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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL CAMPINAS 2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE ...repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/330543/1/...Assim, com base na leitura de algumas obras de Foucault e nos princípios metodológicos

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

    DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA

    CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

    UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

    ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE

    ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

    CAMPINAS

    2017

  • CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

    UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

    ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE

    ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

    Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas

    da Universidade Estadual de Campinas

    como parte dos requisitos exigidos

    para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva

    na área de concentração em

    Política, Planejamento e Gestão em Saúde.

    ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

    DEFENDIDA PELA ALUNA CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

    E ORIENTADO PELO PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

    CAMPINAS

    2017

  • ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

    MEMBROS:

    1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

    2. PROF. DR. DURVAL MUNIZ ALBUQUERQUE JÚNIOR

    3. PROF. DR. TANIELE CRISTINA RUI

    Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências

    Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

    A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

    examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

    Data: 20 de fevereiro de 2017

    [20/02/2017]

    BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

    CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

  • Dedico esse trabalho, todo seu processo, seu tempo e espaço,

    às mulheres que, em devir, pensam, geram, cuidam e

    têm palavras, força e resistência

    para estilizarem esse mundo.

    Em especial, dedico esses escritos para algumas mulheres que

    com suas lutas deram contornos a minha própria batalha:

    Ana, Janete, Carla, Maria Eduarda e Maria Clara.

  • AGRADECIMENTOS

    À minha família, por todo o apoio e compreensão, por apostar sempre em mim e me fazer

    acreditar que eu poderia ir aonde nenhuma de nós ainda havia chegado.

    Aos meus eternos mestres, Marilia Muylaert, Silvio Yasui e Sonia França, com quem aprendi

    a amar a Saúde Mental e a Filosofia da Diferença.

    Aos usuários dos serviços de saúde mental onde trabalhei, por me ensinarem tanto sobre a vida

    e o oficio de cuidar.

    Aos parceiros de trabalho da rede de Saúde Mental de Campinas, em especial, Flora de Paula

    (in memorian), Katu Silva, Ruth Cerejo, Celio Doni, Juliana Souza, Patrícia Bichara, Georgia

    de Sordi, Isa, Emelice Bagnola, Gal de Sordi, Telma Palmieri, Cássia Ramos, Clayton Ramos,

    Sander Albuquerque, Heloisa Amaral, Cláudia Carezzato, Daniel Rigotti e Nayara de Oliveira

    pelo companheirismo e por tantos ensinamentos.

    À toda equipe do CAPS AD Independência e da Unidade de Acolhimento Nise da Silveira, pela

    abertura e garra de invenção no cotidiano presente.

    Ao meu orientador, Sérgio Resende Carvalho, e aos demais companheiros do Coletivo

    Conexões, em especial, ao Bruno Mariane, Ricardo Pena e Ricardo Teixeira, pela generosidade

    e acompanhamento nesse processo de escrita.

    À Margareth Rago, Durval Muniz, Tony Hara pelo carinho com que me acolheram nessas novas

    incursões pela obra de Foucault.

    À Taniele Rui e Emerson E Merhy pelas orientações nas bancas de qualificação e defesa.

    À Ana Godoy, pelo companheirismoanárquico que possibilitou que eu me reconectasse com a

    arte e comigo mesma.

    Aos amigos do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, em especial, Núbia Viana e Márcio

    Melo, por me mostrarem outros trânsitos possíveis pela universidade e pela vida.

    À Aloide Ladeia, Márcia Lutaif, Sara Sgobin, Susilaine Clemente, Márcia André, Marianne

    Herrera, Ana Magri, Bárbara Ferrari, Amaranta Krepischi e Mirs Monstrengo, por todo o apoio

    no trabalho de campo.

    Às minhas queridas amigas Erika Marinheiro, Pérola Lozano, Mariane Nogueira, Elizandra

    Zeulli, Luciana Nogueira, Ana Cristina Vangrelino, Francielly Damas, Elisabeth Zuza, Camila

    Ramos, Bruna Martins Reis e Karina Boin e Karina Morelli pelo amor e pelo colorido especial

    que disseminam na minha vida.

    À toda família Ilesin Ogun Lakaine Osimole, em especial, Baba Toloji, Obade Nunes, Antônio

    Violla Filho, Tomás Cajueiro, Regina Carvalho e Vinnie Fuscaldy por todo cuidado e axé

    compartilhados nos últimos tempos.

  • Escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser;

    escrever é cartografar, eu sou um cartógrafo.

    Gilles Deleuze

  • RESUMO

    Este trabalho pretende compreender como a judicialização enquanto um acontecimento vem se

    efetuando em determinadas práticas de saúde mental na contemporaneidade. Procurou-se

    levantar, a partir de um trabalho teórico-empírico, alguns diagramas de força que compõem as

    relações de poder e saber estabelecidas entre os campos da Saúde Mental e da Justiça,

    indagando sobre o que vem acontecendo em alguns serviços da Rede de Atenção Psicossocial

    do município de Campinas/ SP – Brasil. Para isso, buscou-se produzir diálogos com

    profissionais, usuários e familiares desses serviços, objetivando a apropriação dos

    acontecimentos que têm atravessado o seu cotidiano e que dizem respeito às conexões com as

    práticas jurídicas. O trabalho de campo foi realizado nos serviços de internação psiquiátrica

    acompanhados pela Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso da Secretaria Municipal

    de Saúde de Campinas/SP, onde alguns tratamentos compulsórios foram levantados por meio

    de uma pesquisa de arquivo. É importante ressaltar que todo o acervo do material recolhido ao

    longo do trabalho de campo foi apresentando a partir de certa política de narratividade. Entende-

    se por política de narratividade uma forma de apreensão da dimensão expressiva que atravessa

    as práticas estudadas nessa investigação. Nesse sentido, esse trabalho foi confeccionado como

    uma bricolagem de narrativas; trata-se de uma proposta em que se pretende marcar uma postura

    política de implicação com o debate sobre a produção de formas de verdade e conhecimento

    que atravessam nossa sociedade. Assim, com base na leitura de algumas obras de Foucault e

    nos princípios metodológicos de modalidade genealógica, traçou-se um terreno onde a prática

    discursiva da judicialização foi articulada à medicalização, à psiquiatrização e à normalização.

    Nessa superposição de mapas, notou-se que o diagrama da internação compulsória se conectou

    ao dispositivo-drogas, indicando certos modos de subjetivação que expressam algumas séries

    discursivas que podem ser articuladas às categorias dos anormais na contemporaneidade.

    Considerou-se, portanto, que esse continuum médico-judiciário é um mapa estratégico que

    engendra acontecimentos que marcam significativamente os atuais serviços de saúde mental

    brasileiro. Por fim, é importante ressaltar que a obra da fotógrafa Diane Arbus foi apresentada

    ao longo de todo o texto sempre acoplada às narrativas, uma vez que as fotos dessa artista

    funcionaram nesse trabalho como dispositivos capazes de expressar algumas das regularidades

    que foram apresentadas e discutidas. O método de produção das fotografias produzido por

    Diane Arbus serviu ainda de operador para mover a pesquisa em direção a formas de produção

    de resistência possíveis frente ao cenário apresentado.

    Palavras-Chave: Saúde Pública, Saúde Mental, Psicologia Clínica, Internação Compulsória de

    Doente Mental, Medicalização.

  • ABSTRACT

    We intend in this work to understand how the judicialization as an event is taking place in

    certain mental health practices in the contemporary world. We seek to draw from a theoretical-

    empirical work some force diagrams that compose the relations of power and knowledge

    established between the fields of Mental Health and Justice inquiring about what has been

    happening in some services of the RAPS (Psychosocial Attention Network) in the city of

    Campinas / SP - Brazil. For this, we seek to produce dialogues with professionals, users and

    family members of these services, aiming to appropriate the events that have crossed their daily

    life and that relate to the connections with legal practices. Our field work was also carried out

    with the psychiatric hospitalization services, accompanied by the Sectorial Coordination of

    Access Regulation of the Municipal Health Department of Campinas / SP, where some

    compulsory treatments were collected through a file search. It is important to emphasize that

    the whole collection of the material collected in our field work was composed by us from a

    certain policy of narrativity because we understand that the production of narratives is a way of

    apprehending the expressive dimension that crosses the practices studied in this investigation.

    In this sense, this work was made as a bricolage of narratives. It is a proposal in which we intend

    to mark a political position of implication with a debate about the production of forms of truth

    and knowledge that cross our society. Thus, based on the reading of some works by Foucault

    and the methodological principles of genealogical modality, we draw a ground where the

    discursive practice of the judicialization was articulated to the medicalization, the

    psychiatrization, and the normalization. In this overlapping of maps, we noticed that the

    diagram of compulsory hospitalization was connected to the device-drugs indicating certain

    modes of subjectivization that express some discursive series that can be articulated to the

    categories of the abnormal ones in the contemporaneity. We consider, therefore, that this

    medical-judicial continuum is a strategic map that engenders events that significantly mark the

    current Brazilian mental health services. Finally, it is important to note that the work of the

    photographer Diane Arbus has been presented throughout the text always coupled with the

    narratives, as we consider that the photos of this artist are devices capable of expressing some

    of the regularities discussed throughout the work. The method of producing the photographs

    created by Diane Arbus has also served as an operator to move us towards possible forms of

    resistance production in front of the presented scenario.

    Key Words: Public Health, Mental Health, Clinical Psychology, Compulsory Internment of

    Mentally Ill, Medicalization.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957. 14

    Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland, 1964. 18

    Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970. 19

    Figura 4 - Intitled. 1970-1971. 24

    Figura 5 - Intitled. 1970-1971. 26

    Figura 6 - Intitled. 1970-1971. 30

    Figura 7 - Intitled. 1970-1971. 33

    Figura 8 - Intitled. 1970-1971. 39

    Figura 9 - Person Unknown, City Morgue, Bellevue Hospital. 45

    Figura 10 - Jorge Luis Borges in Central Park, N.Y.C. 1969. 47

    Figura 11 - Intitled, 1970-1971. 54

    Figura 12 - A child crying, N. J. 1967 59

    Figura 13 - Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C.1962. 65

    Figura 14 - Two boys smoking in Central Park, N.Y.C. 1962. 71

    Figura 15 - Diane with Doon and Amy, N. Y.1956. 77

    Figura 16 - Os arquivos, Campinas, 2016. 86

    Figura 17 - Headless woman. 1961. 87

    Figura 18 - Woman at a conter smoking, N.Y.C. 1962. 91

    Figura 19 - Superstar at home, N. Y. C. 1968. 92

    Figura 20 - Albino sword swallower at a carnival, Md. 1970. 100

    Figura 21 - Albino sword swallower and her sister, Md. 1970. 101

    Figura 22 - The legendary blind beggar, standing at his regular post, 1961.

    Figura 23 - Happy Birthday. 112

    Figura 24 - The house of horrors, Coney Island, N. Y. 1961 130

    Figura 25 - Brenda Frazier, 1961. 131

    Figura 26 - Child in a nightgown, Wellfleet, Mass. 1957 137

    Figura 27 - A flower girl at a wedding, Conn. 1964 138

    Figura 28 - A Young Brooklyn Family going for a Sunday outing. N.Y. 1966 142

    Figura 29 - Sem título. 143

    Figura 30 - Fire Eater at a carnival, Palisades Park, N. J. 1956. 160

    Figura 31 - Tattooed man at a carnival, Md. 1970 164

  • Figura 32 - Woman with eyerliner, N.Y.C. 1964 165

    Figura 33 - A Puerto Rican woman with a beauty mark, N.Y.C. 1965 171

    Figura 34 - A young man in curlers at home on West 20th Street, N.Y.C. 1966

    Figura 35 - Untitled (42). 1970-1971 177

    Figura 36 - Identical twins, Roselle, N.J. 1967 180

    Figura 37 - The Human Pincushion, Ronald C. Harrison, N. J. 1962 184

    Figura 38 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (1), Campinas. 2016 190

    Figura 39 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (2), Campinas. 2016 191

    Figura 40 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (3), Campinas. 2016 192

    Figura 41 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (4), Campinas. 2016 193

    Figura 42 - A Jewish giant at home with parentes in the Bronx, N. Y. 1970 195

    Figura 43 - Girl in her circus costume, Md. 1970 196

    Figura 44 - Feminist in her hotel room, N.Y.C. 1971 206

    Figura 45 - Sem título. 211

    Figura 46 - Russian midget friends in a living room on 100 th Street, N. Y. C. 1963 214

    Figura 47 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (5), Campinas. 2016 230

    Figura 48 - Intitle. 1970-1971 231

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    RAPS – Rede de Atenção Psicossocial

    CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

    CAPS III – Centro de Atenção Psicossocial 3 (24h)

    CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas

    CAPS-i – Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil

    CNR – Consultório na Rua

    CECO – Centro de Convivência e Cultura

    SRT – Serviços Residenciais Terapêuticos (Moradias)

    UAA – Unidade de Acolhimento Adulto

    UBS – Unidade Básica de Saúde (Centro de Saúde/ Posto de Saúde)

    SAMU – Serviço de Atenção Médica de Urgência

    UPA – Unidade de Pronto Atendimento (Pronto Socorro)

    SMS – Secretaria Municipal de Saúde

    COSEMS – Conselho de Secretários Municipais

    DS - Distrito Sanitário

    CRAS – Centro de Referência da Assistência Social

    CT – Conselho Tutelar

    FC – Fundação Casa (Fundação para Menores)

    GM – Guarda Municipal

    DP – Defensoria Pública

    CID 10 – Classificação Internacional de Doenças

    CRM – Conselho Regional de Medicina

    AIDS (HIV-AIDS) – Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida.

  • SUMÁRIO

    1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO .................................................16

    2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS ................................................................26

    2.1 O CENÁRIO.........................................................................................................28

    2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS...............................................................31

    2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES ........................................................................34

    2.4 OS ARQUIVOS ...................................................................................................41

    2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS .............................................................................48

    2.5.1 Série 1 - Espaços de indiferença ..................................................................50

    2.5.2 Série 2 - Terrenos obstruídos .......................................................................57

    2.5.3 Série 3 - Zonas de destruição .......................................................................62

    2.5.4 Série 4 - Solos insubordináveis ....................................................................68

    2.5.5 Série 5 - Sinais que vão para a rua ...............................................................74

    2.5.6 Série 6 - As fronteiras da maternagem .........................................................80

    2.6 CONVERSAÇÕES SOBRE OS ARQUIVOS.......................................................87

    3 DA INDIGNIDADE DE FALAR PELOS OUTROS .................................................90

    3.1 O DOSSIÊ ...........................................................................................................93

    3.1.1 Paisagens mutantes .......................................................................................94

    3.1.2 Sob os trilhos de uma montanha russa .....................................................104

    3.1.3 O processo ....................................................................................................116

    3.1.4 Trechos de uma história institucional ........................................................134

    3.1.5 Uma nômade no deserto ..............................................................................141

    3.2 NOTAS SOBRE O DOSSIÊ ANA FERRAZ ......................................................146

    3.2.1 Nota Um – Uma genealogia dos anormais .................................................148

    3.2.2 Nota Dois - Estados anormais no contemporâneo: o uso de álcool e outras

    drogas como agente disparador do jogo da normalização ........155

    3.2.3 Nota Três - A coragem de Ana ....................................................................161

    4 OS PIROTÉCNICOS ............................................................................................164

    4.1 SÉRIE A - COMBATES DESORDENADOS .....................................................168

    4.1.1 O apelo in-provável ......................................................................................169

    4.1.2 O real da solidão ...........................................................................................175

  • 4.2 SÉRIE B - GUERRILHAS COTIDIANAS ...........................................................180

    4.2.1 Um novo no discurso da Saúde Mental .....................................................181

    4.2.2 Os semblantes das diferenças ....................................................................184

    4.2.3 A cultura de amassar o barro ......................................................................188

    4.3 SÉRIE C - BATALHA ENTRE GIGANTES ........................................................199

    4.3.1 Uma testemunha ocular ...............................................................................200

    4.3.2 Um silenciamento quase invisível ..............................................................210

    4.3.3 A paralisação ................................................................................................215

    4.4 NOTAS SOBRE OS PIROTÉCNICOS ..............................................................218

    4.4.1 Um discurso intoxicado ...............................................................................219

    4.4.2 Os regimes de verdade e a psiquiatrização das condutas .......................223

    4.4.3 Uma história dos pirotécnicos ....................................................................232

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................235

    5.1 POST-SCRIPTUM SOBRE A GENEALOGIA DOS ANORMAIS ......................242

    6 REFERÊNCIAS ....................................................................................................250

    7 APÊNDICES..........................................................................................................257

    8 ANEXOS ..............................................................................................................263

  • UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS

    SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE ATRAVESSAM A

    REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

    Untitled (6), 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus, D. 2003. p. 115

    http://images.search.yahoo.com/images/view;_ylt=AwrB8pKFODBUL2EANUWJzbkF;_ylu=X3oDMTIzZzVpZnJhBHNlYwNzcgRzbGsDaW1nBG9pZAMxYjFkZTRhZGU1MmViNmRmMTYzN2U1YWM0YWEzNzU0NARncG9zAzI2BGl0A2Jpbmc-?back=http://images.search.yahoo.com/yhs/search?_adv_prop=image&va=Diane+Arbus&fr=yhs-adk-adk_sychp&hsimp=yhs-adk_sychp&hspart=adk&preview=1&tab=organic&ri=26&w=1056&h=1064&imgurl=oracoolblog.files.wordpress.com/2012/10/diane-arbus-18.jpg&rurl=http://oracoolblog.wordpress.com/2012/10/19/diane-arbus-maestra-tragismului/&size=541.0KB&name=Diane+Arbus+%E2%80%93+maestra+tragismului&p=Diane+Arbus&oid=1b1de4ade52eb6df1637e5ac4aa37544&fr2=&fr=yhs-adk-adk_sychp&tt=Diane+Arbus+%E2%80%93+maestra+tragismului&b=0&ni=21&no=26&ts=&tab=organic&sigr=12c6ktecu&sigb=14ot5dtvi&sigi=11q9jrbur&sigt=11a33rdpc&sign=11a33rdpc&.crumb=Yl277ctzVqQ&fr=yhs-adk-adk_sychp&hsimp=yhs-adk_sychp&hspart=adk&preview=1

  • 16

    1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO

    Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (1 p30).

  • 17

    Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

    As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue

    e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

    prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer.

    Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.

    Carlos Drummond de Andrade

  • 18

    Esta dissertação procura narrar uma espécie de jogo tecido entre as práticas jurídicas e

    o campo da saúde mental. Considero-a como um jogo porque, no seu desenrolar, vamos nos

    deparar com mudanças de posição, modificações de funções, variação das regras, enfim, com

    diferenças e heterogeneidades. Dessa forma, apresentaremos alguns pontos de atrito, tensão e

    vizinhança encontrados entre esses discursos (1).

    Ao longo do percurso, mostrarei como certas práticas desenvolvidas em campos a

    princípio separados como a saúde e a justiça chegaram a formar conjuntos discursivos

    estratégicos capazes de participar ativamente da constituição dos discursos médico e

    psiquiátrico e da fabricação dos modos de subjetivação anormais.

    Dessa forma, será possível acompanhar a trajetória da construção de uma pesquisa que

    partiu do campo problemático da judicialização e se desdobrou numa discussão sobre a

    normalização. A judicialização, portanto, não foi tomada nesse estudo como uma estrutura

    conceitual fixa, mas, sim, como um acontecimento singular que foi sofrendo transformações,

    rupturas, descontinuidades, repetições e reativações ao longo do tempo (2). Segundo Foucault

    (3), o que permanece regular em um problema não é o objeto em si, tampouco os domínios por

    ele formados, nem mesmo seu ponto de emergência ou modo de caracterização. O objeto não

    preexiste a si mesmo, ele só existe mediante um conjunto singular de relações que estão no

    limite dos discursos.

    Com isso, é importante ressaltar que a própria temática da pesquisa foi sendo

    reinventada no decorrer do seu desenvolvimento, na medida em que fui me conectando com o

    material recolhido ao longo do trabalho de campo, bem como com conceitos tais como a

    medicalização e a psiquiatrização.

    O ponto de partida tomado para esse estudo foi às internações e tratamentos

    compulsórios em saúde mental, uma vez que a temática da judicialização está mais associada,

    no campo da Saúde Mental, com as determinações judiciais de tratamento compulsório.

    Segundo os profissionais de rede, as internações compulsórias distorcem os princípios

    de tratamento oferecidos pelos serviços preconizados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira que

    valorizam a espontaneidade e voluntariedade do tratamento como direitos dos seus usuários.

    Por outro lado, como trabalhadora de uma rede de Saúde Mental, tive oportunidade de

    presenciar discussões de caso em que alguns colegas faziam uma espécie de apelo às praticas

    jurídicas. Esses profissionais apostavam que o sistema judiciário era uma alternativa pertinente

    para solucionar a condução desses casos. Contudo, não estamos falando de um caso qualquer.

    Esse tipo particular de caso tem como uma de suas características mais visíveis o fato de

  • 19

    desafiar a capacidade de intervenção das equipes e os alcances das formas de tratamento

    propostas por esses serviços. Assim, o que foi se evidenciando ao longo do estudo é que as

    problemáticas que esses casos apresentam não apenas tocam o campo da Saúde Mental, mas

    vão muito além do que ele é capaz de abranger.

    Nesse sentido, é importante ressaltar que o campo da Saúde Mental será tratado aqui

    como um modo de conhecimento cujas linhas de força estão em constante tensão e

    atravessamento com outros campos entre eles o da Saúde Coletiva. Portanto, ao longo de todo

    trabalho esses territórios de saber serão postos em diálogo, uma vez que considerarmos que

    esses campos articulam um plano de composição possível para a elaboração dessa investigação

    (4).

    Desse modo, a constatação de uma espécie de regularidade presente em uma série de

    situações que eu vivenciava como trabalhadora foi me conduzindo para a investigação dessa

    problemática. Eu não sabia exatamente o porquê, mas algo me fazia inferir que aquilo que eu

    observava como trabalhadora era bem mais complexo do que o que conseguia trocar com meus

    pares e isso era algo que passou a me incomodar. Intuía que havia uma série de elementos no

    processo de fabricação desses acontecimentos que permanecia sob o efeito de um campo de

    invisibilidade e indizibilidade que me instigavam a uma espécie de exploração.

    A seguir, apresentarei, então, uma história. Trata-se de uma narrativa que construí sobre

    uma paciente que tive a oportunidade de acompanhar no decorrer da minha trajetória

    profissional. Acredito que compartilhar essa história pode ser importante para que o leitor

    compreenda melhor o que me levou a desenvolver esse estudo.

  • 20

    A história de uma mulher que tinha um tesouro escondido

    Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland. 1964

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (2 p171).

  • 21

    Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970.

    Fotografia: Diane Arbus. Fonte: Arbus (3 p91).

  • 22

    O que você faria se fosse encarregada de cumprir um mandato judicial de internação

    compulsória de uma senhora de 58 anos?

    Na visita que organizamos para conhecer Dona Maria junto com a equipe de Saúde da Família

    de uma Unidade Básica de Saúde a encontramos sentada no sofá da sala, não havia mais

    ninguém em sua casa, exceto seu cachorro. O marido falecera há dois anos, a filha foi embora

    de casa com um “namorado traficante” e o filho faz uns bicos durante o dia e costuma voltar

    tarde, geralmente alcoolizado.

    Dona Maria está só e sorri quando me apresento para ela. Tem um sorriso que marca a gente,

    daqueles que se expandem por todo o rosto e fazem os olhos brilhar. Dona Maria me faz pensar

    na minha avó. Como eu poderia internar alguém como a minha avó em um Hospital

    Psiquiátrico baseando-me nos motivos pelos quais ela seria internada?

    A internação compulsória de Dona Maria foi solicitada por um juiz que interpretou o pedido

    de abrigamento, feito pela equipe de Saúde da Família, como “um pedido de internação em

    Hospital Psiquiátrico”. Talvez porque Dona Maria tomava uma ampola de Haldol injetável

    por mês ou porque tinha um carimbo anterior de internação psiquiátrica na sua história de

    vida?

    Para a equipe de Saúde da Família, Dona Maria precisava de abrigamento, pois não tinha um

    cuidador em sua casa. Ela tomava seus remédios irregularmente, não se alimentava

    adequadamente, e isso fazia com que sua hipertensão e diabetes ficassem piores a cada dia. A

    equipe se preocupava muito com ela, visitavam-na regularmente e se indignavam com o que

    estava lhe acontecendo. Chegaram a tentar uma parceria com o CAPS do território, mas

    naquele momento a discussão não rendeu muita coisa.

    Pela situação social de Dona Maria, eu já sabia que se ela fosse internada dificilmente sairia

    de lá. Em pouco tempo viraria mais uma moradora do hospital, como outros que conheci –

    abandonados pelas famílias, esquecidos pela sociedade, sem qualquer rede ou suporte exterior.

    Enfim, sem um fora que acolha suas formas de vida. Para Dona Maria esse seria um provável

    caminho sem volta.

    Agora, imagine você com as chaves das portas de um manicômio em uma das mãos e na outra

    um mandado de internação do juiz, o que mesmo você faria? Como exerceria o “poder de fazer

    viver e deixar morrer”? Algo que talvez Foucault (5) nos perguntasse ao ouvir essa história.

    Eis as peças de um tabuleiro montado: a vida vulnerável de Dona Maria, as previsões médicas

    ruins para o seu futuro, um juiz piedoso no seu tribunal, alguns agentes da lei, outros da saúde

  • 23

    pública, todos executando o seu trabalho cotidiano. Eis um tabuleiro armado indicando que o

    jogo podia enfim começar.

    Mas que tipo de jogo é esse? É o jogo de judicializar uma vida. Certamente não existe esse tipo

    de intenção sobre uma vida qualquer. Trata-se de uma vida bem definida, aquela que mobiliza

    uma série de pessoas que estão do lado de fora dela.

    Mas quando a adentramos, encontramos uma vida desinteressada por aquilo que a rodeia, uma

    vida alheia às normas sociais, padrões de conduta e níveis de saúde. Uma vida que acontece

    quase sempre em um sofá.

    Dona Maria não parecia se importar com o futuro, demonstrava apenas certa preocupação

    com o que estava se passando com a filha desaparecida. Ironizava as palavras do médico que

    dizia que ela corria risco de morte se não tomasse os seus remédios.

    No mínimo intrigante tudo aquilo que se passava naquela sala, especialmente quando pensava

    que, do lado de fora, um batalhão de responsáveis sanitários e legais se articulavam para

    decidir o seu destino, sem quase nada saber sobre o que realmente se passava naquele sofá.

    Cobraram-me agilidade no processo, pois cada dia que não cumpríssemos a tal Ordem Judicial

    custaria ao Estado o pagamento de uma multa altíssima. Meu trabalho, em um instante,

    tornara-se alvo direto de intervenção dos gestores e advogados “do nível central”. Chamaram-

    me para uma reunião. Assim acrescentamos mais uma peça ao tabuleiro: a vida que se

    transforma em produto do capital. Não há tempo, temos que intervir!

    Alguns dias depois, volto a encontrar Dona Maria, agora em outro sofá. Lembro-me mais uma

    vez da minha avó e sinto a punhalada que muitas vezes é trabalhar em uma Rede de Atenção

    Psicossocial. Afinal, como podemos agir em defesa de uma sociedade sem manicômios numa

    sociedade que ainda os deseja ardentemente?

    Abraço Dona Maria e digo-lhe como é bom poder reencontrá-la. Ela então me sorri e pergunta

    se eu era a pessoa que a levaria até o seu tesouro? “Você sabia né menina que eu tenho um

    tesouro guardado em algum lugar”? Os olhos de Dona Maria então reluziram. Acontecera

    algo ali que me fez entender que ainda havia alguma coisa nessa vida tão complicada que

    ainda fazia muito sentido.

    No CAPS, sentada na sala de TV junto com alguns outros usuários e profissionais, pensei que

    ali, muito possivelmente, ela encontraria alguém capaz de acolher a sua história. A história de

    uma mulher que tinha um tesouro escondido.

    Talvez Dona Maria nunca venha a dimensionar o quanto eu e mais alguns parceiros de

    trabalho lutamos e tentamos articular toda uma rede de forças, composta de pessoas e serviços,

  • 24

    para que ela pudesse estar sentada ali, naquele sofá de couro preto, e não no de cimento frio

    de um hospital qualquer.

    E aqui termina a parte em que a história de Dona Maria se cruzou com a minha, que pouco

    tempo depois também foi deslocada para atender as novas normas e padrões legais. Mas, de

    tempos em tempos, do outro lado da cidade, chegam-me algumas notícias dela...

    O contato com a vida de Dona Maria e sua trajetória de tratamento na rede pública de

    saúde me levou a construir a seguinte questão: o que será que está acontecendo conosco? Por

    que será que esses casos nos mobilizam tanto e nos levam a apelar para as práticas jurídicas se

    temos tantas ferramentas potentes de trabalho na Saúde Mental?

    Tomar essas situações como acontecimentos e fazer aparecer os espaços onde eles se

    davam foi à estratégia que encontrei para tentar compreender o que se passava comigo e com o

    meu corpo de trabalhadora imerso no processo de transformação de uma rede de saúde. Era

    extremamente necessário para mim tentar compreender que práticas eram essas que levavam

    todos nós, trabalhadores daquela rede de Saúde Mental, a escorregar nos nossos próprios

    preceitos, como se essas situações fossem cascas de banana.

    A partir da noção de acontecimentalização elaborada por Foucault (6), passei a olhar

    para os casos como o de Dona Maria como séries compostas de múltiplos processos que, no

    seu desenrolar, se conectaram e se dispersaram das práticas jurídicas e das práticas de Saúde

    Mental. Nesse sentido,

    [...] A acontecimentalização consiste em reencontrar as conexões, os

    encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, que,

    em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como

    evidência, universalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa

    maneira, procedemos, na verdade, a uma espécie de desmultiplicação

    causal (6 p339).

    O caso de Dona Maria me fez experimentar como elementos do discurso jurídico,

    médico e psiquiátrico eram facilmente naturalizados dentro de nosso universo de trabalho.

    Tratava-se de discursos que se organizavam de certo modo, com o intuito de demonstrar um

    tipo de verdade que não condizia com sua experiência real.

    Isso me fez apreender a maneira pela qual a prática que envolve um processo de

    internação compulsória é composta de uma variedade de processos e de indivíduos anônimos

  • 25

    que organizam esse regime de enunciação e tentam falar por meio dele, sem que para isso se

    estabeleçam formas de comunicação entre si.

    Para me aproximar dessa prática, optei por realizar contatos diversificados com os

    acontecimentos que a materializavam. Fiz entrevistas com usuários, profissionais e familiares

    e adentrei os espaços de internação por meio de uma proposta de pesquisa de arquivo. Além

    disso, procurei divulgar entre meus colegas a pesquisa que estava realizando, pedi que me

    convidassem para debates sobre o tema da judicialização e discussões de casos judicializados

    que acontecessem em seus serviços. Esse material híbrido se consolidou nesse mosaico de

    elementos que procurarei compartilhar ao longo de toda a dissertação.

    Acredito que o material aqui apresentado é, sobretudo, um efeito de um jogo que se

    desenrolou durante toda a pesquisa (1). É possível que o leitor experimente certo incômodo no

    transcurso da sua leitura, pois, ao adentrar esse jogo, percorrerá não apenas regiões

    obscurecidas, mas um campo muitas vezes incerto, composto por conflitos fabricados entre

    sujeitos, instituições e processos de trabalho.

    Assim, procurei propiciar ao leitor um modo de acesso à experiência de mergulhar nesse

    terreno, muitas vezes caótico, atravessado por embates e disputas. De outra parte, considero

    que esse trabalho também se tornou um acontecimento, no sentido em que possibilitou que eu

    fosse transformando meu território existencial de trabalhadora do SUS em um terreno fértil de

    criação da pesquisadora que hoje me habita. Portanto, é esse acontecimento rizomático1 que

    agora ponho, por meio desse texto, sob o signo do conhecer.

    Nesse momento, convido então o leitor a se aproximar um pouco mais desse cenário.

    Minha proposta é que juntos façamos um sobrevoo por nosso campo de investigação

    explorando por meio do contato com alguns dos seus elementos um cenário que chamei de

    “Cidade Invisível”. Tomando como inspiração Itálo Calvino (8), a descrição dessa Cidade

    Invisível tem como objetivo apresentar o território onde essa investigação se passará,

    compreendendo esse cenário como um fato histórico e não como um mero espaço

    administrativo.

    Aliás, vocês estão prontos para iniciarmos essa expedição? Podemos começar?

    1 Por rizomático entendemos “ diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer

    com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele

    põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos O rizoma não se deixa reconduzir

    nem ao Uno nem ao múltiplo (...) Ele não é efeito de unidades, mas dimensões, ou antes de direções movediças.

    Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda(7 p32 ).

  • 26

    2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS

    Figura 4 - Intitled. 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (4 p290).

  • 27

    Em consequência de graves traumatismos, às vezes mesmo por um nada,

    o caminho se bifurca e um personagem novo, sem precedente,

    coabita com o antigo e acaba tomando o seu lugar.

    Um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado,

    cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta.

    Uma forma nascida do acidente, nascida por acidente,

    uma espécie de acidente. Uma estranha raça.

    Um monstro cuja aparição nenhuma anomalia genética permite explicar.

    Um ser novo vem ao mundo uma segunda vez,

    vindo de uma vala profunda aberta na biografia.

    .

    Malabou

  • 28

    2.1 O CENÁRIO

    Figura 5 - Intitled. 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (5).

  • 29

    A Cidade Invisível teve lá sua fama na Saúde Pública e na Saúde Mental. A proporção

    com que conseguiu expandir os serviços de saúde por todo seu território é uma de suas marcas.

    Esse foi um dos fatores que fez com que a cidade conseguisse se diferenciar de grande parte

    das outras. Chegou, inclusive, em certos momentos, ao “atrevimento” de fazer arranjos

    diferentes dos preconizados pelas normativas federais. Mesmo com essa ousadia, serviu de

    inspiração para a fabricação de outras normativas que hoje orientam o funcionamento de alguns

    serviços, em especial, os de saúde mental.

    Foi um momento de muita força e criação. Muitos de nós, estudantes e militantes da

    Reforma Sanitária e Psiquiátrica, seduzidos por tudo que ouvíamos falar sobre a rede de saúde

    da Cidade Invisível, nos mudamos para essa cidade. Eu fui uma delas. Vivemos momentos

    memoráveis, daqueles em que não restavam dúvidas de que se está fazendo parte de uma grande

    história. Eram horas de exercício de construção coletiva. Rodas enormes e debates quentes.

    Disputávamos, nos mínimos detalhes, as estratégias de atenção e os modelos de cuidado em

    pauta. Certa vez, ouvi de trabalhadores de outras cidades que éramos prepotentes demais.

    Mas, com o passar do tempo, esse clima se deslocou. O objeto das disputas deixou de

    ser “o melhor modelo de saúde pública e saúde mental do país” para ser “a rede de saúde mental

    que deve se enquadrar nas normativas”. Era como se tivéssemos sido transportados de uma

    paisagem típica da primavera para um ambiente desértico e quase inóspito.

    O fato é que, naquele momento, os gestores alegavam que havia determinações claras

    dos setores judiciais de que os modos de funcionamento da rede pública de saúde da Cidade

    Invisível não eram condizentes com as normatizações vigentes. Inclusive uma das leis que regia

    o trabalho na área da saúde foi julgada como incoerente, pois esta só existia na Cidade Invisível

    e não se ajustava às outras leis municipais, estaduais, nem federais.

    As forças de toda essa rede de invenções foram sendo direcionadas para outros

    caminhos. Era preciso, naquele momento, se haver com os “atrevimentos” e trabalhar para que

    eles fossem revertidos em normativas. O que outrora era concebido como ferramenta de

    potencialização daquela rede viva aos poucos foi sendo considerado enquanto incoerências do

    sistema. Nesse processo, fomos sendo encurralados por algo que ainda estava obscuro para nós.

    Muitas coisas começaram a mudar de lugar. Um grande deslocamento de pessoas,

    coisas, espaços, serviços passou a acontecer para tentar que nos ajustassem às normas. As

    grandes rodas de conversa passaram a ter como foco as mudanças que se engendraram com

    todo esse processo em curso e não mais os modelos de cuidado em saúde. Muitos de nós,

    desgastados, nos mudamos da cidade, em busca de outros locais potentes de trabalho.

  • 30

    Restava pouca energia e disposição para discutir as especificidades de nossas práticas.

    Pouco se ouviam vozes empolgadas com a criação de algo novo – naquele momento, não havia

    mais muito espaço para novidades. Entramos em um estado em que a luta era para garantir a

    conservação do que havíamos conquistado. E desse processo ainda pouco se sabe o que será

    que será...

    Concomitantemente a essa reformulação do modelo de gestão da rede pública de saúde,

    a expansão do processo de normalização também atravessou o campo de nossas práticas

    clínicas. Essa dinâmica de funcionamento me levou a pensar mais intensamente nos processos

    de internação compulsória, pois o modo como experimentávamos essas ações jurídicas me

    remetia à forma como estávamos lidando com os processos de normalização que se

    capilarizavam, naquele momento, por toda a rede.

    O modelo da compulsoriedade associada às internações agora também nos remetia, de

    certa maneira, a algo que todos nós trabalhadores vivenciávamos no cotidiano do nosso

    trabalho. Penso que foi esse processo que me conduziu para o tema dessa pesquisa. Nesse

    sentido, tentar devolver uma existência possível à heterogeneidade de vidas submetidas às

    estratégias de tratamento compulsório talvez tenha sido a forma que encontrei para tentar

    resistir ao que estava experimentando.

    Segundo Deleuze é a partir das lutas de cada época, do estilo de lutas de uma sociedade

    que podemos compreender o que se passa no seu conjunto. É preciso partir de um mapeamento

    dos seus diagramas para tentar acessar essa máquina que fabrica a realidade do vivido (9).

    Procurei então deixar meu corpo ser guiado para a experimentação de tais

    acontecimentos e assim fui adentrando o espaço das internações compulsórias como alguém

    que busca se surpreender com aquilo em que se depara. A prática das internações compulsórias

    foi tomada, portanto, como um diagrama que atravessa o terreno das internações psiquiátricas.

    Um espaço que expressa esse não-lugar onde certas vidas que foram marcadas pelos processos

    de psiquiatrização e judicialização passavam a habitar. Vidas que eram silenciadas para que

    algo que era exterior a elas pudesse ser visto e falado (10).

    Na próxima sessão desse capítulo vou tentar narrar um pouco dessa experimentação e

    espero que ao acompanhá-las o leitor também possa experimentar algo desse estranhamento no

    seu próprio corpo. Está preparado? Vamos lá?

  • 31

    2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS

    Figura 6 - Intitled. 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Pinterest.

  • 32

    Hoje em dia, para se conseguir uma vaga de internação psiquiátrica pelo SUS na Cidade

    Invisível, não basta que a pessoa concorde em se internar, é necessário que um serviço de saúde

    a solicite. Depois disso, essa solicitação tem que ser avaliada e aprovada pelo médico regulador

    da Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso. Só então se consulta os hospitais para saber

    se há vagas disponíveis.

    Quando entrei em contato com essa Coordenadoria, fui informada de que não havia na

    Cidade Invisível uma sistematização específica das internações compulsórias reguladas entre

    os anos de 2012 a 2014.

    Em conversas com profissionais da rede de saúde, obtive a informação de que uma

    equipe de gestão da Secretaria Municipal de Saúde vinha tentando implantar um fluxo para

    internações compulsórias um pouco diferente das demais modalidades de internação

    psiquiátrica. Essa equipe havia passado a concentrar os pedidos de internação compulsória.

    Desta forma, os mandados de internação, que eram dirigidos para a Secretaria de Saúde,

    passaram a ser respondidos em primeira instância por esse grupo de gestão.

    Nessa primeira resposta, essa equipe se baseava no artigo 6º da Lei nº 10.216, que diz:

    “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que

    caracterize os seus motivos” (11). Assim, preparavam um relatório no qual diziam que,

    primeiramente, providenciariam um laudo médico sobre o caso judicializado e, mediante as

    indicações do laudo, procederiam ao pedido de internação compulsória.

    Nesse fluxo, o mandato judicial era então encaminhado para o Distrito Sanitário

    responsável pelo território onde o paciente que devia ser submetido à internação compulsória

    vivia. Ao receber esse documento um profissional da equipe do Distrito Sanitário, intitulado de

    apoiador, por sua vez tinha que realizar articulações com os serviços de referência, no sentido

    de providenciar o laudo médico. Com o laudo em mãos, a equipe de gestão da Secretaria de

    Saúde dava então continuidade ao processo, notificando o judiciário sobre os futuros

    encaminhamentos a cerca do pedido de internação compulsória.

    Apesar de esse fluxo estar funcionando nessa rede de saúde mental, alguns processos

    ainda escapavam e eram remetidos diretamente para os serviços de saúde mental que atendiam

    os pacientes. Isso acontecia principalmente nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial2).

    Nesses casos, muitas vezes a condução do pedido de internação compulsória em geral ficava a

    2 Os Centros de Atenção Psicossocial são os pontos da Rede de Atenção Psicossocial especializada constituídos

    por equipes multiprofissionais que atuam sob a ótica interdisciplinar e realizam atendimento às pessoas com

    transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e

    outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo (12).

  • 33

    cargo dessas equipes. Ou seja, cabia a elas decidir se iriam acatar ou contrapor à solicitação

    judicial.

    Quanto a esses desvios no fluxo determinado para as internações compulsórias, até

    aquele momento, não foi encontrado nenhum consenso entre os profissionais da rede sobre uma

    posição a se adotar acerca dos pedidos de internação compulsória. Alguns profissionais

    entendiam que, por se tratar de uma Ordem Judicial, cabia ao serviço cumprir o mandado, outros

    apostavam na estratégia de enviar relatórios e problematizar os pedidos de internação com o

    judiciário. Ainda encontramos aqueles que tentavam realizar alguma articulação com os

    profissionais da Defensoria Pública para mediar o pedido de internação compulsória expedido.

    Não se deve esquecer que essas medidas eram tomadas, geralmente, nas internações

    compulsórias que foram solicitadas por familiares ou responsáveis, mas outras modalidades de

    internação compulsória foram encontradas nesse estudo. Estamos nos referindo às internações

    que foram solicitadas pelas próprias equipes de saúde e/ou de assistência social, Conselho

    Tutelar e Penitenciárias. Essas costumam ser conduzidas de outra maneira, tanto pela rede de

    saúde como pelo sistema judiciário. Dificilmente são questionadas.

    Além disso, se fazia necessário considerar que, no Brasil, a internação compulsória “por

    tempo indeterminado e em estabelecimento correcional adequado” foi uma das primeiras

    medidas estatais de repressão ao uso de drogas, datando da década de 1920. Até a década de

    1970, as políticas voltadas para essa área (Lei nº 6.368 de 1976) continuavam se referindo à

    questão do uso de drogas como um problema jurídico e as ações de saúde voltadas para as

    pessoas que faziam uso de drogas eram tratadas como uma medida secundária, dando-se,

    principalmente, por meio de práticas repressivas realizadas em regime de internação hospitalar

    (93, 94).

    Com tantas especificidades e formas diferentes de funcionamento, pode-se constatar que

    construir um mapeamento das internações compulsórias não foi uma tarefa simples. Não havia

    nenhum banco de dados inicial de onde eu podia partir. Procurar os Hospitais para tentar acessar

    os seus arquivos foi à alternativa encontrada para iniciar essa expedição.

    Assim, parti ao encontro dos mesmos. Você me acompanha?

  • 34

    2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES

    Figura 7 - Intitled (28). 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: KMS Fine Art Group (7).

  • 35

    Em dois pontos extremos da cidade, encontravam-se os Hospitais onde fui buscar

    informações sobre as internações compulsórias realizadas na Cidade Invisível. Foram dois

    caminhos diferentes que procurei compor no decorrer “dessa expedição pelos arquivos”.

    O pedido inicial de autorização para o trabalho de campo se deu diretamente na

    Secretaria Municipal de Saúde, mas também foi necessário conseguir o consentimento dos dois

    Hospitais para ter acesso aos prontuários onde eu poderia encontrar maiores informações sobre

    essas internações. Essa não foi uma tarefa muito simples... Um dos Hospitais levou quase um

    ano para me autorizar a acessar seus prontuários. Foi necessária muita persistência para

    conseguir adentrar seu espaço.

    Pretendi, nessa primeira etapa de incursão no campo de pesquisa, mapear as internações

    compulsórias realizadas nesses Hospitais nos anos de 2012 a 2014. Meu objetivo, com esse

    mapeamento, era compreender melhor como essas internações funcionavam e quem eram as

    pessoas cuja vida vinha sendo atravessada pelo fenômeno da judicialização. Procurei ainda

    entender o que os profissionais tinham a dizer sobre os acontecimentos que se desdobram nesses

    espaços em decorrência das internações compulsórias. Portanto, tomei como guia fontes que

    me levariam a conhecer diferentes vidas que foram marcadas pela judicialização, entendendo a

    internação psiquiátrica compulsória como a estratégia encontrada para chegar até elas.

    Os dois Hospitais pesquisados faziam parte naquele momento da rede de saúde mental

    da cidade pesquisada. Como esta expedição tinha como perspectiva produzir um campo

    expressivo sobre essa problemática optei por tratar os dois hospitais estudados assim como já

    havia tratado o cenário da cidade a partir de uma denominação estética. Chamei então um dos

    Hospitais de Azul e o outro de Amarelo diferenciando-os por cores para que pudesse explorar

    suas singularidades.

    O Hospital Azul ofertava até aquele momento 30 leitos de internação psiquiátrica breve

    para adultos que se encontram em situação de crise decorrente de transtornos mentais graves e

    persistentes, inclusive aqueles associados ao uso problemático e/ou abusivo de álcool e outras

    drogas. O Hospital Amarelo também ofertava leitos de internação psiquiátrica voltada para o

    mesmo perfil de população, mas com a diferença de ter duas vagas destinadas também para

    crianças e adolescentes.

    O Hospital Azul foi fundado em 1919, inaugurado em 1924, e seu projeto de trabalho

    foi reformulado em 1990, quando deixou de funcionar na “modalidade de sanatório

    filantrópico”. Grande parte de suas instalações preserva a estrutura de sua fundação, com

  • 36

    características típicas da arquitetura colonial. São prédios altos com portas e janelas grandes,

    algumas com vitrais muito bonitos, além de jardins contidos no seu interior e exterior.

    Todo o Hospital Azul é cercado por muitas árvores, há uma mata e um pequeno córrego

    que fica logo na entrada. Quando se chega ao local, é possível sentir uma brisa fresca tão logo

    se atravessa a ponte decorada por mosaicos coloridos. Inicia-se, então, uma subida íngreme e,

    a partir daí, pode-se escutar o barulho do atrito dos pneus nos paralelepípedos que vão

    conduzindo o visitante até o Hospital. As árvores antigas parecem acolher bem quem chega. Na

    paisagem, destacam-se as jabuticabeiras que florescem e dão frutos todos os anos. Elas estão

    plantadas na praça externa e central. Essa praça contorna a via de entrada e saída do Hospital,

    conduzindo de certa forma todos os que passam por ali.

    A unidade de internação psiquiátrica atual está instalada em um desses prédios coloniais,

    mas apesar da bela arquitetura externa, sua configuração interna é em grande parte escura e fria.

    Quando se adentra a unidade de internação, se tem acesso a duas grandes salas com mesas e

    bancos de cimento, paredes descascadas e um piso escuro cor de barro. Em uma delas, fica a

    televisão que esta suspensa numa altura impossível de alcançar com as mãos. Os quartos estão

    distribuídos em dois corredores. Um, à direita da primeira sala, onde também foi instalada a

    sala de equipe. O outro corredor fica ao fundo, após a segunda sala, onde também foi instalado

    o posto de enfermagem. Da segunda sala se pode chegar a uma espécie de jardim onde, por ser

    um ambiente externo, os pacientes ainda podem fumar. Já do outro lado dessa sala, está à porta

    que dá acesso ao refeitório, e que só é aberta nos horários das refeições.

    O Hospital Amarelo foi inaugurado em 2008, com capacidade para receber duzentos e

    dezenove leitos de internação. Ele foi distribuído em seis unidades, sendo elas: Clínica Médica,

    Clínica Cirúrgica, UTI Adulto, Ortopedia, Pediatria, UTI Pediátrica e Saúde Mental. Para a

    Saúde Mental foram destinados 20 leitos de internação. O Hospital foi construído com um

    modelo arquitetônico contemporâneo, é muito arejado, claro e bem iluminado. Foi acoplado a

    um terreno onde já funcionava o Pronto Atendimento, o Laboratório Central e um ambulatório.

    Essa região era bastante carente no quesito atendimento médico especializado, já que

    fica bastante afastada da região central da cidade. É notável a mudança da paisagem, quanto

    mais distante do centro, mas rudimentar as construções vão ficando. Os prédios, em menor

    quantidade, vão adquirindo uma expressão mais simples, as casas também acompanham essa

    imagem e muitos barracões revestem os espaços comerciais da região.

    A Enfermaria de Saúde Mental fica bem próxima à entrada, logo à esquerda, sua

    estrutura é muito parecida com as demais unidades do Hospital, com a diferença que a porta de

  • 37

    acesso à unidade foi bem reforçada na estrutura e na maçaneta com o passar dos anos. Há grades

    em todas as janelas e no pátio externo, o que não ocorre nas demais enfermarias. Quando se

    adentra o local, caminha-se por um corredor único, por onde é possível ter acesso a toda a

    unidade. Ao longo do corredor, podem-se observar os primeiros leitos à esquerda e as salas de

    atendimento, de reunião de equipe e refeitório à direita, até que se chega a uma grande sala que

    rompe de certa maneira com a horizontalidade do corredor.

    Essa sala é dividida por um balcão em formato curvilíneo. Do lado direito, encontra-se

    um espaço destinado à equipe, com mesas, computador, telefone, arquivos, copa e posto de

    enfermagem; do lado esquerdo, ficam a sala de TV, a sala de grupo e a sala de jogos que conjuga

    uma porta que dá acesso a uma pequena área externa. Os pacientes não podem fumar em

    nenhum dos espaços da unidade. Já do outro lado da sala, o corredor continua até o fim da

    unidade, e nesta parte encontramos os demais quartos e banheiros.

    O posto de enfermagem em ambos os hospitais é um espaço que agrega muito os

    usuários, que costumam se concentrar ali para demandar coisas para a equipe. No Hospital

    Azul, as refeições são servidas fora da unidade e os pacientes podem montar o seu próprio prato

    com o auxílio das auxiliares de nutrição. No Hospital Amarelo, as refeições são realizadas

    dentro da própria unidade em marmitas individuais que são distribuídas pela equipe de

    enfermagem. Nesse, a saída da enfermaria é bem mais restrita, sendo liberada apenas para

    exames e consultas de outras especialidades. Excetuando esses casos, só se sai do espaço no

    momento da alta ou de eventuais fugas.

    Em outros momentos, os dois Hospitais ofertavam atividades grupais e oficinas

    terapêuticas que, em geral, eram conduzidas pelas equipes multiprofissionais. O Hospital Azul

    chegou a fazer oficinas fora das suas dependências e ter monitores que conduziam um ateliê

    que ficava aberto ao longo de todo o dia, disto só restou atualmente uma ou outra saída

    acompanhada por algum membro da equipe até a cantina ou para consultas médicas, exames

    entre outros procedimentos clínicos ou odontológicos.

    A proposta desse hospital, naquele momento, parecia caminhar na direção do que já

    vinha acontecendo no Hospital Amarelo, onde a equipe estava se constituindo

    preponderantemente por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Apesar de ainda

    existirem profissionais de outros núcleos de formação nos dois espaços, sua potência intensiva

    e extensiva tornava-se cada vez menor.

    Por fim, há muitos rumores que se caminha para o fechamento da unidade de internação

    do Hospital Azul nos próximos anos. O fato de essa unidade perseverar em um espaço que

  • 38

    outrora foi berço de um sanatório sempre foi tema polêmico entre profissionais, usuários,

    gestores e militantes da Saúde Mental de toda a cidade. Alguns discordam veementemente de

    sua existência, outros a defendem como projeto diferenciado e humanizado. Por ora, o campo

    de disputa se sustenta, mas sua existência vem sendo cada vez mais reduzida, a começar pelo

    número cada vez menor de leitos.

    Após essa breve apresentação das dependências gerais das unidades de internação

    psiquiátrica pesquisadas considerei relevante descrever também para o leitor algumas

    características das salas onde encontramos os arquivos. Vocês vão notar que essas salas têm

    uma inscrição particular, pois carregam em silêncio o peso de uma centena de histórias, muitas

    delas esquecidas e empoeiradas.

    No Hospital Azul não havia um profissional específico destinado para sua organização

    e manutenção. Portanto, já se pode imaginar a recepção que tive quando fui até a equipe solicitar

    os prontuários de que eu precisava. Você terá que nos solicitar os prontuários que você vai usar

    previamente porque não conseguiremos pegá-los para você no mesmo dia! Diziam algumas

    profissionais. Uma das vezes em que fui até o local, decidi me oferecer para ajudá-las, apesar

    de elas zombarem de mim e me garantirem que eu não conseguiria encontrá-los. Assim que

    entrei na sala de arquivos, compreendi afinal o que elas tentaram me dizer. Havia ali, naquela

    sala, um tipo de caos que só mesmo quem frequentava constantemente o local era capaz de

    superar.

    Existiam armários com gavetas e muitas prateleiras, além de alguns bancos de madeira

    espalhados sem qualquer distribuição regular. A grande parte dos prontuários estava

    armazenada em caixas organizadoras com um número. Encontrar algo ali era quase como

    participar de um jogo de adivinhação. A impressão que se tinha é de que esses móveis e os

    prontuários foram levados para essa sala em alguma mudança realizada na instituição e que,

    depois disso, quase ninguém havia retornado ali para ter com eles algum contato mais intimo e

    regular. Já no final da pesquisa de campo precisei voltar ao local e essa sala havia sido

    transferida e organizada em outro espaço do hospital.

    Como não era possível retirar os arquivos da instituição eu precisei realizar toda a

    pesquisa de arquivo no local. Providenciaram para mim uma pequena mesa e ali eu permaneci

    por muitas horas e vários dias. Com o passar do tempo, percebi que já havia construído uma

    espécie de intimidade com aquele espaço. Escavar os prontuários foi se tornando uma tarefa

    cada vez mais possível e inteligível para mim.

  • 39

    Mas, de fato, compreender a dinâmica de um arquivo como os prontuários psiquiátricos

    é uma tarefa que requer paciência, dedicação e muito tempo do pesquisador, pois só após a

    construção de um campo relacional com os arquivos é que eles parecem revelar ao pesquisador

    os acontecimentos que eles guardam por entre seus registros, especialmente quando se trata de

    casos com volumes imensos que mais pareciam uma enciclopédia. Alguns desses

    acontecimentos inclusive eu pude posteriormente ouvir nos diálogos estabelecidos com alguns

    profissionais, usuários e familiares, o que colaborou também para que eu pudesse compreendê-

    los mais amplamente.

    Já no Hospital Amarelo, o espaço destinado aos arquivos era enorme e extremamente

    bem organizado. Diria até que aquela sala mais parecia uma biblioteca, se não fosse o barulho

    permanente das profissionais responsáveis pela sua organização. Quase impossível se

    concentrar no que eu lia, tamanha a variedade de conversas que circulava pelo espaço. Apesar

    disso, a equipe costumava ter o cuidado de destinar uma mesa para que eu pudesse trabalhar

    enquanto estivesse por lá. Ali eu levei outro tanto de tempo para me organizar, afinal aquele

    era outro território a ser desbravado.

    Depois de algum tempo por lá percebi que aqueles arquivos configuravam outro tipo de

    mapa que eu teria que aprender a percorrer e que o meu estranhamento no contato com eles não

    era apenas pelos barulhos que ecoavam do espaço, mas também pelos diferentes códigos e os

    relevos que emanavam daquela outra geografia. A predominância de um discurso médico e

    biológico nos seus registros fazia ver e falar a dinâmica de tratamento que o modelo hospitalar

    colocava nos processos de internação realizados dentro daquele hospital. Exames, diagnósticos

    e medicações se sobrepunham a outras estratégias de cuidado ofertadas aos pacientes ali

    internados.

    Poder acessar aqueles prontuários, depois de quase um ano de insistência, significou

    para mim ainda a conquista de uma árdua batalha. Era como se tivesse na mão uma medalha, e

    eu certamente precisava fazer essa experiência valer muito a pena apesar de toda a adversidade

    que seu acesso impôs para o trabalho de campo dessa pesquisa.

    Assim, após essa experiência de adentrar os hospitais por meios dos arquivos, foi

    ficando claro para mim que eu estava acessando outra dimensão do problema das internações

    compulsórias. Compreendi então o que Foucault (13) tentava dizer quando se referia a esse

    espaço como um dispositivo capaz de fazer o ver e falar o que estava do lado de fora. Pois, do

    lado de fora o que ouvimos é todo um discurso sobre a internação, mas os arquivos revelaram

    que aquilo que os pacientes que haviam sido colocados em seu interior viviam era, de fato,

  • 40

    outra coisa muito diferente daquilo que habitualmente se discute acerca dessa problemática. Era

    algo que pouco se via e se falava sobre o acontecimento que compõe as internações

    compulsórias.

    Dessa maneira, optei por narrar a minha passagem pelos arquivos como uma experiência

    de expedição, pois me dei conta que essa passagem pelos arquivos dizia respeito a uma forma

    de exploração de outra geografia. Eu havia, portanto, me deslocado do meu ponto de partida

    onde se discutia o lado de fora das internações compulsórias, para outro território onde pude

    acessar outra dimensão da problemática dessa modalidade de internação. Como vocês

    perceberão mais a diante com as narrativas dos arquivos, do lado de dentro das internações

    compulsórias a dimensão da vida resiste e ainda pulsa de forma bastante intensiva. A vida,

    portanto, não cessa com a internação, ela, ao contrário, insiste em se efetuar nesse espaço

    fazendo ver e falar uma série de acontecimentos que a compõe, desde suas atividades mais

    essenciais até as mais complexas.

    Trata-se, portanto, de uma pluralidade de mundos que passaram a se expressar por meio

    do acesso aos arquivos. Nesse sentido, os prontuários revelaram no decorrer de sua exploração

    certos modos de vida que atravessam a vida das pessoas que foram internadas e que o discurso

    sobre a internação compulsória não podia nos mostrar.

    Assim, contar as histórias guardadas nos prontuários foi o modo que encontrei para

    apresentar ao leitor esses outros elementos que a internação compulsória enquanto máquina

    quase muda e cega comporta em sua fabricação (9). Mas, antes de passarmos definitivamente

    para a apresentação das narrativas que procurarão contar ao leitor essas histórias, pareceu-me

    importante produzir um pequeno mapa onde procurarei reunir algumas informações que podem

    servir como ferramentas de experimentação das narrativas que nos esperam a seguir.

  • 41

    2.4 OS ARQUIVOS

    Figura 8 - Intitled. 1970-1971

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (8).

  • 42

    Encontramos registros de quarenta e quatro internações compulsórias nos arquivos dos

    Hospitais Azul e Amarelo entre os anos de 2012 e 2014. Uma quantidade irrelevante, se

    comparada ao montante total das internações psiquiátricas realizadas pelos dois hospitais nesse

    período: duas mil oitocentos e trinta e sete internaçõesp. Contudo, a quantidade intensiva, o

    quantum3 de força presente nas internações compulsórias constitui um plano que expressa

    formas e sentidos que acredito que deveriam ser mais explorados, uma vez que essas

    internações constituem uma modalidade de ação, ação através da qual o real é transformado

    (14, 6 p349).

    O Hospital Azul possuía um levantamento de suas internações compulsórias e me

    disponibilizou essa informação. A equipe desse serviço estava sensível a esse tema em razão

    de algumas experiências vividas com alguns pacientes. Propuseram inclusive uma conversa

    com alguns atores do sistema judiciário, na qual procuraram lhes explicar como funcionava o

    trabalho desenvolvido no hospital. Essa conversa foi lembrada no momento de devolutiva que

    realizei com essa equipe como uma espécie de marca intensiva, uma linha de fuga da condição

    de impotência que até então experimentavam com o campo jurídico.

    O Hospital Amarelo não possuía esse levantamento e precisei construí-lo a partir de

    outros dados que eles me ofertaram. Para isso, cruzei a tabela de usuários admitidos na

    internação da enfermaria com os relatórios de alta e os relatórios judiciais que haviam sido

    salvos no computador que ficava na sala da equipe, o que me rendeu um trabalho enorme. No

    momento da devolutiva, a equipe do Hospital Amarelo não trouxe muitas dificuldades na

    relação com o setor jurídico, muitos dos casos levantados foram recordados. Nessa conversa se

    destacaram, sobretudo, as internações compulsórias solicitadas por instituições que atuam com

    adolescentes e adultos em conflitos com a lei.

    Ao longo do processo de mapeamento ficou claro que não período estudado as

    internações psiquiátricas compulsórias não eram tomadas como um indicador de saúde. Elas

    entraram nos registros de dados dessa rede de saúde mental como outra internação psiquiátrica

    qualquer. Portanto, diziam respeito a algo que não era possível ver nem falar. Uma espécie de

    acontecimento imponderável.

    3 Segundo Paschoal, “um quantum não é algum tipo de matéria ou qualquer coisa que corresponda à ideia de ’ser’

    (Daisen), mas algo que pode ser designado como ‘quantidades de ação’, ‘proporções de querer’, ‘força e ação’ [...]

    um quantum designa ação, produção de efeito (wirkung), dinamicidade e relação (wirken) com outros quanta” (14

    p363).

  • 43

    No Hospital Amarelo, encontramos vinte e oito casos, no Hospital Azul, dezoito. Dentre

    esses casos, dois foram transferidos de um hospital ao outro, o que se configurou no registro

    duplicado de internação compulsória.

    No Hospital Amarelo não houve recorrência de internação compulsória nesse período.

    Já no Hospital Azul duas pessoas foram internadas compulsoriamente por duas vezes

    consecutivas, consta ainda uma terceira pessoa que tem registro de duas internações

    compulsórias, porém se trata de um episódio de evasão e posterior retorno dessa paciente ao

    hospital. Além disso, outras quatro pessoas estiveram internadas ao longo de dois dos anos

    levantados.

    É no mínimo intrigante perceber como a dinâmica das internações compulsórias

    apontam algumas diferenças de funcionamento entre esses dois espaços. Enquanto no Hospital

    Amarelo as internações compulsórias não se estendiam por mais de um mês, no Hospital Azul

    houve casos cuja internação durou mais de dois anos.

    Uma das justificativas para essa discrepância foi o fato de que o Hospital Amarelo

    entendia que a alta da internação era uma indicação médica, enquanto no Hospital Azul a alta

    só era realizada mediante autorização judicial. Alguns casos do Hospital Azul inclusive

    passaram por exame pericial realizado por um perito indicado pelo juiz ou promotor

    responsável.

    As diferentes interpretações sobre o fluxo das internações compulsórias presentes no

    funcionamento dos hospitais apontam nuances do campo de disputa existente entre as relações

    de saber-poder presentes nos campos médico-psiquiátrico e jurídico. Assim, nos pareceu que,

    no Hospital Amarelo, onde a internação acoplou o saber-poder psiquiátrico a outras

    especialidades da medicina, as relações de força tecidas entre os campos médico e jurídico

    revelaram efeitos de uma forte incidência do poder da medicalização sobre os corpos, enquanto,

    no Hospital Azul, cuja internação se insere em um espaço fortemente marcado por inscrições

    da psiquiatria, pode-se notar uma proeminência do processo de judicialização das condutas (15,

    16).

    Nos relatórios expedidos ao judiciário por ambos os hospitais fica evidente que a postura

    dos serviços é muito destoante. No Hospital Amarelo a conduta da equipe é de comunicar sua

    indicação de alta médica ao juiz e não associar a liberação do paciente com a resposta judicial.

    As exceções encontradas a essa forma de agir dizia respeito àquelas situações em que o paciente

    de fato não teria alta, pois seria encaminhado para outra instituição, como a prisão ou centro de

    atendimento socioeducativo de menores.

  • 44

    Já o Hospital Azul, em geral, elaborava um primeiro relatório ao juiz esclarecendo as

    características da hospitalidade do seu serviço4, ressaltando que seu funcionamento se orientava

    pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica e solicitando uma autorização judicial para indicar

    licenças médicas e participação dos usuários em atividades externas. Tais práticas aconteciam

    com a maior parte dos pacientes que estavam internados voluntariamente no serviço, apontando

    que dentro da mesma rede havia diferentes modos de conduzir o processo de internação

    psiquiátrica.

    Assim, diferente do Hospital Amarelo, onde o paciente só saía do espaço da internação

    mediante alta médica, no Hospital Azul os pacientes podiam sair do espaço do hospital durante

    seu processo de internação. Portanto, quando a equipe do Hospital Azul era autorizada pelo juiz

    para proceder com estratégias de cuidado fora do espaço físico do hospital, a equipe desse

    serviço iniciava a construção de propostas terapêuticas realizadas junto a outros serviços da

    rede de saúde mental e as suas famílias. Em alguns casos, isso suscitava movimentos de fuga

    dos pacientes internados compulsoriamente e concomitantes incômodos e conflitos na relação

    dessa equipe com as famílias e a justiça. Nos casos estudados, a maioria das vezes em que fugas

    aconteceram, os pacientes retornaram espontaneamente para o hospital após algum tempo e,

    assim, o seu acompanhamento no regime de internação prosseguia.

    A equipe do Hospital Azul relatava nos prontuários suas dificuldades com a morosidade

    para obter respostas do sistema judiciário. Faziam questão de registrar nos prontuários que

    entendiam que a demora do judiciário em autorizar a alta de alguns pacientes interferia no

    estado emocional deles. Havia ainda um movimento dessa equipe para sensibilizar as famílias

    para que elas concordassem com a indicação de alta dos pacientes, e propunham que elas

    reforçassem com os agentes do sistema judiciário as indicações de alta.

    A maior parte das famílias acabava cedendo às orientações dadas por essa equipe. Houve

    situações em que a família retirou o pedido de internação compulsória e outros em que os

    responsáveis procuravam seus advogados dizendo que concordavam com a indicação de alta

    prescrita e reiterada pelos relatórios expedidos para o juiz. Mas também foram encontrados

    casos de internação compulsória em que algumas famílias se colocavam mais resistentes às

    indicações de alta.

    4 O termo hospitalidade apresentado nesse parágrafo tem como objetivo expressar o ato de hospedar, ou seja,

    receber e cuidar de alguém que é tomado como paciente por esse anfitrião que é a equipe do hospital. Trata-se de

    um termo bastante utilizado nos relatórios elaborados pela equipe e para nós pareceu sempre ser uma tentativa

    discursiva de ressaltar o caráter provisório (de passagem) que a hospitalização deveria comportar.

  • 45

    O uso de drogas foi, sem dúvida, a justificativa mais utilizada para solicitar a internação

    compulsória nos anos pesquisados. Quase cem por cento dos pacientes tinham diagnóstico de

    Transtornos Mentais e Comportamentais decorrentes do uso de Múltiplas Drogas (F19.2)

    conforme descrito pela Classificação Internacional de Doenças - CID 10 (17). Contudo, a leitura

    dos prontuários foi nos mostrando que as formas e realidades de vida expressas pelas pessoas

    internadas compulsoriamente pareciam ter sido espremidas nesse diagnóstico.

    Nesse sentido, o diagnóstico de uso de múltiplas drogas se remetia a um discurso muito

    presente na mídia atual quando esta apresenta alguma informação sobre “o problema do uso de

    droga e dos riscos pessoais e sociais que esse problema comporta” (18). Por outro lado chama

    a atenção o fato que, na maioria dos prontuários pesquisados não foram encontrados relatos de

    fissura trazidos pelos pacientes após a suspensão do uso de drogas ou quadros que apontariam

    para uma Síndrome de Abstinência Aguda avaliadas pela equipe no decorrer dessas internações.

    O que se nota repetidamente nas internações compulsórias pesquisadas é a existência de

    diferentes tipos de movimentos de insubmissão e transgressão por parte dos pacientes

    internados. Portanto, os pacientes internados compulsoriamente correspondiam a uma espécie

    de coletivo de pessoas composta por adolescentes e adultos que passavam facilmente por cima

    das normas e padrões sociais e familiares fazendo o que bem queriam fazer de si mesmos.

    Tratava-se de sujeitos que não se preocupavam muito com as consequências que suas atitudes

    podiam gerar para eles e para aqueles que os cercavam, tampouco o que isso poderia lhes causar

    no futuro. Os movimentos das equipes frente a esses pacientes era tentar os advertir sobre as

    consequências do que eles faziam, apontando-lhes os riscos que corriam e tentando fazê-los se

    vincular em espaços de tratamento territoriais. Tais dados nos remete a discussão que vem

    sendo realizada pelo campo da Saúde Coletiva acerca dos processos de gestão do governo das

    condutas (19).

    Outro dado relevante que foi encontrado nesse momento da pesquisa é que a grande

    parte das pessoas internadas compulsoriamente tinham vínculos familiares fragilizados. Os

    conflitos com as famílias eram evidentes, alguns mais, outros menos contornáveis. Talvez isso

    explique algo sobre o fato de serem as famílias as grandes demandantes das internações

    compulsórias levantadas.

    A outra parte significativa dos pedidos de internação foi proveniente de instituições

    públicas vinculadas ao aparelho Estatal. Os serviços de saúde que solicitaram internações

    compulsórias as justificavam pela urgência ou escassez de vagas existentes no município,

  • 46

    especialmente quando esses pedidos eram realizados para o público menor de dezoito anos – já

    que na cidade só haviam duas vagas destinadas à internação psiquiátrica de adolescentes.

    As penitenciárias e abrigos socioeducativos também foram equipamentos que

    solicitaram internações compulsórias e seus pedidos eram mais voltados para avaliações e

    tratamento de adolescentes e adultos presos ou abrigados. Esses pedidos de internação

    compulsória foram construídos na maioria dos casos pelas próprias equipes dessas instituições

    disciplinares.

    Por fim, tivemos ainda o “contexto gestacional” e o “cuidado com o feto”, entre as

    justificativas mais presentes das internações compulsórias das mulheres e adolescentes

    internadas. A necessidade de proteger a criança de uma mãe que expõe o feto a situações de

    risco apareceu entre as razões que motivaram os pedidos de internação compulsória de mulheres

    e jovens.

    Ressaltamos que a apresentação desse mapeamento não teve como objetivo fabricar uma

    máquina de dados estatísticos sem história, sem atravessamentos sociais, políticos e

    econômicos, tampouco extrair dele resultados generalizáveis capazes de produzir

    naturalizações cuja serventia sabemos que é bem cara às práticas de governo vigentes (14 p362).

    Concordamos com Foucault que “a estatística, é o conhecimento do Estado, o conhecimento

    das forças e dos recursos que caracterizam um Estado num momento dado” (14 p365). Nossa

    intenção com esse levantamento foi, sim, destacar do montante dos prontuários pesquisados

    algumas séries compostas de elementos intensivos que nos chamaram atenção não pelo seu

    volume quantitativo, mas pela sua força maquínica, ou seja, pelo fato de serem altamente

    capazes de engendrar modos de vida e diferentes tipos de força entre as pessoas que

    protagonizavam as histórias encontradas (20).

    Enfim, acredito que um plano de composição possível de ser extraído da leitura dos

    arquivos nos mostrou enfrentamentos, rupturas, bloqueios e aberturas presentes nessas formas

    de vida que, apesar de serem desqualificadas e silenciadas enquanto modos de existência por

    certos padrões de normalização constituem paisagens inteiramente reais que recortam o sócios

    presente. Assim como Deleuze (20), estamos nos referindo aqui aos sujeitos pesquisados não

    como individualidades, mas como paisagens sociais compostas por linhas, fluxos, identidades

    e subjetivações.

    A apresentação dessas paisagens será mais explorada na próxima sessão desse capítulo,

    onde apresentaremos seis séries de acontecimentos recolhidos em torno das internações

    compulsórias levantadas. As séries produzidas foram organizadas após transformarmos todas

  • 47

    as internações compulsórias as quais tivemos acesso através da pesquisa de prontuários em

    pequenas narrativas. Com as narrativas buscamos evidenciar os modos de vida depositados no

    rol dos arquivos de internação compulsória tomando-os como “arquivos vivos”. Essa

    perspectiva tem como objetivo tentar expressar a quantidade de força e de multiplicidade que

    esses modos de vida põem em relação com outras forças em suas lutas cotidianas e no jogo

    ativado a partir do processo de judicialização.

    Nem todas as paisagens sociais reunidas em cada série serão apresentadas nessa sessão,

    pois no total elas se compuseram em quarenta e quatro narrativas e apresentá-las em sua

    integralidade tornaria esse trecho do trabalho por demais extenso. Para selecionar as narrativas

    que serão apresentadas eu utilizei como critérios a força criativa e a potencialidade expressiva

    que algumas histórias detinham. As histórias escolhidas têm como característica principal a

    possibilidade de se constituírem enquanto experiências sensíveis que se voltam para o fora,

    rompendo com o pensamento hegemônico que opera formas de sujeição através da linguagem

    e vinculam os indivíduos às identidades metaestáveis (9, 10).

    Enfim, em cada uma das séries o leitor será lançado para dentro dessas histórias,

    experimentando um pouco das forças e das formas que as marcam e as inscrevem. Os títulos

    das séries foram construídos com a intenção de sinalizar o leitor sobre algumas características

    marcantes de cada um dos terrenos mapeados por meio do nosso contato com os prontuários.

    Assim, cada série que compõem esse outro mapeamento procurou dar expressão aos territórios

    existenciais imersos na miséria cotidiana das paisagens sociais que percorremos em nosso

    trabalho junto aos arquivos vivos.

  • 48

    2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS

    Figura 9 - Person Unknown, City Morgue, Bellevue Hospital.

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (9 p13).

  • 49

    Vontade de inventar uma construção passional de palavras para que o cardíaco do outro estremeça

    rubro, lúbrico, e desfaleça.

    Hilda Hilst

  • 50

    Série 1 - Espaços de indiferença

    Figura 10 - Jorge Luis Borges in Central Park, N.Y.C. 1969

    Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (10 p283).

  • 51

    Encaminhamentos sucessivos

    Guilherme esta fazendo uso de drogas há algum tempo. A mãe estava muito preocupada e

    procurou a Unidade Básica de Saúde mais perto de sua casa. No acolhimento realizado pela

    enfermeira, a mãe de Guilherme, Dona Gildete, contou sobre a situação de Guilherme.

    Alguns dias depois a mãe volta então à unidade para um atendimento com a psicóloga. A

    psicóloga orienta então a mãe a levar Guilherme ao CAPS AD5. Dona Gildete fica preocupada,

    pois esse serviço é muito distante do bairro e acredita que o filho não aceitará ir

    espontaneamente. Como ela já previa Guilherme não concordou em ir.

    Dona Gildete vai então ao CAPS AD e, pela terceira vez, conta o que estava se passando com

    o filho. É acolhida pela terapeuta ocupacional que diz a senhora que o serviço não