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Miguel Rettenmaier Tania M. K. Rösing (Orgs.) Alckmar Luiz dos Santos Ana Maria Nicolaci-da-Costa Ana Paula Jobim Antônio Carlos Xavier Eloy Martos Núñez Evandra Grigoletto Flavia Di Luccio Gustavo Melo José Luís Jobim Maria Lucia Bandeira Vargas Miguel Rettenmaier Regina Zilberman Roger Chartier Tania M. K. Rösing Universidade de Passo Fundo EDITORA

Universidade EDITORA de Passo Fundojornadasliterarias.upf.br/upload/files/498c977534e85ba3e1fb49cbd... · UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO ® José Carlos Carles de Souza Reitor Neusa

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  • Miguel RettenmaierTania M. K. Rsing

    (Orgs.)

    Alckmar Luiz dos SantosAna Maria Nicolaci-da-CostaAna Paula JobimAntnio Carlos XavierEloy Martos NezEvandra GrigolettoFlavia Di Luccio

    Gustavo MeloJos Lus JobimMaria Lucia Bandeira VargasMiguel RettenmaierRegina ZilbermanRoger ChartierTania M. K. Rsing

    Universidadede Passo Fundo

    EDITORA

  • UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

    Jos Carlos Carles de SouzaReitor

    Neusa Maria Henriques RochaVice-Reitora de Graduao

    Leonardo Jos Gil Barcellos Vice-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao

    Bernadete Maria DalmolinVice-Reitora de Extenso e Assuntos Comunitrios

    Agenor Dias de Meira JuniorVice-Reitor Administrativo

    UPF EditoraCleci Teresinha Werner da RosaEditora

    CONSELHO EDITORIALAlvaro Della Bona Carme Regina Schons Denize Grzybovski Elci Lotar Dickel Giovani Corralo Joo Carlos Tedesco Jurema Schons Leonardo Jos Gil Barcellos Luciane Maria Colla Paulo Roberto Reichert Rosimar Serena Siqueira Esquinsani Telisa Furlanetto Graeff

    Corpo Funcional:

    Cinara Sabadin DagnezeRevisora-chefe

    Nathalia Sabino RibasRevisora de textos

    Vanessa BeckerRevisora de textos

    Sirlete Regina da Silva Design Grfico

    Rubia Bedin Rizzi Diagramadora

    Carlos Gabriel Scheleder Auxiliar Administrativo

  • 2013

    Questes de leitura no hipertexto

    Universidadede Passo Fundo

    EDITORA

  • Copyright dos autores

    Cinara Sabadin Dagneze Nathalia Sabino Ribas Vanessa BeckerReviso de Textos e Reviso de Emendas

    Sirlete Regina da SilvaProjeto Grfico e Produo da Capa

    Rubia Bedin RizziDiagramao

    Este livro no todo ou em parte, conforme determinao legal, no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizao expressa e por escrito do autor ou da editora.A exatido das informaes e dos conceitos e opinies emitidos, bem como as imagens, tabelas, quadros e figuras, so de exclusiva responsabilidade dos autores.

    UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDOEDITORA UNIVERSITRIACampus I, BR 285 - Km 171 - Bairro So JosFone/Fax: (54) 3316-8373CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - BrasilHome-page: www.upf.br/editoraE-mail: [email protected]

    Associao Bras i le i ra das Editoras Univers i tr ias

    Editora UPF af i l iada

    Esta obra uma republicao, em formato ebook, da 1a edio, a qual era datada de 2007

  • Sumrio

    Novos tempos, novos textos, novas leituras ................ 7

    Palavra e imagem na criao potica digital .............15Alckmar Luiz dos Santos

    Hiperleitura e interatividade na Web 2.0 ....................32Antonio Carlos Xavier

    Hipertexto, cultura miditica e literaturas populares: o auge das sagas fantsticas ..................50

    Eloy Martos Nez

    A busca da identidade pela/na escrita virtual: uma anlise de blogs antipeso ................................64

    Evandra Grigoletto Ana Paula Jobim

    Hipertexto, blogs e leitores escritores .......................92Flavia Di Luccio Ana Maria Nicolaci-da-Costa

    Globalizao, materialidade da www e o mundo do livro ..................................................................... 111

    Jos Lus Jobim

    Fanfictions de Harry Potter: coautoria em escala global atravs da internet ............................128

    Maria Lucia Bandeira Vargas

    Entre o cu, a terra e o Orkut: a comunidade virtual e a literatura do amanh... ............................144

    Miguel Rettenmaier

    A leitura no mundo digital ........................................178Regina Zilberman

  • A escrita na tela: ordem do discurso, ordem dos livros e maneiras de ler ...........................................200

    Roger Chartier

    A tecnologia digital: emergncia de novos comportamentos no sculo XXI ..............................223

    Tania M. K. Rsing Gustavo Melo

    Autores ....................................................................238

  • Apr

    esen

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    Novos tempos, novos textos, novas leituras

    Estou, neste momento, escrevendo a apresentao do livro Questes de leitura no hipertexto. Escrevo num com-putador que se presta a trs funes nesta hora. Enquanto simula uma mquina de escrever com inmeros recursos alm dos que conheci, anos antes, nas antigas Olivettis, meu computador tem minimizadas outras telas: em uma, linkada ao provedor do Terra, estou sabendo as ltimas notcias, sadas na hora (no caso particular deste instan-te, a mais recente manchete CPI: equipamento pode ter causado o acidente, sobre a terrvel queda do airbus da TAM em So Paulo, dias atrs); em outra tela minimizada, h o site de meu e-mail, que aguarda que eu leia mensa-gens que chegam e as responda na velocidade permitida pelos meus limites.

    A essas telas em espera poderiam ser somadas ou-tras, como a de um dicionrio on-line e a da pgina do Goo-gle, para eventuais dvidas enquanto estou produzindo este texto. Eu poderia tambm, para conversar com outros usurios na web, estar linkado pgina de MSN Messen-ger, o que eventualmente atrapalharia a produo de meu texto, dadas as interrupes que eu no poderia controlar. De qualquer forma, o computador poderia ser muitas coi-sas durante a escrita datilogrfica de meu texto, e certa-

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    mente ser, como quando eu tiver, por exemplo, terminado esta verso (que no livro Questes de leitura no hipertexto ser a ltima, mas agora, em minha frente, na tela, est se construindo ou se atualizando) e enviado, por e-mail, ao outro organizador, para que ele d suas contribuies, que julgo, no sero poucas.

    Na realidade, o computador, convergindo mdias e aglutinando diferentes e inmeros gneros textuais, dis-tribudos numa diversidade infinita de ambientes, tem em si, tambm em situao de convergncia, uma possibilida-de quase incalculvel de objetivos de uso. Com ele escreve-mos e lemos das mais variadas formas, conforme os mais variados fins, em situaes distintas, ora em tempo real, ora com menor sincronia; pela tela podemos nos comunicar com muitos, ou com apenas um; podemos receber e enviar mensagens particulares; podemos ler e escrever textos disposio de todos na web. Podemos pesquisar sobre qua-se qualquer coisa, mesmo que essa pesquisa seja sempre menos fidedigna do que as de outrora, nos livros impressos; podemos conhecer pessoas ou darmo-nos a conhecer, mes-mo que esse conhecimento esteja tambm sob um vu de verdades pouco verdadeiras. Podemos fazer clculos com exatido e traduzir para vrias lnguas, mesmo que sem exatido, palavras e expresses de outras vrias lnguas; podemos armazenar dados, copiar coisas e guard-las em nosso computador; podemos tambm copiar/alterar produ-es e dizer que so nossas; podemos fazer recortes, dobra-duras, podemos forjar. Podemos, em games, jogar contra a mquina e contra os outros, sendo capazes, inclusive, de entrar na mquina, na sua realidade virtual ou no espa-o-informao que pode se tornar. Podemos muito mais do que isso do que me lembro agora, deliberadamente, escre-

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    vendo com apenas trs janelas disposio. E, por tudo isso, queiramos ou no, no difcil pensar que estamos vivendo o incio de uma revoluo que nem imaginamos no que poder dar.

    O livro Questes de leitura no hipertexto uma tenta-tiva de refletir sobre esse universo em revoluo fracionan-do a discusso na janela que diz respeito leitura. Das tantas questes que a cibercultura tem provocado, pensa-mos em trazer discusso as novas complexidades surgi-das no ato da leitura quando em uma nova situao, a qual superou e subverteu as antigas definies da realidade do conhecimento impresso. Nesse mundo de paradigmas m-veis e de informaes transitrias, instigados pelas novas conjunturas que envolvem sujeitos leitores mobilizados por estatutos de leituras renovados e renovveis, reunimos pesquisadores para contribuir com seu pensamento, seus estudos, suas concluses e, tambm, suas instigantes d-vidas.

    Alckmar Luiz dos Santos, mesmo sabendo o quanto difcil e complexo pode ser buscar uma retrica em meio digital, arrisca-se a iniciar uma discusso sobre esse pro-cesso de sistematizao, que, embora mire um nova cir-cunstncia, no se inaugura totalmente em termos de dificuldade: De toda maneira, seja se aproximando, seja se afastando [do] barroco, a criao em meio digital carre-ga a mesma impossibilidade de uma descrio completa e exaustiva, isto , de uma retrica que d conta de todas as possibilidades de criao e esgote as tipologias possveis de objetos artsticos.

    Antonio Carlos Xavier, em Hiperleitura e interativi-dade na Web 2.0, observa o fator intersubjetivo envolvido na interao proporcionada entre pelo menos dois sujeitos

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    que agem reciprocamente em resposta fala um do outro no contexto de uma internet cada vez mais participativa. Nesse encaminhamento, Xavier prope dois conceitos fun-damentais para essa nova tendncia da rede (a permutabi-lidade e a potencialidade) e desenvolve consideraes sobre a leitura na rede e a hiperleitura na Web 2.0.

    Eloy Martos Nues, em seu artigo, preocupa-se com o papel da realidade virtual, dos mundos em 3-D na amplia-o do imaginrio da humanidade nestas ltimas dcadas. Para o pesquisador, as sagas fantsticas, que se expan-dem como um chiclete em mltiplos suportes, subvertendo definididamente as noes clssicas de gneros literrios, seriam um bom exemplo de narrativa ps-moderna. Nes-se sentido, para o terico, enquanto o leitor tradicional se centrava em um autor e em uma obra e realizava uma leitura intensiva, o leitor ps-moderno tem que situar-se um pouco na Biblioteca de Babel de Borges, colocando-se sempre diante de um mundo cheio de fragmentos que de-vem ser recompostos dentro de uma unidade.

    Evandra Grigoletto e Ana Paula Jobim, a partir das bases tericas da anlise do discurso, buscam a identidade que se manifesta atravs da escrita virtual nos chamados blogs antipeso, produzidos por adolescentes do sexo fe-minino, em busca do corpo perfeito sob a imposio de um determinado padro de beleza. No mesmo terreno do blog, Flavia Di Luccio e Ana Maria Nicolaci-da-Costa apresen-tam o artigo Hipertexto, blogs e leitores-escritores. Cons-cientes das mudanas histricas da leitura pela alternncia material dos suportes, as autoras centralizam-se no leitor da tela como sujeito a ser estudado, um leitor hiperexten-sivo, que no mais somente um leitor furioso e sedento por textos como o leitor que surgiu no sculo XVIII; um

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    leitor que pode participar da confeco de um texto, um leitor interativo e livre para traar os rumos de sua lei-tura. E decorrncia de tal indocilidade, no que se refere ao blog, para as estudiosas, a escrita particular do sujeito, inicialmente mesmo que confessional, em se tratando de uma espcie de dirio, variou para uma forma comunitria de interao, para a formao de rede de leitores-escritores e, mesmo, de amigos ou de parceiros afetivos.

    Jos Lus Jobim, no artigo Globalizao, materiali-dade da www e o mundo do livro, quer colocar um pon-to de interrogao no clich a internet um exemplo de globalizao e, assim, levar a questo para os limites de um pensamento que se aprofunde em ajuizamentos crti-cos no apenas sobre a globalizao como fenmeno, mas sobre as novas referncias materiais e comerciais em torno do mundo virtual, o que pode levantar pertinentes indaga-es relativas natureza da cultura e das relaes inter-culturais. Para ele, sem uma poltica adequada podem-se condenar as populaes de pases de economia minoritria a ler e ver elementos lingusticos e culturais de outras sociedades, sem a possibilidade de reconhecer na tela ou no livro questes referentes ao seu modo de ser e estar no mundo.

    Maria Lucia Bandeira Vargas, a partir do texto Fan-fictions de Harry Potter: co-autoria em escala global atra-vs da internet, situando em seu mbito de pesquisa um nicho de leitura e produo de textos literrios, as fanfics, questiona se, no que se refere tradicional constatao dos professores de que o jovem l mal e escreve pior, a quei-xa acerca do desinteresse dos estudantes pelas atividades que envolvem essas habilidades , de fato, cem por cento adequada. Assim, no sentido de reduzir uma lacuna que

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    existe entre o que o sistema educativo entende que os alu-nos deveriam estar lendo e aquilo que, na realidade, eles leem, a autora observa o trabalho com as fics, dentre todas as prticas de leitura dos jovens, como o que mais se ajus-ta s exigncias escolares em torno da leitura e da escrita.

    Miguel Rettenmaier, um dos organizadores do livro, em seu artigo, questiona-se sobre um literatura da web feita para ser lida na tela. Tentando buscar a configurao e os atributos de uma literatura prpria do meio digital, adaptada ou em adaptao aos ambientes multimidiais, o pesquisador questionou sujeitos de uma comunidade do Orkut interessada no tema cibercultura. Suas conside-raes finais parecem apontar no sentido de que, no que se refere arte literria na web, ainda h muito que se fazer.

    Regina Zilberman, analisando as alteraes nos su-portes, em A leitura no mundo digital observa um ele-mento constante no ato de ler, mesmo perante as inovaes propostas da internet: A leitura de textos transmitidos por meio digital guarda parentesco com o procedimento inau-gurado h alguns milnios pelos sumrios. Nesse sentido, como a introduo realidade virtual depende do domnio da leitura, essa no sofre ameaa, nem concorrncia. Com efeito, fortalece-se, por dispor de mais um mecanismo para sua difuso. Na outra parte da binmio leitura-escrita, po-rm, para a pesquisadora, a escrita, o segundo elemento, passa a ser vista numa condio varivel, disposio das tecnologias que, pela histria, a (trans/des)figuram: A es-crita procura acompanhar, nem sempre com sucesso, as transformaes fonolgicas e fonticas introduzidas pelas comunidades de falante. No caso da digitao de um texto, as circunstncias s quais a escrita se submete no mais se relacionam primariamente com a comunicao verbal,

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    mas com as modalidades fsicas e corporais de manipula-o da linguagem por seus usurios, adaptando-se a elas.

    Em seu artigo A escrita na tela: ordem do discurso, ordem dos livros e maneiras de ler, Roger Chartier, par-tindo do atual excesso de textos na cultura digital em re-lao capacidade de apropriao desses textos pelos lei-tores, observa os diferentes modos de leitura associados aos novos estatutos que cercam tanto o ato de ler como a prpria concepo de leitura: A leitura em frente tela geralmente uma leitura descontnua, que procura, a par-tir de palavras-chaves ou rubricas temticas, o fragmento do qual quer apreender-se: um artigo num peridico ele-trnico, uma passagem num livro, uma informao num site, sem que necessariamente deva ser conhecida, na sua identidade e a sua coerncia, a totalidade textual cujo frag-mento extrado. Em certo sentido, pode-se dizer que no mundo digital, todas as entidades textuais so como ban-cos de dados que oferecem unidades cuja leitura no supe, de nenhuma maneira, a percepo global da obra ou dos corpus de onde provm.

    O ltimo artigo de Questes de leitura no hipertexto de autoria de Tania Rsing, que tambm organiza este livro, e de Gustavo Melo. Analisando uma novela posta-da em blog pelo escritor e crtico literrio Luis Augusto Fischer, os pesquisadores percebem a emergncia de um comportamento de leitura diferenciado na web. Embora em uma estrutura de folhetim que no seja recente, segun-do os autores do artigo A tecnologia digital: emergncia de novos comportamentos no sculo XXI, a web permitiria uma interao indita a partir da qual os leitores teriam a capacidade de entrar em contato direto com o autor e com outros leitores virtuais tambm, diminuindo consi-

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    deravelmente o distanciamento existente entre o pblico e o escritor. Nesse sentido, a internet surgiria, tambm, como uma possibilidade de maior disseminao do texto literrio.

    E agora, por fim, um aviso, j que este um texto de apresentao: o presente livro decepcionar talvez a quem estiver procurando respostas definitivas no que se refere s inmeras problemticas relativas leitura na web. Os artigos aqui organizados, embora sejam frutos do pensamento de tericos de grande importncia e de grande esforo para a compreenso das novas circunstncias que envolvem o ato de ler no mundo informtico-meditico e embora apresentem consideraes preciosas para tentar-mos entender esse universo, cuja nica constncia a da eterna mudana, so esboos de mapas de uma paisagem de areia. Traando possibilidades, apresentando provveis caminhos, Questes de leitura no hipertexto configura-se, ento, de maneira a no ir alm da palavra questes, que d unidade srie publicada pela Editora da UPF. No meio de tudo, entretanto jamais ao fim , resta a nica ou a melhor certeza: melhor navegar pela dvida que no navegar e ficar na mesma terra firme e conhecida. Melhor se aventurar nos oceanos da internet levando perguntas do que se fixar firmemente no silncio impresso do j expe-rimentado e lido.

    Os organizadores

  • Palavra e imagem na criao potica digital

    Alckmar Luiz dos Santos

    Uma introduo a uma retrica do meio digital

    Tenho pensado numa retrica das formas mnimas para dar conta de alguns aspectos relevantes na criao em meio digital. E nem preciso dizer criao potica, pois estou pressupondo que a referncia a uma retrica, se no insere obrigatoriamente as criaes de que falo em tal es-pao literrio, ao menos parte de uma perspectiva literria, esta que ser usada aqui para pensar tais criaes. Por outro lado, a profuso (confusa) de nomes e de classifica-es j justificaria, por si s, um estudo mais sistemtico das criaes em meio digital: os rtulos arte, literatura e poesia so atribudos indistintamente aos mais varia-dos objetos e associados sem maior critrio aos adjetivos eletrnico ou digital, ou, ainda, acrescidos do prefixo ciber. O que se pretende, em suma, apontar para um mnimo de ordenamento a fim de estabelecer alguma dis-tino entre esses objetos todos. E como campo de leitura e de observao, remeteria todos e cada um de meus leitores ao Livre des morts de Xavier Malbreil,1 s criaes de Gise-le Beiguelman2 e aos poemas digitais de Circenses.3

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    Entretanto, ao lado de retrica, acima escrevi tam-bm o adjetivo mnimas, e, nesse caso, importante es-clarecer que no se trata de verdadeiras formas simples, pois o digital parece ser justamente o espao sonhado pelos minimalistas da dcada de 1980, em que restries de ele-mentos e de processos podem ser extremamente complexas. De fato, tem ficado cada vez mais claro que o meio digital proporciona, no revs da mitomania tecnolgica que quer nos vender ferramentas e produtos caros e complicados (inutilmente complicados, ressalte-se!), uma possvel limi-tao de processos e de elementos que pode ser, ao mesmo tempo, muito complexa. assim que essa retrica que aqui tentamos alinhavar deve pr o foco em criaes nas quais uma simplicidade de superfcie, apenas aparente, est ar-ticulada a uma complexidade de fundo.

    Antes de enveredarmos por esse caminho e chegarmos discusso do que pode ser uma epigramtica do meio digi-tal, voltemos mais detalhadamente s retricas a antiga, de origem clssica, e essa nova, digital, que se tenta aqui postular , num desvio fundamental para avanarmos em nossa discusso. Ora, se aprendemos algo com a tradio clssica, que ela sempre esteve fadada ao fracasso. E, tal como sua ilustre antecessora, uma retrica digital parece estar tambm condenada a isso. Aquela quis codificar a in-finitude dos discursos; esta precisaria organizar, agrupar e hierarquizar os inmeros produtos da criao digital. Em ambos os casos, temos uma tarefa impossvel, reservada talvez talvez! apenas aos deuses, a quem coube criar

    1 http://www.livresdesmorts.com2 http://www.desvirtual.com3 http://www.cap.eca.usp.br/circenses

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    e compreender a multiplicidade das coisas existentes e a lgica unificadora que constituiria a essncia delas.

    assim que a retrica clssica, para continuar exis-tindo, precisou deslizar, paulatina e inapelavelmente, do descritivo para o prescritivo. Aos poucos, ela deixou de des-crever a multiplicidade inesgotvel dos objetos da criao literria ou dos atos de discurso, para dedicar-se, segundo estratgias desenvolvidas ao longo dos sculos, a delimitar o campo de sua atuao. H a uma inverso de estratgia to simples quanto eficaz: no se trataria mais, ento, de constituir o campo de investigao da retrica a partir da anlise dos objetos literrios, mas de constituir a literarie-dade dos objetos com base na sua submisso a um campo retrico e literrio previamente demarcado. Como conse-quncia, houve um progressivo estreitamento do espao reservado aos objetos sujeitos a sua atuao, objetos que, apenas no caso de se submeterem a certas prescries, me-receriam as qualificaes de artsticos e de literrios. Da se poder falar, ento, de uma diminuio do espao dos ob-jetos passveis de serem aceitos pela retrica.

    Como exemplo dessas limitaes, pensemos num caso especfico: a partir da segunda metade do sculo XVIII, at final do XIX e incio do XX, houve o sequestro no s de um autor, mas praticamente do barroco inteiro. Juntamente com o barroco, todo um conjunto de criaes ldicas, visu-ais, combinatrias, etc. foi expurgado. E mesmo a partir do momento em que houve uma recuperao das formas e dos processos barrocos, l pelo final do sculo XIX e incio do XX, essa literatura dos jogos visuais ou combinatrios ainda continuou esquecida. Se, no Brasil, Gregrio de Ma-tos teve a primeira edio de suas obras poticas publica-das em 1881, no exagero supor que, a despeito disso, a

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    maior parte dos literatos dessa poca, e mesmo os da gera-o seguinte, ainda subscreveria palavras como as de Luiz Antnio Verney, publicadas ainda em 1746 em Portugal:

    Geralmente intendem, que o-compor bem consiste, em dizer bem sutilezas; e inventar coisas, que a ningum ocorressem: e com esta ideia produzem partos, verdadeiramente monstruo-sos [...] o falso engenho consiste, na semelhana de algumas le-tras, como os Anagramas, Cronogramas &c. s vezes na seme-lhana de algumas slabas, como os Ecos, e alguns consoantes insulsos: outras vezes na semelhana de algumas palavras, como os Equvocos &c. finalmente consiste tambm, em com-posies inteiras, que aparecem com diferentes figuras ou pin-turas [...].4

    Em certo sentido, esse perodo, entre os sculos XVII e XVIII, representou, talvez, um primeiro momento de forte contestao s tentativas de enquadramento das criaes literrias pela retrica clssica. Ao trazer, entre outros, o visual e o combinatrio para o espao literrio, a criao barroca colocava em xeque toda tentativa dessa retrica de sistematizar e de limitar sem as quais no se logra-ria qualquer abordagem da criao literria pela retrica clssica. Para esta, necessrio e conveniente que os ele-mentos bsicos da escrita literria o lxico (as palavras e suas flexes) e a sintaxe (as possibilidades de construo de frases em cada lngua) sejam limitados, mesmo que as possibilidades de associao entre eles sejam infinitas. Ora, ao trazer o visual, o combinatrio, o permutatrio, o ldico para o espao da escrita literria, os elementos bsi-cos para a criao literria aumentaram indefinidamente. No se tratava apenas de escolhas lexicais e combinaes sintticas limitadas pelo sistema da lngua, mas da incor-porao de aparatos visuais, matemticos, ldicos, que, na

    4 Verney, Luiz Antnio. Verdadeiro mtodo de estudar.

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    prtica, tornavam ilimitado o conjunto de elementos dis-ponveis para a criao, pois no estavam submetidos a nenhuma codificao verbal limitada; ou, dizendo melhor, estavam submetidos s codificaes dos gestos expressivos gerais do estar-no-mundo, ou seja, da percepo corporal,5 que apresentam uma abertura muito maior do que a lin-guagem verbal. Na prtica, tornou-se imediata e evidente-mente impossvel submeter qualquer combinao entre es-ses elementos todos, por mais simples que fosse, ao esforo ordenador e classificador de uma retrica de cunho verbal.

    Em outras palavras, durante o tempo em que perdu-rou sua influncia, essa retrica clssica tentou acober-tar sua impossibilidade por meio de uma iluso de que a finitude do conjunto de palavras e construes sintti-cas permitidas numa dada lngua seria sua condio de possibilidade. Tentou, em outras palavras, fazer de conta que a infinitude das falas ou dos discursos se submeteria, de alguma maneira, em algum momento, limitao de seus elementos bsicos (lxico e sintaxe). Iluso, sim, mas inevitvel. Essa sistematizao impossvel, mas constan-temente perseguida, imprimiu sua marca retrica cls-sica ao longo de toda sua existncia. Isso ocorreu mesmo em perodos como o barroco, em que essa impossibilida-de desnudou-se de modo evidente, quando se associaram elementos bsicos inumerveis (alguns citados acima) ao lxico e sintaxe.

    Ora, esse barroco visual, combinatrio, permutat-rio, ldico, dos sculos XVII e XVIII, lembra, em alguns aspectos importantes, a criao digital que hoje se tenta fazer e compreender. Em ambos os casos, vemos o esforo,

    5 no sentido de Merleau-Ponty.

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    por vezes explcito e programtico, dos artistas de alargar o espao e multiplicar os elementos bsicos de sua cria-o, abrindo-os a estratgias e a elementos estranhos, at ento, ao artstico. Uma diferena, contudo, est no fato de que a criao potico-digital no tem atrs de si, como no caso do barroco, uma tradio comportada, em que os elementos bsicos a partir dos quais se desenvolve a criao so escolhidos dentro de um conjunto limitado. No meio digital, sempre houve, desde o incio, uma infinitude ou um conjunto aberto de elementos bsicos: distintas lin-guagens de programao, diferentes programas de criao, inmeros tipos de objetos digitais. Tudo isso hoje se traduz em java, flash, vdeos, sons, interaes, iteratividades, em uma profuso de siglas como PHP, HTML, XML, SQL, etc., sem contar as inmeras associaes possveis entre eles todos.

    Alm disso, h tambm uma complicao a mais, que a possibilidade de combinar ou de justapor elementos essencialmente diversos: linguagens de programao dis-tintas empregadas em interaes complexas em que de-saparecem as hierarquias, insero de arquivos de deter-minado tipo em ambientes de computao no previstos (ainda) para eles, e assim por diante. So exemplos dis-so as criaes que associam vdeos linguagem Java, ou processamento em Basic ou Visual Basic dentro de objetos criados em realidade virtual (VRML).

    Uma outra diferena entre as criaes barrocas e as digitais parece estar justamente na complexidade simples a que nos referimos acima: no meio digital, possvel iden-tificar, aqui e ali, uma exiguidade de elementos e de pro-cessos, ao lado da complexidade dos meios empregados e dos resultados obtidos. Como exemplo, pensemos como o

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    Sintext de Pedro Barbosa,6 a partir de uma programao de bancos de dados encaixada em uma janela de interao programada, por sua vez, em Java, desgua na simplici-dade dos pargrafos gerados. Ora, tal simplicidade, em qualquer nvel que fosse, sempre foi totalmente estranha criao barroca. Mesmo as criaes voltadas para o cir-cunstancial e o efmero apresentavam uma alta dose de complicao.

    De toda maneira, seja se aproximando, seja se afas-tando do barroco mencionado, a criao em meio digital car-rega a mesma impossibilidade de uma descrio completa e exaustiva, isso , de uma retrica que d conta de todas as possibilidades de criao e esgote as tipologias possveis de objetos artsticos. Talvez devssemos dizer: a criao em meio digital carrega uma impossibilidade ainda maior (se nos fosse dado pensar em graus maiores ou menores de im-possibilidade) com relao ao barroco, por nunca ter tido ne-nhum espao de criao com um conjunto fechado e finito de elementos bsicos. O nome da criao no espao digital sem-pre foi legio, sempre carregou em sua essncia essa inume-rabilidade que, no Evangelho, foi nome dos demnios e, no meio digital, a caracterstica primeira de seus elementos bsicos. De toda maneira, como quer que se considere, tanto a retrica clssica quanto essa retrica da criao digital so fadadas ao fracasso. Isso quer dizer que ambos os esfor-os de sistematizao apontam para uma tarefa irrealizvel a longo como se viu na histria da retrica clssica ou a curto termo caso da retrica para o meio digital. Irrealiz-vel, mas incontornvel, como veremos logo adiante.

    Se analisarmos com calma, veremos que esse fracasso das retricas tambm, paradoxalmente, seu sucesso. Ex-

    6 Disponvel em: http://cetic.ufp.pt/sintext.htm

    http://cetic.ufp.pt/sintext.htm

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    pliquemos isso para no cairmos na tentao de deixar que frases de efeito substituam argumentos mais consistentes e exemplos convincentes. certo que a busca de uma exaus-tividade descritiva, por meio do sistema retrico clssico, sempre foi tarefa irrealizvel. Por outro lado, foi tambm um insucesso de que aos poucos se tomou conscincia, sem que se tentasse jamais escapar desse fracasso inelutvel: por vezes, distorcia-se ou ampliava-se o sistema com ele-mentos e estratgias ad hoc, na tentativa de dar-lhe sobre-vida e ampliar seu prazo e seu espao de validade. o caso da histria do lrico como gnero literrio, que , segundo Genette,7 uma tardia construo dos sculos XVIII e XIX europeus e que se atribuiu indevidamente a Aristteles.

    Entretanto, essa caminhada ao insucesso tambm deve ser vista como uma construo assinttica. Afinal, pode ser entendida como o esforo de adiar ao mximo possvel a eliminao do descritivo e a imposio cada vez maior, mais poderosa e mais cmoda do prescritivo. E justamente esse jogo entre descritivo e prescritivo que tam-bm provocou e provoca a criao, convocando os artistas a um equilbrio impossvel e, ao mesmo tempo, inadivel. H a mais do que semelhana com o prprio gesto expres-so e criador do artista: em ambos os casos, estamos falan-do de situaes em que se est dentro, aqum e alm do mundo-vivido inserido nele e deslocado dele , em que se constroem gestos expressivos que incluem e eludem todo o repositrio de expresses feitas e fixas que temos nossa disposio.

    Assim, na histria da retrica clssica, em vrios mo-mentos, como no caso do gnero lrico do sculo XVIII, essa oscilao entre ampliar e restringir, entre descrever e impor,

    7 Ver de Genette, Grard. Introduction larchitexte. Paris: Seuil, 1979.

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    tambm serviu para provocar a criao artstica. Quanto da produo literria do sculo XVIII no se socorreu tea-tralmente8 da racionalidade iluminista como estratgia de escamotear a tenso entre o prescritivo (quer dizer, o limi-tador) da tradio clssica e a necessidade de reformar (ou seja, abrir) a expresso e o pensamento? Podemos pensar, como outro exemplo, num escritor como Almeida Garrett. Em suas Viagens na minha terra, ele pretexta dobrar-se ao prescritivo para exigir uma abertura do descritivo que no possa ser considerada fora do sistema retrico e, portanto, alheia ao espao de criao literria. No prlogo segun-da edio, em abono atitude do escritor de misturar de forma inesperada gneros e formas discursivas h muito reconhecidas e aceitas, afirma-se:

    As Viagens na Minha Terra so um daqueles livros raros que s podem ser escritos por algum, como o autor de Cames e de Cato, de D. Branca e do Portugal na Balana da Europa, do Auto de Gil Vicente e do Tratado de Educao, do Alfage-me e de Frei Luiz de Souza, do Arco de Santana, da Histria Literria de Portugal, de Adosinda e das Leituras histricas e de tantas produes de to variado gnero, possui todos os estilos e, dominando uma lngua de imenso poder, a costumou a servir-lhe e obedecer-lhe; por quem com a mesma facilidade sobe a orar na tribuna, entra no gabinete nas graves discus-ses e demonstraes da cincia voa s mais altas regies da lrica, da epopeia e da tragdia, lida com as fortes paixes do drama, e baixa s no menos difceis trivialidades da comdia; por quem ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza, pode dar-se todo s mais ridas e materiais ponderaes da administrao e da poltica, e redigir com admirvel preciso, com uma exao ideolgica que talvez ningum mais tenha en-tre ns, uma lei administrativa ou de instruo pblica, uma constituio poltica ou um tratado de comrcio.

    claro que no vou me alongar nesse assunto, pois o que pretendo aqui no um estudo das retricas clssicas.

    8 no sentido mesmo de encenao.

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    Mas essa digresso j serviu para pr em relevo a questo primeira que apontei desde o incio: as retricas so sem-pre insuficientes... mas necessrias. E no h nada que nos impea de afirmarmos o mesmo acerca de uma possvel ou provvel retrica dos meios digitais. Contudo, h que se atentar para uma diferena importante. Como afirmado, o mencionado fracasso das retricas clssicas foi uma cons-truo, ou, melhor, uma constatao que tomou sculos, at que se tornasse evidente a impossibilidade de uma co-dificao rigorosa e totalizante dos discursos literrios. No caso do meio digital, a percepo dessa impossibilidade muito mais rpida, talvez at imediata.

    Como um aplicado aluno de matemtica tentando de-monstrar um teorema tortuoso, um retrico do meio digital busca sistematizar e hierarquizar de um lado e de outro. As primeiras classificaes propostas na dcada de 1990 (hi-perfico, poesia eletrnica, poema digital etc.), tentadas pelo lado do objeto produzido e, ainda, direcionadas pelas categorias da tradio impressa, revelaram-se de imediato pobres e redutoras. Voltou-se, ento, para os processos de produo. Nesse caso, sistematizar e hierarquizar poderia passar, ento, pelos tipos de programas empregados na criao artstica, agrupados segundo suas linguagens de programao. Pensou-se, ento, na possibilidade de agru-par as criaes de acordo com o programa ou ambiente de programao em que foram construdas: C, C+, C++, Po-werPoint, VRML, QuickTime, etc. Porm, novamente, a vida efmera tanto de programas quanto de linguagens revelou-se desastrosa para esses esforos retricos. Como resultado disso tudo, nosso aplicado retrico tentou sair da enrascada, primeiramente, pelo lado do indutivismo e, num segundo momento, pelo lado do dedutivismo, voltan-

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    do sempre ao ponto de partida, sem resposta alguma sua pretenso de sistematizar.

    Ora, parece-me que, se h alguma soluo, esta no estaria do lado do dedutivismo generalizante, nem do lado do indutivismo particularizante. Uma possibilidade de pensar essa retrica do meio digital seria entend-la como a busca de um espao entre o prescritivo e o descri-tivo, mas que no tenha compromisso com um nem com outro.9 No caso, no se trataria de uma dialtica entre am-bos; tambm no apontaria para algum no-lugar, ou para um pretenso entrelugar. Esse espao, intermdio sem ser intermedirio, pode nos permitir algum tipo de sistemati-zao sem que caiamos no prescritivo ou no descritivo, ou, ao menos, que nos permita adiar o mximo possvel essa escolha entre um e outro. provvel que todos os meus poucos leitores achem isso tudo muito vago. Concedam-me apenas algumas linhas de pacincia.

    Pensemos nos entreatos, intermezzos ou entremezes da tradio teatral. Muitas vezes tratava-se de pequenas encenaes jocosas ou burlescas encenadas entre dois atos de uma pea sria. A interposio de uma pequena produ-o satrica no escondia a seriedade da pea principal; de outro lado, o fato de estar cercada por uma produo sria no tirava do entremez a leveza e a atmosfera de mofa ou de riso. Contudo, certo que a leveza tradicional do bur-lesco tornava-se outra leveza, e a seriedade da tragdia assumia outra forma de seriedade. Podemos at imaginar que a insero de um entremez com histrias cmicas de viajantes deslocaria, por mais imperceptvel que fosse, a seriedade da pea principal da tragdia para a seriedade da epopeia. Mas, para no cairmos na tentao da facilida-

    9 Alis, diria que isso vale para qualquer retrica.

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    de de exemplos imaginados, peguemos a histria, em ver-sos, da pastora Marcela, inserida na narrativa, em prosa, do Quixote.

    Quanto da inteno burlesca, prpria da stira de Cervantes s novelas de cavalaria, no ganha em tenso l-rica e, portanto, em seriedade com a insero dessa espcie de entremez na obra de Cervantes? Esse , seguramente, um dos elementos que ajudaram a construir a melanclica maneira com que o Cavaleiro da Triste Figura tem sido entendido e lido desde sua publicao. Poderia alongar-me tomando outra Marcela, a de Brs Cubas, e propondo que pensemos na maneira como, agora, ao revs, a histria do relacionamento da moa com o protagonista do romance de Machado pode ser entendida como um entremez que, aprendendo com a irnica posio do narrador Brs Cubas, vem colocar em questo a tentao sentimentalista do lei-tor e a do narrador (ao incio, ao expor envergonhadamente o vis interesseiro da moa) e a impassibilidade analtica do realismo (ao final, ao mostrar Marcela como uma reles vendedora de rua, marcada pela varola).

    Esses exemplos apenas mostram um procedimento da literatura pouco ou quase nunca explicitado, mas fun-damental: a cada leitura de uma dada obra, recoloca-se em marcha toda a histria da srie literria. A cada lei-tura temos de reinventar uma tradio; temos de retomar uma genealogia das obras; em suma, temos de reinventar e aplicar uma sistematizao de gneros. A cada leitura podemos at inverter a cronologia das produes e dizer, como sugere Grard Genette, que Os lusadas poderia ser o hipotexto de que derivou a Eneida. O equvoco da ret-rica clssica foi acreditar que se estava obrigado a rein-ventar sempre os mesmos gneros, a mesma cronologia, as mesmas sistematizaes e hierarquizaes. Ora, ao cons-

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    truir, a cada leitura, sempre os mesmos gneros, estava-se utilizando uma concepo fechada e circular do tempo no mais condizente com as sociedades renascentistas e ps-renascentistas.

    Nesse caso, talvez estejamos obrigados a entrar num processo de deslocamentos constantes, em que, a cada lei-tura, toda a srie histrica das produes artsticas seria retomada, deslocada e recolocada. Contudo, felizmente, no temos de reconstruir todo o espao literrio a partir do zero, ab ovo: no precisamos fazer surgir toda uma s-rie literria inteira, pois vamos simplesmente torcer, dis-torcer, inverter o que j est disponvel. Ora, fazendo isso deslocamos toda a nossa perspectiva da singularidade do objeto e do relativismo de nossa leitura para o espao geral da linguagem. Porm, mesmo assim, trabalho hercleo e trabalho de Ssifo! Ao mesmo tempo! De todo modo, sem abordar a questo pelo aspecto dos processos de produo preestabelecidos, nem pelo aspecto dos produtos realiza-dos, o que nos restaria? Parece-me que h apenas essa pos-sibilidade, de concentrar em uma dada leitura todo o hori-zonte possvel da visada retrica, isso , de fazer com que a inteireza e a coerncia da leitura tenham como resposta um gesto retrico que tambm se faz inteiro e coerente. E, a partir dele, retomaramos toda a histria das sistemati-zaes e classificaes.

    Ainda assim, alguns poderiam acusar essa postura de relativista. Seria o caso, se se ficasse restrito leitura de uma dada obra, usando-a em todo lugar e a todo mo-mento para avaliar outras obras ou apenas ela prpria, de propor hierarquias e classificaes que se originassem apenas dela. No , de forma alguma, o que estou defen-dendo. Acima afirmei ser necessrio deslocarmos toda a nossa perspectiva da singularidade do objeto e do relati-

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    vismo de nossa leitura para o espao geral da linguagem. a insero dessa retrica no espao necessariamente in-tersubjetivo da linguagem que nos tira do precipcio do re-lativismo, sem que caiamos no buraco do dogmatismo. Em outras palavras, a principal pergunta a ser feita diante de uma criao potica digital no de onde ela (vem isso (que programa a produziu), nem como foi especificamente tramada ou construda. O que deve ser indagado como ela constitui, para ns, um gesto expressivo, como e por que se torna linguagem, isso , que perguntas ela nos faz, que problemas nos coloca, que dificuldades levanta, quan-do queremos inseri-la no espao dos gestos de linguagem!

    * * *

    A hesitao apontada entre ordenao dedutivista e classificao indutivista tambm marcou a maneira como se tentou entender as relaes entre palavra e imagem na criao literria, ainda bem antes do surgimento da in-formtica. E agora, ao nos colocarmos diante de criaes digitais que mesclam e confundem palavras e imagens, surpreendemo-nos ainda com esse hbito limitador de ver umas sob a perspectiva das outras. Ora, no o caso de tentar ver uma mesma expressividade gestos de lingua-gem dando origem a umas e a outras? Neste caso, lembro sempre o amigo Rodrigo de Haro, poeta e pintor, dizendo que, para ele, escrever versos, ir emendando umas pala-vras a outras, o mesmo que desenhar linhas e curvas a nanquim para compor suas gravuras. Para ele, no h diferena alguma entre desenhar e escrever.

    Esses gestos do poeta e pintor, em que visualidade e verbalidade confundem-se inextricavelmente, no re-meteriam ao que se observa na criao digital, em que

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    se escrevem linhas de cdigo de programao tendo como resultado a elaborao de imagens?! No caso, tambm possvel lembrar os exerccios realizados com as primei-ras impressoras matriciais, quando estas comearam a se popularizar: vistos de longe, eram imagens que, de perto, mostravam ser uma srie de linhas com letras, acentos e nmeros. E podemos ainda pensar no modo como o meio digital permite-nos deslocar e reacomodar cones (ou seja, imagens) na tela, resultando desses movimentos uma srie de mensagens e de linhas de palavras.

    Ora, qualquer retrica do meio digital no pode dei-xar de lado essas relaes entre palavras e imagens. E, para no ficar no bvio, acrescentaria: palavras e imagens entendidas ambas como gestos. Contudo, no se trata aqui de gestos quaisquer, corriqueiros, mas daqueles que ex-pressam uma corporeidade que, sendo artstica, sempre nascente e inaugural. Eu diria que uma retrica da criao em meio digital passa por essa dimenso gestual e artsti-ca, incorporando a seus procedimentos essa mesma esfera de originalidade e de originariedade que marca todo gesto artstico. Desse modo, uma verdadeira retrica do digital pode aprender, com a expresso artstica, a estar sempre inaugurando suas observaes dos gestos e dos objetos criados, suas categorias de classificao e de ordenao, sua tradio.

    Uma retrica do meio digital, proposta e percorrida a partir dessa dimenso gestual, teria duas caractersticas importantes e evidentes. A primeira delas diz respeito simplicidade dos elementos mnimos que compem a com-plexidade de todo gesto. Nesse caso, tal retrica deve dar a mxima importncia a uma estratgia de simplicidade, de parcimnia de detalhes, dando conta, assim, da extrema limitao e, ao mesmo tempo, da extrema complexidade da

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    expresso gestual. A segunda caracterstica diz respeito espacializao, isso , maneira como os gestos no ape-nas se expressam em um espao, mas tambm inauguram ou fundam um espao expressivo. E essa espacializao remete de imediato a uma teatralizao que , de fato, ine-rente a todo gesto expressivo. Portanto, no pode ser posta de lado por uma retrica que pretende entender como o meio digital pode se tornar espao, e tambm espao de criaes artsticas.

    Assumindo essa dimenso gestual, no s nos objetos artsticos que examina, mas em sua prpria construo, uma retrica do meio digital poderia privilegiar as formas mnimas e as disposies espaciais. No caso, seria legtimo e, mais do que isso, muito frtil fazer com que essa retrica, de um lado, esteja atenta para a minimalidade complexa que se encontra, para tomar um exemplo do campo literrio, no epigrama ou no haicai; de outro, que priorize o espao e a movimentao do jogo teatral, da encenao que est na origem de todo gesto. assim que minimalidade comple-xa e espacializao teatralizada podem ser dois elementos com base nos quais as obras digitais seriam classificadas e hierarquizadas. Contudo, por outro lado, essa sistematiza-o no implicaria, de imediato, obrigatoriamente, juzos prescritivos ou descries empricas.

    Em outras palavras, o que estou buscando uma re-trica do digital que procure nos objetos submetidos a seu olhar uma minimalidade prxima da simplicidade dos epi-gramas e dos haicais. No caso, o haicai traz ainda a vanta-gem de ter sido, desde o incio, uma escrita que se comple-tava sempre por meio de um entrelaamento entre visual e verbal, seja por meio dos ideogramas, seja por meio de uma imagem (haiga) associada a seus ideogramas. E essa minimalidade se completaria por uma ateno dada di-

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    menso espacial dos objetos artsticos, por essa teatrali-dade que nos faz compreender como o leitor pode se colo-car diante desses gestos de criao digital e ser, ao mesmo tempo, condio de possibilidade de sua existncia. Com isso, vem cena da leitura uma outra topologia de constru-o de sentidos a teatralizao concreta da experincia de leitura , a que no estvamos muito habituados nas diferentes tradies artsticas, mesma as das vanguardas do sculo passado.

    isso que, na sequncia dessas reflexes, estou pla-nejando fazer. Primeiramente, por meio de leituras de al-gumas obras digitais que permitem tocar diretamente nes-sas questes, como o Livre des morts de Xavier Malbreil e algumas criaes de Gisele Beiguelman; em segundo lugar, por meio de criaes potico-digitais, como os Circenses,10 mencionados, ou as sequncias de Palavrador,11 em parce-ria com o grupo capitaneado por Chico Marinho.

    Referncias

    GENETTE, Grard. Introduction larchitexte. Paris: Seuil, 1979.http://cetic.ufp.pt/sintext.htm.VERNEY, Luiz Antnio. Verdadeiro mtodo de estudar.www.cap.eca.usp.br/circenseswww.ciclope.art.br/pt/downloads/files/Palavrador.zipwww.desvirtual.comwww.livresdesmorts.com

    10 realizadas com Gilbertto Prado.11 http://www.ciclope.art.br/pt/downloads/files/Palavrador.zip

    http://cetic.ufp.pt/sintext.htmhttp://www.ciclope.art.br/pt/downloads/files/Palavrador.zip

  • Hiperleitura e interatividade na Web 2.0

    Antonio Carlos Xavier

    Introduo

    A internet j a mdia mais consumida em todo o mundo. Um estudo da ONU, intitulado Digital Life 2006, visando a observar o impacto das tecnologias no comporta-mento das sociedades, constatou a liderana da web como a mdia mais acessada entre usurios com at 54 anos de idade em vrias partes do planeta. Os dados foram divul-gados em dezembro de 2006 pela Unio Internacional de Telecomunicaes.1

    No Brasil, a chegada da banda larga aumentou para vinte horas semanais o tempo mdio de navegao dos in-ternautas brasileiros. A pesquisa da ONU revelou tambm que houve mudanas importantes no perfil de uso de com-putadores ao invs dos antigos computadores centrais, a partir dos quais diversos usurios usavam a mesma m-quina, o setor de tecnologia de informao atualmente re-gistra diversos microcomputadores para o mesmo usurio.

    1 http://computerworld.uol.com.br/comunicacoes/2006/12/04/idgnoti-cia.2006-12-04.2620009640/IDGnoticia_view

    http://computerworld.uol.com.br/comunicacoes/2006/12/04/idgnoticia.2006-12-04.2620009640/IDGNoticia_view" \t "_blankhttp://computerworld.uol.com.br/comunicacoes/2006/12/04/idgnoticia.2006-12-04.2620009640/IDGNoticia_view" \t "_blank

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    No obstante esse acontecimento, temos acompanha-do o surgimento de outro fenmeno genericamente chama-do de Web 2.0, ou a segunda gerao da internet. O cres-cente acesso das pessoas NET proporcionado pela queda dos preos dos produtos eletrnicos e pela chegada da banda larga, que tem triplicado a velocidade das conexes, e a nova atitude no uso das ferramentas e programas da web tm despertado o interesse em observar a natureza da interao/interatividade e os modos de (hiper)leituras que esto sendo efetivados neste segundo momento da web como mdia digital.

    Portanto, analisar para entender o funcionamento e as implicaes da conhecida atitude faa voc mesmo agora em sua verso virtual o nosso objetivo neste ensaio. As perspectivas tericas que pautaro a anlise sero o in-teracionismo sociodiscursivo de Bronckart (1999), a teoria da cognio situada proposta por Clancey (1997) e a teoria da aprendizagem (re)construcionista postulada por Xavier (2007), cujo foco na linguagem para a aquisio do conheci-mento o ponto comum entre as trs teorias.

    Interao e interatividade na Web 2.0

    De acordo com a definio do dicionrio Aurlio, inte-rao uma ao que se exerce mutuamente entre duas ou mais coisas, ou duas ou mais pessoas, ao passo que interatividade a capacidade (de um equipamento ou sistema de comunicao ou sistema de computao, etc.) de interagir ou permitir a interao. O mesmo dicion-rio tambm define o termo interatividade relacionado a interativo, que a possibilidade de um recurso, meio, ou

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    processo de comunicao permitir ao emissor interagir ati-vamente com o receptor.

    Aqui adotamos a distino proposta por Silva (2000, p. 103) para interao, o qual afirma que o termo intera-o comporta trs interpretaes: uma genrica (a nature-za feita de interaes fsico-qumicas ou, nenhuma ao humana existe separada da interao), uma mecanicista, linear (sistmica) e uma marcada por motivaes e predis-posies (dialtica, interacionista). Neste ensaio focaliza-mos a concepo interacionista da interao. Enfatizamos o fator intersubjetivo envolvido na interao, a relao hu-mana que ocorre entre pelo menos dois sujeitos que agem reciprocamente em resposta fala um do outro. Seguindo essa lgica, ambos vo mutuamente ao encontro do outro a fim de satisfaz-lo em alguma de suas necessidades cog-nitivas, simblicas ou fsicas.

    Como nos alerta Aurlio, interatividade tem sido vin-culada potencialidade tcnica oferecida por alguma m-quina ou meio tecnolgico ao homem para que este rea lize aes que implicam interveno e mudana numa situao dada, tal como ligar um aparelho de TV (antes desligado), fazer uma chamada telefnica ou at mesmo digitar um texto no teclado do computador. Em geral, usa-se intera-tividade para indicar a relao homem-mquina, isso , o intercmbio do homem com a tecnologia.

    Para alm dessas filigranas terminolgicas, designa-remos ambos como semanticamente equivalentes, ou seja, tom-los-emos como sinnimos um do outro, uma vez que a intimidade dos usurios com os recursos tecnolgicos da Web 2.0 tem alcanado nveis de integrao to elevados que talvez eles nem percebam a diferena entre interagir com outros sujeitos mediados pelo computador remota-

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    mente e interagir meramente com um programa de com-putador. Os jogos eletrnicos on-line ou off-line so bons exemplos de interatividade, pois neste caso o sujeito joga diretamente com a mquina programada para isso. Entre-tanto, essa distino torna-se pouco relevante quando, por exemplo, os usurios esto em rede jogando simultanea-mente com vrios outros, os quais podem se encontrar ao lado ou extremamente distantes entre si on-line. Estariam eles interagindo com a mquina, entre si ou pela mquina? A rigor, que diferena isso faria? A nosso ver, nenhuma.

    No que se refere interatividade mediada por com-putador, Marchand (1997, apud Silva, 2000) entende que o boom informtico mudou o estatuto do receptor e tambm do emissor, que

    no prope mais mensagem fechada, ao contrrio, oferece um leque de possibilidades, que ele coloca no mesmo nvel, confe-rindo a elas um mesmo valor e um mesmo estatuto. O receptor no est mais na posio de recepo clssica. A mensagem s toma todo o seu significado sob sua interveno. Ele se torna de certa maneira criador. Enfim, a mensagem que pode ago-ra ser recomposta, reorganizada, modificada em permanncia sob o impacto cruzado das intervenes do receptor e dos dita-mes do sistema, perde seu estatuto de mensagem emitida.

    Se j parecia no haver mais fronteiras entre emis-sor e receptor, produtor e consumidor de informao com a chegada da web em sua primeira verso, dada sua na-tureza flexvel, dinmica e dialgica, que dir agora com a constatada evoluo nos programas aplicativos digitais da Web 2.0. Por meio desses programas os usurios comuns participam e intervm mais ativamente na construo da arquitetura e do contedo do que deve ficar on-line.

    Na interao mediada por computador, os programas de contedo limitado como CD-ROM do lugar a programas mais sofisticados de acesso ilimitado a dados e contedos

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    diversos. A internet oferta relao homem/mquina uma infinidade de atividades sncronas (chats, teleconferncias) e assncronas (e-fruns, e-mails, sites de relacionamentos), complexificando muito mais a interatividade anterior com outras mquinas eletrnicas e at mesmo digitais em sua verso mais antiga.

    Para Domingues (2002, p. 111-112), os sistemas infor-mticos, semelhana dos encontros pessoais, exigem dos sujeitos respostas quase sempre instantneas. Na NET essa instantaneidade acentuada, beneficiando direta-mente a interatividade, que, por sua vez, vai permitir: ler informaes a distncia a partir de hipertextos e de am-bientes hipermdias ricos em estmulos sensoriais; realizar aes colaborativas na rede com o conceito de compartilha-mento de informao todos para todos, no um para to-dos; experimentar as sensaes da telepresena; enxergar espaos distantes e agir simuladamente em locais remotos; existir simultaneamente em espaos reais e virtuais.

    Em outras palavras, o autor destaca que a lgica da interatividade na rede pautada pelo constante estado de efemeridade e mudana prprio da contemporaneidade. As mquinas on-line hoje, muito mais do que ontem, pedem urgncia aos humanos em suas aes de reciprocidade e compartilhamento dos conhecimentos e experincias ad-quiridas durante a navegao, a fim de que a inteligncia coletiva seja ampliada infinitamente.

    A Web 2.0 supervaloriza e transcende a todas essas possibilidades de interatividade apontadas por Domingues (2000). O termo criado por Tim OReilly2 em outubro de 2004 visava dar um ttulo atraente a uma srie de con-

    2 http://www.oreillynet.com/pub/a/oreilly/tim/news/2005/09/30/what-is-web-20.html

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    ferncias sobre a evoluo da internet aps seu aparente colapso em 2001.

    Segundo OReilly, a regra mais importante da Web 2.0 desenvolver aplicativos que aproveitem os efeitos da rede para se tornarem tanto melhores quanto mais so usados pelas pessoas, desenvolvendo a capacidade comu-nitria para a resoluo de problemas e satisfao de ne-cessidades. Para alguns, no passa de mais uma estratgia de marketing com o objetivo de alavancar o e-comemerce, o comrcio eletrnico na rede. Para outros, trata-se de um novo paradigma de internet, cujo objetivo principal gerar contedo proveniente dos prprios usurios ou alimenta-do por eles, tornando a experincia de navegao muito mais viva e dinmica. Em outras palavras, a grande rede mundial de computadores estaria passando, na opinio de alguns, como OReilly, por um perodo de evoluo extre-mamente interessante no qual a palavra de ordem in-teratividade. Em suma, a Web 2.0 a internet feita por gente, no s por sistemas operacionais ou conglomerados corporativos.

    Nessa perspectiva, tm surgido programas de compu-tadores com interfaces mais simples, leves e modulares, os quais permitem que os usurios utilizem a rede com mais agilidade e mais adequao s suas necessidades e interes-ses. Um programa de contato, por exemplo, pode servir a vrios outros programas de agenda no computador do mes-mo usurio. Em geral, essa nova gerao de programas nasce sem limites de aprimoramentos, cujos cdigos de programao so disponibilizados na rede de forma aber-ta espera de sugestes que venham dos usurios, no necessariamente de outros programadores. Normalmente, so os prprios usurios que apresentam modificaes

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Software" \o "Software

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    estrutura do programa e que supervisionam o contedo ali veiculado, tornando as informaes disponveis cada vez mais confiveis.

    Isso significa dizer que, quanto mais um software usado, melhor tende a se tornar. O grande nmero de usu-rios que acessa o site com o esprito construtivo tende a bu-rilar o programa tcnica e interativamente, alm de viabi-lizar economicamente sua continuidade pela exposio do servio a um grande nmero de visitantes. Apesar de re-ceber uma grande quantidade de acesso simultaneamente, os sites criados nessa nova concepo no ficam lentos, j que tecnologias recm-criadas, como o Ajax (sigla em in-gls para JavaScript e XML Assincronos), permitem uma interface rpida, rica e fcil. Com ela no mais necessrio recarregar toda a pgina quando o usurio precisa de nova informao; a pgina s carregada para a informao de-sejada pontualmente.

    Os exemplos multiplicam-se a cada dia. De softwa-res para captao de msicas, como Emule3 e Kazaa,4 a softwares para a formao de redes sociais, como o Orkut5 e Myspace,6 todos parecem ter se tornado mania entre usu-rios adolescentes, jovens, adultos e at idosos. A arquitetu-ra tendenciosamente participativa desses softwares conduz seus usurios a categorizarem os temas a serem acessados em seu prprio espao digital conforme seus propsitos, bem como eles tm a chance de personalizar a recepo de informaes que desejarem do jeito que quiserem. No s comentrios so estimulados e esperados, mas tambm da convergncia de opinio concretizada pelas participaes

    3 http://www.emule.com/4 http://www.kazaa.com/5 http://www.orkut.com/6 http://www.myspace.com/

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    os sites so modificados e corrigidos, como acontece com a Wikipedia,7 o dicionrio aberto edio colaborativa. Este servio, salvo alguns problemas de invaso de internautas imaturos, faz aumentar a quantidade e melhorar a quali-dade da informao a ser pesquisada de modo clere, socia-lizado e gratuito.

    Nesse contexto, dois conceitos so fundamentais: a permutabilidade e a potencialidade. O primeiro refere-se liberdade ilimitada para editar o contedo, manuse-lo e refaz-lo completamente. A permutabilidade exige alta flexibilidade tecnolgica dos atuais programas de compu-tador para se adaptar a essa nova atmosfera do faa voc mesmo virtual. Sentindo-se agora protagonistas, no mais coadjuvantes, das tramas virtuais, os usurios envolvem-se mais e constroem coletivamente o enredo sem fim pre-determinado por um nico narrador. A realidade virtual ratificada em programas simples e experimentada por pessoas sem grandes conhecimentos em computao.

    Trabalhando nessa filosofia, o software Second Life (SL) tem crescido assustadoramente entre internautas jo-vens, e at mesmo adultos, e j conta, s no Brasil, com mais de 250 mil avatares, personagens criados por seus adeptos. Desenvolvido pelo americano Philip Rosendale em 2005, SL no um jogo, porque no h misses, fases ou objetivos predefinidos a serem atingidos. Trata-se de um metaverso, ou seja, um mundo virtual tridimensional que oferece a qualquer pessoa com acesso NET a possibi-lidade de ter uma segunda vida, uma vida imaginria. De acordo com o site da empresa concessionria do programa no Brasil,8 as pessoas que se cadastram no Second Life

    7 http://www.wikipedia.org/

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    so mais do que internautas ou usurias. So residentes de um universo on-line onde possvel voar ou se tele-transportar, trabalhar, fazer novos amigos, estudar, criar produtos e obras de arte, passear, namorar, fazer compras, vender, danar, anunciar...

    Cada vez mais cidados comuns tm mergulhado no mundo virtual e construdo seu prprio universo ideal, no qual sua viso de si, dos outros e da sociedade pode ser expressa, visualizada e debatida entre seus conhecidos f-sicos e virtuais. A liberdade de escolher seu perfil, de mo-dific-lo e acomod-lo s necessidades emergentes pode ser vivenciada pelo menos na realidade virtual. Seus efei-tos psicolgicos no se conhecem ainda, mas os reflexos sociolingustico-cognitivos parecem positivos na maioria dos casos, pois fazer amigos e encontrar pessoas, mesmo que virtualmente, sempre uma oportunidade de ampliar a viso de mundo, de conhecer novas percepes e de ponde-rar os prprios valores luz dos alheios. Alm disso, uma chance de aumentar a capacidade cognitiva e comunicativa, j que para criar novos mundos e compartilh-los preciso montar raciocnios lgicos por meio de inferncias; ativar dados armazenados na memria; estimular a imaginao e articular as diferentes linguagens disponveis ao homem. A permutabilidade, ento, cria as condies de possibilidade para que essa vivncia em ambientes virtuais acontea.

    O segundo conceito, a potencialidade, tem a ver com a grande quantidade de informao a ser gerenciada pelos navegadores do maior oceano de informaes do planeta, a maior biblioteca do mundo. Esse universo de dados est formatado nas mais diferentes linguagens e no s em for-mato de texto, mas tambm configurados em imagens e comprimidos em sons. Mesclados na tela do computador,

    8 http://www.secondlifebrasil.com.br/noticias/noticias_completo.aspx?c=11

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    tornam-se desafios constantes para o hiperleitor, tendo em vista ser seu processamento muito mais complexo no ape-nas pelo volume, que por si s j um obstculo compre-enso, mas principalmente pela diversidade semitica que o constitui. Toda essa pluralidade de fontes de conhecimen-to fica aguardando o tratamento cognitivo mais adequado e produtivo do hiperleitor, no primeiro instante individual-mente, mas num outro coletivamente, j que em seguida ser compartilhado com um nmero maior de beneficirios potenciais dessa fortuna de conhecimento.

    Claro que h muito lixo na rede, por ser esta uma es-pecialidade do ser humano. Produzir restos imprestveis parte de toda a cadeia produtiva, seja material, seja in-telectualmente falando. Cabe ao navegador/pescador sele-cionar o que lhe ser til. Com exceo daqueles casos de violncia explcita contra a liberdade e a vida, considerar lixo uma determinada informao uma atitude relativa, pois os interesses, assim como as preferncias e intenes dos indivduos, variam enormemente. Essa variedade a prova da riqueza da vida e a garantia da no-monotonia da existncia humana, tanto no universo real quanto em seu metaverso (universo virtual).

    Portanto, quanto mais informao melhor, pois mais seguro escolher e decidir dominando detalhes e nuanas do fato em foco do que faz-lo ignorando seus pormenores. Co-nhecer ajuda a ponderar, auxilia a pesar prs e contras, fa-vorece o exerccio da sensatez. Para um mal-intencionado, o desinformado sempre uma presa mais fcil de enganar do que um pouco informado. Na sociedade da informao, saber muito mais que tomar conhecimento, poder deci-dir e sobreviver em meio acirrada competitividade, am-pliada tambm pelo modus vivendi digital.

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    Hiperleitura na Web 2.0

    Como j vimos, estamos num momento histrico da internet no mnimo curioso, no qual seus usurios no ape-nas surfam sobre o contedo como tambm o supervisio-nam, produzem-no e alimentam frequentemente os stios digitais. Eles fazem revises, crticas e complementaes. Essa nova atitude, denominada faa voc mesmo virtual, explicita o interacionismo sociodiscursivo proposto por Bronckart (1999).

    O interacionismo sociodiscursivo tem como caracte-rstica principal a concepo dialtica permanente entre restries sociais, histricas e discursivas no espao de li-berdade de cada sujeito de linguagem. Essa dialtica ga-nha corpo nos textos orais ou escritos, considerados unida-des comunicativas de nvel superior, cuja efetivao se d nas e pelas operaes lingusticas. Nesse cenrio, o autor prope que a aquisio ou a ressignificao de saberes rea-liza-se atravs da linguagem, mediadora por excelncia do sujeito consigo mesmo em seus desejos ntimos de dizer, e pela interao com o outro, por onde se d a relao social entre sujeitos.

    Partilhando dos mesmos princpios epistemolgicos, qual seja, o sujeito constri seu prprio conhecimento amparado por parceiros e ferramentas cognitivas e so-ciais diversas, a teoria da cognio situada defende que a aquisio de conhecimentos passa pela compreenso de que uma cultura no uma acumulao de saberes; antes, um conjunto de conhecimentos entrelaados. Tal entre-laamento de conhecimentos propicia a incorporao de novos saberes, especialmente em contextos especficos de aprendizagem. Por essa razo, a teoria da cognio situada

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    adapta-se bem s TIC por intermdio da inteligncia arti-ficial e explica satisfatoriamente as situaes de resoluo de problemas em grupos e em comunidades de prtica. As pesquisas com base nessa proposta terica ocupam-se de investigar o papel das situaes ligadas ao ambiente social e fsico equipado com objetos tecnolgicos de aquisio de conhecimento, no qual os processos cognitivos relativos s atividades situadas tm lugar.

    De acordo com essa teoria, a forma de obteno de determinado conhecimento e a situao na qual ele se desenvolveu tornam-se as partes fundamentais desse co-nhecimento. Em outras palavras, esta teoria advoga uma forma inteligente de abordar a interao que se d entre corpo, mente e ambiente, levando em conta a necessria contextualizao para que o processo cognitivo mediado pela linguagem seja efetivado. Para Clancey (1997), o co-nhecimento no um produto que, depois de pronto, deve ser armazenado na memria do sujeito, mas uma capa-cidade de ao construda em interao por esse sujeito constitutivamente cognoscente.

    A teoria da aprendizagem (re)construcionista toma como ponto de partida o construtivismo piagetiano e defen-de que a aprendizagem centrada na (re)construo do sa-ber pelo prprio aprendiz deve lev-lo a evitar o consumo acrtico da informao fornecida pelo professor, internet ou qualquer outra fonte de saber. Antes o aprendiz deve pro-curar realocar a informao e reorganiz-la a seu modo e conforme suas reais necessidades sociais e cognitivas.

    De acordo com Xavier (2007), essa postura passa, ine-vitavelmente, pelo desenvolvimento de trs habilidades centrais, duas das quais lhes garantiro definitivamente a condio de sujeito do aprender. So elas:

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    autonomiadeaprendizagem; criticidadesobreconceitosedefiniesaseraprendi-

    dos; criatividade para utilizar os conceitos e definies

    em situaes no previstas. O vis (re)construcionista tanto permite o desenvolvi-

    mento individual do sujeito como colabora para integr-lo social e profissionalmente ao mercado de trabalho. Para isso, o aprendiz que domina as novas tecnologias deve ge-renciar eficientemente trs aes inseparveis, que so: controlar o funcionamento dos dispositivos tcnicos digi-tais, transformar a informao bruta em conhecimento til e aguar a conscincia para a necessidade de aprender a aprender ininterruptamente. Quanto a esta ltima ao, a conscincia do aprender a aprender pelo sujeito significa, entre outras coisas, definir com clareza suas necessidades, encontrar as informaes e dados desejados, estimar o va-lor e relevncia das informaes encontradas e reformatar sua base de conhecimento velho em funo do novo. Dessa forma, os artefatos tecnolgicos tendem a conspirar a favor do aprendiz contemporneo, potencializando suas chances de desenvolvimento intelectual e social.

    A atitude faa voc mesmo virtual referida anterior-mente pode ser compreendida tanto pelo interacionismo sociodiscursivo quanto pela teoria da cognio situada, bem como pela perspectiva (re)construcionista da apren-dizagem. Os axiomas epistemo-filosficos de tais teorias encaixam-se bem nesse novo modelo de atuar na rede, no qual o internauta instigado a sair da condio de audincia contemplativa e passar para a de agente pro-dutor profundamente engajado. Dizendo de outra maneira, os hiperleitores da Web 2.0 no so mais annimos caa-

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    dores-coletores de informao. Pelo contrrio, querem ago-ra ser identificados pelo nome, ainda que fictcio, e vistos como plantadores de contedo, coletores de conhecimento e criadores de mundos virtuais sempre em expanso.

    O aumento da atividade intelectual nas aes reali-zadas na web parece no somente inegvel como tambm inescapvel a qualquer sujeito que dela faa uso. No espao digital l-se e escreve-se com voracidade e intensidade in-ditas. De todas as possibilidades de atividade cognitivas, a leitura a primeira e a mais frequente quando se acessa a grande rede; a matriz para a ativao de vrias outras aes. O ponto de partida para o processamento cognitivo das informaes configuradas nas linguagens verbal, vi-sual e sonora no ambiente digital , sem dvida, a leitura lato sensu. Por essa razo, convm refletir sobre essa facul-dade humana essencial.

    Considerando o hipertexto on-line como a tecnologia enunciativa que viabiliza o surgimento do modo de enun-ciao digital, uma nova forma de produzir, acessar e in-terpretar informaes (Xavier, 2002, p. 97) expostas no suporte de percepo, a tela de um equipamento multim-dia, podemos afirmar que a (hiper)leitura nele realizada exige do sujeito comportamentos mentais e atitudinais bem diferentes. No nos deteremos nos pormenores desses comportamentos cognitivos, uma vez que no h pesqui-sas conclusivas que explicitem definitivamente as distin-es neurofiosiolgicas de ler um contedo na superfcie textual impressa e acessar ainda que o mesmo contedo na superfcie hipertextual. Entretanto, consenso entre os estudiosos da temtica admitir que o suporte de acesso interfere no modo de absoro, acomodao e organizao

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    das informaes. Entendemos o hipertexto on-line enun-ciativamente, ou seja, como

    um espao virtual singular que apresenta, reapresenta e arti-cula os recursos lingusticos e semiticos j em circulao cen-trados num s lugar de acesso perceptual. No se trata de um novo gnero de discurso, mas de uma forma outra de dispor e compor entrelaadamente as informaes expostas em dife-rentes linguagens. Cada linguagem que se ancora no hipertex-to guarda suas peculiaridades sgnicas, mas ao mesmo tempo cede a primazia de significao para que possa cooperar com o propsito principal que a construo do sentido pretendido pelo sujeito-enunciador do espao virtual.9

    Uma mudana considervel tem acontecido exata-mente nesse processo de construo de sentido efetuado pelo hiperleitor nos programas e ferramentas da Web 2.0. As tmidas e quase inexistentes intervenes do antes es-pectador, que praticamente apenas conferia e confirmava os dados contidos nos sites e executava as aes e sugestes propostas neles, passam agora a aparecer de modo estron-dosamente visvel. Seja por meio de caixas de mensagens assncronas, seja por chats em tempo real e at mesmo pela confeco e manuteno de sites ou apropriao de certos espaos de servios digitais ancorados gratuitamente em certos stios digitais, os hiperleitores da nova web mani-festam sua nsia por participao. Eles querem fazer com as prprias mos, querem em rede (co)construir a rede. como se o complexo processo de leitura fosse no s atua-lizado oticamente, mas tambm tocado virtualmente, fa-zendo crescer a cada toque do hiperleitor 2.0.

    O hiperleitor 2.0 parece incorporar todas as categorias de leitores j ventiladas pelos tericos e estudiosos desse

    9 A Dana das linguagens na web: critrios para a definio de hipertexto, arti go resultante da conferncia proferida durante o V Congresso Internacio-nal da Abralin, realizado em maro de 2007, na UFMG, Belo Horizonte - MG (no prelo).

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    processo cognitivo. Sejam os leitores ingnuo, brinca-lho e bom de Hermann Hesse (1984); seja o leitor-mo-delo assim definido por Umberto Eco (1979); sejam os lei-tores contemplativo/meditativo, movente/fragmentado, imersivo/virtual classificados por Santaella (2004), ou o leitor consumidor/caador sugerido por Certeau (1999), entre outros, todos parecem se integrar ao novo perfil do hiperleitor 2.0.

    Por ser essencialmente hbrido, ele tende a absorver o melhor dos mundos de cada tipo de leitor existente. Os modos de ao da mente humana, tais como as formas de inferncia indutiva, dedutiva e abdutiva, dar-se-iam si-multaneamente neste leitor turbinado. Ele age como se no houvesse mais tempo para olhar os stios digitais, porque precisa urgentemente faz-los, disponibiliz-los e aguardar a repercusso por outros hiperleitores 2.0, a qual no tardar a aparecer. A volatilidade e fluidez inerentes ao mundo virtual ganham uma momentnea estabilidade, j que o produto digital est sempre inacabado e ser in-meras vezes reformatado luz das sugestes dos demais membros da comunidade aglutinada pela NET.

    Concluso

    O computador multimdia rene todas as condies tcnicas e tecnolgicas para convergir os dispositivos se-miticos necessrios interao/interatividade solicitada pela segunda gerao da internet na qual se consolida a dinmica de funcionamento do hiperleitor 2.0.

    Os programas que rodam nos servidores das empre-sas que os desenvolvem, tais como Emule e Kazaa, permi-tem no s a captura do arquivo (download), mas tambm

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    a edio e remasterizar do produto capturado e (re)inseri--lo no mesmo programa para, posteriormente, ser acessa-do e consumido por outros hiperleitores que comungam da mesma filosofia.

    Mais um exemplo de programa de sucesso gerado na filosofia da Web 2.0 o site You Tube.10 Criado em 2005 por dois ex-funcionrios do eBay, Steve Chen e Chad Hurley, sua proposta era armazenar uma grande variedade de contedo audiovisual filmes, comerciais e clipes de msica , assim como contedo amador, e funcionar como um videoblog. Em pouco tempo conquistou mais de cem milhes de con-sultas dirias, tornando-se o dcimo site mais visitado da rede mundial de computadores, razo suficiente para que, em outubro de 2006, uma das maiores empresas de tecno-logia de informao, o Google, comprasse a boa ideia por $ 1,3 bilho.

    Alm desses programas, outros, tambm j citados aqui, como Second Life e Wikipedia, recebem a cada dia mais adeptos. Em geral, eles procuram nesses stios sa-tisfazer curiosidades, exercer sua liberdade de expresso e compartilhar com outros informaes acompanhadas de entretenimento. Enfim, so hiperleitores 2.0 que intera-gem sociodiscursivamente e que incorporam conhecimen-tos entrelaados, extraindo das ferramentas computacio-nais em contexto toda a aprendizagem possvel mediante a prtica das linguagens ali envolvidas, j que a cognio humana adapta-se muito bem s tecnologias de informa-o e comunicao contemporneas.

    Segundo o novo conceito de internet j em vigor, esto em franca ascenso hiperleitores 2.0, mais crticos, mais

    10 www.youtube.com

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    criativos e muito mais interativos. So protagonistas que atuam, montam e consomem a narrativa virtual com sabor de realidade proporcionada pelo incremento da tecnologia somada sensibilidade humana.

    Referncias

    BRONCKART, J. P. Atividades de linguagem. Textos e discursos. Por um interacionismo scio-discursivo. So Paulo: Educ, 1999.

    CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Pe-trpolis: Vozes, 1999.

    CLANCEY, William J. Situated cognition on human knoledge and computer representation. Cambridge-UK: Cambridge University Press, 1997.

    DOMINGUES, Diana. Criao e interatividade no ciberespao. So Paulo: Experimento, 2002.

    ECO, Umberto. Lector in fabula. Narratologia. So Paulo: Perspec-tiva, 1979.

    HESSE, Hermann. Obstinao. In: O caderno de Sinclair. Rio de Janeiro: Record, 1984.

    SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespao. So Paulo: Paullus, 2004.

    SILVA, Marco. Sala de aula interativa. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

    XAVIER, Antonio Carlos. O hipertexto na sociedade da informao. A constituio de um modo de enunciao digital. Tese (Doutorado) - Campinas, 2002.

    _______. A dana das linguagens na web: critrios para a definio de hipertexto. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, V. Anais... mar. 2007, UFMG, Belo Horizonte (no prelo).

    _______. As tecnologias e a aprendizagem (re)construcionista no s-culo XXI. Hipertextus. Revista Digital, Recife, v. 1, 2007. Disponvel em: http://www.ufpe.br/nehte/revista/artigo-xavier.pdf.

  • Hipertexto, cultura miditica e literaturas populares: o auge das sagas fantsticas

    Eloy Martos Nez

    Introduo

    O livro perdeu j sua posio excludente como objeto central do processo da leitura e, em troca, o texto ampliou--se at conformar uma autntica politextualidade (cf. R. Saint Gelais), um espao hbrido, onde se cruzam, em feliz mestiagem, o mesmo livro (impresso e/ou digital), os tex-tos eletrnicos, os multimdia, filmes, etc.

    Ray Bradbury avisou em seu Fahrenheit 451 sobre os maus tempos para a leitura: uma cultura tendente ao to-talitarismo pragmtico nunca estar contra as telas ou a televiso invasiva, mas, sim, de uma leitura dissidente (Snchez Corral) e, nessa medida, dos clssicos redesco-bertos em cada leitor. Por isso, diante das consignas ou da banalidade, a comunidade de leitores, as pessoas-livro na cena final do livro so uma imagem sugestiva e de grande alcance educativo, pois terminam passeando pelo rio, len-do em voz alta, escolhendo converter-se, por empatia, nes-ta ou noutra leitura.

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    Uma insinuao no menos atual a que subjaz ao El hombre ilustrado (O homem ilustrado) sobre a relao entre a escritura e o nosso corpo, tomado como um livro ou um cdigo a decifrar. De fato, as modernas prticas de piercing, a tatuagem ou o body art so manifestaes que converteram o prprio corpo no leno ou na matria arts-tica. Em nosso caso: a leitura mesma como tema da leitura, como em Bradbury, Cervantes ou Borges, o livro, ou a rede, ou a fabulao como espaos de nosso ser.

    Certamente, a leitura hipertextual, a hiperfico ou os multimdia abrem novas possibilidades e itinerrios (o borgiano jardim de becos que se bifurcam) que devem aglutinar o melhor da tradio literria e a confiana das novas linguagens. Patrick Bazin fala, citando Chartier, de duas consequncias dessa nova situao: a abertura do texto e a dissoluo da fronteira escritor-leitor. Do ltimo, h exemplos fidedignos (a fico mania fanfiction , os chamados escrileitores, etc.) e, quanto abertura, o que est se passando algo similar ao que acontecera ao Li-cenciado Vidriera: teme sempre o estrondo em mil formas e fragmentos, que , de algum modo, o discurso da ps--modernidade.

    Entretanto, diferena do que Sthendal predicara sobre o romance, a literatura no j um espelho ntido que se coloca ao longo da vida; sua imagem j no clara nem transparente, e, sim, desses espelhos de Valle-Incln de Callejn del gato, espelhos encantados que necessitam ser interpretados com a mesma agudeza que o Licencia-do Vidriera aplica aos assuntos que lhe propem. De certa forma, nossa internet est para a leitura assim como esse aleph borgiano, um telescpio imenso e distorcido, que deve ajustar-se, porque ler como graduar algumas lentes.

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    A esse respeito, Max Milner analisou, no livro Fantasma-gora, a influncia dos aparatos ticos que se desenvolve-ram na segunda metade do sculo XVIII sobre a literatura fantstica, e logo nos comeos do cinema; outra anlise ter de ser feita sobre o papel da realidade virtual, dos mundos em 3-D, etc. e sua forma de ampliar o imagin-rio da humanidade nestas ltimas dcadas. Portanto, nin-gum se assombre ao assistir a novos cenrios, tanto nas formas como nos contedos.

    Os sintomas de uma mudana: a narrao serial e outras prticas emergentes de leitura e escrita

    Em sintonia com o indicado anteriormente, so pro-duzidos trs fenmenos concorrentes:

    a) O xito das sagas fantsticas por meio do cinema, dos livros ou da TV significou a revitalizao da narrao serial (a imitao do cinema e da televiso, com precursores, sequelas, etc.). Com isso a nar-rao tornou-se elstica, malevel, pde se reduzir ou alongar segundo o xito da srie e a demanda do pblico, que interage com ela no apenas como consumidor, mas como potencial criador (fanfiction).

    b) O auge da internet e de sua linguagem hipertextual familiarizou o pblico com hiperfices e gerou fe-nmenos de (re)escritura livre, possibilitando, as-sim, uma narrativa no linear e/ou aberta a outros meios no verbais.

    c) Revitalizao do papel ativo do leitor, graas a um mercado crescente e ao auge da internet. Num fe-nmeno de retorno ou feedback, certos leitores cons-

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    tituram grupos de seguidores, foros, comunidades digitais, etc., que chegam a recriar as histrias margem do circuito comercial (fanfiction) ou cele-bram convenes, clubes, etc. Star Trek, Tolkien, Star War, Harry Potter, Laura Gallego, entre ou-tros, so bons exemplos de tudo isso.

    Diramos que a narrao serial e a possibilidade de leitura no lineal so inerentes s sagas modernas, que a partir de um tronco inicial podem desenvolver mltiplos itinerrios narrativos (Bremond), sobre a base do marco comum de um espao (geografia), um tempo (cronologia) e/ou um repertrio de personagens mais ou menos pr-de-senhados, ou seja, traam-se os diversos itinerrios a par-tir de um mundo completo, autoconsistente, que no em vo se corresponde justamente com os mundos fabulados das fantasias infantis (chamados tambm paracosmos fantsticos).1

    Com tudo isso, questionam-se os conceitos clssicos, como a ideia de texto como uma estrutura fechada ou de-limitada. De fato, as sagas expandem-se como chiclete e h trilogias, tetralogias, etc. Tambm est em questo o conceito de autor nico; o normal a escritura algrafa, que deriva dessa propriedade das sagas de promover uni-versos compartilhados. Inclusive, e isso se v nos fanfics, tambm so mutveis outras noes: protagonista princi-pal e personagens secundrios podem mudar seu status em outras sequelas de um mesmo ciclo.

    1 GArCIA rIVerA, G. Paracosmos: las regiones de la imaginacin (los mundos imaginarios en los gneros de fantasa, C&F y terror: nuevos con-ceptos y mtodos). Primeras Noticias, 215, 2004.

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    Da hipertextualidade transficcionalidade. Estudos sobre a cultura meditica e literaturas populares. Sagas e multimdia

    A escola da Universidade de Laval (Canad), que po-demos personalizar, entre outros, em Richard Sainte Ge-lais, de um lado, e os estudos da francesa Anne Besson,2 do outro, situam a pelota no s no telhado da literatura, mas justamente nesse cruzamento de linguagens e supor-tes prprios do sculo XXI.

    So encruzilhadas que j comeam a se delinear no sculo XX, quando Disney anima os contos de Perrault e Grima sua maneira, mas que hoje alcanam sua m-xima expresso nessas sagas onde j no h uma direo nica, como a de novela-pelcula, seno multilateral: a fic-o pode ter se plasmado, inicialmente, num filme, numa srie de televiso, num gibi, numa revista pulp, ou, ultima-mente, num videojogo (por exemplo, Resident Evil), e, da, transitar at outros suportes, como o livro. Com isso, ade-mais, vo as conseguintes adaptaes, que no so simples cpias da verso de origem, mas linguagem que tende a aportar, a complementar-se. o que aconteceu com Matrix, o filme, as revistas em quadrinhos ou os clipes posterior-mente a Animatrix; cada elo desse merchandising explora uma linguagem, mas tambm aporta cadeia de fico.

    Alm disso, a cibercultura est produzindo, de forma cada vez mais intensa, um espao ciberliterrio, que j no depende do suporte livro e que se plasma em hiperfices e novelas interativas que comeam a pulular na rede. Cer-

    2 BeSSOn, Anne. DAsimov Tolkien, cycles et sries dans la littrature de genre, CNRS Editions Littrature, 2004.

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    tamente, as sagas experimentam o que A. Besson chama porosidade at outras linguagens e formatos, como j se passara com Tolkien. Inclusive, indo mais alm, o argu-mento de uma saga serve em seguida para traar jogos de estratgia (videojogos ou jogos de rol), aproveitando a dimenso ostensiva das mesmas, ou seja, da mesma forma que uma lenda d fundamento a um rito (a apario de uma Virgem e uma romaria), as histrias emblemticas destas necessitam ser apropriadas, personalizadas, dra-matizadas de alguma forma por seus leitores mais entu-siastas, e isso o que explica o deslizamento da fico das sagas at os jogos.

    De fato, atualmente no cabe falar de saga como um livro ou uma linguagem nica (o livro de Tolkien, por exem-plo), mas cabe falar de um conjunto ou um continuum de obras (o ciclo, na terminologia de Besson), que no so s literrias, mas que se expandem at as outras linguagens artsticas, como vimos. Conjunto transficcional como de-signa o professor canadense Saint-Gelais, e essa conside-rao do texto em sua continuidade e pluralidade e os vn-culos com esta unidade macrotextual que formaria o ciclo abrem-nos uma perspectiva interessante: o estudo intertex-tual e interdiscursivo. Isso porque o ciclo, em seu conjunto, transcende a cada produto concreto; o ciclo ou a saga uma macro-histria urdida num universo coerente, que, isso sim, pode se expandir em multido de vicissitudes.

    Por outro lado, e desde o ponto de vista intertextual, a considerao dos hipotextos subjacentes a esses textos (principalmente o folclore, mas tambm a mitologia, e a mitologia moderna; por exemplo, a influncia da cultura oriental em sagas como a de Luca Gonzlez) leva-nos a indagar suas fontes no s em primignios padres das sa-

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    gas nrdicas, mas em uma grande variedade de textos e tradies, forosamente multiculturais.

    Novamente, o mito, com todas suas atualizaes, apa-rece como um referente contnuo. E essa recepo renova-da do mito, do conto ou da lenda tradicionais leva-nos a de-terminar a similaridade da (re)elaborao das sagas com a leitura rabnica do midrash, na medida em que a saga se constri, com frequncia, como uma glosa, comentrio ou desenvolvimento das fontes mticas que usa para sua (auto)fundamentao, ou, como diria Gennete, um palimp-sesto, um texto sobrescrito sobre outro texto. Nesse pon-to, no podemos esquecer que a iconotextualidade aparece como um cdigo emergente das sagas, que obedece a uma orientao das mesmas dado seu carter enciclopdico, de mundos completos a fazer convergir signos e onde a imagem, claro, joga um papel no meramente auxiliar, de ajuda visual.

    O primeiro sintoma a importante funo dos para--textos e as portadas nesses livros, que se confirmam quan-do vemos como elementos recorrentes a incorporao de ilustraes, mapas, croquis, rvores genealgicas, que excedem a simples funo informativa para converter-se em algo mais. Da mesma forma que os mandalas, esses signos buscam ativar no leitor um poder de concentrao sobre as distintas mensagens e fios narrativos que se en-trelaam na saga, com o que voltamos novamente ao con-ceito de experincia de Benjamin. A imagem de portada de muitas dessas sagas lembra muito as novelas pulps, por sua simplicidade ou truculncia. No entanto, ajuda a levantar essas arquiteturas mticas com elementos muito fceis, como o drago, o cavaleiro, o castelo de fundo, etc.

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    Nisso tudo, a apario de um leitor massificado tem um papel fundamental, mas tambm de uma classe de lei-tor mais ativo, muito mais diversificado em seus gostos e que, alm disso, no tem uma viso compartimentada das artes, pois pode passar da leitura de um livro assistncia de um filme, ou a jogar, como consolo, algum jogo estrat-gico, e em todos eles, de alguma forma, pode haver mostras da saga preferida, como est acontecendo com O senhor dos anis e tantos outros.

    Os novos contedos. Gneros hbridos

    Hoje evidente que a velha diviso dos gneros no serve inteiramente. Por exemplo, a diviso entre conto, ro-mance curto e romance baseava-se em grande medida na longitude do relato, mas, precisamente, a narrao serial pulverizou esta marca, pois um texto pode se fazer curto (minifico) ou do comprimento que se queira.

    Outro exemplo o que temos aludido como iconotex-tualidade, a fronteira at que a imagem seja cada vez mais lbil, como vemos na passagem do gibi para a novela grfica, onde o texto j no se encapsula nos sanduches, seno tem uma dimenso prpria e concorrente. No entan-to, tambm os contedos esto em contnua redefinio, como blocos de gelo num mar tempestuoso. As categorias de realismo/fantasia esto sendo colocadas em questo, sobretudo, no que se supunha um corte limpo e radical por capas facilmente separveis e classificveis. O mes-mo acontece com os subgneros da literatura fantstica: Ellison teve de inventar o neologismo fico especulativa para encaixar aqueles relatos hbridos que no so apenas fantasia, fico cientfica ou terror, mas uma mistura de-

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    les. O ciberpunk, por exemplo, tambm desafia as catego-rias temticas ao uso.

    A saga, pois, um bom exemplo de narrativa ps-mo-derna, que no se limita ao esquema do relato de espada e bruxaria ou do mito herico, mas que excede esses mol-des e adentra em utopias e distopias, heris e anti-heris, e, em nvel de linguagens, em analgica e digital, como os paracosmos infantis, onde as crianas falam, pintam, escrevem, jogam ou fazem mil coisas com seus mundos inventados. Os adultos tm uma escritura mais cristali-zada, mas a criana capaz, ainda, da politextualidade (Saint-Gelais) e dos universos alternativos com a mesma naturalidade com que toma o ch dos extravagantes perso-nagens de Alicia.

    As sagas, o discurso narrativo das utopias do sculo XXI

    Longe,