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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA
CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES
UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE:
ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE
ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
CAMPINAS
2017
CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES
UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE:
ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE
ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas
como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva
na área de concentração em
Política, Planejamento e Gestão em Saúde.
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELA ALUNA CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES
E ORIENTADO PELO PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.
CAMPINAS
2017
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO
MEMBROS:
1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO
2. PROF. DR. DURVAL MUNIZ ALBUQUERQUE JÚNIOR
3. PROF. DR. TANIELE CRISTINA RUI
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca
examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
Data: 20 de fevereiro de 2017
[20/02/2017]
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES
Dedico esse trabalho, todo seu processo, seu tempo e espaço,
às mulheres que, em devir, pensam, geram, cuidam e
têm palavras, força e resistência
para estilizarem esse mundo.
Em especial, dedico esses escritos para algumas mulheres que
com suas lutas deram contornos a minha própria batalha:
Ana, Janete, Carla, Maria Eduarda e Maria Clara.
AGRADECIMENTOS
À minha família, por todo o apoio e compreensão, por apostar sempre em mim e me fazer
acreditar que eu poderia ir aonde nenhuma de nós ainda havia chegado.
Aos meus eternos mestres, Marilia Muylaert, Silvio Yasui e Sonia França, com quem aprendi
a amar a Saúde Mental e a Filosofia da Diferença.
Aos usuários dos serviços de saúde mental onde trabalhei, por me ensinarem tanto sobre a vida
e o oficio de cuidar.
Aos parceiros de trabalho da rede de Saúde Mental de Campinas, em especial, Flora de Paula
(in memorian), Katu Silva, Ruth Cerejo, Celio Doni, Juliana Souza, Patrícia Bichara, Georgia
de Sordi, Isa, Emelice Bagnola, Gal de Sordi, Telma Palmieri, Cássia Ramos, Clayton Ramos,
Sander Albuquerque, Heloisa Amaral, Cláudia Carezzato, Daniel Rigotti e Nayara de Oliveira
pelo companheirismo e por tantos ensinamentos.
À toda equipe do CAPS AD Independência e da Unidade de Acolhimento Nise da Silveira, pela
abertura e garra de invenção no cotidiano presente.
Ao meu orientador, Sérgio Resende Carvalho, e aos demais companheiros do Coletivo
Conexões, em especial, ao Bruno Mariane, Ricardo Pena e Ricardo Teixeira, pela generosidade
e acompanhamento nesse processo de escrita.
À Margareth Rago, Durval Muniz, Tony Hara pelo carinho com que me acolheram nessas novas
incursões pela obra de Foucault.
À Taniele Rui e Emerson E Merhy pelas orientações nas bancas de qualificação e defesa.
À Ana Godoy, pelo companheirismoanárquico que possibilitou que eu me reconectasse com a
arte e comigo mesma.
Aos amigos do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, em especial, Núbia Viana e Márcio
Melo, por me mostrarem outros trânsitos possíveis pela universidade e pela vida.
À Aloide Ladeia, Márcia Lutaif, Sara Sgobin, Susilaine Clemente, Márcia André, Marianne
Herrera, Ana Magri, Bárbara Ferrari, Amaranta Krepischi e Mirs Monstrengo, por todo o apoio
no trabalho de campo.
Às minhas queridas amigas Erika Marinheiro, Pérola Lozano, Mariane Nogueira, Elizandra
Zeulli, Luciana Nogueira, Ana Cristina Vangrelino, Francielly Damas, Elisabeth Zuza, Camila
Ramos, Bruna Martins Reis e Karina Boin e Karina Morelli pelo amor e pelo colorido especial
que disseminam na minha vida.
À toda família Ilesin Ogun Lakaine Osimole, em especial, Baba Toloji, Obade Nunes, Antônio
Violla Filho, Tomás Cajueiro, Regina Carvalho e Vinnie Fuscaldy por todo cuidado e axé
compartilhados nos últimos tempos.
Escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser;
escrever é cartografar, eu sou um cartógrafo.
Gilles Deleuze
RESUMO
Este trabalho pretende compreender como a judicialização enquanto um acontecimento vem se
efetuando em determinadas práticas de saúde mental na contemporaneidade. Procurou-se
levantar, a partir de um trabalho teórico-empírico, alguns diagramas de força que compõem as
relações de poder e saber estabelecidas entre os campos da Saúde Mental e da Justiça,
indagando sobre o que vem acontecendo em alguns serviços da Rede de Atenção Psicossocial
do município de Campinas/ SP – Brasil. Para isso, buscou-se produzir diálogos com
profissionais, usuários e familiares desses serviços, objetivando a apropriação dos
acontecimentos que têm atravessado o seu cotidiano e que dizem respeito às conexões com as
práticas jurídicas. O trabalho de campo foi realizado nos serviços de internação psiquiátrica
acompanhados pela Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso da Secretaria Municipal
de Saúde de Campinas/SP, onde alguns tratamentos compulsórios foram levantados por meio
de uma pesquisa de arquivo. É importante ressaltar que todo o acervo do material recolhido ao
longo do trabalho de campo foi apresentando a partir de certa política de narratividade. Entende-
se por política de narratividade uma forma de apreensão da dimensão expressiva que atravessa
as práticas estudadas nessa investigação. Nesse sentido, esse trabalho foi confeccionado como
uma bricolagem de narrativas; trata-se de uma proposta em que se pretende marcar uma postura
política de implicação com o debate sobre a produção de formas de verdade e conhecimento
que atravessam nossa sociedade. Assim, com base na leitura de algumas obras de Foucault e
nos princípios metodológicos de modalidade genealógica, traçou-se um terreno onde a prática
discursiva da judicialização foi articulada à medicalização, à psiquiatrização e à normalização.
Nessa superposição de mapas, notou-se que o diagrama da internação compulsória se conectou
ao dispositivo-drogas, indicando certos modos de subjetivação que expressam algumas séries
discursivas que podem ser articuladas às categorias dos anormais na contemporaneidade.
Considerou-se, portanto, que esse continuum médico-judiciário é um mapa estratégico que
engendra acontecimentos que marcam significativamente os atuais serviços de saúde mental
brasileiro. Por fim, é importante ressaltar que a obra da fotógrafa Diane Arbus foi apresentada
ao longo de todo o texto sempre acoplada às narrativas, uma vez que as fotos dessa artista
funcionaram nesse trabalho como dispositivos capazes de expressar algumas das regularidades
que foram apresentadas e discutidas. O método de produção das fotografias produzido por
Diane Arbus serviu ainda de operador para mover a pesquisa em direção a formas de produção
de resistência possíveis frente ao cenário apresentado.
Palavras-Chave: Saúde Pública, Saúde Mental, Psicologia Clínica, Internação Compulsória de
Doente Mental, Medicalização.
ABSTRACT
We intend in this work to understand how the judicialization as an event is taking place in
certain mental health practices in the contemporary world. We seek to draw from a theoretical-
empirical work some force diagrams that compose the relations of power and knowledge
established between the fields of Mental Health and Justice inquiring about what has been
happening in some services of the RAPS (Psychosocial Attention Network) in the city of
Campinas / SP - Brazil. For this, we seek to produce dialogues with professionals, users and
family members of these services, aiming to appropriate the events that have crossed their daily
life and that relate to the connections with legal practices. Our field work was also carried out
with the psychiatric hospitalization services, accompanied by the Sectorial Coordination of
Access Regulation of the Municipal Health Department of Campinas / SP, where some
compulsory treatments were collected through a file search. It is important to emphasize that
the whole collection of the material collected in our field work was composed by us from a
certain policy of narrativity because we understand that the production of narratives is a way of
apprehending the expressive dimension that crosses the practices studied in this investigation.
In this sense, this work was made as a bricolage of narratives. It is a proposal in which we intend
to mark a political position of implication with a debate about the production of forms of truth
and knowledge that cross our society. Thus, based on the reading of some works by Foucault
and the methodological principles of genealogical modality, we draw a ground where the
discursive practice of the judicialization was articulated to the medicalization, the
psychiatrization, and the normalization. In this overlapping of maps, we noticed that the
diagram of compulsory hospitalization was connected to the device-drugs indicating certain
modes of subjectivization that express some discursive series that can be articulated to the
categories of the abnormal ones in the contemporaneity. We consider, therefore, that this
medical-judicial continuum is a strategic map that engenders events that significantly mark the
current Brazilian mental health services. Finally, it is important to note that the work of the
photographer Diane Arbus has been presented throughout the text always coupled with the
narratives, as we consider that the photos of this artist are devices capable of expressing some
of the regularities discussed throughout the work. The method of producing the photographs
created by Diane Arbus has also served as an operator to move us towards possible forms of
resistance production in front of the presented scenario.
Key Words: Public Health, Mental Health, Clinical Psychology, Compulsory Internment of
Mentally Ill, Medicalization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957. 14
Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland, 1964. 18
Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970. 19
Figura 4 - Intitled. 1970-1971. 24
Figura 5 - Intitled. 1970-1971. 26
Figura 6 - Intitled. 1970-1971. 30
Figura 7 - Intitled. 1970-1971. 33
Figura 8 - Intitled. 1970-1971. 39
Figura 9 - Person Unknown, City Morgue, Bellevue Hospital. 45
Figura 10 - Jorge Luis Borges in Central Park, N.Y.C. 1969. 47
Figura 11 - Intitled, 1970-1971. 54
Figura 12 - A child crying, N. J. 1967 59
Figura 13 - Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C.1962. 65
Figura 14 - Two boys smoking in Central Park, N.Y.C. 1962. 71
Figura 15 - Diane with Doon and Amy, N. Y.1956. 77
Figura 16 - Os arquivos, Campinas, 2016. 86
Figura 17 - Headless woman. 1961. 87
Figura 18 - Woman at a conter smoking, N.Y.C. 1962. 91
Figura 19 - Superstar at home, N. Y. C. 1968. 92
Figura 20 - Albino sword swallower at a carnival, Md. 1970. 100
Figura 21 - Albino sword swallower and her sister, Md. 1970. 101
Figura 22 - The legendary blind beggar, standing at his regular post, 1961.
Figura 23 - Happy Birthday. 112
Figura 24 - The house of horrors, Coney Island, N. Y. 1961 130
Figura 25 - Brenda Frazier, 1961. 131
Figura 26 - Child in a nightgown, Wellfleet, Mass. 1957 137
Figura 27 - A flower girl at a wedding, Conn. 1964 138
Figura 28 - A Young Brooklyn Family going for a Sunday outing. N.Y. 1966 142
Figura 29 - Sem título. 143
Figura 30 - Fire Eater at a carnival, Palisades Park, N. J. 1956. 160
Figura 31 - Tattooed man at a carnival, Md. 1970 164
Figura 32 - Woman with eyerliner, N.Y.C. 1964 165
Figura 33 - A Puerto Rican woman with a beauty mark, N.Y.C. 1965 171
Figura 34 - A young man in curlers at home on West 20th Street, N.Y.C. 1966
Figura 35 - Untitled (42). 1970-1971 177
Figura 36 - Identical twins, Roselle, N.J. 1967 180
Figura 37 - The Human Pincushion, Ronald C. Harrison, N. J. 1962 184
Figura 38 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (1), Campinas. 2016 190
Figura 39 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (2), Campinas. 2016 191
Figura 40 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (3), Campinas. 2016 192
Figura 41 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (4), Campinas. 2016 193
Figura 42 - A Jewish giant at home with parentes in the Bronx, N. Y. 1970 195
Figura 43 - Girl in her circus costume, Md. 1970 196
Figura 44 - Feminist in her hotel room, N.Y.C. 1971 206
Figura 45 - Sem título. 211
Figura 46 - Russian midget friends in a living room on 100 th Street, N. Y. C. 1963 214
Figura 47 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (5), Campinas. 2016 230
Figura 48 - Intitle. 1970-1971 231
LISTA DE ABREVIATURAS
RAPS – Rede de Atenção Psicossocial
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CAPS III – Centro de Atenção Psicossocial 3 (24h)
CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas
CAPS-i – Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil
CNR – Consultório na Rua
CECO – Centro de Convivência e Cultura
SRT – Serviços Residenciais Terapêuticos (Moradias)
UAA – Unidade de Acolhimento Adulto
UBS – Unidade Básica de Saúde (Centro de Saúde/ Posto de Saúde)
SAMU – Serviço de Atenção Médica de Urgência
UPA – Unidade de Pronto Atendimento (Pronto Socorro)
SMS – Secretaria Municipal de Saúde
COSEMS – Conselho de Secretários Municipais
DS - Distrito Sanitário
CRAS – Centro de Referência da Assistência Social
CT – Conselho Tutelar
FC – Fundação Casa (Fundação para Menores)
GM – Guarda Municipal
DP – Defensoria Pública
CID 10 – Classificação Internacional de Doenças
CRM – Conselho Regional de Medicina
AIDS (HIV-AIDS) – Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida.
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO .................................................16
2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS ................................................................26
2.1 O CENÁRIO.........................................................................................................28
2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS...............................................................31
2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES ........................................................................34
2.4 OS ARQUIVOS ...................................................................................................41
2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS .............................................................................48
2.5.1 Série 1 - Espaços de indiferença ..................................................................50
2.5.2 Série 2 - Terrenos obstruídos .......................................................................57
2.5.3 Série 3 - Zonas de destruição .......................................................................62
2.5.4 Série 4 - Solos insubordináveis ....................................................................68
2.5.5 Série 5 - Sinais que vão para a rua ...............................................................74
2.5.6 Série 6 - As fronteiras da maternagem .........................................................80
2.6 CONVERSAÇÕES SOBRE OS ARQUIVOS.......................................................87
3 DA INDIGNIDADE DE FALAR PELOS OUTROS .................................................90
3.1 O DOSSIÊ ...........................................................................................................93
3.1.1 Paisagens mutantes .......................................................................................94
3.1.2 Sob os trilhos de uma montanha russa .....................................................104
3.1.3 O processo ....................................................................................................116
3.1.4 Trechos de uma história institucional ........................................................134
3.1.5 Uma nômade no deserto ..............................................................................141
3.2 NOTAS SOBRE O DOSSIÊ ANA FERRAZ ......................................................146
3.2.1 Nota Um – Uma genealogia dos anormais .................................................148
3.2.2 Nota Dois - Estados anormais no contemporâneo: o uso de álcool e outras
drogas como agente disparador do jogo da normalização ........155
3.2.3 Nota Três - A coragem de Ana ....................................................................161
4 OS PIROTÉCNICOS ............................................................................................164
4.1 SÉRIE A - COMBATES DESORDENADOS .....................................................168
4.1.1 O apelo in-provável ......................................................................................169
4.1.2 O real da solidão ...........................................................................................175
4.2 SÉRIE B - GUERRILHAS COTIDIANAS ...........................................................180
4.2.1 Um novo no discurso da Saúde Mental .....................................................181
4.2.2 Os semblantes das diferenças ....................................................................184
4.2.3 A cultura de amassar o barro ......................................................................188
4.3 SÉRIE C - BATALHA ENTRE GIGANTES ........................................................199
4.3.1 Uma testemunha ocular ...............................................................................200
4.3.2 Um silenciamento quase invisível ..............................................................210
4.3.3 A paralisação ................................................................................................215
4.4 NOTAS SOBRE OS PIROTÉCNICOS ..............................................................218
4.4.1 Um discurso intoxicado ...............................................................................219
4.4.2 Os regimes de verdade e a psiquiatrização das condutas .......................223
4.4.3 Uma história dos pirotécnicos ....................................................................232
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................235
5.1 POST-SCRIPTUM SOBRE A GENEALOGIA DOS ANORMAIS ......................242
6 REFERÊNCIAS ....................................................................................................250
7 APÊNDICES..........................................................................................................257
8 ANEXOS ..............................................................................................................263
UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS
SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE ATRAVESSAM A
REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Untitled (6), 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus, D. 2003. p. 115
http://images.search.yahoo.com/images/view;_ylt=AwrB8pKFODBUL2EANUWJzbkF;_ylu=X3oDMTIzZzVpZnJhBHNlYwNzcgRzbGsDaW1nBG9pZAMxYjFkZTRhZGU1MmViNmRmMTYzN2U1YWM0YWEzNzU0NARncG9zAzI2BGl0A2Jpbmc-?back=http://images.search.yahoo.com/yhs/search?_adv_prop=image&va=Diane+Arbus&fr=yhs-adk-adk_sychp&hsimp=yhs-adk_sychp&hspart=adk&preview=1&tab=organic&ri=26&w=1056&h=1064&imgurl=oracoolblog.files.wordpress.com/2012/10/diane-arbus-18.jpg&rurl=http://oracoolblog.wordpress.com/2012/10/19/diane-arbus-maestra-tragismului/&size=541.0KB&name=Diane+Arbus+%E2%80%93+maestra+tragismului&p=Diane+Arbus&oid=1b1de4ade52eb6df1637e5ac4aa37544&fr2=&fr=yhs-adk-adk_sychp&tt=Diane+Arbus+%E2%80%93+maestra+tragismului&b=0&ni=21&no=26&ts=&tab=organic&sigr=12c6ktecu&sigb=14ot5dtvi&sigi=11q9jrbur&sigt=11a33rdpc&sign=11a33rdpc&.crumb=Yl277ctzVqQ&fr=yhs-adk-adk_sychp&hsimp=yhs-adk_sychp&hspart=adk&preview=1
16
1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO
Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (1 p30).
17
Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de Andrade
18
Esta dissertação procura narrar uma espécie de jogo tecido entre as práticas jurídicas e
o campo da saúde mental. Considero-a como um jogo porque, no seu desenrolar, vamos nos
deparar com mudanças de posição, modificações de funções, variação das regras, enfim, com
diferenças e heterogeneidades. Dessa forma, apresentaremos alguns pontos de atrito, tensão e
vizinhança encontrados entre esses discursos (1).
Ao longo do percurso, mostrarei como certas práticas desenvolvidas em campos a
princípio separados como a saúde e a justiça chegaram a formar conjuntos discursivos
estratégicos capazes de participar ativamente da constituição dos discursos médico e
psiquiátrico e da fabricação dos modos de subjetivação anormais.
Dessa forma, será possível acompanhar a trajetória da construção de uma pesquisa que
partiu do campo problemático da judicialização e se desdobrou numa discussão sobre a
normalização. A judicialização, portanto, não foi tomada nesse estudo como uma estrutura
conceitual fixa, mas, sim, como um acontecimento singular que foi sofrendo transformações,
rupturas, descontinuidades, repetições e reativações ao longo do tempo (2). Segundo Foucault
(3), o que permanece regular em um problema não é o objeto em si, tampouco os domínios por
ele formados, nem mesmo seu ponto de emergência ou modo de caracterização. O objeto não
preexiste a si mesmo, ele só existe mediante um conjunto singular de relações que estão no
limite dos discursos.
Com isso, é importante ressaltar que a própria temática da pesquisa foi sendo
reinventada no decorrer do seu desenvolvimento, na medida em que fui me conectando com o
material recolhido ao longo do trabalho de campo, bem como com conceitos tais como a
medicalização e a psiquiatrização.
O ponto de partida tomado para esse estudo foi às internações e tratamentos
compulsórios em saúde mental, uma vez que a temática da judicialização está mais associada,
no campo da Saúde Mental, com as determinações judiciais de tratamento compulsório.
Segundo os profissionais de rede, as internações compulsórias distorcem os princípios
de tratamento oferecidos pelos serviços preconizados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira que
valorizam a espontaneidade e voluntariedade do tratamento como direitos dos seus usuários.
Por outro lado, como trabalhadora de uma rede de Saúde Mental, tive oportunidade de
presenciar discussões de caso em que alguns colegas faziam uma espécie de apelo às praticas
jurídicas. Esses profissionais apostavam que o sistema judiciário era uma alternativa pertinente
para solucionar a condução desses casos. Contudo, não estamos falando de um caso qualquer.
Esse tipo particular de caso tem como uma de suas características mais visíveis o fato de
19
desafiar a capacidade de intervenção das equipes e os alcances das formas de tratamento
propostas por esses serviços. Assim, o que foi se evidenciando ao longo do estudo é que as
problemáticas que esses casos apresentam não apenas tocam o campo da Saúde Mental, mas
vão muito além do que ele é capaz de abranger.
Nesse sentido, é importante ressaltar que o campo da Saúde Mental será tratado aqui
como um modo de conhecimento cujas linhas de força estão em constante tensão e
atravessamento com outros campos entre eles o da Saúde Coletiva. Portanto, ao longo de todo
trabalho esses territórios de saber serão postos em diálogo, uma vez que considerarmos que
esses campos articulam um plano de composição possível para a elaboração dessa investigação
(4).
Desse modo, a constatação de uma espécie de regularidade presente em uma série de
situações que eu vivenciava como trabalhadora foi me conduzindo para a investigação dessa
problemática. Eu não sabia exatamente o porquê, mas algo me fazia inferir que aquilo que eu
observava como trabalhadora era bem mais complexo do que o que conseguia trocar com meus
pares e isso era algo que passou a me incomodar. Intuía que havia uma série de elementos no
processo de fabricação desses acontecimentos que permanecia sob o efeito de um campo de
invisibilidade e indizibilidade que me instigavam a uma espécie de exploração.
A seguir, apresentarei, então, uma história. Trata-se de uma narrativa que construí sobre
uma paciente que tive a oportunidade de acompanhar no decorrer da minha trajetória
profissional. Acredito que compartilhar essa história pode ser importante para que o leitor
compreenda melhor o que me levou a desenvolver esse estudo.
20
A história de uma mulher que tinha um tesouro escondido
Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland. 1964
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (2 p171).
21
Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970.
Fotografia: Diane Arbus. Fonte: Arbus (3 p91).
22
O que você faria se fosse encarregada de cumprir um mandato judicial de internação
compulsória de uma senhora de 58 anos?
Na visita que organizamos para conhecer Dona Maria junto com a equipe de Saúde da Família
de uma Unidade Básica de Saúde a encontramos sentada no sofá da sala, não havia mais
ninguém em sua casa, exceto seu cachorro. O marido falecera há dois anos, a filha foi embora
de casa com um “namorado traficante” e o filho faz uns bicos durante o dia e costuma voltar
tarde, geralmente alcoolizado.
Dona Maria está só e sorri quando me apresento para ela. Tem um sorriso que marca a gente,
daqueles que se expandem por todo o rosto e fazem os olhos brilhar. Dona Maria me faz pensar
na minha avó. Como eu poderia internar alguém como a minha avó em um Hospital
Psiquiátrico baseando-me nos motivos pelos quais ela seria internada?
A internação compulsória de Dona Maria foi solicitada por um juiz que interpretou o pedido
de abrigamento, feito pela equipe de Saúde da Família, como “um pedido de internação em
Hospital Psiquiátrico”. Talvez porque Dona Maria tomava uma ampola de Haldol injetável
por mês ou porque tinha um carimbo anterior de internação psiquiátrica na sua história de
vida?
Para a equipe de Saúde da Família, Dona Maria precisava de abrigamento, pois não tinha um
cuidador em sua casa. Ela tomava seus remédios irregularmente, não se alimentava
adequadamente, e isso fazia com que sua hipertensão e diabetes ficassem piores a cada dia. A
equipe se preocupava muito com ela, visitavam-na regularmente e se indignavam com o que
estava lhe acontecendo. Chegaram a tentar uma parceria com o CAPS do território, mas
naquele momento a discussão não rendeu muita coisa.
Pela situação social de Dona Maria, eu já sabia que se ela fosse internada dificilmente sairia
de lá. Em pouco tempo viraria mais uma moradora do hospital, como outros que conheci –
abandonados pelas famílias, esquecidos pela sociedade, sem qualquer rede ou suporte exterior.
Enfim, sem um fora que acolha suas formas de vida. Para Dona Maria esse seria um provável
caminho sem volta.
Agora, imagine você com as chaves das portas de um manicômio em uma das mãos e na outra
um mandado de internação do juiz, o que mesmo você faria? Como exerceria o “poder de fazer
viver e deixar morrer”? Algo que talvez Foucault (5) nos perguntasse ao ouvir essa história.
Eis as peças de um tabuleiro montado: a vida vulnerável de Dona Maria, as previsões médicas
ruins para o seu futuro, um juiz piedoso no seu tribunal, alguns agentes da lei, outros da saúde
23
pública, todos executando o seu trabalho cotidiano. Eis um tabuleiro armado indicando que o
jogo podia enfim começar.
Mas que tipo de jogo é esse? É o jogo de judicializar uma vida. Certamente não existe esse tipo
de intenção sobre uma vida qualquer. Trata-se de uma vida bem definida, aquela que mobiliza
uma série de pessoas que estão do lado de fora dela.
Mas quando a adentramos, encontramos uma vida desinteressada por aquilo que a rodeia, uma
vida alheia às normas sociais, padrões de conduta e níveis de saúde. Uma vida que acontece
quase sempre em um sofá.
Dona Maria não parecia se importar com o futuro, demonstrava apenas certa preocupação
com o que estava se passando com a filha desaparecida. Ironizava as palavras do médico que
dizia que ela corria risco de morte se não tomasse os seus remédios.
No mínimo intrigante tudo aquilo que se passava naquela sala, especialmente quando pensava
que, do lado de fora, um batalhão de responsáveis sanitários e legais se articulavam para
decidir o seu destino, sem quase nada saber sobre o que realmente se passava naquele sofá.
Cobraram-me agilidade no processo, pois cada dia que não cumpríssemos a tal Ordem Judicial
custaria ao Estado o pagamento de uma multa altíssima. Meu trabalho, em um instante,
tornara-se alvo direto de intervenção dos gestores e advogados “do nível central”. Chamaram-
me para uma reunião. Assim acrescentamos mais uma peça ao tabuleiro: a vida que se
transforma em produto do capital. Não há tempo, temos que intervir!
Alguns dias depois, volto a encontrar Dona Maria, agora em outro sofá. Lembro-me mais uma
vez da minha avó e sinto a punhalada que muitas vezes é trabalhar em uma Rede de Atenção
Psicossocial. Afinal, como podemos agir em defesa de uma sociedade sem manicômios numa
sociedade que ainda os deseja ardentemente?
Abraço Dona Maria e digo-lhe como é bom poder reencontrá-la. Ela então me sorri e pergunta
se eu era a pessoa que a levaria até o seu tesouro? “Você sabia né menina que eu tenho um
tesouro guardado em algum lugar”? Os olhos de Dona Maria então reluziram. Acontecera
algo ali que me fez entender que ainda havia alguma coisa nessa vida tão complicada que
ainda fazia muito sentido.
No CAPS, sentada na sala de TV junto com alguns outros usuários e profissionais, pensei que
ali, muito possivelmente, ela encontraria alguém capaz de acolher a sua história. A história de
uma mulher que tinha um tesouro escondido.
Talvez Dona Maria nunca venha a dimensionar o quanto eu e mais alguns parceiros de
trabalho lutamos e tentamos articular toda uma rede de forças, composta de pessoas e serviços,
24
para que ela pudesse estar sentada ali, naquele sofá de couro preto, e não no de cimento frio
de um hospital qualquer.
E aqui termina a parte em que a história de Dona Maria se cruzou com a minha, que pouco
tempo depois também foi deslocada para atender as novas normas e padrões legais. Mas, de
tempos em tempos, do outro lado da cidade, chegam-me algumas notícias dela...
O contato com a vida de Dona Maria e sua trajetória de tratamento na rede pública de
saúde me levou a construir a seguinte questão: o que será que está acontecendo conosco? Por
que será que esses casos nos mobilizam tanto e nos levam a apelar para as práticas jurídicas se
temos tantas ferramentas potentes de trabalho na Saúde Mental?
Tomar essas situações como acontecimentos e fazer aparecer os espaços onde eles se
davam foi à estratégia que encontrei para tentar compreender o que se passava comigo e com o
meu corpo de trabalhadora imerso no processo de transformação de uma rede de saúde. Era
extremamente necessário para mim tentar compreender que práticas eram essas que levavam
todos nós, trabalhadores daquela rede de Saúde Mental, a escorregar nos nossos próprios
preceitos, como se essas situações fossem cascas de banana.
A partir da noção de acontecimentalização elaborada por Foucault (6), passei a olhar
para os casos como o de Dona Maria como séries compostas de múltiplos processos que, no
seu desenrolar, se conectaram e se dispersaram das práticas jurídicas e das práticas de Saúde
Mental. Nesse sentido,
[...] A acontecimentalização consiste em reencontrar as conexões, os
encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, que,
em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como
evidência, universalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa
maneira, procedemos, na verdade, a uma espécie de desmultiplicação
causal (6 p339).
O caso de Dona Maria me fez experimentar como elementos do discurso jurídico,
médico e psiquiátrico eram facilmente naturalizados dentro de nosso universo de trabalho.
Tratava-se de discursos que se organizavam de certo modo, com o intuito de demonstrar um
tipo de verdade que não condizia com sua experiência real.
Isso me fez apreender a maneira pela qual a prática que envolve um processo de
internação compulsória é composta de uma variedade de processos e de indivíduos anônimos
25
que organizam esse regime de enunciação e tentam falar por meio dele, sem que para isso se
estabeleçam formas de comunicação entre si.
Para me aproximar dessa prática, optei por realizar contatos diversificados com os
acontecimentos que a materializavam. Fiz entrevistas com usuários, profissionais e familiares
e adentrei os espaços de internação por meio de uma proposta de pesquisa de arquivo. Além
disso, procurei divulgar entre meus colegas a pesquisa que estava realizando, pedi que me
convidassem para debates sobre o tema da judicialização e discussões de casos judicializados
que acontecessem em seus serviços. Esse material híbrido se consolidou nesse mosaico de
elementos que procurarei compartilhar ao longo de toda a dissertação.
Acredito que o material aqui apresentado é, sobretudo, um efeito de um jogo que se
desenrolou durante toda a pesquisa (1). É possível que o leitor experimente certo incômodo no
transcurso da sua leitura, pois, ao adentrar esse jogo, percorrerá não apenas regiões
obscurecidas, mas um campo muitas vezes incerto, composto por conflitos fabricados entre
sujeitos, instituições e processos de trabalho.
Assim, procurei propiciar ao leitor um modo de acesso à experiência de mergulhar nesse
terreno, muitas vezes caótico, atravessado por embates e disputas. De outra parte, considero
que esse trabalho também se tornou um acontecimento, no sentido em que possibilitou que eu
fosse transformando meu território existencial de trabalhadora do SUS em um terreno fértil de
criação da pesquisadora que hoje me habita. Portanto, é esse acontecimento rizomático1 que
agora ponho, por meio desse texto, sob o signo do conhecer.
Nesse momento, convido então o leitor a se aproximar um pouco mais desse cenário.
Minha proposta é que juntos façamos um sobrevoo por nosso campo de investigação
explorando por meio do contato com alguns dos seus elementos um cenário que chamei de
“Cidade Invisível”. Tomando como inspiração Itálo Calvino (8), a descrição dessa Cidade
Invisível tem como objetivo apresentar o território onde essa investigação se passará,
compreendendo esse cenário como um fato histórico e não como um mero espaço
administrativo.
Aliás, vocês estão prontos para iniciarmos essa expedição? Podemos começar?
1 Por rizomático entendemos “ diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer
com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele
põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos O rizoma não se deixa reconduzir
nem ao Uno nem ao múltiplo (...) Ele não é efeito de unidades, mas dimensões, ou antes de direções movediças.
Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda(7 p32 ).
26
2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS
Figura 4 - Intitled. 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (4 p290).
27
Em consequência de graves traumatismos, às vezes mesmo por um nada,
o caminho se bifurca e um personagem novo, sem precedente,
coabita com o antigo e acaba tomando o seu lugar.
Um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado,
cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta.
Uma forma nascida do acidente, nascida por acidente,
uma espécie de acidente. Uma estranha raça.
Um monstro cuja aparição nenhuma anomalia genética permite explicar.
Um ser novo vem ao mundo uma segunda vez,
vindo de uma vala profunda aberta na biografia.
.
Malabou
28
2.1 O CENÁRIO
Figura 5 - Intitled. 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (5).
29
A Cidade Invisível teve lá sua fama na Saúde Pública e na Saúde Mental. A proporção
com que conseguiu expandir os serviços de saúde por todo seu território é uma de suas marcas.
Esse foi um dos fatores que fez com que a cidade conseguisse se diferenciar de grande parte
das outras. Chegou, inclusive, em certos momentos, ao “atrevimento” de fazer arranjos
diferentes dos preconizados pelas normativas federais. Mesmo com essa ousadia, serviu de
inspiração para a fabricação de outras normativas que hoje orientam o funcionamento de alguns
serviços, em especial, os de saúde mental.
Foi um momento de muita força e criação. Muitos de nós, estudantes e militantes da
Reforma Sanitária e Psiquiátrica, seduzidos por tudo que ouvíamos falar sobre a rede de saúde
da Cidade Invisível, nos mudamos para essa cidade. Eu fui uma delas. Vivemos momentos
memoráveis, daqueles em que não restavam dúvidas de que se está fazendo parte de uma grande
história. Eram horas de exercício de construção coletiva. Rodas enormes e debates quentes.
Disputávamos, nos mínimos detalhes, as estratégias de atenção e os modelos de cuidado em
pauta. Certa vez, ouvi de trabalhadores de outras cidades que éramos prepotentes demais.
Mas, com o passar do tempo, esse clima se deslocou. O objeto das disputas deixou de
ser “o melhor modelo de saúde pública e saúde mental do país” para ser “a rede de saúde mental
que deve se enquadrar nas normativas”. Era como se tivéssemos sido transportados de uma
paisagem típica da primavera para um ambiente desértico e quase inóspito.
O fato é que, naquele momento, os gestores alegavam que havia determinações claras
dos setores judiciais de que os modos de funcionamento da rede pública de saúde da Cidade
Invisível não eram condizentes com as normatizações vigentes. Inclusive uma das leis que regia
o trabalho na área da saúde foi julgada como incoerente, pois esta só existia na Cidade Invisível
e não se ajustava às outras leis municipais, estaduais, nem federais.
As forças de toda essa rede de invenções foram sendo direcionadas para outros
caminhos. Era preciso, naquele momento, se haver com os “atrevimentos” e trabalhar para que
eles fossem revertidos em normativas. O que outrora era concebido como ferramenta de
potencialização daquela rede viva aos poucos foi sendo considerado enquanto incoerências do
sistema. Nesse processo, fomos sendo encurralados por algo que ainda estava obscuro para nós.
Muitas coisas começaram a mudar de lugar. Um grande deslocamento de pessoas,
coisas, espaços, serviços passou a acontecer para tentar que nos ajustassem às normas. As
grandes rodas de conversa passaram a ter como foco as mudanças que se engendraram com
todo esse processo em curso e não mais os modelos de cuidado em saúde. Muitos de nós,
desgastados, nos mudamos da cidade, em busca de outros locais potentes de trabalho.
30
Restava pouca energia e disposição para discutir as especificidades de nossas práticas.
Pouco se ouviam vozes empolgadas com a criação de algo novo – naquele momento, não havia
mais muito espaço para novidades. Entramos em um estado em que a luta era para garantir a
conservação do que havíamos conquistado. E desse processo ainda pouco se sabe o que será
que será...
Concomitantemente a essa reformulação do modelo de gestão da rede pública de saúde,
a expansão do processo de normalização também atravessou o campo de nossas práticas
clínicas. Essa dinâmica de funcionamento me levou a pensar mais intensamente nos processos
de internação compulsória, pois o modo como experimentávamos essas ações jurídicas me
remetia à forma como estávamos lidando com os processos de normalização que se
capilarizavam, naquele momento, por toda a rede.
O modelo da compulsoriedade associada às internações agora também nos remetia, de
certa maneira, a algo que todos nós trabalhadores vivenciávamos no cotidiano do nosso
trabalho. Penso que foi esse processo que me conduziu para o tema dessa pesquisa. Nesse
sentido, tentar devolver uma existência possível à heterogeneidade de vidas submetidas às
estratégias de tratamento compulsório talvez tenha sido a forma que encontrei para tentar
resistir ao que estava experimentando.
Segundo Deleuze é a partir das lutas de cada época, do estilo de lutas de uma sociedade
que podemos compreender o que se passa no seu conjunto. É preciso partir de um mapeamento
dos seus diagramas para tentar acessar essa máquina que fabrica a realidade do vivido (9).
Procurei então deixar meu corpo ser guiado para a experimentação de tais
acontecimentos e assim fui adentrando o espaço das internações compulsórias como alguém
que busca se surpreender com aquilo em que se depara. A prática das internações compulsórias
foi tomada, portanto, como um diagrama que atravessa o terreno das internações psiquiátricas.
Um espaço que expressa esse não-lugar onde certas vidas que foram marcadas pelos processos
de psiquiatrização e judicialização passavam a habitar. Vidas que eram silenciadas para que
algo que era exterior a elas pudesse ser visto e falado (10).
Na próxima sessão desse capítulo vou tentar narrar um pouco dessa experimentação e
espero que ao acompanhá-las o leitor também possa experimentar algo desse estranhamento no
seu próprio corpo. Está preparado? Vamos lá?
31
2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS
Figura 6 - Intitled. 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: Pinterest.
32
Hoje em dia, para se conseguir uma vaga de internação psiquiátrica pelo SUS na Cidade
Invisível, não basta que a pessoa concorde em se internar, é necessário que um serviço de saúde
a solicite. Depois disso, essa solicitação tem que ser avaliada e aprovada pelo médico regulador
da Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso. Só então se consulta os hospitais para saber
se há vagas disponíveis.
Quando entrei em contato com essa Coordenadoria, fui informada de que não havia na
Cidade Invisível uma sistematização específica das internações compulsórias reguladas entre
os anos de 2012 a 2014.
Em conversas com profissionais da rede de saúde, obtive a informação de que uma
equipe de gestão da Secretaria Municipal de Saúde vinha tentando implantar um fluxo para
internações compulsórias um pouco diferente das demais modalidades de internação
psiquiátrica. Essa equipe havia passado a concentrar os pedidos de internação compulsória.
Desta forma, os mandados de internação, que eram dirigidos para a Secretaria de Saúde,
passaram a ser respondidos em primeira instância por esse grupo de gestão.
Nessa primeira resposta, essa equipe se baseava no artigo 6º da Lei nº 10.216, que diz:
“A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que
caracterize os seus motivos” (11). Assim, preparavam um relatório no qual diziam que,
primeiramente, providenciariam um laudo médico sobre o caso judicializado e, mediante as
indicações do laudo, procederiam ao pedido de internação compulsória.
Nesse fluxo, o mandato judicial era então encaminhado para o Distrito Sanitário
responsável pelo território onde o paciente que devia ser submetido à internação compulsória
vivia. Ao receber esse documento um profissional da equipe do Distrito Sanitário, intitulado de
apoiador, por sua vez tinha que realizar articulações com os serviços de referência, no sentido
de providenciar o laudo médico. Com o laudo em mãos, a equipe de gestão da Secretaria de
Saúde dava então continuidade ao processo, notificando o judiciário sobre os futuros
encaminhamentos a cerca do pedido de internação compulsória.
Apesar de esse fluxo estar funcionando nessa rede de saúde mental, alguns processos
ainda escapavam e eram remetidos diretamente para os serviços de saúde mental que atendiam
os pacientes. Isso acontecia principalmente nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial2).
Nesses casos, muitas vezes a condução do pedido de internação compulsória em geral ficava a
2 Os Centros de Atenção Psicossocial são os pontos da Rede de Atenção Psicossocial especializada constituídos
por equipes multiprofissionais que atuam sob a ótica interdisciplinar e realizam atendimento às pessoas com
transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo (12).
33
cargo dessas equipes. Ou seja, cabia a elas decidir se iriam acatar ou contrapor à solicitação
judicial.
Quanto a esses desvios no fluxo determinado para as internações compulsórias, até
aquele momento, não foi encontrado nenhum consenso entre os profissionais da rede sobre uma
posição a se adotar acerca dos pedidos de internação compulsória. Alguns profissionais
entendiam que, por se tratar de uma Ordem Judicial, cabia ao serviço cumprir o mandado, outros
apostavam na estratégia de enviar relatórios e problematizar os pedidos de internação com o
judiciário. Ainda encontramos aqueles que tentavam realizar alguma articulação com os
profissionais da Defensoria Pública para mediar o pedido de internação compulsória expedido.
Não se deve esquecer que essas medidas eram tomadas, geralmente, nas internações
compulsórias que foram solicitadas por familiares ou responsáveis, mas outras modalidades de
internação compulsória foram encontradas nesse estudo. Estamos nos referindo às internações
que foram solicitadas pelas próprias equipes de saúde e/ou de assistência social, Conselho
Tutelar e Penitenciárias. Essas costumam ser conduzidas de outra maneira, tanto pela rede de
saúde como pelo sistema judiciário. Dificilmente são questionadas.
Além disso, se fazia necessário considerar que, no Brasil, a internação compulsória “por
tempo indeterminado e em estabelecimento correcional adequado” foi uma das primeiras
medidas estatais de repressão ao uso de drogas, datando da década de 1920. Até a década de
1970, as políticas voltadas para essa área (Lei nº 6.368 de 1976) continuavam se referindo à
questão do uso de drogas como um problema jurídico e as ações de saúde voltadas para as
pessoas que faziam uso de drogas eram tratadas como uma medida secundária, dando-se,
principalmente, por meio de práticas repressivas realizadas em regime de internação hospitalar
(93, 94).
Com tantas especificidades e formas diferentes de funcionamento, pode-se constatar que
construir um mapeamento das internações compulsórias não foi uma tarefa simples. Não havia
nenhum banco de dados inicial de onde eu podia partir. Procurar os Hospitais para tentar acessar
os seus arquivos foi à alternativa encontrada para iniciar essa expedição.
Assim, parti ao encontro dos mesmos. Você me acompanha?
34
2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES
Figura 7 - Intitled (28). 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: KMS Fine Art Group (7).
35
Em dois pontos extremos da cidade, encontravam-se os Hospitais onde fui buscar
informações sobre as internações compulsórias realizadas na Cidade Invisível. Foram dois
caminhos diferentes que procurei compor no decorrer “dessa expedição pelos arquivos”.
O pedido inicial de autorização para o trabalho de campo se deu diretamente na
Secretaria Municipal de Saúde, mas também foi necessário conseguir o consentimento dos dois
Hospitais para ter acesso aos prontuários onde eu poderia encontrar maiores informações sobre
essas internações. Essa não foi uma tarefa muito simples... Um dos Hospitais levou quase um
ano para me autorizar a acessar seus prontuários. Foi necessária muita persistência para
conseguir adentrar seu espaço.
Pretendi, nessa primeira etapa de incursão no campo de pesquisa, mapear as internações
compulsórias realizadas nesses Hospitais nos anos de 2012 a 2014. Meu objetivo, com esse
mapeamento, era compreender melhor como essas internações funcionavam e quem eram as
pessoas cuja vida vinha sendo atravessada pelo fenômeno da judicialização. Procurei ainda
entender o que os profissionais tinham a dizer sobre os acontecimentos que se desdobram nesses
espaços em decorrência das internações compulsórias. Portanto, tomei como guia fontes que
me levariam a conhecer diferentes vidas que foram marcadas pela judicialização, entendendo a
internação psiquiátrica compulsória como a estratégia encontrada para chegar até elas.
Os dois Hospitais pesquisados faziam parte naquele momento da rede de saúde mental
da cidade pesquisada. Como esta expedição tinha como perspectiva produzir um campo
expressivo sobre essa problemática optei por tratar os dois hospitais estudados assim como já
havia tratado o cenário da cidade a partir de uma denominação estética. Chamei então um dos
Hospitais de Azul e o outro de Amarelo diferenciando-os por cores para que pudesse explorar
suas singularidades.
O Hospital Azul ofertava até aquele momento 30 leitos de internação psiquiátrica breve
para adultos que se encontram em situação de crise decorrente de transtornos mentais graves e
persistentes, inclusive aqueles associados ao uso problemático e/ou abusivo de álcool e outras
drogas. O Hospital Amarelo também ofertava leitos de internação psiquiátrica voltada para o
mesmo perfil de população, mas com a diferença de ter duas vagas destinadas também para
crianças e adolescentes.
O Hospital Azul foi fundado em 1919, inaugurado em 1924, e seu projeto de trabalho
foi reformulado em 1990, quando deixou de funcionar na “modalidade de sanatório
filantrópico”. Grande parte de suas instalações preserva a estrutura de sua fundação, com
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características típicas da arquitetura colonial. São prédios altos com portas e janelas grandes,
algumas com vitrais muito bonitos, além de jardins contidos no seu interior e exterior.
Todo o Hospital Azul é cercado por muitas árvores, há uma mata e um pequeno córrego
que fica logo na entrada. Quando se chega ao local, é possível sentir uma brisa fresca tão logo
se atravessa a ponte decorada por mosaicos coloridos. Inicia-se, então, uma subida íngreme e,
a partir daí, pode-se escutar o barulho do atrito dos pneus nos paralelepípedos que vão
conduzindo o visitante até o Hospital. As árvores antigas parecem acolher bem quem chega. Na
paisagem, destacam-se as jabuticabeiras que florescem e dão frutos todos os anos. Elas estão
plantadas na praça externa e central. Essa praça contorna a via de entrada e saída do Hospital,
conduzindo de certa forma todos os que passam por ali.
A unidade de internação psiquiátrica atual está instalada em um desses prédios coloniais,
mas apesar da bela arquitetura externa, sua configuração interna é em grande parte escura e fria.
Quando se adentra a unidade de internação, se tem acesso a duas grandes salas com mesas e
bancos de cimento, paredes descascadas e um piso escuro cor de barro. Em uma delas, fica a
televisão que esta suspensa numa altura impossível de alcançar com as mãos. Os quartos estão
distribuídos em dois corredores. Um, à direita da primeira sala, onde também foi instalada a
sala de equipe. O outro corredor fica ao fundo, após a segunda sala, onde também foi instalado
o posto de enfermagem. Da segunda sala se pode chegar a uma espécie de jardim onde, por ser
um ambiente externo, os pacientes ainda podem fumar. Já do outro lado dessa sala, está à porta
que dá acesso ao refeitório, e que só é aberta nos horários das refeições.
O Hospital Amarelo foi inaugurado em 2008, com capacidade para receber duzentos e
dezenove leitos de internação. Ele foi distribuído em seis unidades, sendo elas: Clínica Médica,
Clínica Cirúrgica, UTI Adulto, Ortopedia, Pediatria, UTI Pediátrica e Saúde Mental. Para a
Saúde Mental foram destinados 20 leitos de internação. O Hospital foi construído com um
modelo arquitetônico contemporâneo, é muito arejado, claro e bem iluminado. Foi acoplado a
um terreno onde já funcionava o Pronto Atendimento, o Laboratório Central e um ambulatório.
Essa região era bastante carente no quesito atendimento médico especializado, já que
fica bastante afastada da região central da cidade. É notável a mudança da paisagem, quanto
mais distante do centro, mas rudimentar as construções vão ficando. Os prédios, em menor
quantidade, vão adquirindo uma expressão mais simples, as casas também acompanham essa
imagem e muitos barracões revestem os espaços comerciais da região.
A Enfermaria de Saúde Mental fica bem próxima à entrada, logo à esquerda, sua
estrutura é muito parecida com as demais unidades do Hospital, com a diferença que a porta de
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acesso à unidade foi bem reforçada na estrutura e na maçaneta com o passar dos anos. Há grades
em todas as janelas e no pátio externo, o que não ocorre nas demais enfermarias. Quando se
adentra o local, caminha-se por um corredor único, por onde é possível ter acesso a toda a
unidade. Ao longo do corredor, podem-se observar os primeiros leitos à esquerda e as salas de
atendimento, de reunião de equipe e refeitório à direita, até que se chega a uma grande sala que
rompe de certa maneira com a horizontalidade do corredor.
Essa sala é dividida por um balcão em formato curvilíneo. Do lado direito, encontra-se
um espaço destinado à equipe, com mesas, computador, telefone, arquivos, copa e posto de
enfermagem; do lado esquerdo, ficam a sala de TV, a sala de grupo e a sala de jogos que conjuga
uma porta que dá acesso a uma pequena área externa. Os pacientes não podem fumar em
nenhum dos espaços da unidade. Já do outro lado da sala, o corredor continua até o fim da
unidade, e nesta parte encontramos os demais quartos e banheiros.
O posto de enfermagem em ambos os hospitais é um espaço que agrega muito os
usuários, que costumam se concentrar ali para demandar coisas para a equipe. No Hospital
Azul, as refeições são servidas fora da unidade e os pacientes podem montar o seu próprio prato
com o auxílio das auxiliares de nutrição. No Hospital Amarelo, as refeições são realizadas
dentro da própria unidade em marmitas individuais que são distribuídas pela equipe de
enfermagem. Nesse, a saída da enfermaria é bem mais restrita, sendo liberada apenas para
exames e consultas de outras especialidades. Excetuando esses casos, só se sai do espaço no
momento da alta ou de eventuais fugas.
Em outros momentos, os dois Hospitais ofertavam atividades grupais e oficinas
terapêuticas que, em geral, eram conduzidas pelas equipes multiprofissionais. O Hospital Azul
chegou a fazer oficinas fora das suas dependências e ter monitores que conduziam um ateliê
que ficava aberto ao longo de todo o dia, disto só restou atualmente uma ou outra saída
acompanhada por algum membro da equipe até a cantina ou para consultas médicas, exames
entre outros procedimentos clínicos ou odontológicos.
A proposta desse hospital, naquele momento, parecia caminhar na direção do que já
vinha acontecendo no Hospital Amarelo, onde a equipe estava se constituindo
preponderantemente por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Apesar de ainda
existirem profissionais de outros núcleos de formação nos dois espaços, sua potência intensiva
e extensiva tornava-se cada vez menor.
Por fim, há muitos rumores que se caminha para o fechamento da unidade de internação
do Hospital Azul nos próximos anos. O fato de essa unidade perseverar em um espaço que
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outrora foi berço de um sanatório sempre foi tema polêmico entre profissionais, usuários,
gestores e militantes da Saúde Mental de toda a cidade. Alguns discordam veementemente de
sua existência, outros a defendem como projeto diferenciado e humanizado. Por ora, o campo
de disputa se sustenta, mas sua existência vem sendo cada vez mais reduzida, a começar pelo
número cada vez menor de leitos.
Após essa breve apresentação das dependências gerais das unidades de internação
psiquiátrica pesquisadas considerei relevante descrever também para o leitor algumas
características das salas onde encontramos os arquivos. Vocês vão notar que essas salas têm
uma inscrição particular, pois carregam em silêncio o peso de uma centena de histórias, muitas
delas esquecidas e empoeiradas.
No Hospital Azul não havia um profissional específico destinado para sua organização
e manutenção. Portanto, já se pode imaginar a recepção que tive quando fui até a equipe solicitar
os prontuários de que eu precisava. Você terá que nos solicitar os prontuários que você vai usar
previamente porque não conseguiremos pegá-los para você no mesmo dia! Diziam algumas
profissionais. Uma das vezes em que fui até o local, decidi me oferecer para ajudá-las, apesar
de elas zombarem de mim e me garantirem que eu não conseguiria encontrá-los. Assim que
entrei na sala de arquivos, compreendi afinal o que elas tentaram me dizer. Havia ali, naquela
sala, um tipo de caos que só mesmo quem frequentava constantemente o local era capaz de
superar.
Existiam armários com gavetas e muitas prateleiras, além de alguns bancos de madeira
espalhados sem qualquer distribuição regular. A grande parte dos prontuários estava
armazenada em caixas organizadoras com um número. Encontrar algo ali era quase como
participar de um jogo de adivinhação. A impressão que se tinha é de que esses móveis e os
prontuários foram levados para essa sala em alguma mudança realizada na instituição e que,
depois disso, quase ninguém havia retornado ali para ter com eles algum contato mais intimo e
regular. Já no final da pesquisa de campo precisei voltar ao local e essa sala havia sido
transferida e organizada em outro espaço do hospital.
Como não era possível retirar os arquivos da instituição eu precisei realizar toda a
pesquisa de arquivo no local. Providenciaram para mim uma pequena mesa e ali eu permaneci
por muitas horas e vários dias. Com o passar do tempo, percebi que já havia construído uma
espécie de intimidade com aquele espaço. Escavar os prontuários foi se tornando uma tarefa
cada vez mais possível e inteligível para mim.
39
Mas, de fato, compreender a dinâmica de um arquivo como os prontuários psiquiátricos
é uma tarefa que requer paciência, dedicação e muito tempo do pesquisador, pois só após a
construção de um campo relacional com os arquivos é que eles parecem revelar ao pesquisador
os acontecimentos que eles guardam por entre seus registros, especialmente quando se trata de
casos com volumes imensos que mais pareciam uma enciclopédia. Alguns desses
acontecimentos inclusive eu pude posteriormente ouvir nos diálogos estabelecidos com alguns
profissionais, usuários e familiares, o que colaborou também para que eu pudesse compreendê-
los mais amplamente.
Já no Hospital Amarelo, o espaço destinado aos arquivos era enorme e extremamente
bem organizado. Diria até que aquela sala mais parecia uma biblioteca, se não fosse o barulho
permanente das profissionais responsáveis pela sua organização. Quase impossível se
concentrar no que eu lia, tamanha a variedade de conversas que circulava pelo espaço. Apesar
disso, a equipe costumava ter o cuidado de destinar uma mesa para que eu pudesse trabalhar
enquanto estivesse por lá. Ali eu levei outro tanto de tempo para me organizar, afinal aquele
era outro território a ser desbravado.
Depois de algum tempo por lá percebi que aqueles arquivos configuravam outro tipo de
mapa que eu teria que aprender a percorrer e que o meu estranhamento no contato com eles não
era apenas pelos barulhos que ecoavam do espaço, mas também pelos diferentes códigos e os
relevos que emanavam daquela outra geografia. A predominância de um discurso médico e
biológico nos seus registros fazia ver e falar a dinâmica de tratamento que o modelo hospitalar
colocava nos processos de internação realizados dentro daquele hospital. Exames, diagnósticos
e medicações se sobrepunham a outras estratégias de cuidado ofertadas aos pacientes ali
internados.
Poder acessar aqueles prontuários, depois de quase um ano de insistência, significou
para mim ainda a conquista de uma árdua batalha. Era como se tivesse na mão uma medalha, e
eu certamente precisava fazer essa experiência valer muito a pena apesar de toda a adversidade
que seu acesso impôs para o trabalho de campo dessa pesquisa.
Assim, após essa experiência de adentrar os hospitais por meios dos arquivos, foi
ficando claro para mim que eu estava acessando outra dimensão do problema das internações
compulsórias. Compreendi então o que Foucault (13) tentava dizer quando se referia a esse
espaço como um dispositivo capaz de fazer o ver e falar o que estava do lado de fora. Pois, do
lado de fora o que ouvimos é todo um discurso sobre a internação, mas os arquivos revelaram
que aquilo que os pacientes que haviam sido colocados em seu interior viviam era, de fato,
40
outra coisa muito diferente daquilo que habitualmente se discute acerca dessa problemática. Era
algo que pouco se via e se falava sobre o acontecimento que compõe as internações
compulsórias.
Dessa maneira, optei por narrar a minha passagem pelos arquivos como uma experiência
de expedição, pois me dei conta que essa passagem pelos arquivos dizia respeito a uma forma
de exploração de outra geografia. Eu havia, portanto, me deslocado do meu ponto de partida
onde se discutia o lado de fora das internações compulsórias, para outro território onde pude
acessar outra dimensão da problemática dessa modalidade de internação. Como vocês
perceberão mais a diante com as narrativas dos arquivos, do lado de dentro das internações
compulsórias a dimensão da vida resiste e ainda pulsa de forma bastante intensiva. A vida,
portanto, não cessa com a internação, ela, ao contrário, insiste em se efetuar nesse espaço
fazendo ver e falar uma série de acontecimentos que a compõe, desde suas atividades mais
essenciais até as mais complexas.
Trata-se, portanto, de uma pluralidade de mundos que passaram a se expressar por meio
do acesso aos arquivos. Nesse sentido, os prontuários revelaram no decorrer de sua exploração
certos modos de vida que atravessam a vida das pessoas que foram internadas e que o discurso
sobre a internação compulsória não podia nos mostrar.
Assim, contar as histórias guardadas nos prontuários foi o modo que encontrei para
apresentar ao leitor esses outros elementos que a internação compulsória enquanto máquina
quase muda e cega comporta em sua fabricação (9). Mas, antes de passarmos definitivamente
para a apresentação das narrativas que procurarão contar ao leitor essas histórias, pareceu-me
importante produzir um pequeno mapa onde procurarei reunir algumas informações que podem
servir como ferramentas de experimentação das narrativas que nos esperam a seguir.
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2.4 OS ARQUIVOS
Figura 8 - Intitled. 1970-1971
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (8).
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Encontramos registros de quarenta e quatro internações compulsórias nos arquivos dos
Hospitais Azul e Amarelo entre os anos de 2012 e 2014. Uma quantidade irrelevante, se
comparada ao montante total das internações psiquiátricas realizadas pelos dois hospitais nesse
período: duas mil oitocentos e trinta e sete internaçõesp. Contudo, a quantidade intensiva, o
quantum3 de força presente nas internações compulsórias constitui um plano que expressa
formas e sentidos que acredito que deveriam ser mais explorados, uma vez que essas
internações constituem uma modalidade de ação, ação através da qual o real é transformado
(14, 6 p349).
O Hospital Azul possuía um levantamento de suas internações compulsórias e me
disponibilizou essa informação. A equipe desse serviço estava sensível a esse tema em razão
de algumas experiências vividas com alguns pacientes. Propuseram inclusive uma conversa
com alguns atores do sistema judiciário, na qual procuraram lhes explicar como funcionava o
trabalho desenvolvido no hospital. Essa conversa foi lembrada no momento de devolutiva que
realizei com essa equipe como uma espécie de marca intensiva, uma linha de fuga da condição
de impotência que até então experimentavam com o campo jurídico.
O Hospital Amarelo não possuía esse levantamento e precisei construí-lo a partir de
outros dados que eles me ofertaram. Para isso, cruzei a tabela de usuários admitidos na
internação da enfermaria com os relatórios de alta e os relatórios judiciais que haviam sido
salvos no computador que ficava na sala da equipe, o que me rendeu um trabalho enorme. No
momento da devolutiva, a equipe do Hospital Amarelo não trouxe muitas dificuldades na
relação com o setor jurídico, muitos dos casos levantados foram recordados. Nessa conversa se
destacaram, sobretudo, as internações compulsórias solicitadas por instituições que atuam com
adolescentes e adultos em conflitos com a lei.
Ao longo do processo de mapeamento ficou claro que não período estudado as
internações psiquiátricas compulsórias não eram tomadas como um indicador de saúde. Elas
entraram nos registros de dados dessa rede de saúde mental como outra internação psiquiátrica
qualquer. Portanto, diziam respeito a algo que não era possível ver nem falar. Uma espécie de
acontecimento imponderável.
3 Segundo Paschoal, “um quantum não é algum tipo de matéria ou qualquer coisa que corresponda à ideia de ’ser’
(Daisen), mas algo que pode ser designado como ‘quantidades de ação’, ‘proporções de querer’, ‘força e ação’ [...]
um quantum designa ação, produção de efeito (wirkung), dinamicidade e relação (wirken) com outros quanta” (14
p363).
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No Hospital Amarelo, encontramos vinte e oito casos, no Hospital Azul, dezoito. Dentre
esses casos, dois foram transferidos de um hospital ao outro, o que se configurou no registro
duplicado de internação compulsória.
No Hospital Amarelo não houve recorrência de internação compulsória nesse período.
Já no Hospital Azul duas pessoas foram internadas compulsoriamente por duas vezes
consecutivas, consta ainda uma terceira pessoa que tem registro de duas internações
compulsórias, porém se trata de um episódio de evasão e posterior retorno dessa paciente ao
hospital. Além disso, outras quatro pessoas estiveram internadas ao longo de dois dos anos
levantados.
É no mínimo intrigante perceber como a dinâmica das internações compulsórias
apontam algumas diferenças de funcionamento entre esses dois espaços. Enquanto no Hospital
Amarelo as internações compulsórias não se estendiam por mais de um mês, no Hospital Azul
houve casos cuja internação durou mais de dois anos.
Uma das justificativas para essa discrepância foi o fato de que o Hospital Amarelo
entendia que a alta da internação era uma indicação médica, enquanto no Hospital Azul a alta
só era realizada mediante autorização judicial. Alguns casos do Hospital Azul inclusive
passaram por exame pericial realizado por um perito indicado pelo juiz ou promotor
responsável.
As diferentes interpretações sobre o fluxo das internações compulsórias presentes no
funcionamento dos hospitais apontam nuances do campo de disputa existente entre as relações
de saber-poder presentes nos campos médico-psiquiátrico e jurídico. Assim, nos pareceu que,
no Hospital Amarelo, onde a internação acoplou o saber-poder psiquiátrico a outras
especialidades da medicina, as relações de força tecidas entre os campos médico e jurídico
revelaram efeitos de uma forte incidência do poder da medicalização sobre os corpos, enquanto,
no Hospital Azul, cuja internação se insere em um espaço fortemente marcado por inscrições
da psiquiatria, pode-se notar uma proeminência do processo de judicialização das condutas (15,
16).
Nos relatórios expedidos ao judiciário por ambos os hospitais fica evidente que a postura
dos serviços é muito destoante. No Hospital Amarelo a conduta da equipe é de comunicar sua
indicação de alta médica ao juiz e não associar a liberação do paciente com a resposta judicial.
As exceções encontradas a essa forma de agir dizia respeito àquelas situações em que o paciente
de fato não teria alta, pois seria encaminhado para outra instituição, como a prisão ou centro de
atendimento socioeducativo de menores.
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Já o Hospital Azul, em geral, elaborava um primeiro relatório ao juiz esclarecendo as
características da hospitalidade do seu serviço4, ressaltando que seu funcionamento se orientava
pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica e solicitando uma autorização judicial para indicar
licenças médicas e participação dos usuários em atividades externas. Tais práticas aconteciam
com a maior parte dos pacientes que estavam internados voluntariamente no serviço, apontando
que dentro da mesma rede havia diferentes modos de conduzir o processo de internação
psiquiátrica.
Assim, diferente do Hospital Amarelo, onde o paciente só saía do espaço da internação
mediante alta médica, no Hospital Azul os pacientes podiam sair do espaço do hospital durante
seu processo de internação. Portanto, quando a equipe do Hospital Azul era autorizada pelo juiz
para proceder com estratégias de cuidado fora do espaço físico do hospital, a equipe desse
serviço iniciava a construção de propostas terapêuticas realizadas junto a outros serviços da
rede de saúde mental e as suas famílias. Em alguns casos, isso suscitava movimentos de fuga
dos pacientes internados compulsoriamente e concomitantes incômodos e conflitos na relação
dessa equipe com as famílias e a justiça. Nos casos estudados, a maioria das vezes em que fugas
aconteceram, os pacientes retornaram espontaneamente para o hospital após algum tempo e,
assim, o seu acompanhamento no regime de internação prosseguia.
A equipe do Hospital Azul relatava nos prontuários suas dificuldades com a morosidade
para obter respostas do sistema judiciário. Faziam questão de registrar nos prontuários que
entendiam que a demora do judiciário em autorizar a alta de alguns pacientes interferia no
estado emocional deles. Havia ainda um movimento dessa equipe para sensibilizar as famílias
para que elas concordassem com a indicação de alta dos pacientes, e propunham que elas
reforçassem com os agentes do sistema judiciário as indicações de alta.
A maior parte das famílias acabava cedendo às orientações dadas por essa equipe. Houve
situações em que a família retirou o pedido de internação compulsória e outros em que os
responsáveis procuravam seus advogados dizendo que concordavam com a indicação de alta
prescrita e reiterada pelos relatórios expedidos para o juiz. Mas também foram encontrados
casos de internação compulsória em que algumas famílias se colocavam mais resistentes às
indicações de alta.
4 O termo hospitalidade apresentado nesse parágrafo tem como objetivo expressar o ato de hospedar, ou seja,
receber e cuidar de alguém que é tomado como paciente por esse anfitrião que é a equipe do hospital. Trata-se de
um termo bastante utilizado nos relatórios elaborados pela equipe e para nós pareceu sempre ser uma tentativa
discursiva de ressaltar o caráter provisório (de passagem) que a hospitalização deveria comportar.
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O uso de drogas foi, sem dúvida, a justificativa mais utilizada para solicitar a internação
compulsória nos anos pesquisados. Quase cem por cento dos pacientes tinham diagnóstico de
Transtornos Mentais e Comportamentais decorrentes do uso de Múltiplas Drogas (F19.2)
conforme descrito pela Classificação Internacional de Doenças - CID 10 (17). Contudo, a leitura
dos prontuários foi nos mostrando que as formas e realidades de vida expressas pelas pessoas
internadas compulsoriamente pareciam ter sido espremidas nesse diagnóstico.
Nesse sentido, o diagnóstico de uso de múltiplas drogas se remetia a um discurso muito
presente na mídia atual quando esta apresenta alguma informação sobre “o problema do uso de
droga e dos riscos pessoais e sociais que esse problema comporta” (18). Por outro lado chama
a atenção o fato que, na maioria dos prontuários pesquisados não foram encontrados relatos de
fissura trazidos pelos pacientes após a suspensão do uso de drogas ou quadros que apontariam
para uma Síndrome de Abstinência Aguda avaliadas pela equipe no decorrer dessas internações.
O que se nota repetidamente nas internações compulsórias pesquisadas é a existência de
diferentes tipos de movimentos de insubmissão e transgressão por parte dos pacientes
internados. Portanto, os pacientes internados compulsoriamente correspondiam a uma espécie
de coletivo de pessoas composta por adolescentes e adultos que passavam facilmente por cima
das normas e padrões sociais e familiares fazendo o que bem queriam fazer de si mesmos.
Tratava-se de sujeitos que não se preocupavam muito com as consequências que suas atitudes
podiam gerar para eles e para aqueles que os cercavam, tampouco o que isso poderia lhes causar
no futuro. Os movimentos das equipes frente a esses pacientes era tentar os advertir sobre as
consequências do que eles faziam, apontando-lhes os riscos que corriam e tentando fazê-los se
vincular em espaços de tratamento territoriais. Tais dados nos remete a discussão que vem
sendo realizada pelo campo da Saúde Coletiva acerca dos processos de gestão do governo das
condutas (19).
Outro dado relevante que foi encontrado nesse momento da pesquisa é que a grande
parte das pessoas internadas compulsoriamente tinham vínculos familiares fragilizados. Os
conflitos com as famílias eram evidentes, alguns mais, outros menos contornáveis. Talvez isso
explique algo sobre o fato de serem as famílias as grandes demandantes das internações
compulsórias levantadas.
A outra parte significativa dos pedidos de internação foi proveniente de instituições
públicas vinculadas ao aparelho Estatal. Os serviços de saúde que solicitaram internações
compulsórias as justificavam pela urgência ou escassez de vagas existentes no município,
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especialmente quando esses pedidos eram realizados para o público menor de dezoito anos – já
que na cidade só haviam duas vagas destinadas à internação psiquiátrica de adolescentes.
As penitenciárias e abrigos socioeducativos também foram equipamentos que
solicitaram internações compulsórias e seus pedidos eram mais voltados para avaliações e
tratamento de adolescentes e adultos presos ou abrigados. Esses pedidos de internação
compulsória foram construídos na maioria dos casos pelas próprias equipes dessas instituições
disciplinares.
Por fim, tivemos ainda o “contexto gestacional” e o “cuidado com o feto”, entre as
justificativas mais presentes das internações compulsórias das mulheres e adolescentes
internadas. A necessidade de proteger a criança de uma mãe que expõe o feto a situações de
risco apareceu entre as razões que motivaram os pedidos de internação compulsória de mulheres
e jovens.
Ressaltamos que a apresentação desse mapeamento não teve como objetivo fabricar uma
máquina de dados estatísticos sem história, sem atravessamentos sociais, políticos e
econômicos, tampouco extrair dele resultados generalizáveis capazes de produzir
naturalizações cuja serventia sabemos que é bem cara às práticas de governo vigentes (14 p362).
Concordamos com Foucault que “a estatística, é o conhecimento do Estado, o conhecimento
das forças e dos recursos que caracterizam um Estado num momento dado” (14 p365). Nossa
intenção com esse levantamento foi, sim, destacar do montante dos prontuários pesquisados
algumas séries compostas de elementos intensivos que nos chamaram atenção não pelo seu
volume quantitativo, mas pela sua força maquínica, ou seja, pelo fato de serem altamente
capazes de engendrar modos de vida e diferentes tipos de força entre as pessoas que
protagonizavam as histórias encontradas (20).
Enfim, acredito que um plano de composição possível de ser extraído da leitura dos
arquivos nos mostrou enfrentamentos, rupturas, bloqueios e aberturas presentes nessas formas
de vida que, apesar de serem desqualificadas e silenciadas enquanto modos de existência por
certos padrões de normalização constituem paisagens inteiramente reais que recortam o sócios
presente. Assim como Deleuze (20), estamos nos referindo aqui aos sujeitos pesquisados não
como individualidades, mas como paisagens sociais compostas por linhas, fluxos, identidades
e subjetivações.
A apresentação dessas paisagens será mais explorada na próxima sessão desse capítulo,
onde apresentaremos seis séries de acontecimentos recolhidos em torno das internações
compulsórias levantadas. As séries produzidas foram organizadas após transformarmos todas
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as internações compulsórias as quais tivemos acesso através da pesquisa de prontuários em
pequenas narrativas. Com as narrativas buscamos evidenciar os modos de vida depositados no
rol dos arquivos de internação compulsória tomando-os como “arquivos vivos”. Essa
perspectiva tem como objetivo tentar expressar a quantidade de força e de multiplicidade que
esses modos de vida põem em relação com outras forças em suas lutas cotidianas e no jogo
ativado a partir do processo de judicialização.
Nem todas as paisagens sociais reunidas em cada série serão apresentadas nessa sessão,
pois no total elas se compuseram em quarenta e quatro narrativas e apresentá-las em sua
integralidade tornaria esse trecho do trabalho por demais extenso. Para selecionar as narrativas
que serão apresentadas eu utilizei como critérios a força criativa e a potencialidade expressiva
que algumas histórias detinham. As histórias escolhidas têm como característica principal a
possibilidade de se constituírem enquanto experiências sensíveis que se voltam para o fora,
rompendo com o pensamento hegemônico que opera formas de sujeição através da linguagem
e vinculam os indivíduos às identidades metaestáveis (9, 10).
Enfim, em cada uma das séries o leitor será lançado para dentro dessas histórias,
experimentando um pouco das forças e das formas que as marcam e as inscrevem. Os títulos
das séries foram construídos com a intenção de sinalizar o leitor sobre algumas características
marcantes de cada um dos terrenos mapeados por meio do nosso contato com os prontuários.
Assim, cada série que compõem esse outro mapeamento procurou dar expressão aos territórios
existenciais imersos na miséria cotidiana das paisagens sociais que percorremos em nosso
trabalho junto aos arquivos vivos.
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2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS
Figura 9 - Person Unknown, City Morgue, Bellevue Hospital.
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (9 p13).
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Vontade de inventar uma construção passional de palavras para que o cardíaco do outro estremeça
rubro, lúbrico, e desfaleça.
Hilda Hilst
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Série 1 - Espaços de indiferença
Figura 10 - Jorge Luis Borges in Central Park, N.Y.C. 1969
Foto: Diane Arbus. Fonte: Arbus (10 p283).
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Encaminhamentos sucessivos
Guilherme esta fazendo uso de drogas há algum tempo. A mãe estava muito preocupada e
procurou a Unidade Básica de Saúde mais perto de sua casa. No acolhimento realizado pela
enfermeira, a mãe de Guilherme, Dona Gildete, contou sobre a situação de Guilherme.
Alguns dias depois a mãe volta então à unidade para um atendimento com a psicóloga. A
psicóloga orienta então a mãe a levar Guilherme ao CAPS AD5. Dona Gildete fica preocupada,
pois esse serviço é muito distante do bairro e acredita que o filho não aceitará ir
espontaneamente. Como ela já previa Guilherme não concordou em ir.
Dona Gildete vai então ao CAPS AD e, pela terceira vez, conta o que estava se passando com
o filho. É acolhida pela terapeuta ocupacional que diz a senhora que o serviço não