVERRAZ, 2004), foram detalhadamente preparadas atividades específicas de

língua materna e colocadas à disposição das crianças. Dessas escolhas teórico-

metodológicas, foi organizada e preparada cada etapa de aprendizagem, na certeza de

que as intervenções determinam o modo como as crianças escrevem. Foi utilizada a

lenda como gênero de ação didático-pedagógica para criar situações de ensino-

aprendizagem em que as crianças pudessem estabelecer contato com situações de

escrita. Os resultados apontam que inicialmente as crianças não percebem a

funcionalidade da linguagem escrita e ainda não sabem a função das letras no

aprendizado da leitura e da escrita. E que a aplicação das atividades contribuíram para

desenvolver capacidades de escrita combinadas à produção de texto. A análise dos

dados apontou sobretudo que as estratégias e as intervenções adotadas colaboraram

para um trabalho mais organizado e sistematizado, estabelecendo vínculos entre as

práticas sociais e as práticas escolares mediadas pela ação da linguagem.

Palavras-chave: Alfabetização. Gênero lenda. Apropriação da língua escrita.

Page 8: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

7

ABSTRACT

This study aims at describing written language acquisition processes by children going

through literacy process, based on the premisse that language is socially used as a form of

action and social interaction and on the sociohistorical and cultural environment of the

children (VYGOTSKY, 1999). The research was carried out in a first grade classroom of an

Elementary school in the Federal District with 30 children. In order to explain the

methodological steps and to analyse the process of written language acquisition, texts

produced by the children were collected in three different moments. In 2005, the first sample

was collected in March; the second sample was collected in June and the third and final

sample in November. Based on the writing development perpective (VYGOTSKY, 1999,

1998; LURIA, 1998) and on the didactic sequence (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ,

2004), mother tongue activities were detailed developted and displayed for the children.From

these theoretical-methodological choices, each learning stage was organized and prepared

having in mind that these interventions determine the way in which children write. The

childrens’legend was used as genre of the didactic-pedagogic action in order to create

teaching-learning situations involving contact with the written language. Results demonstrate

that initially children did not notice the function of the written language and they still did not

perceive the function of the letters in the literacy process. It was noticed that the application of

the activities contributed to the development of writing skills combined with text

production. Data analysis demonstrated that the strategies and the interventions

adopted contributed to a more organized and sytematized work, establishing links between

social practices and school practices mediated by language actions.

Key-words: Literacy, written language acquisition, childrens’legend as a genre.

Page 9: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Coordenadas gerais dos mundos discursivos...................................................28

Figura 2 - Esquema da sequência didática .............................................................................32

Figura 3 - Quadro de agrupamento de gênero..........................................................................31

Figura 4 - Reconto coletivo......................................................................................................81

Figura 5- Reconto coletivo: Fases da narrativa.....................................................................83

Figura 6 - Produção B. Realizada em março.............................................................................85

Figura 7 - Produção F. Realizada em junho..............................................................................86

Figura 8 - Produção A. Realizada em março............................................................................88

Figura 9 - Produção E. Realizada em junho ............................................................................................90

Figura 10 - Produção U. Realizada em novembro...................................................................92

Figura 11- Produção M. Realizada em novembro..................................................................94

Figura 12 - Produção P. Realizada em novembro.....................................................................95

Figura 13 - Produção J. Realizada em novembro.....................................................................98

Figura 14 - Produção H. Realizada em novembro..................................................................102

Figura 15 - Produção C. Realizada em março........................................................................109

Figura 16 - Produção L. Realizada em junho.........................................................................112

Figura 17 - Produção B. Realizada em março........................................................................117

Figura 18 - Produção G. Realizada em junho........................................................................................116

Figura 19 - Produção T. Realizada em novembro..................................................................120

Figura 20 - Produção O. Realizada em junho.........................................................................122

Figura 21- Produção K. Realizada em junho..........................................................................124

Figura 22 - Produção N. Realizada em junho.........................................................................126

Page 10: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

9

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Conversão aos grafemas independente do contexto...................................................... 45

Tabela 2. Conversão dependente da posição no início do vocábulo a de antes de vogal ou em

início de sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal........................46

Tabela 3. Conversão dos fonemas dependente de vogal posterior ou não posterior.................47

Tabela 4. Conversão de /j/ e |R| em início de sílaba, depois de vogal nasalizada, |S|, |W| e de

/ej/, /ow/, /aj/; conversão de /z/ depois de /e/ em início de vocábulo e de /w/ entre /k/ ou /g/ e

vogal não posterior....................................................................................................................48

Tabela 5. Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final de vocábulo.............................49

Tabela 6. Conversão dos fonemas em final de sílaba não final de vocábulo............................50

Tabela 7. Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba..........................................50

Page 11: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................13

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................... 18

2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO

DE SENTIDO.......................................................................................................................... 18

2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos

norteadores de apropriação da língua escrita............................................................................19

2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao

pensamento de Genebra............................................................................................................23

2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo...........................................26

2.1.1.2 Proposta de intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo..................29

2.1.3 Gênero lenda: especificidades teóricas e possibilidades didático-pedagógicas...............33

2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO

DO CÓDIGO............................................................................................................................37

2.2.1 Similaridades e diferenças entre oralidade e escrita........................................................38

2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de

palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.................................................40

2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita..........................44

2.3. O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM:

RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO.................................................................................................................52

2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo de aprendizagem.......................................53

2.3.2 Zona de Desenvolvimento Proximal................................................................................55

2.3.3 A pré-história da linguagem escrita.................................................................................57

3.PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS....................................................................61

3.1 TIPO DE ESTUDO.............................................................................................................61

3. 1.2 CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................62

3.2.1 A escola............................................................................................................................63

3.2.2 A turma............................................................................................................................64

3.2.3 A sala de aula...................................................................................................................65

3.2. 4 Organização dos dados...................................................................................................66

Page 12: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

11

3.2.5 A forma de Análise dos dados........................................................................................68

4 ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................................70

4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM

CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA...................70

4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos de uso social da

língua e com base em sequências didáticas...............................................................................71

4.1.2 Aprendizagem da lenda.......................................................................................80

4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda...............................................................82

4.1.4 Aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda.......................................99

4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento.........................103

4.2.1. A descoberta de que a fala pode ser escrita.................................................................108

4.2.2 A construção da noção de palavra no texto escrito.......................................................113

4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas..................................................118

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. ...............128

REFERÊNCIAS....................................................................................................................132

ANEXOS................................................................................................................................136

ANEXO 1 - Produção A.........................................................................................................137

ANEXO 2 - Produção B..........................................................................................................138

ANEXO 3 - Produção C............................................................................................... .........139

ANEXO 4 - Produção D.........................................................................................................140

ANEXO 5 - Produção E......................................................................................................... 141

ANEXO 6 - Produção F..........................................................................................................142

ANEXO 7 - Produção G.........................................................................................................143

ANEXO 8 - Produção H.........................................................................................................144

ANEXO 9 - Produção I...........................................................................................................145

ANEXO 10 - Produção J........................................................................................................146

ANEXO 11 - Produção K.......................................................................................................148

ANEXO 12 - Produção L.......................................................................................................149

ANEXO 13 - Produção M......................................................................................................150

ANEXO 14 - Produção N.......................................................................................................151

ANEXO 15 - Produção O......................................................................................................152

ANEXO 16 - Produção P.......................................................................................................153

ANEXO 17 - Produção Q......................................................................................................154

ANEXO 18 - Produção R.......................................................................................................155

Page 13: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

12

ANEXO 19 - Produção S.....................................................................................................156

ANEXO 20 - Produção T.....................................................................................................157

ANEXO 21 - Produção U.....................................................................................................158

ANEXO 22 - Coacyaba- O primeiro beija-flor...............................................................159

ANEXO 23 – As lágrimas da Potira.....................................................................................160

ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada............................................................................161

ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo........................162

ANEXO 26 – Arutsãn – O sapo astucioso..............................................................................164

1 INTRODUÇÃO

Page 14: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

13

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que propõem o ensino da língua

materna por meio de gêneros, concentram-se na linguagem em uso e na competência humana

de interagir com a diversidade de gêneros presentes no cotidiano. De fato, do estudo desses

documentos podemos inferir que na escola havia ou há um distanciamento entre as atividades

estruturais que vinham sendo desenvolvidas; como proposta, esses mesmos documentos

recomendam o uso de atividades mediadas pelas ações de linguagem relacionadas às ações

efetivas do cotidiano, à informação, ao exercício da reflexão. Ao propor os gêneros como

objeto de ensino, esse documento, em vigor, fornece aos educadores um instrumento

necessário para desenvolver a compreensão da leitura e da escrita, estimulando a prática de

produção escrita, foco deste estudo.

Na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (daqui para a frente PCNs,

1997), os gêneros são entendidos como formas relativamente estáveis de enunciados que

apresentam três elementos em sua estrutura: conteúdo temático, estilo e construção

composicional (BAKHTIN1, 1990, 1992). O documento acolhe, também, o interacionismo

sociodiscursivo (BRONCKART, 1985) quanto às suas intenções comunicativas, e a noção de

gêneros como (mega) instrumentos de ensino-aprendizagem (SCHNEUWLY, 1993). Desse

modo, é a partir da proposição segundo a qual “todo texto se organiza dentro de um

determinado gênero” (PCNs, 1997, p. 26) que muitas pesquisas estão sendo realizadas no

Brasil (MARCUSCHI, 2002; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2000; GUIMARÃES,

CAMPANI-CASTILHOS, DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2003;

COELHO, 2003, 2004; BRAIT, 2007; CRISTOVÃO, 2005; LIBERALLI, 1999 entre outras).

Nessa abordagem, os gêneros promovem maior contato entre o aluno e a linguagem em uso e,

desde cedo, incentiva-se a produção de texto oral ou escrito nas diferentes práticas sociais.

Então, é pertinente inserir os gêneros textuais, em classes de alfabetização, por atender à

demanda de diversos textos e porque estão presentes em nossas práticas sociais.

Seguindo essa linha de entendimento, aos poucos o ensino-aprendizagem vem se

modificando com a introdução da noção dos gêneros sendo aplicada ao processo de

apropriação da leitura e da escrita. O trabalho com gêneros em sala de aula favorece as

interações verbais orais e escritas, concebendo-se o indivíduo como produtor de texto; a parte

estrutural da língua passa a ser vista não mais como centro da aprendizagem. O estudo focado

em gêneros parece oferecer uma aproximação da língua em uso com as práticas pedagógicas,

1 Aqui foi usada a tradução de 2006 de Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin.

Page 15: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

14

e ter a noção sobre como os gêneros se organizam pode ajudar a internalizar ou incorporar

essa organização, cujo resultado é a produção textual oral e escrita com sucesso.

Este trabalho assume o pressuposto de que a língua é usada socialmente como

forma de ação e de interação, levando-se em consideração o universo sócio-histórico-cultural

da criança (VYGOTSKY, 1999) e a perspectiva do desenvolvimento da escrita

(VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998). A pesquisa tem como base, também, o

interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003), que defende os gêneros em qualquer

atividade humana em forma de textos, que são articulados de acordo com as necessidades, os

interesses e as condições de funcionamento das formações sociais que os produzem. Baseia-se

ainda na noção de gênero para o ensino (SCHNEUWLY, 2004) e na sequência didática como

intervenção metodológica (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).

Embora tenham sido publicados no Brasil trabalhos usando como suporte teórico

a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY,

2004; COELHO, 2003, 2004; SOUZA, 2003; MACHADO, 2005; MATÊNCIO, 1994 entre

outros), desconhecemos estudos colocando o gênero lenda como eixo norteador do processo

de apropriação da linguagem escrita. Constatada a escassa publicação de literatura

especializada sobre a escrita focando os gêneros na alfabetização, principalmente na

concepção interacionista sociodiscursiva, o nosso interesse é contribuir com as pesquisas na

área de alfabetização e oferecer aos alfabetizadores uma nova possibilidade para trabalhar o

gênero lenda em sala de aula.

Nessa perspectiva, a construção desta pesquisa levou em consideração a produção

de texto com foco no gênero textual lenda numa classe de alfabetização no Distrito Federal.

Na alfabetização, a escolha desse gênero como objeto de ensino-aprendizagem está centrada

em quatro pilares: i) oferecer à criança o cenário de encantamento necessário à sua faixa etária

e também possibilitar diversas interações necessárias para a aprendizagem; ii) proporcionar

aos alunos o acesso a uma cultura diferente, objetivando a valorização e o respeito às

múltiplas culturas e aos diversos gêneros; iii) promover momentos de aprendizagem por

meio de histórias que serão lidas ou contadas em sala de aula; e iv) colaborar com publicações

na área de alfabetização, tendo o gênero como objeto de ensino.

Nesta dissertação se descrevem as atividades baseadas na sequência didática

(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) aplicada numa escola pública do Distrito

Federal e também se analisam as produções textuais recolhidas nos meses de março, junho e

novembro do ano de 2005. O presente estudo pode interessar a futuros alfabetizadores que

pretendam desenvolver atividades baseadas no gênero (BAKHTIN, 2006; BRONCKART,

Page 16: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

15

2003; SCHNEUWLY, 2004) englobando o sistema alfabético na aprendizagem da língua

escrita (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b, 2009).

As produções escritas foram recolhidas em três momentos: i) a primeira amostra foi

recolhida em março, com objetivo de diagnosticar como as crianças chegaram à primeira série;

ii) a segunda amostra foi recolhida em junho, após a aplicação das atividades, com objetivo de

acompanhar e analisar o andamento do processo; e iii) a terceira amostra foi recolhida em

novembro, com objetivo de analisar o percurso metodológico do processo de apropriação da

língua. Os dados foram analisados sob duas perspectivas: o uso social da escrita e o sistema

alfabético. Na primeira etapa, a ênfase recaiu inicialmente sobre o encaminhamento do

processo metodológico para desenvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o

processo de aplicação das atividades baseada na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,

NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Na segunda

etapa, explicamos as atividades aplicadas para apropriação do sistema alfabético e analisamos,

através dos dados, o percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética. Assim,

concentramo-nos na observação das capacidades individuais dos alunos e na descrição das

atividades aplicadas.

Em relação ao gênero adotamos a proposta do interacionismo sociodiscursivo

(BRONCKART, 2003), teoria na qual o gênero deve ser visto como (mega) instrumento de

ensino-aprendizagem, e sua elaboração didática acontece por meio de sequências didáticas

(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004), que são atividades organizadas de forma

sistemática e aplicadas gradativamente. Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), “uma

sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um

gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada

numa dada situação de comunicação”. Para aplicar a sequência didática, devemos realizar o

planejamento pedagógico de acordo com as características do gênero a ser estudado e, no

nosso caso, dirigir as atividades para as situações de apropriação da escrita.

Os autores recomendam que, ao elaborar uma sequência didática, os professores

obedeçam a cinco passos: no primeiro momento, apresentar a situação e esclarecer aos alunos

os procedimentos que serão adotados. Em seguida, a primeira produção será dedicada a tomar

conhecimento do que o aluno já sabe a respeito do gênero em estudo. Em outro momento,

após a avaliação da primeira produção, a partir do diagnóstico dessas produções, o professor

seleciona as atividades necessárias para apropriação do gênero e de que forma serão

organizadas. Na produção final, o processo de aplicação da sequência didática será avaliado

como um todo, observando-se as produções dos alunos. Após a aplicação da sequência

Page 17: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

16

didática, o professor deve debruçar-se sobre as produções e analisar o desempenho de cada

aluno, com o intuito de obter o perfil não somente do aluno, mas também da turma como um

todo.

Em relação ao sistema alfabético adotamos como pressupostos teórico-

metodológicos os estudos de Scliar-Cabral (2003a; b, 2009). Na obra Princípios do sistema

alfabético do português do Brasil, a autora especifica o que ela considera princípios-chave

para desenvolver o processo da leitura e da escrita e também como aplicá-los

metodologicamente ao português brasileiro. Scliar-Cabral aponta a falta da fundamentação

teórica por parte dos profissionais como uma das principais causas para o frágil desempenho

no ensino-aprendizagem, sobretudo quanto à apropriação dos conceitos de decodificação e

codificação. Segundo ela, se aplicados corretamente, esses conceitos garantem o acesso aos

processos complexos de compreensão e de produção dos textos escritos, daí a importância

deste trabalho que pretende preencher tal lacuna.

Entendemos que, de maneira geral, o aluno iniciante desenvolve a habilidade da

leitura e, em um segundo momento, apropria-se da escrita, ou seja, a leitura precede a escrita

e é primordial no processo de alfabetização. Este trabalho apresenta a escrita como foco de

investigação utilizando os gêneros textuais como metodologia de ensino-aprendizagem, e,

principalmente, acolhe o gênero lenda como estratégia para apropriação do sistema alfabético.

Considerando a alfabetização ainda um problema enfrentado por escolas e professores do

nosso país, e que as abordagens predominantes atuais ainda não incorporaram plenamente a

ideia do gênero textual às práticas da leitura e da escrita, pretende-se aqui descrever a

proposição de encaminhamento metodológico para o processo de apropriação da língua

escrita numa classe de alfabetização, tendo a lenda como gênero-instrumento na ação

didático-pedagógica. Desse objetivo geral, desdobraram-se três objetivos específicos:

i) identificar características do gênero textual lenda que justificam seu uso com

esse público;

ii) descrever o encaminhamento procedimental das atividades com o gênero lenda

no dia a dia da alfabetização, considerando a dupla via – sistêmica e textual – desse processo;

iii) identificar as implicações de um encaminhamento metodológico do processo

de alfabetização por meio de lendas na produção de textos.

Pelo exposto, descrevemos a metodologia adotada para a apropriação da

linguagem escrita, utilizando o gênero lenda numa turma de alfabetização. As aulas passaram

por uma série de atividades de produção de textos do gênero lenda para a apropriação da

Page 18: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

17

linguagem escrita. Isso não quer dizer que somente esse gênero foi trabalhado, mas que esse

gênero serviu como ponto de partida para realizar atividades em sala de aula.

O presente estudo divide-se em três capítulos para apresentar as especificidades da

pesquisa: na primeira parte, a introdução. No primeiro capítulo, uma revisão teórica, iniciando

com a alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos

norteadores da apropriação da língua escrita na escola. Logo após essa etapa, enfatizamos os

usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento

da Escola de Genebra. Em seguida, a base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo e

a sequência didática de Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) como intervenção pedagógica

proposta pelo interacionismo sociodiscursivo. Revisamos ainda o gênero lenda especificando

as bases teóricas. Também contemplamos a apropriação da escrita na escola: particularidades

do domínio do código, passando para similaridades e diferenças entre oralidade e escrita com

base em Scliar-Cabral (2003a, 2003b) e Marcuschi (2008). A seguir esclarecemos a relação

entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de palavra, sílaba e

fonema e suas implicações na alfabetização. Logo em seguida, passamos a descrição do

sistema alfabético do português no que respeita à escrita com base em Scliar-Cabral (2003a;

b, 2009). Terminamos o capítulo discutindo a relação entre aprendizagem e desenvolvimento

(VYGOTSKY ,1998,1999) no processo de alfabetização. Assim sendo, revisamos o conceito

de Zona de Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 1998,1999) e linguagem escrita

(VYGOTSKY, 1998,1999; LURIA, 1998).

No segundo capítulo, apresentamos os procedimentos metodológicos: o tipo de

estudo, o contexto da pesquisa: a escola; a turma; a sala de aula onde foi realizada a pesquisa.

Em seguida, destacamos a organização dos dados e, finalmente, a forma de analisá-los. No

terceiro capítulo, apresentamos a análise e colocamos à disposição do leitor a reprodução e a

transcrição da produção textual dos alunos para facilitar a visualização e o acompanhamento

dos dados. A última parte desta pesquisa constitui-se das considerações finais.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Page 19: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

18

Como mencionado na introdução deste estudo, a perspectiva de trabalhar os

gêneros enquanto objeto de ensino foi legitimada no Brasil após a publicação dos Parâmetros

Curriculares Nacionais em 1997. A partir desse documento, novas orientações foram

formuladas sobre os usos e as funções sociais da escrita. Nesse direcionamento, quanto ao uso

de gêneros textuais nas práticas educativas, o gênero lenda nos parece adequado para

organizar o processo de apropriação da linguagem escrita na alfabetização. Neste trabalho a

alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da escrita, visando às práticas

sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma receita culinária; e além das

práticas cotidianas, existem ainda as práticas acadêmicas: artigos científicos, monografias,

dissertações e outros, donde se conlui que as habilidades de escrita serão requisitadas em

maior ou menor grau de dificuldade, dependendo do ambiente em que o sujeito vive e das

atividades que exerce.

Neste capítulo, apresentamos a revisão das teorias que serviram de base para a

sustentação da pesquisa.

2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTOS

DE SENTIDO

Durante o processo de alfabetização, apresentar gêneros diversificados à criança

pode constituir-se numa excelente estratégia de ensino. Essa variedade é fundamental para

que a criança entenda os diferentes objetivos de um texto escrito e seu uso nas práticas

sociais. Entendemos que, a criança em processo de alfabetização deve ter acesso aos dois

processos - leitura e escrita - pois sem harmonizá-los, a alfabetização pode ficar seriamente

comprometida, porque eles estão interligados: um complementa o outro. Como já se viu

aqui, o processo de aprendizagem da leitura não faz parte desta pesquisa, mas reconhecemos

a sua importância em turmas de alfabetização.

2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos

norteadores da apropriação da língua escrita na escola

Page 20: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

19

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997) têm sido frequentemente o

tema de discussões sobre as práticas de ensino-aprendizagem. O foco de interesse é a

concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs de Língua Portuguesa do

Ensino Fundamental. O nosso trabalho se refere ao ensino-aprendizagem da escrita,

adaptando atividades linguísticas fundamentadas na teoria dos gêneros textuais para orientar

as práticas de ensino. Na primeira parte desta seção se discute o que esse documento traz

sobre gêneros textuais e suas implicações para o processo de ensino-aprendizagem. Na

sequência, discute-se o Pró-letramento, outro documento que contribui com as relações entre

a teoria dos gêneros textuais e o sistema alfabético.

Um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa é promover a análise e a reflexão

sobre a língua em uso, introduzindo progressivamente os elementos de natureza

metalinguística (PCNs, 1997, p. 38-39). Aqui se propõe discutir a linguagem sob dois

enfoques: a reflexão sobre o seu uso e a descrição dos seus elementos linguísticos numa classe

de alfabetização. Na primeira, as atividades estão baseadas em situações didáticas que

possibilitem a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor/autor do texto, e

sua realização exige um planejamento especializado nas especificidades do gênero a ser

trabalhado. Na segunda, as atividades se desenvolvem com vistas a possibilitar ao aluno o

levantamento de regularidades de aspectos da língua e a sistematização e a classificação de

suas características, abordagem na qual a produção textual assume a posição de reflexão sobre

a língua. Os professores devem apresentar atividades que possibilitem a aproximação da

criança com diferentes formas de realização da linguagem na sociedade, reconhecendo a sua

singularidade e sua composição.

Basicamente, os PCNs (1997) se fundamentam na teoria de Bakhtin (1992, 1997),

no que se refere aos elementos que constituem o enunciado: conteúdo temático, construção

composicional e estilo; e em Bronckart (1996) e seus colaboradores da Escola de Genebra, em

relação à atividade social, especialmente sobre o comportamento dos gêneros nas diversas

situações de práticas de linguagem, correlacionando-os às práticas de ensino em sala de aula.

Esse documento também toma como ponto de partida o entendimento de texto e contexto com

vista ao funcionamento da linguagem em situação de uso, considerando a interação professor-

aluno em sala de aula como indispensável ao desenvolvimento da aprendizagem

(VYGOTSKY, 1999).

A proposta dos PCNs (1997) é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos,

proporcionando-lhe o conhecimento necessário para interagir produtivamente com seus pares

em diferentes atividades discursivas. Essas atividades devem ser consideradas processos

Page 21: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

20

ativos, e a concepção de linguagem como uma ação dirigida com a finalidade de facilitar a

comunicação que se realiza em diferentes grupos sociais. Assim, as intenções comunicativas

surgem do entendimento de que os indivíduos se organizam dentro de determinado gênero

movidos pela atividade social; no presente caso, em sala de aula, a interação professor-aluno

se efetiva concretamente pelo uso dos gêneros textuais nas práticas escolares.

Nesse sentido, aprender a refletir sobre a língua é ter em conta o contexto de uso e

as condições de produção, planejando situações didáticas que possibilitem a reflexão sob os

diferentes enfoques de ensino-aprendizagem. O documento sugere atividades de

metalinguagem que possibilitem ao aluno o levantamento de regularidades, a reflexão das

condições de produção do discurso e as limitações estabelecidas pelo gênero e pelo suporte2.

Dessa maneira, recomenda o planejamento englobando situações didáticas que possibilitem o

entendimento do texto construído socialmente e atividades de análise linguística, isto é, o

ensino de produção textual com base nos diversos gêneros textuais que estão presentes na

vida cotidiana do aluno.

Outro documento disponível é o Pró-letramento, emerso da análise dos dados3 do

Sistema Nacional de Educação Básica (SAEB), que demonstrou o baixo desempenho das

escolas em relação ao ensino de Língua Portuguesa e Matemática nas séries iniciais. Pelos

dados apresentados, observa-se que apenas 4,8% dos alunos que cursavam a 4ª série no ano de

2003 foram considerados leitores com habilidades consolidadas; estabeleceram a relação de

causa e consequência em textos narrativos mais longos; reconheceram o efeito de sentido

decorrente do uso da pontuação; distinguiram efeitos de humor mais sutis; identificaram a

finalidade de um texto com base em pistas textuais mais elaboradas e depreenderam relação

de causa e conseqüência implícita no texto, além de outras habilidades. Em relação à

matemática o resultado não foi diferente: embora na nossa prática essa disciplina seja olhada

com muito cuidado, aqui foge ao nosso objetivo. O Programa se constitui de dois módulos:

um dedicado à alfabetização e linguagem e o outro à matemática.

Esse documento parte da concepção de que a língua é um sistema situado na

interação verbal e se realiza através de textos, ou discursos, falados ou escritos, privilegiando

um trabalho organizado em torno do uso da língua que possibilite a reflexão sobre as

2 Entendemos aqui que suporte de um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e

mostra um texto, de acordo com Marcuschi (2008, p. 174). 3 Disponível em: <http://www.undime.org.br/htdocs/download.php?form=.doc&id=777>. Acesso em 16 jun.

2010.

Page 22: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

21

diferentes possibilidades de emprego da língua em vários contextos (BRASIL, PRÓ-

LETRAMENTO, 2007, p.11. FASCÍCULO 1).

Em tal sentido, a proposta visa a trabalhar conhecimentos, capacidades e atitudes

envolvidas na compreensão dos usos e funções sociais da escrita, envolvendo conhecimentos

específicos sobre o sistema alfabético em relação aos elementos do sistema fonológico e às

suas inter-relações, implicando o manuseio de diversos gêneros presentes em diferentes

suportes (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).

De acordo com o documento, para desenvolver a apropriação do sistema de escrita,

deve-se desenvolver as capacidades, os conhecimentos e as atitudes previstas para o primeiro,

o segundo e o terceiro ano do ensino fundamental. No primeiro fascículo a discussão recai

sobre a escrita e a leitura. Em relação à escrita, que nos interessa nesta dissertação, esse

fascículo se organiza em torno de doze capacidades linguísticas para desenvolver a

apropriação da escrita nos três primeiros anos do ensino fundamental. Resumimos a seguir

essas capacidades.

A primeira capacidade compreende a diferenciação entre a escrita alfabética e

outras formas gráficas, cujo reconhecimento implica distinguir letras de desenhos, letras de

rabiscos, letras de números e letras de símbolos gráficos, como setas, asteriscos, sinais

matemáticos etc. A segunda capacidade diz respeito ao domínio das conversões gráficas da

nossa escrita que se realiza de cima para baixo e da esquerda para direita, indicando a

delimitação de palavras (espaço em branco) e frases (pontuação). A terceira capacidade

compreende a necessidade de orientar e alinhar a escrita da língua portuguesa, capacidade que

deve ser iniciada no primeiro ano do ensino fundamental, ajudando o aluno a diferenciar letras

de desenhos.

A quarta capacidade compreende a função de segmentação dos espaços em branco

e da pontuação de final de frase para compreender que fala e escrita acontecem de maneiras

diferentes, uma vez que fala e escrita são produzidas em sequência linear. A quinta

capacidade reconhece que uma forma de introduzir as unidades fonoaudiológicas como

sílabas, rimas e terminações de palavra em sala de aula é por meio de brincadeiras como

adivinhações, travalínguas e cantigas de roda, entre outras, focalizando primeiramente as

unidades fonológicas com as quais os alunos já são capazes de lidar. A finalidade da sexta

capacidade é conhecer o alfabeto, o que se faz apresentando-o aos alunos e promovendo

situações que os levem a descobrir que se trata de um conjunto estável de símbolos; sugerem

ainda que se comece a familiarizá-los com a sua natureza e o seu funcionamento logo no

primeiro ano, aos seis anos de idade. O propósito da sétima capacidade é compreender a

Page 23: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

22

categorização gráfica e funcional das letras e implica compreender que elas variam na forma

gráfica e no valor funcional, levando o aluno a perceber que apesar das diferentes formas

gráficas (maiúsculas, minúsculas, imprensa, cursiva) a letra permanece a mesma e exerce a

mesma função na escrita.

O objetivo da oitava capacidade é promover o conhecimento e a utilização de

diferentes tipos de letras (de fôrma e cursiva), levando o aluno a traçar e a dominar as

diferentes formas de registro alfabético. A intenção da nona capacidade é compreender a

natureza alfabética do sistema de escrita, ou seja, diz respeito à natureza da relação entre a

escrita e a cadeia sonora das palavras que as crianças tentam escrever ou ler. A décima

capacidade nos chama a atenção para o domínio das relações entre grafemas e fonemas como

fundamental para apropriar-se do sistema alfabético. Essas regras de correspondência são

variadas. Há poucos casos de relação entre fonemas e grafemas que não dependem do

contexto fonético, e nem sempre a relação entre fonema e grafema é biunívoca.

A décima primeira capacidade diz respeito ao domínio das regularidades

ortográficas sistematizadas em sala de aula e recomenda o uso do critério de progressão,

partindo do mais simples para o mais complexo, isto é, iniciando com os casos em que os

valores atribuídos aos grafemas independem do contexto para os casos em que os valores

dependem do contexto. Enfim, a décima segunda refere-se às dificuldades do domínio do

sistema ortográfico em relação aos casos em que os valores dependem da posição e do

contexto fonético. Aliás, nesta dissertação as três últimas capacidades foram explanadas

extensivamente na seção de apropriação da escrita na escola: particularidades do domínio do

código.

Esses documentos sugerem atividades que possibilitem ao aluno aprender a

refletir sobre a língua, tendo em conta o contexto de uso e as condições de produção. As

produções textuais nessas abordagens assumem a posição de reflexão sobre a língua. Cabe aos

professores apresentar atividades que possibilitem a aproximação da criança com diferentes

formas de realizar a linguagem na sociedade, reconhecendo a sua singularidade e as suas

propriedades compositivas. A nosso ver, os textos produzidos pelos alunos devem funcionar

como ponto de partida para trabalhar a linguagem em uso e os elementos metalinguísticos,

proporcionando-lhes o domínio da escrita da língua.

Page 24: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

23

2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao

pensamento da Escola de Genebra

Os Parâmetros Curriculares Nacionais têm como ponto de partida a concepção do

gênero. O documento traz como proposta de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental a

apresentação de gêneros diversificados como estratégia de ensino-aprendizagem. A

necessidade dessa variedade é fundamental para que a criança entenda os diferentes objetivos

de um texto escrito e seu uso nas práticas sociais. Na escola, especificamente na alfabetização,

encontramos o conto de fada, a fábula, a anedota, a piada, o poema, a cruzadinha, a parlenda,

o provérbio, a crônica, a receita, a história em quadrinho, a poesia, a lenda, o relatório etc.

Os gêneros são usados e produzidos de acordo com a situação. Baseando-nos em

autores (BAKHTIN, 2006; BRONCKART, 2003; MARCUSCHI, 2002; SCHENEUWLY,

2004; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS,

DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2002; COELHO, 2003, 2004 entre

outros) que conceituam os gêneros e esclarecem sobre suas especificidades, levamos os

gêneros para uma classe de alfabetização por entender que eles estão presentes em nossas

práticas escolares independentemente do tratamento que se lhes dê. A respeito da

alfabetização, podemos dizer que a compreensão da língua decorre não somente das regras

gramaticais, mas de diversos contextos linguísticos que compõem o ambiente escolar. Em

outras palavras, o trabalho baseado em gêneros pode levar o aluno a compreender e a

reconhecer as práticas de linguagem em uso no seu cotidiano.

A teoria de Bakhtin (2006) sustenta que todos os campos da atividade humana em

situação de interação estão ligados ao uso da linguagem. Nessa perspectiva, tais situações de

interação entre os falantes são construídas historicamente; organizam-se dentro de certo

domínio social e efetivam-se no centro desses domínios pela necessidade do uso da

linguagem, de forma que cada enunciado é individual, mas cada campo de utilização da

língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros do discurso

(BAKHTIN, 2006).

Em Os gêneros do discurso, Bakthin (2006) se debruça sobre a questão dos

gêneros. Na sua teoria, os gêneros referem-se à diversidade e à heterogeneidade que decorrem

das práticas sociais nas diferentes esferas sociais e se situam como tipos relativamente

estáveis de enunciados, constituídos nos domínios: social, discursivo e dialógico. Para o autor,

Page 25: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

24

há uma infinidade de gêneros circulando na sociedade: no trabalho, nas ações cotidianas, na

arte etc. Em seu domínio de circulação, pode-se dizer que o gênero é insubstituível e alguns

casos são exclusivos, como fichas de matrículas de aluno, boletim, declaração provisória de

matrícula etc., gêneros que circulam exclusivamente em secretarias de escolas. Dessa forma,

os gêneros foram historicamente construídos para atender necessidades de atividades

socioculturais e de inovações tecnológicas num domínio específico. Já no campo acadêmico,

uma tese de doutorado, um artigo científico, por exemplo, exige do produtor e do leitor certo

grau de conhecimento sobre o assunto que será tratado. Cotidianamente circulam por nossas

mãos diversos gêneros, como receita culinária, conta de luz, de água, de telefone; bilhete de

loteria, bilhetes em geral, convites os mais diversos, cartas pessoais etc.

Para Bakhtin (2006) esses gêneros circulam socialmente e se organizam em

primários e secundários. Os gêneros primários se estabelecem no campo da comunicação

imediata, no cotidiano (conversas, bilhetes, relatos, cartas). Os gêneros secundários decorrem

da comunicação cultural mais elaborada (romances, teses, livros), e são organizados e

mediados pela escrita. Para o autor, os gêneros secundários derivam dos gêneros primários,

transformam-se e incorporam a sua estrutura e, ao adquirir um caráter especial, perdem sua

ligação imediata com a realidade concreta e os enunciados reais alheios. Por exemplo: o

romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta conservam sua forma e seu significado

cotidiano apenas no plano do conteúdo, isto é, o romance integrado à realidade é concebido

como evento literário-artístico e não como evento da vida cotidiana (BAKHTIN, 2006, p.

263).

O conceito de interação social é basilar nessa concepção, sustentando que a

linguagem se situa nas relações sociais estabelecidas e mantidas por uso dos gêneros do

discurso. Ou seja, a língua nos diferentes domínios da atividade social, postura que coloca

Bakhtin e colaboradores em oposição ao subjetivismo idealista e ao objetivismo abstrato,

tendências amparadas no início do século XX pela filosofia e pela linguística da época. Na

concepção bakhtiniana, a interação verbal se constrói entre os indivíduos de acordo com a

posição social que ocupam e é organizada pelos meios sociais. Dessas interações serão

consideradas as respostas (orais ou escritas) geradas tanto por parte do locutor quanto por

parte do interlocutor, daí ser imprescindível estabelecer uma sequência lógica entre os

enunciados para que se possa produzir sentido e compreensão do papel social de cada sujeito.

De acordo com o autor, a linguagem se constitui nas práticas sociais e não por orações

isoladas nem por palavras soltas; falar por meio de enunciado é compreender aquilo que foi

Page 26: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

25

dito ou escrito, e, portanto, não basta obedecer a um padrão gramatical correto, é preciso

produzir sentido entre locutor e interlocutor.

Tal como Bakhtin, Bronckart (2003) rejeita as teorias que resultam das teorias

subjetivistas, concebendo a atividade de textualização como essencial em sua teoria ao

declarar as condições de produção textual e classificação dos gêneros como parte do

funcionamento sócio-histórico. Para o autor, toda produção linguística é uma “ação situada”

particular movida por indivíduos socialmente envolvidos, assumindo que as únicas

“manifestações empiricamente observáveis das ações de linguagem humanas” são os textos

ou discursos que se apresentam como formas de ação social (BRONCKART, 2003, p. 13-14).

E complementa:

Os gêneros não têm o mesmo estatuto dos textos. Estes são um produto da

ação de linguagem, enquanto os primeiros são ferramentas para sua

realização, em processo de transformação contínua, por meio dessas mesmas

ações. O texto é produto da dialética que se instaura entre representações

sobre os contextos de ação e representações relativas às línguas e aos gêneros

de texto. Todo texto pertence a um gênero, isto é, seu exemplar

(BRONCKART, 2003, p.108).

Bronckart (2003, p.103) afirma ainda que "a apropriação dos gêneros é um

mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas

humanas". Nesse sentido, conhecer um gênero de texto também é conhecer suas condições de

uso, sua pertinência, sua eficácia ou, de maneira mais geral, sua adequação em relação às

características desse contexto social (BRONCKART, 2003, grifo do autor), reforçando a ideia

de que a interação social depende do uso desses gêneros; assim, eles se fundam em ações

coletivas e se realizam nas atividades comunicativas do dia a dia.

Ao considerar os gêneros nas diversas situações de práticas de linguagem,

Bronckart declara:

[...] a atividade de linguagem é, ao mesmo tempo, o lugar e o meio das interações

sociais constitutivas de qualquer conhecimento humano; é nessa prática que se

elaboram os mundos discursivos que organizam e semiotizam as representações

sociais do mundo; é na intertextualidade resultante dessa prática que se conservam e

se reproduzem os conhecimentos coletivos e é na confrontação com essa

intertextualidade sócio-histórica que se elaboram, por apropriação e interiorização, as

representações de que dispõe todo agente humano, representações in fine individuais,

no sentido de que se organizam em função das características específicas do percurso

experiencial de cada agente, erigindo-o, desse modo, em uma pessoa irredutivelmente

singular (BRONCKART, 2003, p. 338).

Com base nesses autores podemos dizer que o texto expressa sentimentos e ideias,

sendo um espaço para a reflexão de valores e de ideologias mediado pela ação de linguagem

oral ou escrita e são concretizadas em forma de textos correlacionados às práticas escolares.

Page 27: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

26

Rompe-se o paradigma que tomava como unidades básicas o processo de ensino com

atividades para analisar letras, fonemas, sílabas, palavras e frases, que, descontextualizados,

são destituídos de sentidos e de compreensão. Mais detalhes da teoria interacionista

sociodiscursiva encontram-se na próxima seção.

2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo

A teoria do interacionismo sociodiscursivo de Bronckart (2003), Schneuwly, Dolz

e Noverraz (2004), da Escola de Genebra, tem centralizado seus estudos nas interações sociais

e nas formas linguísticas pelas quais a língua materna se organiza. O tema em questão tem

despertado o interesse de muitos pesquisadores brasileiros (ROJO, 2006; GUIMARÃES,

2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS, DREY 2008; BRAIT, 2007; MATÊNCIO,

1994; MACHADO, 2005; SOUZA, 2003; COELHO, 2003, 2004; BALTAR, 2007 entre

outros).

Muitas contribuições no campo da linguagem têm sido produzidas em parcerias,

como grupos de pesquisa, teses, dissertações, artigos, livros, monografias, e, sobretudo,

materiais didáticos com a intenção de intervir metodologicamente no ensino da língua

materna e das estrangeiras, proporcionando formação aos professores fundamentada no

interacionismo sociodiscursivo.

Considerando o exposto, podemos dizer que o interacionismo sociodiscursivo

vem expandindo-se ao longo da última década. Neste trabalho, essa corrente teórica está

sendo privilegiada. Ela concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo e que é

constantemente modificado pela ação dos sujeitos, além de manifestar o respeito pelo diversos

falares existentes em uma comunidade e conceber a escola como lugar de excelência para

desenvolver as competências da leitura e da escrita.

O interacionismo sociodiscursivo, proposta teórica e metodológica defendida por

Bronckart (2003) em associação com Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) para o ensino de

gênero congrega diferentes abordagens teóricas: Vygotsky (1972, 1999) no que diz respeito à

abordagem psicológica; em Habermas (1987) na questão do agir comunicativo; por Bakhtin

(1978; 1984), em relação à interação verbal, sobretudo à análise dos gêneros e tipos textuais.

Page 28: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

27

Apoia-se ainda nas bases filosóficas de Spinoza (1964, 1965) em relação ao agir humano; em

Foucault (1969) na análise das formações sociais, e em Wittgenstein (1961, 1975) quanto ao

jogo de linguagem como produto da interação social. Convém salientar que não é objetivo

deste trabalho detalhar tais influências, mas buscar apoio nas premissas do interacionismo

sociodiscursivo em relação à ação comunicativa dos indivíduos em interação dialógica.

Bronckart (2003) ensina que interagimos socialmente mediados pela ação da

linguagem. A tese central que norteia o interacionismo sociodiscursivo é que “[...] a ação

constitui o resultado da apropriação, pelo organismo humano, das propriedades da atividade

social mediada pela linguagem” (p. 42). Bronckart sustenta, ainda, que toda língua faz parte

de um sistema relativamente estável; dessa forma, essa corrente estimula o estudo do sistema

da língua como um procedimento legítimo e essencial para compreender o contexto de

utilização. Ao mesmo tempo, essa concepção concentra-se na análise da organização e do

funcionamento dos textos usados e produzidos numa comunidade em ação de linguagem.

Para o autor, o texto é entendido como qualquer produção de linguagem situada,

acabada e autossuficiente, e obedece a duas condições: condição interna e condição externa.

Pela condição interna, o autor examina a ordem de combinação de frases mais ou menos

reguladas pelos mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos, cuja função é

assegurar ao texto produzido um efeito de coerência sobre o destinatário. Já pela na condição

externa de produção de texto, o autor adota as concepções de gênero de texto e tipo de

discurso. Os textos são produzidos de acordo com as necessidades e as condições sociais do

meio dos quais são produzidos (BRONCKART, 2003, p.71). Mesmo que não detalhemos as

condições internas dos textos, nós as reconhecemos como parte das atividades de apropriação

do código escrito. Neste trabalho, interessa-nos a segunda condição proposta por Bronckart

(2003): especificamente, as concepções de gênero de texto.

Por essa concepção todo exemplar de texto observável pode ser considerado como

pertencente a determinado gênero. Além disso, o autor aponta alguns problemas que surgem

da dilatação desse conceito: primeiramente, a diversidade de critérios utilizados para definir

um gênero. Outra dificuldade indicada pelo autor remete a Bakhtin (2006): alguns gêneros se

modificam, gêneros novos aparecem e ainda há alguns gêneros que desaparecem com o

tempo. Devido a tal magnitude, existem espécies de textos que sequer foram nomeadas, em

termos de gênero, levando-nos a inferir que a ampla capacidade de circulação dos gêneros

dificulta a demarcação do seu limite. Podemos dizer que, devido à complexidade do conceito,

os gêneros são correlacionados com as ações de linguagem e as formas linguísticas. Dessa

correspondência entre a linguagem e as formas linguísticas fundam-se os chamados tipos de

Page 29: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

28

discurso. Para delinear o conceito de tipos de discurso, Bronckart (2003) apoia-se em

Benveniste (1966), Weinrich (1973) e Simonin-Grumbach (1975).

Os tipos de discurso são os segmentos que compõem um texto e realizam-se na

arquitetura interna, nas interações verbais orais e/ou nas interações verbais escritas, e

materializam-se linguisticamente em mundos discursivos que, articulados aos mecanismos de

textualização e de enunciação, asseguram a unicidade textual.

A concepção interacionista sociodiscursiva (BRONCKART, 2003, p. 151)

sustenta a construção de dois mundos: o mundo ordinário, representado pelos agentes

humanos, e os mundos virtuais, criados para dar conta da complexidade das ações de

linguagem, chamados de “mundos discursivos”. Os mundos discursivos operam em dois

grandes eixos: na ordem do expor e na ordem do narrar. Na ordem do expor, temos o “mundo

do expor implicado” (discurso interativo) e o “mundo de expor autônomo” (discurso teórico),

enquanto no mundo do narrar encontramos: “o mundo do narrar implicado” (relato interativo)

e o mundo do narrar autônomo (narração). A configuração e a organização desses mundos

discursivos passam do nível psicológico para as operações concretas que são determinadas

pelo conteúdo temático e pelas ações de linguagem. Além disso, Bronckart (2003) identifica o

tipo misto interativo teórico, que aparece nas exposições orais, e o tipo misto narrativo-

teórico, encontrado normalmente nas obras históricas e em monografias científicas. O autor

organiza o mundo discursivo da seguinte maneira:

Coordenadas gerais dos mundos

Relação ao ato

de produção

Conjunção

EXPOR

Disjunção

NARRAR

Implicação Discurso interativo Relato interativo

Autonomia Discurso teórico Narração

Figura 1- Coordenadas gerais dos mundos discursivos.

Fonte: BRONCKART, Jean Paul. Atividades de Linguagem, textos e discursos: por um Interacionismo

sóciodiscursivo. São Paulo: Educ, 2003, p. 157.

Para Bronckart (2003), o mundo discursivo da ordem do narrar é situado num

“outro lugar”, no qual distingue dois polos: o narrar realista e o narrar ficcional. No primeiro,

o conteúdo pode ser avaliado e interpretado de acordo com os critérios de validade do mundo

real. Por outro lado, no narrar ficcional, o conteúdo pode ser avaliado parcialmente. Além

disso, a ordem do narrar, como visualizado na figura acima, opera em duas frentes, a saber:

mundo do narrar implicado e mundo do narrar autônomo. No mundo do narrar implicado

predomina o relato interativo, e no mundo do narrar autônomo, a ênfase recai sobre a

Page 30: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

29

narração. De acordo com a proposta do autor, o gênero lenda se encaixa no mundo discursivo

da ordem do narrar ficcional.

2.1.2.2 Proposta de intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo

O grupo de Genebra desenvolve estudos sobre ensino e aprendizagem da língua:

discute temas centrais sobre textos, discursos e traz como proposta a sequência didática como

estratégia para desenvolver os gêneros no ensino-aprendizagem.

Para Schneuwly (2004), o gênero é entendido, em relação à atividade de

linguagem, como uma ferramenta semiótica complexa em forma de linguagem oral ou escrita,

que nos permite produzir e compreender textos. Dessa maneira, para Schneuwly e Dolz

(2004), os gêneros são (mega) instrumentos elaborados e construídos a partir de um contexto

sócio-histórico para atender determinada situação, e à medida que esses instrumentos são

reinventados, refletem diretamente no comportamento humano. O uso adequado do

instrumento está no domínio humano, e à medida que o homem ressignifica a sua utilização,

torna-se mediador dessa prática.

Schneuwly (2004), como outros autores que se apoiam na concepção de Bakhtin,

considera os gêneros como enunciados relativamente estáveis, com conteúdo temático, estilo

e construção composicional. Para identificar um gênero, o autor considera três dimensões: a)

o reconhecimento do que foi dito e o que foi feito implica a escolha do gênero; b) a sua

estrutura será definida pelo plano comunicacional; c) as marcas da posição enunciativa do

enunciador, sequência textual, tipos de discursos, marcas linguísticas do texto e a estrutura

colaboram para alcançar um nível de entendimento entre os interlocutores, mas é preciso que

eles partilhem da mesma estrutura do gênero em uso.

Schneuwly e Dolz (2004, p.76) alertam para o fato de a escola sempre ter

trabalhado com os gêneros, embora para eles os gêneros não sejam instrumento de

comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem. Ou seja: a

maioria dos professores usa os gêneros há bastante tempo em sala de aula, mas sem trabalhá-

los como atividade de linguagem voltada para as práticas sociais.

Page 31: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

30

Os autores observam, ainda, três maneiras para abordar o ensino da escrita e da

fala: o desaparecimento da comunicação; a escola como lugar de comunicação e, por último, a

negação da escola como lugar específico de comunicação. Pela primeira, os gêneros deixam

de fazer parte do contexto da comunicação da escola e passam a significar somente uma

forma linguística, sendo abordados sem nenhuma “[...] relação com uma situação de

comunicação autêntica” (p.76) e são elaborados “[...] como instrumentos para desenvolver e

avaliar, progressiva e sistematicamente, as capacidades de escrita dos alunos” (p. 77).

Pela segunda concepção, a escola é tratada como um lugar de comunicação e “[...]

os gêneros são aprendidos pela prática da linguagem escolar, por meio dos parâmetros

próprios à situação e das interações com os outros” (p.78).

Pela terceira concepção, os gêneros saíram da condição de obscuridade da

primeira abordagem, deixaram de ser vistos apenas como parte da comunicação escolar

conforme a segunda abordagem e passaram a fazer parte das práticas cotidianas da escola

“[...] como se houvesse continuidade absoluta entre o que é externo e interno à escola” (p.79).

Dessa forma, quando desenvolveram as sequências didáticas, Schneuwly, Dolz e

Noverraz (2004) pretendiam preencher a lacuna de procedimentos metodológicos para ensinar

a escrever textos e a exprimir-se oralmente em situações públicas escolares e extraescolares.

As sequências didáticas são elaboradas em torno de um gênero textual, realizadas

sistematicamente e de forma gradativa as dificuldades das atividades vão sendo propostas.

Por isso, a sequência didática é valioso recurso pedagógico para a compreensão de um gênero:

“uma seqüência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor

um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais adequada numa

dada situação de comunicação.” (p. 97). É o que se detalha a seguir.

Apresentação da situação (p. 99): “[...] o momento em que a turma constrói uma

representação da situação de comunicação e da atividade de linguagem a ser executada.”

Nessa etapa, duas dimensões deverão ser trabalhadas: na primeira, é preciso que os alunos

tomem ciência do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito que será

desenvolvido, e, também, o professor deverá explanar para o aluno os problemas a serem

trabalhados. Na segunda dimensão os conteúdos serão evidenciados, e os alunos deverão

saber quais conteúdos serão trabalhados pelo professor.

A primeira produção (p.101): “no momento de produção inicial, os alunos tentam

elaborar um primeiro texto oral ou escrito e, assim, revelam para si mesmos e para o professor

as representações que têm da atividade.” Nesse primeiro momento, o professor conduzirá a

turma à produção do gênero desejado, sem interferir no processo de produção do aluno. É um

Page 32: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

31

momento importante porque é a partir da primeira produção que o professor traçará os

caminhos para solucionar os problemas detectados. Além disso, permite ao professor tomar

conhecimento e consciência dos problemas em relação à produção do gênero, servindo para

diagnosticar o desenvolvimento real (VYGOTSKY, 1999) do aluno.

Os módulos são as atividades definidas pelo professor e as intervenções são

necessárias para resolver “[...] os problemas que aparecem na primeira produção e dar aos

alunos os instrumentos necessários para superá-los” (p. 103). São as atividades definidas pelo

professor para realizar as intervenções necessárias para resolver os problemas diagnosticados

na produção inicial. Essas intervenções podem ser feitas em três níveis: primeiramente, ao

trabalhar problemas de níveis diferentes, o aluno se depara com as especificidades de cada

gênero e deve ser capaz de solucionar os possíveis problemas encontrados e, em seguida, o

professor proporciona uma variedade de atividades e exercícios; além de diversificar as

atividades, deve-se também diversificar os modos de trabalhos; por último, ao terminar os

módulos, o aluno aprende a capitalizar as aquisições, somando ao seu conhecimento o

aprendizado sobre o gênero abordado.

Produção final (p.106): “[...] a sequência é finalizada com uma produção que dá

ao aluno a possibilidade de pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados

separadamente nos módulos”. A finalidade dessa produção é investigar a aprendizagem e

também verificar se as estratégias adotadas foram suficientes, o professor deverá confrontar a

primeira e a última produção, e, então, elaborar um diagnóstico conciso do desempenho do

aluno. Abaixo, podemos visualizar o esquema da sequência didática como proposto pelos

autores para trabalhar o gênero em sala de aula.

ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Figura 2 - Esquema da sequência didática.

Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e

organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p. 98.

Considerando que cada gênero de texto necessita de uma situação adaptada para

ser desenvolvido em sala de aula, e que cada gênero oferece características distintas, os

autores propõem que os gêneros sejam agrupados em função de certo número de

regularidades linguísticas e de transferências possíveis. Os autores estabelecem três critérios

para o agrupamento: primeiramente, devem ser consideradas as finalidades sociais atribuídas

Apresentação

da situação PRODUÇÃO

INICIAL

PRODUÇÃO

FINAL Módulo

1

Módulo

2

Módulo

n

Page 33: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

32

ao ensino nos domínios essenciais de comunicação escrita e oral em nossa sociedade; em

segundo, os gêneros devem ser retomados como já funcionam em vários manuais,

planejamentos e currículos e, por fim, que sejam relativamente homogêneos quanto às

capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros agrupados.

Em função desses três critérios, os autores propõem cinco agrupamentos: da

ordem do narrar, do relatar, do argumentar, do expor e do descrever ações. Schneuwly, Dolz e

Noverraz (2004) enfatizam que seria impossível classificar um gênero de maneira absoluta

num dos agrupamentos propostos. Ao elaborar uma sequência didática, deve-se equilibrar a

distribuição das atividades entre orais e escritas e levar em conta a dificuldade em conduzir as

sequências orais e evitar o desgaste tanto por parte dos alunos quanto por parte do professor.

Embora seja difícil desenvolvê-los de forma sistemática e não façam parte com frequência do

planejamento do professor, os gêneros orais sempre estão presentes em sala de aula: são

conversas informais, rodinhas, interações por meio de jogos, brincadeiras, debates, leituras e

correção das atividades, entre outras. No quadro de agrupamento de gêneros abaixo,

ilustramos a sugestão dos autores para agrupar os gêneros.

ASPECTOS TIPOLÓGIGOS

DOMÍNIOS SOCIAIS DE

CONSIDERAÇÃO

CAPACIDADES DE

LINGUAGENS DOMINANTES

EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E

ESCRITOS

Cultura literária ficcional NARRAR

Mimeses de ação através da

criação de intrigas

Conto maravilhoso; fábula; lenda;

narrativa de aventura; narrativa de

ficção cientifica; narrativa de enigma;

novela fantástica e conto parodiado.

Documentação e memorização

de ações humanas

RELATAR

Representação pelo discurso de

experiências vividas, situadas no

tempo

Relato de experiência vivida; relato de

viagem; testemunho; curriculum vitae;

notícia; reportagem; crônica esportiva e

ensaio bibliográfico.

Discussão de problemas sociais

controversos

ARGUMENTAR

Sustentação, refutação e

negociação de tomadas de

posição

Texto de opinião; diálogo

argumentativo; carta do leitor; carta de

reclamação; deliberação informal;

debate regrado; discurso de defesa

(adv.) e discurso de acusação (adv.)

Transmissão e construção de

saberes

EXPOR

Apresentação textual de

diferentes formas de saberes

Seminário; conferência; artigo ou

verbete de enciclopédia; entrevista de

especialista; tomada de rodas; resumo

de textos “expositivos” ou explicativos;

relatório científico e relato de

experiência científica.

Page 34: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

33

Instruções e prescrições DESCREVER AÇÕES

Regulação mútua de

comportamentos

Instruções de montagem; receita;

regulamento; regras de jogo; instruções

de uso e instruções.

Figura 3 - Quadro de Agrupamento de gêneros

Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e organização:

Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p. 121.

No agrupamento proposto pelos autores, o gênero lenda se insere no domínio da

cultura literária ficcional, e a capacidade de linguagem é da ordem do narrar. Assim sendo, há

muito tempo as lendas vêm desempenhando o papel de transmitir a cultura popular por meio

da tradição oral; entretanto, além disso, neste estudo, as lendas assumem a tarefa de (mega)

instrumento para as atividades de apropriação da escrita.

2.1.3 Gênero lenda: especificidades teóricas e possibilidades didático-pedagógicas

O folclore brasileiro guarda um vasto acervo cultural do universo popular. Para

Inocenti (2005, p. 15), o folclore pode ser classificado, para efeitos de catalogação, em oito

formas: em primeiro lugar, a literatura oral, que são as trovas, travalínguas, literatura de

cordel, provérbios, adivinhações, estórias, lendas, fábulas, mitos, parlendas e as mnemônias.

Em seguida, a forma lúdica, que são as danças, autos, teatro popular, festas tradicionais, jogos

recreativos de azar e os folguedos. O autor comprova, também, a forma espiritual que são as

crendices e superstições, cortejos e procissões. Já nas artes destacam-se a música, o artesanato

(cerâmica, tecido, madeira, metal etc.) e os manufaturados. Também destaca a linguagem

popular, a medicina popular e a alimentação, com a apresentação de comidas e bebidas e, por

último, seriam outras formas como o mutirão, o dísticos de caminhão, os tipos típicos e a

cultura de banheiro. Todo esse contexto folclórico, levantado por Inocenti (2005), reforça a

importância da inserção da criança nas práticas sociais da sua comunidade e nas práticas

pedagógicas da sua escola.

Ampliando nosso olhar sobre o assunto, Machado (2003, p.7) escreve que os

filósofos, dramaturgos, historiadores e poetas da Antiguidade Clássica nos deixaram um

tesouro valiosíssimo de histórias, mitos, lendas, fábulas, tragédias e comédias, cujas marcas

Page 35: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

34

nos acompanham até hoje. Em outras palavras, as lendas que hoje nos são apresentadas foram

herdadas por nossos antepassados que as transmitiam basicamente pela oralidade; e, muito

tempo depois, pela escrita. Assim, como as crianças desenvolvem a linguagem por meio das

interações sociais, o conhecimento popular das lendas deu-se igualmente por meio das

interações sociais, enquanto a contação dessas narrativas acontecia de forma oral, inicialmente

no contexto familiar, em aldeias e em comunidades onde havia um contador de história.

Para Góes (1991), o narrar artístico nasceu no momento em que o homem sentiu

necessidade de procurar uma explicação qualquer para os fatos que aconteciam a seu redor.

Assim, na falta da escrita para dar continuidade à memória, na Antiguidade as lembranças

eram preservadas na tradição oral. Portanto, essas narrações são transmitidas de geração em

geração e são modificadas à medida que vão sendo contadas. Nelas aparecem figuras criadas

pelo imaginário popular que não existem na realidade, e que, na maioria das vezes, são usadas

para explicar uma situação ou aparição de algum “ente” fictício da natureza. De acordo com

Góes (1991, p. 65):

A lenda, pois, nasce da propensão do espírito humano de explicar os fatos naturais que

desconhece. Por isso, a lenda, nos começos, não é senão a história das primeiras lutas

do homem, de seu desconhecimento e de sua preocupação por entender o mistério que

o circunda. Naquela época tudo era causa de lenda para ele: o movimento dos astros,

as migrações dos povos e animais, os fenômenos do céu, do mar e da terra ou fatos do

seu quotidiano.

Góes (1991) busca, nessa obra, uma tipologia para as histórias infantis e as

classifica assim: mito e lenda, contos de fada, contos maravilhosos, fábulas, histórias – de

animais, de família, policiais, sentimentais, de ficção científica, maravilhosas modernas –

folclore infantil, aventura, poesia e, por último, o teatro infantil. Aqui destacaremos o mito e a

lenda por ser necessário distinguir os dois termos, tendo em vista a nebulosidade em que estão

envoltos, segundo vários autores.

Conforme Góes (1991, p. 107), o mito “[...] nasce do trabalho da imaginação pura

entregue a si mesma e não adulterada pela intromissão [nem pela] tirania dos elementos

racionais”, e pode ser definido como “uma lenda relacionada com o mundo sobrenatural e que

se traduz através dos ritos”, enquanto a lenda “[...] é uma narrativa localizada,

individualizada, objeto de fé”. Podemos dizer que lendas são narrações nas quais aparecem

figuras criadas pelo imaginário popular que não existem na realidade e, na maioria das vezes,

são usadas para explicar uma situação ou aparecimento de algum “ente” da natureza que

dispensa comprovação científica.

Page 36: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

35

Para alguns autores, mitos e lendas apresentam significados semelhantes. Coelho

(2003) também observa essa obscuridade entre os dois termos, e, baseada em alguns

estudiosos, aponta algumas características dos mitos: primeiramente, o seu aspecto de

permanência e de duração é uma particularidade da presença de seres sobrenaturais em um

mesmo conjunto de mitos e símbolos, podendo aparecer em várias sociedades. Os mitos

também representam o alargamento de um “espaço sagrado” para um “universo profano” e

constitui-se em histórias, usualmente a respeito de Deus e de outros seres sobrenaturais.

Essencialmente, os mitos podem ser vistos como uma resposta ao universo e seus fenômenos,

fazendo-se conhecer ao assumir “uma dimensão histórica”. Assim, possibilitam a

organização/compreensão do mundo e das coisas, e, finalmente, configuram-se como uma

forma privilegiada de se passarem ensinamentos para a própria cultura em que emergem ou

para fora dela.

Já as lendas, ainda de acordo com Coelho (2003), são narrativas, mais

precisamente, são textos que ora descrevem entes sobrenaturais, ora apresentam uma história.

São textos que se referem a acontecimentos do “passado distante”, enfocando feitos de

personagens, explicando particularidades anatômicas de certos animais. Elas podem ser

contadas por qualquer pessoa a qualquer momento, podem transmitir os ensinamentos e os

valores da sociedade à qual estão vinculadas, apresentam regras de conduta e explicam

fenômenos da natureza. Isso significa, numa linguagem simples, que as lendas permitem

misturar fatos reais com fatos imaginários; transmitidas de geração em geração, vão sendo

modificadas à medida que são contadas e recontadas porque não precisam de comprovação

científica.

No centro dessa questão, com a intenção de submeter as lendas a uma sistemática

adequada o mais próximo possível de um critério científico de classificação, Oliveira (1951,

1965) julga necessário distribuí-las da seguinte forma: lendas cosmogônicas, lendas heróicas,

lendas etiológicas, lendas de encantamento, lendas ornitológicas e lendas mitológicas. As

lendas cosmogônicas são aquelas que procuram explicar fenômenos de natureza astronômica

ou meteorológica; enquanto as lendas heróicas se referem a um herói. Já as lendas etiológicas

procuram explicar a origem de coisas e fenômenos. Diferentemente das lendas heróicas, nas

lendas etiológicas a personagem age como herói civilizador. Nas lendas de encantamento, os

fenômenos podem ganhar materialidade e se transformar em algo concreto. Há, também, as

lendas ornitológicas, que se referem aos pássaros que exercem determinadas influências,

algumas atribuídas à sua natureza de alma penada, outras devidas a certas qualidades

especiais. E, por último, aparecem as lendas mitológicas, que se subdividem em cinco ciclos:

Page 37: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

36

da Iara, da Boiúna, do Boto, do Curupira, da Mati-taperê. As contribuições de Oliveira (1951,

1965) e as discussões de Coelho (2003) foram fundamentais para compreender o linguajar

típico desse gênero, fornecendo-nos subsídios teóricos e uma coletânea de elementos

folclóricos que podem ser usados em sala de aula.

Coelho (2000) salienta que, ao longo da vida, o ser humano passa por cinco fases

de interesse pela leitura: a primeira fase é a de pré-leitor; em seguida, é a fase do leitor

iniciante; na terceira fase, o leitor está em processo; na quarta fase, o leitor torna-se fluente; a

última fase é a do leitor crítico, aquele que é capaz de fazer suas próprias escolhas e tirar

proveito da própria leitura. Aqui interessam-nos duas fases: a do leitor iniciante e a do leitor

em processo. A fase do leitor iniciante acontece por volta de seis a sete anos, perfil no qual se

encaixa a turma estudada na pesquisa. Embora manifeste uma preferência pela linguagem

visual, na escola a criança passa a ter contato direto com os signos linguísticos, que são

escritos de maneira sistematizada nessa fase; além disso, a criança passa a se preocupar em

socializar suas ideias. Para Coelho (2000), a fase do leitor em processo, que também nos

interessa, abrange a faixa de oito a nove anos, quando o aluno já domina a construção da

leitura. Para a autora, nessa fase algumas particularidades nos textos infantis deverão ser

observadas: a presença de diálogo nas imagens; as narrativas devem girar em torno de uma

situação central; as frases devem ser simples e na ordem direta, preservando os períodos

simples com a introdução gradativa de períodos compostos. O gênero lenda, escolhido para

ser desenvolvido em classe de primeira série, foco do presente trabalho, oferece os requisitos

necessários para contemplar essas duas fases de leitura.

Nessa perspectiva, ao planejarmos o trabalho de alfabetização com os gêneros é

preciso atenção ao gênero escolhido para trabalhar leitura e escrita. Na verdade, um texto que

não seja do interesse do leitor pode causar a sensação de que a leitura é uma prática

desagradável, daí a importância de, nesse período, a leitura ser sedutora. Também o gênero

em questão, de modo geral, contribui para o entendimento referente a determinado assunto e

para a compreensão do mundo e suas representações; além disso, nessa fase, a criança

manifesta sua preferência pelas narrativas.

Assim, a escolha da lenda para compor o presente trabalho se deu por três razões

distintas. Em primeiro lugar, a criança entra, deste cedo, em contato com as narrativas; em

segundo lugar, trata-se de um grupo de leitores iniciantes que apresentam uma predisposição

para a leitura de encantamento, com personagens mirabolantes e com finais surpreendentes. E,

por último, como já afirmado anteriormente, o tema folclore se constitui em importante

Page 38: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

37

recurso de ensino-aprendizagem em sala de aula, porquanto esse tema está atrelado às práticas

sociais.

Em termos gerais, o gênero lenda foi escolhido com base no interesse da criança

em ouvir histórias que envolvam muitas ações entre as personagens, favorecendo a interação

entre professor e aluno. Essa predisposição de ouvir e prestar atenção às conversas das

pessoas pode ser observada desde muito cedo no comportamento da criança. O primeiro

contato com a narrativa acontece por intermédio da voz de pais, avós, tios, enfim, de pessoas

próximas da criança. De tal forma, essas interações, no início da vida, oferecem à criança

momentos de descoberta que aguçam a sua capacidade criativa e de interação com o

imaginário, interações essas que são aprimoradas na infância. Podemos dizer que é na infância

que as interpretações sobre o mundo começam a fazer sentido para a criança por meio de

brincadeiras e fantasia, principalmente a imaginação. Para Kramer (2007), a criança interessa-

se por brinquedos e bonecas atraída pelas personagens dos contos de fadas, mitos e lendas.

Em suma, a cultura infantil é permeada por sonhos e brincadeiras, num mundo do “faz de

conta”. Portanto, dentre as narrações preferidas pelas crianças, as lendas ocupam um lugar de

destaque por suscitar a emoção, a magia, o encantamento, o medo, o suspense. Além do mais,

a criança sente muito prazer em compartilhar esses momentos com os adultos.

2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO

DO CÓDIGO

Na introdução deste estudo, destacamos que o nosso objetivo é descrever a

apropriação da língua escrita numa classe de alfabetização, valendo-nos da lenda como

gênero-instrumento na ação didático-pedagógica, considerando a dupla via – sistêmica e

textual – desse processo. Sendo assim, nesta seção julgamos necessário abordar as

similaridades e diferenças entre oralidade e escrita; a relação entre consciência fonológica e

aprendizagem da escrita: os conceitos de palavra, sílaba e fonema e suas implicações na

alfabetização, e finalizamos com a descrição do sistema alfabético do português no que

respeita à escrita conforme Scliar- Cabral (2003a; b; 2009).

Page 39: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

38

2.2.1 Similaridades e diferenças entre oralidade e escrita

A oralidade e a escrita constituem práticas e usos da língua. Para Marcuschi

(2005, p. 34) “as relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem

um continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua”, sinalizando

que as diferenças entre fala e escrita se dão no continuum tipológico das práticas sociais de

produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos (MARCUSCHI, 2005, p.

37). Koch (2007) partilha também da ideia de que a escrita formal e a fala informal

constituem os polos opostos de um contínuo, ao longo do qual se situam os diversos tipos de

interação verbal.

Dessa maneira, oralidade e escrita são eventos diferenciados, ainda que

pertençam ao mesmo sistema linguístico, pois suas regras e seus meios de uso são diferentes

(MARCUSCHI, 2005). Para Koch (2007), frequentemente a modalidade escrita é retratada

como planejada, não-fragmentária, completa, elaborada, com o predomínio de frases

complexas e com subordinação abundante, emprego frequente de passivas etc. Já a

modalidade falada não é planejada, é fragmentária, incompleta, pouco elaborada, com a

predominância de frases curtas, simples ou coordenadas. Mas, para a autora, essas diferenças

nem sempre distinguem as duas modalidades, porque dependendo do tipo de situação

comunicativa, existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se

aproxima da escrita formal, dependendo do tipo de situação comunicativa (KOCH, 2007, p.

78).

Uma diferença é o fato de os interlocutores estarem presentes na hora da fala,

existindo uma negociação entre eles, intercalando os turnos de fala, ora um se manifesta, ora o

outro, isto é, eles não só colaboram, como “co-negociam”, “co-argumentam”, um com o outro

(KOCH, 2007). Scliar-Cabral (2003a) afirma que a modalidade oral permite a inserção de

sons inarticulados, bem como a presença da expressão facial e corporal, além da modulação

da voz. A modalidade escrita permite uma reflexão do que se quer expressar no texto e é

marcada pela apreensão inicial da criança em relação aos “sons” e silêncios e de sua

imaginação e ainda pelas formas cristalizadas de cultura do seu grupo de convívio (SCLIAR-

CABRAL, 2003a).

Page 40: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

39

Nessa mesma direção, o fascículo sete do Programa de formação continuada Pró-

letramento (2007) discute modos de falar e modos de escrever e adverte que a principal

diferença entre os textos produzidos oralmente e os textos escritos é que nos produzidos

oralmente existe o apoio do contexto em que está sendo produzido. E quando escrevemos não

dispomos das informações contextuais porque o leitor nem sempre está inserido no mesmo

contexto de produção.

De fato, na modalidade oral qualquer problema de interpretação ou compreensão

pode ser imediatamente retomado e solucionado, pois locutor e interlocutor estão no mesmo

espaço-tempo. E nos valemos da própria linguagem do nosso corpo, como gestos, expressões

faciais e tons de voz com intuito de completar o que queremos dizer; além do mais, a

oralidade admite repetições, pausas, inserções.

Na modalidade escrita, estamos em espaço-tempo diferente de quem vai ler o

texto que escrevemos, daí ser necessário considerar o objetivo ou intenção do produtor do

texto. Na verdade, há uma exigência maior para o texto escrito; geralmente os modos de falar

são marcados por menos atenção e menos planejamento que os modos de escrever, embora

em certas circunstâncias os modos de falar requeiram quase tanta monitoração quanto os

modos de escrever (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 13. FASCÍCULO 7). A esse

respeito Marcuschi (2005, p. 38- 39) declara que oralidade e escrita:

“São [...] realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista

semiológico podem ter peculiaridades com diferenças acentuadas, de tal modo que a

escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização

multissistêmica (palavras, gestos, mímica etc) e os textos escritos também não se

circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, ideogramas, por exemplo, os

ícones do computador e grafismos de todo tipo). [...] não postulamos uma simetria

de representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações

estritamente linguísticas.

Scliar-Cabral (2003a) esclarece que a fala é adquirida naturalmente, pois ao longo

da história está presente onde quer que sejam encontrados traços de humanidade e não existe

nenhuma dificuldade – salvaguardando as patologias – para adquirirmos a linguagem oral

desde que sejamos expostos à situação linguística. A autora lembra ainda que o sistema

alfabético apareceu mais tarde, é uma invenção da humanidade, e foi preciso acumular

conhecimentos para se descobrir o princípio de que as palavras eram constituídas. Assim, o

sistema verbal escrito, ao contrário do sistema verbal oral, precisa ser aprendido de maneira

sistemática.

Para a autora, a modalidade oral e a modalidade escrita podem ser usadas como

instrumento de reflexão sobre a própria língua, fenômeno a que se dá o nome de

Page 41: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

40

metalinguagem. Essa reflexão sobre a linguagem oral é necessária porque todos os falantes de

uma língua, alfabetizados ou não, percebem a cadeia da fala no seu uso cotidiano como um

continuum, enquanto no início do processo da escrita, a criança não percebe a separação entre

as palavras. Dessa forma, com o conhecimento do sistema alfabético, é possível perceber que

a sílaba pode ser desmembrada em unidades menores, os fonemas. Scliar Cabral (2003a; b)

adverte ainda que a falta de reflexão metalinguística leva o aluno a eliminar a consoante

inicial da vogal seguinte com a qual se coarticula e essas articulações em cada nível são

representadas através da linguagem verbal, tanto oral quanto escrita. Segundo a autora, existe

uma reciprocidade entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético.

2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de

palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.

A alfabetização tem sido objeto de estudo em diferentes áreas de pesquisa

(SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;

COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,

2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001; POERSH, 1990 entre outros). Conceber a alfabetização

como um processo complexo e multifacetado implica investigar como se dá o processo de

ensino-aprendizagem da leitura e da escrita pela criança. Na presente pesquisa, nosso foco

recai na aprendizagem da escrita. Nesta seção, procuramos esclarecer os conceitos de palavra,

sílaba e fonema, por considerá-los fundamentais para o entendimento de nossa prática

pedagógica. Abordamos também o desenvolvimento da consciência fonológica como

facilitador da aprendizagem da língua escrita pela criança.

Como mencionado anteriormente, para Scliar-Cabral existe uma influência

recíproca entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético:

A consciência fonológica insere-se na consciência metalinguística. Elas decorrem da

capacidade de o ser humano poder se debruçar sobre um objeto, no caso, a língua, de

forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso da consciência fonológica, o

objeto sobre o qual você se debruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem

utilizada é o alfabeto. Uma primeira distinção a fazer é entre conhecimento não

consciente dos fonemas para o uso e o seu conhecimento consciente dos fonemas.

Todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou não, tem conhecimento não

Page 42: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

41

consciente dos fonemas e os utiliza com propriedade: quando escuta ou quando fala,

sabe a diferença entre /´bala/ e /´mala/. Já o conhecimento consciente dos fonemas

se desenvolve com a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua.

(SCLIAR-CABRAL, 2009. p.35).

Baseando-nos em Scliar-Cabral (2003 a, b, 2009), podemos dizer que a

consciência fonológica pode ser definida como uma habilidade de reconhecimento dos

fonemas nas palavras, desde substituí-los até segmentá-las em unidades menores (palavras

em sílabas e sílabas em fonemas). No processo de alfabetização, analisar as palavras

utilizando-se das regras de correspondência entre fonemas e grafemas4 constitui-se em pré-

requisito para o ensino-aprendizagem da escrita. Portanto, a aprendizagem de palavras faz

parte do processo de alfabetização.

Scliar-Cabral (2009) ensina que o reconhecimento da palavra ocorre por análise e

síntese dos traços, letras e grafemas associados aos fonemas, morfemas5 e frases para chegar

à compreensão textual. Essa capacidade de perceber a articulação dos traços da palavra

escrita, com função de distinguir significados, os grafemas, associados ao respectivo fonema

(SCLIAR-CABRAL, 2003), significa atribuir os valores fonológicos que envolvem a língua,

e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as palavras e/ou entre

consoantes e vogais. Dito de outra forma, o reconhecimento dos grafemas da palavra se faz

associando o traçado à realização do fonema que o grafema representa, e para especificar a

construção da palavra é necessário analisar seus constituintes, discriminando os fonemas e

os grafemas cuja função é distinguir sentidos e significados.

Segundo Scliar-Cabral (2009), a razão primordial que fundamenta a fônica são os

grafemas que representam um fonema (classe de sons com função de distinguir significados).

Em relação à sílaba, a autora julga importante examinar o contraste entre as unidades que

constituem a sílaba para desmembrá-la e fazer a associação de um fonema a um grafema. Para

a autora, na sílaba o que define uma consoante e uma vogal são as pistas acústicas e também

seus respectivos gestos fonoarticulatórios, em virtude da co-articulação. A autora afirma ainda

que a fala é percebida como um contínuo antes da alfabetização, sendo essa a maior

dificuldade na aprendizagem da leitura e da escrita. E como solução, sugere “um trabalho

sistemático [...] para que o indivíduo reconstrua de modo consciente a percepção da fala e

4 O grafema é a menor unidade da escrita, constituída de uma ou duas letras para distinguir significados. Se for

desmembrado, como ch, deixará de ser um grafema. É uma unidade abstrata (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 11). 5 Os morfemas se referem às classes, categorias e relações gramaticais. São morfemas os afixos, os pronomes, as

preposições, as conjunções, os advérbios de lugar, os artigos. (SCLIAR-CABRAL, 1976).

Page 43: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

42

possa desmembrar a cadeia da fala em palavras e a sílaba em seus constituintes”. (SCLIAR-

CABRAL, 2009, p.11).

Para Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 69):

A aquisição e a estruturação da língua na mente infantil é toda baseada na unidade

silábica: as primeiras enunciações infantis, valendo por vocábulos e frases, são as

sílabas, e o processo da criança, que utiliza a reduplicação desses elementos para

construir palavras (dadá, papá etc), é um modo de insistir na unidade fonética

espontaneamente sentida.

Esse mesmo autor (1977) considera que existe nebulosidade na definição precisa e

científica da sílaba, porque os debates a têm focalizado como realização física, sem levar em

conta a sílaba funcional. E apresenta alguns conceitos de sílaba, como sílaba dinâmica ou

expiratória, “enquanto se fala, o ar é emitido numa série de impulsos a cada um dos quais se

pode dizer que corresponde a uma sílaba”; sílaba intensiva destaca “o acento silábico ou

maior energia da emissão, durante a articulação de uma sílaba, o qual está para os fonemas

componentes como o acento”; e a sílaba sonora, “emitida num único impulso de expiração,

mas num só impulso também se podem articular duas sílabas sonoras, que ficam assim

reunidas numa única expiratória ou dinâmica” (MATTOSO CÂMARA JR, 1978 p.70).

Mattoso traz também o conceito de sílaba funcional, que é “aquela que impõe os tipos de

concatenação dos fonemas de uma língua dada, conforme o tratamento crescente ou

decrescente nas várias situações dos contextos”.

Scliar-Cabral (2009) reafirma que desenvolver a consciência fonológica pode

ajudar a vencer a dificuldade em segmentar a sílaba e alerta que não se deve confundir

consciência fonológica com habilidades para discriminar diferenças entre sons, pois o fonema

é uma entidade que tem a função de distinguir as significações básicas. E assim a autora

levanta uma discussão a respeito do fonema com o intuito de aclarar a compreensão de

consciência fonológica.

O que é um fonema? Muitos confundem fonema com som. No entanto, a definição

clássica de fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, é: O fonema é um feixe

de traços distintivos. O fonema tem uma função distintiva, isto é, serve para

distinguir um significado básico de outro, como já no citado exemplo de /’bala/ e

/’mala/. Veja bem, o fonema não tem significado: serve para distinguir significados.

Quer dizer que /b/ e /m/ não significam nada, mas trocando um pelo outro no

contexto /’_ala/, o significado se altera (2009, p. 35).

Outro questionamento da autora:

Page 44: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

43

Por que o fonema não é som? Porque o fonema é uma unidade psíquica: assim como

não se pode colocar uma cadeira dentro da cabeça, as moléculas de ar que se

comprimem e se rarefazem para produzir as ondas acústicas também não podem

entrar dentro da cabeça. [...] O fonema é um feixe de traços invariantes, de natureza

abstrata, que são reconhecidos por sua função de distinguir significados, permitindo

que as pessoas se comuniquem através da língua verbal oral. Não importa como as

pessoas pronunciem o terceiro segmento que aparece na palavra carta [r], pois o som

que o carioca produz só tem de parecido com o que um gaúcho de Bagé diz no fato

de ambos serem consoantes, e só! Mas o fonema é o mesmo! (2009, p. 35).

Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 48-66) considera o fonema como um conjunto

mínimo (de efeitos acústicos ou de movimentos dos órgãos fonadores) com um papel, ou uma

FUNÇÃO, na representação e na comunicação linguística. A sua troca por outro conjunto

mínimo muda o valor representativo do que é enunciado: comparem-se má e pá. Para o autor,

os fonemas apresentam a divisão fundamental entre consoantes e vogais, do ponto de vista de

sua produção oral e efeito acústico. O autor também esclarece que o fonema é produzido

dentro do som da fala por certas qualidades articulatórias, com resultantes qualidades

acústicas que opõem cada um deles aos demais.

Scliar-Cabral (2003b, p. 248) salienta que a correspondência entre fonemas e

grafemas gera determinadas dificuldades: primeiramente, perceber a distinção do traço

fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica. Em segundo lugar, a

dificuldade de perceber os traços gráficos. A terceira dificuldade é levar o aluno a adivinhar

ou alfabetizar pelos nomes das letras, caso em que se deve processar o sinal acústico para

codificá-lo em grafemas pelas letras. A quarta dificuldade é a falta de domínio das regras de

codificação determinadas pelo contexto fonético. E, por último, a dificuldade da resposta

aleatória.

Assim, a falta de exatidão na correspondência das qualidades fônicas e seus

respectivos valores pode gerar algumas dificuldades, mas reconhecemos também que sem

possibilitar à criança exercitar no texto essas dificuldades é praticamente impossível que ela

as supere somente com atividades de ordem estrutural. Ter claros esses conceitos pode

significar um planejamento didático voltado para as especificidades da língua materna, e é

importante trabalhá-los para proporcionar à criança o contato com o sistema alfabético, além

de proporcionar o reconhecimento e a formação de novas palavras a partir de outras pré-

existentes.

2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita

Page 45: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

44

Na seção anterior abordamos os conceitos de palavra, sílabas e fonemas e a

importância da consciência fonológica como facilitador da aprendizagem da leitura e da

escrita na alfabetização. O objetivo desta seção é descrever o processamento da escrita,

segundo Scliar-Cabral (2003a; b). Uma das razões para o grande interesse de tais descrições

reside no fato de elas explicarem quais são as dificuldades pelas quais passam os aprendizes

do sistema escrito do português do Brasil. Além do mais, encontramos no trabalho da autora

os subsídios necessários para fundamentar a nossa análise em relação ao código, no nosso

caso, a conversão de fonema-grafema.

As pesquisas de Scliar-Cabral (2003a; b) concentram-se em dois eixos: na

decodificação e na codificação. A primeira refere-se ao processo da leitura, ao

reconhecimento das letras e à atribuição dos valores aos grafemas. A segunda refere-se à

conversão dos fonemas em grafemas na escrita da palavra. Em nosso estudo, interessa-nos a

codificação, isto é, a aprendizagem da escrita. De acordo com Scliar- Cabral (2003a; b), as

regras de codificação se subdividem em: regras independentes do contexto; regras

dependentes da posição e/ou do contexto fonético; as alternativas competitivas; as regras

dependentes da morfossintaxe e do contexto fonético e a derivação morfológica. Destas,

abordamos as regras independentes do contexto: algumas ocorrências das regras dependem da

posição e/ou do contexto fonético intercalando com alguns casos de alternativas competitivas.

Para Scliar-Cabral (2003a; b), a conversão aos grafemas independente do contexto

ocorre quando os fonemas correspondem aos grafemas e não dependem da posição e/ou do

contexto fonético. Como observamos no quadro abaixo nas palavras: “pato” → /p/→ “p”;

“bola”→ /b/→ “b”; “tatu” → /t/→ “t”; “dado”→ /d/ → “d”; “faca”→ /f/→ “f”; “uva”→/v/→

“v”; “nata” → /n/→ “n”; “bolha” → / λ /→ “lh”; “anéis” →/ej/ →éi; “dói” → /ói/→ ói

(ditongos abertos éi e ói, respectivamente). Observem na tabela, a seguir:

Tabela 1 - Conversão aos grafemas independente do contexto

Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos

/p/ p pato /b/ b bola

/t/ t tatu /d/ d dado

/f/ f faca /v/ v uva

/m/ m mato /n/ n nata

/ ŋ / nh linha / λ/ lh bolha

/ej/ éi anéis /ói/ ói/ dói

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 78.

Page 46: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

45

Podemos observar que ocorre correspondência biunívoca entre fonemas e

grafemas em /p/ → “p”, /b/→ “b”, /t/ → “t”, /m/→ “m”, /ŋ/ → “nh”, /d/ → “d”; /v/→ “v”, /n/

→ “n”, / λ/→ “lh”, um fonema corresponde a um grafema e vice-versa. Assim, os fonemas

/p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/, /m/, /n/, /ŋ/, /λ/, serão sempre representados pelos grafemas “p”, “b”,

“t”, “d”, “f”, “v”, “m”, “n”, “nh”, “lh”, respectivamente.

A conversão dos grafemas dependente da posição e/ou do contexto fonético é

subdividida pela autora em: consoantes e vogais. Primeiro, abordaremos as consoantes e em

seguida as vogais. Em relação às consoantes, Scliar-Cabral (2003b) ressalta que somente o

fonema /l/ tem sempre a mesma conversão em início da palavra e de sílaba interna, pois em

tais posições sempre se escreve com o grafema “l”, como, por exemplo, “Lula”; os fonemas

/z/ e o arquifonema |R| têm a mesma conversão em início de palavra, posição na qual sempre

se escrevem com os grafemas “z” e “r”, respectivamente. O arquifonema |R| em final de sílaba

e palavra, a substituição de /R/ e /r/ não altera o significado da palavra; esses dois fonemas só

têm a mesma conversão no início da sílaba interna. Assim, o fonema /r/ pode vir entre

semivogal e vogal, mas o fonema /R/ não pode vir depois de semivogal. O fonema /s/, em

início de palavra, pode ser convertido no grafema “s”, antes da vogal posterior, no início da

palavra e, também em vários outros grafemas no início da palavra, antes da vogal não

posterior pode se converter em “c”.

Scliar-Cabral (2003b) esclarece ainda que, pela regra, a realização dos fonemas

/l/, /z/, /R/, que ocorrem no início do vocábulo, se convertem nos grafemas “l”, “z” e “r”,

respectivamente. Por exemplo: “lata”, “zero”, “rato”. A realização do fonema /l/ no início de

sílaba interna se converte no grafema “l”,como, por exemplo em “calo”, “calem”, “baile”,

“caule”. O fonema /R/ também no início de sílaba interna, não depois de semivogal, se

converte no grafema “rr”, como na palavra “carro”. Já o fonema /r/ no início da sílaba interna

se converte no grafema em “r”. Ex: “caro”, “beira”, “doura”, “cárie”. A realização do fonema

/s/ ocorre só depois de vogal posterior ou /w/, caso em que se converte no grafema “s”. Ex.:

“sala”, “som”, “suave”. Vejamos na tabela:

Tabela 2 - Conversão dependente da posição no início do vocábulo antes de vogal ou em

início de sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal

No início do vocábulo No início da sílaba interna

Fonema Conversão Exs. Fonema Conversão Exemplos

/l/ l lata /l/ l calo, calem,

Page 47: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

46

baile, caule

/z/ z zero

|R| r rato

/R/ não depois

da semivogal

rr Carro, correm

/r/ r Caro, beira,

doura, cárie

Só antes da vogal posterior ou /w/

/s/ s sala

som

suave

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.

Scliar-Cabral (2003a) enfatiza que quando houver alternativas competitivas para o

mesmo contexto fonético, é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item que

emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica. Para realização do

fonema /S/ nos contextos competitivos a autora define as regras:

A realização do fonema /s/ em início de vocábulo, antes de vogal oral ou nasalizada

não posterior, [...], ou antes de semivogal /j/ pode se reescrever ou com o grafema

“s” ou “c” (153).

As realizações do fonema /s/ podem se reescrever “ss”, “c”, ou “sc” em início de

sílaba, entre vogal oral e vogal não posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não

posterior [...] , e /j/ entre a vogal /e/ em início de vocábulo, precedida ou não de

prefixos, e vogais não posteriores orais ou nasalizadas não altas, [...] e /ẽ/ ainda pode

se reescrever com “xc”... (p. 153-154).

A realização do fonema /s/ em posição intervocálica, se a segunda vogal começar a

terminação - /imu/→ “imo” ou - /imi/ → “imi” e suas reflexões pode ser grafadas

com “x”, por exemplo: próximo, proximidade. (p.154).

A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre vogal oral e vogal posterior

oral ou nasalizada que não a [+alta], posteriores, [...], pode se reescrever com os

grafemas “ss”, “ç”. Dois contextos competitivos mais restritos ocorrem para o

grafema “sc”, que pode ocorrer entre /e/ ou /a/ e /u/, /a/, /õ/ ou /ã/ e “xs”, que pode

ocorrer entre /e/ e vogal oral arredondada [...] (p. 155).

A realização do fonema /s/ em posição inicial de sílaba interna, entre vogal

nasalizada e vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] pode se

reescrever “s”, “c”, ou “sc” (p. 156).

A realização do fonema /s/ pode ser codificada seja pelo grafema “s” ou “c” em

início de sílaba entre vogal nasalizada e vogal oral ou vogal nasalizada posteriores

[...] ou entre / ě/ e a semivogal /w/ (p. 156).

A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e

vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] pode se reescrever tanto

por “s” quanto por “c” (p. 157).

A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e

vogal oral posterior ou nasalizada ou posterior que não a [+alta], [...] e /ã/, pode se

reescrever tanto “s” quanto “ç” (p. 158).

Observando a tabela abaixo, verificamos que a conversão dos fonemas dependente

de vogal posterior ou não posterior apresenta duas ocorrências: antes de vogal posterior /w/ e

antes da vogal não posterior /j/. Na primeira ocorrência, o fonema /k/ antes da vogal posterior

pode ser convertido no grafema “e” nos casos em que não ocorrem as vogais, isto é, /u/, /ã/,

como em “conta”. Encontramos ainda o fonema /g/ que pode ser convertido no grafema “g”,

Page 48: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

47

por exemplo, “gula”, “agüenta”. A realização do fonema /z/ seguido de uma vogal posterior

se transcreve “j”, como em “loja”. A realização do fonema /s/, seguido de uma vogal

posterior, oral ou nasalizada, depois do fonema /j/ se transcreve “ç”, por exemplo, “feição”.

Na segunda ocorrência, antes da vogal não posterior /j/, os fonemas /k/ e /g/ podem ser

convertidos nos grafemas “qu” e “gu”, respectivamente. Por último, se a realização do fonema

/s/ figurar em início de sílaba entre a semivogal /j/ e uma vogal não posterior, isto é, /i/, /e/,

/i~/, /e~/, se grafa “c”, por exemplo, “foice”.

Tabela 3 - Conversão dos fonemas dependente de vogal posterior ou não posterior

Antes de vogal [+post], /w/ Antes da vogal [-post], /j/

Fonema Conversão Exemplos Conversão Exemplos

/k/ e (que não as

vogais /u/, /ã/)

conta qu queixo

/g/ g gula, agüenta gu guerra

/z/ j loja

/s/ ç depois de /j/ feição c foice

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.

Na tabela 4, conforme a regra, a realização do arquifonema |R| em início de sílaba,

seguido de vogal posterior nasalizada, /w/ ou /S/ se transcreve “r”, conforme o exemplo de

“enruga”, “melro”, “desrespeito”, respectivamente. Se a realização do fonema /∫/ for

nasalizada, /ej/, /ow/ ou /aj/, nestes casos se grafa “x”, por exemplo, “enxame”, “deixa”,

“trouxa”, “caixa”, respectivamente. Se a realização do fonema /z/ figurar em /e/ em início de

vocábulo, precedido ou não de prefixo, se grafa “x”, “enxame”, “reexame”. Caso a realização

do fonema /w/ figurar depois de / k/ ou /g/ antes de vogal não posterior, se grafa “u” como em

“eqüino”, “agüentar”.

Tabela 4 - Conversão de /j/ e |R| em início de sílaba, depois de vogal nasalizada, |S|, |W| e de

/ej/, /ow/, /aj/; conversão de /z/ depois de /e/ em início de vocábulo e de /w/ entre /k/ ou /g/ e

vogal não posterior

Page 49: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

48

Fonema Conversão Depois de Exemplos

|R| r Vogal nasalizada enruga

/W/ melro

/S/ desrespeito

/∫/ x Vogal nasalizada enxame

/ej/ deixa

/ow/ trouxa

/aj/ caixa

/z/ z /e/ em início de vocábulo,

precedido ou não de

prefixo

enxame, reexame

/w/ ü /k/ ou /g/ antes de vogal

não posterior

eqüino, aguentar

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.

A tabela abaixo mostra que pela regra a realização do arquifonema |R| no final

da palavra pode ser convertido em “r” depois da vogal oral, por exemplo, beber, mulher,

gostar etc. Em sua realização, o arquifonema |S| pode ser convertido em “s”, em sílaba tônica

depois de vogal oral e semivogal, como em “casas”, “livros”, “bebes”, “fáceis”. Pela regra, o

fonema /j/ pode ser convertido em “e” (depois de /ã (s)/), em “m” no ditongo nasalizado, em

tônico não seguido de /s/ (depois de /e/) e “n” em ditongo nasalizado átono ou quando tônico,

seguido de /S/ (depois de /e/), por exemplo, “beber”, “casas”, “mãe”, “bem”, “ele detém”,

“hífen”. O fonema /j/ realizado no final do vocábulo pode ser convertido em “i”, em ditongo

decrescente, depois da vogal oral, como nas palavras “pai”, “pais”. Por último, o fonema /w/

pode ser convertido em ditongo nasalizado tônico, depois de /ã/, como, por exemplo, “vão”,

“darão”, “salão”, “mãos”.

Tabela 5 - Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final de vocábulo

Arquifonema ou

Fonema

Conversão Depois de Exemplos

Page 50: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

49

|R| r Vogal oral beber, mulher, gostar

|S| s em sílaba tônica Vogal oral, SV casas, livros, bebes,

fáceis

j

e /ã (s)/ /õ (s)/ mãe, mães, mão, mãos

m no ditongo

nasalizado

bem, ele vem, alguém

tônico não seguido de

/s/

/~e/ ele detém, eles vêm, ele

detém

n no ditongo nasalizado

átono, ou quando

tônico, seguido de /S/

/~e/ hífen, homens, itens,

bens, deténs

/j/ i no ditongo

decrescente

Vogal oral pai, pais

/w/ no ditongo nasalizado

tônico

/ã/ vão, darão, salão, mãos

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.

Continuando as alternativas competitivas, Scliar-Cabral (2003b) explica:

O fonema /z/ se grafa competitivamente s ou z em início de sílaba depois de

qualquer vogal ou semivogal, exceto se a vogal oral no início do vocábulo for /e/,

precedida ou não de prefixo, pois então se grafa obrigatoriamente x, como em

“exame” [...] (p. 92).

O fonema /∫/ em início de vocábulo ou posição intervocálica oral ou nasalizada se

converte em ch ou x. Ex.: “cheque” e “xeque, “chá” e “xá”; “fechou” e “vexou” [...]

( p. 92).

O fonema /з/ em início de sílaba externa ou interna, antes de vogal não posterior oral

ou nasalizada, se converte em g ou j, conforme os exemplos: “gira” e “jipe”;

“degelo” e “rejeito”; “eu gelo” e “jeca”; “ginga” e “jinga” (p. 93).

O arquifonema |R| em algumas variedades socioliguísticas, como o chamado dialeto

caipira, em sílaba travada terminada em /R/, /l/ e /R/, neste contexto, realizam-se

como a retroflexa /r/. Neste caso, a homofonia se estende a toda uma série de pares e

só é desmanchada na escrita, como “pulga” (inseto)/ “purga” (laxante),

“mal”/”mar”, por exemplo (p. 93). Aqui a autora adverte que “o redator, de acordo

com o assunto (esquema mental) sobre o qual estiver escrevendo, deverá recordar

como se escreve a palavra cuja grafia memorizou”, já que se trata de homófonos não

homógrafos (p. 93).

A semivogal /j/ se reescreve competitivamente i ou e nos ditongos crescentes orais

(também pronunciáveis como hiatos), antes de vogal oral posterior, em final de

sílaba não final de vocábulo, ou final de vocábulo, seguida ou não de consoante. Ex.:

→ “acordeona” e “piolho”, “veado” e “viaja”; “páreo” e “Mário”, “área” e “ária” (p.

93-94).

O arquifonema |W| se escreve competitivamente o ou u nos ditongos crescentes

orais (também pronunciáveis como hiatos), em sílaba não final de vocábulo ou em

final de vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S| [...];

O ditongo decrescente, em sílaba interna, reescreve-se u ou l. Aplique-se,

também, a restrição da crase quando a semivogal /w/ for precedida pela vogal /u/,

como em /’vutu/ → “vultu” [...];

Em final de vocábulo, nos ditongos decrescentes, a semivogal /w/ poderá ser

codificada como o, u ou l; no último caso, em algumas variedades sociolinguísticas,

ocorre a neutralização entre /l/ e /R/ que se realiza como a retroflexa [...].

Page 51: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

50

No ditongo seguido do arquifonema |S|, a semivogal /w/ só admite a conversão

como o ou u. Ex.: “ateus”; “tios”; “caos”. (p. 94-95). Desse modo, trata-se, dentre

outras que foram mostradas, de uma das codificações mais complexas do português

do Brasil, uma vez que “é particularmente difícil decidir quando escrever ‘mal’ ou

‘mau’, [...] dada a semelhança semântica, somente os conhecimentos de morfologia

e de sintaxe podem resolver” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 95).

Pela regra, a realização do fonema |R| em final de sílaba, seguido de uma vogal

posterior oral, se transcreve “r”, como em “carta”, “porta”; o fonema |S| depois da vogal oral,

menos depois de /e/ em início de vocábulo precedido ou não por prefixo, isto é, /S/ se realiza

surdo antes de /p/, /t/, /k/, /f/ e sonoro antes das demais consoantes, a regra determina que se

grafe “s” como em “caspa”, “pasta”, “lesma”, “asno”. Se a realização do fonema /j/ figurar

depois da vogal oral, se grafa “i”, como em “feira”, conforme se vê na tabela 6, a seguir.

Tabela 6. Conversão dos fonemas em final de sílaba não final de vocábulo

Final de sílaba Depois de Exemplos

Fonema Conversão

|R| r Vogal oral Carta, porta

|S| s Menos depois de /e/ em início de

vocábulo precedido ou não por prefixo

Caspa, pasta, lesma,

asno

/j/ l Vogal oral feira

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 82.

A tabela 7 mostra que /r/ e /l/ se realizam em “r” e “l” nos casos de encontros

consonantais na mesma sílaba, isto é, sendo o primeiro fonema /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/, /v/

se converte nos grafemas “p”, “b”, “t”, “d”, “k”, “g”, “f”,”v”, como em “prato”, “simples”,

“cobra”, “blusa”, “letra”, “vidro”, “crise”, “ciclo”, “grande”, “globo”, “fruta”, “flor”, “livro”.

Tabela 7- Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba

Fonema Conversão 1º fonema Conversão Exemplos

/r/ e /l/

r e l

/p/ p prato, simples

/b/ b cobra, blusa

/t/ t letra

/d/ d vidro

/k/ k crise, ciclo

Page 52: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

51

/g/ g grande, globo

/f/ f fruta, flor

/v/ v livro

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 83.

Por fim, Scliar-Cabral (2003b) examina a conversão das vogais nos grafemas que

as representam, levando-se em consideração: a intensidade da sílaba; o timbre da vogal; e a

caixa de ressonância, isto é, as vogais orais e nasalizadas. Para a autora, a percepção da sílaba

mais forte no vocábulo ajuda a criança a identificar onde cai o acento de intensidade.

Conforme Scliar-Cabral (2003a; b), o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco

letras (a, e, i, o, u) para representar as vogais, embora existam sete vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é,

i) e cinco nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u).

De acordo com Scliar- Cabral (2003b) o acento gráfico marca a intensidade,

podendo grafá-lo com acento agudo ou circunflexo, conforme as regras:

Nos vocábulos proparoxítonos, se as vogais forem orais, o acento circunflexo cai

sempre sobre /e/ ou /o/ e o agudo sempre sobre /i/, /u/, /E/, /j/, /a/ como em “débito”,

“árvore”. [...] Se as vogais forem nasalizadas, o acento circunflexo cai sobre /e/, /o/,

/a/ e o agudo cai sobre /i/e /u/, como em “cúmplice”, “tímpano”. (p. 84)

Os vocábulos oxítonos ou monossílabos tônicos terminados em /e/, /o/, /E/, /j/, /a/,

seguidos ou não do arquifonema |S| a atribuição depende de dois critérios, ou seja,

se a vogal for [+ alta] ou [+nas], deixando a questão do timbre. Ex. “bebê”, “três”,

“pé”. (p. 85)

Os vocábulos paroxítonos terminados em /û/, /õ/, /ã/ ditongo oral decrescente ou

crescente, [...] seguidos ou não do arquifonema |S|, como em “álbum”, “álbuns”. [...]

Vogal seguida de /p (i)/ e /k (i)/ seguidas do arquifonema |S|, como em “tórax”. [...]

O |R| como em “açúcar”. A regra contempla a variação sociolinguística em que

houve neutralização entre /l/ e |R|, realizado como retroflexa /r/, como em

“possível”. (p. 86)

A intensidade nas vogais orais /i/ e /u/, em segundo lugar no hiato, sozinhas na

sílaba (salvo quando seguidas de |S|) as vogais /i/ ou /u/ devem se diferentes da

vogal precedente, seguidas ou não de |S|na mesma sílaba como em “caí”, “país” [...]

mas, rainha não tem acento gráfico, pois a segunda vogal do hiato é nasalizada. (p.

86)

Quanto à grafia das vogais nasalizadas, Scliar- Cabral (200b) esclarece que o til,

além de assinalar a nasalização das vogais /ã/ e /õ/, marca a sua intensidade mais forte nos

ditongos nasalizados em monossílabos tônicos, como em “hão”, “cães”. Já as letras m ou n

marcam a nasalização das vogais em final de sílaba interna e também em final de sílaba que

não esteja em final de vocábulo; antes de /p/ e /b/ que iniciem sílaba seguinte é marcada pela

letra m, como em “tempo”, “tumba”. Antes das demais consoantes, a nasalização é assinalada

pela letra n, como em “longe”, “anzol”, “sons”. A nasalização das vogais /i/, /õ/ com ou sem

intensidade, em final de vocábulo, é assinalada graficamente pela letra m; a nasalização da

vogal /õ/, sem intensidade, é assinalada pela letra n. Antes de |S| em final de vocábulo, a

Page 53: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

52

nasalização das vogais mencionadas acima é assinalada obrigatoriamente pela letra n, por

exemplo em “ruins” “fins”, “atuns” e outros. A vogal nasalizada /ã/, com ou sem acento de

intensidade, seguida ou não de |S|, em final de vocábulo, é marcada graficamente pelo til,

como em “lã”, “maçã”, “fãs”.

Nesta seção, descrevemos o sistema alfabético escrito com intuito de compreender

as dificuldades pelas quais o alfabetizando passa ao desmembrar a cadeia da fala. A seguir,

passamos a apresentar alguns aspectos da perspectiva histórico-cultural de Vygotsky,

enfatizando a Zona de Desenvolvimento Proximal. E por último, a apropriação da linguagem

escrita pela criança e suas implicações pedagógicas.

2.3 O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E

APRENDIZAGEM: RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Neste trabalho, a alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da

escrita visando às práticas sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma

receita culinária. Mas, além dessas práticas domésticas cotidianas, existem ainda as práticas

acadêmicas: artigo científico, monografia, dissertação e outros. Para fazer isso, importa

dominar o código alfabético, pois sem esse conhecimento é inviável a realização dessas

práticas sociais. Todo processo de ensino-aprendizagem demanda teorização de base

educacional. Dessa forma, como o trabalho aborda a alfabetização, precisamos de uma teoria

de aprendizagem e desenvolvimento que fundamente esse processo. Assim sendo, elege-se a

revisão de pontos pertinentes da teoria de aprendizagem de Vygotsky (1999), por entender

que a mediação, a troca de experiência e a importância da contextualização contribuem para o

aprendizado.

2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo de aprendizagem e desenvolvimento

Page 54: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

53

A obra de Vygotsky, sobretudo nas décadas finais do século XX, foi largamente

discutida nas áreas da Educação e da Psicologia. O estudo concentra-se em descrever e

explicar as funções psicológicas superiores, principalmente o conjunto de conhecimentos e

habilidades específicas, no que se refere à importância da linguagem e da cultura como

peculiaridades do homem. Sua teoria histórico-cultural parte do pressuposto de que é na

relação com o outro que nos constituímos como sujeitos, enquanto a apropriação da cultura

pelo homem ocorre pela mediação social.

Para Vygotsky (1999), a capacidade do ser humano de planejar ações, tomar

decisões, armazenar conhecimentos e imaginar situações que não existem constitui fenômenos

complexos que implicam funções psicológicas superiores. Esse autor defende que a mediação

de um interlocutor mais experiente possibilita o acesso ao conhecimento do objeto de

aprendizagem; defende ainda a linguagem como essencialmente de natureza psicológica

humana. Tal mediação passa a existir na interação homem-ambiente pelo uso de instrumentos

e de signos, o que exige do homem a habilidade para modificar e transformar a natureza a sua

volta. Desse modo, as funções psicológicas superiores operam como mediadoras no mundo

real, e as ferramentas usadas para essas mediações determinam, fundamentalmente, o

resultado do percurso escolhido, mudando a maneira de ser e de agir do homem. As

mediações são indispensáveis para o desenvolvimento dos processos mentais superiores; as

operações indiretas (ou mediadas) acontecem gradualmente como resultado de “[...] um

processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica”

(VYGOTSKY, 1999, p. 60).

De acordo com Vygotsky (1999), ao longo da trajetória do desenvolvimento

humano os processos de mediação mais aprimorados das funções psicológicas começam a se

organizar quando a criança é capaz de compreender a função e o uso dos signos externos,

melhorando consideravelmente o seu desempenho.

Vygotsky constatou também que as crianças menores operam de forma direta.

Para as crianças pequenas a representação por signo não faz muito sentido. Apesar de

demonstrar ser capaz de relacionar a palavra à imagem, ela não consegue relacionar a imagem

à palavra. O signo (imagem) por sua vez traz à tona uma série de novas associações, e então

uma imagem pode desencadear uma série de lembranças. Ao adquirir a capacidade de realizar

a correspondência entre palavra e imagem e vice-versa, a criança estabelece uma correlação

por meio de signos. Vygotsky (1999) ensina que inicialmente o interesse da criança depende

Page 55: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

54

apenas dos signos externos, mas com o passar do tempo o seu interesse começa, por meio da

mediação, a operar plenamente com o processo interno. Essa internalização resulta da

reconstrução de uma atividade externa que começa a operar internamente, passando do

processo interpessoal (social) para o intrapessoal (individual). E, após uma série de

acontecimentos, os processos externos vão sendo incorporados gradativamente ao

desenvolvimento humano. Nas palavras de Oliveira (2008) é como se, ao longo de seu

desenvolvimento, o indivíduo “tomasse posse” das formas de comportamento fornecidas pela

cultura, num processo em que as atividades externas e as funções interpessoais se

transformam em atividades internas, intrapsicológicas.

Em experimentos realizados em laboratórios, Leontiev observou que as crianças

de cinco a seis anos geralmente são incapazes de usar os cartões para completar a tarefa;

mesmo após a explicação, não conseguiram identificar sua função; os estímulos externos

oferecidos não ajudaram a criança a resolver o problema apresentado. Observou também que,

quando fica mais velha, a criança utiliza os cartões com a finalidade de resolver o problema

apresentado, e o seu comportamento passa a ser mediado por uso de signo. Assim, o uso de

signos externos começa a operar a partir de oito anos, aproximadamente. Nessa idade, a

criança é capaz de compreender a sua função e melhorar seu desempenho por meio dessa

mediação. Desde cedo a criança apresenta a capacidade de realizar operações complexas, mas

Leontiev constatou, em seus experimentos, que existem os sistemas psicológicos de transição

decorrentes do nível inicial (comportamento elementar) e dos níveis superiores (formas

mediadas de comportamento), processo ao qual foi atribuído o nome de história natural do

signo.

Apoiando-se nessas pesquisas desenvolvidas por seus colaboradores, Vygotsky

(1999) afirma que, para entender signo e instrumento em profundidade e confirmar a real

ligação entre eles, ou pelo menos dar um indício de sua existência, são necessárias três

condições: em primeiro lugar, existe similaridade entre signo e instrumento; em ambos os

casos, a materialização acontece por meio da mediação, portanto podem “ser incluídos na

mesma categoria” (VYGOTSKY, 1999, p.71). A segunda condição, a diferença entre signo e

instrumento, reside na organização do comportamento humano. Se, por um lado, o

instrumento se “constitui em um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o

controle e domínio da natureza” (VYGOTSKY, 1999, p.73), por outro lado, o signo é

essencialmente interno e é controlado pelo próprio sujeito. E, por último, a origem de signo e

instrumento, condição ancorada na filogênese e na ontogênese: ao provocar mudança na

natureza, o homem muda a si próprio; ou seja, ao modificar o uso de instrumentos

Page 56: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

55

culturalmente e atribuir-lhes novas funções, o homem se vê compelido a modificar seu

próprio comportamento.

Finalmente, a criança desenvolve a capacidade de interagir com os adultos, que

lhe proporciona o contato direto com a cultura. Como já se viu aqui, as características dos

indivíduos originam-se das trocas de uns com os outros, basicamente nas interações com os

signos e nas mediações com os mais velhos. Isso é, a interação social, seja diretamente com

outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente

estruturado, fornece a matéria-prima para o desenvolvimento psicológico do indivíduo

(OLIVEIRA, 2008, p. 38). Assim, é na interação entre os indivíduos, que o sujeito ao mesmo

tempo valoriza e interioriza as idéias de uma outra pessoa e de uma sociedade, e também pode

agir sobre o meio do qual faz parte e provocar constantes transformações. Ou seja, a vida

social é um processo dinâmico, em que cada sujeito é ativo e acontece a interação entre o

mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um (OLIVEIRA, 2008, p. 38).

2.3.2 Zona de Desenvolvimento Proximal

Para estudar o comportamento, é impossível excluir o fator biológico e as funções

psicológicas superiores de origem sociocultural (VYGOTSKY, 1999). As descobertas de

Vygotsky evidenciam a importância dos instrumentos e símbolos fornecidos pelas mediações

sociais na relação entre o indivíduo e o mundo: a criança vive e interage em contextos sociais

diferentes; é praticamente impossível não ter nenhum contato com o mundo a sua volta por

menor que seja. Ao estabelecer esses contatos, a criança inicia o aprendizado de uma série de

conceitos inicialmente experimentados com a ajuda de adultos ou pessoas mais experientes e

que mais tarde passam a dominar e realizar sem a ajuda de terceiros. Ou seja: o que a criança

pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só (VYGOTSKY,

1998, p. 113).

Portanto, aprendizagem e desenvolvimento estão inter-relacionados desde o

primeiro dia de vida da criança (VYGOTSKY, 1999, p. 110), embora não coincidam. Na

perspectiva defendida por esse autor, o aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma

espécie de garantia do desenvolvimento das características psicológicas especificamente

Page 57: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

56

humanas e culturalmente organizadas (REGO, 1999, p. 71). Sobre o desenvolvimento

humano, Vygotsky não chegou a formular uma concepção estruturada a partir da qual

pudéssemos interpretar o percurso psicológico do ser humano; em sua obra ele enfatizou a

importância dos processos de aprendizagem (OLIVEIRA, 2008, p. 56).

Na concepção de Vygostky (1999), para determinar o processo de

desenvolvimento e a capacidade de aprendizado, devemos determinar pelo menos dois níveis

de desenvolvimento: o nível de desenvolvimento real corresponde ao que a criança domina e

realiza sozinha sem a ajuda de adultos ou parceiros mais velhos, e o nível de

desenvolvimento potencial corresponde ao que a criança é capaz de fazer por intermédio das

mediações com adultos ou membros mais experientes de seu grupo. O percurso realizado do

nível real para o nível potencial, Vygotsky denominou Zona de Desenvolvimento Proximal.

Nas palavras de Oliveira (2008, p. 60):

A Zona de Desenvolvimento Proximal refere-se, assim, ao caminho que o indivíduo

vai percorrer para desenvolver funções que estão em processo de amadurecimento e

que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível de desenvolvimento

real. A Zona de Desenvolvimento Proximal é, pois, um domínio psicológico em

constante transformação; aquilo que uma criança é capaz de fazer com a ajuda de

alguém hoje, ela conseguirá fazer sozinha amanhã é como se o processo de

desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de aprendizado; o

aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se

parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo.

Esse conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky (1999) auxilia-

nos a compreender como acontece a aprendizagem de determinado conhecimento. Ele serve

para explicar o percurso que o indivíduo faz ao desenvolver ações de maturação de algum

conceito e como em contato com determinada situação por mediação de outro indivíduo, com

mais experiência, essas ações são concretizadas, atingindo o nível de desenvolvimento real do

indivíduo.

Uma das implicações do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, pelo

viés pedagógico, é considerar o processo de aprendizagem integralmente e não apenas a

finalização das atividades, isto é, o produto. O percurso para resolver um problema, tanto por

parte do professor quanto por parte do aluno, é muito importante: ambos devem examinar as

práticas vivenciadas em sala de aula. O desafio desse novo “modelo” de professor é trazer

como possibilidade, novas ações para a apropriação de um conteúdo específico. Dessa forma,

amadurecer ou desenvolver funções mentais é algo que deve ser encorajado e medido pela

Page 58: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

57

colaboração, e não por atividades independentes e isoladas (MOLL, 1996, p. 5). Podemos

então inferir, com o respaldo das pesquisas de Vygotsky (1999), que numa turma de

alfabetização é preciso considerar o contexto sócio-histórico-cultural em que a criança está

inserida; usar o que ela já domina como ponto de partida para desencadear o processo da

aprendizagem; analisar e traçar o percurso para realização das atividades e, por fim, oferecer

estratégias pedagógicas que a auxiliem a desenvolver suas potencialidades.

2.3.3 A pré-história da linguagem escrita

Dominar a linguagem escrita significa um extraordinário avanço no

desenvolvimento humano. Tal sistema complexo de signos aumenta a possibilidade de

registrar informações. Dessa perspectiva, as contribuições de Vygotsky (1999) nos auxiliam a

compreender o processo de desenvolvimento da linguagem escrita. Segundo esse autor (1999,

p. 139), “ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se

ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que

acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal”. Afirma, ainda, em relação à linguagem

falada, que a criança pode desenvolver-se por si mesma, enquanto o ensino da linguagem

escrita depende de um treinamento artificial; assim, a escrita precisa ser ensinada.

Para Vygotsky (1999), a linguagem escrita é um sistema de símbolos e signos,

chamado de simbolismos de segunda ordem e que gradativamente se torna um simbolismo

direto. O autor identifica três aspectos importantes para o desenvolvimento da escrita: os

gestos e signos visuais, o brinquedo e o desenho. O gesto é o signo visual que contém a futura

escrita da criança, e existem momentos em que os gestos estão ligados à origem dos signos

escritos: o primeiro rabisco das crianças.

O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo, o segundo aspecto, que une os

gestos à linguagem escrita, diz respeito aos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos

podem logo denotar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos: assim, um cabo de

vassoura pode transformar-se num cavalinho de pau. A representação simbólica no brinquedo

ocorre quando a criança pega um objeto e com ele desenvolve uma atividade imaginária;

assim, um objeto adquire uma função de signo. Por fim, o desenho começa quando a

Page 59: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

58

linguagem falada já teve grande progresso. As crianças desenham apenas de memória, não

desenham o que veem, mas o que conhecem, e esses desenhos têm por base a linguagem

verbal, que é o primeiro estágio do desenvolvimento da linguagem escrita. Com o passar do

tempo, o que foi desenhado (escrita pictográfica) adquire a formalidade da escrita ideográfica.

Ou seja, o desenho acompanha a frase, processo essencial para o desenvolvimento da escrita e

do desenho na criança (VYGOTSKY, 1999, p. 151).

Dentre os pesquisadores que colaboravam com Vygotsky, Luria (1998) oferece os

subsídios para compreendermos o processo pelo qual a criança inicia o aprendizado da

linguagem escrita. Nas suas próprias palavras (1998, p. 144):

Iniciamos onde pensamos encontrar as origens da escrita e [...] se formos capazes de

desenterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante

instrumento para os professores, o conhecimento daquilo que a criança era capaz de

fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer

deduções ao ensinar seus alunos a escrever.

Assim, para o estudioso, o escrever pressupõe a habilidade para usar alguma

insinuação (por exemplo: uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar,

sem qualquer sentido ou significado em si mesmo, mas apenas como uma operação auxiliar

(LURIA, 1998, p. 145). Ou seja: antes de entrar na escola para aprender a escrever, a criança

traz consigo um conjunto de habilidades que foram desenvolvidas anteriormente. Portanto, se

tomarmos como ponto de partida essas habilidades que foram construídas naturalmente pela

própria criança, teremos a circunstância propícia para combinar e criar novas maneiras de

ensinar a escrever distintas da anterior.

Baseando-se em seus experimentos com crianças, Luria (1998) apresentou um

percurso para a pré-história da escrita. Oliveira (2008) reconhece três fases de produção

escrita de crianças não alfabetizadas na obra de Luria (1998): a primeira fase, denominada

rabiscos mecânicos, não tem nenhuma função instrumental; nessa fase, a criança é incapaz de

utilizar sua produção escrita como apoio para recuperar a informação a ser lembrada. Em

outras palavras, a criança não faz associação entre o rabisco e a sentença ditada; assim, ela é

capaz de imitar os adultos, mas é completamente incapaz de apreender os atributos

psicológicos específicos que qualquer ato deve ter, caso venha a ser usado como instrumento

a serviço de algum fim (LURIA, 1998, p. 149).

Na segunda fase, Oliveira (2008) reconhece as marcas topográficas, nível mais

avançado de escrita em que as crianças distribuem seus rabiscos pelo papel na tentativa de

mapear o que deve ser lembrado e também para lembrar o conteúdo, pela posição dessas

Page 60: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

59

marcas no papel. Em outro momento, a criança passa a diferenciar pelo conteúdo o que é dito,

preocupando-se em distinguir quantidade, forma e outras características concretas das coisas

ditas. Ou seja, o signo auxiliar (linhas, bolinhas, pontos, manchas) começa a servir para

relacionar o que foi produzido com o que deve ser recordado. Assim, a criança passa por um

processo de criação de um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos

povos primitivos (LURIA, 1998, p. 157).

Finalmente, Oliveira (2008) identifica a fase de representações pictográficas,

quando os desenhos não são utilizados como forma de expressão individual, mas como

instrumentos, como signos mediadores que representam determinados conteúdos, de forma

que a criança consegue expor suas ideias por meio de desenhos ou figuras simbólicas

contendo um significado pessoal. Mais tarde esses caminhos levam a criança à escrita

simbólica; primeiramente, transformando o desenho num significado simbólico, e depois num

significado funcional. É oportuno lembrar que a criança aqui não sabe usar a escrita, mas já

inicia seu processo de compreensão da escrita alfabética.

Resumindo, este capítulo foi dividido em três seções. Na primeira seção,

abordamos a apropriação da escrita na escola: alfabetização em contextos de sentido.

Inicialmente priorizamos os documentos oficiais, em virtude do nosso foco de interesse, a

concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs de Língua Portuguesa do

Ensino Fundamental. Em seguida, explanamos sucintamente sobre os usos sociais da escrita e

o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento da Escola de Genebra,

viés pelo qual a interação entre os falantes organiza-se em forma de enunciados relativamente

estáveis (BAKHTIN, 2006). Escrevemos ainda sobre a base epistemológica do

interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY, DOLZ,

NOVERRAZ, 2004), que concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo, e

constantemente modificado pela ação dos sujeitos. Essa corrente teórica apresenta a sequência

didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) como proposta de intervenção

metodológica para desenvolver um determinado gênero. Finalizamos a seção discutindo o

gênero lenda como possibilidades didático-pedagógicas, com base no interesse da criança em

ouvir histórias.

Na segunda seção, tratamos das particularidades do código. Primeiramente,

discorremos sobre as similaridades e as diferenças entre oralidade e escrita, por entender o

processo da cadeia da fala como um contínuo que reflete diretamente na escrita. A seguir,

tratamos da importância da consciência fonológica; o reconhecimento das letras que

compõem as palavras, as sílabas e os fonemas-grafemas, estes dois últimos com a função de

Page 61: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

60

distinguir significados. No tema a seguir descrevemos as dificuldades para reconhecer as

letras que compõem as palavras com as quais a criança entra em contato ao iniciar o processo

de apropriação de escrita.

Na terceira seção, apresentamos uma discussão sobre o papel do alfabetizador no

processo de ensino-aprendizagem da alfabetização baseando-nos na teoria Vygotskiniana

sobre desenvolvimento e aprendizagem. No tópico a seguir abordamos a Zona de

Desenvolvimento Proximal. E por último, examinamos os princípios que conduzem a

aprendizagem da escrita pela criança de acordo com Luria (1998). Após a apresentação da

fundamentação teórica, passamos aos procedimentos metodológicos.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

No capítulo anterior apresentamos os aportes teóricos que orientaram a pesquisa.

Este capítulo destina-se à metodologia. Como mencionado anteriormente, o objetivo da

presente pesquisa é descrever a proposição de encaminhamento metodológico para o processo

de apropriação da língua escrita numa classe de alfabetização tendo a lenda como gênero-

Page 62: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

61

instrumento na ação didático-pedagógica. Por questão de ética de pesquisa, os nomes reais

foram substituídos com o propósito de preservar a identidade da criança, razão pela qual

adotamos a ordem alfabética, letras maiúsculas, para nomear as produções textuais.

Apresentamos o tipo de pesquisa realizada; em seguida o contexto da pesquisa e a

organização dos dados, e finalmente a forma como foram analisados.

Convém salientar que, para descrever a escola, a turma e a sala de aula, usamos os

documentos: Plano de Ação, em forma de grade, que se refere ao cronograma de atividades e

determina a ordem de realizá-las; o Projeto Político-Pedagógico (P P P) que atendeu o biênio

de 2004-2005, cuja meta principal foi orientar o trabalho pedagógico para formação do

educando na busca de uma convivência fraterna no meio social e inseri-lo no mundo da

cultura e do conhecimento científico do processo ensino-aprendizagem (p. 3). Usamos ainda

uma máquina fotográfica para registrar as atividades; e também o caderno de planejamento,

que foi importante não somente em relação às atividades, mas para descrever as intervenções

realizadas ao longo do processo. E por último, o diário de classe, documento que registra

diariamente os conteúdos que foram trabalhados. Em alguns casos, examinamos o relatório

individual do aluno, documento solicitado à secretaria da escola com antecedência. Dos

documentos: Plano de Ação e Projeto Político-Pedagógico, a coordenadora pedagógica da

escola nos forneceu uma cópia em CD.

3.1 TIPO DE ESTUDO

Por se tratar de pesquisa na área educacional, optou-se por uma abordagem que

documenta a realidade, a dinâmica e a complexidade do contexto de sala de aula. Segundo

Ludke e André (1986), à medida que avançam os estudos da educação, mais evidente se torna

seu caráter de fluidez dinâmica e de mudança, natural a todo ser vivo. E mais claramente se

nota a necessidade de desenvolver métodos de pesquisa que atentem para esse caráter

dinâmico.

A abordagem qualitativa foi utilizada porque envolve a obtenção de dados

descritivos, colhidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais

Page 63: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

62

o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes

(LUDKE, ANDRÉ, 1986). Sendo assim, é imprescindível um contato direto com a situação

pesquisada para fornecer, em sua análise, elementos necessários para compreender

determinada situação adequadamente. Estudos dessas ocorrências específicas são essenciais

para oportunizar ao pesquisador entender e suscitar a realidade dinâmica e complexa em que

se insere determinado objeto de estudo.

Nesta pesquisa, com base no referencial teórico procurou-se compreender e

interpretar a realidade estudada. Para tanto, estabeleceu-se uma interação entre os dados reais

e suas possíveis explicações teóricas que permitem estruturar um quadro teórico dentro do

qual o fenômeno pode ser interpretado e compreendido (LUDKE, ANDRÉ, 1986).

Por se tratar de uma única turma da rede pública de ensino do Distrito Federal, o

estudo de caso foi escolhido como metodologia por melhor instrumentalizar o contexto da

pesquisa, tomando a aplicação das atividades e as produções dos alunos como interesse único

e respeitando sua singularidade. Assim, o princípio básico deste estudo é que, para uma

apreensão mais completa do objeto, é preciso levar em conta o contexto em que ele se situa

(LUDKE, ANDRÉ, 1986).

3.2 CONTEXTO DA PESQUISA

Apresentamos nesta seção o contexto da pesquisa: a escola, a turma e a sala de

aula onde foi realizada a pesquisa. Em seguida, destacamos a organização dos dados e,

finalmente, a forma de analisá-los.

3.2.1 A escola

A pesquisa foi realizada numa escola pública do Distrito Federal; e os dados

foram coletados numa turma de primeira série no de 2005.

A coleta de dados foi realizada no Centro de Ensino Fundamental 06, situado na

Quadra 03, Área Especial 1/2, na cidade satélite de Sobradinho/DF. De acordo com o Projeto

Page 64: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

63

Político-Pedagógico (2004-2005), essa escola passou a existir a partir da fusão da Escola

Classe 02 com a Escola Classe 08, iniciando suas atividades em 14 de maio de 1977. Ainda de

acordo com o documento, no ano de 2005, foco desta pesquisa, o Centro de Ensino

Fundamental 06 atendeu 645 alunos de 1ª a 4ª série no turno matutino, distribuídos em vinte

turmas; 696 alunos de 5ª e 6ª séries no turno vespertino divididos em vinte turmas; três turmas

de Educação Infantil e 950 alunos do segundo segmento da Educação de Jovens e Adultos no

noturno. O Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) relata que a comunidade apresentava

uma renda familiar médio-baixa, e a maioria dos pais cursara o ensino fundamental série

inicial. A formação das famílias era convencional e não convencional: existiam famílias em

que o sustento da casa dependia exclusivamente do trabalho da mulher e/ou dos filhos

menores; alunos que moravam com avós; pais separados que mantinham relacionamentos

diversos; portanto, as famílias que representavam a escola tinham organizações variadas.

Os dados coletados no Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) mostram que a

renda familiar era composta pelo trabalho de mais de um membro da casa. Na verdade, essa

realidade dificultava o acesso à vida escolar dos filhos por parte da família, pois nenhum

membro da família podia assumir o compromisso de acompanhar suas atividades escolares.

Grande parte dos alunos morava distante e necessitava de transporte para chegar à escola.

Devido a ser maior a demanda do que a oferta e à estratégia de matrícula exigida pela

Secretaria de Educação de Estado do Distrito Federal, as turmas eram formadas com um

número excessivo de alunos, tornando o espaço físico inadequado, o que dificultava o

atendimento individualizado do professor ao aluno. A realização das atividades que exigiam

movimentação da turma ficava extremamente comprometida. Nesse quadro, alguns fatores

influenciaram diretamente a dinâmica escolar: a falta de acompanhamento dos pais, a

superlotação das salas, a indisciplina, a falta de material pedagógico e desconhecimento das

regras que fazem parte do bom andamento da escola, entre outros. Essas influências

interferiram na aprendizagem dos alunos, gerando um considerável quadro de repetência

(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2004-2005, p. 4).

3.2.2 A turma

Page 65: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

64

Para registro dos dados, usamos o diário de classe da turma; cópias dos relatórios

de desempenho dos alunos, visto que os originais já tinham sido entregue aos pais em

reuniões, e o caderno de planejamento. Esses documentos foram requisitados à escola com

antecedência de quinze dias, pois o elevado fluxo de atendimento diário da secretaria

inviabilizou o recebimento imediato. Ter acesso aos documentos nos possibilitou registrar o

perfil da turma, sobretudo as particularidades das práticas de linguagem de que participam.

De acordo com o Diário de Classe no início do ano letivo de 2005, a turma era

composta de quarenta e dois alunos. As transferências foram concedidas por diversos

motivos, entre os quais: mudança de cidade, para escolas mais próximas de suas residências e

até mudança para outros Estados da Federação. Transferências foram feitas no mês de julho,

gerando uma distorção nos resultados, pois saíram alunos que já estavam adiantados no

processo de escrita e, em contrapartida, chegaram alunos iniciantes no processo. Mesmo com

as entradas e saídas, restavam trinta e uma crianças, donde se conclui que ocorreram onze

transferências. Das trinta e uma crianças matriculadas na turma, a maioria já frequentara a

pré-escola, o que significa que elas já haviam tido contato com a linguagem escrita. Dessa

maneira, terminamos o ano letivo com trinta e um alunos com idade entre oito e dez anos. Do

conjunto, vinte e nove haviam frequentado a Educação Infantil em escola pública; um aluno

era procedente do lar e um aluno era repetente da série. A maioria era do sexo feminino.

Conforme o diagnóstico inicial da turma registrado no Diário de Classe, de modo

geral, no início do ano alguns alunos demonstravam dificuldade em respeitar regras

estabelecidas pela escola e pela turma. Eles eram inquietos e conversavam demais. Alguns

alunos apresentavam comportamento disperso, baixa concentração, falta de interesse e muita

dificuldade para realizar as tarefas. Algumas crianças apresentavam traços de violência e

intolerância com os colegas da sala e da escola. Na verdade, eles precisavam desenvolver as

habilidades de saber ouvir, falar, participar, colaborar e interagir uns com os outros. A maioria

dos alunos gostava de programas infantis. Mas, ao contrário disso, de acordo com os

depoimentos, assistiam com frequência a programas voltados para o público adulto. O Diário

de Classe registra ainda que as crianças apresentavam disposição para atividades musicais,

danças, teatros, jogos e brincadeiras livres e dirigidas. Em relação à matemática, eles

apresentavam dificuldades nos conceitos de seriação, inclusão, classificação, sequência

lógica, interpretação e resolução de situação problema simples (oral). Grande parte da turma

realizava a contagem até 9, mas não era capaz de estabelecer a correspondência biunívoca,

isto é, não relacionava de um para um a correspondência entre os elementos, em ambas as

Page 66: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

65

direções (LEMLE, 2003, p. 17). Em relação ao alfabeto, foi registrado que boa parte das

crianças era capaz de “recitá-lo” oralmente em sequência; mas, quando solicitadas que

apontassem letras de maneira alternada e aleatória, elas não conseguiam. E também não

reconheciam uma letra prontamente, mas eram capazes de utilizar a memória até encontrar a

letra pedida.

3.2.3 A sala de aula

A aplicação das atividades propostas para o ano letivo de 2005, demandou

algumas medidas: reorganizar a sala de aula, rever o planejamento e a execução das

atividades; analisar e selecionar o material pedagógico, entre outras.

De acordo com as anotações do caderno de planejamento, para atender às

especificidades das atividades aplicadas, o ambiente de sala de aula era organizado de

diversas maneiras, servindo essa reorganização também para dinamizar as aulas. As carteiras

da sala ora eram organizadas em dupla, ora em trio, ora em grupos maiores, ora em grupos

menores; e, em determinados momentos, os alunos também foram agrupados de acordo com

suas dificuldades individuais e coletivas. Foi registrado no caderno, o costume de no início de

ano letivo, a sala de aula ser decorada com cartazes, alfabetos com diversos tipos e tamanhos

de letras, painéis, desenhos. Toda essa preparação era entendida como mais uma forma de

estimular o aluno, pois se acreditava que ele deveria ser exposto ao maior número possível de

estímulos visuais externos. Assim, logo no primeiro dia de aula e com esse excesso de

estímulo, a previsão era de se obter um aprendizado mais rápido e eficiente.

No entanto, no ano da realização da pesquisa não aconteceu dessa forma: a ideia

era construir todo esse aparato lúdico com as próprias crianças, e por isso o que elas

encontraram foi apenas um cartaz de boas-vindas. Inicialmente, houve um estranhamento

referente à quantidade de cartazes, mas independentemente de sua efetiva realização, a

finalidade era provocar discussões sobre a escrita no momento da preparação dos cartazes.

Nessa ocasião, os alunos também ajudaram a construir o alfabeto. Durante todo o ano letivo

eles participaram da organização e da decoração da sala de aula.

Page 67: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

66

Conforme o caderno de planejamento, a biblioteca da sala de aula consistia em

uma caixa, chamada de Caixa Mágica, com diferentes portadores de gêneros de texto:

folhetos, jornais, encartes de supermercado, catálogos de viagem, gibis, revistas, livros etc.

Ali os estudantes poderiam encontrar vários gêneros: receitas, poesias, história em

quadrinhos, quadrinhas, piadas, fábulas, lendas, conto de fada etc. Esses materiais ficavam à

disposição das crianças e foram responsáveis por interações extremamente valiosas. Alguns

exemplares foram doados pelos pais, mas a grande maioria pertencia ao meu acervo didático.

Foram organizados com ajuda e cuidado das crianças, chegando ao final do ano com poucos

danos. Também incentivamos as crianças a frequentarem a biblioteca da escola. Embora com

poucos títulos para essa faixa etária, entendemos que esse espaço de leitura deveria ser

aproveitado pela criança.

Ainda de acordo com o registro, a sala não era grande, o mobiliário era velho,

com carteiras e cadeiras de diversos tamanhos; as janelas precisavam de reparos, e as paredes

eram rabiscadas e descascadas, causando uma impressão desagradável. Grande parte de tal

desajuste se atribui ao grande movimento no local: no período vespertino a escola atendia

alunos maiores e, no noturno, adultos.

3.2.4 Organização dos dados

Como apontado anteriormente, os dados foram recolhidos e organizados em três

momentos distintos, obtendo-se um total de vinte e oito produções escritas em cada amostra.

Para a escrita da produção textual, procuramos propiciar um ambiente com o

menor estímulo visual possível: cartazes, faixas, letras e desenhos foram retirados com o

intuito de coletar o texto da criança sem interferência de estímulos externos, para que

pudéssemos, de fato, ter uma amostra real do seu aprendizado. Tentou-se também controlar o

barulho externo, com o intuito de proporcionar à criança um ambiente mais propício à

concentração; mas a tentativa resultou infrutífera, pois a condição da escola impossibilitou o

acesso a uma situação adequada para a produção textual escrita. Infelizmente, não foi possível

calcular até que ponto essas interferências externas comprometeram o desempenho da criança.

Os textos coletados no início do mês de março serviram para diagnosticar como os

alunos chegaram à 1ª série. Assim, com base nas evidências existentes preparamos as crianças

para o início do processo de apropriação da linguagem escrita. O recolhimento desses

Page 68: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

67

exemplares de texto se deu com vistas à necessidade de monitorar e encaminhar

metodologicamente o desempenho dos alunos. Portanto, a proposta da atividade se constituía

em coletar uma amostra de produção textual de escrita espontânea, ou seja, naquele momento

não era importante fazer intervenções nem mediações na escrita das crianças, interpelando-as

com perguntas e nem questionando sobre o que foi escrito. Na verdade, a intenção era

diagnosticarmos o seu nível de desenvolvimento real (VYGOTSKY, 1999); saber como se

sairiam na primeira produção de texto e se as crianças eram capazes de memorizar e recontar

a lenda.

Para a coleta desta primeira amostra, inicialmente contamos a lenda Potyra - As

lágrimas eternas, de Walde-Mar Andrade e Silva (1999), e realizamos diversas atividades,

tais como: conversas informais sobre as ações das personagens, ilustração, dramatização e

reconto oral coletivo. E, após a troca de ideias entre as crianças, convidamo-las e as

incentivamos a realizarem a primeira produção individual de texto escrito.

A primeira amostra serviu para diagnosticar o que as crianças já dominavam. A

partir dali, concentramos a nossa atenção na aplicação de atividades selecionadas, conduzindo

as crianças a desenvolverem a capacidade de compreender as características do gênero lenda e

o sistema alfabético. O objetivo, ao recolher esse conjunto de exemplares de textos originais

produzidos pelas crianças, era confirmar e examinar a eficiência da realização dessas ações

para a apropriação da linguagem escrita.

No final do mês de junho coletamos a produção textual espontânea dos alunos

logo após a aplicação dessas atividades. Tais amostras serviram para acompanhar e observar o

desempenho das crianças na realização das tarefas, cujos resultados foram analisados com a

finalidade de avaliarmos se havia necessidade de modificação, de melhoria ou de recuperação

das atividades para o semestre seguinte.

No final do mês de novembro de 2005 concretizou-se a terceira coleta de

produção textual espontânea. Privilegiamos as interações verbais (VYGOTSKY, 1999) e as

contribuições comunicativas no momento das discussões e chamamos a atenção para a

estrutura da narrativa do gênero lenda: a situação inicial, o conflito, as ações, a resolução do

problema e a situação final (BRONCKART, 2003). As produções foram recolhidas após a

conclusão do texto. Em nenhum momento houve correção nem intervenção no processo de

escrita do aluno. Ao final das produções, fizemos anotações sobre o desempenho dos alunos e

sobre a aplicação das oficinas. Essas amostras nos forneceram dados importantes acerca da

necessidade de capacitar o aluno para diferenciar um gênero de outro e também serviram para

analisarmos o desenvolvimento do processo de apropriação da linguagem escrita. Convém

Page 69: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

68

ressaltar que, o objetivo de recolher tais amostras foi examinar como transcorreu o processo

de apropriação da língua escrita por meio do reconto de lendas produzidas com base no

conceito de sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).

3.2.5 Forma de análise dos dados

Os dados foram analisados sob dois enfoques: o uso social da escrita e o sistema

alfabético. No uso social da escrita, primeiramente a ênfase recaiu sobre o encaminhamento do

processo metodológico para desenvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o

processo de aplicação das atividades baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,

NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Quanto ao

sistema alfabético, explicamos as atividades aplicadas e analisamos através dos dados, o

percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética.

Em relação ao gênero trabalhado, atentamos para a preocupação de preservar o

título original ou criar outro título. Também verificamos o contexto de ação dos personagens e

as fases da sequência da narrativa. Outros aspectos detalhados foram: as superstições e

crendices; a preservação das sequências dos fatos peculiares da lenda ou criação de outras

sequências diferentes das oferecidas pelo autor; a capacidade para conservar as ações dos

personagens ou criar novas ações; a relação imagem e texto; quanto ao tema das lendas,

observamos se o aluno respeitou a sequência lógica das fases da narrativa e se demonstrou

clareza ao expor suas ideias ao produzir o texto.

Em relação ao código, analisamos como os alunos se apropriaram do sistema

alfabético, mostrando, através dos dados, o seu percurso no processo de apropriação da escrita.

Em relação à estrutura linguística, examinamos a escritura convencional de palavras e frases e a

separação silábica quando necessário. Não nos esquecemos de observar também o uso

adequado de letras maiúsculas e minúsculas, emprego do vocabulário e os mecanismos de

coesão e coerência.

Passamos à análise de dados.

Page 70: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

69

4 ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, apresentadas as considerações sobre os fundamentos teóricos e

metodológicos que orientaram nosso estudo, a finalidade é descrever o processo de

apropriação da escrita apoiando-nos no gênero lenda como instrumento da ação didático-

pedagógica. Especificamente, este estudo apresenta um recorte do trabalho realizado com o

gênero lenda numa classe de alfabetização. Iniciamos descrevendo as atividades mediadas

pela linguagem escrita no contexto da sala de aula e prosseguimos analisando a produção dos

Page 71: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

70

alunos. Colocamos à disposição do leitor a reprodução e a transcrição da produção textual,

para facilitar a visualização e o acompanhamento dos dados. Na transcrição dos textos não

houve correção de nenhuma espécie, respeitando-se a escrita da criança. Para registrar as

atividades, foram usados: máquina fotográfica, caderno de planejamento e o diário de classe.

4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM

CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA

Para Schneuwly (2004, p. 24), o instrumento torna-se o lugar privilegiado da

transformação dos comportamentos, explorando as suas possibilidades para enriquecê-los,

transformá-los, mantendo-os ligadas à sua utilização. Dessa forma, na prática em sala de aula

as atividades estruturais são importantes à medida que a sua aplicação faça sentido para

criança, e não a cópia pela cópia e a repetição de famílias silábicas sem nenhum significado.

Por outro lado, não podemos deixar de considerar também, que relações sociais são

experimentadas em sala de aula e o papel que o aluno exerce enquanto sujeito constituído

socialmente é construído dialogicamente na perspectiva de trabalhos com textos; isto é,

defendemos aqui que tomar o gênero como instrumento da ação didática pedagógica serve

para compor estratégias que levem a criança a vivenciar situações adaptadas à sua prática

social.

Neste capítulo tomamos duas direções que, a nosso ver, se complementam entre

si. A primeira diz respeito à apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em

contextos de uso social da língua com base em sequências didáticas; acolhemos a

aprendizagem da lenda; aprendizagem da estrutura narrativa da lenda, e por último a

aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda. Na segunda, admitimos a

importância do código no processo de alfabetização. Abordamos a apropriação do sistema

alfabético: o gênero lenda como instrumento; a representação de que a fala pode ser escrita; a

construção da noção de palavra no texto escrito e finalizamos a seção com o aprendizado das

relações entre fonemas e grafemas.

Page 72: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

71

4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos de uso social da

língua com base em sequências didáticas

O objetivo desta seção é explanar a aplicação das atividades usando um trabalho

com o gênero lenda. Schneuwly e Dolz (2004) defendem o gênero como (mega) instrumento

de ensino-aprendizagem e sua elaboração didática por meio de sequências didáticas

(SCHNEUWLY, DOLZ , NOVERRAZ, 2004) organizadas de forma sistemática e aplicadas

gradativamente. Portanto, os gêneros como (mega) instrumentos têm a função de mediar a

atividade humana. Dessa maneira, as atividades foram aplicadas para levar a criança a tornar-

se usuário competente da sua língua materna em diversas situações comunicativas: agindo,

buscando soluções para os problemas, intermediando situações, modificando as

representações que fazem do mundo, expressando ideias e pensamentos em diferentes

contextos sociais.

As atividades envolvendo o gênero lenda foram planejadas seguindo-se um

conjunto de recomendações com a finalidade de regular a seleção do que deve ser trabalhado

com a criança, como se discrimina a seguir.

Inicialmente verificamos a disponibilidade de títulos, relacionando-os com as

fases de interesse propostas por Coelho (2000). Fixamo-nos nas duas primeiras, que abrangem

as classes de alfabetização: a fase do leitor iniciante (6/7 anos) e a do leitor em processo (7/8

anos). Depois consideramos que o gênero lenda é o preferido da faixa etária do leitor iniciante

e do leitor em processo, por se tratar de uma história de cunho narrativo, que teve seu início

pela oralidade. E mais: as características encontradas nesse gênero ajudam a criança a

produzir linguagem em condições diferentes daquelas praticadas habitualmente no convívio

familiar.

O gênero em questão permite o uso de estratégias que podem facilitar as

intervenções metodológicas, possibilitando estudos relacionados a outros temas, como: a

cultura indígena, a diversidade cultural, o preconceito cultural, o homem e a natureza, os

valores, as regras, as normas e as leis de uma comunidade. Além disso, apresenta os

elementos essenciais que compõem o processo de escrita, pois os textos podem ser

construídos de maneira diferente dos modelos apresentados pelas cartilhas, uma vez que as

crianças que têm a cartilha como único modelo de escrita construirão uma concepção de

Page 73: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

72

“texto escrito” amarrada a esse modelo único (MASSINI-CAGLIARI, 2005). Da perspectiva

do gênero, é possível reunir os elementos para compor a sua inter-relação com o social.

Ao classificar as lendas em cosmogônicas, heróicas, etiológicas, de encantamento,

ornitológicas e mitológicas, Oliveira (1951, 1965) pretendia submeter as lendas a um critério

científico, além de proporcionar aos leitores subsídios apoiados em estudiosos do folclore

pátrio. Para o autor, existem as lendas que explicam a origem das coisas e fenômenos do

universo (nascimento da noite, do dia, criação dos rios etc.); as que expressam os sentimentos

que fazem parte do humano (amor, ódio, vingança, medo); as que enaltecem os heróis etc.

Enfim, de certa forma, entrar em contato com esse gênero pode ajudar a criança a interpretar a

realidade a sua volta de maneira lúdica e prazerosa, expressando um pensamento, uma

conduta social ou mesmo representando uma situação simbolicamente e, sobretudo,

compreendendo os valores, as normas e as leis de uma cultura diferente da sua.

Ainda no intuito de justificar a escolha do gênero, consideramos que a lenda, além

de ser um gênero comunicacional (BRONCKART, 2003) que preserva e desperta a

curiosidade das crianças, aguçando sua imaginação. E, por fim, o trabalho com as lendas

permite inúmeras pesquisas e descobertas nas diversas áreas, como linguísticas, geográficas,

filosóficas, sociológicas, antropológicas etc.

Dezesseis lendas serviram de fundamento didático:

1. Potyra – As lágrimas eternas

2. Yara a rainha das águas

3. Igaranhã – A canoa encantada

4. Thainá Khan

5. João-de-barro

6. Lenda do café

7. O Sol e a Lua

8. A lenda da fogueira

9. Irapuru, o canto que encanta

10. Tucanã: o surgimento da noite

11. Lenda do Guaraná

12. Mumuru: Vitória- Régia

13. O cervo Berá – O troféu do amor

14. Mandioca – O pão indígena

15. Guaraná – A essência dos frutos

16. Negrinho do pastoreio

Page 74: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

73

Explanadas as recomendações, passamos a descrever os passos para desenvolver o

reconto coletivo, atividade que foi fundamental para o processo de escrita. Para aumentar as

possibilidades de aprendizagem, de recontar oralmente e escrever as lendas, foi programado

um conjunto de atividades obedecendo a um roteiro. Algumas atividades foram realizadas em

um período de tempo prolongado, outras tiveram curta duração, dependendo do interesse das

crianças. O conjunto de atividades foi baseado na sequência didática proposta por Schneuwy,

Dolz e Noverraz (2004). A seguir, resumimos o roteiro de realização das atividades:

a) Primeiro passo: a escolha. A lenda ora era escolhida por nós, ora era escolhida

pela turma, e normalmente era submetida a votação. Quando a escolha partia dos alunos,

colocávamos uma quantidade de títulos à disposição. Naquele momento, era interessante

observar o critério de escolha deles. Uns escolhiam pelas personagens, outros pelas

ilustrações, outros ainda pela capa do livro, e havia aqueles que se mostravam curiosos em

relação ao tema. Com o avançar das aulas, eles ampliaram o leque de perguntas e queriam

saber quem era o autor, e nitidamente aos poucos se consolidou a preferência pelo livro

Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros, do pesquisador Walde-Mar Andrade e Silva.

Atribuímos essa preferência a dois motivos: primeiramente, os textos são bem escritos e o

estilo do autor prima pelo zelo e cuidado com o leitor. Em segundo lugar, as ilustrações, que

são do próprio autor, são delicadas e de bom gosto, elevando a qualidade da publicação.

b) Segundo passo: leitura. A maior parte da leitura foi feita por nós e por alguns

convidados, como, por exemplo: um aluno de segunda série, professores e eventualmente uma

contadora de história. O primeiro contato com a lenda geralmente já desencadeava as

atividades que seriam desenvolvidas. Segundo Coelho (2003), o aparecimento do termo lenda

já indica uma característica do gênero, preparando o leitor/ouvinte para o mundo ficcional, o

que exigia preparações específicas, tais como: leitura prévia, treino de voz (entonação), leitura

fiel do texto escrito etc.

c) Terceiro passo: conversa informal. Nesse momento, as crianças

compartilhavam suas impressões sobre a lenda e, com a nossa mediação, diversos assuntos

eram tratados focalizando o conteúdo do texto. Por exemplo: os valores sociais, morais e

afetivos, a integração do homem à natureza, a diversidade cultural, as normas, as condutas e

as leis, entre muitos outros. O livro do qual a antologia foi retirada foi apresentado às

crianças, destacando-se: autor, personagens, título, ilustrações. As contribuições das crianças

eram sempre bem recebidas. Esse momento de interação era bastante aproveitado, com muitas

reflexões sobre o comportamento humano colocadas em pauta. As crianças apreciavam as

Page 75: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

74

discussões e opinavam sobre as atitudes das personagens, permitindo que os mais novos

adquirissem experiência com os mais velhos (VYGOTSKY, 1999).

d) Quarto passo: reconto oral. Era realizado de várias maneiras e se constituía em

um processo muito rico devido à participação das crianças. Nesse momento, na maioria das

vezes o coletivo prevaleceu sobre o individual. Numa opção de atividade realizada, as

crianças sentavam no chão, em fileira, e cada uma completava o dizer da anterior. Outra

opção com resultados positivos era dividir a turma em grupos variados e cada grupo

contribuía para a montagem completa da lenda. Outra opção, muito apreciada, foi trabalhar

em dupla; um contava a lenda para o outro. E também a opção de usar a “rodinha” para

compor a lenda; depois, a partir dos fragmentos e com a colaboração de todos, construía-se

um todo. Nessa atividade, desenvolvemos a ideia de que ao juntar os fragmentos podemos

constituir um todo e, ao contrário, também podemos fragmentar um todo em vários pedaços.

e) Quinto passo: dramatização. Atividade muito prazerosa para as crianças,

porque lhes exercitava a imaginação e criava situações para representar as personagens, os

lugares, os objetos, a natureza etc. E, com intervenções sistemáticas, podia-se ativar a

compreensão da lenda. A turma era dividida de diferentes formas: grupos grandes, duplas,

trios, ou cada um por si, em trabalhos individuais. Todo esse fazer dependia da disposição do

planejamento feito e do objetivo traçado para aquela atividade. O trabalho coletivo favorecia a

interação social das crianças, que se influenciavam mutuamente em busca da organização do

grupo (VYGOTSKY, 1999).

f) Sexto passo: lista de palavras. As listas foram construídas para esmiuçar a

lenda, como, por exemplo: lista de sentimentos, de personagens, de objetos etc. Elas eram

dirigidas em forma de jogos: lengalengas6, adivinhas, fichas, rebus

7 etc. As listas de palavras

podiam ser produzidas em grupo ou individualmente; em forma de desenho, oralmente ou por

escrito.

g) Sétimo passo: atividades. Foram aplicadas do mês de março até o final do mês

de novembro, época da coleta da terceira amostra de textos, e serviram para operacionalizar o

encaminhamento do processo de apropriação da linguagem escrita. Como descrito

anteriormente, no quarto passo era produzido o reconto escrito por meio de atividades orais;

essas atividades foram pensadas para desenvolver a capacidade de entendimento da criança. A

6 Sequência de frases curtas que normalmente rimam ou repetem determinadas palavras ou expressões. As

lengalengas estão associadas a brincadeiras e jogos folclóricos. 7 Nota de rodapé do livro História concisa da escrita. Chama-se ”rebus” a tentativa de representação dos sons

da língua, sobretudo sílabas, por meio de figuras cujos nomes tenham esses sons e cuja combinação possa

representar uma palavra. (HIGOUNET, 2003).

Page 76: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

75

entrada do reconto escrito foi fruto da parceria professor-aluno. A princípio, coube-nos a

tarefa de escriba, mas depois os alunos assumiram a função. O reconto escrito era realizado

após aplicação da série de atividades relatadas no quarto passo. Na etapa da aplicação das

atividades iniciaram-se efetivamente as primeiras experiências relativas ao processo de escrita

na turma. Pelos conhecimentos que exigiam, as atividades deviam ser muito bem planejadas e

executadas, não podendo ser produzidas levianamente, de qualquer maneira. Eram atividades

importantes, porque foram elas que sustentaram todo o processo de escrita. Portanto, podemos

considerar essas atividades do reconto da lenda como base para todo o encaminhamento

metodológico. E a partir da produção do reconto, outras atividades foram aplicadas. Convém

reafirmar que é necessário um cuidado especial na aplicação das atividades. Elas foram

aplicadas após a produção do reconto coletivo. Na verdade, a intenção era apresentar esse

gênero à criança e valorizar seu primeiro contato com a produção escrita.

Dentre as atividades realizadas, destacamos as desenvolvidas para compor os

personagens. Uma delas foi destacar e desenhar o personagem principal, relembrando suas

características. Nas conversas com as crianças, foram enfatizadas as ações dos personagens.

Outra atividade foi a pesquisa na biblioteca da escola e também na internet, sobre os

personagens; após conclusão, as crianças compartilharam o resultado com os colegas. Uma

opção bastante apreciada era a troca de personagens entre uma história e outra. A

dramatização foi uma atividade recorrente, porque permite explorar diversos aspectos dos

personagens, como sentimentos, ações, comportamentos, atitudes etc. Outra atividade era a

leitura de um trecho da lenda, e a criança era levada a fazer um levantamento de hipóteses

sobre o que aconteceria a seguir. Outra atividade era atribuir uma qualidade aos personagens

e escrevê-las. Outra ainda foi a elaboração de uma história em quadrinhos usando os

personagens da lenda. Também utilizamos a brincadeira das cores: cada personagem foi

representado por uma cor e posteriormente comparamos entre os grupos as respostas; também

fizemos essa atividade em grupo e as crianças estabeleceram o significado de cada cor; e,

noutro momento, foram socializadas as atribuições dadas aos personagens. Em outra

atividade, foi montado o quadro de semelhanças e diferenças entre os personagens das

diversas lendas estudadas. Também realizamos atividades que nos auxiliaram a diferenciar e

aproximar um gênero do outro. Por se tratar de primeira série, o foco foi dirigido para

exemplificar e estabelecer as diferenças e semelhanças entre o conto de fadas e a lenda. Essas

atividades serviram para promover debates e reflexão sobre a organização do gênero, as

palavras, frases, entre outras possibilidades. Elencamos, aqui, o conjunto de atividades que

Page 77: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

76

permitiram subsidiar as crianças com elementos que contribuíssem para a reflexão da língua

materna a partir do reconto da lenda.

Após o reconto da lenda (descrito no quarto passo), a primeira atividade permitiu

às crianças acesso ao reconto escrito. Levamos o reconto mimeografado para a sala de aula, e

novamente a produção coletiva foi lida por nós. Esse primeiro contato com o texto impresso

proporcionou às crianças ter em mãos um produto “materializado” a partir da sua fala. O fato

de as crianças reconhecerem que podem escrever sua própria fala enfatiza as diferenças e

semelhanças entre a escrita e a fala. Esse exercício de diferenciar e aproximar fala e escrita

pode facilitar a aprendizagem, uma vez que a linguagem verbal é a base para desenvolver a

linguagem escrita (VYGOTSKY, 1999).

Outra atividade realizada era comparar o texto escrito no quadro-de-giz com o

texto mimeografado, explorando cada parágrafo do texto e ressaltando a palavra que o

começa e a palavra que o finaliza. A realização dessa atividade favorece o exame do texto,

parte a parte, provocando a verificação das palavras que formaram cada parágrafo. Agindo

dessa forma, a criança passa a perceber que o texto escrito no quadro de giz e o texto

mimeografado, embora estejam em suporte diferente, permanece o mesmo, percebendo que a

escrita das palavras se conserva independentemente do suporte. Além disso, diferencia a

forma de escrita do quadro de giz e a escrita mimeografada, isto é, uma mesma palavra pode

ser escrita com letra cursiva, letra de fôrma, letra minúscula etc. A despeito das diferentes

formas gráficas das letras em nosso alfabeto, cada letra permanece a mesma e exerce igual

função no sistema escrito, ou seja, é sempre empregada obedecendo às normas ortográficas

das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 29. FASCÍCULO 1).

Uma nova atividade foi assinalar as palavras-chave do texto. Para isso, as crianças

discutiam para decidir, em conjunto, quais palavras seriam assinaladas. Em um primeiro

momento, essas palavras eram sublinhadas com a nossa ajuda, no quadro de giz, e as crianças

acompanhando passo a passo. Esse procedimento reforça a leitura das palavras e permite

explorar as diferenças entre a segmentação da fala e a da escrita, conhecimentos que serão

aplicados na ortografia das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO

1). É interessante observar que a realização dessa atividade demandava um acordo entre elas

para assinalar as palavras-chave; esse acordo fazia com que muitas palavras fossem citadas e

examinadas, e, sem que percebessem, indiretamente, essas palavras eram trabalhadas. Num

segundo momento, essas palavras passaram a ser assinaladas por elas. Isso foi um avanço,

pois ao se dirigir para o quadro de giz, muitas vezes a criança era orientada por outra criança.

Page 78: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

77

Essa troca de saberes promove uma interação (VYGOTSKY, 1999) que se consolida na

aprendizagem dos conteúdos.

Mais uma atividade foi perceber e encontrar as palavras que apareciam repetidas

no texto e pintá-las com lápis de cor, utilizando a mesma cor para as palavras iguais. Com

essa atividade pretendeu-se avançar o processo de reconhecimento de palavras nas dimensões:

fonológica e semântica (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), e também

fazer com que a criança percebesse que a mesma palavra pode aparecer várias vezes no

mesmo texto, e que algumas, embora escritas da mesma forma, são completamente diferentes

no significado. A ideia de usar a mesma cor para palavras iguais parte do princípio da

conservação da escrita, como já mencionado antes.

Em outra atividade, desmembramos o texto. A criança devia fatiá-lo, respeitando

a ordem dos parágrafos, com o objetivo de discriminá-los. A criança cortava os parágrafos e

depois remontava o texto na carteira para compará-lo com o texto escrito do quadro de giz.

Com essa atividade pretendíamos revelar à criança que um todo dividido em partes pode ser

remontado novamente sem perder o sentido, permitindo-lhes correlacionar a leitura e a escrita

das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Observamos que

muitas crianças tiveram dificuldade em assimilar que, apesar de o texto estar dividido em

várias partes na carteira, ainda continuava a ser o mesmo texto que se encontrava exposto no

quadro de giz. Portanto, essa atividade pode causar aflição na criança, caso não seja bem

conduzida, levando-a a desistir. O planejamento foi feito com bastante antecedência com o

intuito de prever eventuais situações que pudessem dificultar a sua aplicação.

Na atividade seguinte, após lermos um parágrafo de cada vez, a criança deveria

tentar encaixar os parágrafos seguindo a ordem do texto, ou seja, obedecer à sucessão natural

dos fatos do reconto. Essa atividade foi uma continuação da anterior, daí a semelhança de

função: destacar os parágrafos para estabelecer a ligação entre eles seguindo a ordem do

reconto da lenda. É uma atividade cuja aplicação requer disponibilidade de tempo.

Observamos com atenção que muitas crianças ficaram apreensivas devido à movimentação

exigida pela atividade; por isso, no início do processo permitimos que elas fizessem o encaixe

dos parágrafos em grupo (duplas, trios), para só depois de mais descontraídas e seguras o

fizessem sozinhas.

Na atividade seguinte – colagem do texto numa folha de papel – a criança podia

perceber a separação do todo em partes e depois a junção desse todo novamente, isto é, pôde

perceber o texto fatiado e o texto completo. Após completar a colagem, as crianças puderam

observar o texto integralmente e retiraram as palavras-chave escolhidas anteriormente.

Page 79: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

78

Dando prosseguimento às atividades para desenvolver a dimensão composicional

do plano de texto, realizamos uma atividade de ilustração das palavras que foram escolhidas

por elas e lidas por nós. A quantidade de palavras foi estabelecida pelas crianças (elas

determinaram quais palavras seriam retiradas do texto). Nessa atividade, as crianças

receberam o texto e as palavras-chave mimeografadas, e com as palavras escolhidas eram

misturadas palavras novas. As crianças deveriam identificar o lugar e a palavra certa para

cada espaço e colá-las para completar o sentido do texto, nesta ocasião trabalhamos a técnica

de cloze8. Escolhidas as palavras, os alunos exploraram o texto e fizeram o reconhecimento

das letras e das palavras ou até mesmo das frases. E, finalmente, criamos novas maneiras de

brincar com as palavras retiradas do texto: fizemos acrósticos, quadrinhas, poesias, bilhetes,

palavras cruzadas etc.

Desenvolvemos também atividades de caracterização da lenda, como:

apresentação das personagens; presença da magia e do encantamento; características de tempo

e da ambientação; nomes que representam os padrões de referência dos personagens;

determinação dos momentos da ação complicadora; importância dos títulos. O objetivo dessas

atividades foi entender o processo de apropriação da língua escrita em contexto de sentido por

meio da lenda, com a presença dos elementos mágicos (OLIVEIRA, 1951, 1965) e das fases

da narrativa (BRONCKART, 2003).

Também planejamos atividades que serviram para apresentar os autores, os

personagens, os títulos, a qualidade dos textos, a adequação à idade, o interesse, a influência

da ilustração sobre o texto escrito etc. Uma alternativa foi levar livros para que as crianças

tomassem contato com autores diferentes e selecionassem os títulos de interesse.

Invariavelmente, essas escolhas terminavam em sorteio ou votação. Outra opção de atividade

era a escolha das personagens, concentrada nas especificidades da lenda, isto é, eram dirigidas

à ilustração das personagens, às caricaturas, à representação, à colagem e à montagem das

personagens, entre outras.

As fases da narrativa (situação inicial, complicação, ações, resolução, situação

final) aparecem no gênero lenda (COELHO, 2003). A intenção era pôr em prática a contação

de histórias, o que ocorreu de três maneiras: ora as lendas foram contadas por nós, ora por

8 Essa técnica consiste em retirar de palavras do texto, substituindo-a por um espaço pontilhado. O objetivo é

reconstituir o texto preenchendo a lacuna de acordo com o contexto. Pode ser aplicada com maior ou menor

grau de dificuldade. SANTOS, Acácia A. Angeli dos; PRIMI, Ricardo; TAXA, Fernanda de O. S;

VENDRAMINI, Claudette M. M. O Teste de Cloze na Avaliação da Compreensão em Leitura.

Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(3), p. 549-560.

Page 80: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

79

convidados ou ainda por alunos de outras séries. Nesse momento, as crianças puderam

participar escolhendo as lendas, trazendo livros e revistas, contando as lendas que ouviram

dos pais e também puderam interagir com os convidados. Também escolheram uma lenda

para o reconto.

Em uma atividade recontamos as lendas “Igaranhã – a canoa encantada” e

“Cervo Berá – o troféu do amor”, ambas do mesmo pesquisador, Walde-Mar Andrade e Silva.

Após a leitura oral, destacamos as fases da narrativa para escrever uma lenda (situação inicial,

complicação, ações, resolução, situação final). Para cada lenda que foi estudada procurou-se

estabelecer os traços específicos do contexto linguístico que envolve esse gênero. Entendemos

que a elaboração coletiva de qualquer produção de texto em classe de alfabetização é o

momento mais importante da aula, pois os fragmentos da história vão se juntando e, passo a

passo, as crianças acompanham a organização do texto.

O reconto individual serviu para aperfeiçoar o procedimento de escrita.

Finalizado o texto, cada aluno leu o seu para a turma. Cumpre lembrar que os textos não

sofreram correção de nenhuma espécie, pois o objetivo era promover atividades em que as

crianças pudessem escrever o próprio texto a partir do gênero lenda, isto é tencionávamos ter

um diagnóstico real de sua aprendizagem (VYGOTSKY, 1999).

Com isso, finalizamos a descrição das atividades relacionadas ao gênero lenda e

passamos a analisar as produções textuais dos alunos.

4.1.2 Aprendizagem da lenda

O trabalho com os gêneros textuais em sala de aula pressupõe endossar o texto

como objeto de ensino, considerando a manifestação da linguagem em uso. Sem dúvida, o

gênero é o ponto de partida para aulas de língua materna, uma vez que alfabetizar somente por

meio de palavras, letras, sílabas e frases soltas mostra-se insuficiente para servir de base ao

ensino-aprendizagem. Isso ocorre porque, na perspectiva dos PCNs (1997), todo texto se

organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte

das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais determinados pelos

Page 81: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

80

gêneros em forma de textos. Portanto, os gêneros são determinados historicamente e usados

nas práticas de linguagem. Como enfatiza Bronckart (1999, p.48), “Conhecer um gênero de

texto também é conhecer suas condições de uso, sua pertinência, sua eficácia, ou de forma

mais geral, sua adequação em relação às características desse contexto social”.

Concordando com o exposto acima, passamos à análise das produções escritas. No

mês de março, em contato inicial, observamos que a maioria das crianças, de alguma forma,

teve contato com esse gênero, levando-nos a inferir que essa familiaridade pode ter ocorrido

na Educação Infantil, pois pela discussão realizada em sala de aula, algumas características

pertencentes ao gênero não eram totalmente desconhecidas das crianças. Além do mais, esse

gênero é bastante trabalhado em agosto, por ocasião do folclore.

Na perspectiva do gênero, ao final da aplicação das atividades, a análise dos textos

produzidos revelou significativo progresso das crianças, demonstrando capacidade de utilizar

as características próprias do gênero lenda (COELHO, 2003). Iniciamos nossa análise pelo

reconto coletivo, por entender que a passagem desse gênero em sala de aula foi recorrente, e

também porque o reconto coletivo foi o eixo central da nossa prática pedagógica de

apropriação da linguagem escrita.

O reconto coletivo da lenda: Coacyaba, primeiro beija-flor, além de iniciar o

processo de apropriação da linguagem escrita, também serviu de base para orientar as

produções narrativas escritas posteriormente. Com esse procedimento (reconto coletivo)

observamos que uma criança mais experiente pode ajudar outra menos experiente no início do

reconhecimento da escrita, comprovando que a troca de experiências é importante nas

relações interpessoais (VYGOTSKY, 1999). O conhecimento obtido por meio dessas

interações sociais resultou de um esforço coletivo e individual em produzir sentido a partir

das considerações do outro (VYGOTSKY, 1999). Essa negociação entre as crianças, para

optar por uma ou por outra sentença na composição do texto escrito, demonstrou que,

inconscientemente, há uma preocupação em manter a estrutura narrativa do gênero. Nossas

intervenções didático-pedagógicas organizaram de maneira indireta as contribuições dos

alunos de modo a formar uma história completa. Em decorrência das experiências adquiridas

por meio de interações com os mais velhos ou membros mais experientes, passamos a atuar

individualmente, e assim o desenvolvimento ocorreu de forma gradativa (VYGOTSKY,

1999). Abaixo, o reconto.

Page 82: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

81

Coacyaba, o primeiro beija-flor

Os índios acreditam que as almas viram borboletas.

Coacyaba era uma índia, que ficou viúva muito cedo e sentia muitas saudades do marido.

Seu único consolo era sua filha Guanamby.

Muito tempo depois Coacyaba, angustiada, faleceu.

Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada dentro de uma flor perto

do túmulo da sua mãe.

A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo reconheceu o choro de

Guanamby.

Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro veloz. Deus Tupã

atendeu o seu pedido e transformou Coacyaba em beija-flor. Ela pegou Guanamby e levou para o céu.

Figura 4 - Reconto coletivo

Para Góes (1991), a lenda explica os fatos naturais que desconhecemos. No caso

dessa lenda, a personagem Coacyaba foi criada para explicar a origem de um pássaro. No

texto recontado pelas crianças, observamos que esse fato define o enredo e, logo no primeiro

parágrafo, o leitor, mesmo sem familiaridade com a escrita desse gênero, reconhece a situação

que desencadeia a história. À medida que o reconto coletivo era discutido e tomava a forma

de escrita, notou-se a satisfação das crianças quando percebiam que a linguagem falada pode

transformar-se em linguagem escrita. É oportuno lembrar que estabelecer a diferença e a

semelhança entre as duas modalidades significou estabelecer um parâmetro de comparação

entre elas, embora os princípios e os canais de uso desses eventos sejam diferentes, a escrita e

a fala são propriedades de um mesmo sistema linguístico (MARCUSCHI, 2005).

Outro ponto que destacamos nessa produção coletiva (FIGURA 4) é que foi

preservada a mistura dos fatos reais com os fatos imaginários característicos do gênero lenda

(COELHO, 2003). Na frase “A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo

reconheceu o choro de Guanamby,” entendemos que essa combinação serve para criar uma

expectativa devido à verossimilhança, característica recorrente nesse gênero. Para Góes

(1991), as lendas nascem da necessidade do homem de explicar os fatos que desconhece, e

nessa lenda cria-se uma situação para esclarecer a aparição do beija-flor na natureza.

4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda

Page 83: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

82

Ao transcrever as produções percebemos que inicialmente as crianças

desconhecem as fases da narrativa do gênero lenda, prevalecendo apenas a noção de conflito

da situação que envolve as personagens (BRONCKART, 1999). Como pode ser constatado no

reconto da lenda: Potyra, as lágrimas eternas, grande parte das crianças produziu apenas um

segmento do que foi apresentado, com em “Era uma vez índio” (ANEXO 1), “Era uma vez

índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu” (ANEXO 2), “Era uma vez uma índia

chamada Potyra” (ANEXO 3). E também podemos observar que tratando-se de uma primeira

produção, entendemos que, em certa medida, o tema central girou em torno da apresentação

das personagens “índio”, “guerreiro”, “Potyra” como nas produções A, B e C, (ANEXOS 1,

2, 3 respectivamente). E o texto produzido foi suficiente para enlaçar o drama do personagem

principal.

Esses exemplos de textos evidenciam que as crianças enfrentaram dificuldade em

estabelecer a diferença entre a lenda e o conto de fadas, e também que, no início do processo,

o título não faz parte da construção do texto, pois apenas três crianças o escreveram; para o

restante da turma, essa informação foi considerada desnecessária e irrelevante, embora, no

caso específico dessa lenda, o título seja um prenúncio do que vai ser contado e instigue a

capacidade de imaginação do leitor. Ainda sobre essas produções, convém salientar que os

alunos ainda não desenvolveram a capacidade para delinear as ações dos personagens,

concentrando-se em sintetizar as nuances do texto, embora, numa visão ampla, possamos

dizer que, em certa medida, as crianças não abandonaram o enredo, dedicando-se àquilo que

mais lhes chamou atenção; no caso, o personagem principal, que se destaca na história por

seus feitos morais e éticos, mas, ao mesmo tempo, acaba morrendo pelos seus valores.

Bronckart (2003) aponta cinco fases necessárias para o texto narrativo e mais duas

que podem ou não aparecer no texto. Das fases apontadas pelo autor, encontramos a situação

inicial e a complicação com maior número de ocorrências. O fato de reconhecer a relevância

de apenas duas fases nos mostra que no início do processo de escrita a criança tem dificuldade

de organizar e ordenar cronologicamente os acontecimentos dos fatos, e também percebemos

uma economia de palavras ao retratar as ações dos personagens. No reconto coletivo, a

Figura 5 mostra que a primeira tentativa de escrita de texto realizou-se em conformidade com

as fases narrativa (BRONCKART, 2003, p.220) do gênero lenda (COELHO, 2003). Vejamos:

Page 84: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

83

Coacyaba, o primeiro beija-flor

TÍTULO

Os índios acreditam que as almas viram borboletas.

Coacyaba era uma índia, ela ficou viúva muito cedo e sentia muitas

saudades do marido. Seu único consolo era sua filha Guanamby.

SITUAÇÃO

INICIAL

Muito tempo depois Coacyaba, angustiada, faleceu.

Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada

dentro de uma flor perto do túmulo da sua mãe.

A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo

reconheceu o choro de Guanamby.

COMPLICAÇÃO

Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro

veloz.

AÇÃO

Deus Tupã atendeu o seu pedido e transformou Coacyaba em

beija-flor.

RESOLUÇÃO

Ela pegou Guanamby e levou para o céu. SITUAÇÃO FINAL

Figura 5 - Reconto coletivo: fases da narrativa

Do exposto restou comprovado que a produção coletiva é um momento rico de

interação; uma criança pode completar a ideia da outra, e, além disso, a nossa intervenção

conduzindo-os à reflexão sobre a composição do texto contribuiu para direcionar a sua

construção, como vimos na produção acima. Portanto, traçar estratégias em que as crianças

possam aprender a estrutura da narrativa, desde o início do ano letivo, significa levar os

alunos a tomarem conhecimento de que para cada gênero, oral ou escrito, elaboram-se tipos

relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN, 2006, p. 262). Assim, a organização

mental e cognitiva assume uma grande importância para o individuo que domina o sistema de

escrita, bem como outros sistemas simbólicos, pois a apropriação do código não pode ser feita

de maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer avançar, na criança, um

processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas (VYGOTSKY, 1999).

Para compreendermos o desenvolvimento inicial da escrita, utilizamos as

pesquisas de Luria (1998). De acordo com esse autor, no momento em que a criança conhece

letras isoladas e sabe como essas letras registram algum conteúdo, ela finalmente aprende

suas formas externas e também a fazer marcas particulares. Seguindo essa linha de

raciocínio, Gontijo (2008) afirma que, no momento em que as crianças começam a diferenciar

Page 85: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

84

as grafias para escrever, a atividade gráfica passa a ser regulada, observando certos critérios

que, inicialmente, são orientados pela apropriação das características externas da escrita.

Dessa forma, de modo geral, as crianças demonstraram que conhecem algumas

letras isoladas e sabem que esses símbolos registram os conteúdos, mas sua relação com a

escrita é puramente externa, ou seja, elas apresentaram indícios de que compreendem que a

escrita serve para fazer registro, mas não foram capazes de utilizá-la. Evidenciamos, ainda,

que elas permanecem completamente ligadas à experiência inicial, como podemos visualizar

abaixo:

Figura 6. Produção B. Realizada em março.

Page 86: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

85

Na produção acima, realizada no mês de março, na sentença

LAPDPIREPAIOIAIO as últimas letras apresentam uma sequência repetida de vogais e

apontam a presença de marcas (bolinhas) em cima de algumas dessas letras, destacando-as

das demais. Luria (1998, p. 158) nos alerta que a função dessas marcas é ajudar a criança a

lembrar e relembrar uma sentença, e também ajuda a organizar o comportamento da criança.

Essas marcas indicam a presença de algum significado para a criança, embora não determine

qual seja esse significado e nem tenha um conteúdo próprio.

Como foi dito, as crianças encontram-se em fases diferentes de escrita, o que

podemos verificar nas produções D, E, e G (ANEXOS 4, 5, 7) colhidas no mês de junho. Mas,

em relação ao gênero lenda, observa-se nessas produções que houve um avanço em relação à

apropriação das sequências narrativas. Em nosso entender, elas demonstram certo domínio em

relação à compreensão da estrutura do gênero em relação à primeira amostra colhida no mês

de março, embora os autores tenham iniciado o texto impropriamente com o termo “era uma

vez”, comumente usado nos contos de fadas. Observe na transcrição da produção “F” abaixo.

Page 87: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

86

Figura 7. Produção F. Realizada em junho.

A/ FESTA/ DE/ SA/ JÃO/

ERA/UMA /VEZ/

UMA/ FESTA/ DE/ SÃ /JOÃO/

O /ÍNDIO/ ESTAVA/ ISIMA/ DA OMSA/

O /USO/ ACEDEU/A/FUGEIRA/

A/CHEGOU/

Page 88: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

87

A/NOITE/ E/ AI /ESTAVA/

ARRUMADO/ A/ FESTA/

DE/ SA/JOÃO/

O /USO/ESTAVA/

PEGADO/ UMA/

CORDA/ AI/

ELE/ESTAVA/ PERTO/DO/FOGO. Transcrição. Produção F.

Acima, podemos verificar que essa produção é um reconto da lenda intitulada O

menino e a onça - Como os Kaiapós conquistaram o fogo, retirada do livro do Walde-Mar

Andrade e Silva. O texto apresenta certa clareza na exposição de ideias, demonstrando que o

aluno compreende o processo de produção do gênero lenda. Percebe-se uma tentativa de

preservar as ideias do texto original. O interessante é que a criança fez uma adaptação dessa

lenda para narrar uma história de São João. Nota-se que o título também foi alterado para A

festa de São João, donde se infere que a proximidade entre a lenda original e a contada pela

criança está focada no elemento fogueira, que fez a criança relacionar a lenda com festividade

junina. Entretanto, observa-se um controle sobre a escrita dos termos usuais do gênero lenda,

recontando-a sem alterar o enredo, embora não se detenha nos detalhes. E há também

sentenças que comprovam a preocupação com o encadeamento e com o sentido do texto, isto

é, ao desenrolar a situação, intencionalmente mantém a sequência da lenda (COELHO, 2003).

Essa produção demonstra também a perspicácia da criança em adaptar um texto para criar

outro, explorando o seu enredo e preservando suas características.

A aprendizagem da língua escrita percorre um longo caminho. Essa trajetória

exige um acompanhamento constante dos conhecimentos e do desenvolvimento da criança.

Dessa forma, comparando a primeira produção A e a segunda produção E com a terceira

produção U, da mesma criança, embora na segunda produção ainda persista certa

nebulosidade entre a maneira particular de escrita da lenda, no final de novembro o problema

da incorporação da organização do gênero lenda parece ter sido superado, como se pode ver

nas produções ( A, E e U) logo abaixo.

A produção A foi realizada no mês de março. Convém ressaltar que a transcrição

escrita foi feita com base no relato oral da criança. Nesse primeiro momento, vimos que as

frases são curtas; são reguladas pelas ações do personagem principal “índio” e pelas suas

ações “foi pra guerra e morreu”. Isso significa, que o desenvolvimento envolve não só o

domínio de signos arbitrários, mas também a atenção e a memória (VYGOTSKY, 1999). Em

suma, a organização mental e cognitiva tem uma grande importância para o indivíduo que

Page 89: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

88

domina o sistema de escrita, bem como outros sistemas simbólicos, sendo assim a apropriação

do código não pode ser feita de maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer

avançar, na criança, o processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas

(VYGOTSKY, 1999). Além disso, vale ressaltar a importância dos momentos de produção

textual, nestes momentos a escrita se concretiza em sinais gráficos, isto é, a forma como a

criança se apropria do conhecimento da escrita e de outros sistemas simbólicos, estabelece a

sua relação com os demais (VYGOTSKY, 1999), expandindo e ajustando a sua conduta em

relação à tomada de consciência do mundo.

Figura 8. Produção A. Realizada em março.

Era uma vez índio.

Ele foi pra guerra e morreu.

A segunda produção E foi realizada no mês de junho. Trata-se do reconto da lenda

intitulada “O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo”, do pesquisador

Walde-Mar Andrade e Silva. O texto não apresenta uma narrativa com elementos motivadores

do gênero lenda. Não há propriamente componentes extraordinários no texto, ao contrário: a

criança parece encaixar a lenda em seu cotidiano, como observamos na denominação da

personagem “JOSUA AUGUSTO”, diferentemente do nome indígena do texto original, e no

Page 90: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

89

desfecho final “E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/”.

Mas, conforme Coelho (2003), as lendas permitem misturar fatos reais com fatos imaginários.

A sequência narrativa não é linear, e as personagens alternam a aparição: “JOSUA

AUGUSTO”, a “ONSA” e o “RATO” de acordo com a sua importância, no andamento do

texto. Há menção ao lugar em que o fato ocorreu “ANDOU/AFLO/RESTA/ TODA, mas não

desenvolve detalhes quanto ao cenário nem ao tempo da narrativa. Assim, o que podemos

verificar na produção, abaixo, são as adequações que o aluno realizou em seu texto,

explicitando, em nosso ver, a dificuldade em reconhecer os modelos preexistentes desse

gênero.

O /RATO/ NA /FOGEIRA/ NA TARDE/SIGINTE

O /JOSUA /AU GUSTO/ A NÃO /DOUNA

NA/ ONSA/ DO/PAI / DE ELE /ANDOU/AFLO/

RESTA/ TODA/ VIU /MUNITO/ BICHOS/

E/ COM PAROU / UM/ MUNITO/ DI FERENTE

VIU /QUE – ERA- UM – RATO PERTO DA

FOGEIRA/

O/RATO/ COM-UMA CORDA

MANDO/ A /ONSA/CORE/ E/ FOI/DIRETO

NO /PAI / O/ PAI-DE-ELE/ FOI/LAVE

CHE GOU / E/ VIU/O/RATO/FAZENDO

FOGEIRA/ E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO

FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/

MAIS/ PARA/ NÃO/VE/AQUELE/RTO

NÃO/I /PARA/ NUMCA/ MAIS/ VE/A/VE/O RATO

FLORESTA/NUMCA/ MAIS/AVE/ RTO

FINAL 1ª E.

Transcrição. Produção E.

Page 91: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

90

Figura 9. Produção E. Realizada em junho.

A terceira produção U, realizada no mês de novembro, foi marcada pela riqueza de

detalhes na escrita da criança. O texto apresenta uma linguagem clara; as palavras estão

acessíveis e de acordo com o gênero; apresenta frases longas. O texto situa o leitor em relação

Page 92: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

91

ao lugar em que se passa a ação “Em uma tribo”. Utiliza organizadores temporais “No dia

sequite” e “Um dia” para sustentar as ações das personagens, e retrata os sonhos de Mara

“quer se casar”, e seu sofrimento “descobriu que estava grávida”. O final é surpreendente, as

dificuldades enfrentadas por Mara culminam com a doença “Mandi ficou doente” e a morte

“Mandi para morre” de sua filha. A narrativa explica que Mara “sonhou com um jovem que

descia da lua e falava que amava” com a reiteração dos fatos “eo sonho serrepetiu muitas

ves”, “mara se apaixonou por um jovem”, ”Mara descobriu que estava grávida”, criando uma

perspectiva no leitor para uma provável solução do problema. Como pode ser observado na

transcrição da produção U, a seguir.

Mandioca- O pão indígena

Em uma tribo uma índia que quer

se casar.

No dia sequit todomundo deitou e

Mara ficou cotempla a lua.

Um dia mar sonhou com um jovem

que descia da lua e falava que amava e

eo sonho serrepetiu muitas ves.

No dia sequite mara se apaixonou por

um jovem. Mara não sonhou mas o sonho.

Um dia Mara descobriu que estava gravida.

Mandi ficou doente.

No dia descobriu que Mandi estava

doente e Mandi para morre

Um dia sequite o cacique descobriu pra

que servia a mandioca. porque fazer – pão e

farinha.

Page 93: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

92

Figura 10. Produção U. Realizada em novembro.

Page 94: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

93

Para estabelecer os parâmetros de comparação entre um gênero e outro foi preciso

inicialmente buscar suas similaridades, não apenas no aspecto lexical, mas no aspecto

organizacional, e num segundo momento, estabelecer também as diferenças para que

pudéssemos confrontá-los. Dessa maneira, examinando simultaneamente as produções de

texto dos três períodos, verificamos que houve um significativo avanço na composição das

produções, principalmente em relação à composição e ao conteúdo exigido pelo gênero

(BAKHTIN, 2006), à influência direta do gênero na escrita das crianças, e as mediações

foram fundamentais para entender como ocorre a escrita desses exemplares de gênero. Assim,

reafirmamos a necessidade de oferecer aos alunos acesso à diversidade de textos escritos e

orais como fonte para a reflexão da linguagem. Entretanto, não podemos esquecer que aqui

estamos tratando de uma turma de primeira série.

As produções demonstraram o uso das sequências narrativas (BRONCKART,

2003) focando o domínio das particularidades do gênero lenda e contemplaram a análise e a

reflexão, pois tal abordagem representou significativas mudanças relacionadas às escolhas

linguísticas (COELHO, 2003). É o que se pode ver abaixo, nas produções M e P.

Potyra – As lagrimas eternas

a muito tempo esistia um casau que queria

casar mas foi que chegou a guerra mas antes da

guerra eles ficarão um pouco juntos nabira do rio

e quando a guerra comesou e a Potyra esperava

os amigos de itajiba falou que ele tinha

morrido e a Potyra chorou muito e

deus Tupã transformou as lagrimas dela em

diamante a perda do seu amor.

Transcrição. Produção M.

Page 95: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

94

Figura 11. Produção M. Realizada em novembro.

Madioca – O pão indígena

Mara era filha do cassique ela tem sonhos de

paixão ela sonhou com um jovem loiro

de pele branca ela sonhou muitas zezes e se apaixonol

por ele e passou muito tempo e ela descobril

que estava grávida.

Mara Del a luz a uma menina dos

cabelos loiros e pele branca que del o

o nome de Mandi a menina adoesseu e morrel.

Sua mãe interrol ela na oca para que

Page 96: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

95

não separe dela.

O cassique despresava a menina

e aparessel uma planta que del o nome o nome

de mandioca e aparessel no sonho do cassique

e inssinol a fazer a farinha.

Transcrição. Produção P.

Figura 12. Produção P. Realizada em novembro.

Page 97: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

96

Dessa forma, tomando os 28 textos coletados no mês de novembro, identificamos,

na maioria deles, as fases: situação inicial, complicação, ações e situação final, como se vê

nas produções H, I, J, K, L, M, O, P, R, T e U (ANEXOS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 20 e

21), o que nos garante que as estratégias utilizadas foram essenciais na construção de todo o

processo ensino-aprendizagem, porquanto a criança inicia o processo de apropriação da língua

escrita por meio de produções coletivas e termina escrevendo o próprio texto. Em seguida,

vamos analisar a produção J representando essas fases.

Madioca- O pão indigena

Em uma tribo uma índia jovem cha_

mada Mara ela queria se casar e ter filhos.

Um dia um jovem de cabelos loiros

desia da Lua seu sonho pasava se repi_

ti varias vezes Mara se apeixonou.

Um dia Mara pesebeu que estava gravida

Mara contou ao seu pais sea meã apoio

mais seu pai começou e destresava

Mara.

Mara deu a luz a uma menina.

a mandi ficou doente e falheseu

seu mãe ficou muito triste e ela

enterrou na sea oca.

um dia o jovem apareceu no sonho

do cacique ele insinou aprepara o

vegetal o cacique a basou seu

filha.

a onde mandi foi seputa se a

meã removeu a terá dero o nome

de mandioca que foi enterada na

oca.

Transcrição. Produção J.

Page 98: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

97

Page 99: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

98

Figura 13. Produção J. Realizada em novembro.

Para analisar cada fase da produção J, tomamos como modelo de caracterização

do gênero lenda de Coelho (2003 p. 83-87). Na fase inicial, foi possível identificar a presença

da personagem principal explicando o seu sonho: casar e ter filhos. Na fase de complicação,

aparece o personagem secundário “um jovem de cabelos loiros” e o fator complicador: “mara

pesebeu que estava grávida”. Em seguida, são descritas as ações em que Mara toma uma

atitude “mara contou al seu pais” . A postura tomada por Mara causou uma oposição entre os

membros da família: “sea mea apoio” e seu pai “a destresava”. Dando continuidade, o texto se

encaminha para a resolução “Mara deu a luz a uma menina” e, logo, em seguida nos remete a

Page 100: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

99

outra situação de complicação “mandi ficou doente e falheseu”. Em seguida, aparece a

solução para o primeiro conflito “o jovem apareceu no sonho do cacique” e ensina a preparar

o “vegetal”. E, finalmente, há uma retomada do segundo conflito “a onde mandi” foi

sepultada a mãe “removeu a terá”; esse nome, “mandioca”, é porque ela “foi enterada na oca”.

Resumindo, trata-se de um enredo muito intenso, em cuja estrutura temos, a situação inicial

bem definida: duas situações complicadoras; várias ações dos personagens, tanto o principal

como os secundários; duas resoluções de problemas e uma situação final. Observamos,

portanto, um total controle sobre o gênero e a ausência de traços da organização do conto de

fadas após a aplicação das atividades baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,

NOVERRAZ, 2004).

3.1.4 Aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda

Como pode ser comprovado nas produções A, B, C, D, G, Q, S (ANEXOS 1, 2, 3,

4, 7, 17, 19), outro aspecto evidenciado na análise das produções dos alunos é que

praticamente todas iniciaram o texto com o tradicional “era uma vez”. Essa incorporação da

organização do conto de fadas ao gênero lenda é perfeitamente aceitável e previsível. Temos

observado ao longo da nossa prática pedagógica que parece haver entre professores do ensino

fundamental de séries iniciais, sobretudo na primeira série, uma predileção pelo conto de

fadas, e essa preferência se reflete diretamente na produção da criança. Então, para a maioria

das crianças nessa fase, as histórias começam com “Era uma vez” e terminam invariavelmente

com “felizes para sempre”, independentemente do gênero. Góes (1991) explica que tanto as

crianças de outrora como as de hoje e o homem primitivo se sentem presos de encantamento

ao ouvir as histórias maravilhosas que começam com as palavras mágicas “antigamente”, “era

uma vez”.

Outro aspecto que nos chamou a atenção foi o contexto no qual esse gênero se

insere. Tudo isso não foi somente apreciado enquanto literatura; os valores e os princípios

revelados se sobressaíram por intermédio das ações das personagens. Essas discussões foram

interessantes, pois revelavam como as crianças operavam no mundo social. Além disso, não

podemos esquecer que uma das muitas atribuições da escola é levar a criança a conhecer e

Page 101: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

100

analisar criticamente os usos da língua como veículo de valores e preconceitos de classe,

credo, gênero ou etnia (BRASIL, PCNs, 1997, p. 42). Essas ações foram apresentadas no

encadeamento das frases. Além disso, o uso dessas expressões também serviu para apontar as

circunstâncias psicológicas das personagens. Por exemplo, as crianças utilizaram as

expressões “e falava que amava” (ANEXO 21), “Mara ficou muito triste” (ANEXO 10), “e

ficou muito triste e também morreu” (ANEXO 17), “potyra ficou triste e chorando” (ANEXO

9), “Potyra chorou muito” (ANEXO 13) “anhurawi um guerreiro muito corajoso se apaixonou

por ela” (ANEXO 18) “sua mãe ficou muito triste” (ANEXO 10), “O cacique pai da mara

desprezava Mara” (ANEXO 8) entre tantas outras. Essas expressões contribuíram

significativamente para preservar a continuação lógica e temporal do texto.

Observamos, ainda, que as crianças já são capazes de relacionar os fatos no texto

respeitando a ordem em que eles aconteceram. Isso quer dizer que, para a maioria delas, a

temporalidade marca a ordem natural dos acontecimentos, que pode ser confirmado na frase

“a muito tempo atas existia um casau que queria casar” (ANEXO 13). Esse marcador serve

para ajudar a criança a situar, no texto, o rompimento entre a mãe e a filha, apresentando logo

a seguir um novo acontecimento. Segundo Coelho (2003), esses organizadores temporais

estão presentes no início da fase de complicação, o que assegura o desenrolar da

temporalidade da narrativa.

A apresentação de um elemento organizador temporal no texto narrativo

transporta as crianças para um mundo de fantasia, diferente do momento da escrita da criança

(COELHO, 2003). Nos textos delas, o organizador temporal inicial aparece de várias formas.

Por exemplo: “um dia”, “todo dia”, “no outro dia”, “no dia seguinte”, “muito tempo atrás”,

“anoiteceu”, “chegando a noite”, “certo dia”, entre outros. Constatamos que essas expressões

foram usadas com bastante propriedade e ajudaram a criança a dominar e a organizar o texto

em parágrafos. Comprovamos ainda sua eficácia na construção de palavras e frases que

refletiam nitidamente a intenção de colaborar com a construção de sentido na totalidade do

texto, e não apenas a formulação de frases sem compromisso com o texto. Nas produções I, J,

L, M, U (ANEXO 9, 10, 12, 13, 21) observamos que o uso desses organizadores temporais

ajudou as crianças a identificar ações em diferentes espaços e tempos, caracterizando o lugar

onde aconteceu o fato, ligando-os ao tempo cronológico. Em nosso entender, essas relações

são importantes porque nessa fase ajudam a criança a estabelecer a ordem dos

acontecimentos.

Na produção H, abaixo, podemos interpretar com clareza a importância dos

organizadores temporais para o gênero. O aluno inicia o seu texto informando a localização

Page 102: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

101

dos acontecimentos com a expressão “Em uma tribo”, iniciando a partir daí a sequência da

narrativa. Nesse contexto, essa expressão situa o leitor em relação ao lugar físico em que

ocorrem os fatos. Na sequência, situa a história no tempo como em “até que um dia ela

sonhou com um jovem”, expressão que dá pistas de existir uma ordem natural dos fatos em

andamento no texto. As personagens vão aparecendo no texto à medida que a

sequencialização dos acontecimentos se desenrola no enredo. Primeiramente aparece a

personagem principal, cujo nome curiosamente só aparece na quarta linha (Mara). Logo

depois surge o cacique, o antagonista, que contradiz as ações da personagem principal.

Depois, relata a situação complicadora atrelada ao tempo do acontecido: “Um dia mandi

faleseu”. Obedecendo a uma ordem da noção espaço-tempo, estes são utilizados para situar o

leitor no enredo da história, isto é, conseguindo estabelecer a distância temporal necessária

entre os eventos que se vão desenrolando ao longo da narrativa. Por fim, no fechamento da

história: “o cacique pediu desculpa e derão o nome de mandioca em omenage o imterro da

Mandi”, constatamos que os acontecimentos coincidem com a lenda contada.

Mandioca- O pão indígena

En uma tribo uma índia jovem sonhava en ter

filhos.

Ate que um dia ela sonhou com um jovem desedo da lua dezedo que o amava o sonho

se repitiu muitas Veze Mara descobri que estava esperando um filho.

O cacique pai da Mara desprezava Mara mas os índios da tribo amavão Mandi.

Um dia mandi faleseu a sua mãe enterrou

na sua oca para que separase dela.

O jovem apare seu no sonho do cacique

falu como prepara o vegetal o cacique

pediu descupa e derão o nome de mandioca

em omenage o imterro da Mandi.

Transcrição. Produção H.

Page 103: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

102

Figura 14. Produção H. Realizada em novembro.

Em relação às características do gênero textual lenda, mostramos que os subsídios

teóricos deram suporte à funcionalidade das atividades. Nota-se que a compreensão

organizacional deu à criança conceitos relevantes para a construção do gênero. E numa

primeira série, elaborar uma narrativa escrita é uma tarefa complexa, pois exige uma série de

conhecimentos linguísticos, tais como: vocabulário adequado ao gênero, encadeamento lógico

entre os acontecimentos, domínio da temporalidade e do espaço em que ocorre a história etc.

Page 104: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

103

A análise das produções dos nossos alunos teve o objetivo de observar, em momentos

distintos, como traçamos o caminho do processo de apropriação da escrita.

4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento

Durante a aplicação das atividades, as crianças se apropriaram de conceitos

fundamentais que as levaram a desenvolver a escrita. As atividades foram desenvolvidas

levando-se em conta a consciência fonológica, a palavra, a sílaba e o fonema, em atividades

contextualizadas em recontos coletivos da lenda, nas quais analisamos o processo de

construção da escrita.

As atividades foram distribuídas de três formas: as coletivas, em sala, ora em

grupos de quatro, ora em duplas, ora em trios, ora na turma inteira. Nas atividades individuais,

as crianças eram estimuladas a refletir e desenvolvê-las sem interferência de outros e,

posteriormente, elas poderiam ser compartilhadas com os colegas. Por último, as atividades ao

ar livre (fora da sala), com o objetivo de trazer novidades e acrescentar novas formas de

trabalho, geralmente aconteciam em forma de jogos e brincadeiras.

Em nosso entender, é impossível alfabetizar uma criança sem desenvolver o

sistema alfabético do português. Admitindo isso, nesta seção descrevemos as atividades que

habilitaram as crianças a usar esse conhecimento. Convém ressaltar que não se trata de todas

as atividades aplicadas, mas de um recorte dessas atividades, a partir do estudo do gênero

lenda, que contribuíram com o aprendizado da língua materna.

A atividade “seleção de palavras” foi realizada com o objetivo de levar as crianças

a perceberem, pela pronúncia, quais palavras iniciam da mesma maneira e quais começam de

forma diferente. Por exemplo: “panela”, “pequi”, “periquito”, “pajé”, “papagaio”, “Ponain”,

“Potyra → /p/→ “p”; “tatu”, “tupi”, “tucunaré”, Tupã”, “tupi”, “tucunaré”, “tucumã”, → /t/→

“t”; “fogo”, “filha” → /f/→ ”f”; “viúva”, “velho”, “vila”, “voar” →/v/→ “v”; “maracá”,

“mata”, “Mara”, “madeira”→/m/ → “m”. Ora as palavras eram escritas no quadro de giz, ora

em fichas coloridas, ora apresentadas oralmente, ora mimeografadas. Retirávamos as palavras

das lendas que eram contadas em sala. Uma variação dessa atividade consistia na associação

entre a gravura e o som inicial das palavras retiradas do reconto. De acordo com Scliar-Cabral

Page 105: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

104

(2003b), as palavras em que os fonemas correspondem aos grafemas independentemente da

posição e do contexto fonético são ideais para iniciar o processo de alfabetização.

Atividade interessante era registrar em fichas ou quadro de giz uma sequência de

palavras retiradas do reconto para as crianças perceberem quais delas compartilhavam o

mesmo fonema em início de sílaba, por exemplo, “roça”, “rocha”, “Lua”, “lagoa”, “lagos”,

“zarabatana”, “luta”. Nessas atividades, procurávamos explorar a relação fonema-grafema em

início de sílaba, uma vez que os fonemas /l/, /z/ e o arquifonema |R|, nesta posição, se

escrevem com ‘l’, “z” e “r”, respectivamente, conforme mostrado por Scliar- Cabral (2003b).

Numa outra atividade registramos no quadro de giz palavras que apresentavam o

fonema /s/, como, por exemplo, “nascimento”, “desconsolada”, “essência”, “desceu”,

“pássaro”, “pesca”, “passear”, “assustada”, “nasceu”, e logo após solicitamos que as crianças

identificassem e separassem as palavras de acordo com os grafemas que representavam o

fonema /s/ ou o arquifonema |S|. Nessas atividades, procuramos enfatizar que as realizações

do fonema /s/ podem ser grafados “ss”, “c” ou “sc” em início de sílaba, entre vogal oral e

vogal posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não posterior, isto é, /i/, /e/, /E/, /ẽ/ e /j/

(SCLIAR-CABRAL, 2003a). Dessa forma, não há uma regra geral que atenda todas essas

ocorrências nas palavras. A autora alerta que se pode compreender o grafema como uma ou

mais letras que representam um fonema, e no sistema alfabético do português do Brasil, não

mais que duas letras.

Outra atividade era com palavras que em início de sílaba começavam com o

fonema /s/ e as crianças identificavam e separavam as palavras de acordo com o fonema. Por

exemplo: “sol”, “sapé”, “sufoco”, e nesse caso, o fonema /s/, em início de sílaba, antes de

vogal posterior ou /w/ grafa-se com “s” (SCLIAR-CABRAL, 2003b).

Em outra atividade, apresentando palavras que começavam com o mesmo padrão

silábico e palavras que começavam com outro padrão, solicitamos que as crianças

identificassem e separassem as palavras de acordo com o fonema inicial da sílaba e/ou final

de sílaba. Em seguida, apresentamos as palavras à turma, escrevendo-as no quadro de giz, e as

palavras foram lidas coletiva e individualmente, confirmando ou redirecionando as hipóteses

levantadas pelas crianças. Essas atividades serviram para salientar a composição e a

decomposição da palavra, a relação fonema-grafema e os movimentos de escrita da esquerda

para a direita (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).

Um jogo que as crianças apreciavam era trocar a letra inicial por outra: ora as

palavras eram ditas oralmente, ora eram escritas em fichas ou no quadro de giz. Nessa

atividade, era explorado o som inicial e o significado da palavra. Por exemplo: FALA,

Page 106: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

105

BALA, CALA, MALA, RALA, SALA, TALA, VALA, que, embora mantenham as três

últimas letras, com a troca do grafema/fonema o significado muda completamente. Além

disso, a discriminação de sons tem a função de distinguir sentidos e significados (SCLIAR-

CABRAL, 2009).

O procedimento de encontrar a palavra correspondente à figura agradava as

crianças. Outra forma de exposição da atividade era apresentar primeiro a figura para depois

encontrar a palavra, que também servia para diferenciar as figuras das letras (BRASIL, PRÓ-

LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Também apresentamos a palavra faltando a

primeira letra, para a criança identificar o fonema/grafema inicial da palavra e relacionar a

palavra à figura correspondente. Nessas atividades trabalhamos o fonema /s/ nos contextos

competitivos, especificando os grafemas usados em relação à posição realizada pelo fonema

/s/ (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 153-158). A seguir, as crianças separaram e escreveram as

palavras com “ss”, “c”, ou “sc”.

Uma atividade era separar em sílabas as palavras retiradas do texto, como, por

exemplo: “barco”, “cabaça”, “pajé”, “Sol”, “tribo”. Essas atividades serviam para que o

aluno percebesse que “enquanto se fala, o ar é emitido numa série de impulsos a cada um dos

quais se pode dizer que corresponde uma sílaba” (MATTOSO CAMARA, 1977, p. 70.).

Nessas atividades, separávamos as palavras em sílabas, tanto oralmente quanto por escrito;

quer dizer, a identificação e a percepção da representação gráfica dos fonemas favoreciam a

decomposição e a composição da palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007.

FASCÍCULO 1).

Também trabalhamos fonemas que figuram em final de sílaba como em

“ariranha”, "piranha”, “lenha”, “jatobá”, “tarobá”; incentivamos a comparação entre o número

de sílabas e a relação de fonemas e de grafemas na palavra. A análise fonológica pode ajudar

na reflexão de como cada fonema pode ser representado por grafema na escrita (SCLIAR-

CABRAL, 2003a).

Algumas atividades eram realizadas para distinguir as consoantes, /d/ → “d” →

“dedo”; /b/ → “b” → “bela”, porquanto no caso dessas consoantes a similaridade não se

restringe à articulação, mas se estende à escrita. Essas atividades não somente buscam

familiarização com as letras, como objetivam a sistematização da correspondência entre

fonemas e grafemas. Dessa forma, a escrita da palavra deve observar o traçado de cada letra,

sempre reforçando a atenção nas hastes e curvas, respeitando o movimento da direita para a

esquerda (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).

Page 107: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

106

Atividade muito interessante foi o jogo das palavras, cujo objetivo era

desmembrá-las fazendo novas combinações, quer dizer, em um primeiro momento a

combinação fica restrita à primeira sílaba de cada palavra. Por exemplo: a primeira sílaba da

palavra “copo” com a primeira sílaba da palavra “braço” forma a palavra “cobra”; em

seguida, combinavam-se as sílabas do final das palavras; por exemplo, a última sílaba da

palavra “bico” com a última sílaba da palavra “bela” forma a palavra “cola”. A intenção era

que as crianças reconhecessem que com a sílaba de uma palavra podem formar novas

palavras, bastando para isso examinar as unidades que constituem a palavra para desmembrá-

la. Em suma: o reconhecimento da palavra ocorre por análise e síntese (SCLIAR-CABRAL,

2009).

Colocamos as crianças sentadas em círculo e distribuímos os cartões de forma que

elas não pudessem ver a figura. Trabalhamos dez figuras por vez, por exemplo: barco, canoa,

Lua, maracá, tatu, onça, cobra, peixe, Sol, índio. Nessa atividade o desafio era relacionar o

som da primeira sílaba com a figura. A palavra era lida primeiro por nós, depois pelas

crianças, e por fim era escrita no quadro de giz.

Uma atividade era descobrir a palavra secreta. Nessa atividade, relacionamos a

palavra ao desenho e em seguida acrescentamos palavras que rimam com a palavra secreta,

por coincidir o fonema no final da sílaba. Por exemplo: “panela”, “bela”, “mela”, “vela”,

“gamela” e assim por diante. Exploramos também os constituintes das palavras “mela” e

“gamela”, casos em que, segundo Scliar- Cabral (2003b), a realização do fonema /l/ no início

de sílaba interna se converte no grafema “l”; e também ressaltamos a formação de uma

palavra a partir de outra já existente.

Destacamos também a primeira e a última sílaba da palavra: ora recortadas, ora

pintadas com cores diferentes, ora circuladas. A finalidade era destacar palavras polissílabas,

trissílabas, dissílabas e monossílabas, além de ajudar o aluno a perceber a extensão da

palavra até segmentá-la em unidades menores, isto é, palavras em sílabas e sílabas em

fonemas (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).

Outra atividade era recortar as gravuras de objetos que apareciam na lenda; a

criança era convidada a identificar o fonema repetindo o início e o final da palavra. Essas

atividades foram aplicadas e desenvolvidas para trabalhar a assimilação dos fonemas a partir

de rimas, isolamento da primeira letra e da última sílaba. As gravuras foram selecionadas

segundo o fonema a ser trabalhado.

Realizamos também atividades que contemplassem os grafemas “o” e “u” em

final de palavras. As crianças participavam da confecção da lista de palavras. Realizamos as

Page 108: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

107

atividades em duas etapas. No primeiro momento, atividades orais possibilitaram exercitar a

percepção da extensão da palavra, pois a economia ao pronunciar uma palavra pode acarretar

omissão/troca de letras, uma vez que nosso sistema de escrita sofre influência da oralidade,

embora a escrita não seja sua representação exata (MARCUSCHI, 2005). No segundo

momento, as crianças escreveram uma lista de palavras em que observassem a percepção do

arquifonema |W|. Conforme Scliar-Cabral (2003b), há várias formas convencionadas de

representá-lo podendo-se escrever competitivamente O ou U em sílaba não final de vocábulo

ou em final de vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S|.

Também foram desenvolvidas atividades que contemplassem o “desdobramento”

das vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a;

b), na tentativa de evitar os problemas de escrita das vogais nasalizadas como nas palavras

“muito”, “Mandi”, “mandioca”. No primeiro momento, essas atividades eram realizadas

oralmente, e só após analisar e registrar esse desdobramento é que eram propostas atividades

de escrita. Outra variação era reforçar a sonoridade da sílaba inicial. Por exemplo: levar o

aluno a identificar a diferença na pronúncia da sílaba BO nas palavras BOLO e BOLA.

Levamos atividades em que as crianças pudessem observar que existem palavras

com pronúncia diferente da grafia, principalmente no final de silaba, tal como em

TOMATE/TOMATI. Para a realização das atividades de discriminação do fonema foi

fundamental a percepção da sílaba como constituinte da palavra em que um grafema

representava mais de um fonema, e também trabalhamos palavras em que um fonema podia

representar mais de um grafema (SCLIAR-CABRAL, 2003 a; b).

As atividades de rima e lengalenga eram frequentes: as palavras eram retiradas

das produções coletivas. Essas atividades serviram para que as crianças percebessem e

refletissem sobre como as palavras terminam e suas múltiplas combinações, isto é,

desenvolver a habilidade de refletir sobre os sons da língua usando a linguagem escrita –

metalinguagem – (SCLIAR-CABRAL, 2003a).

As atividades orais também eram realizadas, por exemplo, com as crianças

tentando descobrir e separar pela pronúncia aquelas que começavam com o mesmo fonema

das que começavam com fonemas diferentes, e em seguida faziam a leitura. Essas atividades

serviram para despertar a consciência de que ao escrevermos é preciso tomar consciência da

estrutura sonora de cada palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).

Terminada a apresentação das atividades que foram aplicadas para desenvolver o sistema

alfabético, passamos à análise das produções.

Page 109: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

108

4.2.1. A descoberta de que a fala pode ser escrita

Nesta seção, analisamos a produção textual dos alunos a partir da proximidade

entre fala e escrita.

Na produção A (ANEXO 1), observamos que na sua primeira produção textual a

criança usou algumas letras do alfabeto (A, P, U, L, K, R, D, E, I, O, V, T) para recontar a

lenda: Potyra - as lágrimas eternas. De um lado, identificamos na produção cinco vogais (A,

E, I, O, U) e sete consoantes (P, L, K, R, D, V, T). A predominância das letras A e I refletem,

em parte, a familiaridade com a escrita do seu nome, e de outra parte a presença muito forte

do ensino tradicional sistematizado e ensinado a partir das vogais. A esse respeito, com base

no Pró-letramento (2007) podemos afirmar que frequentemente as escolas têm organizado sua

prática apresentando primeiro as vogais (a, e, i, o, u) adotando uma abordagem que não leva

em conta que o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco letras (a, e, i, o, u),

para representar as vogais, mas possui sete vogais, orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e cinco nasalizadas

(ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).

Por outro lado, ao fazer tentativas de escrita, como a produção C, o aluno parece

perceber que é preciso usar as letras do alfabeto para registrar as suas ideias. No momento da

produção C a criança tinha seis anos, completando sete anos no mês de abril. Ao iniciar a

produção, a criança construiu um bloco de quatro sentenças do mesmo tamanho. Para registrar

a primeira sentença, ela usou nove letras (ACEFUOHIO), dentre as quais percebemos que seis

são vogais (A, E, U, O, I, O), algumas (O, U, I) escritas com letra cursiva; a única letra

repetida é a letra O. A segunda sentença consiste de sete letras (ELIUFUO), das quais cinco

são vogais; houve a inclusão da letra L, permanecendo o restante das letras da primeira

sentença e as letras I, U, O novamente foram grafadas de forma cursiva e foi repetida a letra

U.

Na terceira sentença contamos sete letras (USUEFIH), sendo quatro vogais; a letra

S foi acrescentada às existentes; as letras U e I outra vez foram grafadas de forma cursiva. A

última sentença deste bloco consistia de 11 letras (USEHERIHJSU), cinco vogais (U, E, E, I,

U) e seis consoantes (S, H, R, H, J, S), dentre estas as letras E, I, J grafadas com letra cursiva.

A seguir, ela repetiu a última sentença (USEHERIHJSU), intercalando com a letra É,

completando com a sentença (NAPUVRIOUELTMNA) usando quinze letras; dentre as quais

sete são vogais (A, U, I, O, U, E, A). Dessa forma, para escrever utilizou-se do repertório de

dezessete letras (A, C, E, F, O, H, I, L, V, S, U, R, J, N, P, T, M), sendo doze consoantes e

Page 110: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

109

cinco vogais. Observamos que as vogais foram repetidas várias vezes na mesma sentença,

mais do que as consoantes. Percebemos ainda que as letras R, I, O, J, E, N estão em letra de

fôrma, enquanto I, N, E, R foram escritas em minúsculas. O traçado da letra se manteve no

mesmo padrão e, ao repetir a primeira parte na última sentença, conservou as mesmas letras e

a mesma configuração. Observamos que no conjunto de letra da sentença (N, A, P, U, V, R, I,

O, U, E, L, T, M, N, A) três letras foram repetidas (N, A, U). Abaixo, a produção C.

Figura 15. Produção C. Realizada no mês de março.

Ainda em referência a produção C, na última sentença a criança parece registrar

os enunciados relacionando-os ao ritmo e à entonação da fala, estratégia da criança para

transformar a fala em texto escrito, mas isso não significa uma correspondência entre a fala e

Page 111: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

110

a escrita fonética. A esse respeito, Scliar-Cabral (2003) afirma que os falantes de uma língua,

sejam eles alfabetizados ou não, percebem a cadeia da fala para seu uso cotidiano, mas a

percebem como um continuum, tanto é que, quando começa a escrever, a criança não faz a

separação entre as palavras. Isso quer dizer que, no início da alfabetização, por sua

inexperiência, a criança não sabe que a escrita tem um modo próprio de representar a fala, ou

seja, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem

de uma ordem para outra ordem (MARCUSCHI, 2005).

Podemos inferir, portanto, o predomínio da aprendizagem focado nas vogais por

sua incidência no texto escrito. Além disso, as vogais foram grafadas com letra cursiva, com

exceção da consoante J, que também foi grafada em cursiva, o que pode indicar que

anteriormente foram apresentadas outras formas de grafar essas letras.

A propósito de compararmos o dito oralmente com o escrito pela criança,

podemos inferir que ela usou da fala para narrar o escrito baseando-se na lenda que foi

contada, embora não faça relação entre a sentença escrita com a produzida oralmente. Isto

pode se justificar, pois os meios orais permitem a inserção de sons inarticulados, a expressão

facial e corporal e também a modulação da voz, refletindo sobre o que se quer expressar no

texto (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Além do mais, inicialmente

há relação entre os sons e silêncios e sua imaginação (SCLIAR-CABRAL, 2003a).

Foi possível observar que as crianças no início do processo de escrita apoiaram-se

na oralidade, que serviu de âncora para construir e compor o texto, a palavra, a sílaba. Mas,

observamos também que à medida que oferecemos contato com uma diversidade de gêneros,

as crianças se sentiram mais à vontade para usar os recursos linguísticos que aprenderam ao

longo do ano. Dessa forma, o aproveitamento desses conhecimentos pode amenizar os

impactos ao acesso do funcionamento da língua escrita e, também, harmonizar o

distanciamento entre escrita e oralidade.

Na produção L, as sequências “fesumpidido” (fez um pedido), “eapareceu” (e

apareceu), “umsenhor” (um senhor), “esivelho” (esse velho), “suairmãdisi” (sua irmã disse),

“foipomato” (foi pro mato), “nomato” (no mato), “edisi” (e disse), “ esua” (e sua) na junção

das palavras observa-se uma influência muito forte da oralidade na escrita da criança. Fala e

escrita são produzidas em sequência linear, e compreender que essa linearidade acontece de

maneira diferente na fala e na escrita é fundamental no início da alfabetização (BRASIL,

PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Isso significa que as marcas que usamos na

escrita para distinguir palavras, frases e sequências de frases não são “óbvias” nem

“naturais” (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), a criança precisa

Page 112: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

111

familiarizar-se com as convenções ortográficas, separando as palavras por espaço em

branco, regras de escrita aprendidas na escola. Conforme Scliar-Cabral (2003), a capacidade

de perceber a articulação dos traços da palavra escrita com função de distinguir significados,

os grafemas, associados ao respectivo fonema, representa atribuir os valores fonológicos que

envolvem a língua, e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as

palavras e/ou entre consoantes e vogais. Abaixo, apresentamos a produção L.

Page 113: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

112

Figura 16. Produção L. Realizada no mês de junho.

Thaina Khan

Page 114: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

113

Uma índia fesumpidido que

queria casa i pajé pidi o

para o Tupã realisa o dese

jo eapareseu umsenhor Danace di

si minha irmã não vai casa

com esi velho sua irma disi vose

qui casa comigo i Thaina di

si quero e Thaina foi pomato e

Tupã trasformou em um jovem

fote e sua molhe foipro cu

r Thaina nomato edisi m

eu marido e Danece dise e la

não podi fica com e si

gatão e Tupã tras for mo e la

em passaro.

Transcrição. Produção L.

4.2.2 A construção da noção de palavra no texto escrito

A nossa pesquisa para o ensino fundamental de Língua Portuguesa em classe de

alfabetização focaliza a produção de textos escritos combinados com a reflexão sobre as

estruturas da língua. Essas atividades devem ser consideradas como processos ativos, e a

concepção de linguagem como uma ação dirigida com a finalidade de facilitar a comunicação

que ocorre em diferentes grupos sociais por meio do texto oral ou escrito.

Nas produções A, B e C (ANEXOS 1, 2, 3) notamos que as crianças não

dominavam o alfabeto completo: conheciam algumas letras, mas não sua função. Ao contrário

disso, os textos recolhidos em junho nos mostraram claramente que as crianças alcançaram a

compreensão da função das letras do alfabeto. Elas estavam praticando nas palavras estudadas

Page 115: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

114

que fonemas isolados ou combinados representam um ou dois grafemas (SCLIAR-CABRAL,

2009).

Observamos também que, nessa fase, as crianças que inicialmente trabalham com

a perspectiva do texto parecem não se preocupar com a grafia correta das palavras; suas

preocupações centram-se em desenvolver a concepção geral do texto. Em nosso olhar, nesse

momento inicial da alfabetização, a ortografia não é tão importante, pois a excessiva

preocupação com a grafia correta das palavras pode acarretar desinteresse pelo texto; nesse

momento o importante é valorizar a criação da criança. Acreditamos que, aos poucos, ela terá

acesso às regras ortográficas, mesmo porque essas regras fazem parte do currículo das séries

posteriores. No entanto, não se trata de negar ao aluno o acesso a tais regras, mas de

encaminhar situações de produção de textos criadas em sala de aula que possam oportunizar o

surgimento de diferentes questões dos alunos sobre a forma correta de grafar as palavras

(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO1).

As crianças usam a fala para colocar no papel a mensagem do texto. Essa

ansiedade se reflete nas palavras “emendadas”, porque durante a escrita do texto elas usam a

fala para organizar os seus pensamentos. Dessa maneira, tomar consciência de que a

articulação dos traços da palavra escrita com função de distinguir significados ajuda o aluno a

fazer a separação entre as palavras e/ou entre consoantes e vogais (SCLIAR-CABRAL,

2003).

Apresentamos a produção B recolhida no mês de março, por apresentar algumas

características da turma. Trata-se do reconto da lenda intitulada Potyra - As lágrimas eternas.

Comparando a primeira produção com a segunda produção G, recolhida no mês de junho, da

mesma criança, nota-se um avanço significativo nas tentativas de escrita. Abaixo, as

produções B e G para melhor visualização e comparação.

Page 116: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

115

Figura 17. Produção B. Realizada no mês de março.

Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu. Transcrição. Produção B.

Page 117: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

116

Figura 18. Produção G. Realizada no mês de junho.

NEGRINHO DO PASTOREIO

1. E AR/ UM/ VSI/ O /MENNO/ RINÃO/ LIDA /MARIDA

2. COMO/ LIRASVO /DINERINHO/ COVIDOU /RA /UMMA

Page 118: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

117

3. CORIDA/ I /E LIE/ PRA /UMMA /CORIDA

4. E /NOU /FINAL /DA /CORIDA /ELI /DEU /A /CORIDA

5. I /CODOU /RUCUPAEPACIDAU /UMA /CARA /DE /XICODE

6. COMU /EL /NÃO /XIP /ARAEDO /MARIRA/ ELE /DOMIPO

7. I/ O /CAVALO /SIS OU /NERIRO / ACODOU

8. I /O /MENIN/ DO /PASTOR /VOSE /E /LEVOU /UMM MA /DURA

9. RA/ ELE /FOI/ ROC RA/ O/ CAVALO/ I / LEVOU/ UMMA/ VE

10. LA / ADA /BIGO/ DA/ VELA /APARECEU/ UMA /LUES

11. I/ CADA/ CAVALO/ A PARESIA/ CAVALO/ O/ DOUCNO

12. O /ILO/ DO/ PATOP /ERO /SOU/ O /CAVALO/ I/ COREU/ CU

13. PAI/ RIMÃO /SODOU/ CVLO/ NO/ FUMIGERONNE

14. SIREOLO /PARA/ NOOROIDO/ A /FORMIGRU

15. IEL/ CPDOOU/ NO/ ANOS /I / ELI/ POUS NO LDOCO/ SINO3O

Transcrição. Produção G.

Na produção acima (figura 18), podemos observar que o traçado das letras

apresenta indícios de que, ao escrever, o aluno imprimiu uma “força” adicional ao lápis, tanto

no primeiro quanto no segundo texto. O texto consiste de 15 linhas. Não apresenta

parágrafos. Observamos que a criança já domina todo o repertório de letras do alfabeto e faz

várias tentativas de escrita para a mesma palavra (cavalo, cvl; uma, umma, ummma). Apesar

da repetição da palavra “corida”, a sua escrita permaneceu a mesma em todas as ocorrências;

a palavra foi grafada com a falta de um “R”, o que não implica alteração do significado da

palavra, por isso supõe-se que não se trata de uma variação linguística, mas de uma

dificuldade em relação à posição ocupada pelo fonema /r/ na palavra (SCLIAR-CABRAL,

2003b); isso não acontece com a escrita da palavra “uma”; verifica-se um conflito, ora

aparece com duplicação da letra “m”; ora aparece com triplicação de “m”, isto é, para grafar

o vocábulo “uma”, a criança adotou três formas diferentes: “uma”, “umma” e “ummma”.

Refletindo a representação da fala na escrita, a duplicação e triplicação da letra “m”

justificam-se na medida em que a criança ainda não percebe que a sonoridade na sílaba é o

que define uma consoante e uma vogal, isto é, a sílaba sonora “em princípio é emitida num

único impulso de expiração, mas num só impulso também se podem articular duas sílabas

sonoras, que ficam assim reunidas numa única expiratória ou dinâmica”. (MATTOSO

CÂMARA JR, 1978 p.218). Convém salientar que em ambos os casos não há

comprometimento na estrutura textual.

Page 119: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

118

Observamos, ainda, que na primeira produção B a criança não se preocupou com

o título da lenda; já na segunda, embora tenha escrito o título em letra cursiva, o restante do

texto foi escrito em letra de imprensa maiúscula, o que significa que a letra cursiva ainda não

é do seu domínio. Outro ponto interessante é que na primeira produção necessitamos da

“leitura” do aluno para compreender a escrita, enquanto na segunda produção é possível

compreender a forma escrita do seu texto e sua intenção ao desenvolver suas ideias, e também

a estrutura do gênero textual.

Na transcrição é possível compreender a produção G e também verificar como as

palavras foram construindo-se à medida que o reconto avança para o final. Em algumas

palavras, como “EAR” (era), “VSI” (vez), “MENNO” (menino), “LIDA” (linda), “MARIDA”

(madrinha), “COVIDOU” (convidou), “ELI” foram suprimidos alguns grafemas e em outros

casos, como em “RA” (para), “SVO” (escravo), “NERIRO” (negrinho) “ROCRA” (procurar),

a sílaba também foi esquecida; também encontramos excesso de letras “DOUCNO” (dono);

ao mesmo tempo na construção da palavra “formigueiro”, observamos que a primeira

tentativa “FUMIGERO” parece basear-se na oralidade, enquanto a segunda tentativa

“FORMIGRU” mostra uma evolução significativa, pois o fonema /g/ antes da vogal não

posterior se converte em “gu” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), então a criança para realizar esse

fonema, lança mão de um artifício sonoro “GRU”. Percebe-se ainda que a nasalização

assinalada pela letra “n” ainda não é do domínio da criança, como se vê em “lida” (linda),

“covidou” (convidou). Na escrita da palavra “BIGO” (pingo) parece que a criança ainda não

está segura em relação à conversão do fonema /p/ no grafema “p”, pois é nítida a dificuldade

da criança em distinguir graficamente o grafema “B” do grafema “P”. Mas essas inúmeras

tentativas de escrita são importantes para dominar as relações entre grafemas e fonemas

(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).

4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas

Para analisar as produções tomamos como base que os grafemas representam os

fonemas, e também que fonemas são unidades sonoras distintas mais simples da língua que

entram na formação do vocábulo com a função de distinguir significados (SCLIAR-

Page 120: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

119

CABRAL, 2003a, b). Das produções coletadas no mês de novembro, tentaremos resumir um

panorama desses casos para melhor compreensão da produção final.

Para Scliar-Cabral (2003b), a nasalização da vogal em final de sílaba que não

esteja em final de vocábulo, antes de /p/ e /b/ é marcada pelo grafema m; antes das demais

consoantes, a nasalização é assinalada pelo grafema n; trata-se de uma das conversões mais

econômicas do português, e no caso da codificação com m, a grafia também assinala a

antecipação da bilabialização dos gestos bucais. A esse respeito encontramos os casos “mudo”

(mundo), “sague” (sangue), “esinou” (ensinou), “plata” (planta), etc. Encontramos também a

nasalização assinalada graficamente pelos grafemas m e n, como nas palavras “muimto”

(muito), “anmava” (amava), “quenme” (queime), “quenmado” (queimado), etc. Encontramos

em menor número de ocorrências a vogal nasalizada /ã/ com ou sem acento, seguida ou não

de /S/ nas palavras “tupam” (Tupã), “maçam” (maçãs), “lam” (lã) etc.

Outra situação encontrada é em relação à troca de letras com a escrita semelhante

nas palavras grafadas com m e n, como em “irnã” (irmã), “con” (com), “senpre” (sempre),

“comseguiu” (conseguiu), “comtou” (contou) etc. Encontramos também a nasalização da

vogal /ã/ nos vocábulos marcados pela letra m e n “arrumãdo” (arrumando), “pegãdo”

(pegando), “quãdo”(quando), “manham” (manhã), etc. Nesses casos, há falta de exatidão na

correspondência das qualidades fônicas e seus respectivos valores; conforme Scliar-Cabral

(2003a, b), as letras m ou n marcam a nasalização das vogais em final de sílaba interna e em

final de sílaba que não esteja em final de vocábulo.

Na produção T abaixo, realizada no mês de novembro, a sequência

“chamadajatoba” o contínuo da fala foi retratado na escrita, daí a importância de trabalhar a

diferença entre fala e escrita na alfabetização, como foi mencionado na seção anterior. Nessa

mesma produção, a troca do grafema u no final da palavra foi encontrada nos textos com

muita frequência em situações diferentes. Por exemplo: “encontrol” (encontrou), “tomol”

(tomou), “colocol” (colocou), “rolbada” (roubada), “fugio” (fugiu), “vio” (viu), “comeo”

(comeu), “falol” (falou), “perguntol” (perguntou), subil” (subiu), “comeo” (comeu), “dividio”

(dividiu) entre outras (ANEXOS, 16, 20). No português do Brasil na maioria das regiões, não

se diferencia na fala o fonema /w/ do fonema /l/ no final de vocábulo. Nesse sentido, essas

ocorrências nos levam a inferir que os ditongos /iw/ e /ow/, nessas situações, foram grafados

“io”,“ol”, “il” e “eo”, refletindo a neutralização dos fonemas /u/ e /l/ em posição final de

sílaba.

Page 121: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

120

Figura 19. Produção T. Realizada em novembro.

Igaranhã – A canoa encantada

O indeo escolheo a arvore chamadajatoba

para fazer canoa a o terminar não encontrol a canoa

ele pen sou agun animal destoril a canoa com o

roido ele tomou um susto e a canoa veio e diresão dele

Page 122: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

121

com olhos e boca e colocol o nome de Igaranhã

o indio mandou na canoa e os primeiros peixes

a canoa comeo e as partes maiores era para

o indio não queria dividio as peixes e a

canoa come ele.

Transcrição. Produção T.

Constatamos a maior incidência de omissão de grafemas foi encontrada na

realização do fonema /R/. Por exemplo, “corida” (corrida) “enterou” (enterrou), “moreu”

(morreu), “interada” (enterrada) etc. De acordo com Scliar-Cabral (2003b), pela regra, as

realizações do fonema |R| entre vogal final de sílaba e vogal oral nasalizada que não a mais

alta, ou semivogal no ditongo crescente, arquifonema |R| escreve-se com o dígrafo “rr”.

Ao mesmo tempo verificamos que o sistema de escrita alfabética do português do

Brasil apresenta como característica essencial a correspondência entre fonemas e grafemas,

embora não exista a correspondência biunívoca entre alguns fonemas e grafemas. Scliar-

Cabral (2003a, b), apresenta situações em que a correspondência entre fonema e grafema não

é estavel, como no caso do fonema /s/ e o grafema “s”, porque o fonema /s/ pode ser

representado por diversos grafemas: “s”, “ss", “c”, “ç”, “x”, “z”, “sc”, "sç” e “xc”. Por

exemplo: “naseu” (nasceu), “paseava” (passeava),“pasava” (passava), “pasaro”(pássaro),

“creseu” (cresceu), “espozo” (esposo), “onsa” (onça), “paciava” (passeava), “faleseu”

(faleceu), “percebeu” (percebeu), “casique” (cacique), “escureseu” (escureceu), “cassique”

(cacique), “pasado” (passado), “ves” (vez), “falheseu” (faleceu) etc. Essas ocorrências podem

ser comprovadas nas produções E, H, J, K, N, O, P, Q, U (ANEXOS 5, 8, 10, 11, 14, 15, 16,

17, 21, respectivamente).

Na produção O abaixo, observamos o uso do arquifonema |S| em várias situações.

A criança oportunamente usou o grafema “s” em início de sílaba para grafar a palavra

“sosinha”, na qual foi empregado o grafema “s” para representar o grafema “z”; oposto disso,

na palavra “espozo” o grafema “s” foi substituído pelo grafema “z”. Em outra situação está a

palavra “felois” (veloz) em que o fonema /z/ foi trocado pelo fonema /s/ no final do vocábulo.

Em outra passagem a criança grafou a palavra “peçoa” substituindo o grafema “ss” pelo

grafema “ç”. Usou o grafema “s” para grafar a palavra “pasaro”. Observamos ainda na

palavra “fareseu” a troca do grafema “c” pelo grafema “s”. Essas ocorrências evidenciam a

falta de domínio da criança sobre as convenções ortográficas para representar o fonema /S/ em

contexto competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). É interessante observar ainda nessa

mesma produção, que a criança grafou três vezes a palavra “tupan”, conservando nas três

Page 123: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

122

ocorrências a mesma escrita, sempre com a nasalização do fonema /ã/ representada em final

de sílaba pela letra n, situação em que, segundo Scliar-Cabral (2003a, b), as letras m e n têm o

mesmo valor sonoro do til. Outra faceta que encontramos foi a troca do grafema “r” pelo

grafema “l” como em “Ela” (era), e o contrário: a troca do grafema “l” pelo grafema “r” em

“fareseu” (faleceu).

Figura 20. Produção O. Realizada em novembro.

Page 124: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

123

Ela uma vez uma índia que a cretitiva que quando as

peçoa mo ri virão em borboreta e espozo da Coacyaba

mo réu guanamby fico tristi e enfaleceu e Coacyaba

Morreu e Coacyaba fico sosinha e foi visitar a sua

mamai. Coacyaba em fareseu com a mote da sua mamai e

seu papai Guanamby pidiu pra o deus tupan istranfor

ma la em um pasaro felois e fote pra leva a sua firia

para o sell.

Deus tupoacyaba estranfor a Coacyaba em um beja-flor

Deus tupan a tenteu o desejo da coacyaba.

coacyaba asi coacyaba pote levar a sua firia pra

as duas pra la o sell.

Transcrição. Produção O.

Na produção K, abaixo, verificamos algumas dessas ocorrências. Comparando-a

com a segunda produção N, da mesma criança, ambas realizadas em junho, podemos verificar

a escrita das palavras. Na palavra “vose” (você) houve a troca do grafema “c” pelo grafema

“s”; evidências de que a criança está em processo de aprendizagem quanto ao domínio das

regras de codificação determinadas pelo contexto fonético. Percebemos a segmentação das

palavras “es ta va” (estava) e “ dei cho” (deixou) que aparece duas vezes, mas nas

ocorrências permanece a mesma escrita. Nesse caso, podemos inferir que a criança usou a fala

para auxiliá-la na escrita, uma vez que a separação silábica está correta. Comprovamos isso

pelas palavras “Mai” (mãe), que se repetiu quatro vezes no texto; nas quatro ocorrências,

percebemos a conservação da escrita. Em nosso entender, isso é um indício da presença da

oralidade no momento do registro. Observamos também a omissão de letras nas palavras

“dise” (disse) e “gaiou” (ganhou); em ambos os casos, isso está relacionado à percepção da

distinção do traço fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica.

(SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). Já no caso da palavra “casique” houve a troca do grafema “c”

pelo grafema “s”, o que é muito comum devido à realização do fonema /s/ em contexto

competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003b). Na palavra “fote” (forte) a letra “r” foi suprimida;

pela regra, a realização do fonema |R| em final de sílaba seguido de uma vogal posterior oral se

escreve com “r” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), mas ficou evidente que isso ainda não é do

domínio da criança.

Page 125: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

124

Figura 21. Produção K. Realizada em junho.

A LENDA DO GUARANÀ

MINDORÊ/ ERA/ UM/ MENINO/ MU

ITO/DO EM TE/.

E /TODOS/ FOI/ COM MONICADO/ PARA/

UMA/ LUTA/ E/ QUEIM/ PERDER/ MORRERA/ E /MINDO/

RE/. PERDEU / E /CASIQUE/:

- DISE/ VOSE/ MORRARA

Page 126: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

125

/ SUA /MAI / DISE/ NÃO/

MATE/ MEU/ FILHO/ MEU/ MARIDO/ ERA /O /MAS/ FOTE/

E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/

ES TAVA/ COM/ FOME/ E/ SUA / MAI /A CHO/FRUTA/

E RA /DURA / E/SUA / MAI /FEZ /UM/

CHA/ E / DEU/ U /CHA / / ELE/ FOI / CRE SE NO/

E /PULO NA/ OMÇA / E / EM COMTRO/ A /FILHA/

DO /CASIQUE/ E /FOI / NA /TRIBO /E / EM PLRO / PARA

E /O/ CASIQUE/ NÃO/ MATO/ E / IS PUÇOU/

E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/

A/ LUTA/ ELE / DEI CHO/ VOÇE / TEM / QUE/

LUTA/ CO TRA/ OS / GERREIROS / MAIS/ FORTE/

ELE / LUTOU/ E /GAIOU / E / DEI CHO/ ELE/ VOU TA

Transcrição. Produção K.

Page 127: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

126

Figura 22. Produção N. Realizada em junho.

A LENDA DO BOITATÁ E OS FASANDEROS

UM FAZENDERO QUE SICHAMAVA FRANCISCO QUE

QUE CUIDAVA DA FLORESTA E OS FAZENDEIROS PIGIGOSOS.

Page 128: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

127

QUE FICAVA DEITADOS NOBENBOM

QUANDO ESCURESEU ELES FOI CON PRAR GASULINAS

PARA QUENMAE A FLORESTA.

-- E FALOU DETRAS DO MATO:

NÃO QUENME E PER GUNTO QUEIN ESTA AI

SOEU BOI TATA E SAI QUENMANDO TODO MUNDO

A CA BOU A ES TORIA.

Transcrição. Produção N.

A análise mostra que o modo de aplicação das atividades relacionadas ao sistema

alfabético, privilegiando a consciência fonológica, pode influenciar diretamente o resultado.

Concordar com a importância dos aspectos fonológicos presentes neste estudo implica

compreender a relação entre fonema-grafema, e também transformar o “erro” ortográfico em

aprendizado, isto é, compreender o contexto da aprendizagem da escrita.

Registramos muitas tentativas de escrita “correta” e percebemos que alguns casos

são recorrentes: omissão e troca de letras, apoio na oralidade (que produz algumas distorções),

segmentação ou junção de palavras ou letras, terminação das palavras e nasalidade fonética,

entre outros. Consideramos que o trabalho com o gênero de texto pode minimizar essas

dificuldades iniciais e preparar as crianças para uma fase posterior. Dessa maneira, nesta

última fase de análise, ratificamos a relevância entre a produção de texto e o sistema

alfabético, sendo imprescindível que ambos façam parte das atividades desde a primeira série.

Page 129: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

128

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É consensual entre muitos autores (VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998;

SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;

COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,

2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001 entre outros) que as crianças chegam à escola com uma

bagagem própria de experiência e algumas já dominando uma variedade de usos do sistema

escrito, entre os quais rótulos, propagandas, panfletos, placas etc, enquanto outros alunos

apresentam menos familiaridade com o sistema escrito, pois seu entorno sociocultural oferece

poucas possibilidades de interação com a leitura e a escrita. Desse modo, grande é a

diversidade de saberes circulando no ambiente social da criança, inclusive na sala de aula.

Esses saberes evidenciados no cotidiano geralmente são aprendidos por experiência própria

com a participação daqueles que fazem parte da vida da criança, eles estão relacionados à

comunidade na qual a criança está inserida, uma sociedade urbanizada, com possibilidades de

interação em diversas situações mediadas por experiências com a linguagem escrita. Já o

processo de ensino-aprendizagem institucionalizado ocorre na escola.

Antes do aporte do texto nas práticas escolares, os professores da primeira série

priorizavam os aspectos gramaticais e ortográficos das palavras e das frases; ou seja, no início

da escolarização, a ênfase recaía sobre o aprendizado do código, sem a preocupação de

estabelecer vínculos entre as práticas sociais e as práticas escolares. Hoje, entre os professores

já se percebe uma movimentação, ainda discreta, no sentido de promover intervenções com

base nas características específicas do gênero que está sendo estudado na escola. Os

professores começam a se conscientizar que somente os estudos sobre o ensino do sistema

alfabético parecem insuficientes para atender às necessidades do processo da alfabetização.

Nesta pesquisa, descrevemos a proposição de encaminhamento metodológico para

o processo de apropriação da língua escrita em uma classe de alfabetização, tendo a lenda

como gênero-instrumento na ação didático-pedagógica. Desse objetivo geral, desdobraram-se

três objetivos específicos: identificar características do gênero textual lenda que justificam seu

uso com esse público; descrever o encaminhamento procedimental da atividade com o gênero

lenda no dia a dia da alfabetização, considerando a dupla via – sistêmica e textual – desse

processo; e, por último, identificar as implicações desse encaminhamento metodológico.

Page 130: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

129

Assim sendo, descrevemos o encaminhamento metodológico adotado nesta

abordagem para apropriação da língua materna. Dada a impossibilidade de descrever todas as

atividades aplicadas, concentramo-nos em apresentar um panorama acerca do gênero lenda

em sala de aula de uma primeira série, argumentando sobre a pertinência de tal escolha e

apresentando atividades de linguagem, tal como sugerido pelos PCNs no volume de língua

portuguesa para o ensino da língua materna.

Conforme já visto aqui, registramos em nosso corpus de pesquisa as atividades

iniciais para recontar o gênero lenda. As atividades foram direcionadas e envolvem a

linguagem escrita. As atividades que objetivaram o reconto da lenda coletiva e

individualmente foram descritas na análise. Consideramos a organização das situações de

escrita observadas em sala de aula, tomando como referência o gênero lenda para a aplicação

das atividades. Essa escolha foi definida com base nas ideias desenvolvidas por Vygotsky

(1999, 1998, 2008) em relação à aprendizagem da linguagem escrita, e em Bronckart (2003)

no que concerne ao conceito de texto e gêneros textuais nas relações comunicativas, bem

como nos estudos de Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) com relação à sequência didática.

Organizada a proposta de trabalho, concluímos que as atividades de reconto

privilegiaram a interação professor-aluno e aluno-aluno. Enfim, com esse conjunto de

atividades deu-se início ao processo de aprendizagem da linguagem escrita. Essas atividades

permitiram antecipar respostas, pois frequentemente era requisitado das crianças o que já

haviam aprendido sobre o gênero.

As atividades elaboradas contemplaram a linguagem verbal e a não verbal. Por

exemplo: embora à primeira vista a dramatização não envolvesse diretamente a escrita, as

crianças foram levadas a discutir a organização do gênero lenda e posteriormente aplicar esse

ensinamento no reconto escrito. Em relação à linguagem não verbal, procuramos focalizar os

personagens e seus aspectos faciais, a caracterização, a ilustração e o cenário para a

disposição da imagem, a linguagem oral, a textual, a gestual e as ilustrações dos livros.

Também nos baseamos na sequência didática proposta por Dolz, Schneuwly,

Noverraz (2004), que contribuiu para desenvolver as representações no contexto do gênero

lenda e colaborou para a reflexão sobre os valores implícitos nessas narrativas,

contextualizando-os em situações comunicativas. Convém salientar que as atividades

destinadas a caracterizar esse gênero serviram para enfatizar sua função e levar os gêneros

como opção para as práticas pedagógicas.

Dessa maneira, na busca de como ensinar a língua materna através do gênero

lenda, empreendemos uma reflexão sobre os valores, os princípios morais e, ao mesmo

Page 131: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

130

tempo, propiciamos à criança subsídios para o registro de conhecimentos, cuja finalidade é

desenvolver o complexo sistema alfabético em uma abordagem adequada aos propósitos deste

trabalho. Descrevemos o processo tanto pelo viés do gênero quanto pelo viés do sistema

alfabético. Procuramos utilizar atividades para estabelecer os princípios teóricos, articulando-

os aos procedimentos, visando a outros domínios do ensino da língua materna. Impõem-se

aqui dois esclarecimentos: a) as atividades não foram rigorosamente aplicadas à sequência

descrita, mesmo porque algumas se repetiram ao longo da sua aplicação e outras foram

criadas; b) existiu uma preocupação com a aceitação das atividades, porque entendemos que a

criança participa do seu processo de aprendizagem, exigindo flexibilidade no planejamento

pedagógico para contemplar as diversidades encontradas em sala de aula.

Ao examinar as produções escritas das crianças, nota-se que o processo escolhido

facilitou o entendimento da organização do gênero lenda, desenvolvendo as suas

características. Do ponto de vista metodológico, infere-se que inicialmente as crianças não

percebem a funcionalidade da linguagem escrita e ainda ignoram a função das letras no seu

aprendizado. Os dados revelam ainda que as atividades contribuíram para desenvolver

capacidades de escrita combinadas à produção de texto. Cada criança representou as suas

ideias por meio de sinais gráficos, isto é, ao final do processo percebeu-se que as crianças

evoluíram de uma escrita sem significado para uma escrita mais aprimorada. As estratégias e

as mediações colaboraram para organizar e sistematizar o trabalho em sala.

Assim, este estudo corroborou os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua

Portuguesa (PCNs, 1997), que têm o mérito de oferecer novas perspectivas para o ensino de

línguas. Além do mais, constitui-se em grande avanço ao apresentar os gêneros como objeto

de ensino-aprendizagem, relacionando-os às práticas sociais. Portanto, ao propor os gêneros

textuais como objeto de ensino para desenvolver a escrita, este estudo pode fornecer aos

educadores um instrumento necessário para incrementar a compreensão da leitura e da escrita,

sobretudo a prática de produção textual.

Limitamo-nos aqui a descrever o encaminhamento teórico-metodológico de uma

classe de alfabetização, mas cabe um aprofundamento maior, através de pesquisas específicas

sobre os gêneros nas modalidades de ensino oferecidas para que possamos detectar e evitar os

eventuais equívocos, os problemas, as necessidades e as singularidades de tal prática de

ensino. Diante dessa realidade, enfatizamos a importância da fundamentação teórica em nossa

pesquisa, principalmente no processo ensino-aprendizagem, buscando ações que nos ajudaram

a superar as dificuldades encontradas no ambiente escolar. Sugerimos o gênero lenda como

Page 132: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

131

uma das possibilidades nas práticas docentes, porquanto sua utilização nos levou a comprovar

que ele pode facilitar a compreensão da língua portuguesa.

Page 133: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

132

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação

Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p, 261-306.

BALTAR, Marcos. Sobre os gêneros textuais. Disponível em

<http://hermes.ucs.br/cchc/dele/usc.produtore/page/sobregeneros.>. Acesso em: 16 de

setembro de 2008.

BORTOLOTTO, Nelita. A interlocução na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BRAIT, Beth. O estudo dos gêneros no quadro do ISD: provocando debates. In:

GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos; MACHADO, Anna Rachel; COUTINHO, Antonia

(Org.) O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas.

Campinas, São Paulo, Mercado de Letras, 2007, p, 121-125.

Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Ministério da Educação e

da Cultura. Secretaria de Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

Brasil. Pró-letramento: Alfabetização e Linguagem. Ministério da Educação e da Cultura.

Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEF, 2007.

BRONCKART, J. -P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo

sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 2003.

CAMARA, J. Mattoso Jr. Princípios de linguística geral. RJ: Padrão Livraria Editora, 1977.

CAMARA, J. Mattoso Jr. Dicionário de linguística e gramática. Petrópolis, RJ: Vozes,

1978.

CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar. Petropólis, RJ: Vozes, 2005.

COELHO, Maria do Carmo Pereira. As narrações da cultura indígena da Amazônia:

Lendas e histórias. Tese (Doutorado em Lingüística aplicada e Estudos da Linguagem) -

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo. 2003.

____. Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Língua Portuguesa I e II. In: FÈLIX, Joanna

d’Arc Bicalho (Org.). Aprendendo a aprender. UniCEUB: DF, 2004, V,7 p. 155 a 239.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7ª ed. São Paulo:

Ática, 2000.

COLELLO, Silvia M. Gasparian. Alfabetização em questão. RJ: Paz e Terra, 1995.

CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. O gênero quarta-capa no ensino de inglês. In DIONÍSIO,

A.P. MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de

Janeiro: Lucerna, 2005. P.95-106.

Page 134: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

133

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernardo. Sequências didáticas

para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernardo;

DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e organização: Roxane

Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p, 95-128.

FERREIRO, Emilia. Alfabetização em processo. São Paulo: Cortez, 2006.

GOÉS, Lucia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira,

1991.

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Alfabetização: a criança e a linguagem escrita.

Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2003.

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. A escrita Infantil. São Paulo: Cortez, 2008.

GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. Construindo propostas de didatização de gênero:

desafios e possibilidades. In: BONINI, Aldair; FURLANETTO, Maria Marta (Orgs.).

Linguagem em (Dis) Curso. Turarão/SC: Unisul, 2006.

GUIMARÃES, Ana. M. M; CAMPANI-CASTILHOS, Daiana; DREY, Rafaela F. Gêneros

de textos no dia-a-dia do Ensino Fundamental. Campinas, São Paulo, Mercado de letras.

2008.

HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. São Paulo: Parábola, 2003.

INOCENTI, Paulo. Folclore Infantil. São Paulo, Dedo verde, 2005.

KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2007.

KRAMER, Sônia. A infância e sua singularidade. In: Ensino Fundamental de nove anos:

Orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Ministério da Educação.

Secretaria de Educação Básica. Brasília- DF, 2007.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2003.

LIBERALLI, Fernanda Coelho. O diário como ferramenta para a reflexão crítica. Tese

(Doutorado em Lingüística aplicada ao Ensino de Línguas) - Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo: São Paulo. 1999.

LUDKE, Menga, ANDRE, Marli. A pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São

Paulo: EPU, 1986.

LURIA. A.R. O desenvolvimento da escrita na criança. In Vygoysky, L.S, LURIA, A.R,

LEONTIEV. A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizado. São Paulo: Ícone, 1998.

P.143-189.

MACHADO, Ana Maria. Clássicos da verdade: Mitos e lendas greco-romanas. 2ª Ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2003. (Literatura em minha casa- 4ª Série: v. 4. Clássico Universal).

Page 135: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

134

MACHADO. A.R. A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In MEUER,

J.L, BONINI, Adair, MOTTA-ROTH, Désirée. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates.

São Paulo: Parábola, 2005. P.237-259.

MARCUSCHI, Luis Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In DIONÍSIO,

A.P. MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de

Janeiro: Lucerna, 2002. P.19-36.

____. Da fala para a escrita. São Paulo: Cortez, 2005.

MASSINI-CAGLIARI, Glaís. O texto na alfabetização: coesão e coerência. Campinas, São

Paulo: Mercado das Letras, 2001.

MATÊNCIO, Maria de Lourdes M. Leitura, produção de textos e a escola: reflexões sobre

o processo de letramento. Campinas, São Paulo: Mercado das letras, 1994.

MOLL, Luis C. Vygotsky e a educação: implicações pedagógicas da psicologia sócio-

histórica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

OLIVEIRA, José Coutinho. Folclore Amazônico. Belém, Pará: São José, 1951. Vol. I.

OLIVEIRA, José Coutinho. Folclore Amazônico. Belém, Pará: Imprensa Universitária, 1965.

Vol. II.

OLIVEIRA, Martha Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-

histórico. São Paulo: Scipione, 2008.

POERSH, José Marcelino: Pode-se alfabetizar sem conhecimento lingüístico? In: TASCA

Maria; POERSH, José Marcelino (orgs.). Suportes Lingüísticos para a alfabetização. Porto

Alegre: Sagra 1990.

REGO, Teresa C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1999.

ROJO, Roxane. Modos de transposição dos PCNs as práticas de sala de aula: progressão

curricular e projetos. In: ROJO, Roxane. A prática de linguagem em sala de aula:

praticando os PCNs. Campinas, São Paulo: Mercado das letras, 2002.

SANTOS, Acácia A. Angeli dos; PRIMI, Ricardo; TAXA, Fernanda de O. S;

VENDRAMINI, Claudette M. M. O Teste de Cloze na Avaliação da Compreensão em

Leitura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(3), p. 549-560.

SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. 2ª ed.. São Paulo: Nacional, 1955.

SOUZA, Lusinete Vasconcelos. As proezas das crianças em textos de opinião. Campinas,

São Paulo: Mercado das letras, 2003.

SCHNEUWLY, Bernardo. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e

ontogenéticas. SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na

Page 136: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

135

Escola. Tradução e organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de

Letras, 2004.

SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução

e organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São

Paulo: Contexto. 2003ª.

____. Guia prático de alfabetização. São Paulo: Contexto. 2003b.

____. Consciência fonológica e os princípios do sistema alfabético do português do

Brasil. Educação a Distância Tupy: SOCIESC, 2009.

SILVA, Walde-Mar de Andrade. Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros. 2. Ed. São Paulo:

FTD, 1999.

VYGOTSKY, Lev Lemyonovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,

1999.

VYGOTSKY, Lev Lemyonovich. A aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade

escolar. In Vygoysky, L.S, LURIA, A.R, LEONTIEV. A.N. Linguagem, desenvolvimento e

aprendizado. São Paulo: Icone, 1998. P.103-117.

Page 137: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

136

ANEXOS

Page 138: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

137

ANEXO 1 – PRODUÇÃO A

Produção A. Realizada em março.

Era uma vez índio.

Ele foi pra guerra e morreu.

Page 139: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

138

ANEXO 2 – PRODUÇÃO B

Produção B. Realizada em março.

Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.

Page 140: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

139

ANEXO 3- PRODUÇÃO C

Produção C. Realizada em março.

Era uma vez uma índia chamada Potyra.

Ela era apaixonada por Itagiba.

Itagiba foi pra guerra e morreu.

Page 141: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

140

ANEXO 4 – PRODUÇÃO D

Produção D. Realizada em junho.

Page 142: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

141

ANEXO 5 – PRODUÇÃO E

Produção E. Realizada em junho.

Page 143: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

142

ANEXO 6 – PRODUÇÃO F

Produção F. Realizada em junho.

Page 144: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

143

ANEXOS 7 – PRODUÇÃO G

Produção G. Realizada em junho.

Page 145: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

144

ANEXO 8 – PRODUÇÃO H

Produção H. Realizada em novembro.

Page 146: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

145

ANEXO 9 – PRODUÇÃO I

Produção I. Realizada em novembro.

Page 147: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

146

ANEXO 10 – PRODUÇÃO J

Page 148: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

147

Produção J. Realizada em novembro.

Page 149: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

148

ANEXO 11 – PRODUÇÃO K

Produção K. Realizada em novembro.

Page 150: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

149

ANEXO 12- PRODUÇÃO L

Produção L. Realizada em novembro.

Page 151: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

150

ANEXO 13 – PRODUÇÃO M

Produção M. Realizada em novembro.

Page 152: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

151

ANEXO 14 – PRODUÇÃO N

Produção N. Realizada em novembro.

Page 153: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

152

ANEXO 15 – PRODUÇÃO O

Produção O. Realizada em novembro.

Page 154: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

153

ANEXO 16 – PRODUÇÃO P

Produção P. Realizada em novembro.

Page 155: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

154

ANEXO 17 – PRODUÇÃO Q

Produção Q. Realizada em novembro.

Page 156: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

155

ANEXO 18 – PRODUÇÃO R

Produção R. Realizada em novembro.

Page 157: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

156

ANEXO 19- PRODUÇÃO S

Produção S. Realizada em junho.

Page 158: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

157

ANEXO 20 – PRODUÇÃO T

Produção T. Realizada em novembro.

Page 159: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

158

ANEXO 21 – PRODUÇÃO U

Produção U. Realizada em novembro.

Page 160: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

159

ANEXO 22- Coacyaba - O Primeiro Beija-Flor

Walde-Mar Andrade e silva

Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em

borboletas. É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se

com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.

Coacyaba, uma bondosa índia, ficara viúva muito cedo, passando a viver

exclusivamente para fazer feliz sua filhinha Guanamby. Todos os dias passeava com a menina

pelas campinas de flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que

o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.

Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando

que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo

cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se tornou borboleta, ficando

aprisionada dentro de uma flor próxima à sepultura da mãe, para assim permanecer ao seu

lado. Enquanto isso, Coacyaba, em forma de borboleta, voava entre as flores, colhendo seu

néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanamby, ouviu um choro triste, que logo

reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu, então,

ao Deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse levar a filha para o céu.

Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a

num beija-flor, podendo, assim, realizar o seu desejo.

Desde então, quando morre uma criança índia órfã de mãe, sua alma permanece

guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe, em forma de beija-flor, venha buscá-la,

para juntas voarem para o céu, onde estarão eternamente.

Page 161: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

160

ANEXO 23 – As lágrimas de Potira

Theobaldo Miranda Santos

A descoberta das minas de diamantes, no Brasil, deu origem a diversas lendas.

Vejamos uma das interessantes:

Há muito tempo, vivia à beira de um rio uma tribo de índios. Dela fazia parte um

casal muito feliz: Itagibá e Potira. Itagibá, que significa braço forte, era um guerreiro robusto

e destemido. Potira, cujo nome quer dizer flor era uma índia jovem e formosa.

Vivia o casal tranqüilo e venturoso, quando rebentou uma guerra contra uma

tribo vizinha. Itagibá teve de partir para a luta. E foi com profundo pesar que se despediu da

esposa querida e acompanhou os outros guerreiros. Potira não derramou uma só lágrima, mas

seguiu, com os olhos cheios de tristeza, a canoa que conduzia o esposo, até que a mesma

desapareceu na curva do rio.

Passaram-se muitos dias sem que Itagibá voltasse à taba. Todas as tardes a

índia esperava, à margem do rio, o regresso do esposo amado. Seu coração sangrava de

saudade. Mas permanecia serena e confiante, na esperança de que Itagibá voltaria à taba.

Finalmente, Potira foi informada de que seu esposo jamais regressaria. Ele

havia morrido como um herói, lutando contra o inimigo. Ao ter essa notícia, Potira perdeu a

calma que mantivera até então e derramou lágrimas copiosas.

Vencida pelo sofrimento, Potira passou o resto de sua vida, à beira do rio,

chorando sem cessar. Suas lágrimas puras e brilhantes misturavam-se com as areias brancas

do rio.

A dor da índia impressionou Tupã, o rei dos deuses. E este, para perpetuar a

lembrança do grande amor de Potira, transformou suas lágrimas em diamante. Daí a razão

pela qual os diamantes são encontrados entre os cascalhos dos rios e regatos. Seu brilho e sua

pureza recordam as lágrimas de saudade da infeliz Potira.

Page 162: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

161

ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada

Walde-Mar de Andrade e Silva

Um índio da tribo Kamaiurá iniciou a construção de uma canoa com a casca do

jatobá. Ao terminá-la, retornou para junto de sua mulher, que há pouco dera à luz, lá

permanecendo por alguns dias. Algum tempo depois, voltando à mata onde havia deixado a

canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera.

Talvez a tivessem roubado ou algum animal a tivesse destruído. Como poderia pescar agora?

Absorto, despertou com um ruído. Foi grande o seu espanto ao perceber que em

sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele

construíra, agora com vida e olhos na proa. Talvez houvesse se transformado em um animal,

pensou. Deu-lhe, então, um nome: Igaranhã - o Jacaré.

Entrou na canoa, ordenando-lhe que seguisse em direção ao lago. Assim que

Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e

tamanhos, que saltavam sem cessar da água para dentro da embarcação. Os primeiros, a

própria canoa devorou, ficando, no entanto, a maior parte para o índio.

À sua mulher, maravilhada, falou apenas que havia encontrado um lugar ideal

para pesca.

Dias depois, retornando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore.

Como por encanto, a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago, e o fenômeno

repetiu-se. O índio, ambicioso, recolheu rapidamente os peixes, sem deixar a Igaranhã sua

parcela do alimento. Esta, então, muito contrariada, acabou por devorar o seu próprio dono.

Page 163: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

162

ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo

Walde-Mar Andrade e Silva

Há muito tempo, muito tempo, os índios não conheciam o fogo, alimentando-se

de polpa de madeira, frutos silvestres e carne, que preparavam sobre pedras aquecidas pelo

Sol.

Certo dia, dois meninos Kaiapós caminhavam pela floresta, quando um deles

percebeu, sobre um rochedo, um ninho de araras-vermelhas. Pediu ajuda ao companheiro para

encostar um tronco na rocha, conseguindo assim alcançar o ninho. Mas, ao subir, esbarrou

numa pedra, que caiu e feriu o amigo. Com raiva, o menino atingido tirou dali o tronco,

deixando o outro sem meios para descer.

Após algumas horas, apareceu no local uma onça macho. Ao ver a sombra do

menino, a onça pôde localizá-lo sobre o rochedo, ao lado do nunho das araras-vermelhas,

pássaros que sabiam carregar o fogo Em troca de ajuda, a onça pediu que o menino lhe

jogasse os filhotes. Concordando com a proposta, o índio pôde finalmente descer.

Por haver permanecido muito tempo exposto ao calor, o menino ficou corado,

fazendo a onça crer que se tratava do filho do Sol. Convidou-o para conhecer sua toca, onde a

onça fêmea passava o dia assando carne ao fogo e fiando algodão. Apresentou a ela, pedindo

que o tratasse muito bem, e saiu em seguida para caçar. A fêmea, entretanto pôs-se a ameaçá-

lo, rugindo e lhe mostrando os dentes.

Ao tomar conhecimento disso, a onça macho resolveu ensinar o menino a usar o

arco e flecha para que pudesse se proteger. No dia seguinte, assim que o macho saiu, a fêmea

tentou atacar o índio, que com muita habilidade, matou a inimiga à primeira flechada.

Ao voltar, a onça macho soube o que ocorrera, aprovando e elogiando o menino,

que facilmente tudo havia aprendido. Pediu-lhe que voltasse à sua aldeia, levando o fuso e

uma tocha, e cuidasse para que a tocha não se apagasse.

Regressando aos seus, o indiozinho os ensinou a usar o fogo e depois a fiar o

algodão.

Page 164: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

163

Em comemoração, fizeram uma grande festa, na qual o biju, a mandioca, a carne e

o peixe foram preparados ao fogo, que mantiveram aceso por muito tempo, alimentando-o

com lenha seca.

Certo dia, porém, a chuva apagou a chama, deixando todos muito tristes. Então,

Begorotire, o homem-chuva, desceu do céu para ensinar-lhes a produzir fogo com dois

pedaços de madeira: segurando, com os pés, as extremidades de um deles, que deveria Ter um

orifício no centro, faria girar entre as mãos o outro, encaixando no primeiro, até o fogo surgir.

Nesse dia, voltou a alegria entre os índios Kaiapós.

Page 165: UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SEBASTIANA GENY DOS ...pergamum.unisul.br/pergamum/pdf/103992_Sebastiana.pdf · universidade do sul de santa catarina sebastiana geny dos santos

164

ANEXO 26 - Arutsãm – o sapo astucioso

Walde-Mar Andrade e Silva

O sapo Arutsãm foi ao encontro de seu cunhado onça, para dele tomar

emprestado um arco e uma gaita de bambu.

Aproximando do seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do

perigo que estava correndo. Mesmo assim, prosseguiu.

A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago,

cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado. Arutsãm, desconfiado,

manteve-se atento.

Ao anoitecer, a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando

o momento ideal para devorá-lo.

Arutsãm, entretando, passou, sobre seus olhos, a parte fosforescente de um

vaga-lume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.

No dia seguinte, já de posse do arco e da gaita de bambu, despediu-se

agradecido de seu anfitrião.

Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam

com que ela batesse as patas no chão, acusando sua proximidade.

Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a

quem seu inimigo incansável pedira que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago,

saltando velozmente para a outra margem, escapando à sua perseguição.

Alcançando a aldeia das cobras, apressaram-se em quebrar todas as panelas de

barro de suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas, o perseguiram enfurecidas. Nesse momento,

partiu Arutsãm para seu grande salto: como num toque de mágico, pulou a Lua, onde,

zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita de bambu.

Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a Lua, lamentando o fracasso

do seu traidor.