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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO ÉTICA E POSSE JEFFERSON ROBERTO DA SILVA DECLARAÇÃO “DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA A DEFESA EM BANCA PÚBLICA EXAMINADORA”. Itajaí (SC), 4 de novembro de 2010 --------------------------------------------------------------------------- PROFESSOR ORIENTADOR DOUTOR ÁLVARO BORGES DE OLIVEIRA Univali – Campus de Itajaí

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

ÉTICA E POSSE

JEFFERSON ROBERTO DA SILVA

DECLARAÇÃO

“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA A DEFESA EM BANCA PÚBLICA EXAMINADORA”.

Itajaí (SC), 4 de novembro de 2010

--------------------------------------------------------------------------- PROFESSOR ORIENTADOR DOUTOR ÁLVARO BORGES DE OLIVEIRA

Univali – Campus de Itajaí

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

ÉTICA E POSSE

JEFFERSON ROBERTO DA SILVA

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito. Orientador: Professor Doutor Álvaro Borges de Oliveira Itajaí , 12 de novembro de 2010

AGRADECIMENTO

Gostaria de agradecer primeiramente a Deus por permitir que eu atingisse esse objetivo. Tenho um agradecimento especial a fazer ao meu irmão, Odair da Silva e minha cunhada, Cecília Zancanaro da Silva por financiarem meus estudos e tornarem este momento possível. Agradeço também a todos os professores que compartilharam seus conhecimentos, possibilitando a confecção dessa monografia.

DEDICATÓRIA

Dedico esta monografia à minha filha, esposa e aos meus pais.

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total

responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a

Universidade do Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca

Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí , 12 de novembro de 2010

Jefferson Roberto da Silva

9° período B

PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Jefferson Roberto da Silva, sob o título

Ética e posse, foi submetida em 12 de novembro de 2010 à banca examinadora

composta pelos seguintes professores: Nome ---------------------------------------------------

--função----------------------------------------------------------Nome------------------------------------

----------------------------------Função----------------------------------------------, e aprovada com

a nota ------------, ------------------------------------------------------------------------------------------

.

Itajaí, 12 de novembro de 2010

Álvaro Borges de oliveira Orientador

Jefferson Custódio Próspero Presidente da Banca

Professor Msc. Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CC/1916 Código Civil Brasileiro de 1916 CC/2002 Código Civil Brasileiro de 2002 .

ROL DE CATEGORIAS

Aético

Alheio à ética1

Ética

“Por isso, a questão fundamental de sua ética é a de como se deve agir para que tal

empreitada se realize. A razão deve dirigir o cotidiano, para dominar as paixões e

criar bons hábitos, e a mediania entre as atitudes também é importante, pois

estabelece um equilíbrio.”2

Fato jurídico

“Fato jurídico é todo acontecimento da vida relevante para o direito, mesmo que seja

fato ilícito.”3

“Para um acontecimento ser considerado um fato jurídico, é necessário que esse

acontecimento, de alguma forma, reflita no âmbito jurídico, ou seja, fato jurídico é

todo acontecimento da vida relevante para o direito, mesmo que seja ilícito”.4

Posse Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de

algum dos poderes inerentes à propriedade.5

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. 3. ed. – Curitiba: Positivo, 2004, p. 263. 2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.55. 3 Arruda Alvim e Tereza Arruda Alvim, Baptista Sônia Márcia Hase de Almeida. Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1997. P.52. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico. Curso Damásio de Jesus. São Paulo, 2004. p. 37. 5 BRASIL. Código Civil. 2002

ix

SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................... Xii

INTRODUÇÃO ................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 15

A ÉTICA DE ARISTÓTELES ............................................................. 15

1.1 ARISTÓTELES .............................................................................................. 15

1.1.1 O SUMO BEM .................................................................................................. 16

1.1.1.1 O Justo Meio ......................................................................... 20 1.1.1.1.1 A Justiça..............................................................................20 1.2 Equidade e Equitativo..................................................................22 1.2.1Teorias Contratualistas.............................................................26 1.2.1.1 O Senso de Justiça ................................. ..............................27 1.2.1.1.1 Bens Materiais.....................................................................29 1.2.1.1.1.1 A Necessidade da Ética...................................................30

CAPÍTULO 2 ...................................................................................... 33

POSSE .............................................................................................. 33

2.1 A POSSE ....................................................................................................... 33

2.1.1 A ORIGEM DA POSSE ...................................................................................... 33

2.1.1.1 Teoria Subjetiva da Posse ................................................... 34 2.1.1.1.1 Teoria Objetiva da Posse.....................................................36 2.1.1.1.1.1 Teoria sociológica da posse.............................................36

x

2.2 Conceito de Posse.........................................................................37 2.2.1 Posse Justa.................................................................................39 2.2.1.1 Posse com Justo Título...........................................................39 2.2.1.1.1 A Posse de Boa-fé.................................................................40 2.2.1.1.1.1 Boa-fé Objetiva....................................................................41 2.2.1.1.1.1.1 Boa-fé Subjetiva...............................................................42 2.2.1.1.1.1.1.1 Posse Nova e Posse Velha..........................................44 2.3 Aquisição da Posse........................................................................45 2.3.1.1 Aquisição derivada...................................................................46 2.4 Perda da Posse...............................................................................47 2.5 Natureza Jurídica da posse...........................................................49

CAPÍTULO 3 ...................................................................................... 51

ÉTICA NA POSSE ............................................................................. 51

3.1 ÉTICA NA POSSE ......................................................................................... 51

3.1.1 POSSE E ÉTICA .............................................................................................. 52

3.2 Ética e aquisição da Posse ........................................................ 55 3.2.1 Compra........................................................................................56 3.2.1.1 Esbulho....................................................................................56 3.2.1.1.1 Furto......................................................................................57 3.2.1.1.1.1 Saisine................................................................................58 3.3 Posse: Situação Fática.................................................................60

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. .67

xi

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 68

xii

RESUMO

Esta monografia é dirigida ao estudo da posse sob o enfoque ético. A questão ética da posse é estudada neste trabalho sob a visão aristotélica. Para Aristóteles a ética é a prática reiterada de boas ações e o estudo da ética tem sempre a finalidade de se encontrar meios de praticá-la. Assim, Aristóteles, desenvolve seu estudo procurando saber quais ações são éticas e quais são aéticas. Aristóteles explica que as ações éticas são aquelas que não são extremas. São ações equilibradas, e este comportamento Aristóteles define como justo meio. Explica-se também o que é posse, fazendo-se um breve relato da sua evolução histórica e as principais teorias desse instituto, Notadamente as teorias subjetiva, objetiva e sociológicas da posse. Faz-se também estudo da posse nas leis atuais e de sua natureza jurídico. Após o estudo inicial da ética e da posse, procura-se chegar a uma resposta sobre a importância da ética para a existência da posse.

INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto o estudo da ética e da posse. Mais precisamente, a importância da ética no instituto da posse.

O seu objetivo é descobrir se a posse, por ser tutelada pelo direito, prescinde para a sua existência de quesitos éticos.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando do estudo da ética aristotélica. Estuda-se então quais as ações levam ao bem do homem. Segundo Aristóteles o bem do homem é a felicidade fim último de todas as ações.

No Capítulo 2, tratar-se-á de posse faz-se um estudo desse instituto, sua origem e sua natureza jurídica. As principais teorias que resultaram no instituto ele é hoje.

No Capítulo 3, tratar-se-á de relacionar a posse aristotélica e o instituto da posse, com o objetivo de saber qual a importância da ética no instituto da posse.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre ética e posse.

Para a presente monografia foi levantada a seguinte hipótese: A posse, sendo um meio de aquisição de direitos é ética?

Hipótese: A posse, por se configurar independentemente de quesitos morais e de justiça, é aética.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação6 foi utilizado o Método Indutivo7, na Fase de Tratamento de dados o Método Cartesiano8, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é composto na base lógica Indutiva.

6 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11 ed. Florianópolis: Conceito Editorial; Millennium Editora, 2008. p. 83.

7 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 86.

8 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.

14

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas do Referente9, da Categoria10, do Conceito Operacional11 e da Pesquisa Bibliográfica12.

9 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o

alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 54.

10 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25.

11 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 37.

12 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.

A ÉTICA DE ARISTÓTELES

1.1 ARISTÓTELES

Filósofo e cientista grego nascido em Estagira (Macedônia),

filho de Nicômaco, médico de Amintas II. Viajou para Atenas aos 17 anos, com a

intenção de estudar na Academia de Platão13.

Após a morte de seu mestre, em 347 ac., viajou para Assos,

na Ásia Menor, cidade em que Hérmias, seu amigo, governava e do qual veio a ser

consultor. Após a execução de Hérmias pelos persas em 345 ac., muda-se para

cidade de Pela, capital da Macedônia, onde foi professor do filho mais novo do rei.

Este filho era Alexandre, que seria conhecido como Alexandre, o Grande.

Em 335 ac., quando Alexandre chega ao poder, Aristóteles

retorna a Atenas onde funda sua própria escola, o Liceu.

O estagirita foi o autor da primeira classificação dos

animais, e é também considerado o pai da anatomia comparada e professor de

outros cientistas, como o botânico

Foi o primeiro a classificar as ciências, e as dividiu em

teórica (matemática, física e metafísica), práticas (ética, política e economia) e

poesia (poética, retórica, etc.) Essa classificação não inclui a lógica, descoberto por

ele, é a ferramenta certa para o discurso de todos eles. Ele também inventou o

silogismo, o instrumento fundamental do pensamento ocidental.

São obras de Aristóteles:

Obras de Lógica ou Organon: incluem Categorias, Sobre a Interpretação, os Analíticos ( Primeiros e Segundos) e os Tópicos.

Obras sobre física e a concepção do universo: compreendem Física, Sobre o Céu, Sobre a Geração e a Corrupção e Meteorológicos.

13 ARISTÓTELES. Disponível em: http://www.pensador.info/autor/Aristoteles/biografia/ acesso em 03/05/2010.

16

Obras psicológicas e biológicas: abrangem Sobre a Alma, além de pequenos textos reunidos sobre o título de Parva Naturalia e História dos Animais ( com partes de autoria duvidosa).

Tratados de metafísica: Andronico denominou Metafísica (literalmente "depois da física) a estas partes dos apontamentos de Aristóteles.

Obras ético-políticas: compreendem a Ética a Eudemo (organizados por Eudemo, discípulo de Aristóteles), a Ética a Nicómaco (organizada por Nicómaco, filho de Aristóteles), a Grande Moral ( de autoria duvidosa), a Política e a Constituição de Atenas14.

Aristóteles foi um gênio de seu tempo e muitas das suas conclusões são ainda hoje incontestáveis.

1.1.1 O SUMO BEM

Segundo Aristóteles, toda ação humana tem uma finalidade,

busca um fim. Muitas ações têm como fim, o fruto de sua atividade. “O fim da

medicina é a saúde, o da construção naval é um navio, o da estratégia militar é a

vitória, e o da economia é a riqueza”.15

O homem persegue o fim desejado empregando meios para

que isso seja possível. “O específico do homem é conduzir-se, e pôr em

correspondência meios a fins”16

Existem, porém, bens que são diversos das atividades das

quais se originaram, estes seriam mais excelentes do que as ações que o fizeram

nascer. Aquele que busca a riqueza ou a saúde, na verdade está em busca dos

prazeres e do bem-estar por aquelas proporcionadas.

Mas o que se procura saber é: qual o fim supremo a que

todas as ações verdadeiramente buscam? Qual o bem último, que desejamos por si

próprio, sem que este seja o caminho para um bem ainda maior? Qual bem é o

objetivo maior de todas as ações? Este bem, segundo o mestre, é a felicidade e este

é um bem auto-suficiente:

14 Biografia de Aristóteles Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/cesima/schenberg/alunos/paulosergio/biografia.html. acesso em 03/05/2010. 15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2002. P.17. 16 REALE , Miguel. Filosofia do Direito.19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. P.378

17

Definimos auto-suficiência como aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável por não ser carente de nada. E é desse modo que entendemos a felicidade; além disso, a consideramos a mais desejável de todas as coisas, e não como um bem entre outros, pois, em caso contrário, é evidente que ela se tornaria mais desejável mediante a adição até do menor bem que fosse, uma vez que esta adição resultaria um bem maior, e quando se trata de bens, é sempre mais desejável o maior. Assim, a felicidade é algo absoluto e auto-suficiente.17

Mas como alcançá-la? Para nortear sua investigação em

direção ao fim desejado, Aristóteles pergunta qual ciência que tem por objeto, esse

bem supremo. Ele diz que este é objeto da ciência política, porque ela usa as

demais ciências e legisla sobre o que devemos ou não fazer e, “a finalidade desta

ciência deve necessariamente abranger a finalidade das outras, de maneira que

essa finalidade deverá ser o bem humano.”18

A ciência política estuda “as ações belas e justas”19, logo, o

que se procura, não são repostas que fiquem no mundo teórico. O que se espera é a

moral do agir, independentemente do agir guiado pelo direito20.

A resposta para o que seria o sumo bem está nas ações, o

conhecimento de tais ações só tem valor porque há a possibilidade prática. Seria,

pois, segundo Aristóteles, uma perda de tempo iniciar este estudo sem que

houvesse a possibilidade de aplicar este conhecimento no dia-a-dia. Este bem maior

não é só fruto das obrigações da pólis para com o indivíduo, mas, sobretudo, do

indivíduo para com a pólis.

Assim chega-se à felicidade, que Aristóteles diz ser o bem

do homem e explica: “o bem do homem vem a ser a atividade da alma em

consonância com a virtude e, se há mais de uma virtude, em consonância com a

melhor e mais completa entre elas.”21

Atividade da alma pode-se entender como racionalidade,

pensamento, Inteligência. É por meio dessas capacidades que o indivíduo possui a

17 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.26. 18 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.18. 19 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti p.18. 20 “Nesse sentido podemos dizer, com Vicente Ráo, que ‘Moral e Direito Têm um fudamento ético comum’. Ou, com jellinek, que o direito é o ‘minimo ético’, isto é, o estritamente necessário para convivência social.” Vicente Ráo e Jellinek apud MONTORO, André Franco. Introdução a Ciência do Direito. 28 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais LTDA, 1999. P.124. 21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. p.27.

18

razão que o guia em suas ações. Estas podem ser as que buscam o justo meio

(virtuosas), ou as que são levadas aos dois extremos (viciosas).

Se as ações morais são o caminho para o sumo bem, o que

seria uma ação dessa natureza? A definição do que seria uma ação moral é passível

de interpretações diversas, uma vez que não se pode desvincular a sua existência

de um juízo axiológico. Mas independente de sua definição o importante a ressaltar

é a sua habitualidade.

Para que aprendamos a virtude temos que praticá-la, uma

vez que ela não decorre da natureza, “visto que nada que decorre da natureza pode

ser alterado.”22 Porque o que recebemos naturalmente, não se necessita de prática,

como a visão e a audição, mesmo sem usá-las nós já as tínha-mos.

Agir virtuosamente é um exercício de atos que se norteiam

pelos valores da sociedade em que se está inserido. Um bom exemplo disso é o

dado por Miguel Reale23, ele fala a respeito do “João-de-barro” que faz sua casa

instintivamente, não lhe foi ensinado, nem ele poderá ensinar, mas o resultado é

sempre o mesmo, apenas seguindo-se movimentos repetitivos instintivamente

gravados em seu ser.

Sendo “a transmissão dos valores”24 algo próprio da cultura

humana, é a prática que nos levará a perfeição do ato, como por exemplo, um

pianista: só a prática o levará a ser um bom profissional. A ação moral é então a

soma de várias ações aprendidas no decorrer da vida do homem, estas, guiadas por

princípios que busquem um equilíbrio entre os extremos. Bittar diz que:

É tarefa difícil defini-la, em si, por si, mas sabe-se que a ação moral não pode corresponder a um único ato isolado com determinado conteúdo (dar esmola, perdoar uma ofensa, fazer justiça perante um desvalido...). De fato, estar diante de uma ação moral não é estar diante de uma ação com determinado conteúdo, mas sim estar diante de uma ação cuja habitualidade comportamental confere ao indivíduo a característica de ser único e poder governar-se a si mesmo.25

22ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. p. 40. 23 REALE, Miguel. Filosofia do Direito.p.378. 24 REALE, Miguel. Filosofia do Direito.p.378. 25 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4.

19

Desde a nossa mais tenra infância somos direcionados a

caminhos que visam à educação para que possamos, quando adultos, governando

a nós mesmos, tomar o caminho ético. Por isso, desde a infância, Quando fazemos

algo que é socialmente reprovável, sofremos uma sanção. Da mesma forma, quando

praticamos um ato considerado bom socialmente, somos incentivados.

Além da aptidão natural inerente a todo ser humano, estes

castigos e incentivos nos dão a proporção valorativa necessária para a convivência

social. Desse modo somos educados a seguir o costume que predomina na

sociedade em que nascemos.

Sobre a habitualidade, necessária à conduta moral,

Aristóteles cita o famoso provérbio da andorinha e ressalta que será decisivo o modo

como nos habituamos a agir. Porque “não será desprezível a diferença se, desde a

nossa infância, nos habituamos desta ou daquela maneira.” 26A virtude se faz:

“Em uma vida inteira’, pois uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um só dia, ou um curto espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso” 27

Aristóteles procura explicar que a pratica de ações virtuosas,

não só nos trará a felicidade absoluta a que ele chama eudaimonia, como nós

mesmos nos tornaremos bons ou eudaimones. Esta felicidade está ancorada na livre

escolha do indivíduo, que usando da racionalidade, delibera, escolhe e se

responsabiliza por suas ações, guiando-se, dessa maneira, para o caminho

desejado. “Aristotle constantly reminds his readers that happiness is activity: it’s

virtue in action, not virtue unused”.28 Abbagnano explica que:

[...] a tarefa própria do homem enquanto tal não é a vida vegetativa que ele tem em comum com as plantas, nem a vida dos sentidos que tem em comum com os animais, mas apenas a vida da razão. Assim, o homem só será feliz se viver de acordo com a razão; e esta é a virtude. O estudo da felicidade transforma-se também numa pesquisa da virtude.29

26ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.41. 27ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.27. 28 "Aristóteles constantemente lembra seus leitores que a felicidade é uma atividade: é a virtude em ação, não virtude sem prática ". BROADIE, Sarah.Ethics with Aristotle. New York: Oxford University Press, 1991. P. 57. (tradução livre do autor) 29 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. 6ed. Lisboa. Editorial presença, 1999. P. 175.

20

A vida em consonância com a razão é a capacidade da

escolha, é saber fazer as escolhas o bem próprio e coletivo.

1.1.1.1 O JUSTO MEIO Entre e excesso e a falta está o justo meio e o hábito em

escolher este último, em seus diferentes aspectos, resultam as virtudes éticas.

Percebe-se, então, que tênue é o caminho a seguir e o homem virtuoso tem que se

policiar constantemente para que não cometa atos injustos. No quadro abaixo estão

listadas algumas virtudes éticas para que possamos ilustrar o justo meio de

Aristóteles.

FALTA JUSTO MEIO EXCESSO

COVARDIA CORAGEM TEMERIDADE

INTEMPERANÇA TEMPERANÇA INSENSIBILIDADE

AVAREZA LIBERALIDADE PRODIGALIDADE

VAIDADE MAGNANIMIDADE HUMILDADE

IRASCIBILIDADE BENIGNIDADE INDOLÊNCIA

MODÉSTIA RESPEITO PRÓPRIO VAIDADE

DESCRÉDITO

PRÓPRIO

VERACIDADE ORGULHO

MALEVOLÊNCIA JUSTA INDIGNAÇÃO INVEJA

Do mesmo modo que é negativa a covardia, é também a

temeridade, pois há a exposição ao perigo desnecessariamente. No mesmo sentido

a prodigalidade é tão ruim quanto à avareza. Muitos adágios populares procuram

mostrar a negatividade de ações aéticas. Por ex.: “A avareza é madrasta de si

mesma”. Ou ainda: Quod tibi fieri nolueris alteri ne faceris (não faças a outrem aquilo

que não queres que te seja feito)30.

Todos, na verdade, temos como objetivo a felicidade e é

praticando atos comedidos que estaremos indo em direção a ela. Esta felicidade, no 30 FILOLOGIA. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/2/02.htm. acessado em 04/05/2010

21

amplo sentido da palavra, não é só nossa, mas a do próximo. Assim, pelos atos que

praticamos em nossas ações intersubjetivas “tornamo-nos justos ou injustos [...]31

1.1.1.1.1 A JUSTIÇA

A Justiça para Aristóteles é uma virtude moral e é ela que

rege o comportamento do homem para com seus semelhantes. Por isso a justiça

não é só considerada boa, mas a mais excelente de todas as virtudes. Porque não

diz respeito ao bem individual e sim ao coletivo32. “Ela é completa porque a pessoa

que a possui pode exercer sua virtude não só em relação a si mesmo, como também

em relação ao próximo [...].33 Ora, este comportamento do bem geral é o objetivo

das leis, por este motivo, para o mestre, quem respeita todas as leis é um homem

totalmente virtuoso. Essa relação entre ética e leis é uma das funções do Direito

segundo Montoro34:

A finalidade do direito não é o simples conhecimento “teórico” da realidade jurídica, embora esse conhecimento seja importante. Não é também a formulação de quaisquer regras “técnicas”, eficazes e úteis, apesar da grande importância da técnica jurídica. A finalidade do direito é dirigir a conduta humana na vida social. É ordenar a convivência de pessoas humanas. É dar normas ao “agir”, para que cada pessoa tenha o que lhe é devido. É em suma, dirigir a liberdade, no sentido da Justiça.

Estar em conformidade com as leis é, em princípio, estar em

consonância com a justiça. Por isso ser injusto é o pior dos vícios morais porque a

injustiça afeta não só o autor, mas também o próximo. Existe para Aristóteles mais

de um tipo de justiça e são elas: distributiva e comutativa, que também é reparativa.

31 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. p.41. 32 Citando São Tomaz de Aquino, Montoro diz que “Só é justiça propriamente dita a relação que tem por objeto: - dar a outrem; - o que lhe é devido; - segundo uma igualdade. A essas três notas correspondem as características essenciais da justiça em sentido estrito: - a alteridade ou pluralidade das pessoas (alteritas, de alter); - o devido (debitum) - a igualdade (aequalitas)” MONTORO, André Franco. Introdução a Ciência do Direito.P. 166. 33ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.P.105. 34 MONTORO, André Franco. Introdução a Ciência do Direito.P. 123.

22

A justiça distributiva leva em conta o merecimento de cada um, é

ela que “preside a distribuição das honras ou do dinheiro ou dos outros bens que

possam dividir-se entre aqueles que pertencem à mesma comunidade”35 Esta justiça

segue uma distribuição geométrica e a sua medida está diretamente relacionada ao

mérito, por isso esta medida não segue uma proporção constante. Desse modo

pessoas com méritos diferentes receberão coisas em proporções diferentes. A

justiça, nesse caso, está associada a uma proporção e não necessariamente a uma

igualdade. Aristóteles diz que esta proporção é a origem de muitas disputas e

queixas. Principalmente quando iguais possuem ou recebem partes diferentes, ou

quando diferentes possuem ou recebem partes iguais.

A justiça comutativa é também corretiva36 e trata dos contratos

que podem ser voluntários ou involuntários. Voluntárias são, por exemplo, as compras e vendas, os empréstimos para consumo, o empréstimo para uso, penhor ou depósito, a locação (todas essas transações são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária). Das transações involuntárias algumas são clandestinas, como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o engodo com o objetivo de escravizar, o falso testemunho; e outras são violentas, como a agressão, o sequestro, o assassinato, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.37

Nesse tipo de justiça, para que haja justiça entre dois

indivíduos é necessário que haja igualdade, se houver diferença para maior ou

menor haverá injustiça. Por isso, quando se procura um juiz para se resolver

determinado fato jurídico, o que se busca é o equilíbrio entre as partes. Esta justiça

“será o meio termo entre a perda e o ganho.”38

Nesse sentido a idéia de justiça, muitas vezes, não é

consoante com as normas positivas, uma vez que esta é geral e não consegue

alcançar todos os pormenores, a individualidade, a subjetividade de todos em

determinada sociedade.

35 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. 6ed. Lisboa. Editorial presença, 1999. P. 177. 36 “A justiça comutativa é corretiva: procura equilibrar as vantagens e as desvantagens entre dois contratantes. Nos contratos involuntários, a pena infligida ao réu deve ser proporcional ao dano por ele provocado.” ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. P. 176. 37ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.108. 38 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.110.

23

Ainda, que essas falhas legais existam, o homem justo

não quer para si, mais do que lhe convém nem quer dar menos para quem tem

direito a mais e também não tenta evitar o nocivo repassando a quem não deveria.

1.2 EQUIDADE E EQUITATIVO

Perante a lei39 somos todos iguais, e há uma gama enorme de

prescrições legais sobre situações fáticas e de direito que preveem medidas a serem

tomadas para cada caso concreto. Mas se os dispositivos legais nos selecionam por

algumas peculiaridades, outras que também fazem parte do nosso ser ou da nossa

situação social podem fazer com que essa lei não seja de todo eficaz. É por isso que

em certos momentos, “a justiça e a equidade não parecem ser absolutamente

idênticas, nem ser especificamente diferentes.”40 Isso ocorre porque a Lei leva em

consideração os casos mais freqüentes, sendo realmente impossível para o

legislador prever todos os casos existentes, com todos os seus pormenores. Os

diferentes deverão ser tratados com equidade para que a lei possa se amoldar ao

caso concreto. Aristóteles explica:

[...] toda Lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. [...] Por conseguinte, quando a Lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, (então é correto visto que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade), corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta.41

Ainda relacionando o equitativo e o justo com a justiça,

Aristóteles diz que ambos podem ser iguais e assim serão bons, mas se forem

diferentes um deles não será bom. O que se percebe é que ele faz uma relação

entre o homem justo com a justiça legal, e o homem equitativo com a justiça da

equidade. Ambos serão bons quando coincidir o ato justo que faria o homem

equitativo com o ato justo do homem justo, que segue a disposição legal. Quando há 39 Nas palavras de São Tomás de Aquino, “[...] a lei não é outra coisa senão uma ordem da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade” Tomaz de Aquino, Sunmma theologica apud, LYONS, David. As Regras Morais e a Ética. Campinas: Papirus, 1990. P. 17 40 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.124. 41 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p. 125.

24

uma diferença de atos, este demonstra que um deles não é bom. O que se conclui é

que sempre será aquele que segue a fria lei, não que seja errado seguir a lei (dura

Lex sed Lex), mas em certos casos a lei, como mencionado supra, pode ser injusta

por ser de caráter geral e não específico.

Desse modo, o homem equitativo, por sua disposição de caráter

que busca a justiça, pois, acima de tudo, é justo consigo mesmo, pode não ser

legalmente justo, mas a sua justiça será ainda melhor que a justiça legal. “por isso o

equitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à

justiça absoluta.”42

Devido à universalidade das leis, injustiças podem ser cometidas,

e é ao chegar nessa bifurcação, que o equitativo toma o caminho da justiça

deixando a legalidade para trás, mas não em um sentido negativo e sim em busca

de uma justiça ainda melhor:

[...] é a natureza do equitativo, que ele é justo e superior a uma espécie de justiça [...] o homem equitativo: é aquele que escolhe e pratica atos equitativos, que não se atém de forma intransigente aos seus direitos, mas tende a tomar menos do que lhe caberia, embora tenha a lei ao seu lado; essa disposição de caráter é a equidade [...].43

No decorrer da história da humanidade muitas Leis foram

criadas para proibir, permitir e regulamentar condutas. Algumas dessas leis

permitiram atos aéticos e injustos. Não havia, contudo a ilegalidade do ato, pois

estavam regulamentados por leis. Um bom exemplo disso, e que ilustra

perfeitamente (talvez até em excesso) aquele que segue as leis sem distinção de

justiça, é a profissão de ladrão, que era regulamentada no antigo Egito. Orlando

Soares diz que:

[...] no Egito, a profissão de ladrão foi reconhecida pelo Estado. Quem quisesse exercê-la escrevia seu nome em uma tabuleta, que se expunha ao público e levava para um lugar determinado todos os objetos que roubava, para que seus proprietários pudessem recobrá-los, pagando uma certa quantia.44

42 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.125. 43 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti. p.125. 44SOARES, Orlando. Criminologia, 1ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 2001. p. 85.

25

No caso supra, o “justo legal” poderia subtrair o bem alheio e

conseguir uma vantagem para si, não importando se isso fosse considerado aético.

O importante seria estar amparado pela lei. O equitativo, por outro lado, jamais

usaria da lei para se apoderar do bem alheio, pois ele é justo consigo mesmo,

agindo virtuosamente, praticando atos justos e procurando a justiça ainda que a lei

diga não ser necessário. O caminho que se segue é sempre o meio termo, ainda

que haja condições de se ir adiante, o caminho para a justiça absoluta é dar para

cada um, o que é seu, na sua justa e indefectível medida. Por isso o equitativo pode

ser superior ao “justo legal”, mas nunca superior a justiça absoluta.

Na atualidade a igualdade é uma preocupação e a carta magna

prescreve a igualdade em seu artigo 5°:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].45

Percebe-se que a lei tenta tratar igualmente a todos os

indivíduos que compõem uma sociedade, mas quando isso não é possível resta aos

diferentes o remédio da equidade.

Prevista na lei de introdução ao código civil a equidade atual

está muito presa as leis; “Art. 4° - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de

acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”46 Não é,

nesse caso, a equidade da pessoa envolvida na lide, que poderia ter decidido

livremente sobre a questão, mas a interferência de um terceiro que decide pelos

litigantes.

Aristóteles mostra que o norte sempre será a justiça

absoluta, ainda que seja muito difícil de ser alcançada e diz que quando um juiz

restabelece a igualdade:

“tudo ocorre como se houvesse uma linha dividida em partes desiguais e ele subtraísse a diferença que faz com que o segmento maior exceda a metade para acrescentá-la ao menor. E quando o

45BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. 46BRASIL.Decreto Lei 4657/42.

26

todo foi igualmente dividido, os litigantes dizem que receberam “o que lhes pertence”- isto é, obtiveram o que é igual”47

Destarte, as diferenças são diminuídas com a intervenção de

um terceiro que busca equidade. Essa é a essência da própria justiça, que é,

basicamente, dar a outrem o que lhe é devido, buscando sempre o bem comum.48

1.2.1 TEORIAS CONTRATUALISTAS

Como vimos, o homem é um ser social e a necessidade de

viver em sociedade é inerente à sua natureza. Aristóteles, em sua obra A Política,

conclui que o homem é um animal político e afirma que só um homem vil ou superior

procuraria viver isolado sem que fosse forçado a isso.

Vimos também que para esse convívio social é

imprescindível a convenção de normas, pois não são incomuns vontades

contrapostas e pretensões resistidas. As lides na sociedade são muitas e normais.

As leis, como explicamos, têm a função de manter a paz social e são pautadas na

ética para o bem comum.

Segundo Aristóteles, essas normas têm o objetivo de

orientar a conduta humana na vida social, elas têm uma origem ética para que cada

um tenha o que lhe é devido. Assim, o pensamento de Aristóteles é: primeiro surge a

sociedade, depois as normas. É importante para este trabalho, contudo, explicar que

algumas teorias têm entendimento diferente, estas são chamadas teorias

contratualistas. A exposição desta teoria é importante para situar a ética em nosso

atual estado de direito.

Os contratualistas se opõem a idéia de um convívio natural

afirmando que a sociedade é uma convenção criada pelo homem. Afirmam os

47 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.111. 48 “Outro capítulo notável da obra de S. Tomás é o tratado da justiça,[...], e que, assim, se poderiam resumir:

a) a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade; b) há uma justiça geral ou social, cujo objeto é o bem comum, e uma justiça particular, que tem

por objeto o bem dos particulares; c) esta se subdivide em justiça comutativa que rege as relações entre particulares, e justiça

distributiva, que se refere às obrigações da sociedade para com os particulares; d) o fundamento das obrigações de justiça é a própria natureza humana; e) o direito é objeto da justiça”. Montoro, André Franco. Introdução a Ciência do Direito.

P.340.

27

contratualistas que o homem, nos primórdios, vivia em um estado de natureza, e

desse modo era livre. Afirmam que a vida em sociedade se deu por uma escolha, e

não de modo natural.

Jean-Jacques Rousseau, autor da obra “O contrato Social”,

concluiu que o homem nasceu livre e a única maneira que consegue viver em

sociedade é pela convenção de um contrato social com cláusulas que se impõem a

todos e ditam de que maneira se deve agir para um convívio salutar: Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.49

Para Rousseau a ordem social não é um fato natural, mas

sim um acordo de vontades entre os componentes da sociedade. O homem na

natureza é essencialmente bom e preocupa-se unicamente com a própria

conservação.

Esse entendimento não é o norte seguido por este trabalho,

mas não é de todo refutado, pois para que exista o estado de Direito em que

vivemos, temos que abdicar de um pouco de nossa liberdade para termos a tutela

equitativa da sociedade na pessoa do Estado.

Dallari explica que: [...] pode-se afirmar que predomina, atualmente, a aceitação de que a sociedade é resultante de uma necessidade natural do homem, sem excluir a participação da consciência e vontades humanas. É inegável, entretanto, que o contratualismo exerceu e continua exercendo grande influência prática, devendo-se mesmo reconhecer sua presença marcante na idéia contemporânea de democracia.50

Assim, temos a necessidade natural de viver em sociedade,

para isso, contudo, precisamos de leis que objetivam não só o bem individual, mas

coletivo. Por isso não podemos usar da autotutela, visto que a lei não deve vir da

vontade de um, mas da vontade coletiva. O papel relevante aqui desempenhado

pelo legislador é, pois, determinante para a comunidade. 51

49 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. Rolando Roque da Silva. Ridendo Castigat mores. P. 24/25. 50 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria geral do estado. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1979. P. 33. 51 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 130.

28

1.2.1.1 O Senso de Justiça

O ser humano carrega consigo, naturalmente, um senso de

justiça, animal social por natureza, este é um elemento instintivo de sua

sociabilidade. Deste senso resultam regras sociais não positivas aceitas

universalmente, substrato para “afirmar-se a validade e obrigatoriedade das regras

jurídicas positivas”52. Possuidor do denso de justiça e de racionalidade, o homem

difere dos demais animais por guiar suas ações na razão, essa capacidade traz

consigo a noção do bem e do mal, e para os virtuosos, “leva a querer o bem e a

evitar o mal”53.

“Segundo a opinião geral, a justiça é aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e a desejar o que é justo; e de modo análogo, a injustiça é a disposição que leva as pessoas a agir injustamente e a desejar o que é injusto.”54

Isso ocorre porque possui o homem as capacidades acima

citadas, que o faz controlar seus impulsos, não só pelo seu bem, mas pelo bem

geral. Nestes fundamentos é que a sociedade se torna possível e sobre os quais se

apoiam as leis.

As justiças do direito positivo e do direito empírico mudam,

conforme mudam os fatos e os valores que lhe são atribuídos, permanecendo

imutável somente aquele senso de justiça natural que, independente do Direito, e é

consoante com os atos justos. Assim a justiça natural55 que é a disposição inata do

homem, de se relacionar bem com os semelhantes, tem por objetivo a segurança

própria e coletiva. Possibilitando a vida em sociedade, que para o ser humano, não é

só uma opção, mas uma necessidade. Por isso, atualmente, quando alguém comete

um crime e diz que o cometeu por ignorar ser o ato qualificado como tal, não se 52 REALE , Miguel. Filosofia do Direito. p.97 53 REALE , Miguel. Filosofia do Direito. p.97 54 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p.103. 55 “Fonte do direito in genere é a natureza humana, ou seja, o espírito que reluz na consciência individual, tornando-a capaz de compreender a personalidade alheia, graças à própria. Desta fonte se deduzem os princípios imutáveis da Justiça e do Direito Natural” Giorgio Del Vecchio apud MACHADO, Hugo Brito. Uma Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Dialética, 2000. P.57.

29

exime da sanção penal. A ligação do individuo com o todo pressupõe o

conhecimento das Leis.

A justiça do direito natural é a justiça dos princípios e estes

são fontes para o juiz suprir a omissões e lacunas do direito positivo. André Franco

Montoro56diz que:

os princípios que constituem o direito natural são, entre outros: bonum faciendum (o bem dever ser feito), neminem laedere (não lesar outrem), suun cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), respeitar a personalidade do próximo, as leis da natureza etc. Qualquer norma do direito positivo, qualquer artigo do código civil, comercial ou penal funda-se necessariamente nesses princípios. Mas é evidente que as normas do Direito positivo apresentam uma formulação, estrutura, e natureza diferentes do Direito Natural.

Por esse motivo Aristóteles diz que o equitativo supre a falta

legal sendo ainda mais justo que uma espécie de justiça e é o direito natural que o

guia em direção a justiça absoluta, tão difícil de atingir, mas que desponta como um

sol no horizonte do justo que tem como disposição de caráter, a equidade.

1.2.1.1.1 Bens Materiais

Nos dias atuais há um apelo crescente ao materialismo e

algumas pessoas se tornam consumistas por acharem que um maior número de

bens materiais trará a felicidade. Necessitamos sim de bens para sobreviver, mas

nunca em excesso. Se temos o suficiente para viver, temos o suficiente para a

felicidade, se não formos felizes com pouco, dificilmente seremos com muito:

Mas o homem feliz, enquanto homem, necessita de bens exteriores, pois nossa natureza não basta a si mesma para os fins da contemplação. Nosso corpo também necessita, para ser saudável, de ser alimentado e cuidado. Entretanto não se deve pensar, que o homem, para ser feliz, necessite de muitas ou de grandes coisas, só porque não pode ser sumamente feliz sem bens exteriores. De fato, a autossuficiência e a ação não implicam excesso, e podemos

56 MONTORO, André Franco. Introdução a Ciência do Direito.P. 73.

30

praticar ações nobres sem para isso necessitarmos sermos donos da terra e do mar.57

Muitas contendas têm origem na disputa pela posse de bens

materiais, a grande maioria, motivados por atos que fogem ao justo meio. Pessoas

associam a felicidade a um sonho de consumo e muitas vezes se valem de meios

escusos para obtê-lo. Eduardo Kalina e Santiago Kovadloff descrevem bem o

momento atual:

Vivemos numa sociedade consagrada à exaltação dos objetos e a estimulação incessante do seu consumo. Hoje são inúmeros os seres humanos que para avaliar o que são ponderam o que têm. Mas ter não significa ter cobertas as necessidades básicas, e sim estar consagrado a multiplicá-las e voltar a reproduzi-las de maneira incessante. Na verdade, ninguém tem o que precisa porque ninguém precisa realmente do que tem. Habita-se num mundo substancialmente artificial e – como diriam os existencialistas – inautêntico. Toda a literatura contemporânea – de Joyce a Kafka, Brecht, Ionesco e Camus tem descrito esse universo de sinistra trivialidade.58

A Bíblia Sagrada em provérbios 3:27, aconselha: “Não

detenhas dos seus donos o bem, estando na tua mão poder fazê-lo,”59 ou seja,

mesmo que eu possa, ou que a lei me permita, não devo fazê-lo porque não é ético,

e não estarei sendo equitativo. Isso atesta o quão antiga é a preocupação do

homem no que diz respeito a problemas oriundos da ganância e do comportamento

aético.

1.2.1.1.1.1 A Necessidade da Ética

Como expusemos anteriormente, sob a luz do saber de

Aristóteles, a necessidade de um comportamento ético para um convívio social

salutar, é indispensável. As mazelas de uma vida social sem ética afligem a

humanidade desde os seus primórdios, por isso os ensinamentos de nossos

ancestrais permanecem e permanecerão atuais. A tecnologia pode ter facilitado a

57 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.p. 233. 58 KALINA, Eduardo; Kavadloff, Santiago. Apud CASTRO CELSO A. Pinheiro de. Sociologia Aplicada ao Direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003. P. 101. 59 A Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: King’s Cross publicações, 2005. p. 516.

31

vida do homem, mas socialmente temos as mesmas fraquezas da época do

Estagirita.

O comportamento ético é o caminho para a felicidade60 própria

e coletiva e está pautado no respeito ao próximo e às leis, mas se estas não forem

justas, por não conseguirem acompanhar o dinamismo dos relacionamentos sociais

(sem falar de seu caráter geral, que não contempla certos fatos específicos), a

equidade deve ser o norte.

A recompensa de se seguir o caminho estudado e proposto por

Aristóteles não é apenas o conhecimento, é antes de tudo a felicidade.

A vida de atividade conforme à virtude é aprazível por si mesma, pois o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama; e não apenas cavalo dá prazer ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, como também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os ato virtuosos aos amantes da virtude. Mas na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, ao passo que os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que são aprazíveis por natureza; esse é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. A vida deles, portanto, não necessita do prazer como uma espécie de encanto acessório, mas contém o prazer em si mesma.61

O que se espera do mundo em que vivemos? Com certeza a

reciprocidade de nossas ações. Não há nada mais óbvio do que isso, ao plantarmos

o bem estaremos a caminho de colhê-lo, ao fazermos o mal estaremos indo em sua

direção. Nada mais natural do que sofrer o reflexo de nossas práticas.

O que se percebe é que, quanto maior a percentagem de

pessoas agindo eticamente em determinada sociedade, tanto melhor esta será para

se viver. Por isso, o comportamento pautado na Ética é uma necessidade. A postura

ética de cada indivíduo da sociedade é importante, como são importantes as células

saudáveis, para o bom funcionamento do organismo. Para Aristóteles, a principal 60 “Mas se a felicidade consiste na atividade conforme à virtude, será razoável que ela seja também uma atividade em consonância com a mais alta virtude, e essa será a virtude do que existe de melhor em nós. E isso que existe de melhor em nós – quer seja a razão, quer seja alguma outra coisa esse elemento que pensamos ser o nosso guia natural e que nos dirige, tomando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele próprio divino, ou somente o elemento mais divino em nós – sua atividade conforme a virtude à virtude que lhe é própria, então, será a perfeita felicidade.” ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.P. 228. 61 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nasseti.P. 29-30.

32

função do legislador virtuoso é justamente esta, a busca do melhor para a

comunidade.

O legislador virtuoso em sua arte , a arte de bem conduzir a comunidade nas coisas comuns, age de acordo com a nomotheísa. Assim procedendo, o legislador age tendo em vista o melhor para a comunidade, o fim da lei deve ser o bem comum.Esse tipo de justiça é o gênero, ou seja, a acepção mais larga, ou o sentido mais amplo que se pode atribuir ao termo. Se são muitos os sentidos do termo justiça, este é o mais genérico. Dessa forma é que a justiça total é também chamada de justiça universal ou integral, e tal se deve ao fato de a abrangência de sua aplicação ser a mais extensa possível (as leis valem para o bem de todos, para o bem comum). Pode-se mesmo afirmar que toda virtude, naquilo que concerne ao outro, pode ser entendida como justiça, e é nesse sentido que se denomina justiça total ou universal. De fato, pode-se entendê-la como sendo a virtude completa ou perfeita (Arete téleia) em relação ao semelhante, e não em absoluto, pois se a lei que versa sobre as mais diversas matérias e prescreve a prática das inúmeras virtudes exercitáveis no convívio social (temperança, magnificência...) é regularmente observada, por consequência tem-se que nenhum prejuízo a outrem se efetuará pelo homem que pratica atos de justiça.62

Percebe-se, então, que a pólis necessita da política do comedimento, da

moderação, e isto é colocar o interesse coletivo em primeiro plano. Pensar não só

na felicidade própria, mas do seu irmão, do seu vizinho, das gerações futuras, enfim,

de todos.

62 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 130.

CAPÍTULO 2

POSSE

2.1 A POSSE

Discorrer sobre posse não é das tarefas mais fáceis, porque

há muita discordância a seu respeito, a única unanimidade sobre esse instituto,

pode-se dizer, é ser considerada uma das mais controvertidas matérias do Direito.

Eis alguns exemplos: A posse continua sendo, sem dúvida, o instituto mais controvertido de todo o direito, não apenas do direito civil. De fato, tudo quanto a ela se vincula é motivo de divergência doutrinária.63

Carlos Roberto Gonçalves tem entendimento semelhante:

Inúmeras são as dificuldades que aparecem no estudo da posse. Muitos tratados já foram escritos. Apesar disso, continua sendo tema altamente discutido e controvertido.64

É inegável que o instituto da posse é orbitado por inúmeras teorias contraditórias

entre si, devido, em grande parte, as inúmeras circunstâncias em que a senhoria

sobre uma coisa pode ser exercida.

2.1.1 ORIGEM DA POSSE

Mesmo em tempos remotos, o homem fazia uso de objetos

para a sua sobrevivência: pedras, ferramentas feitas de ossos, e armas, tais como

arcos, clavas, etc. Diferentemente de outros animais que adaptam o corpo ao habitat

em que vivem, as ferramentas produzidas pelo homem o tornam apto a viver em

diversos ambientes, superar obstáculos e a se defender. Vários achados

arqueológicos comprovam esse fato, o homem exerce a posse sobre coisas para

superar suas limitações, desde os primórdios de sua existência.

63 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2004 P. 30. 64 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P.25.

34

Percebe-se que para o homem a posse é algo natural, que o

acompanha desde os primórdios da civilização. Aliás, a posse é um fato tão comum

que não está restrita a espécie humana, pois vários animais de diferentes espécies

são territorialistas, exercendo a posse sobre determinada área, não permitindo que

outros animais adentrem o seu espaço.

Quando o homem deixou de ser nômade, no último período

da pré-história, chamada de revolução neolítica, ou revolução agrícola, houve a

necessidade de se procurar lugares propícios à agricultura. Nessa época a posse

sobre áreas férteis passa a ser valorizada. Astolpho diz que:

[...] a posse e a propriedade aparecem em constante relação entre os homens; a posse é um fato natural; a propriedade uma criação da lei. Como nasceram uma e outra? É inútil investigar-se, através das diversas teorias imaginadas e desenvolvidas pelos filósofos e pelos juristas, a origem da propriedade, porque, frente a fenômenos jurídicos, é bastante que pesquisemos a origem desses fenômenos na organização romana, porque foi Roma que organizou o Direito, com uma extensa projeção sobre o futuro.65

Friedrich Von Savigny, ao confeccionar o Tratado da Posse

usou como base de seus estudos o direito romano, apesar de ter muitos opositores

sua obra abriu caminho para as demais teorias acerca desse instituto.

2.1.1.1. Teoria Subjetiva da posse A posse para Savigny materializa-se quando estão

presentes dois elementos: o corpus (elemento objetivo) que nada mais é do que ter

a detenção física da coisa, e o animus, (elemento subjetivo) que leva em conta a

parte psicológica do agente, e é a vontade de ter para si a coisa que se detém, por

este motivo é chamada esta teoria de subjetiva, porque leva em conta a parte

psicológica do agente.

Assim para que a posse se configure pela ótica da teoria

subjetiva é indispensável o corpus (detenção física da coisa) e o animus (intenção

65 ASTOLPHO, Rezende. A posse e sua Proteção, 2a Ed. São Paulo: Lejus, 2000. p. 15.

35

de ter para si a coisa). O agente tem que necessariamente querer a coisa para si

para a posse existir. Se exercer somente o corpus será apenas um detentor.

A teoria de savigny trouxe muita controvérsia, mas teve

papel importantíssimo para a construção de um pensamento sobre a posse como

um instituto autônomo, desassociado da propriedade, Gonçalves explica que :

O mérito de Friedrich Von Savigny foi ter descoberto, quando procurava reconstruir a dogmática da posse no direito romano em sua obra clássica o assunto intitulada Tratado da posse ( Das recht des besitzes), a posição autônoma da posse, afirmando categoricamente a existência de direitos exclusiva e estritamente resultantes da posse [...]66

Inegável é o mérito de savigny, mas a sua teoria encontrava

alguns pontos que não a sustentavam. Como para savigny era necessário o corpus

e o animus para a existência da posse, esta não existiria nos casos de locação,

comodato, ou outros direitos reais em que o agente obtém a detenção física da

coisa, mas não tem a intenção de tê-la para si. Assim um locatário, por exemplo, não

teria a proteção da coisa locada por não estar exercendo a posse.

2.1.1.1.1 Teoria Objetiva da posse No lado oposto dessa teoria encontra-se, historicamente,

Rudolf Von Jhering, autor da teoria objetiva da posse. Para este, basta o agente

estar agindo como se dono fosse para que esteja configurada a posse e é esse o

posicionamento adotado pelo nosso ordenamento jurídico.

Para Jhering agir como dono é exteriorizar a conduta de

dono( affectio tenendi), é exercer os direitos oriundos da propriedade, sem a

necessidade de ser realmente o proprietário, é um direito que nasce desse fato

(possideo quod possideo). Agir como dono não significa necessariamente ter o

contato físico com a coisa porque pode existir a posse indireta. Nesse sentido a

posse é mais estar no uso econômico da coisa, tendo os cuidados, a conduta de

proprietário. Ihering exemplifica a noção de posse:

66 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 30.

36

"Suponhamos dois objetos que se acham reunidos no mesmo lugar, uns pássaros seguros por um laço num bosque, ou, num solar em construção, os materiais, e ao lado uma cigarreira com cigarros; o mais ignorante dos homens sabe que será culpado de um furto se tirar os pássaros ou alguns materiais, mas nada tem a temer se tirar os cigarros; qual a razão desse modo diferente de proceder? Com relação à cigarreira, cada qual dirá: perdeu-se; deu-se isso contra a vontade do proprietário, e torna-se a pô-lo em relação com a coisa, dizendo-se-lhe que foi encontrada; com relação aos pássaros e aos materiais, sabe-se que a posição em que se acham tem sua causa em uma disposição tomada pelo proprietário; estas coisas não poderão ser encontradas, porque não estão perdidas: seriam roubadas."67

Para Ihering a posse é um direito, ele refuta a idéia de a

posse ser um fato, sendo este, outro ponto em que ele difere do autor da teoria

subjetiva, pois para Savigny, a posse era um fato.

2.1.1.1.1.1 Teorias Sociológicas da Posse No inicio do século passado surgiram as teorias

sociológicas da posse. Corroborando de certa forma com a idéia de jhering, mas

agregando o carácter econômico e a função social da posse, contribuíram ainda

mais para tornar a posse um instituto autônomo em relação à propriedade. Essas

teorias formuladas por juristas sociólogos como o francês Raymond Saleilles e o

espanhol Hernández Gil também colocaram em questão a função social da

propriedade.

A nossa carta magna prescreve a função social com

relação à propriedade em 6 artigos, demonstrando com isso a importância do

assunto para o ordenamento jurídico pátrio, abaixo alguns exemplos:

Art. 5° inciso XXIII “a propriedade atenderá a sua função social” Art. 182, § 2º - “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

67 GOMES, Orlando, Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 21 e 22.

37

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.68 (grifo nosso)

Percebe-se então que a posse tornou-se ao longo da história

um instituto autônomo, capaz até de se sobrepor ao direito de propriedade quando

atendidos os requisitos legais e principalmente a sua função social. Isso se torna

claro pela simples leitura do artigo 1.210 do código civil brasileiro que em seu

parágrafo segundo prescreve: “Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a

alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.”

A proteção atual dada ao estado de fato descrito como

posse, visa garantir acima de tudo a paz social, protegendo-se a posse protege-se

um provável direito. Seja o direito baseado em um título, ou baseado no simples

exercício da posse, que pode ou não levar a usucapião.

2.2 Conceito de Posse

O artigo 1.196, do Código Civil Atual, define: “Considera-

se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno ou não, de algum dos

poderes inerentes à propriedade”. Assim, para ser possuidor, não necessita o

agente estar amparado por qualquer titulo de direito e sim pelo exercício da posse,

agindo como se fosse proprietário em relação à coisa.

Como descrito em lei, o posseiro utiliza-se dos direitos

inerentes à propriedade, tem a aparência de proprietário, e mesmo que não o seja,

este estado de fato é o que tomamos como verdadeiro à primeira vista. Como

exemplifica Venosa:

68 BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil.1988

38

Sem a credibilidade da sociedade nos estados de aparência, inviável seria a convivência. A cada instante, defrontamos com situações aparentes que tomamos como verdadeiras e corretas. Assim, não investigamos se cada empregado de um estabelecimento bancário possui relação de trabalho com a instituição para nos dar quitação a pagamentos que efetuamos; não perguntamos ao professor que adentra em sala de aula e inicia sua preleção se ele foi efetivamente contratado pela escola para essa função; não averiguamos se o motorista que dirige o táxi ou o ônibus que utilizamos é habilitado, e assim por diante. 69

O autor complementa: “esse estado de aparência, que

inicialmente pode surgir sem substrato jurídico, pode servir para a aquisição da

propriedade.”

Entende-se, então, que a posse existe por si própria, não

necessariamente nascendo de um direito, mas que pode dar origem a direitos.

Sendo esse um dos motivos desse estado de fato ter relevância jurídica e sua

devida proteção prevista em nosso ordenamento jurídico. Além disso, Venosa em

seu manual, diz que:

“[...] houvesse o possuidor, desapossado da coisa, que provar sempre, e a cada momento, sua propriedade ou outro direito real na pretensão de reaquisição do bem, a prestação jurisdicional tardaria e instaurar-se-ia inquietação social.”70

A simples configuração de posse, que nada mais é do que o

exercício de um ou mais direitos inerentes à propriedade, traz consigo direitos

tutelados pelo estado. Carlos Roberto Gonçalves explica que:

A posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, bem como a situação de fato aparenta ser uma situação de direito. É, assim, uma situação de fato protegida pelo legislador. 71

Existe, contudo, previsão em que mesmo exercendo os

direitos inerentes à propriedade não se configurará a posse: são os casos em que

haverá mera detenção. O artigo 1.198 do Código Civil assim define: 69 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2004 P. 27 70 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 27. 71 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 36.

39

Art. 1198 “considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.72

Somente nesses casos, previstos pela lei, que a posse não

pode se configurar, em todos os outros casos em que há exteriorização dos poderes

inerentes à propriedade, materializa-se a posse. A detenção é desse modo, uma

exceção à regra, não tendo a mesma proteção dispensada à posse.

Assim vimos que para a configuração da posse, basta que

se exerça em nome próprio algum poder que emana da propriedade, mas para

classificá-la, contudo, deve-se levar em conta critérios objetivos e subjetivos. A

posse pode ser, desse modo, justa ou injusta e ter sido obtida com boa ou má-fé, e

esta divide-se em subjetiva e objetiva.

2.2.1 Posse Justa O Código de processo civil em seu artigo 1.200 prescreve

quais as qualidades que a posse não pode ter para que seja considerada justa: “É

justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

A posse violenta é aquela que foi adquirida empregando-se

a força, mas além da coação física pode também ser violenta, a posse que tenha

surgido por meio de coação moral. Aquele que expulsa outrem de um imóvel para

ocupá-lo à força, exerce posse violenta. Do mesmo modo é violenta quem ameaça a

vida, a integridade física ou moral de alguém para tomar a posse.

Clandestina é a posse obtida às escondidas, em momento

que o proprietário não poderia ter conhecimento. Se alguém sabe que o possuidor

do bem está viajando ou mora em local distante, invade e toma a posse, o faz

clandestinamente.

Precária é a posse em que o agente tem a obrigação de

devolver a coisa, mas não o faz. O vício começa nesse momento, momento da

72 BRASIL. Código Civil. 2002.

40

negativa de devolução. Alguns exemplos de posse precária são o término do

contrato de locação ou comodato e a negativa de devolução.

2.2.1.1 Posse com justo título A posse com justo título é aquela em que o possuidor pensa ter adquirido a coisa

por meio de documento válido, Venosa explica que:

O Justo título configura estado de aprência que permite concluir estar o sujeito gozando de boa posse. Lembremos do caso do herdeiro aparente cujo título e ignorância de existência de outros herdeiros faz presumir ser ele justo possuidor. Destarte, um título defeituoso faz presumir a boa-fé até que circunstâncias demonstrem o contrário. [...] Alguém, por exemplo, adquire coisa de menor, não sabendo dessa incapacidade; o sujeito apresenta-se como representante, com procuração falsa etc. justo título é tanto aquele existente, mas defeituoso, como aquele inexistente que o possuidor reputa como tal.73

O justo título, então, faz com que o possuidor pense estar

exercendo a posse sem vícios. Este, inclusive, pode ser requisito para algumas

modalidades de usucapião.

2.2.1.1.1 A posse de Boa-fé A boa-fé tem inúmeros significados, trataremos aqui como

principio. A sua denominação tem origem no vocábulo latino fides e bona fides,

significa acima de tudo honestidade, equidade. Instituto já considerado na antiga

Roma, a boa-fé, pode-se dizer, é o norte de todo o direito privado e denota, acima

de tudo, um comportamento ético.

Prescreve o código civil atual:

Artigo 113: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração;” Artigo 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”74

73 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2004 P. 27 74 BRASIL. Código Civil. 2002.

41

Citada ao todo 55 vezes nesta mesma lei, tem importância

vital nos negócios jurídicos. O ordenamento pátrio prevê várias situações em que a

boa-fé é levada em conta no julgamento da lide. Situações em que a parte

psicológica do agente, por acreditar não estar cometendo qualquer vício, se

sobrepõe ao direito positivo, que beneficiaria a outra parte. Abaixo alguns exemplos:

. Artigo 128: “Sobrevindo à condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé;”

Art. 167. § 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor.75

Percebe-se que a boa-fé é muito importante para o

julgamento do caso concreto, nesse sentido ela é alvo de duas avaliações, uma

objetiva e outra subjetiva. Existem desse modo a boa-fé objetiva e a subjetiva.

2.2.1.1.1.1 Boa-fé objetiva A boa fé objetiva é aquela em que o ato, a conduta do

agente é o que se poderia esperar do homem médio. Condutas essas que, de forma

genérica são prescritas em nosso ordenamento jurídico. Como bem define Judith

Martins Costa:

"É um modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar sua própria conduta de acordo com aquilo que um modelo de ser humano ideal, certo, honesto e probo faria no caos concreto".76

Desse modo, orientando-se pela boa-fé objetiva, o agente

não pode simplesmente invadir um terreno e presumir que ninguém reclamará a

posse ou a propriedade. Assim, alguém que tome a posse de um terreno, por supor 75 BRASIL. Código civil. 2002. 76COSTA , Judith Martins. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 411.

42

que esteja abandonado ou não tenha dono, deve antes de tudo, investigar para ter

certeza que seu ato não viola direito alheio.

A conduta de quem não deseja ferir direito alheio é

certificar-se de que a posse almejada não venha a ser viciosa. Se ainda assim a

posse apresentar vícios de que desconheça o novo possuidor, este será protegido

pelo instituto da boa-fé, que premia aquele que agiu com ética. O código civil assim

prescreve:

Art. 1201. É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.77

Perde, contudo esta proteção o possuidor que demonstre de

alguma forma saber que sua posse é viciosa: “A posse de boa-fé só perde este

caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o

possuidor não ignore que a possui indevidamente”78

Assim, a boa-fé objetiva é comparação do caso concreto

com as ações que se poderia esperar de um homem comum.

2.2.1.1.1.1.1 Boa-fé subjetiva

Como vimos, a boa-fé objetiva é o comportamento que seria

feito pelo homem médio para se assegurar de que a coisa visada não seja obtida

injustamente ou por meios aéticos. Depois dessa análise objetiva, resta ainda

observar o fator último, que é baseado na parte psicológica do agente. Esta última

análise leva ao conhecimento da boa-fé subjetiva.

A boa-fé subjetiva é aquela em que o agente desconhece o

vício, não há qualquer má intenção em seus atos. Está diretamente relacionada à

crença do agente, não importando se fruto de fato real ou mistificação.

COSTA assim define: É uma expressão que denota um estado de consciência individual de não estar lesando o direito de outrem, ou de não estar provocando dano injusto. Diz-se subjetiva justamente porque, para

77 BRASIL. Código civil. 2002. 78 BRASIL. Código civil. 2002

43

sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção.79

Confirmada a boa-fé do agente, esta gera efeitos jurídicos

que protegem o agente. Eis alguns exemplos retirados do Código Civil:

Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono

§ 1o Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.

Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.80

Como pode-se notar, alguns negócios jurídicos que

normalmente não poderiam se concretizar, são aceitos por estar o agente agindo de

boa-fé. É importante ressaltar que mesmo a posse sendo clandestina, precária ou

violenta com relação ao possuidor primitivo, é passível de proteção contra terceiros

que não tenham melhor posse. Assim, alguém que tenha invadido ou esbulhado

posse de outrem, pode propor ação possessória contra alguém que lhe tome a

posse, pois a sua posse não é injusta com relação ao último invasor.

A posse de boa-fé tem maior importância nas lides em que

há discussão a respeito das benfeitorias e dos frutos da coisa possuída, além de ser

um quesito, em certos casos, para a usucapião.

2.2.1.1.1.1.1.1 Posse nova e posse velha

O tempo de exercício da posse pode também conceder ao

posseiro maior ou menor proteção nas ações possessórias. A posse “nova” é menor 79 COSTA , Judith Martins. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 410. 80 BRASIL. Código civil. 2002.

44

que ano e dia e admite que o interessado intente liminar initio litis, já na posse

“velha” maior que ano e dia o procedimento tem que ser obrigatoriamente o

ordinário. O CPC em seu artigo 924 prescreve:

Regem o procedimento de manutenção e reintegração de posse, as normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho; passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter possessório.81

E na seção seguinte o art. 928 complementa: “Estando a

petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do

mandado liminar de manutenção ou de reintegração[...]82

Essa previsão tem a finalidade de proteger a posse, seja porque quem tem a aparência de proprietário, pode realmente sê-lo ou ainda pode a posse ter as qualidades que possibilitam a usucapião. Carlos Roberto Gonçalves explica que:

Se alguém, instala-se em um imóvel e nele se mantém, mansa e pacificamente, por mais de ano e dia, cria uma situação possessória, que lhe proporciona direito a proteção. Tal direito é chamado de Jus possessionis, derivado de uma posse autônoma, independente de qualquer título. É tão somente o direito fundado no fato da posse (possideo quod possideo) que é protegido contra terceiros e até mesmo contra o proprietário.83

As ações possessórias intentadas após ano e dia deverão

seguir o procedimento ordinário e não poderão contar com o benefício da concessão

de liminar.

2.3 Aquisição da posse

Desde que a posse é de fato o exercício, pleno ou não, de

algum dos poderes inerentes à propriedade, adquire-se a posse no momento em

que é possível exercer tais poderes em nome próprio. O código civil prescreve:

“Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em

nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.”

81 BRASIL. Código de Processo Civil. 82 BRASIL. Código de Processo Civil, 2002. 83 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 82.

45

Para que se possa exercer os poderes inerentes à

propriedade é necessário que haja a senhoria sobre a coisa, que se dá por

disposição legal, como na causa mortis pelo principio da saisine ou por meio de ato

ou negócio jurídicos, a título gratuito ou oneroso, realizado por vontade das partes. A

posse pode se dar também pela ocupação da coisa abandonada, ou mesmo da

coisa que não tenha dono. Há também a apreensão da coisa contra a vontade de

quem já a possui

A aquisição originária é aquela em que a posse atual não

guarda nenhuma relação jurídica com o possuidor anterior. Ocorre por exemplo

quando há ocupação ou esbulho. A posse originária não dá continuidade aos vícios

da posse anterior, apesar de poder ter vícios próprios.

É desse modo, na maioria das vezes um ato unilateral, que

independe da vontade do possuidor primitivo.

Aquisição derivada da posse é aquela em que há um nexo

causal entre a posse atual e a posse anterior. Isso acontece, por exemplo, na

compra e venda, a coisa objeto da venda é alienada com todos os vícios pré-

existentes.

2.4 Perda da posse

Como vimos anteriormente, as coisas que são passíveis de

uso econômico pelo homem, são objeto de desejo e por conseqüência, também

passíveis de disputa. Por isso, a perda da posse pode ocorrer de diversas formas,

não somente pelos atos em que há consenso entre as partes, mas não raro,

situações que apresentam vontades contrapostas. O código civil pátrio descreve a

perda da posse:

Art. 1.223 Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1196.

Art. 1.224 Só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido.84

84 BRASIL. Código Civil. 2002.

46

A forma genérica de descrever a perda da posse pelo atual

código, abrange todas as formas possíveis em que isso pode acontecer, o código de

1916, citava os casos em que a posse podia ser perdida:

Art. 520. Perde-se a posse das coisas:

I - pelo abandono;

II - pela tradição;

III - pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do comércio. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)

IV - pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente;

V - pelo constituto possessório.

Parágrafo único. Perde-se a posse dos direitos, em se tornando impossível exercê-los, ou não se exercendo por tempo que baste para prescreverem. 85

O abandono é uma renúncia voluntária ao exercício

da posse, deixando a coisa livre para ser ocupada por outrem. Assim,

para configurar o abandono é necessário não só abster-se da detenção

física da coisa (corpus), mas também da intenção de tê-la para si

(animus).

Perde-se também a posse pela tradição, mas neste caso há

um consenso entre as partes. Uma, conscientemente, abre mão da posse para

outra, que a toma. Modo derivado de adquirir o domínio da coisa móvel, pela transferência do alienante para o adquirente. Ato de entrega real ou ficta da coisa que é objeto de contrato. No tocante a direitos reais sobre imóveis, a tradição só opera pela transcrição do título de aquisição no respectivo registro.86

Com a tradição a senhoria sobre a coisa é passada

integralmente e de forma definitiva ao novo possuidor.

85 BRASIL. Código Civil. 1916. 86 P. 535

47

Também extingue-se a posse sobre a coisa pela perda,

nesse caso, a detenção física (corpus) desaparece. Sem este elemento não pode

haver posse, logo, desaparece também a posse. A perda da posse se dá quando o

possuidor, apesar de tentar encontrá-la a perde definitivamente.

A posse extingue-se, igualmente, pela destruição da coisa,

neste caso a coisa perde seu valor econômico, perde sua utilidade. Desaparece

desse modo o animus do agente.

Outro fato que ocorre a perda da posse é quando a coisa é

posta fora do mercado. Gonçalves explica que:

[...] porque se tornou inaproveitável ou inalienável. Pode alguém possuir bem que, por razões de ordem pública, de moralidade, de higiene, e de segurança coletiva, a à categoria de coisa extra commercium, então, a perda da posse pela impossibilidade, daí por diante, de ter o possuidor poder físico sobre o objeto da posse.87

Não tendo aproveitamento econômico por ser contrário às

leis, perde-se também a senhoria sobre a coisa.

Também pode ocorrer a perda da posse, pela posse de

outrem. Independentemente da anuência do posseiro primitivo, a nova posse põe

fim a anterior se o antigo possuidor não tomar as medidas cabíveis em tempo hábil.

Se o possuidor esbulhado não estiver presente quando do

ato de esbulho, deverá, ao tomar conhecimento, usar do desforço imediato ou da

tutela do estado para recuperar a posse, não podendo ficar inerte sob pena de

perder a posse definitivamente se passado o decurso de tempo previsto em lei.

. O novo possuidor poderá ser alvo de ações possessórias ou

mesmo da autotutela, como prescreve o art. 1.210 do código civil Brasileiro:

Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

87 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 104.

48

§ 1o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse88

O parágrafo primeiro dá a permissão para que o possuidor

esbulhado ou turbado use de sua força para repelir a ameaça à propriedade, mas a

defesa ou desforço devem ser praticados no momento em que se toma

conhecimento do esbulho ou da turbação, não se admitindo esta medida em

momento posterior ou com a ajuda de terceiros.

2.5 Natureza jurídica da posse A posse, como dissemos, é um dos temas mais

controvertidos do direito e especialmente controvertida é a sua natureza jurídica.

Para uns a posse é meramente um fato para outros é um

direito e ainda pode a posse ser um fato com relevância jurídica.

Alguns afirmam que a posse é um direito real, mas esse

é um erro, pois a lei enumera de forma taxativa todos os direitos reais possíveis:

Art. 1.225. São direitos reais:

I - a propriedade;

II - a superfície;

III - as servidões;

IV - o usufruto;

V - o uso;

VI - a habitação;

VII - o direito do promitente comprador do imóvel;

VIII - o penhor;

88 BRASIL. Código Civil. 2002.

49

IX - a hipoteca;

X - a anticrese.

XI - a concessão de uso especial para fins de moradia;

XII - a concessão de direito real de uso.89

Se a posse não figura entre os direitos reais elencados, não pode ser assim

considerada.

A posse, contudo, pode se originar do direito real de

propriedade, essa posse é também chamada de jus possidendi. É a posse exercida

pelo proprietário, mas se este não exercê-la, pode perder a propriedade para

outrem, que a exerça, independentemente de título de direito.

Origina-se a posse também por um direito obrigacional, e

como exemplo, pode-se citar a locação, onde o locatário exerce a posse baseada

em um contrato entre as partes.

Note-se que na posse, dos dois casos acima descritos, é

exercida com fundamento em direitos. No caso da propriedade a posse é baseada

em direito real e no caso da locação a posse decorre de um direito obrigacional.

O mais importante a destacar, entretanto, é que a posse

pode existir sem se originar em um direito, seja qual for. A posse pode existir pelo

simples situação fática. Exercer os poderes inerentes à propriedade faz com que a

posse exista.

Excelente e imprescindível para este trabalho a definição de

posse feita por Marcel Ferdinad Planiol, explicando o fato chamado posse: “A posse,

como a vida, é um fato, sendo tão-somente jurídico o meio utilizado pela lei para

proteger ou destruir este fato”90

Venoza dá uma explicação um pouco diferente, mas admite ser a posse um fato, ele

explica que: [...] a doutrina tradicional enuncia ser a posse relação de fato entre a pessoa e a coisa. A nós parece mais acertado afirmar que a posse trata de estado de aparência juridicamente relevante, ou seja, estado de fato protegido pelo direito. Se o direito protege a posse como tal, desaparece a razão prática, que tanto incomoda os doutrinadores, em qualificar a posse como simples fato ou como direito.

89 BRASIL. Código Civil. 2002 90 MARCEL PLANIOL Apud WALD, Arnoldo. Direito das Coisas. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. P. 49.

50

A explicação de Venoza é clara e corrobora com o

entendimento deste trabalho.

É imprescindível para a posse a ocorrência do fato, que é a

conduta de dono. A partir do momento em que este comportamento cessa, a posse

desaparece.

Não é possível, pois, considerar a posse mais do que um

fato, claro que não um fato qualquer, mas um fato protegido pelo ordenamento

jurídico.

51

CAPÍTULO 3

ÉTICA NA POSSE

3.1 ÉTICA NA POSSE

Como vimos no primeiro capítulo, todas as ações

buscam um fim. Aristóteles explica que a ética é a prática reiterada de ações que

buscam o fim último, que é a felicidade, não só individual, mas coletiva. O homem

vive em sociedade e tudo o que faz reflete na sociedade, por isso o homem virtuoso

pratica o que é correto, busca a justiça.

Aristóteles, com sua genialidade, formulou pensamentos

que são válidos até a atualidade. Evoluímos tecnologicamente, mas as misérias

sociais, resultados de comportamentos aéticos, continuam os mesmos. Por este

motivo os ensinamentos do Estagirita continuam e continuarão atuais.

O ser humano é um animal social por natureza, que sente a

necessidade de se associar aos seus semelhantes. Agindo desta maneira, o homem

consegue superar obstáculos que seriam impossíveis para uma só pessoa.

O homem é essencialmente sociável: por si só não pode satisfazer suas necessidades nem realizar suas aspirações; somente pode obter isto em companhia dos outros. Com efeito, é a própria natureza humana que induz o indivíduo a associar-se com outros indivíduos e a organizar-se em comunidade, em Estado.91

Como já expusemos, para que a vida em sociedade seja

harmoniosa é imprescindível o comportamento ético, sem o qual esta é praticamente

insuportável. Este comportamento ético é pautado em princípios que regem nossas

91 MONDIN, Basttista. Introdução à Filosofia: Problemas, Sistemas, Autores, Obras. 15ª ed. Trad. J. Renard e Luiz J. Gaio. Rev. Danilo Morales, Luiz A. Miranda e José Sobral. São Paulo: Paulus, 2004. p. 117.

52

escolhas e nossas ações e, por conseguinte, as leis que criamos para regular

nossas relações sociais.

Assim, cada homem abre mão de um pouco de sua

liberdade para que um ente maior, chamado Estado, possa dizer o direito nas lides

que normalmente acontecem em sociedade.

Destarte, a ética é a conduta de cada um e também

obediência às leis, sendo que estas têm uma base ética e se originam do poder que

cada um cede ao legislador.

Para Aristóteles a ética é a prática reiterada de ações.

Desse modo, a simples filosofia, sem a aplicação no mundo real, não tem valor para

o mestre. Assim, quando se encontra o agente em uma situação em que deve

escolher qual ação empreender, esta deverá ser o caminho ético, e esta prática

reiterada o levará ao fim último que é a felicidade.

Procura-se, pois, neste capítulo, investigar qual a

relevância da ética na posse. Qual a necessidade da ética para que o instituto

jurídico chamado posse exista.

Assim temos que investigar em que ponto o fato de se

exercer um ou mais poderes da propriedade se transforma no instituto chamado

posse. Também interessa saber quando este instituto se encontra com a ética, ou

seja, de que modo a posse interfere no mundo jurídico, entrando no campo de

atuação da lei, que como já explicamos, tem origem na ética.

3.1.1 Posse e Ética A posse, como disposto em lei, é o exercício de um ou

mais poderes inerentes à propriedade. Ela nasce, toda vez que este fato ocorre,

salvo nos casos em que é considerada detenção. Nesses casos, porém a lei deverá

dizer que não se trata de posse.

Estamos falando, então, de um direito ou de um fato?

Essa pergunta, respondida no capítulo anterior nos levou a uma resposta que

obviamente, como tudo na posse, é assunto de muita controvérsia.

A natureza jurídica da posse, é assunto muito controverso,

encontra interpretações diversas, uns dizem tratar-se de direito, outros de fato.

Alguns dizem ser a posse um fato protegido pelo ordenamento jurídico, e como

53

demonstramos, esta é conclusão que nos parece mais acertada. Venosa tem a

mesma opinião: Como a posse é considerada um poder de fato juridicamente protegido sobre a coisa, distingue-se do caráter da propriedade, que é direito, somente se adquirindo por justo título e de acordo com as formas instituídas no ordenamento.92

A definição da palavra fato, extraída do dicionário jurídico

de Deocleciano Torrieri Guimarães93 é a seguinte: “evento, acontecimento; o que

resulta de uma ação. Acontecimento natural, coisa consumada, que depende ou não

da vontade humana. Juridicamente opõe-se a direito.”

Logo, o inicio da posse é fato e não há como pensar de

modo inverso, pois a posse não pode existir sem o fato, que é o exercício de um ou

mais poderes da propriedade. Mesmo que a posse seja proveniente da saisine, é

necessário que o possuidor anterior tenha exercido os poderes da propriedade sobre

a coisa. É de se supor Também que o herdeiro continuará a posse, tendo os

cuidados para com a coisa como o dono o faria.

Como dissemos, é difícil não pensar na posse como um

fato, primeiro porque sem o exercício fático, não existe posse. Se algum possuidor

pára de exercer alguns dos poderes inerentes à propriedade, perde a posse. Assim,

se a posse acaba, extingue-se também a sua proteção jurídica.

A jurisprudência abaixo, ilustra claramente essa

característica da posse. “AÇÃO DE USUCAPIÃO DE COISA MÓVEL - AUSÊNCIA DE POSSE - IMPOSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO DA COISA - AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTO DE CONSTITUIÇÃO VÁLIDA E REGULAR DO PROCESSO - EXTINÇÃO - ART. 267, IV DO CPC. São pressupostos de usucapião de coisa móvel a posse mansa e pacífica, o transcurso do tempo e boa-fé. Evidenciada a inexistência de posse, impossível a aquisição do domínio da coisa pela via do usucapião. Ausente o pressuposto óbvio para o exercício da ação, julga-se extinto o processo sem julgamento do mérito, nos termos do Art. 267, IV do CPC”.94

92 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2004 P. 34. 93 TORRIERI, Deocleciano Guimarães. Dicionário Técnico Jurídico. 9 ed. São Paulo: Rideel, 2007. P. 321. 94 Apelação Cível. 2ª Turma Cível – APC 28.104/92 – Rel. Des. NATANAEL CAETANO – DJU 28.02.1996.

54

Depois que o fato chamado posse adquire relevância

jurídica, ganha a proteção do Estado, que como explicamos, é a vontade da

coletividade expressa por lei. Esta vontade tem origem no direito e o direito tem

origem ética.

Essa proteção tem por objetivo a paz social, e também para

que se evite a violência. Existe também a possibilidade de as aparências terem

fundamento em um título de direito. Carlos Roberto Gonçalves95 afirma que “ a

posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, bem como porque

a situação de fato aparenta ser uma situação de direito. É assim, uma situação de

fato protegida pelo legislador.”

A posse pode até decorrer de um direito, como explicamos.

Nos casos de locação, por exemplo, é oriunda do direito das obrigações. Também

pode decorrer da propriedade, caso esse, em que a posse decorre de um título de

direito real. Mesmo assim a posse pode ser tomada, caso em que o proprietário não

poderá ficar inerte, sob pena de perder o título de direito. Carlos Roberto Gonçalves

explica: Se alguém, assim, instala-se em um imóvel e nele se mantém, mansa e pacificamente, por mais de ano e dia, cria uma situação possessória, que lhe proporciona direito à proteção. Tal direito é chamado de Jus possessionis ou posse formal, derivado de uma posse autônoma, independente de qualquer título. É tão-somente o direito fundado na posse (possideo quod possideo) que é protegido contra terceiros e até mesmo o proprietário. O possuidor só perderá o imóvel para este futuramente, nas vias ordinárias. Enquanto isso, aquela situação será mantida. E será sempre mantida contra terceiros que não possuam nenhum título nem melhor posse. 96

Um direito, por outro lado, não pode ser tomado tão

facilmente. No direito real sobre propriedade imóvel, por exemplo, só pode ser

transferida a titularidade a outrem com o devido registro em cartório de registro de

imóveis. No caso da usucapião, o decurso de prazo de tempo tem que ser cumprido

além do devido processo legal para que seja declarada a aquisição da propriedade.

O direito real sobre bens imóveis é oponível erga omnes, podendo o legítimo

proprietário reivindicar de quem quer que seja, quando for esbulhado ou turbado.

95 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P. 27. 96GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume V: direito das Coisas. São Paulo: saraiva, 2008. P.27.

55

Já a posse sucumbe ao direito de propriedade não sendo

possível manter a posse contra o legítimo proprietário, desde que este não fique

inerte no lapso temporal exigido para a usucapião.

O interessante a notar é que sendo a posse iniciada por um

fato, esta é fruto de uma ação. Note-se que o fato que traz vida a posse não é um

fato da natureza e sim humano, ou seja, parte da vontade do agente.

Sabendo que a posse inicia-se na ação humana que

decorre de um ato volitivo, chegamos às questões levantadas no primeiro capítulo.

A ética é a prática reiterada de boas ações, é o que

Aristóteles define como a moral do agir. Não há como pensar em esbulho, furto,

invasão, sem pensar na livre escolha do agente. Esse comportamento vai contra

princípios como bonum faciendum (o bem deve ser feito), neminem laedere (não

lesar a outrem), suun cuique tribuere (dar a cada um o que é seu).

Na produção de efeitos em convívio social, justiça e virtude são idênticas, uma vez que o conteúdo de toda a legislação é o agir num sentido que corresponde à conduta que representa o meio-termo (não matar, não furtar, não ferir, não lesar, não injuriar...São aplicações de um único principio que é o neminem laedere). Não obstante serem materialmente coincidentes, uma distinção em essência deve ser feita: diz-se que um homem é justo ao agir na legalidade; diz-se que um é virtuoso quando, por disposição de caráter, orienta-se segundo esses mesmos vetores, mesmo sem a necessária presença da lei ou conhecimento da mesma.97

Alguém que invada, furte ou esbulhe o bem de outrem, fez

uma escolha. Esta escolha é a resposta para qual ação empreender. Pode-se,

então, trilhar o caminho do justo meio, que é o caminho da ética aristotélica ou um

caminho aético, vicioso. Nas ações viciosas, mais será dado a que merece menos e

a injustiça se materializará.

3.2 Ética e aquisição da posse

Como vimos, o comportamento ético é aquele que procura o

justo meio, não é aquele que permite vantagem pessoal em detrimento do direito de

outrem. 97 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 150

56

Ações éticas são voltadas para o coletivo e o norte da ética

e da justiça é dar a cada um, o que lhe é devido (suun cuique tribuere). Agindo

assim chega-se a felicidade não só pessoal, mas coletiva.

Pensando por este prisma iremos agora analisar alguns

tipos de aquisição da posse, para exemplificar alguns casos em que há a presença

da ética e em outros que a ética é inexistente.

A definição legal é: “adquire-se a posse desde o momento

em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes

inerentes à propriedade.”98 A lei, como pode-se ver, define a aquisição da posse de

forma genérica. Essa definição engloba todos os tipos de posse possíveis: seja

direta ou indireta, justa ou injusta, de boa ou de má-fé.

Analisaremos, pois, algumas espécies de aquisição da

posse para que possamos observar a necessidade do quesito ético.

3.2.1 Compra Pode-se configurar o previsto no art. 1204, acima citado,

pela compra. A compra é resultado de um negócio jurídico em que um preço é pago

para que a posse seja transferida para outrem. Torrieri99 assim define: “Forma de

aquisição da coisa, corpórea ou incorpórea, pagando-se o preço ajustado, em

dinheiro ou valor ajustado, em dinheiro ou equivalente, à vista ou a prazo; aquilo que

se compra.” Este negócio jurídico, por ser um acordo entre as partes, é uma maneira

ética de originar a posse.

A ação que possibilita a posse é o pagamento de preço

justo e assim a posse se origina de forma ética. Acontecem, porém, negócios em

que um preço inferior ao justo é pago, sendo, neste caso a posse obtida de forma

aética.

3.2.1.1 Esbulho

98 BRASIL. Código Civil. 2002. 99 TORRIERI, Deocleciano Guimarães. Dicionário Técnico Jurídico. 9 ed. São Paulo: Rideel, 2007. P.265.

57

O esbulho ocorre quando alguém é expulso da sua posse,

violenta ou clandestinamente. A perda da posse acontece contra a vontade do

possuidor primitivo. Torrieri define como: “Ato irregular, injusto, pelo qual se priva

alguém da posse de alguma coisa, contra a sua vontade;”

A própria definição já denota a falta de ética por parte de

quem pratica a ação. O esbulho é a uma forma de aquisição da posse que pode

levar a usucapião, assim como todas as formas de posse desde que cumpridas as

exigências legais.

3.2.1.1.1 Furto O furto é uma forma de aquisição da posse, em que

alguém subtrai para si, bem alheio. É com certeza antiética e, apesar disso, é uma

forma de posse que também pode trazer a propriedade da coisa pelo decurso tempo

legal. Conforme se pode ver nos julgados abaixo:

USUCAPIÃO DE COISA MÓVEL – Automóvel furtado. Reconhece-se usucapião extraordinário pela posse superior a cinco anos, mesmo que o primeiro adquirente conhecesse o vitium furti. "O ladrão pode usucapir; o terceiro usucape, de boa ou má-fé, a coisa furtada" (Pontes de Miranda). Sentença confirmada.100

CIVIL. USUCAPIÃO DE BEM MÓVEL. FURTO. IRRELEVÂNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. Não impede o reconhecimento do usucapião o fato de o bem ter sido furtado, desde que preenchidos os requisitos dos artigos 618 ou 619 do Código Civil de 1916, correspondentes aos artigos 1.260 e 1.261 do novo Código Civil. 101

O acórdão abaixo trata de um caso em que uma vítima de

furto, adquiriu o domínio de um automóvel montado com peças do automóvel de que

lhe fora furtado. Neste caso a usucapião serviu para fins éticos.

USUCAPIÃO. BEM MÓVEL. AUTOMÓVEL FURTADO E APREENDIDO COM ADULTERAÇÕES. DOMÍNIO SOBRE A CARCAÇA-LATARIA. POSSE SOBRE O RESTANTE.

100 Apelação Cível.TARS – AC 190.012.799 – 4ª C – Rel. Ernani Graeff – J. 17.05.1990) (RJ 160/90). 101 Apelação Cível. Processo 2002.020040-4. Relator Luiz Carlos Freyesleben. Data 2003-05-22

58

ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL - EXTINÇÃO DO ENCARGO DE DEPOSITÁRIO FIEL. COMPROVADA A POSSE - AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO (ART. 619, CC/1916).RECURSO PROVIDO.

1) Apreendido veículo em inquérito policial e constatado que foi montado a partir de peças do bem furtado da vítima, e, registrado no Departamento de Trânsito com outro chassi e especificações, após a extinção do encargo de depositário fiel, possui a vítima interesse e legitimidade para requerer o usucapião uma vez que passou a existir outro veículo, a par de ser proprietário de parte das peças.

2) Enquanto perdurar o encargo de depositário fiel não há falar-se em atos de posse, somente detenção. Arquivado o inquérito policial, extingue-se o depósito, cuja guarda e conservação do bem, configura atos possessórios suscetíveis para a aquisição originária da propriedade com o decurso do tempo, a rigor do artigo 619, do Código Civil/1916.102

Como pode-se perceber, pela posse oriunda de furto é

possível usucapir a coisa móvel. Apesar de ser o furto uma ação totalmente

contrária à ética, a posse se configura, e atendidos os requisitos legais gera direito

como qualquer outra posse.

Essa particularidade das leis que protegem a posse,

inclusive posses oriundas de atos ilícitos, choca-se com o comportamento esperado

pelas leis idealizadas por Aristóteles, uma vez que para o mestre, as leis nunca

podem ferir um direito.

Para Aristóteles o legislador tem a função de fazer leis que,

acima de tudo, busquem o bem comum. Assim, aquele que segue essas leis, nunca

trará qualquer prejuízo a outrem, pois elas são atos de justiça.

Mas isso não é tudo, para a pessoa virtuosa, essa atitude

de obediência às leis pode não ser suficiente para que se obtenha a justiça. Quando

isto acontece o caminho é a equidade que é ser mais justo do que a lei prescreve. A

lei pode permitir algo, que eticamente pode não ser correto, e é aí que o homem

equitativo dá a outrem o que é devido, muito embora a lei não o obrigue.

102 Apelação Cível. Relator(a): Miguel Pessoa. Julgamento: 07/04/2004. Órgão Julgador: Sétima Câmara Cível (extinto TA). Publicação: 23/04/2004 DJ: 6606.

59

A ética se expressa na origem das leis e pelas atitudes que

se espera de cada um. Ou seja, são regras de comportamento e comportamentos

regrados pelo que se espera de melhor do homem.

3.2.1.1.1.1 Saisine A saisine é um modo derivado de adquirir a posse, a posse é

instantaneamente e automaticamente transmitida aos herdeiros. Maria Helena Diniz

define: O princípio da saisine, introduzido no direito português pelo Alvará de 1754, donde passou para o direito das sucessões pátrio, determina que a transmissão do domínio e da posse da herança ao herdeiro se dê no momento a morte do de cujus independentemente de quaisquer formalidades. o herdeiro ou o legatário a adquire, por concessão legal, com os caracteres da posse anterior, tendo-se em vista o princípio geral sobre o caráter da posse, firmado no art. 492 do Código Civil: “Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida". 103

Neste caso, a posse exercida pelo herdeiro não tem seus

vícios sanados. Se foi adquirida por meios éticos, assim permanecerá. Se foi

originada de forma viciosa, o vício persistirá. O acórdão abaixo ilustra bem esta

forma de aquisição da posse.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. REQUISITOS DO ART. 927 DO CPC IMPLEMENTADOS. PROCEDÊNCIA DA POSSESSÓRIA CONFIRMADA. BENFEITORIAS. POSSE DE MÁ-FÉ A ENSEJAR O RESSARCIMENTO APENAS DAS BENFEITORIAS NECESSÁRIAS, DEVIDAMENTE COMPROVADAS, EM OBSERVÂNCIA À VEDAÇÃO DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. DIREITO DE RETENÇÃO AFASTADO. Conforme disposto no art. 1.784 do CCB, com o falecimento do proprietário do imóvel, aos herdeiros se transmite a propriedade, com as características que vinha sendo exercida - princípio da saisine. O poder de fato do de cujus sobre o bem se extingue com o falecimento, mas a posse subsiste aos herdeiros, por força do direito. Falecimento da ré no curso do processo. Sucessão processual. Os herdeiros assumem a causa no estado em que se encontra. Direito real de habitação da viúva afastado, porquanto casados no regime de separação total de bens, sob o regramento do CCB/1916. De qualquer forma, por ser personalíssimo, extinguiu-se, com o óbito da requerida. Pratica esbulho quem ocupa com a mãe, imóvel que não lhe pertence e, após a morte da genitora, insiste em permanecer no local. Posse injusta, que não encontra amparo no ordenamento jurídico vigente. A prova da posse anterior do espólio, do esbulho e da perda da posse,

103 DINIZ, Maria Helena. Direito das Sucessões. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1983. P. 23.

60

pela não restituição do imóvel, conforme art. 927 do CPC, conduz à procedência da possessória. BENFEITORIAS. INDENIZAÇÃO. POSSE DE MÁ-FÉ. O vício subjetivo da má-fé decorre da ciência do possuidor no tocante à ilegitimidade de sua posse. Ciência, pelos demandados, da injustiça de sua posse exercida, sem amparo fático ou jurídico, em detrimento do direito da sucessão autora. Posse de má-fé caracterizada. Conforme preconiza o art. 1.220 do CCB (art. 517 do CC/1916), ao possuidor de má-fé, somente serão indenizadas as benfeitorias necessárias, devidamente comprovadas. Além disso, não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas - disposição expressa da lei. Sentença reformada, tão somente para afastar o direito de retenção, determinando a reintegração imediata do espólio autor na posse do imóvel. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DOS RÉUS E DERAM PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO DO AUTOR. UNÂNIME.104

Pelos exemplos, acima citados, vê-se que existem posses de

origem éticas e aéticas. Essas posses podem ser derivadas de lei e posses que são

fundadas em direitos. Existe também a posse que nasce do simples exercício dos

poderes inerentes à propriedade.

3.3 Posse: situação fática Mostrou-se, que as circunstâncias em que a posse pode ser

exercida são inúmeras. Pergunta-se, então, qual o ponto em comum a todos os tipos

de posse? Qual o fator que é indispensável para a configuração da posse?

Pelo que se demonstrou neste trabalho, a única

característica que necessariamente tem que haver em todos os casos de posse é a

situação fática. Ficou demonstrado que o instituto da posse, para se configurar, não

leva em conta quesitos éticos, ou a vontade recíproca das partes.

Então a ética é um ingrediente dispensável na origem da

posse, pois ainda que aética a posse existirá. A posse só vai interferir no campo

ético depois que se configurar. Isto acontece no exato momento em que a situação

fática recebe proteção. E como dissemos anteriormente, a lei que proteger a posse

aética será inferior à conduta do homem que é virtuoso e que em nenhuma hipótese

causaria prejuízo a outrem.

104 Apelação Cível Nº 70026597039, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson José Gonzaga, Julgado em 02/09/2010

61

Assim, se a ética está presente nas leis que protegem a

posse e esta é um instituto jurídico protegido pelas leis, este é o momento em que

ambas se encontram. O fato de se exercer os poderes da propriedade é, pois, o

inicio da posse. Sim porque a posse se inicia pelo fato e não o inverso, logo, o seu

inicio não tem necessariamente ética.

A posse é um fato, é algo que ocorre na sociedade e que

tem relevância jurídica, ou seja, depois que ocorre é que sua existência alcança a

esfera do que é ditado por princípios éticos. A relevância jurídica ocorre depois que

passa a existir. Não é por meio de lei que se chega a posse, Salvo no caso da

saisine e, mesmo neste caso, a posse é adquirida de forma derivada, ou seja, com

todos os vícios pré-existentes. Chega-se a posse quando o fato acontece, fato esse

relativo ao exercício dos poderes da propriedade.

Como vimos, a posse pode até ter uma origem ética, mas

este não é um ingrediente essencial à sua formação. No quadro abaixo estão

listados alguns exemplo de origem da posse, sua condição ética ou aética e quando

ela se configura.

Modo de aquisição Ética Ocorre a Posse

Esbulho Não Sim

Compra com preço justo Sim Sim

Compra com preço

injusto

Não Sim

Receptação Não Sim

Roubo Não Sim

Furto Não Sim

Percebe-se que o instituto da posse pode nascer

independentemente da sua origem, ética ou aética. A ética na posse depende muito

mais do agente do que do instituto em si. A posse não dispõe de mecanismos para

filtrar atos aéticos que originam a sua existência.

Pode-se facilmente visualizar tal fato quando imaginamos

um caso em que “A” ao comprar a coisa de “B”, adquire a posse. “A” está agindo de

acordo com a ética, mas a posse não necessita ser comprada para existir. “A”

62

poderia ter simplesmente esbulhado a posse de “B”, e teria do mesmo modo a

posse.

Para Aristóteles o primeiro ato é ético, houve um negócio

jurídico e a vontades de ambas as partes foram respeitadas. Já no caso de esbulho,

“A” não respeitou a vontade do possuidor primitivo, ele tomou a posse à força e

adquiriu igualmente a senhoria sobre a coisa. A posse se configurou em ambos os

casos.

Este é um ponto importante a destacar sobre a posse, que

para existir, não necessita estar direcionada ao bem coletivo, pois se assim fosse a

sua existência seria impossível no caso de esbulho e furto. Sim, porque a posse

possibilita que coisa oriunda de furto possa ser usucapida se as exigências legais

forem atendidas. E somente para ilustrar esta possibilidade cita-se os artigos abaixo:

Art. 1260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.

Art. 1261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.105

Abaixo, estão transcritas as ementas de dois acórdãos do

tribunal de justiça do Rio grande Sul, o primeiro, trata de ação usucapião com

fundamento no artigo acima citado. O segundo trata de ação de usucapião em que

os requisitos de justo título e boa-fé são dispensáveis.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. BEM MÓVEL (CAMINHÃO COM NUMERAÇÃO DO CHASSI ADULTERADA). PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ARTS. 618 DO CC DE 1916 (ATUAL 1260 DO CC). JUSTO TÍTULO, BOA-FÉ, CARÁTER PACÍFICO. PRESENÇA DO ÂNIMO DE DONO. ALEGAÇÕES CONSTANTES NO APELO RECHAÇADAS. SENTENÇA MANTIDA. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70031299837, Décima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em 26/08/2010) EMENTA: Apelação cível. Ação de usucapião. Bem móvel. Posse do veículo há mais de cinco anos. Propriedade reconhecida. Animus domini caracterizado. Desnecessidade de justo título e boa-fé. Apelo improvido.106

105 BRASIL. Código Civil. 2002. 106 Apelação Cível Nº 70035609379, Décima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Breno Pereira da Costa Vasconcellos, Julgado em 06/05/2010

63

Percebe-se de modo claro que só entra na esfera jurídica, a

posse, depois que o exercício de fato dos poderes inerentes à propriedade é

reconhecido como tal, e depois que posse passa a existir recebe a proteção da lei.

Aí é que está o busílis, a lei é ética, temos que levar em

conta que cumprir a lei é agir eticamente, como bem disse o mestre Aristóteles, o

problema está na configuração da posse, pois esta prescinde de quesitos éticos

para existir.

Quanto à lei, esta visa a função social, tem objetivo de dar

uso econômico à coisa, fazê-la servir a que tem senhoria sobre ela. Não há que se

questionar quanto à eticidade deste objetivo. Mas esse tratamento da lei com

relação à posse não interfere no seu nascimento, este só precisa do fato.

Assim, quando dizemos que a posse é um fato que tem

relevância jurídica, queremos dizer que a sua origem não precisa estar no âmbito do

direito, por ser ela, fato. Não precisa estar pautada na equidade, no justo meio. Só

depois que passa a existir é que ela será regulada pelo direito. Listamos e

exemplificamos no primeiro capítulo todo o comportamento ético, não só individual,

mas coletivo.

A posse pode ser conquistada por meios éticos ou por meios

que atentam contra a ética, mas para configurá-la não importa o caminho escolhido,

ela passa a existir quando é possível exercer em nome próprio qualquer dos

poderes inerentes a propriedade.

Assim, conforme exposto anteriormente, não importa se a

posse foi adquirida em um negócio jurídico, e sua alienação efetuada por vontade de

ambas as partes. Pouco importa também se foi esbulhada, ou mesmo roubada.

Voltamos, então, à questão da natureza jurídica da posse,

dita por alguns como um direito. Ora, se analisado pela ótica de Aristóteles é de todo

impossível conceber a posse como um direito, pois este tem que ser

necessariamente ético e seria um contra-senso pensar a posse como tal.

O direito de usucapir a coisa roubada é um exemplo claro de

que a sua existência pode até dar origem a direitos, mas o instituto em si não é mais

do que uma situação fática a que o ordenamento jurídico dá uma proteção jurídica.

64

Como explicado anteriormente, a conduta ética não é

apenas respeitar as leis, mas se estas não forem de todo justas, devido às

circunstâncias e particularidades de cada caso, deve-se seguir o norte da equidade.

Nesse sentido, aplicar a equidade (epieíkeia) significa agir de modo a complementar o caso que se apresenta aqui e agora (hit et nunc) de modo que, assim o fazendo, está-se a agir como faria o próprio legislador se presente estivesse. O julgador, aqui, coloca-se na posição do legislador, que é quem opera com a generalidade da lei, fazendo-se um legislador para o caso individual, muitas vezes marginal a qualquer ditame legal; é na ausência da lei que a equidade guarda sua maior, sobretudo complementando, particularizando e respondendo pelo que quedou imprevisto.107

Desse modo, se percebe que os fundamentos do instituto

chamado posse, conflitam com os ensinamentos éticos de Aristóteles. Primeiro,

porque não há critérios exigidos para sua configuração. Contrariamente, os

ensinamentos do estagirita, prescrevem as ações que visam o justo meio.

A partir do momento em que um ato ilícito pode ser um

meio de aquisição de uma coisa, a ética é deixada para trás.

Por isso questiona-se neste trabalho a posse como instituto

ético. É sabido que em certas circunstâncias a posse pode ser ética, como no caso

da compra, ou ainda da ocupação de imóvel sem proprietário. Mas para que alguém

ou um instituto seja considerado ético, não se pode esperar pelas circunstâncias

ideais.

A ética deve ser uma condição absoluta e não esporádica

ou circunstancial. Como dizer que alguém tem uma personalidade ética, quando

comete atos ilícitos? Como dizer que alguém é meio-honesto? Não há como dizer

que a ética depende de circunstâncias, pois ela deve existir sempre.

Para que alguém ou algo seja considerado ético, a ética

deve ser uma constante. Do mesmo modo não se pode considerar fiel, a pessoa que

trai, o fato de se trair uma vez, macula de forma irreparável a condição de fidelidade.

Assim, posse e ética são diferentes no sentido de que a

primeira admite qualquer comportamento ao passo que a segunda aceita somente o

justo meio. Desse modo, a posse pode ser considerada aética no sentido de que, na

sua origem, uma injustiça pode acontecer e mesmo assim a posse se configurará. 107 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 134

65

“Salienta-se, entretanto, que a causa da posse nem sempre é a propriedade. Outros direitos também a embasam, como a locação, o usufruto, a enfiteuse, a anticrese, o comodato, a superfície, etc. Até aqui todas as causas lícitas, admitidas na lei, o que permite dizer posse com justo título. Todavia, a causa eficiente do senhorio de fato pode até ser ilícita, e a posse estar configurada. Há a causa, mas não justa. O ladrão, por exemplo, em relação a coisa roubada ou furtada, ou o esbulhador, em relação ao bem esbulhado, são possuidores e ninguém contesta essa afirmação. Originar-se a posse de uma causa justa ou injusta, por violenta, clandestina ou precária, não desfigura a posse. Isto admite afirmar que a posse qualifica como aética, no sentido de que, para configurá-la, e não para classificá-la, não interessa a causa que a originou, se um ato admitido em lei ou uma conduta defesa legalmente”108

A posse, então, mesmo se iniciando contra a ética, terá

direito à proteção do estado, tal qual a posse oriunda de título de direito, desde que

os requisitos legais sejam preenchidos.

Assim, percebe-se que a posse conflita-se com a ética, pois

não é sempre que a sua existência é compatível com a equidade, com as ações

belas e justas, enfim, com o justo meio.

Os efeitos que são gerados pela posse podem beneficiar

objetivos aéticos que usam da generalidade da lei para se realizar.

Não é incomum a conduta aética de pessoas que visam

vantagens pessoais em detrimento dos direitos de outrem, por isso a proteção

possessória é, muitas vezes, aética, no sentido de que mais será dado a quem

merece menos.

Por isso Aristóteles diz que “a necessidade da aplicação da equidade decorre do fato de que as leis prescrevem conteúdos de modo genérico, indistintamente, dirigindo-se a todos, sem diferenciar, portanto possíveis nuances e variações concretas fáticas, fenomênicas, de modo que surgem casos para os quais, se aplicada a lei (nómos) em sua generalidade (kathólou), estar-se á a causar uma injustiça por meio do próprio justo legal. Aqui a lei não é simplesmente segurança, razão sem paixão, governo da coisa pública... a lei é injustiça.109

108 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Posse e Propriedade. 3ed, Porto Alegre: livraria do advogado, 2003. P. 14 109 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 147

66

É claro e evidente que o instituto da posse é um desses

dispositivos legais em que o legislador falhou ao formular a lei. A generalidade da

posse é tão ampla que foge ao justo meio. A ética idealizada pelo mestre Aristóteles

não é compatível com o que se permite pelo instituto da posse.

67

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia teve como objeto o estudo da ética e da

posse. No decorrer do trabalho estudou-se a ética sob a visão aristotélica e também

a posse, relacionando-se esta com a primeira.

No primeiro capítulo estudou-se a ética de Aristóteles e de que

maneira chega-se a ela. Explicou-se que a ética é o caminho para o bem último que

é o sumo bem, sendo este bem último, a felicidade.

No segundo capítulo estudou-se a posse, as diferentes teorias

que culminaram no instituto atual. Procurou-se relacionar a posse com as condutas

éticas estudas no primeiro capitulo

No terceiro capítulo estudou-se a posse e a existência de

quesitos morais e de justiça para a sua existência. Os estudos demonstraram que

inexiste na posse qualquer necessidade ética uma vez que se funda em fato e não

em direito.

A produção este trabalho levantou algumas questões para

um estudo futuro mais aprofundado, como por exemplo, a questão da natureza

jurídica da posse. Defendemos neste trabalho, ser a posse um fato e não um direito

como defendem alguns doutrinadores. Um trabalho futuro exclusivamente sobre

essa questão é um projeto pessoal a ser realizado.

Estas são as considerações que se julgam oportunas a

apresentar. O que se verifica é que levando-se em conta as definições de ética e

posse, apesar de toda a controvérsia existente, parece impossível definir a posse

como ética, uma vez que se funda em si mesmo, prescindindo a sua existência, de

quesitos morais ou de justiça. Conclui-se, desse modo, que a posse é aética.

Assim, resta confirmada a hipótese formulada no início deste trabalho.

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