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0 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ SAMANTHA DANIELLE ALVES REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: Uma análise sob a ótica da teoria do Direito Penal do Inimigo São José 2012

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

SAMANTHA DANIELLE ALVES

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: Uma análise sob a ótica da teoria do Direito Penal do Inimigo

São José

2012

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SAMANTHA DANIELLE ALVES

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: Uma análise sob a ótica da teoria do Direito Penal do Inimigo

Monografia apresentada à Universidade do

Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito

parcial a obtenção do grau em Bacharel em

Direito.

Orientador: Prof. MSc. Juliano Keller do Valle

São José 2012

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SAMANTHA DANIELLE ALVES

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: Uma análise sob a ótica da teoria do Direito Penal do Inimigo

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Direito Penal e Direito Processual Penal

São José, 20 de novembro de 2012.

Prof. MSc. Juliano Keller do Valle UNIVALI – Campus do Kobrasol

Orientador

Prof. MSc. Marciane Z. Ferreira UNIVALI Membro

Prof. MSc. Jonas Machado Ramos CESUSC Membro

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Dedico este trabalho a meus pais, com amor.

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AGRADECIMENTOS

Trabalhos desta magnitude envolvem muito mais do que horas de intensa

pesquisa, leitura e elaboração de texto. Há em cada entrelinha muitas histórias de

renúncias, noites mal dormidas, conversas que sempre começavam com “meu Deus,

eu preciso terminar minha monografia” e a inconfundível sensação de dever

cumprido. Em todos esses momentos, que tão brevemente intercalaram desespero e

euforia, muitas pessoas estiveram ao meu lado. São a elas que eu agradeço.

Agradeço aos meus pais, Saulo Rogério Alves e Tania Regina Pereira Alves,

pelo amor incondicional. Hoje concluo o curso de Direito estando aprovada no

temível Exame da OAB graças às escolhas feitas por vocês. Muito obrigada por

terem plantado em mim o gosto pelo saber e o prazer pela leitura, por se esforçarem

tanto em minha educação, por apoiarem as minhas escolhas e principalmente por

acreditarem no meu sucesso. Lembrem-se sempre que os filhos são o reflexo dos

pais. Desejo que a vida os trate muito bem.

Seria injusto não agradecer minha tia Solange Maria Alves, que com tanto

amor foi corresponsável pela minha criação. Obrigada por tudo que me ensinastes,

por doares tanto sem pedir nada em troca. Espero que ainda possamos comemorar

muitas vitórias juntas.

Meus amados primos Guilherme Sant’Anna Alves e Maria Olívia Alves Pires,

que para mim sempre serão o Gui e a Neném. Muito obrigada por ajudarem, de

forma tão singular e especial, a prima nerd de vocês.

Ao professor Juliano Keller do Valle agradeço pela excelente orientação.

Muito obrigada por me apresentar ao maravilhoso mundo do garantismo penal e

pelas indicações de leitura. Sair da zona de conforto para ensinar aos seus alunos

de graduação que o Direito Penal e Processual Penal pode ser estudado por um

viés democrático é um ato de coragem e esperança. Carrego a certeza de que

seremos profissionais defensores das garantias individuais e lutaremos

incessantemente contra todo o sistema para conseguirmos mudar o cenário jurídico

pátrio. Afinal, ser etiquetado como garantista deve ser motivo de satisfação. “Nós

somos o futuro da nação”, professor!

À professora Helena Nastassya Paschoal Pítsica, pelo fundamental apoio.

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Agradeço ao Otávio José de Novelli pela fundamental ajuda na confecção

deste trabalho. Somos a prova de que a amizade é uma miscelânea de amor e ódio.

À Juliana Hermes Luz agradeço pela amizade sincera.

A todos os meus familiares e queridos amigos que contribuíram para minha

formação acadêmica e conclusão deste trabalho, meus sinceros agradecimentos.

Deixo para agradecer por último à pessoa que mais me ajudou durante a

confecção deste trabalho. Ao Everton Veber, grande amigo e companheiro de

jornada, agradeço por compartilhar comigo as melhores coisas da vida. Encontrei

em ti uma fonte inesgotável de carinho, paciência, incentivo, respeito e amor.

Obrigada por estar sempre ao meu lado. “Somos eu e você contra o mundo!”

E aos que lerão o meu trabalho.

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“Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades cometidas

contra os outros, perdemos também a nossa condição de seres humanos.”

Vladimir Herzog

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade

pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

São José, 20 de novembro de 2012.

Samantha Danielle Alves

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RESUMO

Em virtude do crescente domínio das organizações criminosas nos presídios,

ilustrado pela megarrebelião comandada pelo Primeiro Comando da Capital em

fevereiro de 2001, o Estado de São Paulo estabeleceu o Regime Disciplinar

Diferenciado nas unidades carcerárias que abrigavam os presos de alta

periculosidade por meio da Resolução da Secretaria de Administração Penitenciária

n. 26. Por entender que a adoção do referido instituto seria eficiente na manutenção

da ordem interna das unidades carcerárias e no combate à criminalidade

organizada, o Estado promulgou a Lei n. 10.792/2003, alterando a redação do artigo

52 da Lei n. 7.210/1984 e passando a instituir o Regime Disciplinar Diferenciado

como sanção administrativa em âmbito nacional. Ocorre que o referido instituto

suscita severas críticas doutrinárias, mormente no tocante à possível violação dos

direitos individuais tutelados constitucionalmente. A monografia averigua se o

Regime Disciplinar Diferenciado se coaduna com o Estado de Direito ou constitui

elemento do Direito Penal do Inimigo, utilizando o método de abordagem dedutivo,

procedimento monográfico e técnica de pesquisa de documentação indireta

documental e bibliográfica, e documentação direta intensiva em sua confecção. A

análise do objeto central da pesquisa é permeada pela teoria do Garantismo Penal,

modelo de responsabilização penal característico do Direito Penal Mínimo, que

impõe severos limites legais à atuação do poder punitivo estatal visando garantir os

direitos fundamentais dos cidadãos. Contrapondo tal sistema, a teoria do Direito

Penal do Inimigo, fruto do Movimento Lei e Ordem, classifica os indivíduos em

pessoas e não pessoas de acordo com sua periculosidade, sendo empregado às

últimas um tratamento mais rigoroso sob o discurso da garantia da segurança

nacional em detrimento de seus direitos individuais tutelados constitucionalmente.

Conhecendo as duas teorias, resta saber em qual delas o Regime Disciplinar

Diferenciado encontra legitimidade e se o instituto é compatível com o atual sistema

penal.

Palavra-chave: Regime Disciplinar Diferenciado. Garantismo Penal. Direito Penal do

Inimigo. Direitos fundamentais.

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ABSTRACT

In virtue of the increasing reign of the criminal organizations in the prisons, illustrated

by the mega-rebellion commanded by the First in Command of the Capital in

February 2001, the São Paulo State established the Differentiated Disciplinary Polity

in the prison units that held the prisoners of high dangerousness through the

Department of Correction’s Resolution n.26. By understanding the acceptance of the

referred institute would be efficient in the maintenance of the internal order in the

prison units and in the fight against the organized criminalization, the State

promulgated the Law n. 10.792/2003, alternating the wording of the article 52 of the

Law n. 7.210/1984 and started to institute the Differentiated Disciplinary Polity as the

administrative sanction of the national ambit. Occurs that the said institute raises

many doctrinal critics, especially in the touching of the possible violation of the

individual rights tutored constitutionally. The monograph ascertains if the

Differentiated Disciplinary Polity is consistent with the Right State or constitutes

elements of the Enemy Criminal Rights, utilizing the deductive approach method,

monographic procedure and searching technique of indirect documentation of

documents and bibliography, and intensive direct documentation in its making. The

analysis of the Research’s Main Object is permeated with the theory of the penal

guarantee, model of penal characteristic accountability of the Minimal Penal Rights,

that imposes several legal limits to the action of the state-owned punishing power

trying to guarantee the fundamental rights of the citizens. Opposing that system, the

theory of the Enemy Criminal Rights, product of the Law and Order Movement,

classifies the individual as people and non-people according to its dangerousness,

being implied into the last the last ones a very strict over the speech of guarantee of

the national security in detriment of its individual rights tutored constitutionally.

Knowing of those two theories, it only remains knowing in which of those the

Differentiated Disciplinary Polity finds itself rightfully and if the institute is compatible

with the actual penal system.

Keywords: Differentiated Disciplinary Polity. Penal guarantee. Enemy Criminal

Rights. Fundamental Rights.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

1 TEORIA DO GARANTISMO PENAL ..................................................................... 14

1.1 DIREITO PENAL MÍNIMO VERSUS DIREITO PENAL MÁXIMO ......................... 14

1.2 CONCEITOS DE VALIDADE E VIGÊNCIA DA NORMA JURÍDICA:

REDEFINIÇÕES PROPOSTAS POR LUIGI FERRAJOLI EM CONTRAPONTO AO

MARCO TEÓRICO PROPOSTO POR HANS KELSEN ............................................. 21

1.3 DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL ............................................................ 24

1.4 FINALIDADE DA PENA SEGUNDO A TEORIA DO GARANTISMO PENAL: O

DIREITO PENAL COMO A LEI DO MAIS FRACO. .................................................... 28

1.4.1 A pena como retribuição ................................................................................... 29

1.4.2 A pena como prevenção geral .......................................................................... 30

1.4.3 A pena como prevenção especial .................................................................... 32

1.4.4 A função da pena no garantismo penal ............................................................ 34

2 REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COMO SANÇÃO DISCIPLINAR ......... 36

2.1 BREVES NOTAS ACERCA DA EXECUÇÃO PENAL .......................................... 36

2.2 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS PENAIS: AS REGRAS DO JOGO DO PROCESSO

PENAL ...................................................................................................................... 38

2.2.1 Princípio da jurisdicionalidade .......................................................................... 39

2.2.2 Princípio acusatório .......................................................................................... 41

2.2.3 Princípio da presunção de inocência ................................................................ 43

2.2.4 Princípio do contraditório e ampla defesa ........................................................ 44

2.2.5 Princípio da motivação das decisões judiciais .................................................. 45

2.2.6 Princípio da humanidade .................................................................................. 46

2.3 A SANÇÃO ORTOPÉDICA DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL: O REGIME

DISCIPLINAR DIFERENCIADO ................................................................................ 47

2.2.1 Origem histórica ............................................................................................... 48

2.2.2 Hipóteses legais de cabimento e características do Regime Disciplinar

Diferenciado .............................................................................................................. 51

3 REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA

TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO ............................................................ 56

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3.1 DIREITO PENAL DO INIMIGO ............................................................................ 56

3.1.1 A legitimação da guerra conferida por Günther Jakobs.................................... 57

3.1.2 Crítica ao Direito Penal do Inimigo: impossibilidade de existência concomitante

com o Direito Penal do Cidadão ................................................................................ 62

3.2 O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COMO FRUTO DO DIREITO PENAL

DE EMERGÊNCIA .................................................................................................... 66

3.3 INCOMPATIBILIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COM A

TEORIA DO GARANTISMO PENAL: VIOLAÇÃO AOS AXIOMAS PROPOSTOS POR

LUIGI FERRAJOLI .................................................................................................... 69

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 75

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 80

ANEXOS ................................................................................................................... 85

ANEXO A – CARTA DE PRINCÍPIOS DO MOVIMENTO ANTITERROR ..................................... 85

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INTRODUÇÃO

Introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 10.792/2003, o

Regime Disciplinar Diferenciado suscita severas críticas doutrinárias, mormente sob

o argumento de que viola as garantias individuais tuteladas constitucionalmente.

Objetiva-se com o presente trabalho de iniciação científica averiguar se o referido

instituto se coaduna com a teoria que fundamenta o Direito Penal do Inimigo, que

legitimaria a violação dos direitos humanos fundamentais e, por conseguinte,

pacificaria a mencionada discussão doutrinária.

O capítulo inaugural tratará sobre a teoria do Garantismo Penal, consolidando

o marco teórico que permeará o estudo do objeto central da monografia.

Preambularmente serão apresentadas as noções de Direito Penal Mínimo e Direito

Penal Máximo, com o intuito de demonstrar a necessidade da adoção de um sistema

de responsabilização penal em detrimento do outro em um Estado que intenciona

ser democrático. Serão apresentadas em sequência as definições dos termos

validade e vigência da norma jurídica e as teorias sobre a finalidade da pena, cuja

análise será de vital importância para a argumentação final do trabalho. Para o

estudo destes temas será utilizada a obra de Luigi Ferrajoli como base, eis que foi o

jurista responsável pela elaboração teórica do garantismo penal. Ademais, o

primeiro capítulo abordará o papel do Direito Penal no controle da sociedade, a fim

de ilustrar de modo introdutório a quem serve este ramo do Direito.

Superada a apresentação do marco teórico, o segundo capítulo analisará o

objeto central da pesquisa científica. De plano, com o intuito de contextualizar o

cenário no qual o instituto está localizado, serão pontualmente comentados os

artigos inaugurais da Lei n. 7.210/1984 – Lei de Execuções Penais. Não olvidando

que a execução penal constitui fase do processo penal e, portanto, é elemento

inserido no ramo do Direito Processual Penal, será realizada breve explanação dos

princípios que devem ser observados por configurarem verdadeiras regras do jogo.

Do mesmo modo que no primeiro capítulo, para a abordagem deste último tema será

utilizada a obra de Aury Lopes Júnior, uma vez que o autor é ferrenho defensor das

garantias individuais. Por fim, haverá a exposição da origem histórica do Regime

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Disciplinar Diferenciado, com ulterior análise de suas hipóteses de cabimento e

características.

Por derradeiro, o terceiro capítulo abordará o objetivo específico do trabalho.

Precederá à análise do tema da monografia assuntos que estão a ele diretamente

vinculados. Inicialmente, sob o tópico denominado Regime Disciplinar Diferenciado

como fruto do Direito Penal de emergência, será apresentado o conceito de

Processo Penal de emergência proposto por Fauzi Hassan Choukr, a fim de

averiguar a realidade fática da assertiva. Em seguida, se procederá à breve

explanação acerca do chamado movimento lei e ordem, para que se compreenda o

seu alcance no cenário jurídico brasileiro. Finalmente será exposta a teoria

formulada por Günther Jakobs que visa legitimar o Direito Penal do Inimigo, com o

intuito de identificar as possíveis semelhanças com o instituto do Regime Disciplinar

Diferenciado.

Reserva-se ao final espaço para as conclusões, onde serão apresentados os

resultados da pesquisa e a apreciação pessoal da autora sobre o tema.

No tocante à parte metodológica, importante mencionar os métodos que

serão utilizados. Será realizada a abordagem dedutiva, partindo do estudo dos

objetivos gerais para se chegar à análise do objetivo específico e conclusão do

trabalho. O procedimento será o monográfico, eis que será estudado determinado

elemento do Direito Penal, sendo os capítulos confeccionados por meio da técnica

de pesquisa de documentação indireta documental, mormente com o exame da Lei

n. 7.210/1984, e bibliográfica, com a utilização das doutrinas referentes às teorias

que serão discutidas e ao próprio instituto do Regime Disciplinar Diferenciado. Em

determinado ponto, será utilizada a técnica de pesquisa de documentação direta

intensiva, porquanto será reproduzido o conteúdo da palestra realizada no

Congresso dos Centros Acadêmicos de Direito de Santa Catarina.

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1 TEORIA DO GARANTISMO PENAL

Desenvolver o estudo crítico acerca do Regime Disciplinar Diferenciado,

analisando-o posteriormente sob o enfoque da teoria do Direito Penal do Inimigo,

exige a prévia compreensão do sistema penal no qual esse instituto está inserido.

Objetivando demarcar o posicionamento teórico e remetendo o leitor às razões pelas

quais fora o escolhido para a confecção deste trabalho científico, o primeiro capítulo

aborda aspectos pontuais da teoria do Garantismo Penal.

Escolheu-se a obra intitulada Direito e razão: teoria do Garantismo Penal de

autoria de Luigi Ferrajoli para servir como base de estudo do presente capítulo,

porquanto apresenta minuciosamente a construção teórica do garantismo penal.

Serão destacados os conceitos de Direito Penal máximo e Direito Penal Mínimo,

apresentada a (re)definição dos conceitos de vigência e validade da norma jurídica

proposta pelo jurista, situado o papel do Direito Penal no controle social e analisada

a justificativa garantista acerca da pena criminal. Por oportuno, importante salientar

que a pretensão não é a de esgotar os temas a seguir explanados, sendo notória

sua complexidade e extensão, mas sim a de verificar se o objeto central da pesquisa

se amolda aos pilares estabelecidos pela teoria garantista.

1.1 DIREITO PENAL MÍNIMO VERSUS DIREITO PENAL MÁXIMO

No sistema político do Estado contemporâneo, as ciências criminais são

responsáveis por indicar as condutas humanas que configuram ilícitos penais,

realizar a prevenção dos crimes, aplicar e justificar as sanções criminais e,

sobretudo, estabelecer limites ao poder punitivo estatal, restringindo sua atuação

principalmente em virtude da proteção aos direitos individuais constitucionalmente

assegurados1. Atento a essa última característica, Luigi Ferrajoli identificou dois

1 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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modelos de sistema de responsabilização penal que representam extremos opostos

quanto á restrição do poder estatal2, a seguir comentados.

Denominou-se Garantismo Penal o modelo teórico caracterizado por

salvaguardar os direitos fundamentais, entendidos como sendo “[...] todos os direitos

subjetivos que correspondam universalmente a todos os seres humanos enquanto

dotados de status de pessoa [...]”3. Seu objetivo primordial é restringir o exercício do

poder punitivo estatal por meio da “[...] radicalização dos princípios da legalidade dos

delitos, da proporcionalidade e da humanidade das penas e da jurisdicionalidade dos

órgãos de decisão”4.

Luigi Ferrajoli, jurista responsável pela elaboração teórica desse sistema,

assim conceituou Garantismo Penal:

[...] significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade5.

Alexandre Morais da Rosa, com propriedade, lecionou que:

O modelo de Direito preconizado pela Teoria do Garantismo está baseado no respeito á dignidade da pessoa humana e seus Direitos Fundamentais, com sujeição formal e material das práticas jurídicas aos conteúdos constitucionais [como será visto em momento oportuno], aqui trabalhados dissociados de uma visão essencialista. [...] O garantismo jurídico baseia-se, portanto, nos direitos individuais – vinculados à tradição iluminista – com o escopo de articular mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano, sofrendo, como curial, as influências dos acontecimentos históricos, especificamente a transformação da sociedade relativamente à tutela dos direitos sociais e negativos de liberdade, bem assim do levante neoliberal que, na esfera do Direito Público apresenta perspectiva de exclusão social e mitigação das garantias individuais [...]6.

2 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2010. 3 ROSA, Alexandre Morais da.Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material:

aportes hermenêuticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 07 – grifos originais. 4 CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.

107. 5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 312. 6 ROSA, Alexandre Morais da.Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material:

aportes hermenêuticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 05-06 – grifos originais.

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Com efeito, o sistema garantista corresponde ao máximo grau de tutela dos

direitos individuais quando da responsabilização criminal do cidadão, representando

o extremo oposto correspondente à máxima limitação do poder punitivo estatal7.

Essa conclusão é fundamentada em razão de que o modelo teórico garantista

[...] apresenta as dez condições, limites ou proibições que identificamos como garantias do cidadão contra o arbítrio ou o erro penal. Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente preestabelecidos8.

As mencionadas condições são chamadas de dez axiomas do garantismo

penal, e prescrevem o que deve ocorrer para a afirmação da responsabilidade penal

do indivíduo e consequente aplicação da respectiva sanção. Portanto, segundo o

entendimento explicitado por Luigi Ferrajoli, o Direito Penal e o Direito Processual

Penal deverão respeitar aos princípios: 1) nulla poena sine crimine, 2) nullum crimen

sine lege, 3) nulla lex (poenalis) sine necessitate, 4) nulla necessitas sine injuria, 5)

nulla injuria sine actione, 6) nulla actio sine culpa, 7) nulla culpa sine judicio, 8)

nullum judicium sine accusatione, 9) nulla accusatio sine probatione e 10) nulla

probatio sine defensione9.

Ao comentar os dez axiomas por ele propostos, o jurista sustenta que as

expressões latinas expressam as seguintes garantias:

1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade10.

7 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed.

ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 101. 9 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2010. 10

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 91 – grifos originais.

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Atendo-se à análise dos princípios essencialmente penais – não se olvidando

a importância dos referentes ao processo penal –, verifica-se que apenas “[...] nos

casos em que os ‘efeitos lesivos’ das condutas praticadas possam justificar os

custos das penas e proibições, as sanções estariam autorizadas”11. Portanto, a

submissão da conduta humana ao direito penal só será legítima quando a violência

produzida pela pena não for maior do que a decorrente do delito, remetendo-se os

demais casos aos outros ramos do Direito12.

A exigência da materialidade/exteriorização da ação tutela os atos internos e

a autoagressão, não os caracterizando como crime. Porém, não basta que a

conduta externa cause danos significativos ao direito de outrem, é preciso que haja

prévio julgamento acerca da culpabilidade do ofensor, consistente no agir com dolo

ou culpa13.

Por derradeiro, o princípio da legalidade:

[...] constitui-se em uma garantia protetiva dos jurisdicionados frente ao ius puniendi. Desta forma, os cidadãos podem saber de antemão, não só qual a conduta que está proibida, qual a sanção e quais são seus limites, mas principalmente que o acusador e o julgador não poderão, sponte sua, determinar os tipos criminais, as penas ou as espécies de medidas de segurança (art. 5º, XLVI e XLVII, da CF).

Este critério material é fundamental para garantir que os limites da liberdade dos indivíduos sejam os mesmos, e se apliquem a todos, sem exceção, e que, ao mesmo tempo, se determinem com precisão, tanto para os cidadãos, quanto para as instituições14.

Observando-se estritamente os dez axiomas do sistema garantista, está

garantida a máxima limitação do controle punitivo estatal. Por esta razão, o

Garantismo Penal representa o que Luigi Ferrajoli definiu como Direito Penal

mínimo. A expressão utilizada pelo autor designa o sistema penal e processual

penal:

[...] condicionado e limitado ao máximo, [que] corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente

11

ROSA, Alexandre Morais da.Decisão no processo penal como bricolage de significantes. 2004. 420 f. Tese (Doutorado em Direito).- Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 136. 12

ROSA, Alexandre Morais da.Decisão no processo penal como bricolage de significantes. 2004. 420 f. Tese (Doutorado em Direito).- Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004. 13

ROSA, Alexandre Morais da.Decisão no processo penal como bricolage de significantes. 2004. 420 f. Tese (Doutorado em Direito).- Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004. 14

STRECK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p. 157.

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ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Com isso resulta excluída de fato a responsabilidade penal todas as vezes em que sejam incertos ou indeterminados seus pressupostos. Sob este aspecto existe um nexo profundo entre garantismo e racionalismo. Um direito penal é racional e correto à medida que suas intervenções são previsíveis; apenas aquelas motivadas por argumentos cognitivos de que resultem como determinável a ‘verdade formal’ [...]. Uma norma de limitação do modelo de direito penal mínimo informada pela certeza e pela razão é o critério do favor rei, que não apenas permite, mas exige intervenções potestativas e valorativas de exclusão ou de atenuação da responsabilidade cada vez que subsista incerteza quanto aos pressupostos cognitivos da pena. A este critério estão referenciadas instituições como a presunção de inocência do acusado até a sentença definitiva, o ônus da prova a cargo da acusação, o princípio in dubio pro reo, a absolvição em caso de incerteza acerca da verdade fática e, por outro lado, a analogia in bonam partem, a interpretação restritiva dos tipos penais e a extensão das circunstâncias eximentes ou atenuantes em caso de dúvida acerca da verdade jurídica. Em todos esses casos, teremos certamente discricionariedade, mas se trata de uma discricionariedade dirigida não para estender, mas para excluir ou reduzir a intervenção penal quando não motivada por argumentos cognitivos seguros15.

Portanto, a adoção do Garantismo Penal pelo Estado – leia-se: o legislar e

aplicar o Direito conforme os postulados garantistas – visa minimizar a reação

arbitrária do Estado frente à atividade criminosa, promovendo a proteção do

indivíduo ao lhe assegurar o respeito aos seus direitos individuais e indisponíveis.

Exemplifica-se essa tutela no fato de que a condenação penal, no molde

garantista, somente é admitida com fulcro na certeza da conduta e culpabilidade do

acusado, amparada no cumprimento dos dez axiomas do Direito Penal

anteriormente expostos. Neste sentido, destaca-se da obra de Luigi Ferrajoli:

A certeza do direito penal mínimo no sentido de que nenhum inocente seja punido é garantida pelo princípio in dubio pro reo. É o fim perseguido nos processos regulares e suas garantias. Expressa o sentido da presunção de não culpabilidade do acusado até prova em contrário: é necessária a prova – quer dizer, a certeza, ainda que seja subjetiva – não da inocência, mas da culpabilidade, não se tolerando a condenação, mas exigindo-se a absolvição em caso de incerteza. A incerteza é, na realidade, resolvida por uma presunção legal de inocência em favor do acusado, precisamente porque a única certeza que se pretende do processo afeta os pressupostos das condenações e das penas e não das absolvições e da ausência de penas16.

15

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 102 – grifos originais. 16

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 103-104.

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19

Possibilita-se, deste modo, um modelo de responsabilização penal que

proporciona maior segurança aos acusados. E como bem assinalado por Aury Lopes

Júnior, o Estado que possui uma Constituição democrática – como é o caso da

Constituição da República Federativa do Brasil de 198817 – deve necessariamente

estabelecer um processo penal democrático, tido como instrumento a serviço da

máxima eficácia dos direitos constitucionais individuais. Sustenta o jurista que:

O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)18.

Ademais, como estabelecido por Luigi Ferrajoli, a adoção do sistema de

garantismo penal institui o

[...] Estado de direito, entendendo-se por esta expressão um tipo de ordenamento no qual o Poder Público e especificamente o poder penal estejam rigidamente limitados e vinculados à lei no plano substancial (ou dos conteúdos penalmente relevantes) e submetidos a um plano processual (ou das formas processualmente vinculantes)19.

Contrapondo o modelo teórico até aqui explanado, o doutrinador estabeleceu

o modelo penal autoritário característico dos Estados absolutos ou totalitários, “[...]

entendendo-se por tais expressões qualquer ordenamento onde os poderes públicos

sejam legibus soluti ou ‘totais’, quer dizer, não disciplinados pela lei e, portanto,

carentes de limites e condições”20. Nestes regimes autoritaristas a restrição ao

exercício do poder punitivo estatal é mínima em virtude da ausência ou fragilidade

dos limites impostos pelos direitos individuais, sendo que, nos casos extremos, a

17

Art. 1º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e dos Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”. 18

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28 – grifos originais. 19

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 101 – grifos originais. 20

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 101.

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responsabilização penal ocorre sem que seja demonstrada qualquer condição

judicialmente comprovável ou legalmente predeterminada21.

Ao extremo oposto que representa a ampla (e quase irrestrita) atuação estatal

quando da condenação penal do indivíduo, Luigi Ferrajoli chamou de Direito Penal

máximo, por ser:

[...] incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas e que, consequentemente, configura-se como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação. Devido a estes reflexos, o substancialismo penal e a inquisição processual são as vias mais idôneas para permitir a máxima expansão e a incontrolabilidade da intervenção punitiva e, por sua vez, sua máxima incerteza e irracionalidade. Por um lado, com efeito, a equivalência substancialista entre delitos e mala in se, ainda quando em abstrato possa parecer um critério mais objetivo e racional do que o nominalista da identificação do delito tal como é declarado pelo legislador, conduz à ausência do limite mais importante ao arbítrio punitivo, que é ademais a principal garantia de certeza: a rígida predeterminação acerca do processo de qualificação do delito. Por outro lado, a investigação inquisitiva através de qualquer meio de ‘verdades substanciais’ ilusórias para além dos limitados recursos oferecidos em relação às regras processuais conduz de fato, tanto mais se unida ao caráter indeterminado ou valorativo das hipóteses legais de desvio, ao predomínio das opiniões subjetivas e até dos preconceitos irracionais e incontroláveis dos julgadores22.

A consequência lógica da ausência de limite à atuação do poder punitivo

estatal é a maximização da arbitrariedade na busca da condenação penal. Submete-

se a certeza da responsabilidade penal – e o destino do indivíduo acusado da

prática de um delito – não a um sistema que visa a proteção de sua integridade e de

seus direitos durante o processo, mas a um Estado autoritário que prefere a

condenação de um inocente à absolvição de um culpado e que se vale do sofisma in

dubio contra reum para justificar suas ações23.

Por oportuno, destaca-se da obra de Cesare Beccaria:

Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o

21

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 22

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 102-103 – grifos originais. 23

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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ignorante e o instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram, porque a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõem; tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.24

Imperioso concluir desta breve análise dos sistemas de Direito Penal mínimo

e Direito Penal máximo que, para coibir o abuso do poder estatal, o estado

contemporâneo deverá:

[...] fazer [a] dogmática penal como sistema de garantias do indivíduo em face do poder punitivo do Estado, no sentido de construir um conjunto de conceitos capazes de excluir ou de reduzir o poder de intervenção do Estado na esfera da liberdade individual – e, portanto, capazes de impedir ou de amenizar o sofrimento humano produzido pela desigualdade e pela seletividade do sistema penal – [fato que] constitui tarefa científica de significado democrático nas sociedades contemporâneas25.

Por esta razão, será adotado como marco teórico deste trabalho de pesquisa

os postulados da teoria do Garantismo Penal, prevalecendo o Direito Penal mínimo

em detrimento de sua maximização – Direito Penal máximo.

1.2 CONCEITOS DE VALIDADE E VIGÊNCIA DA NORMA JURÍDICA:

REDEFINIÇÕES PROPOSTAS POR LUIGI FERRAJOLI EM CONTRAPONTO AO

MARCO TEÓRICO PROPOSTO POR HANS KELSEN

Considerado o Direito Penal mínimo como modelo a ser adotado nos Estados

democráticos, indaga-se: as limitações conferidas pelos direitos individuais ao poder

punitivo estatal estendem-se ao poder legislativo no exercício de suas funções? Há

critério para avaliar o verdadeiro alcance e validade da lei penal e processual penal?

Para responder tais questionamentos, mister que se proceda a análise dos conceitos

de vigência e validade da norma jurídica propostos pelo jurista Luigi Ferrajoli.

24

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011, p. 31. 25

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 488 – grifos originais.

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Com o intuito precípuo de transformar o Direito em ciência exata e autônoma,

desvinculando-o de qualquer axiologia e demais ciências – por exemplo, a

Sociologia e Filosofia –, o jurista Hans Kelsen elaborou a Teoria pura do Direito.

Concebeu o Direito como um conjunto de normas jurídicas hierarquizadas, o que

ilustrou através de uma pirâmide na qual o cume representaria a norma hipotética

fundamental, que daria respaldo à Constituição que, por sua vez, justificaria a

criação das leis infraconstitucionais. Os fundamentos da validade nesse sistema

provêm do fato de uma norma ser emanada por uma autoridade competente para

estabelecer normas válidas, sendo que quem determinaria tal competência seria a

norma hierarquicamente superior à norma criada26. Nas palavras do jurista

[...] a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm)27.

Como o Direito estaria imune a qualquer influência externa, os conceitos de

vigência e validade se confundem: uma norma jurídica é válida na medida em que

obedece à norma hierarquicamente superior, sendo irrelevante o seu conteúdo. Por

isto,

Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada - em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica. A validade desta não pode ser negada pelo fato de o seu conteúdo contrariar o de uma outra norma [...]28.

Toda norma posta no ordenamento jurídico que respeite sua norma

hierarquicamente superior deveria ser considerada válida, conforme a teoria 26

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998. 27

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p. 136. 28

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998, p. 139.

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proposta por Hans Kelsen. De fato, o poder de legislar sofreria tão somente uma

limitação formal, eis que a autoridade competente para produzir as normas jurídicas

poderia legislar sobre qualquer temática.

Ocorre que a liberdade legislativa proposta por Hans Kelsen não se coaduna

com o Estado Democrático de Direito. Nas palavras do doutrinador garantista:

Nos velhos Estados absolutistas e em muitos dos modernos Estados totalitários as normas acerca das produções de normas, que estão no vértice do ordenamento, limitam-se de fato a conferir ao poder soberano o poder de legislar: nestes ordenamentos seria válida, por exemplo, ainda que injusta, uma lei que conferisse ao soberano o poder arbitrário sobre a vida e a morte [...]. Normas desse tipo são, ao contrário, em qualquer Estado de direito que possua Constituição rígida minimamente garantista, não somente injustas como também inválidas por violarem princípios constitucionais de direitos humanos, da igualdade e da estrita legalidade penal. A especificidade do moderno Estado constitucional de direito está precisamente no fato de que as condições de validade estabelecidas por suas leis fundamentais incorporam não só requisitos de regularidade formal, senão também condições de justiça material29.

Para esclarecer os contornos da limitação do poder legislativo estatal, Luigi

Ferrajoli (re)definiu os conceitos de vigência e validade da norma jurídica,

harmonizando-os com a teoria do Garantismo Penal. Ao justificar a redefinição

conceitual proposta, aduziu que:

De fato tem acontecido, na formação dos modernos Estados constitucionais, que o direito positivo tem incorporado grande parte dos conteúdos ou valores de justiça elaborados pelo jusnaturalismo racionalista e iluminista: o princípio da igualdade, o do valor da pessoa humana, dos direitos civis e políticos, e, ademais, quase todas as garantias penais e processuais de liberdade e de certeza enumeradas no nosso sistema SG [representado pelos dez axiomas do garantismo penal]. Todos esses princípios, afirmados pelas doutrinas jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII na forma de direito ou direitos naturais, foram consagrados nas modernas Constituições na forma de princípios normativos fundamentais que contêm limitações ou imperativos negativos – ou também positivos, como os expressados pelos chamados ‘direitos sociais’ ou ‘materiais’ (ao trabalho, à saúde, à subsistência, à educação, etc.), acrescentados nas Constituições deste século –, cujos destinatários são os legisladores e os demais poderes públicos30.

Nota-se que a consagração dos direitos humanos como garantias

constitucionais individuais modificou a definição de validade da norma jurídica. Por

29

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 330. 30

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 327-328 – grifos originais.

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este motivo, com propriedade, Luigi Ferrajoli chamou de vigência a adequação

formal da norma jurídica com os requisitos de sua confecção e de validade o

respeito de seu conteúdo normativo aos ditames constitucionais31.

O jurista arrematou afirmando que:

[...] num Estado de direito, o direito penal torna explícitas suas condições substanciais de justificação, subministrando muitas respostas desde dentro – geralmente por meio de normas constitucionais – às perguntas acerca do ‘quando’ e do ‘como’ das proibições, das penas e dos processos. Dependendo do número e do caráter mais ou menos complexo e vinculante destas respostas, um sistema penal será mais ou menos garantista, mais ou menos limitado, mais ou menos justificado, mais ou menos ‘de direito’32.

A norma jurídica que dispõe acerca do direito penal e processual penal só

será considerada válida quando respeitar estritamente os direitos humanos

amplamente amparados pela Constituição da República Federativa do Brasil. Desta

forma, o dispositivo legal que contrariar a Constituição ante a violação de quaisquer

dos direitos individuais fundamentais deve ser considerado inválido, não obstante

sua vigência no ordenamento jurídico pátrio, devendo o magistrado se abster de sua

aplicação no caso concreto33.

1.3 DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL

George Orwell escreveu em 1949 sua obra literária intitulada 1984. No

contexto histórico do pós-guerra, criou um Estado extremamente autoritário que se

mantinha em ininterrupta guerra e reduzia o ser humano a instrumento de satisfação

ao interesse estatal para reafirmar a autoridade do líder sobre os súditos. Malgrado

a discussão que porventura possa existir sobre ser a história uma metáfora da

situação política mundial da época, é indubitável que a ficção criada pelo autor

ilustra um modelo de ininterrupto controle social. Nada foge ao chamado Big Brother,

que tudo controla e tudo vê34.

31

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 32

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 334. 33

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 34

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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No modelo de controle social ilustrado por George Orwell não há margem

para o individualismo: o Estado assume o controle de tudo. O cidadão é disciplinado

a acatar as ordens de seu governante, a agir e pensar conforme o determinado.

Pensamentos-crimes são condenados: ir contra o Partido é um risco que não deve

ser assumido. Doutrina-se o cidadão para que ele se conforme em perder sua

cidadania35.

Retira-se da ficção a lição de que o controle social, quando exercido

ilimitadamente, configura um perigo para a sociedade. Não obstante, esclareceu

Sandro César Sell que:

Para garantir que as pessoas se comportarão como a sociedade requer, entrarão em ação, enquanto exteriorizações da consciência coletiva, várias instituições indutoras de conformidade. A lei, a moral, a deontologia, a religião e as normas de trato social são mecanismos de controle que, com maior ou menor poder, ajudam a manter cada indivíduo no lugar que lhe é socialmente reservado. Sem mecanismos de controle como os citados, e suas respectivas punições, a sociedade seria inviável, já que seus membros não nascem sabendo o que deles se espera, e nem sempre o processo de socialização por si só é capaz de mantê-los nos ditames da cultura que pertencem. A sociedade forma o indivíduo pela socialização e o mantém sob suas determinações por meio da utilização constante de mecanismos de controle social36.

Portanto, torna-se inquestionável a importância dos instrumentos indutores de

comportamento humano. Para compreender o papel do Direito Penal como

ferramenta de controle social, importante que sejam feitas algumas constatações

prévias. Lenio Luiz Streck apontou em sua obra que:

Pesquisa recente [datada de 2004] mostra que os excluídos são 59% da população do país. Nessa categoria ‘excluídos’ estão as pessoas que estão à margem de qualquer meio de ascensão social. Na escola, a esmagadora maioria dessas pessoas (86%) não foi além da 8ª série. De todos os segmentos sociais, são os que mais sofrem com o desemprego e a precarização do trabalho: 19% vivem de ‘bico’ e 10% são assalariados sem registro algum. Como contraponto, o levantamento mostra que a elite se resume a 8% dos brasileiros. Essa elite concentra mais brancos (85%) do que qualquer outro segmento da sociedade. É, em consequência, o segmento onde há menos negros e pardos37.

35

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 36

SELL, Sandro César. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis: Editora Digital Ijuris, 2006, p. 64. 37

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 29.

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26

Importante frisar, sem no entanto analisar as entranhas da polêmica, a

afirmação do professor Alexandre Morais da Rosa de que há estreita relação entre

Direito e Economia, sendo aquele responsável pela garantia dos interesses desta.

Fundada no sistema capitalista, é vantajoso à Economia um ordenamento jurídico

aliado às políticas públicas que evidenciem as desigualdades sociais. Depreende-se

desta observação, de modo muito sutil, que o Direito é exercido em benefício da elite

brasileira. O Partido e o Big Brother – expressões contidas na obra de George

Orwell para caracterizar os mecanismos decisórios de seu Estado fictício –

passaram a ser, no Estado contemporâneo, o mercado e sua mão invisível38.

Lenio Luiz Streck comungou desse entendimento ao afirmar que:

A absoluta maioria da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu ‘lugar (de)marcado’. Cada um ‘assume’ o ‘seu’ lugar. Essa maioria, porém, não se dá conta de que essa ‘ordem’, esse ‘cada-um-tem-o-seu-lugar’ engendra a verdadeira violência simbólica da ordem social, bem para além de todas as correlações de forças que não são mais do que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política. O sistema cultural engendra exatamente um imaginário no qual, principalmente através dos meios de comunicação de massa, se faz uma amálgama do que não é amalgamável. Por isso, por exemplo, é possível – e observe-se a relevância dessa questão no plano simbólico – que o país mantenha impunemente um apartheid em elevadores sociais e de serviço, o que legitima o preconceito social39!

Especificamente acerca do Direito Penal, pode-se afirmar que o exercício do

controle social se dá através da tipificação de condutas criminosas e cominação de

sanções para quem pratica-las. Busca-se controlar o comportamento do cidadão por

meio da ameaça da repreensão, razão pela qual este ramo do Direito é considerado

instrumento de controle social institucionalizado e punitivo40.

Porém, o Direito Penal não se diferencia dos outros ramos de atuação do

Direito no tocante ao favorecimento do preconceito social. Majoritariamente exercido

pela elite, a ciência criminal, implícita ou expressamente, escolheu o estereótipo

ideal do criminoso. Como estão mais afastadas do centro de poder, as classes mais

pobres – e proporcionalmente mais marginalizadas – são mais vulneráveis ao

38

ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 39

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 29-30 – grifos originais. 40

PIERANGELI, José Henrique. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

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27

controle social exercido pelo Direito Penal, havendo com maior incidência o

julgamento e condenação de seus membros41. Assim,

Surgiu a suspeita de que os sistemas penais selecionam um grupo de pessoas dos setores mais humildes e marginalizados, os criminaliza e os mostra ao resto dos setores marginalizados como limites de seu ‘espaço social’. Ao mesmo tempo, também parece que os setores que na estrutura de poder têm a decisão geral de determinar o sentido da criminalização têm também o poder de subtrair-se à mesma (de fazer-se a si mesmos menos vulneráveis ou invulneráveis ao próprio sistema de criminalização que criam)42.

Indicativo da seletividade penal foi a pesquisa realizada pela Procuradora da

República, Ela Castilho, que apontou que:

[...] de 1986 a 1995, somente 5 dos 682 supostos crimes financeiros apurados pelo Banco Central resultaram em condenações em primeira instância na Justiça Federal. A pesquisa revela, ainda, que 9 dos 682 casos apurados pelo Banco Central também sofreram condenações nos tribunais superiores. Porém – e isso é de extrema relevância – nenhum dos 19 réus condenados por crime do colarinho branco foi para a cadeia.

A pesquisa em questão ressalta, ainda, que o número de 682 casos apurados é extremamente pífio, em face dos milhares de casos de crimes do colarinho branco que ocorrem todo ano no país43!

Não obstante, não há como conferir a eficácia do Direito Penal como

instrumento de controle social ante a chamada cifra oculta, também citada no texto

transcrito acima. Há considerável lacuna entre a criminalidade real e a registrada

oficialmente, o que passa a falsa impressão de que a impunidade é a regra e a

criminalização a exceção. Assim, resta latente a impossibilidade de atestar a

eficiência do sistema penal na repressão do crime, sendo palpável, porém, os

índices de reincidência criminal44.

Dito isso, percebe-se que os cidadãos que não pertencem às classes

elitizadas são alvos constantes da seletividade penal, o que os torna em certo

aspecto semelhantes aos membros do Estado fictício de 1984. O Direito Penal

passa a exercer o controle das massas inconvenientes ao Estado, intensificando a

41

PIERANGELI, José Henrique. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. 42

PIERANGELI, José Henrique. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 75. 43

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 35 – grifos originais. 44

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 89.

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28

desigualdade material das classes sociais45. Vê-se que o Direito Penal está a serviço

do Partido e do Big Brother, contemporaneamente conhecido como mercado46.

1.4 FINALIDADE DA PENA SEGUNDO A TEORIA DO GARANTISMO PENAL: O

DIREITO PENAL COMO A LEI DO MAIS FRACO.

Na sociedade contemporânea a sanção penal constitui o instrumento principal

do programa oficial de controle da criminalidade47, motivo pelo qual se torna

imprescindível o estudo de sua finalidade. Analisar todos os posicionamentos

referentes ao tema está além do objetivo deste trabalho, razão pela qual será

afrontada a função declarada da sanção no ordenamento jurídico brasileiro àquela

proposta pela teoria do garantismo penal.

Dispõe o artigo 59 do Código Penal que o magistrado estabelecerá o quantum

da pena “[...] conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção

do crime”48. No mesmo diapasão, depreende-se da parte final do artigo 1º da Lei n.

7.210/198449 – Lei de Execução Penal, que a pena tem como objetivo manifesto o

de reeducar o apenado para promover seu reingresso social50.

Ao tratar sobre a finalidade da sanção penal na legislação brasileira,

Guilherme de Souza Nucci sustentou que:

Não se pode pretender desvincular da pena o seu evidente objetivo de castigar quem cometeu um crime, cumprindo, pois, a meta do Estado de chamar a si o monopólio da punição, impedindo-se a vingança privada e suas desastrosas conseqüências, mas também contentando o inconsciente coletivo da sociedade em busca de justiça cada vez que se depara com lesão a um bem jurídico tutelado pelo direito penal.

Por outro lado, reprimindo o criminoso, o Estado promove a prevenção geral positiva (demonstra a eficiência do Direito Penal, sua existência, legitimidade e validade) e geral negativa (intimida a

45

PIERANGELI, José Henrique. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. 46

ROSA, Alexandre Morais da.Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 47

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 48

BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 07 set. 2012. 49

“Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. 50

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012.

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quem pensa em delinqüir, mas deixa de fazê-lo para não enfrentar as conseqüências decorrentes da punição). Quanto ao sentenciado, objetiva-se a prevenção individual positiva (reeducação e ressocialização, na medida do possível e da sua aceitação), bem como a prevenção individual negativa (recolhe-se, quando for o caso, o delinqüente ao cárcere para que não torne a ferir outras vítimas)51.

Em razão da miscelânea de doutrinas justificadoras da pena adotada pelo

ordenamento jurídico pátrio, torna-se imperioso a análise isolada de cada uma delas.

1.4.1 A pena como retribuição

Michel Foucault descreveu o sistema penal francês até o início do século XIX

como fonte de ostentação de suplícios. O desafortunado acusado que não pertencia

à classe nobre da sociedade, além de ser submetido à tortura para que confessasse

o crime supostamente praticado, era condenado aos mais diversos castigos

corporais. A função do magistrado ao aplicar a pena era a de garantir o sofrimento

da alma e do corpo do apenado, fazendo com que seu suplício correspondesse ao

crime praticado. Por essa razão, não raras vezes o condenado ao crime de roubo

tinha sua mão amputada, ou a execução da pena de morte se dava no local onde

fora praticado o crime de homicídio. O crime era visto como afronta ao poder

soberano do rei, o que justificava a plena vingança exercida contra o malfeitor52.

Denominou-se de teoria absoluta ou retributiva a doutrina que estabelece a

finalidade da pena como retribuição do crime praticado, sendo os teóricos Immanuel

Kant e Georg Hegel seus principais defensores53.

Sob o argumento de que nenhum indivíduo pode ser utilizado como

instrumento para fins a ele estranhos54, Immanuel Kant sustentou não ser

eticamente permitida a fundamentação da pena em supostas razões de utilidade

social. Fundamentou sua justificação da pena como retribuição do mal perpetrado

pelo condenado na ética, eis que para ele o Direito deveria estar relacionado à

51

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 989-990. 52

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 29. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. 53

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v. 54

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 310.

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30

moral. Portanto, o condenado deveria ser submetido à sanção criminal porque

infringiu a lei, e a justiça precisa ser restabelecida. O castigo para ser justo deveria

corresponder ao prejuízo causado pelo ofensor55.

Em contrapartida, Georg Hegel apresentou uma justificação jurídica para sua

teoria. Para o filósofo, a vontade particular e irracional do agente quando da prática

de um delito não pode se sobrepor à vontade geral e racional da legislação penal. A

imposição da pena implica no restabelecimento do status quo ante, na restauração

da ordem jurídica violada. Não se trata de anular o mal privado através do mal

estatal, mas de retribuí-lo juridicamente, dando ao condenado uma sanção legal e

digna. No tocante à mensuração da pena, essa deve ser equivalente à lesão sofrida

pelo ofendido56.

Constata-se que a crítica a esse posicionamento doutrinário está fundada na

irreparabilidade do dano causado pelo crime57. A imposição da pena não muda a

realidade fática e sustentar sua finalidade como retribuição ao crime cometido é

admitir que o direito penal sirva como instrumento de vingança estatal. Porém, o

objetivo declarado do direito penal é a proteção de bens jurídicos, o que torna

inadmissível a adoção da doutrina estudada58.

1.4.2 A pena como prevenção geral

Cesare Beccaria foi ferrenho defensor da abolição da pena de morte em

tempos de paz. Defendia o argumento de que os suplícios não cumpriam o objetivo

primordial da sanção criminal, sendo apenas um espetáculo digno de causar

piedade e indignação na maioria daqueles que o assistiam. Para o jurista, “para que

uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os

homens do crime”59. A pena serviria para desestimular as ações criminosas, uma

55

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v. 56

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v. 57

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 310. 58

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 59

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011, p. 64.

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31

vez que os homens deixariam de praticar os delitos pela ameaça de sofrer a perda

de um direito – seja a privação da liberdade ou da vida60.

Denominou-se de prevenção geral negativa a doutrina que acata o

ensinamento sustentado por Cesare Beccaria, fundamentando a pena como

instrumento de ameaça legal hábil a desestimular a prática de crimes61.

A crítica a esta justificação da pena consiste no fato de que “[...] nenhuma

pessoa pode ser utilizada como meio para fins a ela estranhos, ainda que sociais e

elogiáveis”62 (ensinamento filosófico de Kant, acima estudado). A lógica pela qual os

condenados devem ser punidos de forma exemplar para influenciar a conduta de

eventuais criminosos viola a dignidade da pessoa humana, não podendo perdurar

em um estado de direito63. Ademais, a doutrina de prevenção geral negativa é apta a

embasar um terrorismo penal legislativo, “[...] claro estando que a ameaça penal,

devendo servir como ‘contraforça’, ‘contramotivo’ ou ‘coação psicológica’, é tão mais

eficaz quanto mais elevadas e severas forem as penas cominadas”64.

No final do século XX, a função da prevenção geral adquiriu uma

característica positiva65. Observou-se que a prática reiterada de crimes acarretava a

sensação de insegurança da população e descrença no Estado como ente

garantidor de direitos, o que fez com que a doutrina de prevenção geral positiva

justificasse a pena como:

[...] fator de coesão do sistema político-social em razão da sua capacidade de reestabelecer a confiança coletiva abalada pelas transgressões, a estabilidade do ordenamento e, portanto, de

renovar a fidelidade dos cidadãos no que tange às instituições66

.

Juarez Cirino dos Santos sustentou que a doutrina de prevenção geral

positiva assume duas naturezas distintas, assim definidas:

[...] autores como ROXIN assumem a natureza relativa da prevenção geral positiva [...] como demonstração da inviolabilidade do Direito, necessária para preservar a confiança na ordem jurídica e reforçar a fidelidade jurídica do povo, destacando uma tríplice superposição de efeitos político-criminais: primeiro, o efeito sócio-pedagógico de

60

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011. 61

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 62

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 257. 63

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 64

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 260. 65

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 66

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 256.

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exercício em fidelidade jurídica, produzido pela atividade da justiça penal; segundo, o efeito de aumento da confiança do cidadão no ordenamento jurídico pela percepção da imposição do Direito; terceiro, o efeito da pacificação social pela punição da violação do Direito e, portanto, solução do conflito com o autor.

Ao contrário, JAKOBS absolutiza a função de prevenção geral positiva, concebida como teoria totalizadora da pena criminal [...]. A função positiva de prevenção geral seria dirigida a todos os seres humanos, como exercício (a) de confiança na norma, necessário para saber o que esperar na interação social, (b) de fidelidade jurídica pelo reconhecimento da pena como efeito da contradição da norma, e, finalmente, (c) de aceitação das consequências respectivas, pela conexão do comportamento criminoso com o dever

de suportar a pena [...]67

.

Ocorre que esta concepção da pena traria à lume um problema de

seletividade penal bastante complicado. Isso porque, baseado nesta teoria, o

aplicador do direito penal deveria impor uma pena rígida ao condenado por um crime

de grande repercussão social, ao passo que àqueles que praticaram crimes

clandestinos, não obstante sua gravidade, restariam impunes68. Forçoso reconhecer

que

A lógica da prevenção geral positiva indica que, em um sistema bastante desequilibrado devido às suas falhas, à injustiça distributiva, às carências da população, à seletividade do poder etc., a confiança naquele, por intermédio da criminalização, exige penas eventualmente atrozes e recursos de investigação inquisitoriais, desde que proporcionem resultados nos casos que suscitam preocupação por causa de sua capacidade desequilibrante: a tendência será privilegiar a suposta eficácia e eliminar qualquer consideração limitativa nos casos mais visíveis, e ao mesmo tempo desinteressar-se pelo restante dos casos não divulgados pela

comunicação69

.

Para reafirmar a norma penal, os magistrados estariam autorizados pelo

clamor público a fixar a sanção criminal em patamares elevados, ao arrepio da

legislação acerca da dosimetria da pena, sob o argumento de que a aplicação da

pena mínima acarretaria a prescrição penal, o que seria inadmissível.

1.4.3 A pena como prevenção especial

67

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 460-461 – grifos originais. 68

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003. 69

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 123-124.

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Remonta do fim do século XVII e início do século XVIII a utilização da pena

privativa de liberdade como sanção criminal por excelência. Michel Foucault

relembrou em sua obra que o principal objetivo do encarceramento era a

autoavaliação comportamental, que acarretaria no arrependimento pela prática do

crime. O indivíduo submetido à rígida disciplina imposta pelos presídios é reeducado

nos padrões sociais aceitos pelo Estado, porquanto possui caráter dócil e passível

de domesticação. Busca-se a regeneração completa do ser humano, tornando-o um

cidadão útil à sociedade. O sistema penal funciona como ortopedista da conduta

humana70.

Eis a pena como prevenção especial positiva. Ao condenar o acusado, o

magistrado quantifica a pena na proporção necessária e suficiente para prevenir a

reincidência. Por sua vez, o cárcere acolhe e reeduca o delinquente, promovendo

sua ressocialização. O Estado ganha um cidadão bom e útil em detrimento do

cerceamento da liberdade deste71.

Atuando como prevenção especial, a pena também adquire um caráter

negativo. Ensinou Juarez Cirino dos Santos:

A prevenção especial negativa de neutralização do criminoso, baseada na premissa de que a privação de liberdade do condenado produz segurança social, parece óbvia: a chamada incapacitação seletiva de indivíduos considerados criminosos considerados perigosos constitui efeito evidente da execução da pena, porque impede a prática de crimes fora dos limites da prisão – e, assim, a neutralização do condenado seria uma das funções manifestas ou declaradas cumpridas pela pena criminal72.

Embora amplamente adotada73, a doutrina da pena como prevenção especial

sofre severas críticas. Defende-se que o Estado cujo fundamento é a dignidade da

pessoa humana e que garante constitucionalmente o direito à liberdade individual

não tem o direito de compelir o indivíduo ao tratamento carcerário. Pretender

melhorar o caráter do criminoso por meio de uma pena privativa de liberdade é

70

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 29. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. 71

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 72

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 457-458 – grifos originais. 73

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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34

afrontar sua autonomia: cabe somente a ele a escolha entre ser bom ou mau74.

Outrossim, vale destacar a contestação apresentada por Luigi Ferrajoli nos

seguintes termos:

Uma primeira e elementar objeção é que somente a pena carcerária, e não as outras penas também, como, v. g., aquelas pecuniárias ou de detenção domiciliar, está ligada à finalidade reeducativa, a qual, portanto, não pode ser admitida como critério teórico de justificação da pena em geral. Uma segunda, e muito mais grave objeção, é que o fim pedagógico ou ressocializante sustentado por todas estas várias doutrinas não é realizável. Uma rica literatura, confortada por uma secular e dolorosa experiência, demonstrou, com efeito, que não existem penas corretivas ou que tenham caráter terapêutico, e que o cárcere, em particular, é um lugar criminógeno de educação e solicitação ao crime. Repressão e educação são, em resumo, incompatíveis, como também o são a privação da liberdade e a liberdade em si, que da educação constitui a essência e o pressuposto, razão pela qual a única coisa que se pode pretender do cárcere é que seja o mínimo possível repressivo e, portanto, o menos possível dessocializante e deseducativo75.

Não compete ao Estado decidir acerca da bondade ou maldade humana.

1.4.4 A função da pena no garantismo penal

Consoante a teoria do Garantismo Penal elaborada por Luigi Ferrajoli, o

Direito Penal tem como objetivo a minimização da violência na sociedade,

cumprindo seu mister por meio da proteção aos vulneráveis. O que determina a

condição de vulnerabilidade é o momento fático. Assim, quando o acusado está

cometendo o crime é a vítima a parte vulnerável da relação. De outro norte, quando

o Estado submete o acusado ao processo e à execução penal, é ele próprio a parte

vulnerável76.

Baseado nesta percepção, Luigi Ferrajoli estabeleceu que o Direito Penal

serve como instrumento de tutela dos direitos fundamentais, devendo garantir além

do máximo bem-estar da sociedade em geral, o mínimo de mal-estar necessário aos

74

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 75

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 253. 76

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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35

criminosos77. Por essa razão, a lei penal se caracteriza como a lei do mais fraco,

estando voltada

[...] a minimizar esta dupla violência, prevenindo, através de sua parte proibitiva, o exercício das próprias razões que o delito expressa, e, mediante a sua parte punitiva, o exercício das próprias razões que a vingança e outras possíveis reações informais expressam78.

Portanto, para a teoria garantista fundada em um Estado de Direito Penal

mínimo, a pena serve para prevenir as injustas punições. O Estado, ao cominar

legalmente a pena, tutela o indivíduo que pratica o delito de sofrer reações informais

ao ato cometido, sejam elas públicas ou privadas. Por mais paradoxal que pareça,

ao cercear os direitos do transgressor, o Estado garante seus direitos individuais

fundamentais79.

Luigi Ferrajoli aduziu, ainda, que esta justificação do Direito Penal – e

consequentemente da sanção criminal – como a lei do mais fraco determina os

limites da imposição da pena:

[...] o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva [...] quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo80.

Resta evidente, deste modo, que a pena deve infligir ao acusado o sofrimento

mínimo, para salvaguardar seus direitos enquanto cidadão.

77

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 78

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 311. 79

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 80

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 310.

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36

2 REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COMO SANÇÃO

DISCIPLINAR

Superada a apresentação do marco teórico do trabalho de iniciação científica,

analisaremos neste capítulo seu objeto central de pesquisa. Com o fito de

contextualizar o universo no qual o instituto está inserido, preambularmente serão

abordados aspectos gerais sobre a execução penal. Sucessivamente, se procederá

à análise pormenorizada do Regime Disciplinar Diferenciado, dando especial ênfase

ao motivo pelo qual foi concebido e suas características atuais previstas legalmente.

2.1 BREVES NOTAS ACERCA DA EXECUÇÃO PENAL

Dimensionar com exatidão o Regime Disciplinar Diferenciado requer a prévia

compreensão dos elementos que o circundam, razão pela qual será realizado o

estudo introdutório acerca da execução penal. Uma vez que o primeiro capítulo,

especificamente no item 1.4, se incumbiu de expor as teorias justificadoras da pena

(sem que, frise-se, tenha esgotado o assunto), resta a análise dos aspectos

referentes à aplicação da sanção criminal.

Conceitua-se execução penal como sendo a fase do processo penal na qual

“[...] se faz valer o comando contido na sentença condenatória penal, impondo-se,

efetivamente, a pena privativa de liberdade, a pena restritiva de direitos ou a

pecuniária”81. Eugenio Raúl Zaffaroni, com propriedade, defendeu a justificativa da

pena criminal nos seguintes termos:

Se o sistema penal é um mero fato de poder, a pena não pode pretender nenhuma racionalidade, ou seja, não pode ser explicada a não ser como manifestação do poder. Não sendo a pena racional, esta só pode distinguir-se das demais sanções jurídicas por exclusão.

A falta de racionalidade da pena deriva de não ser um instrumento idôneo para a solução de conflitos. Logo, toda sanção jurídica ou imposição de dor a título de decisão de autoridade, que não se

81

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 986.

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encaixe nos modelos abstratos de solução de conflitos dos outros ramos do direito, é uma pena.

[...]

O próprio nome ‘pena’ indica um sofrimento. Sofrimento existe, entretanto, em quase todas as sanções jurídicas: sofremos quando nos embargam a casa, nos cobram um juro definitivo, nos anulam um processo, nos colocam em quarentena, nos conduzem coercitivamente como testemunhas, etc. Nenhum desses sofrimentos é denominado ‘pena’, pois possuem um sentido, ou seja, de acordo com modelos abstratos, servem para resolver algum conflito. A pena, ao contrário, como sofrimento órfão de racionalidade, há vários séculos procura um sentido e não o encontra, simplesmente porque não tem sentido a não ser como manifestação de poder82.

Considerando-se a pena como manifestação do poder e sendo imperiosa a

limitação do poder estatal pelos motivos explanados no capítulo antecedente, resta

manifesta a necessidade e notória importância de uma legislação que regule a

execução penal, prevendo os exatos contornos da atuação do Estado na imposição

da pena nos casos concretos. Malgrado tal fato, o ordenamento jurídico brasileiro

carecia de lei específica que tratasse sobre a execução penal até 02 de outubro de

1957. O advento da Lei n. 3.274 aparentemente supriu a necessidade de

regulamentação da execução penal, porém ante a omissão do legislador em prever

mecanismos de sanção aos casos de descumprimento de seus dispositivos revelou-

se letra morta face sua ineficácia83.

Após 1957, várias foram as tentativas de legislar sobre a execução penal que

não lograram êxito, até que em 11 de julho de 1984 foi promulgada a Lei n. 7.210,

conhecida atualmente como Lei de Execução Penal – LEP84. Além de revogar

expressamente a lei editada anteriormente, a Lei de Execução Penal brindou o

ordenamento jurídico pátrio com um sistema complexo de normas que

regulamentam de forma mais ampla a execução penal85.

Ao estudar a execução da pena criminal, imprescindível que se tenha em

mente o objetivo previsto no artigo 1º da Lei n. 7.210/1984:

82

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, p. 202-204 – grifos originais. 83

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei nº 7.210, de 11-7-1984. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2006. 84

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei nº 7.210, de 11-7-1984. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2006. 85

KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 9. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011.

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Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado86.

Pretende o Estado viabilizar a concretização do mandamento contido na

sentença penal condenatória, de forma a normatizar o poder exercido pelas

agências penais quando da execução da sentença. Busca-se tanto a correta

aplicação da pena de modo a propiciar o salutar reingresso do apenado na

sociedade, quanto a prevenção do excesso e abuso na execução penal por parte

dos agentes estatais.

Certo que a Lei n. 7.210/1984 se aplica a todos os indivíduos que se

encontram no cárcere, sendo em razão de pena imposta em sentença condenatória

transitada em julgado ou de prisão cautelar. É o que se depreende da leitura do

artigo 2º, parágrafo único, da Lei n. 7.210/1984: “Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao

preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a

estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária”87.

De acordo com o artigo 2º, caput, da Lei n. 7.210/1984, aplicam-se os

dispositivos do Código de Processo Penal à execução penal88. Portanto, a execução

penal se submete aos princípios processuais penais, razão pela qual serão a seguir

analisados.

2.2 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS PENAIS: AS REGRAS DO JOGO DO

PROCESSO PENAL

Sumariamente deve ser ressaltado que não há intenção em esgotar o tema,

face à quantidade de princípios processuais inserta nos manuais. Serão aqui

brevemente comentados os princípios que Aury Lopes Júnior considerou como

fundamentais ao estudo do processo penal em sua obra Direito Processual Penal,

bem como o princípio da humanidade por ser de vital importância na aplicação da

pena criminal. 86

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012. 87

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012. 88

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012.

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Princípios devem ser compreendidos como preceitos fundamentais e gerais

de um sistema que “[...] constituem a própria essência do sistema jurídico, com

inegável caráter de ‘norma’”89. São as chamadas regras do jogo, sendo

imprescindível sua restrita observância para que o processo penal tutele os direitos

individuais fundamentais e alcance um status garantista90. Por oportuno, devem ser

relembrados os dez axiomas do sistema garantista propostos por Luigi Ferrajoli e

estudados no primeiro capítulo – mais precisamente no item 1.1 –, porquanto os

princípios a seguir analisados configuram mero desdobramento daqueles.

2.2.1 Princípio da jurisdicionalidade

Da forma pela qual tradicionalmente é estudado, o princípio da

jurisdicionalidade visa garantir o direito dos cidadãos à jurisdição como meio de

resolução de conflitos. O Estado, na figura do juiz, atua como substituto das partes

buscando a solução da lide com base nos fundamentos do direito91. Em relação ao

ramo do Direito Penal, a submissão à jurisdição assegura que o cidadão acusado da

prática de delito não sofra vingança pública ou privada, uma vez que será

processado e julgado de acordo com os preceitos legais, lhe sendo garantido o

respeito de seus direitos individuais fundamentais92.

Aprofundando-se o estudo do princípio em voga, resta nítido que representa

muito mais do que a necessidade de existência do juiz para resolver conflitos

submetidos à apreciação do Poder Judiciário. Isto porque “também representa a

exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz natural, independência da

magistratura e exclusiva submissão à lei”93. Não olvidando a importância das demais

características, deve ser dada especial atenção à independência da magistratura e

exclusiva submissão à lei.

89

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173. 90

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. 91

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Teoria geral do processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. 92

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 93

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 174.

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As duas características acima destacadas refletem a necessidade da atuação

do juiz estar acima de qualquer espécie de pressão ou manipulação política e a

proibição do chamado decisionismo. A primeira garante a imparcialidade do juiz, que

pode e deve julgar de acordo com seu posicionamento teórico, não necessitando

seguir orientações jurisprudenciais das quais não concordar. A segunda implica no

respeito às regras do jogo quando do andamento do processo, culminando na

sentença absolutória ou condenatória com fulcro nas provas legalmente produzidas

nos autos. Advém disto outros princípios, tais como o do devido processo legal,

contraditório e ampla defesa, presunção da inocência, duração razoável do

processo94.

Ao representar o Estado, “[...] a função do juiz é atuar como garantidor da

eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo

penal”95. Como bem assinalou Aury Lopes Júnior, não se procura neutralidade na

figura do juiz. O fato de ser juiz não anula sua qualidade de ser humano, que como

tal tem suas convicções, sentimentos e posicionamentos políticos. O que deve ser

vedada é a prática de acatar previamente as teses da defesa ou da acusação, sem a

mínima comprovação probatória, para posteriormente encontrar argumentos que as

justifiquem (mesmo que minimamente)96. Nas palavras do autor, deve-se evitar:

[...] aquele juiz que absorve esse discurso de limpeza social e assim passa a atuar, colocando-se no papel de defensor da lei e da ordem, verdadeiro guardião da segurança pública e da paz social. A situação é grave, na medida em que tudo isso se reflete no ato decisório, pois a sentença é reflexo da eleição de uma das teses a ele submetidas (acusação e defesa), bem como de um juízo axiológico da prova e da lei aplicável ao caso.

Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e a própria Administração da Justiça, pois é presa fácil dos juízos apriorísticos de inverossimilitude das teses defensivas; é adepto da banalização das prisões cautelares; da eficiência antigarantista do processo penal; dos poderes investigatórios/instrutórios do juiz; do atropelo de direitos e garantias fundamentais (especialmente daquela “tal” presunção de inocência); da relativização das nulidades pro societate; é adorador do rótulo “crime hediondo”, pois a partir dele pode tomar as mais duras decisões sem qualquer esforço discursivo (ou mesmo fundamentação); introjeta com facilidade os discursos de “combate ao crime”; como (paleo)positivista, acredita no dogma da completude do sistema jurídico, não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo “é injusto, mas é a lei, e, como

94

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. 95

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 178. 96

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

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tal, não lhe cabe questionar”; sente-se a vontade no manejo dos conceitos vagos, imprecisos e indeterminados (do estilo “prisão para garantia da ordem pública”, “homem médio”, “crimes de perigo abstrato”, etc.), pois lhe permitem ampla manipulação etc97.

Não se deve confundir a figura do juiz com a de justiceiro, como se uma

simples toga pudesse transformar um operador da lei em um super-herói.

2.2.2 Princípio acusatório

Ao Estado que pretende instaurar um Direito democrático, deve ser

assegurado o sistema penal acusatório que, consoante a lição de Aury Lopes Júnior,

possui as seguintes características:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;

b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades);

c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo;

d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo);

e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente);

f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte);

g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa);

h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional;

i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada;

j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição98.

Havendo órgão constitucionalmente investido na função acusatória (Ministério

Público – artigo 129, I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988),

não cabe ao juiz o direito de produzir provas, malgrado a existência do artigo 156 do

Código de Processo Penal99. Finda a instrução processual, caso perdure dúvidas em

97

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 181/182. 98

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 118/119. 99

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

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relação à materialidade, autoria ou culpabilidade do acusado, a medida a ser tomada

é a absolvição com fulcro no princípio do in dubio pro reo. Isto porque o resultado

das diligências determinadas pelo juiz para dirimir dúvida sobre ponto relevante

dificilmente acarretará em uma sentença absolutória, porquanto nítido o

convencimento de que o acusado deve ser condenado, pois se não houvesse o

desejo de encontrar argumentos válidos para embasar a condenação o juiz

terminaria o processo proferindo sentença com supedâneo no artigo 386, VII do

Código de Processo Penal, reconhecendo a inexistência de prova suficiente para a

condenação100.

Veda-se o sistema penal inquisitivo e decisionista, que segundo Luigi

Ferrajoli:

[...] assenta-se em todos os casos a busca da verdade substancial, que por isso se configura como uma verdade máxima, perseguida sem qualquer limite normativo aos meios de aquisição das provas e ao mesmo tempo não vinculada, mas discricionária, no mínimo porque a indeterminação das hipóteses de acusação e o seu caráter avaliativo exigem, mais que provas, juízos de valor não contestáveis pela defesa. Nesse segundo modelo [inquisitivo] o fim (de atingir a verdade qualquer que seja) justifica os meios (os procedimentos quaisquer que sejam); enquanto no primeiro [sistema acusatório] é o fim que é legitimado pelos meios (porque fundado ou garantido por vínculos representados)101.

Portanto, fundamental que o julgador se abstenha da produção de provas

para garantir tanto sua imparcialidade quanto o respeito ao sistema acusatório. Para

corroborar, colhe-se da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa

Catarina:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ESTELIONATOS CONSUMADO E TENTADO EM CONTINUIDADE DELITIVA. RECURSO DA DEFESA. PRELIMINAR DE NULIDADE. AUSÊNCIA DO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. PARTE QUE, INTIMADA, NÃO COMPARECEU AO ATO. JULGADOR QUE SE IMISCUIU NO MISTER DAQUELE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. PROVA PRODUZIDA QUE ALICERÇOU A CONDENAÇÃO. NULIDADE INSANÁVEL. PRECEDENTES DO STJ. PREFACIAL ACOLHIDA102.

100

Informação verbal fornecida por Alexandre Morais da Rosa na palestra intitulada Monitoramento eletrônico: um mundo Big Brother, realizada em 05 de out. de 2012 no VII Congresso dos Centros Acadêmicos de Direito de Santa Catarina. 101

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 498. 102

SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal n. 2011.007685-2, de São José. Julgado pela Terceira Câmara Criminal. Relator: Desembargador Torres Marques. Disponível em:

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Destarte, urge ressaltar que deve ser respeitado o sistema penal acusatório

eleito pela Constituição da República Federativa do Brasil como garantia processual

do cidadão, não obstante os resquícios do sistema penal inquisitivo presentes na

legislação infraconstitucional.

2.2.3 Princípio da presunção de inocência

Dispõe o artigo 5º, LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988 que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença

penal condenatória”103.

Rege-se o processo penal através da premissa de que todo cidadão é

presumidamente inocente. Consoante Luigi Ferrajoli, a afirmação decorre da

necessidade da jurisdição declarar o acusado culpado pela prática do crime que

supostamente teria praticado. Portanto, enquanto não houver a condenação (e

consequente declaração da culpa) transitada em julgado, evidente que subsiste a

inocência do acusado104.

Notório que “esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de

uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao

custo da impunidade de algum culpado”105. Implicação lógica do princípio em tela é o

tratamento a ser dado ao acusado, principalmente no que se refere ao ônus

probatório. Sendo presumidamente inocente, caberá exclusivamente à acusação a

produção da prova hábil a demonstrar irrefutavelmente a culpa do acusado e uma

vez não logrando êxito em tal mister, a absolvição pelo princípio do in dubio pro reo

é medida que se impõe106.

No tocante à dimensão externa ao processo, Aury Lopes Júnior advogou que:

<http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAABAAL9czAAa&categoria=acordao>. Acesso em: 08 out. 2012. 103

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 out. 2012. 104

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 105

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 506. 106

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

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Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência107.

Em que pese o caráter externo do princípio da presunção da inocência,

infelizmente o cenário atual da República Federativa do Brasil apresenta um quadro

bastante interessante, no qual grandes escândalos protagonizados por pessoas

importantes ou crimes praticados com requintes de crueldade ganham grande

repercussão midiática nacional, sendo a sentença prolatada pelo juiz mera repetição

da condenação proferida pela opinião pública.

2.2.4 Princípio do contraditório e ampla defesa

Assegura o artigo 5º, LV, da Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988 que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados

em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos

a ela inerentes”108.

Constitui o contraditório no direito da parte em ser informada dos atos

processuais e de participar ativamente no processo, respondendo à acusação que

lhe é imputada. Dessa forma,

Numa visão moderna, o contraditório engloba o direito das partes de debater frente ao juiz, mas não é suficiente que tenham a faculdade ampla de participação no processo; é necessário também que o juiz participe intensamente (não confundir com juiz-inquisidor ou com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz), respondendo adequadamente às petições e requerimentos das partes, fundamentando suas decisões (inclusive as interlocutórias), evitando atuações de ofício e as surpresas. Ao sentenciar, é crucial que observe a correlação acusação-defesa-sentença109.

107

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 239. 108

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 out. 2012. 109

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241.

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Por sua vez, a ampla defesa é o direito do acusado à defesa técnica e à

autodefesa. Em todos os atos processuais o acusado deve ser assistido por

advogado, eis que o último possui conhecimento técnico que o qualifica a postular

em igualdade com o representante do Ministério Público responsável pela acusação.

Garante-se a paridade de armas ao exigir a presença da defesa técnica, sendo este

direito de tal importância que sua não observância gera nulidade absoluta110. No

tocante à autodefesa, que se manifesta principalmente no interrogatório judicial,

importante frisar o direito constitucional111 do acusado em se manter silente e não

produzir provas contra si mesmo112.

É manifesto que o direito ao contraditório e à ampla defesa estão

[...] indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório113.

O respeito aos princípios explanados são fundamentais no decorrer do

processo penal. Apenas assim pode-se evitar que ocorram absurdos jurídicos, que

se repita a famigerada história contada por Franz Kafka no Processo114.

2.2.5 Princípio da motivação das decisões judiciais

A obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais está expressamente

prevista no artigo 93, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988115. Valendo-se mais uma vez da lição de Aury Lopes Júnior, temos que este

dever imposto ao juiz:

110

Artigo 564, III, c, do Código de Processo Penal: “Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: [...] III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: [...] c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos.” 111

Artigo 5º, LXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil. No mesmo sentido: artigo 8º, 2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos. 112

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. 113

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Teoria geral do processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. 114

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005. 115

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 out. 2012.

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Serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, principalmente se foram observadas as regras do devido processo legal. Trata-se de uma garantia fundamental e cuja eficácia e observância legitimam o poder contido no ato decisório. Isso porque, no sistema constitucional-democrático, o poder não está autolegitimado, não se basta por si próprio. Sua legitimação se dá pela estrita observância das regras do devido processo penal, entre elas o dever (garantia) da fundamentação dos atos decisórios116.

Portanto, é obrigatória a exposição dos motivos de fato e de direito que

motivaram a decisão condenatória ou absolutória para que se torne avaliável o

raciocínio desenvolvido na valoração das provas produzidas ao longo da instrução

processual117. Além disso, a fundamentação das decisões judiciais é fundamental

para inibir o famoso poder da caneta, mal que ainda hoje afeta muitos juízes de

direito.

2.2.6 Princípio da humanidade

Estabelece o artigo 5º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988 que: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou

degradante” 118. No mesmo sentido, o inciso XLVII prescreve que não haverá penas:

“a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de

caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis” 119.

Limita-se a atuação do poder punitivo estatal ao vedar a imposição das penas

cruéis, em suas derivadas facetas, no ordenamento jurídico pátrio. Portanto, é certo

afirmar que o princípio da humanidade ou da proscrição da crueldade120 visa garantir

116

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241, p. 253. 117

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241. 118

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 out. 2012. 119

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 08 out. 2012. 120

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

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que o cidadão suspeito ou formalmente acusado/condenado pela prática de um

crime seja tratado como ser humano, sendo respeitadas sua dignidade e integridade

física e psicológica121. Nesta senda, especificamente no tocante ao cerceamento do

direito à liberdade, o apenado deve ser constrangido ao mal estritamente necessário

sendo dever do Estado evitar práticas das quais derivam consequências brutais122.

Acerca deste princípio, sustentou Guilherme de Souza Nucci:

Na prática, no entanto, lamentavelmente, o Estado tem dado pouca atenção ao sistema carcerário, nas últimas décadas, deixando de lado a necessária humanização do cumprimento da pena, em especial no tocante à privativa de liberdade, permitindo que muitos presídios se tenham transformado em autênticas masmorras, bem distantes do respeito à integridade física e moral dos presos, direito constitucionalmente imposto123.

Infelizmente, uma rápida contemplação às manchetes dos jornais corrobora o

sustentado por Guilherme de Souza Nucci e Eugenio Raúl Zaffaroni. Há ainda

muitos funcionários do Estado que confundem o dever de deter com o inexistente

direito de torturar.

2.3 A SANÇÃO ORTOPÉDICA DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL: O REGIME

DISCIPLINAR DIFERENCIADO

Com o nítido objetivo de impor ordem nas unidades de cumprimento da pena

criminal, a Lei de Execução Penal prevê as chamadas faltas disciplinares. De acordo

com a redação do artigo 49, caput, da Lei n. 7.210/1984, as faltas classificam-se em

leves, médias e graves, sendo de competência da legislação local a especificação

do comportamento que caracterizam as duas primeiras, bem como imposição das

respectivas sanções. As faltas consideradas graves estão elencadas nos artigos 50

121

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v. 122

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003. 123

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 989.

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e 51 da Lei n. 7.210/1984, e são punidas com as sanções previstas no artigo 53 do

mencionado diploma legal124.

Ademais, o artigo 52 da Lei n. 7.210/1984, com a alteração dada pela Lei n.

10.792/2003, prevê condutas merecedoras de maior reprovabilidade e que devem

ser punidas pela sanção disciplinar do artigo 53, V, da Lei n. 7.210/1984: a inclusão

no regime disciplinar diferenciado. Este instituto, por ser capaz de gerar severas

críticas principalmente sobre o viés do Garantismo Penal, é o alicerce do presente

trabalho de iniciação científica, razão pela qual passa a ser estudado com mais

afinco.

2.2.1 Origem histórica

Em 18 de dezembro do ano 2000 a Secretaria de Administração Penitenciária

do Estado de São Paulo foi surpreendida com a rebelião dos detentos da Casa de

Custódia de Taubaté, sita no interior de São Paulo. Considerado como presídio de

segurança máxima, abrigava presos tidos como de alta periculosidade, como

Fernando de Assis Pereira, vulgo maníaco do parque. Foram 36 horas de

negociações até o final da revolta, que acabou com o saldo de 23 reféns liberados e

09 presos mortos125.

Dois meses após, em 18 de fevereiro de 2001, a facção criminosa conhecida

como Primeiro Comando da Capital – PCC, em clara demonstração de seu poderio

e organização, comandou a megarrebelião do Estado de São Paulo. Planejada no

interior dos presídios paulistas por meio da comunicação entre telefones celulares, a

revolta ocorreu no domingo, dia de visitas. Estima-se que 25 mil presos, distribuídos

em 19 penitenciárias, participaram da megaoperação, a qual resultou em pelo

menos 05 mortes126.

124

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012. 125

Rebelião em Taubaté chega ao fim após 36 horas; 9 morreram. Folha de São Paulo online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u17037.shtml>. Acesso em: 02 out. 2012. 126

PORTELA, Fábio. Saiba como foi a megarrebelião de 18 de fevereiro de 2001. Folha de São Paulo online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u46349.shtml>. Acesso em: 02 out. 2012.

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Diante desse cenário do sistema prisional, o Estado de São Paulo se viu na

obrigação de tomar atitudes visando solucionar o problema. A medida emergencial

encontrada para amenizar a situação foi o estabelecimento do chamado Regime

Disciplinar Diferenciado, através da Resolução da Secretaria de Administração

Penitenciária n. 26, publicada no Diário Oficial em 05 de maio de 2001. Este instituto

consistia em sanção administrativa aplicável aos líderes e integrantes das facções

criminosas e aos presos que exigissem tratamento diferenciado. Submetiam-se os

presos ao isolamento individual celular, com o incessante objetivo de inibir novas

adesões aos partidos criminosos e suas manifestações de poder e disciplina127.

Por oportuno, para que seja avaliada a real dimensão do instituto tal qual foi

criado, transcreve-se o inteiro teor da Resolução n. 26, de 05 de maio de 2001:

Regulamenta a inclusão, permanência e exclusão dos presos no Regime Disciplinar Diferenciado

O Secretário da Administração Penitenciária, de conformidade com a Lei de Execução Penal, especialmente o artigo 53, IV, e o Decreto 45.693/2001, considerando que: É necessário disciplinar, dentre os estabelecimentos penitenciários, o Regime Disciplinar Diferenciado, destinado a receber presos cuja conduta aconselhe tratamento específico, a fim de fixar claramente as obrigações e as faculdades desses reeducandos; Os objetivos de reintegração do preso ao sistema comum devem ser alcançados pelo equilíbrio entre a disciplina severa e as oportunidades de aperfeiçoamento da conduta carcerária; O Regime Disciplinar Diferenciado é peculiar, mas, apesar de seu rigor, não pode ser discriminatório, permanente ou afrontador das disposições das Constituições da República e do Estado, e da Lei de Execução Penal, RESOLVE:

Artigo 1º - O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), aplicável aos líderes e integrantes das facções criminosas, bem como aos presos cujo comportamento exija tratamento específico, é próprio do Anexo de Taubaté, das unidades I de Avaré, I e II de Presidente Wenceslau, Iaras e de outras designadas pela Administração.

Artigo 2º - O Diretor Técnico de qualquer unidade, em petição fundamentada, solicitará a remoção do preso ao RDD, perante o Coordenador Regional das unidades prisionais, que, se estiver de acordo, encaminhará o pedido ao Secretário Adjunto, para decisão final.

Artigo 3º - Ninguém será incluído no RDD por fato determinante de inclusão anterior.

Artigo 4º - O tempo máximo de permanência, na primeira inclusão, é de 180 dias; nas demais, de 360 dias.

§ 1º - No decorrer da permanência do preso no RDD, havendo a prática de fato grave devidamente comprovado, deverá ser feito novo pedido de inclusão, procedendo-se nos termos do artigo 2º.

127

KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 9. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011.

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50

§ 2º - Os Diretores das unidades citadas no art. 1º., assessorados pelos técnicos do Centro de Segurança e Disciplina e do Núcleo de Reabilitação, poderão requerer ao Secretário Adjunto, com parecer prévio do Coordenador Regional, que reconsidere a decisão de inclusão do preso no RDD.

Artigo 5º - Durante a permanência, para assegurar os direitos do preso, serão observadas as seguintes regras:

I - Conhecimento dos motivos de inclusão no RDD.

II - Saída da cela para banho de sol de, no mínimo, 1 hora por dia.

III - Acompanhamento técnico programado.

IV - Duração de 2 horas semanais para as visitas, atendido o disposto no Artigo 1º da Resolução SAP-9/2001.

V - Permanecer sem algemas, no curso das visitas.

VI - Remição da pena pelo trabalho e pela educação, conforme a lei e a jurisprudência.

VII - Remição do RDD, à razão de 1 dia descontado por 6 dias normais, sem falta disciplinar, com a possibilidade de serem remidos, no máximo, 25 dias, e cumpridos 155 dias de regime.

VIII - A ocorrência de falta disciplinar determina a perda do tempo anteriormente remido.

IX - Contato com o mundo exterior pela correspondência escrita e leitura.

X - Entrega de alimentos, peças de roupas e de abrigo e objetos de higiene pessoal, uma vez ao mês, pelos familiares ou amigos constantes do rol de visitas.

Artigo 6º - O cumprimento do RDD exaure a sanção e nunca poderá ser invocado para fundamentar nova inclusão ou desprestigiar o mérito do sentenciado, salvo, neste último caso, a má conduta denotada no curso do regime e sua persistência no sistema comum.

Artigo 7º - A reinclusão só poderá ser determinada com base em fato novo ou contumácia na prática dos mesmos atos que levaram o sentenciado à primeira inclusão.

Artigo 8º - A inclusão e a exclusão do sentenciado no RDD serão comunicadas, em 48 horas, ao Juízo da Execução Penal.

Artigo 9º - Os casos omissos serão solucionados com a aplicação do Regimento Interno Padrão dos Estabelecimentos Prisionais do Estado de São Paulo.

Artigo 10 - As ordens de inclusão no RDD, anteriores à presente Resolução, ficam canceladas.

Artigo 11 - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, alcançando desde logo os sentenciados já incluídos no RDD, sem prejuízo do tempo anterior de inclusão. Revogam-se as disposições em contrário, especialmente a Resolução SAP-78/93128.

128

KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 9. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011, p. 154-155.

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51

No dia 14 de março de 2003, o juiz-corregedor Antônio José Machado Dias foi

morto a tiros na cidade de Presidente Prudente, Estado de São Paulo. Após dez

dias, em 24 de março de 2003, o juiz da Vara de Execuções Penais Alexandre

Martins de Castro Filho, integrante do grupo contra o crime organizado do Estado do

Espírito Santo, foi assassinado a tiros ao sair de uma academia em Vila Velha129.

Manifestando-se acerca do Regime Disciplinar Diferenciado, o Conselho

Nacional de Política Criminal através da Resolução n. 10, publicada no Diário Oficial

em 15 de maio de 2003, acusou que a ocorrência dos dois crimes mencionados – e

inquestionavelmente a importância social das vítimas –, aliada à necessidade de

custodiar o preso Luís Fernando da Costa, vulgo Fernandinho Beira-mar, reacendeu

a discussão da necessidade de construção de unidades penitenciárias de segurança

máxima no país e impulsionou a adoção do Regime Disciplinar Diferenciado no

âmbito federal. Concluiu o Conselho Nacional de Política Criminal que não se pode

confundir sanção disciplinar com regime de cumprimento de pena, sendo o estrito

cumprimento dos dispositivos da Lei de Execuções Penais suficientes para punir os

presos indisciplinados, motivo pelo qual se posicionou contra a aprovação de lei que

implementasse o Regime Disciplinar Diferenciado em âmbito nacional130.

Não obstante a orientação do Conselho Nacional de Política Criminal, a Lei n.

10.792 foi promulgada em 1º de dezembro de 2003131, alterando a redação do artigo

52 da Lei n. 7.210/1984 – Lei de Execução Penal e fazendo com que o Regime

Disciplinar Diferenciado passasse a vigorar em todo território nacional.

2.2.2 Hipóteses legais de cabimento e características do Regime Disciplinar

Diferenciado

Com a já mencionada alteração dada pela Lei n. 10.792/2003, o artigo 52 da

Lei n. 7.210/1984 passou a vigorar nos seguintes termos:

129

Juiz é assassinado a tiros em Vila Velha (ES). Folha de São Paulo online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u71723.shtml>. Acesso em: 02 out. 2012. 130

KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 9. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011. 131

BRASIL. Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.792.htm>. Acesso em: 02 out. 2012.

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52

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando132.

Depreende-se da leitura do artigo transcrito que, por excelência, caberá a

imposição do Regime Disciplinar Diferenciado na hipótese do preso praticar

dolosamente fato previsto como crime e que ocasione subversão à ordem ou

disciplina interna. Sobre esta condição autorizadora da sanção disciplinar, devem

ser observadas duas particularidades. A primeira consiste no fato de que a letra da

lei define a falta grave que dá azo ao Regime Disciplinar Diferenciado utilizando a

expressão “prática de fato previsto como crime doloso”, traduzindo a

desnecessidade de ilidir o princípio da presunção da inocência por meio de sentença

condenatória com trânsito em julgado para o estabelecimento da sanção

administrativa. Como é sabido, o trâmite do processo penal pode ser extremamente

moroso, o que não se coaduna com a rapidez da resposta exigida pelo instituto133.

Outrossim, deve ser destacado que não é qualquer falta grave consistente na

prática de fato definido como crime doloso que sustentará a sanção ora em

comento. Exige-se legalmente que o fato ocasione subversão à ordem ou disciplina

internas, ou seja, o crime cometido pelo preso deverá ser hábil a perturbar a ordem

e o sossego da unidade carcerária, alterando sua disciplina interna e prejudicando a

132

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 out. 2012. 133

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1004.

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53

rotina dos seus habitantes. Caso a repercussão do crime seja insignificante, serão

aplicadas as demais sanções previstas no artigo 53 da Lei n. 7.210/1984134.

Nos casos em que o motivo da inclusão do preso no Regime Disciplinar

Diferenciado for o artigo 52, caput, da Lei n. 7.210/1984 deverá ser respeitado o

limite máximo de 360 dias de isolamento celular – uma das características do

instituto, comentada em momento oportuno – conforme o disposto no artigo 52, I, da

Lei n. 7.210/1984. Após o cumprimento da medida pelo prazo estipulado

judicialmente, caso haja reiteração da conduta, isto é, nova prática de fato definido

como crime doloso que ocasione subversão à ordem ou disciplina interna, o preso

poderá novamente ser condenado ao Regime Disciplinar Diferenciado. Neste caso,

além do respeito ao prazo limite mencionado anteriormente, deve ser observado que

o somatório dos períodos de segregação não poderá exceder 1/6 da pena

aplicada135 ou, no caso de preso provisório, da pena máxima cominada em

abstrato136.

Outras hipóteses de cabimento do Regime Disciplinar Diferenciado estão

inseridas nos parágrafos do artigo 52 da Lei n. 7.210/1984. Será submetido à

sanção disciplinar o preso que apresentar alto risco para a ordem e a segurança do

estabelecimento penal ou da sociedade (artigo 52, §1º, da Lei n. 7.210/1984) ou sob

o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer

título, em organização criminosa, quadrilha ou bando137. Frisa-se que, além do

subjetivismo explícito das circunstâncias autorizadoras, há controvérsia acerca do

que vem a ser organização criminosa, uma vez que não há conceito legal no

ordenamento jurídico brasileiro, sendo que o magistrado poderá optar, dentre os

possíveis entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, por aquele que achar mais

conveniente. Apenas a título de ilustração, tendo em vista que não é a pretensão do

presente trabalho se debruçar sobre a doutrina acerca do que vem a ser

organização criminosa, a Convenção de Palermo assim define os grupos criminosos

organizados:

134

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11-7-1984. 11. ed. rev. e atual. até 31 de março de 2004. São Paulo: Atlas, 2006. 135

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 out. 2012. 136

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11-7-1984. 11. ed. rev. e atual. até 31 de março de 2004. São Paulo: Atlas, 2006. 137

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 out. 2012.

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54

Artigo 2. Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:

a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material138.

Ao contrário da sanção embasada pelo artigo 52, caput, da Lei n. 7.210/1984,

quando o Regime Disciplinar é imposto em razão da ocorrência das situações

descritas nos parágrafos do mencionado artigo, não é necessária a observância do

prazo máximo de 360 dias de segregação, sendo recomendável a revisão periódica

da necessidade da permanência do preso na sanção disciplinar. No entanto, em

qualquer hipótese deve ser respeitado o limite máximo de 1/6 da pena, nos moldes

explicitados anteriormente. É a orientação do Superior Tribunal de Justiça, como se

vê no julgado selecionado:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. ARTIGO 52 DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO. INCONSTITUCIONALIDADE. INOCORRÊNCIA. TEMPO DE DURAÇÃO. LEGALIDADE. ORDEM DENEGADA.

1. É constitucional o artigo 52 da Lei nº 7.210/84, com a redação determinada pela Lei nº 10.792/2003.

2. O regime diferenciado, afora a hipótese da falta grave que ocasiona subversão da ordem ou da disciplina internas, também se aplica aos presos provisórios e condenados, nacionais ou estrangeiros, "que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade".

3. A limitação de 360 dias, cuidada no inciso I do artigo 52 da Lei nº 7.210/84, é, enquanto prazo do regime diferenciado, específica da falta grave, não se aplicando à resposta executória prevista no parágrafo primeiro do mesmo diploma legal, pois que há de perdurar pelo tempo da situação que a autoriza, não podendo, contudo, ultrapassar o limite de 1/6 da pena aplicada.

4. Em obséquio das exigências garantistas do direito penal, o reexame da necessidade do regime diferenciado deve ser periódico, a ser realizado em prazo não superior a 360 dias.

5. Ordem denegada139.

138

BRASIL. Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>, acesso em: 02 out. 2012. 139

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 44.049/SP. Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa. Julgado pela Sexta Turma em 12 de jun. de 2006. Publicado no Diário da Justiça de 19 de dez. de 2007. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=630511&sReg=200500778098&sData=20071219&formato=PDF>. Acesso em: 02 out. 2012 – sem grifo no original.

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No tocante às características do Regime Disciplinar Diferenciado, estas estão

elencadas nos incisos do artigo 52 da Lei n. 7.210/1984. Merece destaque o artigo

52, II, da Lei n. 7.210/1984 que faz referência ao recolhimento em cela individual.

Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Justiça, através do Departamento

Penitenciário Nacional, em dezembro de 2011 a população carcerária era composta

por 514.582 pessoas, sendo que, consoante a indicação da Secretaria de Justiça e

Segurança Pública, o sistema penitenciário contava com 306.497 vagas140. A

informação relatada demonstra o disparate da exigência do isolamento do preso em

cela individual, eis que é notório que o cenário jurídico enfrenta problema bastante

complexo com a superlotação carcerária. Porém, ante a expressa exigibilidade, as

unidades carcerárias devem adequar sua infraestrutura a fim de abrigar os presos

do Regime Disciplinar Diferenciado.

Em relação às visitas, o preso terá direito a receber 02 pessoas pelo tempo

máximo de 02 horas, não entrando neste cômputo as crianças. O preso ficará

recluso durante 22 horas diárias, sendo 02 horas destinadas ao banho de sol141.

Urge ressaltar que a inclusão do preso no Regime Disciplinar Diferenciado

deverá obedecer aos procedimentos previstos no artigo 54 da Lei n. 7.210/1984,

quais sejam: prévio requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do

estabelecimento onde o preso se encontra recluso ou outra autoridade

administrativa, seguido da manifestação do Ministério Público e da defesa,

culminando na decisão fundamentada do juiz que deve ser prolatada no prazo

máximo de 15 dias142.

140

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Relatório estatístico. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={916E202D-BB11-49F3-9856-B1B3D6CD8065}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}>. Acesso em: 02 out. 2012. 141

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 out. 2012. 142

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 02 out. 2012.

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3 REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: UMA ANÁLISE SOB A

ÓTICA DA TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Objetiva-se com o derradeiro capítulo proceder à análise do tema específico

deste trabalho de iniciação científica. Será apresentada a teoria elaborada por

Günther Jakobs que legitima o Direito Penal do Inimigo, contraposta à teoria que

advoga a impossibilidade deste conceito subsistir no Estado de Direito. Ademais,

imprescindível que se discorra brevemente acerca de assuntos diretamente

relacionados ao tema proposto para sua melhor elucidação. Portanto, será exposta a

(possível) origem emergencial do Regime Disciplinar Diferenciado e o alcance do

chamado movimento lei e ordem no cenário jurídico pátrio. Finalizando o trabalho,

será averiguada a compatibilidade do Regime Disciplinar Diferenciado com a teoria

do Garantismo Penal.

3.1 DIREITO PENAL DO INIMIGO

Nova Iorque foi palco do emblemático atentado de 11 de setembro de 2001.

Membros da organização islâmica denominada Al-Qaeda sequestraram quatro

aviões comerciais para cumprir suas missões suicidas. Duas das aeronaves foram

lançadas contra os dois edifícios mais altos do complexo World Trade Center,

conhecidos como as torres gêmeas. As estruturas das torres não resistiram ao

impacto da colisão, cederam e ruíram, deixando o saldo de aproximadamente 3.000

mortos. O ataque terrorista foi transmitido em tempo real pelos principais noticiários,

levando o choque e sensação de insegurança aos cidadãos do mundo inteiro e

proclamando a vulnerabilidade do país considerado grande potência mundial143.

Após o trágico episódio que resultou na morte de milhares de civis, os

Estados Unidos adotaram uma postura de guerra ao terrorismo. Mais do que inibir

novos ataques combatendo seus possíveis autores, as políticas mais rígidas de

143

Entenda como ocorreram os atentados de 11 de setembro de 2001. G1.Disponível em: <http://g1.globo.com/11-de-setembro/noticia/2011/08/entenda-como-ocorreram-os-atentados-de-11-de-setembro-de-2001.html>. Acesso em: 22 out. 2012.

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segurança buscaram desvincular a imagem de país frágil herdada pelo episódio de

11 de setembro. Ressurgiu, assim, a teoria do Direito Penal do Inimigo144.

Resumidamente, o conceito de inimigo como ser desprovido de direitos

remonta do Direito Romano. Em razão da imensa dificuldade de comunicação

existente à época, uma vez que as línguas diversas do vernáculo eram ininteligíveis,

os indivíduos estrangeiros não conseguiam ser compreendidos. Por si só, tal fato

gerava a desconfiança dos romanos, que passavam a considerar todo aquele que

não pertencia à comunidade um inimigo político, também chamado de hostil. O

poder também poderia instituir seus inimigos ao selecionar o cidadão romano e

declará-lo como tal. Feito isto, o indivíduo perderia seu status de cidadão e poderia,

tal qual o estrangeiro, ser submetido às penas vedadas aos cidadãos romanos145.

Feito o breve comentário acerca de sua origem, passa-se à análise da teoria

que legitima a classificação dos indivíduos em cidadãos e inimigos. Dentre os

autores que abordaram o tema, o alemão Günther Jakobs merece destaque por ser

o maior defensor contemporâneo da legitimidade do Direito Penal do Inimigo, sendo

sua obra utilizada como base do estudo a seguir.

3.1.1 A legitimação da guerra conferida por Günther Jakobs

Hodierno defensor do Direito Penal do Inimigo, Günther Jakobs construiu sua

teoria amparado na presunção de que toda pessoa submetida à autoridade de um

Estado organizado se autodeterminará de acordo com as normas por ele impostas.

Esta fidelidade jurídica intrínseca, a qual chamou de apoio cognitivo às expectativas

normativas, é necessária para que o cidadão saiba o que esperar da interação social

e para que o Estado garanta a supremacia de sua configuração146.

Diante do quadro apresentado, surge a indagação: todo indivíduo que

contrariar a expectativa normativa estatal ao praticar fato definido como crime deve

ser considerado inimigo? Caso a resposta seja negativa, quais serão os critérios

144

GARCIA, Débora Faria. De Beccaria a Jakobs: panorama do sistema criminal em face da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.98, n.887, p. 453-492, set. 2009. 145

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. 146

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012.

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determinantes para tal definição? Ademais, como se justifica a dicotomia entre

Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo?

Em uma comunidade ordenada, os crimes constituem negação à validade da

norma penal. Sustentou Günther Jakobs que o Direito Penal tem a finalidade de

garantir a vigência real da norma, constituindo a pena uma coação que quando

imposta aos cidadãos é dotada de significado simbólico. Ao aplicar a pena criminal

repressivamente, como resposta ao fato praticado pelo criminoso que violou o

dispositivo da lei penal, o Estado afirma que o ordenamento jurídico continua

vigente, traduzindo a irrelevância do ato praticado diante da superioridade da

configuração estatal. Portanto, embora o ordenamento jurídico tenha sido infringido

pela conduta do criminoso, esta não tem o condão de suprimir a ordem e

supremacia do Estado, razão pela qual este indivíduo não deve ser considerado

inimigo147. Assim sendo, o criminoso mantém seu status de cidadão, pois preserva

uma “[...] base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da comunidade,

conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o

sistema social”148.

O autor justificou a manutenção do criminoso no Direito Penal do Cidadão da

seguinte forma:

[...] por um lado, o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato149.

E concluiu que:

[...] o delito [praticado pelo cidadão] não aparece como princípio do fim da comunidade ordenada, mas só como infração desta, como deslize reparável. Para esclarecer o que foi dito, pense no sobrinho que mata seu tio, com o objetivo de acelerar o recebimento da herança, a qual tem direito. Nenhum Estado sucumbe por um caso destas características. Ademais, o ato não se dirige contra a permanência do Estado, e nem sequer contra a de suas instituições. O malvado sobrinho pretende amparar-se na proteção da vida e da

147

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. 148

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 5. 149

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 25-26.

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propriedade dispensadas pelo Estado; isto é, comporta-se, evidentemente, da maneira contraditória. Dito de outro modo, opta, como qualquer um reconheceria, por um mundo insustentável. E isso não só no sentido do insustentável, desde o ponto de vista prático, em uma determinada situação, mas já no plano teórico150.

Diante de tal quadro, imperioso reconhecer que os conceitos de criminoso e

inimigo não se confundem. Resta saber então quais são os critérios determinantes

para a definição deste último termo.

Günther Jakobs define tal questão apoiando-se nos ensinamentos de Thomas

Hobbes e Immanuel Kant. Por considerarem que a liberdade individual ilimitada

constituía ameaça à instituição do Estado, os filósofos definiam como inimigos todos

os indivíduos que se encontravam em estado de natureza por não se sujeitarem à

autoridade e supremacia do Estado organizado151. Deste modo, em posição

diametralmente oposta ao cidadão, o inimigo é o:

[...] autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade, com a permanente frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social152.

Na lógica criada por Günther Jakobs o inimigo é o criminoso por princípio, que

“[...] rechaça, por princípio, a legitimidade do ordenamento jurídico, e por isso

persegue a destruição dessa ordem”153. A infidelidade jurídica intrínseca revela sua

violência em potencial, que se não for refreada é capaz de aniquilar o Estado154. Por

essa razão, o significado da pena para estes indivíduos é diferente.

Tratando-se do combate aos inimigos, advogou o autor que o poder punitivo

estatal deve ser exercido de forma prospectiva. Uma vez que o inimigo contraria as

expectativas normativas e tende à destruição da organização estatal, deve ser

interceptado antes mesmo da prática do crime que cometerá. O significado da pena

150

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 31. 151

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. 152

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 5. 153

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 31. 154

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012.

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criminal é de coação física, eis que impede a prática do futuro crime enquanto o

indivíduo está encarcerado. Pune-se o indivíduo em razão de sua periculosidade155.

Importa mencionar que o que permite a diferenciação entre cidadão e inimigo

é a personalidade da clientela do sistema penal. Juarez Cirino dos Santos elucidou

este fator:

Essa dicotomia bíblica entre anjos e demônios, ou entre bons e maus, ou entre nós e eles, funda-se no obscuro conceito de personalidade – que a moderna Psicologia não sabe se está limitada ao ego responsável pela relação com a realidade, se abrange o superego como instância de controle do ego ou, enfim, se inclui os instintos do id como fonte da energia psíquica –, que permite a JAKOBS considerar o cidadão um ser calculável pelo princípio do prazer, cuja subsistente capacidade de orientação normativa indica uma imanente fidelidade jurídica, justificando as expectativas normativas da comunidade quanto a um modus vivendi comum (relação cidadão/sociedade); também permite a JAKOBS considerar o inimigo um animal não-calculável pelo princípio do prazer, cuja intrínseca incapacidade de orientação normativa exclui atitudes de fidelidade jurídica e, assim, desautoriza a expectativa normativa da comunidade: o inimigo seria uma personalidade criminógena definível como adversário de princípio da organização de poder social, incapaz de um modus vivendi comum (contradição inimigo/sociedade)156.

Superada a apresentação dos conceitos de cidadão e inimigo, resta o estudo

da justificativa apresentada para a dicotomia entre Direito Penal do Cidadão e Direito

Penal do Inimigo. Como apontado por Débora Faria Garcia, a finalidade do Direito

Penal do Inimigo:

[...] é a de detectar e separar os “inimigos” dos cidadãos comuns dentro de um mesmo sistema normativo penal, sendo ambos regidos por regulamentos jurídicos distintos: de um lado estão os “cidadãos” e as normas que devem a ele ser aplicadas, com garantias penais e processuais respeitadas e possuindo todos os direitos do homem livre a ele assegurados após o cárcere; do outro lado, estão os “inimigos”, com a sua regulamentação jurídica diversa do “cidadão”, considerado uma fonte de perigo para a sociedade, possui tratamento igualitário ao combatente de guerra, inexistindo o direito de ser um cidadão após a sua prisão, pouco importando se o indivíduo praticou ou não algum delito157.

Buscando legitimar esta nítida distinção, Günther Jakobs sustentou que:

155

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. 156

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 6 – grifos originais. 157

GARCIA, Débora Faria. De Beccaria a Jakobs: panorama do sistema criminal em face da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.98, n.887, p. 453-492, set. 2009, p. 471.

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[...] Hobbes e Kant conhecem um Direito Penal do cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio – e um Direito Penal do inimigo contra quem se desvia por princípio. Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa. O Direito Penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito Penal do inimigo é Direito em outro sentido. Certamente, o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que reincidem persistentemente na comissão de delitos. Afinal de contas, a custódia de segurança é uma instituição jurídica. Ainda mais: os cidadãos têm direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança, com base no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est protectio. Mas neste direito não se encontra contido, em Hobbes, o réu de alta traição; em Kant, quem permanentemente ameaça; trata-se do direito dos demais. O Direito Penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra158.

A justificativa apresentada pelo autor para a adoção do duplo sistema de

imputação penal, cada qual abarcando uma categoria antagônica de seres

humanos, é a de que “[...] o Estado não tem porque colocar em jogo, de forma

negligente, a sua configuração”159. É dever do Estado garantir ao cidadão o direito à

segurança, que não será alcançada sem que se combata o inimigo160.

Günther Jakobs asseverou que “[...] um indivíduo que não admite ser

obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do

conceito de pessoa”161. Encontrando-se o inimigo em seu estado de natureza sua

liberdade individual é excessiva, razão pela qual a resposta estatal deverá ser

igualmente excessiva. Sutilmente, o Estado está autorizado a travar verdadeira

guerra a fim de submeter o inimigo à sua autoridade e, deste modo, assegurar a

sensação de paz e ordem social162.

158

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 28 – grifos originais. 159

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 63. 160

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. 161

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 35. 162

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012.

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Pressupondo que o inimigo perde seu status de pessoa e deve ser combatido

por meio da coação estatal que se manifesta através da custódia de segurança

preventiva163, o autor arrematou:

[...] há que ser indagado se a fixação estrita e exclusiva à categoria do delito [no caso, do crime cometido pelo inimigo] não impõe ao Estado uma atadura – precisamente, a necessidade de respeitar o autor como pessoa – que, frente a um terrorista, que precisamente não justifica a expectativa de uma conduta geralmente pessoal, simplesmente resulta inadequada. Dito de outro modo: quem inclui o inimigo no conceito de delinquente-cidadão não deve assombrar-se quando se misturam os conceitos <<guerra>> e <<processo penal>>. De novo, em outra formulação: quem não quer privar o Direito Penal do cidadão de suas qualidades vinculadas à noção de Estado de Direito – controle das paixões; reação exclusivamente frente a atos exteriorizados, não frente a meros atos preparatórios; a respeito da personalidade do delinquente no processo penal, etc. – deveria chamar de outra forma aquilo que tem que ser feito contra os terroristas, se não se quer sucumbir, isto é, deveria chamar Direito Penal do inimigo, guerra contida164.

Portanto, para o doutrinador alemão é imprescindível que o Estado adote

concomitantemente o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo. Aquele

repreenderá o fato criminoso consumado, garantindo ao cidadão todos os direitos

que lhe são inerentes ante a qualidade de pessoa no decorrer de seu julgamento,

visando o restabelecimento da ordem jurídica. Este, por sua vez, combaterá a

periculosidade do agente atuando preventivamente e declarando guerra ao seu

estado de natureza165.

3.1.2 Crítica ao Direito Penal do Inimigo: impossibilidade de existência

concomitante com o Direito Penal do Cidadão

Malgrado o esforço conferido por Günther Jakobs para distinguir o cidadão

criminoso do inimigo, legitimando a criação de sistemas penais diversos para punir

163

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012. 164

JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 35-36 – grifos originais. 165

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 6.

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cada categoria, sua teoria não foi aplaudida por unanimidade no cenário acadêmico

jurídico. Ecoaram severas críticas, principalmente por parte dos doutrinadores

intimamente relacionados com o Garantismo Penal, que serão a seguir brevemente

comentadas.

Analisando o conceito de inimigo proposto por Günther Jakobs, Eugenio Raúl

Zaffaroni estabeleceu que tal definição “[...] não é nada além de um rótulo que se

distribuiu sempre com a mais vasta arbitrariedade, a ponto de ninguém no mundo

poder considerar-se livre de ser eventualmente rotulado”166.Sendo inexata a

precisão do termo, é certo que este pode ser facilmente manipulável para suprir os

interesses do responsável em determiná-lo, que no caso, convenientemente, é o

Estado. Acerca desta seletividade estatal, o autor defendeu que:

É possível objetar-se que, no caso do chamado direito penal do inimigo, não se trata de assinalar como tais aqueles que exercem um direito de resistência, mas sim certos criminosos que não exercem nenhum direito natural pré-contratual nem nada parecido. Esta objeção não leva em conta o fato de que, ao consagrar o conceito de inimigo, introduz-se diretamente o modelo do Estado absoluto, sem importar em relação a quem esse conceito é aplicado, pois o rompimento do princípio do Estado de direito deixa aberto o caminho para que, mais cedo ou mais tarde, estenda-se o conceito a qualquer resistente e, em especial, àqueles a quem o soberano tem interesse em reprimir, que são os que criam obstáculos à sua arbitrariedade ou os que considera conveniente neutralizar ou eliminar por razões de poder167.

Assim, sob a proteção da teoria do Direito Penal do Inimigo o Estado estaria

autorizado a suprimir direitos individuais fundamentais de quem lhe fosse

conveniente, reduzindo o indivíduo ao status de não pessoa, fato este considerado

por Eugenio Raúl Zaffaroni incompatível com o Estado de Direito168. Sustentou o

autor que:

Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso169.

166

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 102. 167

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 131. 168

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. 169

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 18 – grifos originais.

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Deste modo, percebe-se que “[...] a proposta do direito penal do inimigo

promove um modelo autoritário de controle social, que acaba por inviabilizar

mínimas promessas constitucionais de democracia real para o povo”170, instituindo

um sistema penal paralelo ao Estado de Direito baseado na mínima limitação do

poder punitivo estatal, característico do Direito Penal Máximo171. Deste modo, fácil

constatar que o conceito em branco do termo inimigo e a consequência de sua

rotulação são conflitantes com o Direito Penal do Cidadão – ou simplesmente com o

Estado de Direito.

Ademais, Juarez Cirino dos Santos apontou a nítida semelhança da teoria do

Direito Penal do Inimigo com o sistema de responsabilização penal denominado

Direito Penal do Autor, que atua em detrimento do Direito Penal do Fato172.

Consoante a doutrina de Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista:

Enquanto, para alguns autores, o delito constitui uma infração ou lesão jurídica, para outros ele constitui o signo ou sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psicológica. Para uns, seu desvalor – embora haja discordância no que tange ao objeto – esgota-se o próprio ato (lesão); para outros, o ato é apenas uma lente que permite ver alguma coisa daquilo onde verdadeiramente estaria o desvalor e que se encontra em uma característica do autor. Estendendo ao extremo esta segunda opção, chega-se à conclusão de que a essência do delito reside numa característica do autor, que explica a pena. O conjunto de teorias que este critério compartilha configura o chamado direito penal de autor173.

Salo de Carvalho sustentou ser inconcebível fundar um regime jurídico sob o

prisma do Direito Penal do Autor, baseado na periculosidade do agente:

Fundar um regime jurídico sob a égide da periculosidade representa, como sustenta Ferrajoli, verdadeira ‘monstruosidade jurídica’ porque tal juízo é um prognóstico judicial em si mesmo arbitrário, pois resoluto em decisões potestativas desvinculadas de qualquer parâmetro processual válido. Outrossim, contradiz abertamente principal postulado do processo acusatório (princípio da presunção de inocência), consolidando funções de polícia à acusação pública. [...] Os juízos de periculosidade descritos estabelecem uma situação de fato inverificável e processualmente incomprovável pela

170

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 12-13. 171

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 172

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012. 173

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 131.

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impossibilidade empírica de experimentação. No interior do modelo de garantias, as hipóteses processuais devem ser baseadas em juízos verdadeiros e/ou falsos, probatoriamente demonstrados e passíveis de negação (contraditoriedade). A extensão semântica de termos como periculosidade, personalidade, antecedentes e conduta social tornam o ato jurisdicional extremamente arbitrário no acertamento dos casos. A inverificabilidade e a irrefutabilidade das hipóteses apresentadas são compatíveis apenas com valorações de tipo subjetivas, ferindo a taxatividade, principal garantia do direito e do processo penal por estabelecer variáveis e limites à interpretação da norma e à atuação processual174.

De fato, inexiste método apropriado para demonstrar estreme de dúvidas que

o agente considerado de alta periculosidade cometerá algum crime no futuro

próximo. Qualquer declaração neste sentido não passará de suposição e profecia.

Esta impossibilidade probatória, aliada à indeterminação conceitual destes institutos,

não podem subsistir em um Estado de Direito por não garantir os postulados básicos

do Direito Penal estudados nos capítulos antecedentes desta monografia.

Para arrematar, Luigi Ferrajoli asseverou que:

Existe uma conexão evidente entre a natureza retributiva da pena e sua função de prevenção geral dos delitos: a ameaça legal da retribuição penal pode prevenir somente a prática de fatos delituosos, não a subsistência das condições pessoais ou de status, como são a periculosidade ou a capacidade de delinquir ou outras semelhantes e, por outro lado, a pena exerce uma função preventiva ou intimidatória, sobretudo se se castiga quem ‘merece’. [...] A garantia do caráter retributivo da pena – em virtude da qual só se pode ser punido pelo que se fez (e não pelo que se é) – serve precisamente para excluir, à margem de qualquer possível finalidade preventiva ou de qualquer outro modo utilitarista, a punição do inocente, ainda quando seja considerado de per si mau, desviado, perigoso, suspeito ou propenso ao delito etc175.

Conforme o primeiro axioma do Garantismo Penal proposto pelo referido

doutrinador não há pena sem crime, razão pela qual o Estado que adota o Direito

Penal Mínimo somente estará autorizado a exercer seu poder punitivo post

delictum176. Diante deste cenário, imperioso reconhecer que a punição com

sustentáculo na periculosidade do autor não se coaduna com os postulados do

Garantismo Penal. Portanto, a teoria do Direito Penal do Inimigo formulada por

174

CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 137-138. 175

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 339. 176

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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Günther Jakobs é ilegítima, inexistindo espaço no Estado de Direito para a guerra

aos seus cidadãos.

3.2 O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COMO FRUTO DO DIREITO

PENAL DE EMERGÊNCIA

A violência é fascinante e os veículos de comunicação sabem disso. Não

raras vezes o telejornalismo brasileiro brinda seu sedento público com verdadeiros

dossiês sobre o aumento da criminalidade, traçando estatísticas e realizando

debates sobre o assunto. Quando ocorre um crime com o famigerado requinte de

crueldade é palpável a busca do cinegrafista pelo melhor ângulo do corpo de delito,

para satisfazer o desejo de seu telespectador. As reportagens policiais com as

reconstituições realizadas pela equipe de reportagem cuidadosamente escolhida

pela emissora de televisão, por analogia, cumprem o papel de provas no processo

penal. Se o acusado for célebre, caberá contraditório e acareação. Ao final, o âncora

do jornal da noite anuncia a sentença condenatória, seguida de fervorosos aplausos.

A influência da mídia é devastadora. Tomada pelo sentimento de

insegurança, ao se deparar com crimes bárbaros a sociedade clama por justiça177.

Rapidamente, a resposta estatal vem por meio da inflação da legislação penal dando

origem ao Direito Penal de Emergência178.

Fauzi Hassan Choukr defendeu que a legislação de emergência é a

demonstração da eficiência estatal na manutenção da ordem social através da

criminalização de condutas antissociais ou aumento da repressão estatal dos crimes

já existentes, mesmo que em detrimento dos direitos individuais da clientela

penal179. Diferenciando a emergência penal daquela constitucionalmente prevista180,

o autor sustentou que:

[...] é de ser ressaltado que a emergência do sistema repressivo difere fundamentalmente do conceito de excepcionalidade empregado em sede constitucional, onde os mecanismos de

177

VALLE, Juliano Keller do. Crítica à delação premiada: uma análise através da teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Conceito Editorial, 2012. 178

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. 179

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. 180

Artigos 136 e seguintes da Constituição da República Federativa do Brasil.

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aplicação que impliquem em derrogação total ou parcial de direitos fundamentais, têm duração definida no tempo e no espaço. Para aquele cenário, a individualização dos fatores que justificaram as drásticas medidas, ajuda a compreender que não se pode empregar no quotidiano as mesmas bases valorativas que originaram a supressão dos direitos básicos. Na esfera repressiva, essa ausência de barreiras temporais ou espaciais, torna a emergência, paradoxalmente, algo inerente à normalidade181.

A alegação de que determinado dispositivo legal é fruto do direito penal de

emergência necessariamente deve ser precedida pela origem histórica de referida

norma. Rememorando o segundo capítulo, oportunidade em que foi explanado

acerca da origem do Regime Disciplinar Diferenciado, se destaca que a mencionada

sanção disciplinar foi instituída pelo Estado de São Paulo para repreender os

participantes de rebeliões comandadas de dentro dos presídios por facções

criminosas. Posteriormente, dado o crescente aumento de demonstrações de poder

das organizações criminosas e ante a captura de criminosos considerados de alta

periculosidade, se estendeu a aplicação do instituto para âmbito nacional182.

Como será analisado no próximo tópico, o Regime Disciplinar Diferenciado é

imposto em detrimento dos direitos fundamentais dos presos. Sendo resultado da

esperança do legislador em manter a disciplina interna dos estabelecimentos

prisionais, coibindo as rebeliões e demais manifestações do crime organizado, resta

demonstrada a semelhança do instituto com a legislação penal de emergência. Dito

isto, fundamental revelar a crítica emanada por Fauzi Hassan Choukr:

A promessa de redenção inerente ao discurso da emergência acaba se transformando, na prática, em absoluta falácia. Não se diminui qualquer índice relativo à criminalidade que retoricamente se diz atacar, quer do narcotráfico, terrorismo, lavagem de dinheiro, corrupção oficial, prostituição internacional etc. Verdadeiramente, se o crime organizado e suas derivações tem algo a temer, não é a legislação que supostamente lhe combate.

O preço que se paga é por demais alto para sustentar o discurso vazio. Basta que se atente para o fato de os direitos fundamentais – primeira e mais sensível baixa nessa guerra – não serem recompostos na medida em que violados pelas normas emergenciais. Cria-se, dessa forma, a quebra do estado de direito pelo próprio estado que lhe dá vida, situação paradoxal que não apresenta solução, vez que os paradoxos, por definição, são insolúveis183.

181

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 59-60. 182

KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 9. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011. 183

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 67-68.

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Compartilhou deste entendimento René Ariel Dotti:

A tendência do Congresso Nacional em editar uma legislação de pânico para enfrentar o surto da violência e a criminalidade organizada, caracterizada pelo arbitrário aumento da pena de prisão e o isolamento diuturno de alguns condenados perigosos durante dois anos [através do Regime Disciplinar Diferenciado] – além de outras propostas fundadas na aritmética do cárcere – revelam a ilusão de combater a gravidade do delito com a exasperação das penas. Nesse panorama em que a emoção supera a razão do legislador, recrudesce o discurso político e se aviventam os rumos na direção de um direito penal do terror. Os apóstolos dessa ideologia, que considera o delinquente um inimigo interno e socialmente irrecuperável [Direito Penal do Inimigo], não estão vendo a multiplicação dos crimes hediondos (homicídio qualificado, sequestro relâmpago ou duradouro, estupro e atentado violento ao pudor, latrocínio, roubo, tráfico de drogas, etc.) e a repetição cotidiana das chacinas em bairros e periferias de grandes cidades, apesar da severidade da lei penal ao tratar dos chamados crimes hediondos. Não percebem ou fingem não perceber que o crime organizado tem seus vasos comunicantes com a desorganização do Estado e com o processo desenfreado de corrupção dele resultante. Ignoram que a lei penal – por si só – jamais irá desmantelar esse estado paralelo que afronta a autoridade pública e intimida a população civil condenada a ficar no meio dos beligerantes (policiais e traficantes), desviando-se das ‘balas perdidas’, essa enganosa expressão, um eufemismo do cotidiano que mascara o anonimato e dilui a responsabilidade criminal. Suprimem do debate lúcido e da reflexão social a verdade elementar de que a violência e o crime devem ser enfrentados pela conjugação de esforços das instâncias formais (lei, polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, instituições, órgãos e estabelecimentos penais) e das instâncias materiais (família, escola, associações, universidade, etc.) e para as quais devem convergir sentimentos e valores como a ética e a educação184.

Sob o discurso do movimento lei e ordem, exasperam as penas privativas de

liberdade na esperança de que a simples edição legislativa seja capaz de

reconstituir a ordem e sentimento de segurança e bem-estar da população,

desconsiderando o papel de seletividade do Direito Penal como instrumento de

controle social. Como advogou Juliano Keller do Valle:

A “legislação do terror”, como no caso de lei dos crimes hediondos, do regime disciplinar diferenciado ou do projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional, que visa o aumento da pena máxima restritiva de liberdade para quarenta anos, são nada mais nada menos do que propostas perversas, requentadas de acordo com o calor dos acontecimentos e dos debates tendenciosos, apresentados sempre com a mesma figura: “elixir”, um “bálsamo” para todos os males

184

DOTTI, René Ariel. A política de segurança pública e o estatuto do desarmamento. Revista Forense. Rio de Janeiro, Forense v. 377, jan. 2005, p. 151-168.

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aflitivos que guiam a massa cega, surda, muda, “insegura” e “em pânico” 185.

Remete-se, neste ponto, o leitor à “Carta de Princípios do Movimento

Antiterror” situada em Anexo, por estabelecer com propriedade a ineficácia da

legislação do pânico como medida capaz de garantir a segurança social186. Ademais,

Fauzi Hassan Choukr sustentou que o termo segurança deve ser compreendido da

seguinte maneira:

Não se pode admitir um conceito de segurança que passe pela violação das normas fundamentais. Essa segurança, que aqui só pode ser aceita pelo seu prisma jurídico, reside na obediência, pelos particulares e pelo poder público, daquilo que foi estatuído no ato de fundação da sociedade. Patrocinar oficialmente a quebra dessa base significa incorrer no retorno ao caos e na negação da própria convivência comum, consequência esta justamente alcançada pelo sistema repressivo ora criticado [direito penal de emergência]. Nesse sentido seu emprego é mera ilusão187.

Mais do que constituir falácia legislativa, violando direitos individuais

fundamentais sob o argumento da defesa social, a política de emergência

transforma o Direito Penal de ultima ratio em prima ratio188, fazendo com que a

resposta a ilícitos que poderiam ser resolvidos por políticas públicas e sanções civis

ou administrativas sejam alvo da seletividade criminal. Tal situação é inadmissível

em um Estado Garantista.

3.3 INCOMPATIBILIDADE DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO COM A

TEORIA DO GARANTISMO PENAL: VIOLAÇÃO AOS AXIOMAS PROPOSTOS

POR LUIGI FERRAJOLI

Sabendo o conceito de inimigo definido por Günther Jakobs e conhecendo as

críticas ao duplo sistema de imputação penal defendido pelo autor, cabe averiguar

185

VALLE, Juliano Keller do. Crítica à delação premiada: uma análise através da teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Conceito Editorial, 2012, p. 49. 186

DOTTI, René Ariel. Carta de princípios do movimento antiterror. Revista da OAB, Brasília, Conselho Federal da OAB, v.76, jan. 2003, p. 49-64. 187

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 69. 188

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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se o Regime Disciplinar Diferenciado constitui produto de um Direito Penal do

Inimigo ou se é apenas consectário do movimento lei e ordem.

Procedeu-se no segundo capítulo deste trabalho de iniciação científica à

análise das características do Regime Disciplinar Diferenciado. Rememorando, este

instituto constitui sanção disciplinar prevista no artigo 53, V, da Lei n. 7.210/1984,

que estabelece maiores restrições aos direitos do preso, sendo o isolamento celular

pelo período de até 360 dias a mais marcante, e é aplicada àquele que tenha

cometido, dentro do cárcere, fato previsto como crime doloso capaz de subverter a

ordem ou disciplina interna da unidade onde cumpre sua pena, que apresente alto

risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou sob o qual recaiam

fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas,

quadrilha ou bando189.

Paulo César Busato redigiu artigo no qual defendeu que o Regime Disciplinar

Diferenciado configura elemento do Direito Penal do Inimigo, tendo em vista que

todas as restrições estabelecidas pelo artigo 52 da Lei n. 7.210/1984:

[...] não estão dirigidas a fatos e sim a determinada classe de autores. Busca-se claramente dificultar a vida destes condenados no interior do cárcere, mas não porque cometeram um delito, e sim porque, segundo o julgamento dos responsáveis pelas instâncias de controle penitenciário, representam um risco social e/ou administrativo ou são ‘suspeitas’ de participação em bandos ou organizações criminosas. Esta iniciativa conduz, portanto, a um perigoso Direito penal do autor [...]190.

Acrescentando ao final que:

A imposição de uma fórmula de execução da pena diferenciada segundo características do autor relacionadas com ‘suspeitas’ de sua participação na criminalidade de massas não é mais do que um ‘Direito penal do inimigo’, quer dizer, trata-se da desconsideração de determinada classe de cidadãos como portadores de direitos iguais aos demais a partir de uma classificação que se impõe desde as instâncias de controle. A adoção do Regime Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de determinado tipo de autor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e ‘inimigos’191.

189

BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 set. 2012. 190

BUSATO, Paulo César. Regime disciplinar diferenciado como produto de um direito penal de inimigo. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Notadez informação, v.14, ago. 2004, p. 137-145. 191

BUSATO, Paulo César. Regime disciplinar diferenciado como produto de um direito penal de inimigo. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Notadez informação, v.14, ago. 2004, p. 137-145.

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Com efeito, é manifesta a distinção do tratamento conferido pelo legislador

aos presos comuns e bonzinhos que respeitam as normas que lhe são impostas no

cárcere e aos presos envolvidos em organizações criminosas e malvados, que além

de praticarem fato definido como crime dentro das unidades carcerárias,

evidenciando a omissão estatal nestes estabelecimentos, colocam em risco a

sociedade e a configuração do Estado por meio dos ataques ordenados pelas

facções que participam. Esta segunda categoria, ao ser penalizada com a inclusão

no Regime Disciplinar Diferenciado, acaba perdendo seus direitos individuais

constitucionalmente tutelados e, consequentemente, seu status de cidadão.

Cezar Roberto Bittencourt, ao acarear o Regime Disciplinar Diferenciado com

o princípio da humanidade, teceu os seguintes comentários:

[...] o regime disciplinar diferenciado – prevendo isolamento celular de 360 dias, prorrogável por igual período – comina punição cruel e desumana e, portanto, [é] inaplicável no Brasil. Na realidade, esse tipo de regime, que constitui verdadeira sanção criminal, promove a destruição moral, física e psicológica do preso, que, submetido a isolamento prolongado, pode apresentar depressão, desespero, ansiedade, raiva, alucinações, claustrofobia e, a médio prazo, psicoses e distúrbios afetivos profundos e irreversíveis.

Com efeito, o regime disciplinar diferenciado – instituído pela Lei n. 10.792/2003 – viola o objetivo ressocializador do sentenciado, vigente na sociedade contemporânea desde o Iluminismo. A Lei de Execução Penal (LEP), já em seu primeiro artigo, destaca como objetivo do cumprimento de pena a reintegração social do condenado, que é indissociável da execução da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento de pena em que não haja a concomitância dos dois objetivos legais, quais sejam o castigo e a reintegração social, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal e contrária à Constituição Federal.

Assim, o regime disciplinar diferenciado constitui o exemplo mais marcante e mais recente na legislação brasileira de violação do princípio de humanidade da pena, não passando de forma cruel e degradante de cumprimento de pena; representa, na verdade, autêntica vingança social, e tem o castigo como único objetivo, desprezando por completo a recuperação social, primado declarado da pena privativa de liberdade192.

Negar o direito de cumprir dignamente a pena criminal que lhe foi imposta,

impondo ao preso sanção disciplinar que põe em risco sua integridade física e

psíquica, é suprimir a humanidade do indivíduo. Sem digressões sobre o tema, ante

192

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v, p. 17-18 – grifos originais.

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o que foi estudado nos capítulos antecedentes, é evidente que tal situação não pode

subsistir em um Estado de Direito.

Neste norte é correto afirmar que no Regime Disciplinar Diferenciado há a

“[...] quebra do princípio da igualdade em favor da imposição de uma reação penal

diferenciada segundo o perfil de autor e não de acordo com o fato realizado”193.

Como ilustrado pelo jurista Juarez Cirino dos Santos “[...] a forma igual do Direito

Penal do cidadão garante as desigualdades sociais, a forma desigual do Direito

Penal do inimigo amplia as desigualdades sociais garantidas”194. Distingue-se,

portanto, os criminosos dos inimigos.

Como já explanado, o Direito Penal do Inimigo carece de legitimidade. Ao

retratar a importância do Direito Penal, Eugenio Raúl Zaffaroni evidenciou tal fato

assim se manifestando:

A função do direito penal de todo Estado de direito (da doutrina penal como programadora de um exercício racional do poder jurídico) deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis. Se o direito penal não consegue que o poder jurídico assuma esta função, lamentavelmente terá fracassado e com ele o Estado de direito perecerá. Nesse sentido, o direito penal é um apêndice indispensável do direito constitucional do Estado de direito, o qual se encontra sempre em tensão dialética com o Estado de polícia195.

Nas palavras do autor, o Estado de polícia:

[...] é aquele regido pelas decisões do governante. Pretende-se, com certo simplismo, estabelecer uma separação cortante entre o estado de polícia e o de direito [...]. O primeiro é paternalista: considera que deve castigar e ensinar a seus súditos e, inclusive, tutelá-los ante suas próprias ações autolesivas. O segundo deve respeitar todos os seres humanos por igual, porque todos têm uma consciência que lhes permite conhecer o bom e o possível, e, quando articular decisões de conflitos, deverá fazê-lo de modo a afetar o menos possível a existência de cada um, conforme seu próprio conhecimento: o estado de direito deve ser fraterno196.

193

BUSATO, Paulo César. Regime disciplinar diferenciado como produto de um direito penal de inimigo. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Notadez informação, v.14, ago. 2004, p. 137-145. 194

SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: <http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012, p. 18 –grifos originais. 195

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 172 – grifos originais. 196

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 93-94 – grifos originais.

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A condição de fraternidade só é possível dentro do Estado que garanta aos

cidadãos seus direitos. Conforme os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, o sistema de

responsabilização penal que proporciona maiores garantias aos cidadãos, limitando

o poder punitivo estatal ao máximo, é o Garantismo Penal197. Eugenio Raúl Zaffaroni

compartilhou deste entendimento ao afirmar que:

O direito penal de garantias é inerente ao Estado de direito porque as garantias processuais penais e as garantias penais não são mais do que o resultado da experiência de contenção acumulada secularmente e constituem a essência da cápsula que encerra o Estado de polícia, ou seja, são o próprio Estado de direito. O direito penal de um Estado de direito, por conseguinte, não pode deixar de esforçar-se em manter e aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de polícia, sob pena de perder sua essência e seu conteúdo. Agindo de outro modo, passaria a liberar poder punitivo irresponsavelmente e contribuiria para aniquilar o Estado de direito, isto é, se erigiria em ramificação cancerosa do direito do Estado de direito198.

Construindo a teoria do Garantismo Penal, Luigi Ferrajoli estabeleceu dez

axiomas que devem ser respeitados para que o Estado assuma este sistema, dentre

os quais se destacam: nulla poena sine crimine, nulla injuria sine actione, nulla culpa

sine judicio. Pode-se concluir que o Estado de Direito Penal Mínimo somente estará

autorizado a exercer seu poder punitivo após o fato praticado pelo autor ser

cabalmente demonstrado em juízo, com a observância do devido processo legal199.

Embora não constitua formalmente pena criminal e sim sanção disciplinar, a

imposição do Regime Disciplinar Diferenciado contraria os axiomas mencionados. É

palpável a desconsideração do princípio da presunção da inocência ao submeter o

preso a condições desumanas em virtude de mera suposição de ter praticado fato

que constitua crime. Quando o isolamento celular é imposto ante a periculosidade do

agente a violação é muito maior, eis que sequer há fato para penalizar.

Indaga-se, por derradeiro: o que o Direito Penal pode fazer em relação aos

criminosos que mesmo presos comandam e participam ativamente de organizações

criminosas?

A resposta é bastante óbvia: se ninguém faz nada, o direito penal nada pode fazer; se delitos são cometidos, seus responsáveis devem

197

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 198

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 173 – grifos originais. 199

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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ser individualizados, detidos, processados, julgados, condenados e levados a cumprir pena. É isso que o direito penal pode fazer200.

Segregar não é a solução. Afinal, não estamos Na colônia penal, onde após a

máquina estatal tatuar no corpo do cidadão sua culpa, lhe atira na sarjeta dos restos

humanos201.

200

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007, p. 185. 201

KAFKA, Franz. O veredicto e Na colônia penal. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2011.

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CONCLUSÃO

Objetivando estabelecer o marco teórico da confecção deste trabalho de

iniciação científica, o primeiro capítulo versou sobre a teoria do Garantismo Penal

formulada pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli. Constatou-se que a função precípua do

sistema penal é a de limitar o exercício do poder punitivo estatal, evitando a tirania

dos interesses do soberano. Consoante o sistema de responsabilização penal

garantista, esta limitação deve ser obtida através da constitucionalização e respeito

aos direitos individuais de todos os cidadãos, não sendo permitida a flexibilidade dos

princípios e garantias fundamentais para atender aos interesses da máquina estatal.

O citado autor denominou como Direito Penal Mínimo este modelo de atuação penal,

por ser quase inexistente a área reservada à atuação arbitrária do Estado.

Contrapondo o sistema exposto, está o denominado Direito Penal Máximo.

Luigi Ferrajoli sustentou que neste sistema de responsabilização penal o exercício

do poder punitivo estatal se encontra praticamente ilimitado, sendo autorizadas as

intervenções arbitrárias por parte dos agentes públicos, bem como o fenômeno de

inflação das leis penais que transformam o Direito Penal em instrumento para

solucionar problemas sociais. Adotar este modelo é autorizar o Estado a agir em

detrimento dos direitos individuais fundamentais, tornando o Direito Penal

ferramenta de garantia de sua majestade. Portanto, concluiu-se que o sistema penal

que se coaduna com o Estado que intenciona ser democrático e de Direito é o da

máxima limitação do poder punitivo estatal e mínima autorização do absolutismo: o

sistema penal garantista.

Evidenciado este quadro, se procedeu à análise da (re)definição proposta por

Luigi Ferrajoli para os termos vigência e validade da norma penal. Consagrando os

direitos humanos na Constituição de um país, não há como acatar o clássico

conceito de Hans Kelsen de que uma norma deve ser considerada válida pelo fato

de pertencer ao ordenamento jurídico. Sabendo disto, o autor garantista chamou de

vigência a adequação da norma aos requisitos legais para sua confecção e validade

o seu comprometimento com os direitos individuais tutelados constitucionalmente.

Adotar outra percepção seria acatar a aplicação de normas em detrimento dos

direitos fundamentais, o que é inadmissível.

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Finalizando a apresentação da teoria do Garantismo Penal, foi estudada a

função da pena. Precedendo esta análise, foram tecidas considerações acerca do

controle social exercido pelo Direito Penal. Vivemos em uma sociedade capitalista,

onde o mercado tem o privilégio de controlar as ações governamentais para garantir

a hegemonia do poder. Desta forma, as agências estatais utilizam o Direito Penal

como instrumento de limpeza social, ante o manifesto poder discricionário que

possuem para selecionar a clientela penal. Nesta senda, malgrado a adoção de

outras teorias de justificação da pena criminal pela República Federativa do Brasil, a

que se mostra mais correta é a proposta por Luigi Ferrajoli.

Sustentou o mencionado doutrinador que o Direito Penal é a lei do mais fraco.

No momento da aplicação da pena, não há dúvida de que a parte vulnerável da

relação estabelecida é o condenado. Por essa razão, a função da sanção criminal

deve ser a de lhe proporcionar o mínimo de sofrimento possível, evitando que haja

manifestações de vingança pública ou privada. Luigi Ferrajoli reproduz o óbvio:

como ao inocente, o Estado tem a obrigação de respeitar e garantir os direitos

individuais fundamentais do condenado.

Superada a apresentação da teoria que permeou a confecção do trabalho, foi

realizado o estudo do objeto central da monografia. O Regime Disciplinar

Diferenciado está diretamente vinculado à execução penal, motivo pelo qual foram

reservadas algumas linhas para traçar o quadro geral desta fase do processo penal.

A Lei n. 7.210/1984 estabelece as diretrizes da execução penal, isto é, as

normas que devem ser respeitadas no momento do cumprimento do disposto na

sentença penal condenatória. Por ser elemento do processo penal, a Lei de

Execução Penal está submetida aos princípios norteadores do Direito Processual

Penal, dos quais são destacados o da presunção da inocência e humanidade. Insta

observar que todos os indivíduos que se encontram encarcerados, independente se

por motivo de prisão cautelar ou definitiva, estão sob a égide da mencionada lei.

Com o intuito de manter a ordem interna das unidades de cumprimento de

pena, a Lei n. 7.210/1984 normatizou uma cartilha comportamental ao prever as

chamadas faltas disciplinares. Classificadas em leves, médias e graves, ficou a par

da legislação federal cuidar apenas das últimas, razão pela qual os artigos 50 e 51

definem as condutas proibidas e o artigo 53, todos do diploma legal antes citado,

institui as sanções disciplinares possíveis de aplicação. Porém, o foco deste trabalho

é a análise do artigo 52 da Lei de Execução Penal.

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Denominou-se Regime Disciplinar Diferenciado o isolamento celular imposto

como sanção disciplinar aos presos que preencham as circunstâncias especificadas

no artigo 52 da Lei n. 7.210/1984. Durante o dia, os segregados poderão sair da cela

pelo período de 02 (duas) horas para tomar banho de sol. As visitas semanais são

limitadas a 02 (duas) pessoas, que poderão permanecer com o preso durante 02

(duas) horas. Dependendo das condições pessoais e comportamento carcerário, o

preso poderá permanecer neste regime até o tempo correspondente a 1/6 de sua

pena (no caso do preso provisório, da pena máxima em abstrato do crime pelo qual

possivelmente possa ser condenado).

Estão sujeitos à imposição do Regime Disciplinar Diferenciado os presos

acusados de cometerem fato previsto como crime (não sendo necessário, portanto,

ilidir o princípio da presunção de inocência por meio da sentença penal transitada

em julgado) que seja capaz de subverter a ordem ou disciplina interna, os que

apresentam alto risco para a ordem ou segurança do estabelecimento penal e da

sociedade, e aqueles sob os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento em

organizações criminosas, quadrilha ou bando. Estas hipóteses de cabimento aliadas

às características do cumprimento da sanção disciplinar suscitaram severas críticas

da doutrina. Coube à monografia apresentada a averiguação das semelhanças entre

o instituto e a teoria legitimadora do Direito Penal do Inimigo.

Constatou-se que a doutrina é divergente quanto à legitimidade da teoria do

Direito Penal do Inimigo. Entende-se por legitimidade a conformidade de

determinado instituto com o restante do sistema jurídico. No terceiro capítulo, foram

apresentados os argumentos favoráveis e contrários à adoção da citada teoria,

sendo reservados à conclusão os apontamentos pessoais da autora acerca do tema.

Günther Jakobs é considerado o maior defensor contemporâneo da

legitimidade da teoria do Direito Penal do Inimigo. Apoiado nas ideias emanadas por

Thomas Hobbes e Immanuel Kant, o autor estabeleceu que o fator determinante

para distinguir os cidadãos criminosos dos inimigos é a expectativa normativa estatal

apresentada por cada uma das categorias. Simplificando sua construção teórica,

para o doutrinador alemão o indivíduo que se filiasse por princípio a alguma

organização criminosa estaria negando a autoridade estatal, eis que se submete ao

ordenamento jurídico do poder paralelo. Por essa razão, deve ser considerado

inimigo do estado ante sua evidente periculosidade, porquanto há probabilidade de

cometer crimes para aniquilar a estrutura e organização do Estado organizado. Ao

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ser classificado como inimigo, o indivíduo perde sua qualidade de cidadão e

consequentemente não é agraciado com a garantia ao respeito dos direitos

fundamentais e humanos.

Em contrapartida, os crimes cometidos pelos cidadãos são meros deslizes

reparáveis, pois não têm o condão de abalar as estruturas estatais. Embora sejam

criminosos, permanecem sob a égide do ordenamento jurídico, constituindo

obrigação do Estado lhes garantir todos os direitos inerentes à qualidade de pessoa.

Nesta esteira, Günther Jakobs sustentou que deve haver a adoção concomitante de

dois sistemas de imputação penal: o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do

Inimigo.

Advogou o autor que o Direito Penal do Cidadão tem como função a

reafirmação da vigência da norma penal, razão pela qual deve atuar

repressivamente, ou seja, após a prática do fato delituoso. Por sua vez, o Direito

Penal do Inimigo deve combater o inimigo, o que faz por meio da declaração de

guerra. A pena aplicada prospectivamente tem caráter de segurança, uma vez que

ao cumprir a pena privativa de liberdade o indivíduo está fisicamente proibido de

cometer algum crime. Para impedir a destruição de sua configuração, o Estado está

autorizado a neutralizar o inimigo, mesmo que para isso precise violar seus direitos

individuais fundamentais (que, na verdade, lhes foram suprimidos ante a perda do

status de cidadão).

Inconformados com a teoria sustentada por Günther Jakobs, os doutrinadores

garantistas bradaram suas críticas. Primeiro, foi acusada a indeterminação do termo

inimigo, fato que torna o conceito extremamente manipulável para atender aos

interesses do Poder. Segundo, apontaram as semelhanças entre o Direito Penal do

Inimigo e o Direito Penal do Autor, tendo em vista que a penalização de ambos se

dá por meio das características pessoais dos indivíduos. Por fim, evidenciaram o

óbvio: em um Estado que há a limitação do exercício do poder punitivo estatal pelo

respeito aos direitos individuais fundamentais, é inconcebível que se permita a perda

do status de cidadão de qualquer ser humano, mesmo que sob o argumento da

garantia da segurança pública, principalmente se for baseada no julgamento

subjetivo acerca de sua periculosidade. Portanto, em um Estado Garantista não há

lugar para o Direito Penal do Inimigo.

Feitas estas considerações, resta saber se o Regime Disciplinar Diferenciado

pode ser considerado elemento do Direito Penal do Inimigo. Com efeito, todas as

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hipóteses de cabimento de imposição desta sanção disciplinar tem uma

característica em comum: o preso não fez nada que motivasse sua inclusão neste

regime. Penaliza-se com sustentáculo na suspeita de que cometeu algum crime ou

de que é perigoso. Declara-se guerra ao indivíduo, lhe retirando o direito de cumprir

dignamente a pena privativa de liberdade, por configurar perigo à sociedade e ao

Estado (mesmo já se encontrando encarcerado).

Conclui-se com a pesquisa realizada que o Regime Disciplinar Diferenciado é

uma aberração jurídica que carece de validade (no conceito proposto por Luigi

Ferrajoli). Fruto de um direito penal de emergência, apenas foi criado para amenizar

a situação dos estabelecimentos penais, constantemente ameaçados por rebeliões

comandadas pelas organizações criminosas sediadas em seus próprios corredores.

Cedendo ao clamor social, o Estado promulgou um diploma altamente repressivo,

afirmando sua tirania e disfarçando sua omissão no tocante à execução penal.

Nestes termos, imperioso reconhecer que o Regime Disciplinar Diferenciado

não pode subsistir em um Estado sob o primado do sistema do Garantismo Penal.

Segregar não é a resposta às mazelas do sistema prisional. Não devemos nos

submeter à ideologia de 1984, onde “guerra é paz”.

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REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 1 v. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. ______. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. ______. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de processo penal. Disponível em: << <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. ______. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a lei de execução penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>. ______. Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.792.htm>. Acesso em: 02 out. 2012. ______. Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>, acesso em: 02 out. 2012. ______. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n. 44.049/SP. Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa. Julgado pela Sexta Turma em 12 de jun. de 2006. Publicado no Diário da Justiça de 19 de dez. de 2007. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=630511&sReg=200500778098&sData=20071219&formato=PDF>. Acesso em: 02 out. 2012.

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ANEXOS

ANEXO A – Carta de princípios do movimento antiterror202:

"Quanto mais interdições e proibições houver,/ mais o

povo empobrece,/ mais se possuirão armas cortantes,/

mais a desordem se alastra, /mais se multiplicam os

regulamentos,/ mais florescem os ladrões e os bandidos".

(Lao Tse, Tao te King, citado por Mireille Delmas-Marty, A

criação das leis e sua recepção pela sociedade, Relatório

apresentado ao IX Congresso Internacional de

Criminologia, Viena, set. 1983, Separata do Boletim do

Ministério da Justiça de Portugal, nº 13, de 1983).

Um grupo de operadores do Direito, formado por advogados, defensores

públicos, magistrados, membros do Ministério Público e professores de Direito

Penal, de Direito Processual Penal, de diversas unidades federativas do País,

comprometidos com a defesa do Estado Democrático de Direito e os princípios

fundamentais da República, consagrados constitucionalmente, como o da cidadania

e o da dignidade da pessoa humana, deliberou criar o Movimento Antiterror. O

objetivo desses profissionais e estudiosos do sistema criminal, que se reúnem sob

um pensamento comum acima de interesses pessoais, materiais ou partidários, é o

de sensibilizar os poderes do Estado, os administradores e trabalhadores da justiça

penal, os meios de comunicação, as universidades, as instituições públicas e

privadas, e os cidadãos de um modo geral, para a gravidade humana e social

representada por determinados projetos que tramitam no Congresso Nacional e que

pretendem combater o aumento da violência, o crime organizado e o sentimento de

insegurança com o recurso a uma legislação de pânico.

O volume de adesões ao Movimento cresce à medida que os seus princípios

fundamentais estão sendo expostos com clareza e vigor. Além de centenas de

202

DOTTI, René Ariel. Carta de princípios do movimento antiterror. Revista da OAB, Brasília, Conselho Federal da OAB, v.76, jan. 2003, p. 49-64.

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contribuições individuais, é relevante o apoio de instituições de respeitabilidade

nacional, a saber: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Instituto

Carioca de Criminologia (ICC), Grupo Brasileiro da Associação Internacional de

Direito Penal (AID), Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), Instituto

de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ),

Instituto de Ciências penais de Minas Gerais (ICP/MG), Programa de Pós-

Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, Curso de Especialização

em Advocacia Criminal da Universidade Candido Mendes (UCAM), Escola Superior

de Direito Constitucional de São Paulo (ESDC), Associação dos Advogados de São

Paulo (ASSP), Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e Instituto de

Ensino Jurídico Luiz Flávio Gomes (IELF), Associação dos Defensores Públicos do

Rio de Janeiro (ADPERJ).

As reações iniciais dessa corrente surgiram com o Projeto de Lei nº 5.073/01

e o seu Substitutivo que, modificando a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84),

elimina o exame criminológico para orientar o juiz quanto a benefícios no

cumprimento da pena privativa de liberdade e institui o Regime Disciplinar

Diferenciado para submeter determinados presidiários ao isolamento celular diuturno

até 720 dias (dois anos!), no interesse da segurança máxima do estabelecimento

penal e do combate às organizações criminosas. Esse Substituto, cuidando do

interrogatório do preso na unidade onde se encontra, tem como pretexto a

supressão de despesas e a eliminação de riscos à segurança pública com o

transporte dos réus ao fórum. Uma emenda alterou a proposta original para

introduzir o interrogatório online. Porém, o Movimento não é uma reação limitada a

essas propostas pontuais, embora elas, por si sós, o justificassem. Ele surgiu e se

expande em proporção geométrica, face à ausência de uma política pública

adequada ao controle da violência e da criminalidade e pelo fenômeno da legislação

de conjuntura que procura suprir a omissão dos governos quanto aos programas de

prevenção e controle dos fatos anti-sociais. Outras idéias e propostas visando o

endurecimento da lei penal e a mutilação de garantias processuais estão transitando

num cenário de propaganda como a que sustenta a ampliação da pena de reclusão

para 40 (quarenta) anos. Alguns parlamentares, reagindo emocionalmente a

tragédias recentes, que lamentavelmente ceifaram a vida de juízes, estimulam e

direcionam o cenário do medo com a pretensão de aumentar o rol dos crimes

hediondos quando a vítima for magistrado, membro do Ministério Público ou

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Delegado de Polícia. E, traindo o juramento de cumprir a Constituição, estimulam os

cidadãos a reivindicar a aplicação das penas de morte e de prisão perpétua,

provocando um debate estéril frente à natureza pétrea das cláusulas que proíbem

tais penas cruéis. Esses exemplos demonstram a equivocada tentativa de enfrentar

a violência do crime com a violência da lei e de equacionar a segurança interna dos

estabelecimentos penais com a destruição física e mental de presidiários. Prega-se,

aqui e ali, a "novidade" dos juízes sem rosto, uma débil contrafação de práticas em

lugares dominados pelas turbulências revolucionárias e o triunfo da anarquia.

Montesquieu já deplorava "esse número infinito de coisas que um legislador

ordena ou proíbe, tornando os povos mais infelizes e nada mais razoáveis".

Continua a valer em nosso tempo a lição imortal grafada em seu Espírito das leis

(1748): "Qu'on examine la cause de tous relâchements, on verra qu'elle vient de

l'impunité des crimes et non de la moderation des peines" . Ao falar sobre a

moderação dos castigos e dos resultados funestos que a sua crueldade acarreta,

Cesare Beccaria afirmou com a sabedoria que os séculos consagraram, que "o fim

das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já

foi cometido" (Dos delitos e das penas, 1764, § XV).

Especificamente a respeito do projeto do Regime Disciplinar Diferenciado

Máximo, destinado aos presos que "apresentem alto risco para a ordem e a

segurança do estabelecimento penal ou a sociedade", o Conselho Nacional de

Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) aprovou, no dia 12 do corrente mês e ano,

uma Resolução que considera essa medida "desnecessária para a garantia da

segurança dos estabelecimentos penitenciários nacionais e dos que ali trabalham,

circulam e estão custodiados, a teor do que já prevê a Lei nº 7.210/84". "De fato,

[prossegue o parecer unanimemente aprovado] ao estipular que o preso que

cometer infração disciplinar poderá ser mantido em isolamento por até 30 dias,

parece plenamente assegurada a possibilidade de direção do presídio de punir o

preso faltoso e, ao mesmo tempo, assegurar o retorno à paz no interior do

estabelecimento, valendo lembrar que a aplicação de tal sanção pode ser repetida

quantas vezes o preso infringir, gravemente, a disciplina prisional".

O isolamento celular diuturno de longa duração é um dos instrumentos de

tortura do corpo e da alma do condenado e manifestamente antagônico ao princípio

constitucional da dignidade humana. A sua implementação, por essa idéia

antagônica ao objetivo de reinserção social, invoca as palavras inscritas no átrio do

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Inferno que a Divina Comédia de Dante Alighieri registrou para a imortalidade:

"Deixai toda a esperança, ó vós que entrais" (Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate"

(Canto III).

Além do mais, a medida de segregação extremada é praticamente inviável

porque não existe na arquitetura massificadora dos presídios um número suficiente

de celas individuais para abranger as legiões dos diferenciados. A posição do

CNPCP, como órgão oficial que tem, entre outras, a atribuição legal de "propor

diretrizes de política criminal quanto à prevenção do delito, administração da justiça

criminal e execução das penas e medidas de segurança" e de "inspecionar e

fiscalizar os estabelecimentos penais" (Lei nº 7.210/84, art. 64, I e VIII), não foi

desqualificada pelo Ministro da Justiça. Ao contrário, na solenidade de abertura da

reunião do Ministério da Justiça com todos os secretários de Justiça do País e

diretores do sistema penitenciário nacional, Márcio Thomaz Bastos sustentou a

necessidade de reconstruir as instituições de combate ao crime. Segundo noticiou o

Jornal do Brasil, na edição de 15 de maio (p. A 2), "o ministro não poupou nem

mesmo a Subcomissão de Segurança Pública do Senado, que, na noite de terça-

feira, aumentou as possibilidades e o tempo em que os detentos podem ser

mantidos isolados, ao votar projeto da Câmara dos Deputados sobre regime

disciplinar diferenciado nas prisões. O ministro criticou as chamadas 'legislações de

pânico', como, na sua opinião, seria o projeto de lei aprovado".

A tendência do Congresso Nacional em editar uma legislação de pânico para

enfrentar o surto da violência e a criminalidade organizada, caracterizada pelo

arbitrário aumento da pena de prisão e o isolamento diuturno de alguns condenados

perigosos durante dois anos - além de outras propostas fundadas na aritmética do

cárcere - revelam a ilusão de combater a gravidade do delito com a exasperação

das penas. Nesse panorama em que a emoção supera a razão do legislador,

recrudesce o discurso político e se aviventam os rumos na direção de um direito

penal do terror. Os apóstolos dessa ideologia, que considera o delinqüente um

inimigo interno e socialmente irrecuperável, não estão vendo a multiplicação dos

crimes hediondos (homicídio qualificado, seqüestro relâmpago ou duradouro,

estupro e atentado violento ao pudor, latrocínio, roubo, tráfico de drogas, etc.) e a

repetição cotidiana das chacinas em bairros e periferias de grandes cidades, apesar

da severidade da lei penal ao tratar dos chamados crimes hediondos. Não percebem

ou fingem não perceber que o crime organizado tem seus vasos comunicantes com

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a desorganização do Estado e com o processo desenfreado de corrupção dele

resultante. Ignoram que a lei penal - por si só - jamais irá desmantelar esse estado

paralelo que afronta a autoridade pública e intimida a população civil condenada a

ficar no meio dos beligerantes (policiais e traficantes), desviando-se das "balas

perdidas", essa enganosa expressão, um eufemismo do cotidiano que mascara o

anonimato e dilui a responsabilidade criminal. Suprimem do debate lúcido e da

reflexão social a verdade elementar de que a violência e o crime devem ser

enfrentados pela conjugação de esforços das instâncias formais (lei, Polícia,

Ministério Público, Poder Judiciário, instituições, órgãos e estabelecimentos penais)

e das instâncias materiais (família, escola, associações, universidade, etc) e para as

quais devem convergir sentimentos e valores como a ética e a educação.

As linhas paralelas da violência descontrolada e do crime organizado são

frutos da omissão, incompetência e corrupção dos poderes públicos de todos os

níveis. Essa guerra civil em miniatura deflagrada nos sítios do Rio de Janeiro traduz,

com suas incontáveis vítimas, a crônica de mortes anunciadas, parafraseando a

história antológica de Gabriel Garcia Marques.

No entanto, é certo que há muitos anos os assuntos relacionados às causas

próximas ou distantes da violência e da criminalidade estão nas pautas dos eventos

científicos, das investigações de juristas, de trabalhadores sociais, das

reivindicações populares e de setores do Ministério da Justiça sem que os governos

que se alternam no poder tenham considerado as denúncias da crise do sistema e

as propostas para afastá-las. Existe uma insensibilidade crônica e uma

incompetência profunda em áreas relacionadas à segurança pública e à política

criminal e penitenciária da União e dos Estados, de um modo geral. Alguns

exemplos desse hiato entre a vontade de mudança e a falta de vontade dos

governos, podem ser sumariamente referidos.

Uma comissão de especialistas do sistema criminal brasileiro nomeada pelo

Ministro José Carlos Dias realizou, no ano de 1999, ampla e criteriosa investigação

sobre os fatores determinantes da crise dos meios e métodos de controle da

violência e da criminalidade. Um diagnóstico preliminar e as primeiras propostas de

reformulação do sistema foram apresentados pelo grupo coordenado pelo Professor

Miguel Reale Júnior, antecipando um programa que ele pretendia implementar

durante sua gestão como Ministro da Justiça. Em uma de suas passagens mais

expressivas, o documento acentua:

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A violência, com sua correspondente carga de criminalidade, passa a ser, então, um dado componente do cotidiano, ubíquo no dia a dia. Na sociedade globalizada na qual os meios de comunicação possuem um imenso poder de fogo, a percepção da violência prescinde da experiência pessoal, de sorte que se torna mais comunicacional que experimental. A dramatização da violência adquire, então, uma importância significativa na medida em que se torna um fator de dimensão política. Um sentimento de total intranqüilidade é implantado no seio da sociedade e o medo contagia a todos de forma tal que a segurança do cidadão ocupa a centralidade do ideário popular. Os meios de comunicação social, esses terríveis fabricantes do medo, aliados a agrupamentos políticos, difundem, em nome da segurança coletiva, uma escalada do poder repressivo do Estado. As subseqüentes leis de crimes hediondos foram criadas para atender aos reclamos de segurança expressos pela opinião pública manipulada e provocaram uma exacerbação punitiva que não produziu efeito conseqüente algum. O quadro que segue com, os gráficos em anexo deixou patente que, após a aposição da etiqueta de hediondo em diversos crimes, verificou-se, no período de 1991 a 1998, em relação a tais delitos, ou uma incidência sensivelmente aumentada (homicídio doloso e tráfico ilícito de entorpecentes) ou uma significativa estabilidade. As leis de crime hediondos foram de total inocuidade203.

Após a colheita de dados oficiais e informações de setores qualificados da

administração pública e da promoção de entrevistas e audiências públicas, além do

exame afeto aos problemas referentes à delinqüência juvenil e às agências do

sistema penal (Polícia, estabelecimentos e instituições penitenciárias, Ministério

Público e Magistratura), a comissão divulgou as principais propostas. Merecem

destaque as seguintes: (1) Centros Integrados de Cidadania (CICs). A

reocupação, pelo Estado, nas periferias das grandes cidades, das áreas

abandonadas pelo poder público e a implementação de políticas na área social,

redutoras da violência e da criminalidade. O vazio provocado pela ausência do

Estado tem aberto ensejo para a prática de atos de violência, especialmente entre

os jovens, frustrados na falta de oportunidades no mercado de trabalho e

vulneráveis a atividades delituosas. Incumbe ao Estado prover equipamentos para

tornar possível a reestruturação de espaços públicos, sobretudo escolas, à

disposição das comunidades fora dos horários curriculares para estimular vários

tipos de aprendizado e lazer. As ações preventivas devem ser conjugadas entre a

comunidade e a polícia para se alcançar resultados positivos assim como ocorreu no

Jardim Ângela, onde a criminalidade apresentou acentuada redução após a

203

O relatório, com seus quadros gráficos, análise e diagnóstico, foi publicado pela Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 30 (abril-junho de 2000). As passagens transcritas estão nas páginas 348-349 [nota constante do texto].

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instalação de postos de policiamento e esporte. Outra experiência deve ser

mencionada. Ela ocorre em ponto limítrofe do município de São Paulo, no bairro de

Itaim Paulista, com o funcionamento de um Centro de Integração da Cidadania

(CIC), reunindo o Juizado Especial Cível, Ministério Público, Delegado de Polícia,

destacamento da Polícia Militar, agência do Procon e auxiliares técnicos (assistentes

sociais e psicólogos). Em face da presença desses agentes e de benéfica atuação,

os conflitos passaram a ter mediação acessível. Numa de suas reuniões, havida

com a presença do Ministro da Justiça, José Carlos Dias, a comunidade manifestou

a importância fundamental da presença das autoridades para resolver incidentes e

prevenir fatos graves contra a segurança. No ano seguinte à instalação da CIC no

aludido bairro não houve nenhum homicídio durante os dias de Carnaval, ao

contrário do ano anterior que registrou 27 crimes dessa natureza. A proposta de

instalação de um maior número de CICs na capital de São Paulo204, foi vivamente

apoiada em visitas da Comissão junto ao Poder Judiciário paulista. Primeiramente

na Escola Superior da Magistratura sob a direção do Desembargador César Peluzo,

um dos idealizadores dos Centros, e depois com o Desembargador Márcio Bonilha,

presidente do Tribunal de Justiça. Uma experiência análoga ocorreu no Rio de

Janeiro, na gestão do Professor Nilo Batista à frente da Secretaria de Justiça e

Segurança Pública, no Governo Leonel Brizola. (2) Plantões sociais em

Delegacias de Polícia. A criação dessa modalidade de plantão nas Delegacias de

Polícia reunindo assistentes sociais, insere-se num conjunto de medidas de

prevenção da criminalidade mais grave e revela a atuação moderadora do Estado

em conflitos de rotina. (3) Modelo nacional de dados. É absolutamente urgente a

criação de um modelo nacional de tratamento, estruturação e apresentação de

dados criminais para utilização nas áreas federal e estadual visando resultados

compatíveis com um sistema de informatização indispensável à modernidade e

eficiência do sistema criminal. (4) Integração das polícias Civil e Militar. Não é

mais tolerável a carência de entrosamento dessas instituições que em inúmeras

situações realizam atividades superpostas para alcançar a mesma finalidade:

prevenção e repressão das atividades criminosas. A separação operacional enseja a

duplicidade de ações e a geração de conflitos em prejuízo da segurança coletiva e

de recursos públicos. A falta de integração e outros fatores negativos, como a má

204

No tempo da publicação do relatório havia somente dois centros [nota constante do texto].

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remuneração, têm estimulado o crescimento da polícia privada sem a

correspondente qualificação de seus integrantes. (5) Reequipamento imediato do

sistema penitenciário nacional. Uma política devidamente programada deve evitar

os nós de estrangulamento no sistema como ocorre atualmente com a existência de

um número avultado de estabelecimentos prisionais fechados sem a necessária

correspondência como número de estabelecimentos semi-abertos.Com essa

distorção, não se viabiliza a progressão de regime impedindo-se o cumprimento da

Lei de Execução Penal. Tal situação prejudica um imenso número de condenados

pobres - que constitui a grande maioria da população carcerária - mantendo-os em

regime fechado quando já adquiriram o direito de serem transferidos para o regime

semi-aberto (colônia agrícola, industrial ou similar). Incidentes graves, rebeliões e

mortes são alguns dos fatos provocados pelas tensões que resultam dessa

anomalia. Por outro lado, em relação aos presos que têm uma defesa eficiente,

surge a possibilidade de obter a transferência para o regime aberto (diante da

ausência de vaga ou inexistência de estabelecimento penal semi-aberto),

fomentando-se assim o sentimento de desigualdade e injustiça interna. (6) Escolas

de preparação e integração. É fundamental que integrantes do sistema criminal

(magistrados, membros do Ministério Público e Delegados de Polícia), por meio de

suas respectivas escolas, promovam o intercâmbio de informações e reflexões para

a avaliação dos problemas do sistema de justiça criminal, interagindo-os em suas

atividades e preparando-os para atuação criativa e crítica no contexto social e para o

atendimento da população de que são servidores. (7) Meios de comunicação e

universidades. Há necessidade de uma convocação dos meios de comunicação

social e das universidades para a discussão pública dos assuntos relacionados à

justiça e à segurança a partir da realidade dos dias presentes. (8) Reordenação do

sistema de penas. No contexto de uma politica criminal e penitenciária adequada é

urgente a reordenação do sistema de penas para ajustá-lo às recentes inovações

legislativas e harmonizar os princípios e regras do Código Penal com a legislação

especial. (9) Reexame da Lei de Execução Penal. O tempo de permanência em

cada fase do regime progressivo, a punição por faltas disciplinares, as atividades

das comissões técnicas de avaliação, remição, trabalho do preso, etc., são aspectos

merecedores de um reexame para propor modificações necessárias. (10) Revisão

do Estatuto da Criança e do Adolescente. A discussão pública em torno do

rebaixamento do limite de idade da imputabilidade penal, com a forte tendência de

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redução, apesar da cláusula pétrea da Constituição não permitir emenda, exige dos

profissionais e estudiosos do sistema a consideração de uma via intermediária.

Assim, é oportuno rever o aumento do tempo de internamento dos menores em

relação aos atos infracionais extremamente graves, bem como o levantamento dos

problemas determinantes da rotina de crises e rebeliões nos estabelecimentos

destinados ao internamento. Não, porém, o rebaixamento do limite de idade para

submeter os menores de 18 anos à legislação e aos processos de adultos205. (11) A

maior e melhor aplicação das penas restritivas de direitos. Entre as alternativas

à prisão destaca-se a pena de trabalhos gratuitos em favor da comunidade que deve

ser aplicada para um número maior de situações em face de sua melhor resposta ao

fato delituoso que a opção do sursis simples. Por outro lado, é essencial que entre o

juiz da execução e os destinatários dos trabalhos sejam criados serviços e adotadas

medidas que possam viabilizar o objetivo de utilidade social e participação

comunitária do infrator. (12) Criação e ampliação dos quadros da Defensoria

Pública. A Defensoria Pública, consagrada pela Constituição de 1988 como a

instituição de amparo dos necessitados, somente em poucas unidades federativas

está estruturada suficientemente e em outras tantas inexiste. A implementação de

seus quadros é uma das exigências fundamentais numa política de prevenção da

violência e criminalidade, graças à possibilidade de efetivar os direitos e as garantias

dos cidadãos. (13) A assistência ao egresso. É essencial que o egresso e o

liberado condicional possam ter asseguradas as possibilidades de participação nos

mercados de convivência saudável e de trabalho lícito na comunidade. Somente

assim é possível efetivar o primeiro artigo da Lei de Execução Penal que declara o

objetivo de reinserção social. (14) Incorporação ou consolidação da legislação

especial. Um dos graves problemas enfrentados pelos operadores do Direito Penal

em suas atividades rotineiras é a inflação legislativa. É fundamental que o Brasil

assimile a experiência da lei delegada para as codificações de normas penais, de

processo penal e de execução penal como ocorre na experiência bem sucedida de

Portugal, Itália e outros países. Outra opção será a exigência de lei complementar

para a elaboração de normas penais e de processo penal. Tal hipótese virá eliminar,

certamente, a saga das leis de conjuntura, caracterizadas pela iniciativa de

205

O novo Código Civil, ao estabelecer a incapacidade relativa dos maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos (art. 4º, I), reforça o entendimento – válido para o terreno do Direito Penal – de que essa faixa etária não é indicativa de entendimento e de autogoverno para a exata compreensão de certos atos e a maneira de os exercer[nota constante do texto].

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parlamentares em propor solução exclusivamente legal para atender fatos anti-

sociais de extrema complexidade.

Esse levantamento teve, entre muitos outros antecedentes, um marco

especial surgido no período de redemocratização do País, caracterizado pelo

mandato e esforços do último presidente militar. Ele envolveu pesquisadoras,

juristas e cientistas sociais também no âmbito do Ministério da Justiça a partir de

1979, portanto, há mais de vinte anos. Os estudos mostraram, invariavelmente, a

precariedade do sistema e a necessidade urgente de se elaborar uma política

criminal e penitenciária em harmonia com as necessidades do País e as esperanças

populares. No ato de constituição do primeiro daqueles Grupos de Trabalho, o

Ministro da Justiça, Petrônio Portella, destacou os objetivos da investigação: a) o

sistema penitenciário; b) a violência e a criminalidade dos grandes centros

populosos; c) o aprimoramento da legislação; d) a observância, na consecução de

tais propósitos, do interesse social e dos direitos que integram o patrimônio dos

direitos humanos; e) a atualização das organizações policiais para melhor atender

aos objetivos de prevenção e repressão da violência e da criminalidade206. O outro

Grupo, integrado por cientistas sociais, era constituído dias após com a finalidade de

apresentar minucioso estudo interdisciplinar sobre o delito e a violência,

acompanhado de sugestões para orientar as ações governamentais. As

preocupações daquela segunda iniciativa ministerial se concentraram nos seguintes

aspectos: a) vitimidade decorrente da violência e da criminalidade, nos centros

urbanos de maior densidade populacional; b) a defesa dos direitos humanos do

preso diante dos abusos cometidos pelo Estado nas tarefas de correção e

repressão; c) a interação entre a Criminologia e a administração da justiça penal,

visando o controle da delinqüência e a recuperação do infrator207. Os minuciosos

relatórios, apresentados após vários meses de intenso labor e da colheita de

informações e sugestões de variadas fontes, foram publicados pelo Ministério da

Justiça208. Seguiram-se debates na imprensa e em diversos cenários acadêmicos e

profissionais.

Poucos anos antes, no âmbito da Câmara dos Deputados, foi instaurada uma

Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a proceder o levantamento da

206

Portaria n. 689, de 11.7.1979. [nota constante do texto]. 207

Portaria n. 791, de 14.8.1979. [nota constante do texto]. 208

Criminalidade e violência, Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 3 volumes, 1980. [nota constante do texto].

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situação penitenciária nacional. O relator daquela investigação, Deputado Ibrahim

Abi-Ackel, apresentou conclusões dramáticas sobre as deficiências do sistema

carcerário, verdadeiras "sementeiras de reincidência" e as flagrantes omissões dos

poderes públicos209.

Em junho de 1980 instalou-se em Brasília o Conselho Nacional de Política

Penitenciária, criado em 1975 através do Decreto nº 76.387, com o propósito de

viabilizar a reforma penitenciária que deveria ser introduzida no País. Com o advento

da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, as atribuições daquele órgão foram

ampliadas para se atender diversos objetivos relacionados à prevenção do delito,

administração da justiça criminal e execução das penas e medidas de segurança.

Surgia, então, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, com

detalhadas e oportunas metas em âmbito federal e estadual, como se verifica pelo

art. 64 da respectiva lei. Desde a sua criação esse órgão tem elaborado, mercê do

esforço e idealismo de seus membros - profissionais independentes e estudiosos do

sistema criminal que prestam serviço público relevante - uma extensa pauta de

propostas e diretrizes visando reduzir os fatores determinantes da violência e da

criminalidade.

Ao lado das atividades do CNPCP e dos conselhos estaduais, também

dedicados à investigação dos problemas do crime e da prisão e à apresentação de

caminhos de solução, o mundo científico e acadêmico tem revelado, ao longo dos

últimos trinta anos, uma notável contribuição para esse mesmo objetivo.

Congressos, seminários, conferências, aulas, palestras, painéis e outros eventos

têm tratado das questões criminais e penitenciárias com extraordinário afinco e

notável competência. Publicações periódicas específicas como a Revista do Instituto

Brasileiro de Ciências Criminais e o Boletim (IBCCrim), Discursos sediciosos, do

Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e outras, a exemplo da Revista de Estudos

Criminais, do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) e da Revista

Síntese de Direito Penal e Processual Penal, abordam com grande intensidade os

aspectos críticos do sistema criminal brasileiro sem deixar de oferecer contribuições

para a erradicação ou atenuação dos males. O mesmo ocorre nas seções especiais

de revistas clássicas nos campos do Direito e da Justiça como a Revista Forense e a

Revista dos Tribunais. Mas, se existem inúmeras propostas para a erradicação da

209

O denso relatório e as apropriadas conclusões da CPI foram publicadas no Diário do Congresso Nacional, suplemento ao n. 61, de 4.6.1976, p. 5. [nota constante do texto].

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crise; se há uma inflação legislativa nos domínios penal, processual e de execução

penal210; se existem as agências de controle da criminalidade (Polícia, Ministério

Público, Poder Judiciário, instituições e estabelecimentos penais); se o Congresso

Nacional está funcionando e o Presidente da República jurou cumprir a Constituição,

que destaca a segurança entre os bens fundamentais, por que o sistema criminal

brasileiro atingiu essa crise sem precedentes em toda a história do Estado e da

Nação?

É certo que somente duas palavras podem e devem ser utilizadas para

reverter esse malsinado quadro: vontade política.

Falta a vontade política nos governos de todos os níveis para com o problema

da segurança pública e da melhor administração da justiça criminal que são gêneros

de primeira necessidade. O preconceito, a omissão, a incompetência e a corrupção,

como pontos cardeais para as viagens da insegurança e da anomia, destamparam a

Caixa de Pandora do crime organizado e, cumprindo fielmente a lição da fábula,

deixaram escapar uma multidão de pragas que atingiu a sociedade inteira com os

seus terríveis males.

Em Manifesto divulgado nos mais variados círculos da opinião pública, o

Movimento Antiterror registra que em 1995 o censo penitenciário indicava existência

de 148.760 presos no País, ou seja, 95,4 para cada 100 mil habitantes. Hoje,

segundo o Ministério da Justiça, há 248.685 presidiários, isto é, 146,5 presos para

cada 100 mil habitantes. É uma tendência de crescimento assustadora, mas não

menor que a do aumento da criminalidade que a prisão supostamente diminuiria.

Essa lamentável estatística revela três causas bem definidas: a) a herança de

condenações massificadoras fundadas na lei dos crimes hediondos; b) a não

utilização, em níveis mais satisfatórios, das penas alternativas; c) a falta do

reconhecimento de benefícios na execução da pena (progressão de regime e

livramento condicional, etc.), em relação aos condenados pobres e que não têm a

assistência da defensoria pública, instituição que a Constituição declara como

fundamental para atender aos necessitados mas que não tem os seus quadros

criados ou providos suficientemente no País. Vale transcrever:

210

A inesgotável capacidade legiferante atingiu marcas absurdas nos últimos tempos: mais de 120 diplomas especiais (leis, decretos-leis e decretos) compõem essa carga intolerável de normas [nota constante do texto].

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“Chega de cortinas de fumaça! Um grande exército de jovens brasileiros está condenado ao mundo do crime, sem perspectiva de estudo ou de trabalho. Apesar disso as grandes cidades brasileiras não têm políticas públicas voltadas para reverter o quadro de exclusão que as atinge. A origem e o impulso da violência brasileira estão na marginalidade, não na frouxidão das leis penais.

(…)

Queremos as forças armadas nas ruas? Queremos tanques de guerra voltados para os morros e para as periferias das grandes cidades? Queremos guetos? Queremos uma política informal de extermínio de bandidos? Queremos mais presos? Queremos um milhão de presos? Queremos crianças sendo tratadas como delinqüentes e delinqüentes sendo tratados com animais? São estes os ideais brasileiros de segurança pública?

No combate à violência, é preciso, antes de tudo, acertar o alvo. Mais ameaçadora do que a ação cotidiana do crime organizado é a falência do poder público. O sistema penitenciário brasileiro é frágil, cruel e corrupto. Nossas polícias são violentas, desarticuladas, despreparadas e também corruptas.

A possibilidade de um preso possuir telefone celular e liderar sua gangue é muito mais perigosa do que a possibilidade de progressão de regime no sistema penitenciário. O Brasil precisa de uma gestão eficiente e controlada do sistema carcerário, não de pirotecnia legislativa, boa somente para enganar a sociedade, útil apenas para campanhas eleitorais.

Mais assustador do que o envolvimento crescente de jovens no tráfico de drogas, tratados com o rigor estrábico da lei dos crimes hediondos, ainda que pés-de-chinelo, é o livre trânsito das armas nos redutos do crime. Isso se resolve com inteligência policial, não com cassetete em punho ou com canhão do Exército.

Assistimos, mais uma vez, ao espetáculo político do vendaval repressivo -fadado ao fracasso, porém capaz de estimular mais violência e de eliminar do horizonte conquistas civis inestimáveis. Nossa pretensão é dirigir, de forma sistemática, um olhar crítico e rigoroso para a atuação das autoridades brasileiras.

É possível ser duro com a criminalidade e radical na preservação de direitos e garantias individuais"211.

Relativamente à situação carcerária nacional, convém lembrar que a

Constituição do Império (1824), procurando romper com a herança de atrocidades

das penas cruéis e desumanas orientadas pela ideologia das terríveis Ordenações

portuguesas, declarava que "as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas,

havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e

natureza de seus crimes" (art. 179, XXI). Até hoje aquela proclamação otimista é

ignorada pelos governos que se sucedem na história republicana na quase

totalidade dos estabelecimentos penais brasileiros. Na verdade, as sucessivas crises 211

Textual do Manifesto [nota constante do texto].

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penitenciárias não resultam da ausência de leis, mas, sim, da desobediência secular

do poder público em torná-las efetivas. Apesar da Lei de Execução Penal (1984), se

preocupar com a formação de quadrilhas nos presídios e com a segurança interna,

prevendo a construção de presídios federais "em local distante da condenação para

recolher, mediante decisão judicial, os condenados à pena superior a 15 (quinze)

anos, quando a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio

condenado" (art. 86, § 1º), somente agora - 18 anos após o início de sua vigência -

se anuncia a primeira dessas obras, no Estado do Mato Grosso do Sul212. Quanto

tempo foi perdido e quantas vítimas devem ser lamentadas em face do

aparecimento e progressão dos diversos comandos que administram o crime

organizado do interior dos presídios e seqüestram o sentimento de segurança de

megalópoles?

A histórica falta de recursos humanos e materiais, a incompetência técnico-

administrativa e a sistemática indiferença dos governos para com os sintomas da

anomia e insegurança projetados pelas cotidianas rebeliões carcerárias converteram

a estrutura e a vida dos estabelecimentos penais em "erros monumentais talhados

em pedra" como já foi dito alhures.

A população brasileira não pode mais ser enganada com medidas paliativas e

mentiras legislativas que, além de ofenderem o espírito da Constituição, retardem

ainda mais as reformas sérias e indispensáveis.

De tudo quanto já foi dito e o mais que será objeto de reflexões do presente e

do futuro, pode-se concluir afirmando que:

O Estado não cumpre as leis criminais que promulga;

O Estado não oferece um sistema carcerário minimamente eficiente para

manter, tratar e recuperar o preso;

O Estado não tem política criminal, educacional, de saúde pública ou de

assistência aos excluídos;

O Estado permite que os seus agentes integrem o crime organizado ou por

ele sejam corrompidos;

212

Imperativamente dispõe o art. 3º da Lei nº 8.072, de 25.7.1990 (lei dos crimes hediondos): “A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou a incolumidade pública”. – Nota acrescida posteriormente à apresentação da Carta [nota constante do texto].

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O Estado é negligente ao desconsiderar a realidade nacional e os dados

científicos e estatísticas das ciências penais e sociais para elaborar uma competente

Política Criminal e Penitenciária de médio e longo prazo;

O Estado, em nenhuma de suas instâncias (Legislativa, Executiva ou

Judiciária), pode tributar ainda mais o cidadão para confiscar-lhe, agora, não mais os

valores pecuniários, porém os mais elementares direitos para uma vida digna de ser

vivida.

O Movimento Antiterror não defende a impunidade ou a lassidão legal; não

protege e nem representa uma determinada classe ou grupo social ou econômico;

não tem interesses eleitoreiros e não está ao serviço de objetivos que comprometam

o conceito das pessoas físicas e jurídicas que o representam.

O Movimento Antiterror pretende, com a sensibilidade e a consciência de

cidadãos que há muitos anos se dedicam ao estudo dos problemas da violência e da

criminalidade e também com o entusiasmo e o coração dos estudantes que sempre

advogam a causa da dignidade do ser humano, proporcionar ao país e à nação um

material de reflexão para a adoção de novos caminhos em favor da segurança

popular e da eficiência na administração da justiça.

E também para acreditar que ainda resta a esperança no fundo da Caixa de

Pandora. Esperança que no dizer do Padre Antônio Vieira, "é a mais doce

companheira da alma".

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 20 de Maio de 2003.