352
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS GIL ALMEIDA FELIX TRABALHO, MOBILIDADE, CIRCULAÇÃO: A FORÇA DE TRABALHO EM MOVIMENTO CAMPINAS 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GIL ALMEIDA FELIX

TRABALHO, MOBILIDADE, CIRCULAÇÃO:

A FORÇA DE TRABALHO EM MOVIMENTO

CAMPINAS

2016

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

GIL ALMEIDA FELIX

TRABALHO, MOBILIDADE, CIRCULAÇÃO:

A FORÇA DE TRABALHO EM MOVIMENTO

Tese apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos

para obtenção do título de Doutor em

Ciências Sociais.

Orientadores: Dr. Arsênio Oswaldo Sevá Filho (in memoriam)

Dr. Fernando Antonio Lourenço

Este exemplar corresponde à versão final da tese de Gil Felix orientado pelo prof. Dr.

Fernando Lourenço.

CAMPINAS

2016

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,
Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,
Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 04 de novembro

de 2016, considerou o candidato Gil Felix aprovado.

Prof. Dr. Fernando Antonio Lourenço (orientador)

Prof. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes (UNICAMP)

Profa. Dra. Rosana Aparecida Baeninger (UNICAMP)

Profa. Dra. Delma Pessanha Neves (UFF)

Prof. Dr. José Sergio Leite Lopes (UFRJ)

Prof. Dr. Marcelo Domingos Sampaio Carneiro (UFMA) – suplente

Prof. Dr. Mauro William Barbosa Almeida (UNICAMP) – suplente

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante (UNICAMP) – suplente

A Ata de Defesa, assinada pelos membros titulares da Comissão Examinadora, consta

no processo de vida acadêmica do aluno.

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

Para Juliana

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

AGRADECIMENTOS

Contei com o apoio de bolsa concedida pelo PPGSA/UFRJ no primeiro semestre

de 2011, até ir para o Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp. Já na

Unicamp, contei com auxílio para pesquisa de campo e com bolsa do Programa no

segundo semestre de 2011.

Desde então, o Projeto de Doutorado foi apoiado pela Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Processo Nº 2011/22692-6, e também foi

apoiado por Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior, Processo Nº 2013/09175-8. Agradeço

especialmente aos pareceristas por suas avaliações e sugestões.

Devo agradecimentos a muitos que me acompanharam e contribuíram das mais

diversas formas para a realização desse trabalho, que, como não poderia deixar de ser,

expressa ideias, teses e interesses construídos sob experiências que extrapolam os

próprios limites dos anos ou dos espaços que me dediquei a ele. Essa etapa não seria

realizada sem a contribuição de amigos, vizinhos, colegas de trabalho, de sala de aula,

alunos, companheiros e camaradas de militância que tive a oportunidade de conhecer não

só como pesquisador, mas também bem antes. E se no los puedo contar hoje com a

exatidão que gostaria, faço questão de deixar registrado o meu reconhecimento a todas e

todos que me forjaram nessa jornada, desde os Praxedes, do Stucky e de Friburgo, até

Niterói, Rio, Marabá, Nova Ipixuna, São Gonçalo, Londres, Campinas, Ourilândia,

Tucumã, Mexico, etc. Y así – ainda com Yupanqui – seguimos andando...

A pesquisa, contudo, ao mesmo tempo que é uma tarefa incontornável e

necessária, é também, sem dúvida, uma tarefa angustiante, considerando tantas outras

frente às quais ainda estamos muito longe de condições adequadas para uma melhor

intervenção política dentro de um projeto de transformação radical. No caso daqueles que

por origem ou militância lidam com o cotidiano das frações mais empobrecidas dos

trabalhadores e dos camponeses, as mortes precoces e assassinatos são episódios

extremos e insistentemente repetitivos dessa angústia. O assassinato de Maria do Espírito

Santo e de José Claudio Ribeiro, pouco tempo após uma visita ao Assentamento em que

realizei pesquisa no mestrado e que contou, inclusive, com um almoço preparado pela D.

Maria, mais uma vez, me impunha constatar de perto esse cotidiano. Nos dias seguintes,

à noite, medo convivido na casa daqueles que foram meus melhores amigos nesse

Assentamento. Período recente, tinha presenciado outra morte, nesse caso, por falta de

assistência médica, em Friburgo, de uma senhora que tão bem me recebeu em sua casa

inúmeras vezes. Acompanhei os últimos dias no hospital, quando já não havia

possibilidade de reversão do quadro. Dois dias depois de Maria e José Cláudio, Adelino

Ramos, sobrevivente de Corumbiara, também foi assassinado a tiros em Rondônia, me

fazendo lembrar que a marcha fúnebre prossegue, mas agora de novo por meio das

notícias, estatísticas, boletins, informes, denúncias, e não pelo telefone, hospital,

cemitério. Na mesma semana, e no mesmo Assentamento no Pará, Herivelton Pereira dos

Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em

2011, teriam tido outros 24, no mínimo, segundo dados que são produzidos de forma

artesanal pelos movimentos voltados para os conflitos “no campo”. Em 2015, 50, quase

o dobro.

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

O período dedicado a essa pesquisa não foi diferente. Também foi feita sob um

quadro de profunda angústia frente à situação em que se encontravam esses trabalhadores,

assim como às condições em que se desenvolvem as suas lutas.

Nesse sentido, antes, e acima de tudo, devo agradecimentos a eles. Essa pesquisa

não seria possível sem a paciência e a confiança dos trabalhadores e trabalhadoras que se

dispuseram a participar e a conversar comigo em diversas situações, principalmente nas

cidades de Tucumã, Ourilândia do Norte e São Felix do Xingu, assim como de militantes

e representantes institucionais nessas mesmas cidades e também em Marabá,

Parauapebas, Xinguara, Açailândia e Canaã dos Carajás.

Meus agradecimentos à CPT de Marabá, Xinguara, do Alto Xingu e à equipe de

Tucumã/Ourilândia. À José Batista Afonso, Primo Battistini, Henry des Roziers, Aninha

de Souza, Danilo Lago e equipes. Àqueles a quem devo a recepção, a companhia e a boa

amizade a partir de lá: Hélio Lima, Elizangela Lima, Cristiane Lima e suas famílias. Ao

MAM e ao CEPASP. À Raimundo Cruz Neto. À Fernando Michelotti, Haroldo Souza e

a todos os colegas da Unifesspa. Aos amigos José Maria Sampaio, Laisa Santos Sampaio

e toda família.

Aos que debateram trabalhos preliminares dessa pesquisa em mesas, congressos,

Seminário de Tese e Exame de Qualificação: Francisco Alves, Maria Aparecida Moraes,

Kim Sanchez, Hernán Palermo, Rosangela Correa, Edna Castro, Marcelo Seráfico, Maria

Augusta Tavares, Fernando Blanco, Delma Pessanha Neves, Ricardo Antunes, Mauro

Almeida e muitos outros.

À Delma Pessanha Neves, também, pela amizade e incentivo intelectual ao longo

desses anos. Agora, por aceitar compor a banca de defesa.

Aos que ministraram cursos nesse período ou que também estiveram em parte

dessa caminhada: Otávio Velho, José Ricardo Ramalho, Neide Esterci, Beatriz Heredia,

Moacir Palmeira, Sonia Bergamasco, Valeriano Costa, Rosana Baeninger, Roberta Peres,

Plínio Arruda Jr., Zaira Vieira.

Ao PPGSA/UFRJ, colegas, professores e funcionários de 2010-2011.

Ao GPTEC/UFRJ e à Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da CPT. À

Ricardo Rezende e Xavier Plassat.

Ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp e aos colegas,

professores e funcionários dessa Universidade que tive oportunidade de conhecer a partir

de 2011. Ao Ceres.

Ao INES, colegas e estudantes do DESU, pelo afastamento para o doutorado.

À Adrián Sotelo Valencia, pela supervisão do sanduíche e atendimento ao longo

da estadia no Mexico. Ao Centro de Estudios Latinoamericanos, professores e estudantes

da FCPyS e da Economia da UNAM. À Ana Alicia Peña López, Nashelly Ocampo

Figueroa e aos estudantes de Licenciatura em Intervenção Educativa da Universidad

Pedagogica Nacional de Morelos.

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

Ao GETD, Fernando Prado, Marina Gouvea, Maíra Bichir e Sel Guanaes, que

acabaram de me presentear com uma amigável recepção e de me apresentar o ambiente

intelectual e politicamente animado e promissor da Unila.

À Garcia Quitari.

À Lucio Verçoza e família.

À Arsênio Oswaldo Sevá Filho, in memoriam, que me deu a honra de trabalhar e

de aprender com ele até o momento que decidiu que não tinha mais condições de

continuar me orientando, já no limite de suas forças físicas.

À Fernando Antonio Lourenço, em especial, por quem nutro grande apreço

pessoal, agradeço a orientação arguta e generosa, assim como a decisão de continuar

comigo mesmo após a aposentadoria.

Aos professores que aceitaram participar da banca de defesa, Ricardo Antunes,

Rosana Baeninger, Gustavo Lins Ribeiro, Marcelo Carneiro, José Sergio Leite Lopes,

Savio Cavalcante e Mauro Almeida.

À minha família, minha mãe, meu avô. Aos amigos e amigas de longa data. Aos

que me acolheram afetuosamente nas suas vidas, Maria, Leandro e Tassia.

À Juliana Guanais, com quem compartilho amor, todos os momentos, memórias,

sentimentos, sonhos e ideias. Não terei palavras, nunca, para agradecer toda a confiança,

tudo o que fez por mim e junto a mim nesses anos.

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

“(...) aí, no nosso dizer, se pergunta: ‘Rapaz, onde está fulano?’ – ‘Ah, fulano

está aí no meio do mundo’. E ninguém sabe onde é o meio do mundo, né? (risos).

Disse que uma vez alguém perguntou onde era esse meio do mundo e o outro disse

assim ‘Ó, eu sei’. ‘E onde é?’. ‘É aqui!’. ‘E como é que você sabe?’. ‘É só você

medir de lá pra cá e de cá pra lá que você vai ver onde é o meio do mundo’ (risos).

Quer dizer, não provam nunca, né, onde é esse meio do mundo”

(Trabalhador aposentado, 72 anos)

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

RESUMO

Nesta tese, analiso processos sociais de mobilidade espacial e de circulação

mercantil da força de trabalho, considerando, em especial, as transformações

decorrentes da chamada acumulação flexível do capital e as características que

essas transformações assumem frente a aspectos específicos de formações

dependentes como o Brasil. Para tanto, dando prosseguimento a investigações

anteriores sobre as condições de constituição e reprodução social da pequena

produção rural, por um lado, e, por outro, sobre as especificidades do exército de

reserva nas formações dependentes, foram analisados dados de uma nova etapa

de pesquisa de campo realizada junto a trabalhadores de um grande projeto da

indústria da mineração na Amazônia Oriental. Fruto de um plano estratégico

global da empresa Vale, o grande projeto em questão foi composto pela

construção de uma megamina e de uma usina metalúrgica entre os anos de 2007

e 2010, visando explorar as reservas das Serras da Onça e do Puma, situadas em

região limítrofe dos municípios de Ourilândia do Norte, Tucumã e São Felix do

Xingu, no estado do Pará, norte do Brasil. Nesse sentido, em um primeiro

momento, analiso características das frentes de expansão, dos grandes projetos e

das morfologias sociais de deslocamento de trabalhadores e trabalhadoras nestas

cidades, assim como das respectivas trajetórias de circulação da força de trabalho

que parte deles estabelece em várias regiões do país, principalmente nas empresas

terceirizadas e subcontratadas, nas empresas agropecuárias, no mercado informal

remunerado por dia de trabalho ou tarefa e no emprego doméstico. Em seguida,

considerando tais trajetórias junto a tendências globais de transformações no

mundo do trabalho, analiso os processos de aceleração e amplificação da

circulação mercantil da força de trabalho que vêm ocorrendo nas últimas décadas

e que estão, ao menos no caso brasileiro, diretamente relacionados a um regime

de superexploração do trabalho. Por fim, concluo que esses processos implicam

em uma maior aproximação entre o exército ativo e o exército de reserva e,

portanto, em uma nova condição imposta à classe trabalhadora.

Palavras-chave: classe trabalhadora; força de trabalho; mobilidade espacial;

superexploração do trabalho; indústria da mineração; Amazônia.

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

ABSTRACT

In this thesis, I analyze social processes of spatial mobility and labour-power circulation,

considering, in particular, the transformations arising from the so-called flexible

accumulation of capital and the characteristics that these transformations assume against

specific aspects of dependent formations such as Brazil. In order to carry out previous

research on the conditions for the constitution and social reproduction of the small rural

production, on the one hand, and on the other, on the specificities of the reserve army in

the dependent formations, data were analyzed for a new research stage of fieldwork held

together with workers of a large mining industry project in the Eastern Amazon. As a

result of Vale's global strategic plan, the major project in question consisted of the

construction of a megamine and a metallurgical plant between 2007 and 2010, in order to

explore the reserves of the Onça and Puma mountain ranges, located in the region

bordering the municipalities of Ourilândia do Norte, Tucumã and São Felix do Xingu, in

the state of Pará, northern Brazil. In this sense, in the first instance, I analyze the

characteristics of the fronts of expansion, the large projects and the traffic of workers

attracted and then expelled from the cities that receive these flows, as well as the

respective social morphologies of displacement and trajectories of circulation of the

labour-power that part of them establishes in several regions of the country, mainly in

outsourced and subcontracted companies, in the agricultural companies, in the informal

market remunerated by day of work or task and in the domestic employment. Then,

considering these trajectories along with global trends of transformations in the world of

work, I analyze the processes of acceleration and amplification of the mercantile

circulation of the labour-power that have been occurring in the last decades and are, at

least in the Brazilian case, directly related to a regime of super-exploitation of labour-

power. Finally, I conclude that these processes imply a closer approximation between the

active army and the reserve army and, therefore, in a new condition imposed on the

working class.

Keywords: working class; labour-power; mobility; super-exploitation; mines and

mining; Amazon.

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACP – Ação Civil Pública

ALBRAS – Alumínio Brasileiro S.A.

ALCOA – Alcoa Alumínio S.A.

ALUMAR – Consórcio de Alumínio do Maranhão

ALUNORTE – Alumina do Norte do Brasil S.A.

BASA – Banco da Amazônia S.A.

BB – Banco do Brasil S.A.

BCA – Banco de Crédito da Amazônia S.A.

CAT – Comunicação de Acidente de Trabalho

CEPASP – Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular;

CEPLAC – Comissão Executiva de Plano da Lavoura Cacaueira;

CFEM – Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais

CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas (Decreto-Lei 5452 de 1º de maio de 1943)

COMPERJ – Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CSP-Conlutas – Central Sindical e Popular Conlutas

CTPS – Carteira de Trabalho e Previdência Social

CUT – Central Única dos Trabalhadores

CVRD – Companhia Vale do Rio Doce

DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos

EFC – Estrada de Ferro Carajás

EIA – Estudo de Impacto Ambiental

EIR – exército industrial de reserva

FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura

FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

GETAT – Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

ICMM – International Council on Mining and Metals

ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

ICOMI – Indústria e Comércio de Minérios S.A.

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

MAM – Movimento dos Atingidos pela Mineração ou Movimento Nacional pela

Soberania Popular Frente a Mineração

MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MME – Ministério de Minas e Energia

MOP – Mineração Onça Puma S.A.

MPF – Ministério Público Federal

MPT – Ministério Público do Trabalho

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não Governamental

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

PGC – Programa Grande Carajás

RAC – Requisitos de Atividades Críticas

RAIS – Relação Anual de Informações Sociais

RIMA – Relatório de Impacto do Meio Ambiente

SEMA – Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará

SFX – São Felix do Xingu

SIMETAL MARABÁ – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas,

Mecânicas, de Material Eletrônico, Eletroeletrônico, Informática e Similares do

Município de Marabá

SIMETAL PARÁ – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas,

Eletromecânicas, Eletroeletrônicos, Eletrônicos, de Material Elétrico, de

Informática e Empresas Prestadoras de Serviços Metalúrgicos, Mecânicos,

Eletromecânicos, Eletroeletrônicos, Eletrônicos e de Informática do Estado do Pará

SIMETAL PARAUAPEBAS - Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Prestadoras de

Serviços Metalúrgicos, Eletromecânicos, Eletroeletrônicos e nas Indústrias

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

Metalúrgicas, Mecânicas, de Material Elétrico, Eletrônico e de Informática do

Município de Parauapebas

SIMINERAL – Sindicato das Indústrias Minerais do Pará

SINDICATO METABASE CARAJÁS – Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da

Extração do Ferro, Ouro e Metais Básicos de Marabá, Curionópolis, Parauapebas,

Eldorado dos Carajás e Canaã dos Carajás

SINE – Sistema Nacional de Emprego

SINTICLEPEMP – Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil Leve e

Pesada e do Mobiliário de Parauapebas

SINTRAPAV-PA – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada e

Afins do Estado do Pará

SINTRARSUL – Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário do Sul e

Sudeste do Pará

SINTRODESPA – Sindicato dos Trabalhadores Rodoviários nas Empresas de Transporte

de Passageiros Interestadual, Intermunicipal e Urbano, Cargas e Similares nos

Municípios de Parauapebas e Canaã dos Carajás

SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

STR – Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais

SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

TI – Terra Indígena

UHE – Usina Hidrelétrica

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

SUMÁRIO

O enigma e a paúra da circulação: considerações iniciais.......................................p. 18

Situação de estudo e condições de pesquisa....................................................................23

Capítulo 1: MINAS....................................................................................................p. 28

1.1 A pequena produção agropecuária e os trabalhadores “no mundo”............................28

1.2 O declínio da “grande migração” brasileira................................................................39

1.3 Frentes de expansão e dependência............................................................................44

1.4 Totalidade..................................................................................................................53

1.5 Um grande projeto japonês, uma mina enxuta............................................................56

1.6 Ouro, terra, madeira, boi e mina: fluxos e refluxos.....................................................71

1.7 Exército de reserva: acumulação de capital e circulação da força de trabalho.............82

1.8 A “população nômade” e o proletariado irlandês: produção e circulação da força de

trabalho............................................................................................................................97

Capítulo 2: FIRMAS................................................................................................p. 106

2.1 Arranjos reprodutivos...............................................................................................106

2.2 Formas de salário e de não pagamento......................................................................111

2.3 Peões-de-trecho.......................................................................................................119

2.4 Com ponto certo, sem ponto certo............................................................................124

2.5 Rodados...................................................................................................................132

2.6 Trajetórias de circulação..........................................................................................136

2.6.1 peões-de-trecho-firma...........................................................................................136

2.6.2 diárias/emprego doméstico-firma.........................................................................138

2.6.3 firma-firma............................................................................................................150

2.7 Difusão da categoria trecho......................................................................................178

Capítulo 3: EXPULSÕES........................................................................................p. 185

3.1 “Aqui não é mais pra nós...”: demissões, arrastões, tratores e pastos........................186

3.2 Fogo, rebelião, greve................................................................................................190

3.3 Grilo, casa de tábua e casa de tijolo: cidades terceirizadas......................................205

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

3.4 O sossego e a questão da volta..................................................................................224

Capítulo 4: CIRCULAÇÃO....................................................................................p. 234

4.1 Circulação e reprodução da força de trabalho...........................................................234

4.2 Rumo a uma “classe trabalhadora de reserva”? A aproximação entre exército ativo e

exército de reserva..........................................................................................................247

4.3 O trabalho nas prateleiras do supermercado.............................................................263

4.4 A assim chamada rotatividade..................................................................................273

4.5 Supercirculação, superexploração: (breves) notas finais sobre o caso brasileiro......279

Mais mercado! O império das coisas: considerações finais...................................p. 301

Referências bibliográficas..........................................................................................p. 308

Anexo 1: Sobre o conceito de exército industrial de reserva em Ruy Mauro Marini..p. 322

Anexo 2: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido...........................................p. 351

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

18

O ENIGMA E A PAÚRA DA CIRCULAÇÃO

Considerações iniciais

Em uma quadra histórica na qual a ideologia da liberdade de mercado é

reproduzida como panaceia e o “mundo das coisas” ganha dimensões cada vez mais

vastas, também estão cada vez mais ocultas as relações sociais que as produzem. Neste

sentido, fazer o caminho inverso não é uma tarefa fácil.

Em primeiro lugar, para entender o “mundo das coisas” teríamos que nos voltar

aos possuidores dessas coisas e às relações que estabelecem entre si esses possuidores –

uma constatação, no mínimo, ingênua em Sociologia, porém ainda necessária e,

justamente por isso, deveras significativa, na medida em que expõe a que ponto se chegou

em um curioso “animismo burguês” nas ciências contemporâneas e na vida social em

geral.

Porém, considerando que a teoria de Marx, por exemplo, permanece nos

auxiliando com algum poder explicativo, esse exercício não basta. Isso porque, no modo

de produção capitalista de mercadorias, considerando que as relações de produção se

realizam sob a forma de relações entre “coisas”, a reificação seria dupla: haveria tanto

“relações sociais entre coisas” quanto relações coisificadas entre pessoas. Assim, por um

lado, trata-se de algo de fácil percepção e simples exercício analítico desmistificador:

coisas “agem”. Mas, por outro, nem tanto. As pessoas trocam sua capacidade de trabalho

no mercado com coisas, sendo assim, essa troca não relaciona pessoas, produtores,

trabalhadores de carne-e-osso, mas coisa com coisa, mercadoria com mercadoria. Se, por

um lado, a análise sociológica deve restituir as relações sociais ocultas na troca das coisas,

por outro, não pode negligenciar essa troca, já que é através dela que se organizam as

próprias relações sociais para a produção desse “mundo de coisas” frente às quais estão

subsumidas essas pessoas, considerando o fato de sua reprodução social depender do

acesso a essas coisas que compõem seus meios de vida. Afinal, como Marx demonstra,

quanto mais se negligencia a forma dessas trocas em qualquer dimensão da vida social,

mais poder explicativo se atribui a uma teoria que retira das coisas os seres humanos que

as produzem e mais natureza se atribui às relações sociais estabelecidas entre eles em

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

19

dado momento histórico. Mais teológicas serão essas coisas e menos deuses serão todas

as não-coisas, humanas ou não.

Sendo assim, um exercício de teoria e pesquisa social em torno da troca de uma

dessas coisas, como é o caso proposto aqui, ganha algum sentido na medida em que a

forma com que se está trocando essa coisa hoje demonstra poder explicativo para entender

não exatamente o óbvio tautológico, a produção social dela mesma, do “mundo das

coisas”, mas sim o estado atual das próprias relações sociais de produção que ela oculta,

aprisiona e perpetua.

Porém, analisar a troca dessas coisas encerra ainda mais riscos de tomá-las de

maneira reificada, por uma série de razões. A princípio, a simples circulação não as altera,

a não ser espacialmente. Tomadas e isoladas nesse movimento, mesmo um competente e

perspicaz analista social pode não produzir mais do que um inócuo empirismo pautado

pela observação da sociabilidade ou da “cultura do dinheiro”, que, ao recortar a circulação

em sua forma aparente, coisas como coisas (ou coisas com coisas), reproduz com

autoridade científica o “mundo das coisas”, concedendo natureza a tudo o que observa

com sua varinha mágica: economia, sociedade, cultura, indivíduo, banana, gado, floresta,

etc. Voltamos ao seu divino reino fictício, à moderna (ou moderníssima) religião

burguesa, às mercadorias sem portadores de mercadorias e, portanto, às mercadorias sem

produtores de mercadorias, sem trabalho, ao modo de produção capitalista sem capital. A

um exercício intelectual que, quando realizado com propriedade, restitui movimento em

tudo, mas transformação em nada. Ou seja, frente a um mundo de ideias interessado na

ordem, no equilíbrio estático das narrativas da sociedade pela qual, inclusive, se formou

historicamente a ciência social – e pela qual se travam e se materializam continuamente

as lutas pelo poder atribuído aqueles produtores de ideias a que se credita socialmente (e,

portanto, também “movilmente”, em movimento) ter o domínio de explicação da

realidade empírica, que é, obviamente, síntese de múltiplas determinações, “móvel” – alia

enorme capacidade provocativa com nula capacidade crítica. Tudo se move, mas para

manter tudo no mesmo lugar. Simples complexificação das mesmas novas (velhas)

narrativas da ordem, agora com uma representação dinâmica levada mais a sério.

O estudo realizado aqui sobre a coisa convencionalmente denominada “força de

trabalho”, forma como foi designada a mercadoria que o capitalista compra do trabalhador

por Marx, também encerra outros riscos específicos. Ao mesmo tempo que possuidores

de mercadorias não são mercadorias, as trocas das mercadorias não são de possuidores de

mercadorias, mas de mercadorias por mercadorias, por exemplo, de “força de trabalho”

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

20

por quantia em dinheiro, isto é, a relação entre esses possuidores de mercadorias é

necessariamente coisificada. Daí o problema para a pesquisa tanto dos possuidores de

mercadoria quanto para a troca das mercadorias, que não podem ser dissociadas, mas que

também não podem ser eclipsadas sob pena de uma análise, no mínimo, mecânica de

ambos, facilmente refutada empiricamente ou torpemente afastada do “concreto”, algo

que não corresponde à prática propriamente dita, mas simplesmente à ideologia, seja em

uma ficção das “mercadorias sem valor” ou, por outro lado, em uma ficção das pessoas-

mercadoria, que é uma redução sociológica grosseira, mesmo em modos de produção que

não o capitalista.

Sendo assim, lidar com a mobilidade de pessoas que vendem sua força de trabalho

é problema antigo que envolve necessariamente um distanciamento teórico-metodológico

tanto de um estruturalismo mecanicista (que, bem observado, não vale nem mesmo no

caso do deslocamento do mais miserável trabalhador em busca de trabalho, momento

inquestionável da redução do ser social à sua condição de escravo moderno, vendedor

exclusivo de força de trabalho), quanto de um idealismo liberal, que supõe os

trabalhadores indivíduos livres circulantes e as migrações de trabalho o resultado de uma

enorme calculadora social, em um matching de soma zero. Nesse caso, como as pesquisas

vêm demonstrando, ambos os pólos se aproximam mais de um certo tipo de positivismo

de matriz economicista do que propriamente de uma ciência social do fenômeno

equivocadamente considerado “econômico” dos deslocamentos, isto é, da mobilidade e

da circulação do capital. Neste sentido, caso consideremos a prática o “critério da

verdade”, portanto, o confronto da teoria com a prática em nada a desautoriza a priori, a

menos que a intenção seja, ao invés de construir teoria ou analisar dados construídos em

pesquisa, reafirmar dogmas, construção que nem mesmo o idealismo mais vulgar de todos

preconiza1.

No campo dos estudos da migração laboral internacional, desde os anos 1980, a

crítica à base epistêmica do nacionalismo metodológico e das dicotomias binacionais e

biculturais, junto à maior dificuldade para a definição do lugar de ida-retorno, ou de

origem-destino, “emigração” ou “imigração”, ou mesmo, às vezes, “migração”, e com a

1 “Compreendendo-se a si mesmo”, como escreveria depois, o rascunho de Marx foi: “A questão de saber

se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da

teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o

poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade

do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica”. (grifos do autor; Marx,

2007: 533).

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

21

constatação de um fluxo contínuo de deslocamentos, vem encorajando os pesquisadores

a arriscar conceitos mais adequados a uma condição de “transnacionalidade” ou de

“translocalidade”, como “nômade”, “transmigrante”, etc. Trabalhos que se avolumam

desde os anos 1990 e, em especial, depois dos 2000, já, inclusive, transcenderam o campo

das migrações ou dos deslocamentos, para o que se propõe a partir da França como o

novo “paradigme de la mobilité” de Alain Tarrius ou o “mobility turn” de John Urry e

associados no Reino Unido. A partir de referências em tradições interacionistas e em

releituras de G. Simmel, novos paradigmas para as ciências sociais têm sido anunciados

a fim de compreender o movimento de “pessoas, ideias e coisas” ou, lato sensu, as

“mobilidades”, considerando que teria ocorrido “um rápido crescimento em várias formas

de mobilidade no mundo contemporâneo”.

No Brasil, dos anos 1980 em diante, o declínio da “grande migração” que

caracterizou boa parte do século XX e as transformações das últimas décadas nos

denominados mundo rural e mundo do trabalho também têm motivado a experimentação

ou, na falta de melhores reflexões a respeito, a apropriação de conceitos que visam dar

conta de uma empiria que – como não poderia deixar de ser – suplanta epistemes

historicamente constituídas em meio aos rígidos recortes da divisão do trabalho científico,

como é o caso do atual enigma da circulação.

Nesse sentido, o pensamento reflexivo a respeito desse enigma implica revisitar

questões antigas (ou, melhor, pautas ocultas e sempre renovadas) de campos de estudos

nem sempre em diálogo, como, por exemplo, no chamado mundo rural, os fantasmas da

questão agrária, da acumulação primitiva e da proletarização, e, no chamado mundo do

trabalho, da questão do valor e das polêmicas em torno da esfera da circulação. Também

implica enfrentar os pontos cegos deixados pela doxa acadêmica para uma análise

processual da circulação, ou seja, do vastíssimo mundo ainda inexplorado da

cotidianidade e da historicidade dos processos sociais de circulação, na medida em que a

análise processual privilegiou transições históricas ou processos de transformação com

sentidos polarizados do tipo condição camponesa a proletária, fábrica antes e depois da

reestruturação produtiva, operários estáveis a trabalhadores precários, rural-agrário a

urbano-industrial, categoria ou setor A a categoria ou setor B, exército ativo a exército de

reserva, etc., ou vice-versa.

Em um contexto no qual a análise sociológica se depara com a rapidez das novas

condições colocadas pelo aumento da produtividade na indústria de transportes,

tecnologias de comunicação e sistemas de crédito, pelas novas condições sociais da esfera

Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

22

da circulação e da rotação do capital, um amplo leque de questões teóricas e

metodológicas ainda resta em aberto2. Mais uma vez, dependendo dos achados empíricos,

da “prática”, debates teóricos como os colocados pelos autores da Neue Marx-Lektüre,

por exemplo, poderiam ser arguidos com mais propriedade, já que, obviamente, investigar

a esfera da circulação não implica em determinar a priori uma “centralidade da troca” ou

uma “centralidade da produção”.

Contudo, a construção do objeto dessa pesquisa, como qualquer outra, ainda que

tenha partido de uma questão teórica e de uma problemática constituída frente a um

interesse de diálogo e produção sociológica, não foi exatamente essa mesma questão

teórica a que me refiro nessa exposição introdutória, mais afeita à reflexão que foi feita

ao longo da pesquisa. A intenção inicial era problematizar criticamente certa teoria

desenvolvimentista a respeito das regiões outrora designadas “novas fronteiras” na

Amazônia a partir de uma pesquisa sistemática de campo e do diálogo com referenciais

teóricos da teoria marxista da dependência3. No fim, porém, o exercício não se limitou a

2 Sem surpresas, os exercícios mais criativos e que alcançaram maior poder explicativo foram, justamente,

aqueles que buscaram não se limitar perante a paúra da circulação, em geral – e mui curiosamente – mantida

sob gritos de totalidade e de abandono da teoria do valor trabalho. David Harvey, por exemplo, que toma

por base (com direito a seus pontos cegos também) os chamados “países capitalistas avançados” para

entender a atual etapa de acumulação de capital, assim definiu recentemente o trabalho que leva adiante

desde The limits to capital [1982]: “I had long recognized that the first two volumes of Capital were

constructed under radically different assumptions and that they produced two quite different accounts of

how capital worked. Volume One of Capital is about the production of value and surplus value whereas

the main (though not exclusive) focus of the incomplete and stitched together Volume Two is the problem

of realization. (…) But I had never followed up the full implications of what Marx in the Grundrisse called

“the contradictory unity of production and realization.” To begin with, most Marxists read Volume 1 of

Capital with care but very few read or let alone study Volume 2. In writing the introduction to the

Companion to Volume 2, I emphasized how important it is to give equal weight to the two volumes, but

judging from the sales rankings on Amazon the strong bias towards emphasizing the first volume relative

to the second is very much in evidence. The result has been a bias in the history of Marxist thinking towards

a “productivist” reading of Capital while questions of realization are treated as of secondary importance.”

(Harvey, 2015). No mínimo desde os anos 1960, já ficou claramente demonstrado que as epistemologias

políticas, econômicas, históricas, sociológicas, antropológicas, etc., limitadas por essa paúra pouco poder

tiveram para avançar dos velhos e novos eurocentrismos, do apagamento do mundo do trabalho das colônias

e ex-colônias. Se antes, por exemplo, o processo de valorização não inseria dialeticamente a circulação,

agora a circulação não insere dialeticamente o processo de valorização (com sistematizações bastante

sugestivas como, por exemplo, “fim do trabalho”, “retorno da superexploração” ou, mais recentemente,

“nova classe social”). 3 Em resumo: “Nas últimas duas décadas tem sido constante e cada vez mais frequente as denúncias de

"trabalho escravo" ou degradante envolvendo trabalhadores rurais no Brasil, que alcançam grande número,

especialmente nas regiões atualmente designadas como novas fronteiras na Amazônia. Tais denúncias têm

veiculado fatos que são tomados como expressões do atraso, qualificados como maneiras arcaicas de

exploração que teriam lugar nos rincões atrasados do país e que, portanto, seriam substituídos e/ou

superados pelo desenvolvimento econômico e social ou por uma intervenção estatal qualificada. Neste

sentido, o Projeto visa analisar as trajetórias sociais estabelecidas pelos trabalhadores rurais a partir de uma

dessas regiões, considerando as condições sociais que possibilitam formas específicas de mobilidade

espacial e de superexploração do trabalho e suas possíveis relações com os processos de acumulação e

reestruturação capitalistas regionais e globais ocorridos nas últimas três décadas”. (Felix, 2010).

Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

23

isso. A decisão de tomar a sério os dados produzidos nos percursos dos trabalhadores

exigiram mais algumas reflexões que terminaram por alterar significativamente a

pesquisa e seus resultados.

No capítulo 1, “Minas”, exponho em maiores detalhes a construção do objeto e o

desenvolvimento da pesquisa a partir de referências de campo, como a noção sintetizada

no que os trabalhadores e camponeses em certas regiões da Amazônia Oriental designam

como “mundo” ou como estar “no meio do mundo”. Em seguida, abordo o processo de

implantação de uma nova mina da empresa Vale no estado do Pará. No segundo capítulo,

“Firmas”, abordo as trajetórias de circulação da força de trabalho, os arranjos

reprodutivos e as morfologias sociais de deslocamento dos diferentes grupos de

trabalhadores estabelecidos ou em trânsito nas cidades do entorno dessa nova mina. Em

“Expulsões”, descrevo as diversas formas de expulsão a que estavam sujeitos esses

trabalhadores e sua relação com a circulação da força de trabalho. No último capítulo,

“Circulação”, a partir dos dados da pesquisa de campo, analiso as atuais formas de

circulação mercantil da força de trabalho frente a processos mundiais ocorridos nas

últimas décadas. No caso brasileiro, relaciono um processo por mim denominado

supercirculação com a reprodução histórica do regime de superexploração do trabalho.

No anexo, considerando algumas citações feitas nos capítulos, inseri um texto ainda não

publicado em que sistematizo referências teóricas pouco conhecidas no Brasil.

Para facilitar a leitura, cabe esclarecer como utilizei os grifos no texto. Usei o

itálico para grifar as categorias do discurso de meus interlocutores que têm relevância

para o estudo que faço. As aspas foram usadas para citar palavra, título ou trecho retirado

de outros autores, grupo de autores ou de outro contexto em geral, enfatizando a forma

tal como ela aparece na origem. Outras vezes, usei também para problematizar. O

sublinhado foi usado quando era minha intenção ressaltar partes do texto de outros autores

ou do meu próprio texto para o leitor. No anexo, que se trata de outro texto, independente

do texto principal da tese, foi o itálico que usei para ressaltar.

À exceção daqueles que ocupam cargos ou posições públicas, os nomes são

fictícios.

Situação de estudo e condições de pesquisa

Além de uma série de atividades de campo acompanhadas e registradas enquanto

observações de natureza etnográfica, em 2011 e 2012, foram entrevistados 37

Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

24

trabalhadores de forma detalhada, assim como 26 dirigentes de 22 instituições

relacionadas ao objeto de pesquisa (sindicatos, movimentos, centros de assessoria,

empresas de construção civil, secretarias de assistência social, escritórios de advocacia

trabalhista, escritórios de contabilidade de fazendas, escolas de cursos técnicos, ONGs,

etc), totalizando, portanto, no final da etapa de campo, 63 pessoas, nas cidades de

Ourilândia do Norte, Tucumã, São Felix do Xingu, Xinguara, Parauapebas, Marabá e

Açailândia (esta última no Maranhão, as demais no sudeste do Pará). O período de campo

compreendeu uma semana em setembro de 2011 e 4 meses em 2012, entre agosto e

dezembro. Morei em uma quitinete na cidade de Tucumã com minha companheira ao

longo dos meses de trabalho de campo, com a exceção do primeiro período, quando fiquei

hospedado em casas da CPT e, depois, no segundo, em um pequeno hotel por alguns dias.

Desde então, além do habitual levantamento de base de dados, literatura e informações

em geral relativas à pesquisa, mantive contato com os interlocutores que estabeleci em

campo.

Em Ourilândia do Norte, as entrevistas com trabalhadores foram feitas,

principalmente, nos setores “Joel Hermógenes” e “Marcia Veloso”, além de visitas e

conversas com moradores no Projeto de Assentamento “Campos Altos”, no Projeto de

Assentamento “União” e na “Ocupação 8 de março”. Em Tucumã, as entrevistas com

trabalhadores foram feitas no loteamento “Lago das Rosas”, em um “grilo” em área de

propriedade de um órgão do Ministério da Agricultura, em cerca de 6 dormitórios e num

bar próximo à Rodoviária da cidade. Também foram visitados alguns dormitórios em São

Felix do Xingu (“hotéis pioneiros”), no momento da pesquisa inicial de campo. Ao longo

do período, participei, de maneira geral, como convidado e observador, das atividades

diárias da CPT do Alto Xingu, em especial, da equipe de Ourilândia do Norte/Tucumã,

além de outras, mais gerais, como foi o caso de um Retiro dos Movimentos Sociais em

São Felix do Xingu (agosto de 2012), do I Encontro da Juventude Atingida pela

Mineração de Canaã dos Carajás (outubro de 2012) e de um Encontro de Formação do

Movimento dos Atingidos pela Mineração, em Marabá (novembro de 2012).

Além disso, em janeiro e fevereiro de 2013, mantive contato e obtive autorização

para visitar e ter acesso aos dados produzidos por instituições de denúncia das condições

de trabalho e vida de trabalhadores rurais, como foi o caso da Campanha de Combate ao

Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (“Escravo nem Pensar”, CPT/CRS) e o

Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo da Escola de Serviço Social

da UFRJ (GPTEC/UFRJ). A partir do contato com o GPTEC, que utiliza principalmente

Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

25

os dados produzidos pela CPT, obtive os arquivos digitais de todas as denúncias no Brasil

nos anos 2010, 2011 e 2012, gentilmente enviados pelo coordenador da Campanha

Nacional, Xavier Plassat. E, junto com os mesmos, ao longo do ano, também obtive as

publicações que buscaram analisar e consolidar esses dados nos últimos anos. Por outro

lado, todas as visitas às instituições também foram oportunidade para ter acesso a

panfletos, jornais, arquivos digitais, pastas e documentos de maior ou menor interesse

para a pesquisa, assim como suas mídias eletrônicas. Dados sobre condições de trabalho

no Brasil e no mundo foram retirados de fontes diversificadas: outras pesquisas

publicadas, dissertações e teses, relatórios de agências internacionais, conteúdo das mais

variadas publicações na internet, como blogs, sites de recrutamento, fotos, etc.

Essa etapa de pesquisa visou dar prosseguimento a investigações anteriores,

buscando informações a partir de situações em que uma determinada parcela de

trabalhadores estivessem em trânsito ou recém estabelecidos em municípios que se

transformaram rapidamente nos últimos anos, ou que representassem um rumo recorrente

de fluxos do tipo. A escolha de um contexto em que tal fluxo se estrutura a partir da

implantação de uma megamina e de suas atividades associadas, entretanto, requer ainda

outras notas iniciais, sobre as condições de pesquisa e de produção científica.

A implantação da empresa se deu, dentre outros, a partir de dispositivos comuns

aos grandes projetos, ou seja, a partir de técnicas de resolução negociada de conflitos

empregadas por agências do Estado ou de instituições da chamada “sociedade civil” que

significam, na verdade, a própria imposição da negociação e execução mediada das ações

estratégicas de acumulação do grande capital.

A apresentação da empresa Vale como responsável pelo “desenvolvimento” e

pelo “progresso” faz com que as intervenções e os investimentos da rede de produção

representada por ela se deem com amplo apoio de órgãos de financiamento público e com

incentivo fiscal e político dos agentes de governo municipais, estaduais e federal. Em

contraponto, a implantação desses empreendimentos vem ocasionando conflitos,

principalmente a partir da luta por indenizações ou contra as desapropriações de pequenos

produtores rurais. Nos últimos anos, ocorreram vários protestos públicos e foi organizada

uma ampla rede de movimentos sociais específicos, como o Movimento dos Atingidos

pela Mineração, a Justiça nos Trilhos e a Articulação Internacional dos Atingidos pela

Vale4. Por outro lado, como friso adiante, desde 2005, os índios Xikrin e Kayapó,

4 Uma série de manifestações convocadas por associações de pequenos produtores rurais, sindicatos de

trabalhadores rurais, entidades e movimentos de apoio em geral ocorre em vários municípios do sudeste do

Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

26

vizinhos do empreendimento, também reivindicam indenizações e compensações pelos

danos causados pela abertura da Mina, mediados por suas próprias associações indígenas,

pela Fundação Nacional do Índio e pelo Ministério Público Federal.

A realização do trabalho de campo dessa pesquisa, portanto, se insere em um

contexto mais amplo de luta política, no qual, nem o pesquisador e tampouco a própria

produção de conhecimento está descolada, em certo sentido. No período em que

desenvolvi minhas atividades havia, nesse sentido, uma disputa política bastante intensa

e desigual entre aqueles que buscavam demonstrar os “benefícios trazidos pela

mineração” (e “pela Vale”, em particular) e os que demonstravam “o saque e a pilhagem

das riquezas naturais” que representa a expansão da indústria da mineração conduzida

pelo capital transnacional, meio no qual estive posicionado e a partir do qual, via de regra,

conduzi as investigações. Havia, assim, uma verdadeira guerra de números do que gera a

mineração na região, cada qual recorrendo a estatísticas favoráveis ao seu argumento, e

nem sempre de forma confiável. Eram comumente citados pelos agentes em disputa dados

como renda bruta do município, renda per capita, Índice de Desenvolvimento Humano,

crescimento econômico, número de empregos, características dos empregos gerados,

ocupação desses postos de trabalho, número de instalações de unidades públicas de

atendimento à saúde e outras instalações públicas, crescimento da população, propriedade

das terras, violência, etc. Além desses, também eram citados outros dados de mensuração

ainda mais difícil de se atingir algo objetivo como é o caso da “melhoria das condições

de vida”, prostituição, poluições, impactos ao meio ambiente, etc. Esse campo político,

porém, antagoniza agentes em extrema desigualdade de poder entre si, concentrando, em

especial, no pólo daqueles que são “favoráveis à mineração” praticamente todas as

posições de prestígio e instrumentos de poder, com a exceção de algumas associações de

moradores, de pequenos produtores rurais, alguns movimentos sociais e sindicatos de

trabalhadores e suas mídias associadas, em geral, de circulação restrita e com pouco poder

de difusão de informação.

A produção acadêmico-científica também não estaria fora dessas influências,

como se pode verificar, por exemplo, no apoio financeiro a determinadas publicações e

pesquisas que a Vale oferece diretamente ou através de associações científicas e/ou de

Pará desde 2008. Os movimentos são organizados em redes coordenadas pelos movimentos Justiça nos

Trilhos e Fórum Carajás.

Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

27

fomento à pesquisa acadêmica5. A proibição que os funcionários da empresa têm de se

pronunciar a respeito das ações que desenvolvem, ou, às vezes, de se pronunciar sobre

qualquer outro assunto, sob pena de serem demitidos ou até mesmo processados

judicialmente, é outro exemplo6.

No caso das prefeituras municipais e outros órgãos de governo do Estado, a perda

ou ganho de arrecadação advindas das decisões das empresas de mineração estão sempre

em jogo em qualquer evento, campanha ou mesmo pronunciamento público a respeito de

assunto que possa vir a ser relacionado às atividades extrativas desenvolvidas no próprio

município ou nos municípios vizinhos7.

Mesmo entre aqueles que, por ofício ou por convicção, estiveram posicionados no

pólo oposto, foi comum acompanhar em campo uma série de desconfianças e de disputas

a respeito de como agir a respeito das ações da empresa: se deviam combater as

expropriações ou não, aceitar indenizações ou não, aceitar apoios financeiros para

projetos ou não, fazer ou participar ou não de uma manifestação, apoiar um ou outro

grupo e/ou movimento, receber ou não um pesquisador (possível infiltrado policial ou

espião da empresa, pesquisa confiável ou não), dentre muitas outras questões.

5 A Vale, além do “Prêmio Vale-Capes de Ciência e Sustentabilidade”, junto à Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de nível superior (CAPES, órgão do Ministério da Educação), também

mantém convênio para promoção de pesquisas de interesse com fundações de amparo à pesquisa dos

estados em que localiza suas operações (Fapesp, Fapemig, Fapespa e Faperj, dentre possíveis outras). Cf.

http://www.vale.com/brasil/PT/aboutvale/news/Documents/Rev_Pesquisa_Fapesp_Jan15_Medidas_espac

iais.pdf . Sobre o Prêmio, ver a Carta de repúdio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em

Planejamento Urbano e Regional (ANPUR, 2012). 6 Em campo, fui informado por um funcionário operacional de nível médio da Vale que ele estaria

desenvolvendo uma pesquisa para seu Trabalho de Conclusão de Curso de graduação numa universidade

privada, à distância, e não foi autorizado a citar o nome da empresa, referindo-se às transformações no

município pós-implantação da Vale como relacionadas aos “empreendimentos minerários da região”. Em

outro momento, também tomei conhecimento que os funcionários da Vale seriam incentivados nos cursos

e treinamentos internos a se portarem de forma diferenciada mesmo fora dos portões da empresa, por serem

corresponsáveis pela “imagem da empresa”. 7 Em entrevista realizada por mim em 12/11/12, o prefeito em exercício de Ourilândia do Norte (porém

recém-derrotado nas eleições de 2012), ao se referir ao contexto de transformações provocadas pela

abertura da Mineração Onça Puma, dizia, por exemplo, que a Vale era o próprio “Deus na Terra”. No

período eleitoral, um dos candidatos a prefeito nessas cidades chegou a pedir direito de resposta alegando

que seu adversário teria lhe ofendido ao dizer que ele era “contra a mineração”.

Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

28

CAPÍTULO 1:

MINAS

1.1) A pequena produção agropecuária e os trabalhadores “no mundo”

“O próprio movimento é uma contradição”, cita Mao em “Sobre a contradição”.

A frase é de Engels, Parte I de “Anti-Dühring”:

“Certamente, desde que nos limitemos a focalizar as coisas como se

fossem estáticas e inertes, contemplando-as isoladamente, cada uma de

per si, no tempo e no espaço, não descobriremos nestas coisas nenhuma

contradição. Encontrar-nos-emos com determinadas propriedades,

umas comuns e outras diferentes e até mesmo contraditórias entre si,

mas que não encerram uma contradição verdadeira uma vez que esta se

encontra distribuída entre diversos objetos. Nos limites desta zona de

observação podemos aplicar o método vulgar da metafísica sem

nenhum perigo. Mas a coisa é diferente se quisermos focalizar os

objetos dinamicamente, acompanhando-os em sua mobilidade, vendo-

os transformar-se, viver, e influir uns sobre os outros. Ao pisar neste

terreno, cairemos imediatamente numa série de contradições. O próprio

movimento, por si mesmo, é uma contradição; o deslocamento

mecânico de um lugar para outro somente pode ser realizado por estar

um corpo, ao mesmo tempo, no mesmo instante, num e noutro lugar e

também pelo fato de estar e não estar o corpo ao mesmo tempo no

mesmo local. A sucessão contínua de contradições desse gênero, ao

mesmo tempo formadas e solucionadas, é precisamente o que constitui

o movimento” (Engels. [1878]. Parte I, seção 12).

Grosso modo, é o “movimento” que vem sendo abordado por mim, porém não

apenas nessa pesquisa. A pesquisa realizada no Doutorado é, na verdade, um

desdobramento de uma pesquisa mais ampla realizada desde 2005 no sudeste do Pará,

cujos dados iniciais foram obtidos a partir da condição de estudante de mestrado em

Antropologia na Universidade Federal Fluminense e, ao longo de um ano e meio, como

antropólogo do Ministério Público Federal no Pará. O interesse dessa pesquisa agora em

desenvolvimento e a construção de seu objeto muito devem aos resultados anteriores. A

própria delimitação do estudo de uma fração específica de trabalhadores que aqui

denominarei “trabalhadores no mundo” se deve a uma categoria com que me deparo em

pesquisa de campo desde 2005 e que sigo analisando em textos, comunicações, mesas

Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

29

redondas, etc, desde 20068. O Projeto de Pesquisa do Doutorado na UNICAMP visava,

desde o início, estudar essa fração de trabalhadores em situação diferente da que analisei

mais detidamente em etapas anteriores, ou seja, agora, não mais a partir de uma situação

de posse da terra, como moradores de um Projeto de Assentamento Rural, mas a partir de

situações em que estivessem circulando “no mundo”, tal como explico a seguir.

Antes, dentre outras questões, busquei compreender as formas de constituição e

de reprodução social de um determinado conjunto de pequenos produtores no sudeste do

Pará (ver Felix, 2008; 2009; 2010)9. Assim, deparei-me com um contexto no qual o

deslocamento espacial era constitutivo do percurso de parcela dos pequenos produtores,

o que sugeria, inclusive, a incorporação de uma noção de vida e de certo condicionamento

social, na medida em que:

“(…) ao conversar sobre estes deslocamentos, algo que não deixava de

saltar aos meus olhos era o sentido que meus interlocutores davam a

suas histórias e às suas experiências pretéritas, sugerindo a

incorporação de uma determinada noção de vida como trajetória. Esta

noção estaria a informar certa maneira de encarar e de organizar o

mundo sob situações às vezes bem perversas, ao expressar, por

exemplo: a crença na busca pelo “sucesso”; na mudança como opção

para se alcançar este sucesso, ou como opção de recomeço, ou de

prosseguimento; na terra como algo a ser transformado; na existência

de terras livres à Oeste; na reconstrução do mundo do parentesco e da

reagrupação familiar original; na noção de que o patrimônio da família

pode “se mudar”, seja no sentido da acumulação ou de que pode se

transferir espacialmente, de um local para outro; enfim, na crença da

vida em geral como uma espécie de “universo aberto”. Ao conceber a

vida como uma trajetória fazia sentido relacionar certas situações como

sendo características de retorno ou de avanço, falando sobre a ocasião

em que se “voltou a sair na diária” ou na que se “passou a ser dono da

terra”. Estaria também relacionada a um sentimento de transitoriedade,

motivando o incômodo (ou a aceitação) com uma situação de

assalariamento e/ou de estar sem acesso a terra considerada própria; a

noções de vida que agem como amortizador das reais condições de vida

e como amenizador do sofrimento, visto, de certa forma, tanto como

necessário quanto como eternamente passageiro”. (Felix, 2008: 227).

8 Diferentes resultados da pesquisa já foram apresentados em reuniões da ABA, RAM, ANPOCS,

REA/ABANNE, ABEP, ALASRU, AMET, dentre outras, assim como em alguns eventos na UFF e na

antiga UFPA campus Marabá (atual UNIFESSPA) em que fui convidado. As principais publicações são as

que estão citadas aqui (Felix, 2008; 2009; 2010). 9 Embora não seja intenção abordar aqui a intensa e sempre renovada luta de classificações a respeito da

questão, cabe mencionar que a escolha da referência a “pequenos produtores” visa dar conta da miríade de

arranjos em que se constitui a pequena produção independente rural, sem, contudo, atribuir uma essência à

chamada “unidade de produção camponesa”, dentro da tradição de Velho (1982), Neves (1995) e outros.

Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

30

A possibilidade de se “voltar a sair na diária”, dependendo de uma reviravolta na

situação em que se encontravam no momento da pesquisa, era uma condição plausível. O

“retorno” se devia a uma memória dos tempos em que formavam as pequenas poupanças

e estabeleciam as transações necessárias para, enfim, se constituírem na situação em que

se encontravam, na posse da terra, como pequenos produtores assentados. “À diária”, ou

seja, ao pagamento por dia de trabalho braçal, que, na região, identifica o mais

despossuído de todos os trabalhadores que circulam, aquele que não possui sequer os

instrumentos de trabalho, realiza os mais árduos serviços – como é o caso da limpeza de

pastos (roçagem de “juquira”10) – e que normalmente está vinculado a um intermediário,

que fez um trato com o patrão e recebeu desse pela tarefa (empreita), subcontratando o

trabalhador diarista. Esse “retorno” era plausível porque, tal como ficava claro em seus

percursos até aquele momento, o acesso a terra não significava para eles necessariamente

permanência, como, inclusive, já acontecera antes e, portanto, demonstrava sua

experiência. E, por outro lado, mesmo a possibilidade de ascensão, de “avanço”, em geral,

era vista a partir do deslocamento “definitivo” para a rua, possuindo ou não outra terra,

ou uma sonhada fazenda11. No caso de um dos grupos de pequenos produtores que

encontrei, houve até aquela situação uma série de deslocamentos, rearranjos familiares e

trabalhos variados, certas vezes, com “retornos”, outras com “avanços”. O gráfico a

seguir ilustra um desses percursos, de um pequeno produtor que tinha 66 anos e que

iniciou sua jornada, então, quando tinha 14 anos, na década de 1950:

10 Forma como é denominada a vegetação secundária. Os usos dessa palavra, contudo, se estendem a

situações bem mais amplas. 11 Rua é um termo utilizado para designar tanto as pequenas vilas e cidades da região quanto outras cidades

como São Paulo, Goiânia, Imperatriz, Marabá, etc. Terra se refere a parcela do pequeno estabelecimento

rural, em geral, cuja posse é atribuída ao chefe de um grupo doméstico. Fazenda é normalmente atribuído

às médias e grandes propriedades rurais voltadas principalmente para a produção pecuária extensiva de

corte. Para maiores detalhes e análise, ver Felix (2008).

Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

31

Gráfico 1: exemplo de percurso

Para esse grupo cujo percurso acima é um exemplo, o período que compreendia a

circulação anterior àquela situação de posse da terra era designado como um período em

que estiveram “no mundo”. Dessa forma, parte considerável dos pequenos produtores

com quem eu dialogava, portanto, referiam-se a suas histórias da época em que estavam

“no mundo”, aos trabalhos nas fazendas e nas cidades, doenças, brigas, mortes, várias

mudanças, aos tempos de solteiro, etc. Enfim, a tudo o que compreendia sua circulação

anterior, quando não estavam na condição de pequeno produtor, o que naquele contexto

significava também, necessariamente, estarem casados, quer dizer, em união conjugal,

com a constituição de um grupo doméstico composto por, no mínimo, um homem, mulher

e crianças. (Entretanto, os casamentos anteriores, no momento em que conversavam

comigo, também integravam esse tempo que passaram no mundo.) A expressão “no

mundo” também localizava irmãos em outras regiões ou até eles mesmos, no futuro, caso

as condições de permanência se alterassem: “se precisar, saio de novo no mundo”. Com

ela, portanto, em geral, faziam uso de uma localização social específica, que relacionava

determinadas relações de trabalho (principalmente como assalariado, “peão”, trabalhador

Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

32

braçal) a uma duração indefinida, ou seja, a uma condição que podia durar meses, anos

ou mesmo décadas, subentendida, sempre, enquanto uma condição de grande mobilidade

espacial.

Essa condição também era atribuída aos jovens filhos homens que saíram de casa

em busca de trabalho. O paradeiro deles era desconhecido, perdido pela falta de

informações e pelas constantes mudanças que teriam feito ou estariam fazendo. Da última

vez que se teve notícia, estariam “de fazenda em fazenda”, em algum garimpo “na

Guiana”, “pros lados da cidade” X ou Y, etc. No momento em que saíram da companhia

dos pais, eles eram solteiros, tinham entre 14 e 25 anos em média e buscavam oferecer

serviços braçais em troca de estadia, salário e/ou diárias. Essa situação, “estar no mundo”,

era mais ou menos previsível, tida como quase normal de acontecer num dado momento

com os filhos naquele contexto. Alguns desses filhos que saíram no mundo voltaram e,

com novo status na família, buscaram se estabelecer também como pequenos produtores,

em uma nova terra (o que envolvia algumas poupanças e acesso a uma série de condições

que estavam disponíveis apenas para uma minoria). Outros teriam se estabelecido nas

cidades do sudeste do Pará ou em outras regiões do país, e não vieram a se constituir

como pequenos produtores rurais. Esses trabalhadores no mundo, portanto, já

compunham, no mínimo, duas gerações seguidas de pessoas que se deslocaram para o

Pará, ao longo da frente de expansão agropecuária iniciada nos anos 1960. O gráfico a

seguir exemplifica o destino dos irmãos e filhos de um desses pequenos produtores, na

situação que encontrei em 2005 e 200612. Em 2011, fui informado que ele mesmo também

teria saído no mundo.

12 Sobre as denominadas “filhas fugidas” e a mobilidade específica das mulheres naquele contexto, ver

Felix (2008).

Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

33

Gráfico 2: trabalhadores “no mundo” (Fonte: Felix, 2008: 158)

A formação dessa fração de trabalhadores aqui designada como “no mundo” está

relacionada a uma série de fatores que não pretendo investigar sistematicamente neste

texto, até mesmo porque significaria o investimento em um tipo de pesquisa que não fiz.

Dentre outros fatores, significaria investigar a precariedade da reprodução social e

Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

34

econômica da pequena produção agropecuária na região13, assim como os processos de

concentração e centralização do capital na agricultura, o que se reflete, no caso, na

expansão das grandes e médias propriedades rurais e na expansão da pecuária extensiva

e instalação de frigoríficos, na maioria das vezes subsidiada por políticas públicas e

financiamentos de bancos públicos e privados. No entanto, é importante notar que os

processos que se desenvolveram desde o início da frente de expansão agropecuária nos

anos 1950 alteraram até mesmo o sujeito político da luta pela reforma agrária, tal como

resumem Afonso et al. (2010) com o sugestivo título “De posseiro a sem-terra” 14.

Comentando a consolidação do MST no Pará, que ocorreu em meados dos anos 1990,

eles afirmam:

Os avanços do Movimento se deram por meio da organização do

mesmo setor social envolvido na luta dos posseiros. Essa camada da

população era composta principalmente de trabalhadores pobres,

muitas vezes analfabetos, imigrantes de municípios do interior do

Nordeste, em particular do estado vizinho do Maranhão. Em geral,

tinham algum histórico na lavoura, entretanto, incapazes de obter terra,

muitos trabalhavam em minas de ouro ou serrarias ou como

empregados de fazendas de gado ou em áreas urbanas. Críticos do MST

costumavam dizer que os recrutas do Movimento eram mais urbanos e

tinham menos ‘vocação para agricultura’ do que os posseiros. Contudo,

não há muita evidência quanto a isso. As famílias que compunham o

MST provinham de áreas urbanas em virtude da rápida ocupação da

13 Falta de acesso a agentes de mercado, de condições de mercado ou ausência de condições técnicas de

reprodução econômica da pequena produção – rebanho geneticamente qualificado, esgotamento do solo,

rotação de pastagens, etc –, deslocamentos por doença, envelhecimento, assassinatos e ameaças de morte,

endividamentos, etc. 14 Um desses processos foi a própria diferenciação interna que caracterizava a frente de expansão. O

denominado “desenvolvimento camponês ‘espontâneo’”, tal como definiu Velho (1976: 206-208), que se

expandia a partir dos anos 1950 no Maranhão e sul do Pará, já distinguia três camadas de camponeses: uma

“camada superior de culaques”, uma espécie de “campesinato médio” e a “massa do campesinato”. Segundo

ele, os culaques utilizavam “mão-de-obra contratada permanente e assim por vezes torna-se difícil decidir

se ainda são camponeses”; os médios eram camponeses que utilizavam “mão-de-obra temporária ou

permanente extra-familiar (em geral constituída de recém-chegados à área), mas nunca a ponto de torná-la

mais importante do que a força de trabalho familiar”; e os demais eram os que eventualmente utilizavam

mão-de-obra extrafamiliar “por ocasião da colheita” (é importante observar que nos últimos 30 anos houve

um processo de pecuarização da pequena produção e os camponeses deixaram quase completamente a

produção do arroz que caracterizava o início dessa expansão). Ao analisar a titulação de terras realizada

pelo antigo Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT, que substituiu o INCRA sob a

intervenção fundiária que se seguiu à repressão à Guerrilha do Araguaia), Almeida (1986: 291) também

distinguiu uma pequena camada de camponeses que “praticamente já se descampesinizou e gere, na

verdade, uma empresa rural com força de trabalho contratada” dos camponeses “pobres”, que, “recebendo

lotes inferiores aos módulos regionais, insuficientes para seu grupo familiar e dispostos em áreas

inaproveitáveis ou de utilização difícil, sua condição é percebida como insustentável. Frente a tais impasses,

aqueles que persistem buscam compensar as possíveis perdas com maior ênfase em atividades antes

acessórias como o garimpo, o trabalho na ferrovia ou em empresas construtoras”. Sobre a pecuarização da

pequena produção no sudeste do Pará, ver Michelotti e Rodrigues (s/d).

Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

35

terra pelas enormes fazendas de gado que fizeram da Amazônia,

diferentemente de outras fronteiras agrícolas na história do país, uma

região de fronteira maiormente urbana. (Afonso et al., 2010: 269).

Outro fator que, sem dúvida, contribuiu para a formação desse contingente de

trabalhadores foi a significativa expansão da indústria da mineração que ocorreu, em

especial, a partir da última década. Com ela, além da atração de trabalhadores das mais

variadas regiões que têm origem na pequena produção agropecuária, como analiso mais

adiante, há o processo de espoliação direta e indireta das terras antes destinadas a esta

produção para a implantação das minas, das unidades de beneficiamento mineral e de

toda a logística necessária para a frente de expansão da indústria da mineração, em sentido

amplo15.

A pesquisa visou, portanto, em um primeiro momento, investigar as condições de

trabalho e de deslocamento desses trabalhadores que saíram “no mundo”, tal como, dentre

outros, os pequenos produtores assentados se referiam. Afinal, como, de fato, se

reproduzia essa força de trabalho no mundo? A curiosidade inicial se relacionava ao

próprio intervalo compreendido nessa noção, que não delimitava de antemão nem período

e nem destino fixos, apenas a saída e, quando se tratava dos filhos, em certos casos, o

retorno. A intenção, entretanto, não era analisar a força de trabalho de origem camponesa

a partir dos percursos daqueles que estão ou retornaram para essa condição, mas sim a

partir “de dentro”, ou seja, a partir dos percursos daqueles que estão circulando no tal

mundo. O objeto, então, não foi a reprodução camponesa, mas a circulação mercantil das

forças de trabalho de origem camponesa e, enfim, ao longo da pesquisa, a própria

circulação da força de trabalho em geral.

No momento da construção do Projeto de Pesquisa, em 2009, já era possível

sistematizar algumas características dessa fração de trabalhadores “no mundo”, como a

intersetorialidade, a circulação regional, inter-regional e mesmo internacional e a

importância do que chamarei aqui de redes sociais de mobilidade. A intersetorialidade

era nítida na forma como esses trabalhadores transitavam entre diferentes setores da

economia: na rede de produção agropecuária, na construção civil, na produção de

madeira, de carvão, nos garimpos, dentre possíveis outros. Por outro lado, o raio de

circulação se demonstrava bastante extenso, entre cidades da região, mas também em

15 Os processos de espoliação da pequena produção vêm sendo estudados a cada novo empreendimento e

sistematizados, principalmente, pelos pesquisadores vinculados aos movimentos dos atingidos pela

mineração, tal como indicarei a seguir. Ver, dentre outros, Cepasp (2010); Cepasp e Neto (s/d).

Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

36

outras regiões do país (Goiânia, São Paulo, Araguaína, Imperatriz, etc), de países vizinhos

como a Guiana e a Guiana Francesa, assim como de outros países como os EUA. A

mobilidade entre estas regiões se dava principalmente por meio da circulação de notícias,

boatos e informações em geral, os denominados conhecimentos, entre pessoas

conhecidas, familiares e quem mais indicasse uma ou outra localidade considerada “boa

de serviço” ou “quente” para se deslocarem em busca de trabalho16.

Ao longo da pesquisa, tive acesso a publicações de pesquisas recentes que também

encontraram informações que se aproximavam do que eu mesmo encontrara em campo

sobre essa fração de trabalhadores “no mundo”, seja antes, ao reconstituir os percursos

dos pequenos produtores assentados de Nova Ipixuna/PA ou, depois, dos trabalhadores

que entrevistei, tal como apresentarei a seguir. Rumstain (2012), por exemplo, que

estudou os denominados peões no trecho, trabalhadores que se dirigiam para uma cidade

do “agronegócio” no Mato Grosso, assim descreve o caso de um deles (que vinha do

Maranhão)17:

“Quando chegou, foi trabalhar em uma madeireira e se instalou por

quinze dias na casa do amigo. (...) Como a obra que ele estava fazendo

no Mato Grosso havia acabado, decidiu ir embora para o Maranhão. No

retorno conheceu Luiza, com quem está casado até hoje. Em companhia

dela retornou ao Mato Grosso para trabalhar na área de construção civil,

emprego que tem há três anos na empresa de engenharia, cujo

proprietário é paranaense. Antes de começar a trabalhar nessa empresa,

ele trabalhou para um ‘gringo’ de Santa Catarina (...) Trabalhou oito

dias em sua fazenda para fazer o curral, antes de começar a trabalhar na

empresa atual. Com a crise da soja, o prédio que começou a ser

construído nunca foi terminado. ‘O soja é que manda’, explica Felipe.

Assim ele retornou ao Maranhão novamente, por onde esteve nos

últimos dois anos, antes dessa última, e recente, volta ao Mato Grosso”.

(id. ib.: 72).

E ela cita também a circulação desses trabalhadores, que não se restringia à cidade

em que estava:

16 Sobre os conhecimentos e os conhecidos, ver Felix (2008). 17 A autora descreve o deslocamento entre setores dos trabalhadores que procuram a cidade: “A

pluriatividade parece ser a marca dos que não possuem um vínculo ou calendário fixo de atividades ligado

a algum produtor, dos trabalhadores que vieram ‘tentar a sorte’, conforme as palavras de comerciantes que

lidam com a recepção destes trabalhadores em hotéis ou rodoviárias. Esses trabalhadores se dedicam ao

trabalho no campo na época da colheita e a outras atividades na cidade durante outros períodos do ano, em

especial, na construção civil. Um dos responsáveis pelo atendimento no setor de serviço social de uma das

cidades relatou que em razão das necessidades no ramo da construção civil, a agricultura perdeu mão de

obra e, em decorrência desta perda, teve que pagar maiores salários no setor agrícola para atrair a mão de

obra que havia migrado para outro setor” (id. ib.: 30).

Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

37

“A trajetória de Arlindo (36 anos) é um exemplo da circulação dos

trabalhadores entre os mais diferentes destinos. Ele trabalha anualmente

na prensa do algodão de uma fazenda em Cidade do Eixo [Mato Grosso]

ou no trator na época da safra da soja. Em 2005/2006, com a ‘crise da

soja’, foi trabalhar no café, em um município em Minas Gerais. Lá

trabalhou por dois meses na classificação de café, mas conta que o frio

e o salário – mais baixo do que o de Mato Grosso – não o animaram a

retornar. [Em nota] Este ano está retornando mais cedo para o

Maranhão porque a fazenda demitiu muita gente porque não havia

serviço. Arlindo conta que ano passado eles tiveram prejuízo com o

algodão e, nesse ano, plantaram apenas 600 hectares ao invés dos quatro

mil do ano passado. Se Arlindo quisesse trabalhar e permanecer por

mais tempo no Mato Grosso teria que esperar por serviço ainda um mês,

até que se iniciasse a colheita do algodão. Arlindo julgou que seria

tempo demais para esperar, já que estava há oito meses. Como não

queria pagar hotel por um mês ou ensacar feijão nos galpões, ele decidiu

retornar para o Maranhão. Ano passado Arlindo ficou nove meses no

Mato Grosso, período que vai da soja à colheita do algodão. Um dos

irmãos dele está em outra cidade há quatro anos trabalhando como

segurança, e não retorna ao Maranhão, o outro está em um garimpo na

Guiana Francesa, aonde ele pretende ir futuramente” (id. ib.: 93-94).

Guedes (2011), no norte de Goiás, também se deparou com trabalhadores “no

mundo”, com circulação intersetorial e inter-regional18: “Norberto, um dos meus

conhecidos em Minaçu, foi carvoeiro, trabalhou em fazendas de gado, capturou animais

antes do enchimento do lago da Usina [hidrelétrica] de Balbina [Amazonas], foi

percentista no garimpo, fichou como ajudante na Tractebel, foi contratado para instalar

linhas de transmissão... (E foi também faxineiro, enfermeiro, garçom...)” (grifo do autor;

p. 186). E, referindo-se a uma cidade que, após o auge do garimpo e, em seguida, da

construção de usinas hidrelétricas, não mais atrairia esses trabalhadores, Guedes (id.) cita

a fala de um morador:

Pois Minaçu vai é virar, se é que já não virou, uma cidade de

aposentado. Os jovens saindo, porque tem pouco emprego aqui... E aí a

gente fica na dependência das aposentadorias para o dinheiro girar... O

Bolsa Família? Ah, tem sim, dá uma ajuda, mas é pouco dinheiro, é

18 Em campo, em 2005 e 2006, ao longo da pesquisa de mestrado, eu tinha tomado conhecimento de filhos

no mundo que tinham se dirigido para os EUA (Felix, 2008). Guedes (2011: 152-154) cita que algumas

mulheres da cidade de Minaçu/GO tinham como destino a Europa, principalmente Espanha e Suíça, para

prostituição. Na pesquisa de campo do doutorado, voltei a encontrar trabalhadores que tinham ido e voltado

dos EUA (para a cidade, construindo quitinetes e vivendo dos aluguéis) e outros que não tinham voltado.

Lá, trabalharam indocumentados na construção civil. Tratava-se, no entanto, de um ou outro caso apenas,

com praticamente todos os demais circulando no Brasil e países vizinhos (Guianas, Suriname).

Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

38

menos que estas aposentadorias... Eu, como é que me viro? Tem os dois

meninos, uma na vidraçaria e outro trabalhando nessas torres de

transmissão. Esse daí estudou, mas só está conseguindo estes serviços

grosseiros. Aquilo dá problema, volta e meia um toma um choque. Eles

me ajudam um pouco. E às vezes eu consigo roçar juquira pra alguém,

recebo uns trocados... Ou então eles me chamam pra bater um concreto,

às vezes aparece a chance, recebendo o que eles pagam aqui: 30 reais

por dia. Ou 25, se for pra prefeitura. E eu tenho aqui essa horta lá no

fundo, as galinhas, os patos... com isso a gente se ajuda também” (grifos

do autor; id. ib.: 388-389).

Rumstain (id.) descreve o funcionamento das redes sociais de mobilidade

utilizadas por esses trabalhadores, que se deslocam por longas distâncias:

“Severino, 34 anos (AL), relata que em um período de desânimo pelo

qual passou em sua vida, sem perspectivas, ‘ficou sabendo’ que o setor

de construção civil estava crescendo em cidades localizadas no eixo da

BR-163. Severino conta que ‘ficou sabendo’ por meio de conversas que

ele escutou ou de que participou, e explica que ‘a conversa corre assim:

ah, eu tive em tal lugar, lá tá bom de construção... e você vai lá, vai

aventurar (...) a construção é a melhor profissão pro cara que é pobre e

tá andando a procura de um serviço, porque toda cidade que você chega,

se você é bom profissional, arruma um serviço...’. Foi assim que ele foi

para o Mato Grosso e, posteriormente, para o Pará: ‘falaram que era um

lugar muito bom de construção, pequeno, tá começando, apesar de

antigo’. A vantagem do Mato Grosso é que ‘o ganho é sempre melhor

um pouco’, além disso, se conhece muita gente que está na mesma

situação, que veio de outros lugares e que circula muito. As pessoas

dizem ‘ah... vamos pra tal lugar...’, ilustra Severino.

Assim como Severino, Benedito (MA) ficou sabendo, quando estava

trabalhando em uma usina (MT), que estavam ‘pegando’ gente no

algodão em Cidade do Eixo [MT], por intermédio de um vizinho que

mora no mesmo povoado que ele, e que teria ligado da fazenda onde

trabalha direto para o Maranhão. O ‘patrão’ havia pedido indicações, já

que a fazenda estava precisando de mão de obra. Tal vizinho teria

anunciado para os familiares a notícia de emprego, e Benedito, quando

ligou para sua família, ficou sabendo da oportunidade e se dirigiu a

caminho da cidade prometida. Quando estava no Pará, Rubens conta

que ‘saiu o comentário sobre [Cidade do Eixo]’. Um amigo do

Maranhão, que já havia trabalhado com ele no Pará, ligou para chamar

a esposa para morar na cidade. A mulher não queria viajar sozinha e

Rubens, sabendo da possibilidade de emprego fácil na região,

acompanhou a esposa do amigo. Quando Rubens chegou ao Mato

Grosso, o emprego a que o amigo havia se referido tinha acabado”

(Rumstain, 2012: 91).

Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

39

Em pesquisas realizadas em cidades no norte do Mato Grosso em 2000,

Guimarães Neto (2003) também se referiu a uma fração de “trabalhadores braçais” em

frequente deslocamento, criada no processo de ocupação da Amazônia a partir dos anos

1970, com o sugestivo título “Vira mundo, vira mundo: trajetórias nômades. As cidades

na Amazônia”. E assim a descreveu:

A enorme pobreza em que vivem os trabalhadores braçais resulta desse

processo histórico avassalador, contribuindo para o movimento de

homens e mulheres pelo território amazônico, ora nos garimpos, ora nas

derrubadas da floresta, ora nas fazendas, ora levantando cercas nas

propriedades, outras vezes na limpeza de grandes lavouras como a da

soja, algodão, milho, etc. Nas diferentes áreas por onde passam, sem

quaisquer documentos de identidade, recebem as mais variadas

denominações. Em alguns lugares são apenas peões (peões de trecho),

em outros, andarilhos ou mesmo pés-inchados. (Guimaraes Neto,

2003: 58).

Entretanto, num primeiro momento, a questão que permanecia do Projeto era

como e onde estudar essa fração de trabalhadores no mundo?

1.2) O declínio da “grande migração”

No que se refere aos processos de ocupação territorial, ao menos na região Norte,

este contingente de trabalhadores é de tal maneira fundamental que chega a ponto de

alterar de forma significativa a configuração político-administrativa, populacional e

socioeconômica da região. Muitos dos atuais municípios ou se formaram a partir de

núcleos de casas que se expandiram com extrema rapidez, fruto de deslocamentos

populacionais intensos no espaço de poucos anos ou, por outro lado, praticamente

deixaram de existir.

A existência de um contingente como este, inclusive, motivaria a tendência a um

rápido crescimento (ou decrescimento) demográfico de alguns municípios,

acompanhando a divulgação de informações, boatos e notícias de implantação de novos

empreendimentos, de grandes obras, de mineradoras, de siderúrgicas, de garimpos, de

madeireiras, de grandes fazendas, de maior ou menor necessidade de força de trabalho e

da possibilidade de enriquecimentos em determinado lugar ou da melhoria das condições

de vida num outro.

Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

40

Exemplos recentes desta dinâmica no Pará foram os impactos dos anúncios do

“Projeto Sossego” (extração e processamento de cobre e ouro) em Canaã dos Carajás e

de outras minas em Paragominas e em Ourilândia do Norte, que abordarei

especificamente a seguir. No caso do “Projeto Sossego”, hoje da Vale, o movimento foi

imediato ao surgimento dos primeiros boatos do empreendimento, que está em operação

desde 2003, ao sul da planta operacional principal do complexo pioneiro na Serra dos

Carajás. Os dados do IBGE indicavam uma população de 11.139 habitantes em 1996, de

10.992 em 2000 e 26.727 em 2010. Isto significaria uma redução de, aproximadamente,

2% da população entre 1996 e 2000, antes do anúncio e dos boatos da implantação, e um

aumento de 143 % entre 2000 e 2010, depois19.

Em São Félix do Xingu, desde fins dos anos 1990, estaria em curso um decisivo

fluxo ocupacional com a expansão da pecuária extensiva de corte, realizada em grandes

propriedades. O rebanho bovino em São Felix do Xingu era de cerca de 73 mil cabeças

em 1994 e, em 2007, já era estimado em 1,6 milhão de cabeças, um dos maiores do país

(IBGE)20. No Censo realizado em 2000 pelo IBGE, a população do município era 34,6

mil. Em 2010, já era de aproximadamente 91 mil.

Mas essa dinâmica demográfica não é apenas do Pará atualmente. Num momento

em que se observa que antigos destinos, como São Paulo e Rio de Janeiro, apresentam

saldos migratórios negativos desde 2000, a compreensão das que são consideradas pelos

demógrafos “novas formas de circulação populacional” ganhou grande ímpeto. Agora,

seriam processos que não mais se referem a um fenômeno isolado ou que deve ser

especificado entre parênteses, como exceção ou curiosidade, para a denotação dos

chamados grotões do país. A busca por uma caracterização correta dos dados censitários

nacionais, desde os anos 1980, tem levado os demógrafos a experimentar outras noções,

tais como a de “rede”, “circulação”, “pendularidade”, “rotatividade”, dentre outras, visto

que as antigas noções de “sazonalidade”, “migração interna” e mesmo a recém-

denominada “migração de retorno” tendem a cair em desuso21.

Por outro lado, junto com esta guinada demográfica, os estudos sobre processos

de proletarização no Brasil, que antes enchiam as prateleiras, foram relegados a segundo

19 Carmo e Correa (2011) analisaram parte das dinâmicas sócio-demográficas envolvidas na mineração no

sudeste paraense e, a partir dos dados censitários, enfatizaram o papel central desse setor para a ocupação

da região depois da década de 1980. 20 Cabe mencionar que, desde 2007, a região foi declarada livre de febre aftosa e obteve licenciamentos

para exportação. 21 Ver, dentre outros, Baeninger (2008; 2011), Brito e Carvalho (2006), Patarra (2003), Pacheco e Patarra

(1997).

Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

41

plano pelos cientistas sociais. O relativo abandono dos estudos de proletarização parece

ter acompanhado o fim da perspectiva de formação de uma classe trabalhadora industrial,

urbana e assalariada, fruto de fluxos campo-cidade e Nordeste-Sudeste: a “grande

migração” dos anos 1930 a 1970. Neste sentido, com as transformações no mundo do

trabalho da década de 80 em diante, esses processos foram cada vez mais ofuscados e

invisibilizados, por uma série de motivos.

Mas, e agora, com o declínio da “grande migração”? O que ocorre quando a

proletarização não é pensada apenas em relação à formação de um proletariado fabril, de

macacão, do ABC paulista? Como fica essa questão na nova morfologia da classe

trabalhadora e do mundo do trabalho pós-80? E, mais, em especial, como fica após a

crítica das perspectivas dualistas da sociedade latino-americana22? Não é minha pretensão

aprofundar essas questões aqui – que demandariam uma contextualização sistemática da

produção social do conhecimento sociológico e uma sociologia da sociologia brasileira

da segunda metade do século XX em diante – mas elas não deixam de estar, obviamente,

no horizonte de reflexões que me foram apresentadas desde que busquei seguir os rumos

de uma fração de trabalhadores pelo seu “mundo” afora.

Como exemplifiquei, os destinos desses trabalhadores no mundo são vários. A

opção pela pesquisa empírica poderia ter sido outra da que, por fim, escolhi após trabalho

de campo exploratório em 2011 na região da estrada PA-279: uma nova cidade da

indústria da mineração no sudeste do Pará23.

Sendo assim, de imediato, interessou compreender a implantação de novas

unidades dessa indústria no Norte do país enquanto Projetos de Grande Escala, como

propôs Ribeiro (1987; 1991), ao que me referirei como “grande projeto”, acompanhando

a expressão já consagrada na área. Isso significa entender que as características que

definem os grandes projetos estão presentes na forma como se implanta a indústria da

22 Tais como as que foram feitas por Stavenhagen (1981 [1965]) e Casanova (2009 [1969]) no México e,

no caso do Brasil, em especial por Oliveira (2008 [1972]) e, antes, pelos pesquisadores reunidos nos anos

1962-64 na Universidade de Brasília e no Centro de Estudos Sócio-Econômicos da Universidade do Chile

nos anos 1966-73 (dentre outros, Gunder Frank (2005 [1964]) e Marini (2012 [1969], 2008 [1973]). 23 Foram determinantes, nesse sentido, a importância que assume a expansão da mineração no Pará, a

centralidade da indústria extrativa, da Vale, e a inserção do Brasil/América Latina na atual divisão do

trabalho internacional, a dependência, etc, e, antes, a “atração” que exerce essa região sobre os “expulsos”

de outras partes do Brasil, a problemática envolvendo o que chegaram a denominar como “nova fronteira”

da Terra do Meio (apossamento das terras entre os rios Xingu e Iriri), as estatísticas de crescimento

populacional, os boatos dos lugares “bons de serviço”, etc, mas, também, a indicação de um antigo

interlocutor das pesquisas iniciadas em 2005 em Marabá, que intermediou o contato com os membros da

CPT Alto Xingu. E, depois, na pesquisa exploratória, do que conheci sobre o histórico das lutas da equipe

da CPT de Ourilândia do Norte contra a empresa Vale. A “escolha” da pesquisa não foi, portanto, muito

casual. A ideia inicial era se fixar em São Felix do Xingu/PA.

Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

42

mineração, principalmente na região Norte24. E, tal como analiso a seguir, também

significa compreender os grandes projetos como uma forma de produção vinculada à

frente de expansão da indústria da mineração que se desenvolveu na região a partir dos

anos 1970, considerando um contexto de vinculação dependente no mercado mundial, ou

seja, um contexto em que a dependência político-econômica foi reproduzida e

aprofundada a partir das sucessivas frentes de expansão25.

Um grande projeto da indústria da mineração, contudo, guarda especificidades em

relação a outros grandes projetos. Tais especificidades estariam colocadas principalmente

após a fase de construção, uma vez que, antes disso, pouco se diferenciam os grandes

projetos entre si no que se refere ao perfil do trabalho e dos trabalhadores requeridos,

assim como ao seu recrutamento e expulsão. Na fase de operação, porém, há diferença

entre uma nova usina hidrelétrica e uma nova unidade industrial, por exemplo. Antonaz

(1995), estudando a implantação da fábrica de alumínio em Barcarena/PA, acentuou que

uma hidrelétrica requer apenas uma equipe relativamente pequena para sua operação e,

portanto, a partida de praticamente todo o “grupamento estranho” antes atraído para as

obras. Por outro lado, afirma: “No caso do projeto industrial, (...) a perturbação tem

permanência: um grande contingente de trabalhadores envolvidos no projeto, e migrantes

de todas as origens, mantêm um fluxo contínuo de entrada e saída de pessoas, regulado

pela ‘fábrica’” (Antonaz, 1995: 12). Mais adiante, apresentarei algumas características

atuais da indústria da mineração e de suas novas minas “enxutas” a céu aberto.

Em geral, a expansão da megamineração foi e é abordada a partir dos impactos

sobre as comunidades locais, dos processos de espoliação, dos deslocamentos

compulsórios, da luta contra sua implantação ou por indenizações pelos danos sociais e

24 Essa caracterização, baseada em determinados fatores inter-relacionados (grandes inversões de capital

gerenciadas por poderosas burocracias vinculadas a interesses internacionais e nacionais, gigantismo,

isolamento, caráter temporário) também poderia se referir a outros contextos, tal como se verifica a partir

da literatura que analisa a mais recente e expressiva expansão das transnacionais da mineração no Brasil e

na América Latina (dentre outros, Fernandes et al., 2011; Svampa e Antonelli, 2010; Delgado Ramos, 2013,

2010; Seoane, 2013). Essa relação, no entanto, requer um investimento analítico que ultrapassa os limites

desse texto. 25 Essa dependência, porém, deve ser compreendida de forma processual e não teleológica, tal como

esboçado a seguir. Ainda que a defesa de uma perspectiva teórico-metodológica de processualidade da

dependência não esteja especificamente em questão aqui, recorrer a uma interpretação teleológica seria

extremamente pobre, mesmo quando sua aparência é bastante atraente a posteriori. Afinal, como se verifica

atualmente, especialmente após os últimos 50 anos, o desenvolvimento dessas frentes de expansão terminou

por constituir uma região integrada de forma dependente ao mercado mundial como lócus para a produção

de minérios, especialmente ferro, e, na última década, também para a produção de carne a partir de uma

cadeia de produção com o capital concentrado em uma ou duas grandes empresas voltadas para exportação,

cujos fornecedores, aos quais os pequenos produtores estão subordinados, são grandes e médias empresas

agropecuárias.

Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

43

socioambientais, das resistências de camponeses, trabalhadores rurais, indígenas, etc, das

transformações ambientais, sociais e culturais dessa população local em geral26. No

entanto, como minha intenção era analisar a relação entre os trabalhadores no mundo e a

indústria da mineração, concentrei a pesquisa principalmente nos fluxos que envolviam a

fração espoliada ou “atraída” dos trabalhadores, no grupo de trabalhadores não

especializados dos grandes projetos27 – aquela força de trabalho cujas posições Lins

Ribeiro assinalou como sendo “ocupadas por homens recentemente proletarizados”

(1991: 139, nota 1) – e não os bichos de obra, que são a fração especializada da força de

trabalho dos grandes projetos)28. Os demais processos, por razões óbvias, como descrevo

26 Nesse caso, o deslocamento do objeto de estudo dos antropólogos de língua inglesa que pesquisavam em

contextos envolvendo a mineração pode ter tido alguma influência. Se, para estes, até os anos 1980 o objeto

foi predominantemente a migração – Godoy (1985: 211) chega a afirmar que haveria uma “obsessão pela

migração” – nas décadas seguintes, ele teria se deslocado para a emergência, transformação, colaboração e

resistência das denominadas comunidades locais. Essas comunidades já são compreendidas, inclusive,

enquanto um dos agentes envolvidos dentro de um modelo agora “triádico” de análise dos empreendimentos

minerais (empresa, Estado e comunidade). Analisando essa literatura, Ballard e Banks (2003), no entanto,

indicaram que o que se designa como “comunidade local” apenas pode ser entendido a partir e em relação

aos próprios projetos da mineração: “Of the three core categories of stakeholder in the mining community,

the so-called local communities are both the most recent addition and the most flexible and extensible

group. The boundaries and roles within the mining community of the corporations and the relevant

government agencies appear relatively prescribed and, in some aspects, mutually complementary. In

contrast, local communities are only summoned into being or defined as such by the presence or the

potential presence of a mining project. This is not to deny somehow the existence of other forms of

community prior to the mine’s presence or to suggest that these communities do not play an instrumental

role in their own definition. Our intention, instead, is to stress that the composition of the local community

in the context of a broader mining community is in no way certain or predictable. Particular, contingent

histories of engagement around mining projects yield specific forms of local community, which are

themselves subject to continuous processes of transformation over the life of a mining project” (Ballard e

Banks, 2003: 297). 27 A distinção entre especializados e não especializados utilizada aqui se refere a uma segmentação usual

do mercado de trabalho dada pela hierarquização social dos saberes dos trabalhadores. Nesse sentido, está

referida principalmente à distinção entre os trabalhadores contratados a partir de saberes atestados por

escolas técnicas e diplomas de ensino formal em geral e os trabalhadores cuja comprovação de saberes

prévios não é requerida ou é atestada pela prática e pela experiência (normalmente comprovada por

contratos de trabalho anteriores, registro em CTPS, “provas práticas” ou outros meios, como cartas de

indicação). Certos casos, em meio aos não especializados (ou não detentores de diplomas escolares e

certificados de aprovação em ensino formal), distingue-se aqueles que seriam os trabalhadores “com

profissão” (também comumente designados “semiqualificados” pelos agentes de recrutamento das firmas)

frente aos “serventes” (ajudantes): mecânicos, pedreiros, eletricistas, bombeiros, carpinteiros, etc. No

capítulo “Firmas”, abordo algumas questões a respeito das práticas de recrutamento e do que os

trabalhadores designam “classificação”, momento em que lhes é atribuída formalmente uma “profissão”

nas firmas, bem como o trânsito entre essas posições e também entre diferentes “profissões”. 28 À medida que ia desenvolvendo a pesquisa, essa fração de trabalhadores adquiriu cada vez mais

importância social e política. É a que protagonizou os maiores e mais radicalizados conflitos em um

contexto de grandes obras, ideologia neodesenvolvimentista, PACs, megaeventos, etc, como foi o caso das

greves e revoltas de Jirau e Santo Antônio em 2011, seguidas às pressas da intervenção militar e dos

sindicatos, centrais sindicais, governos, etc, em prol da “pacificação” e de Acordos Nacionais tripartites. A

cada novo conflito, as questões gerais do Projeto eram renovadas: afinal, que classe trabalhadora era essa?

Que “proletarização” é essa?

Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

44

no texto, também foram acompanhados em campo, mas não da forma como os que me

interessavam diretamente foram29.

1.3) Frentes de expansão e dependência

Em 1972, Otávio Velho anunciava um “terceiro tempo” das frentes de expansão

que alcançavam a região de Marabá, no Pará. Esse seria bastante diferente das ocupações

anteriores, exemplificadas por ele em uma pesquisa de campo em São Domingos, uma

localidade camponesa formada a partir da frente de expansão agrícola que vinha do

Maranhão, relativamente isolada, e, por outro lado, pela rápida alteração provocada pela

construção da estrada PA-70 (atual BR-222), o ramal de Marabá à Belém-Brasília, que,

em 1969, foi a primeira ligação rodoviária da região com os centros e demais mercados

do país. O ramal de Marabá e, logo em seguida, a Rodovia Transamazônica (pela qual

Otávio Velho se vê obrigado a escrever mais um capítulo antes de publicar o livro)

representaram a chegada de agentes que alteraram profundamente a paisagem social,

como era o caso dos pecuaristas. Ainda nada comparável, porém, com o que se avizinhava

a partir do anúncio do novo “tempo” que acompanharia a construção das estradas, na

época ainda em um tom especulativo:

São Domingos e a PA-70 representam exemplos de dois tempos

diferentes na sobredeterminação local de forças produtivas geradas no

âmbito de sistemas envolventes, que transformam o quadro da região.

Há, porém, um exemplo, ainda embrionário, do que virá a ser um

terceiro tempo, que vai sendo gerado de uma maneira praticamente

autônoma de tudo o que vem ocorrendo na região. É como que um

‘segundo reverso da medalha’.

Uma empresa subsidiária da poderosa United States Steel passou a

pesquisar há alguns anos importantes jazidas de ferro na serra dos

29 A implantação da mina na cidade escolhida foi, inclusive, referência nacional ao longo do processo de

resistência que lhe opuseram os pequenos produtores espoliados em diversos momentos, com fechamentos

de estradas, negociações por indenizações e reassentamento. Ver CPT (2013) e Guedes (2012). O processo

de luta e negociações com os índios Xikrin e com os Kayapó foi acompanhado por mim ainda no início do

licenciamento do empreendimento, em 2005, no MPF. Atualmente, há uma Ação Civil Pública contra a

empresa em curso. Em junho de 2014, os Xikrin ocuparam e fecharam a portaria da Mina (in:

http://saladeimprensa.vale.com/pt/releases/interna.asp?id=22711. 15/06/2014). Em 14 de agosto de 2015,

uma nova decisão judicial determinou a paralisação das operações da MOP e o pagamento de indenização

aos índios, após comprovação da contaminação do Rio Cateté. Aproximadamente três semanas depois, em

02/09, a Vale anunciou decisão liminar, suspendendo a anterior e garantindo a retomada da produção. (in:

http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/onca-puma-mineracao-de-niquel-da-vale-contamina-aguas-no-

sudeste-do-para-e-tribunal-ordena-paralisacao; in: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/vale-

obtem-liminar-para-retomar-mineracao-em-onca-puma).

Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

45

Carajás, situadas no interior do município de Marabá, na direção do

Xingu, em área isolada, a 700 metros de altura e trinta minutos de voo

da cidade de Marabá. Os trabalhos de prospecção revelaram tratar-se de

jazidas pelo menos tão importantes quanto as do quadrilátero ferrífero

de Minas Gerais, com o que o Brasil passaria do terceiro para o primeiro

lugar no mundo em reservas de ferro. O teor de pureza do ferro é dos

mais altos. Além do ferro, descobriu-se também manganês, estando

avançados os trabalhos de prospecção.

Feita a avaliação das reservas de ferro, no início de 1970 formou-se uma

companhia através de uma associação em que 51% das ações ficaram

nas mãos da Companhia Vale do Rio Doce e o restante com a firma de

origem norte-americana. Calcula-se que vários anos serão gastos na

realização dos investimentos necessários ao início da exportação do

minério – que só pode ser em grande escala – entre os quais se incluem

uma linha de estrada de ferro na direção de Belém ou do litoral

maranhense numa extensão de cerca de 700 km, além de cais

apropriado, ou uma estrada até o Tocantins combinada com extensas

obras de regularização do curso do rio.

Trata-se de um investimento de capital que já alcançou muitos milhões

de dólares, embora desse total relativamente pouco tenha ficado até

agora na região. As autoridades municipais não são consultadas sobre

o que vai ocorrendo, as negociações sendo realizadas em altas cúpulas,

absolutamente inacessíveis – sem nenhuma exigência de mediação

local e sem serem perceptíveis com clareza ao nível local – as quais

envolvem grandes interesses capitalistas internacionais.

Já chegaram a ocupar na fase de prospecção e avaliação das jazidas

cerca de 400 homens, antecipando o que ocorrerá em escala maior uma

vez se prossiga o projeto: a criação de um mercado de trabalho e de um

mercado consumidor privilegiado. Afora isso, serão obrigados a

aplicar, tal como a ICOMI no Amapá, uma parte de seus lucros na

região; que embora percentualmente pequena, em termos absolutos será

de grande vulto. Uma exploração mineral em grande escala não traz

necessariamente por si um clima de prosperidade. Porém, se levarmos

em conta que não se trata mais de uma região isolada, nem velha e

decadente, mas de uma região que por muitos outros motivos está em

expansão, e, nos anos por vir, exatamente na direção do Xingu, é de se

imaginar as consequências que advirão.

Por enquanto não se pode fazer muito mais do que especular e examinar

casos semelhantes, sem muito o que encaixar no quadro atual da região.

Todavia, trata-se de fato bem concreto, e o espantoso é que sem ter uma

história local, tal como a que viemos traçando neste trabalho, poderá,

de repente, alterar o panorama geral de um modo bastante radical. Isso

tudo, sem dúvida, será do maior interesse no exame dos efeitos da ação

do capitalismo monopolista em regiões subdesenvolvidas, que modifica

totalmente a escala de análise, e, no caso particular, faz, inclusive,

aparecer em toda a sua nitidez a natureza absolutamente paleotécnica

de qualquer exploração mineral anteriormente realizada” (grifos do

autor). (Velho, 1972: 143-44).

Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

46

De fato, nas décadas seguintes, a implantação da indústria da mineração inseriu

agentes políticos e econômicos cuja escala de ação diferia bastante das ocupações e

frentes anteriores. Esse “terceiro tempo” anunciado por Velho proporcionou uma

integração mais profunda entre os agentes de mercado, que, em grande parte, já surgiram

como elos subordinados de uma cadeia de produção instituída sistemicamente em escala

mundial. No entanto, mesmo quando menos perceptível, essa integração, em último (ou,

muitas vezes, em primeiro) caso mundial, já ocorria nas frentes anteriores, como Otávio

Velho também observara atentamente desde o início da análise das frentes de expansão,

em 1967 (Velho, 1982), numa interpretação singular da noção sugerida (e introduzida na

ciência social brasileira) por Roberto Cardoso de Oliveira30.

O desenvolvimento das frentes de expansão agrícolas na região é um bom

exemplo nesse sentido. Ao contrário das frentes de expansão anteriores, extrativistas

(borracha, castanha, diamante), formadas por entrepostos de comercialização totalmente

voltados para o mercado externo31, ou seja, de uma típica economia exportadora, na frente

de expansão agrícola que se desenvolvia a partir dos anos 1950, teria surgido a figura do

pequeno produtor de terra firme, cuja produção era voltada para o mercado interno de

arroz. Nessa fase, em um primeiro momento, enquanto os grandes produtores ainda

produziam principalmente castanha, dedicando-se à pecuária apenas de maneira

30 E, ao menos no caso de Velho (1982 [1969]), também tomando por referência os estudos pioneiros de

Prado Jr. (2011 [1942]) a respeito. 31 Nesses casos, confluíam tanto as grandes unidades produtivas quanto a pequena produção que,

especialmente a partir das frentes seguintes, deu origem a um intenso debate nas ciências sociais brasileiras

sobre a então chamada fronteira e o campesinato (Martins, 2009; Palmeira, 1977; Velho, 1978; 2007).

Analisando os seringais do século XIX, Oliveira Filho (1979) notara que: “É através do controle do

comércio – e não da expropriação de terras camponesas – que ocorre a subordinação do caboclo amazônico

às determinações do grande capital. Necessitando de mercadorias, o pequeno produtor camponês é forçado

a dirigir parcialmente seu trabalho para aquelas produções que a rede comercial aceita como pagamento

das mercadorias que fornece. No caso da borracha, os altos preços vigentes fazem com que o próprio

comércio alternativo e clandestino (como os regatões e marreteiros) pressionem no sentido de que o

fornecimento de mercadorias seja pago preferencialmente em seringa. Diante disso ao pequeno produtor só

restam logicamente duas opções: ou ele se mantém primordialmente fora da rede de comércio e

financiamento, retraindo-se a uma condição próxima a autossubsistência; ou ele se vincula aquela rede,

enquadrando-se em um sistema flexível, que pode variar de uma ênfase exclusiva na extração até a fixação

de uma cota mínima de borracha por cada produtor. Sendo aquela primeira opção meramente teórica, ao

caboclo não resta mais que inserir-se no sistema de comércio centralizado e aí, produzindo segundo as

normas, procurar exercer uma permanente barganha por vantagens comerciais” (Oliveira Fo., 1979: 132-

33). Já no caso da castanha, Velho (1972: 66), por exemplo, assim resumiu a dinâmica dos agentes de

mercado: “Existem cerca de seis grupos exportadores importantes em Belém. Com o virtual oligopólio que

mantinham, já que até recentemente era praticamente insignificante a parte da castanha consumida no

mercado nacional, eram capazes de descarregar boa parte dos efeitos das oscilações de preços no mercado

internacional em cima dos grupos de Marabá; os quais, então, buscavam se resguardar levando às últimas

consequências o processo de extorsão da mais-valia absoluta”.

Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

47

complementar e subordinada, cujo mercado restringia-se localmente ou a um único centro

(Belém), os pequenos produtores independentes (maranhenses-paraenses) produziam um

arroz que, a despeito das distâncias, chegava a centros consumidores como o Rio de

Janeiro com preços mais baixos que os produzidos em outras regiões do país e que, sendo

de pior qualidade, era consumido pela população mais pauperizada das cidades32. Esse

arroz, porém, cumpria uma função supletiva e complementar no mercado nacional e

internacional. Era comercializado quando a produção de arroz no Centro-Oeste abaixava

e não era suprida pelo arroz produzido no Rio Grande do Sul, de maior preço, voltado

para a exportação (Velho, 1972: 123-25). Essa expansão, portanto, não sem razão, foi tida

como expressão de um colonialismo interno no Brasil33.

A nova fase instaurada pela abertura das estradas, exemplificada no trecho acima

citado pelo ramal de Marabá à Estrada Belém-Brasília (PA-70), converteria a paisagem

dos castanhais da região, em um espaço curto de tempo, em grandes pastagens. Também

em um espaço relativamente curto de tempo, a pecuarização integraria os pequenos

32 Musumeci (1988), depois, iria analisar pormenorizadamente as condições de comercialização e de

produção do arroz desses pequenos produtores das frentes de expansão agrícola no Maranhão. 33 A noção de colonialismo interno está na própria origem do estudo das frentes de expansão. Criada no

âmbito das ciências sociais latino-americanas em contraposição às teorias dualistas, ou de “sociedade dual”,

e tendo os seminais textos de Pablo Gonzalez Casanova e de Rodolfo Stavenhagen como referências

principais (Stavenhagen, 1981; Casanova, 2009; Chaloult, 1978), foi proposta no Brasil por Roberto

Cardoso de Oliveira (1978 [1966]) e difundida, em especial, a partir do Projeto “Estudo do colonialismo

interno no Brasil”, coordenado por ele. Foi a partir desse Projeto e dos seus trabalhos que esse conceito e o

de fricção interétnica se constituíram como referências iniciais para os estudos sistemáticos das frentes de

expansão realizados por Cardoso de Oliveira e seus assistentes e orientandos. Mais tarde, em 1993, ele

elaboraria essa narrativa: “A genealogia do conceito de ‘colonialismo interno’ pode ser traçada, talvez, a

partir de autores como Gunnar Myrdal e C. Wright Mills, alcançando sua formulação latino-americana mais

consistente com Pablo Casanova, em seu artigo de 1963, ‘Sociedad plural, colonialismo interno y

desarrollo’ (America Latina, año 6, nº 3) ou em seu livro Sociología de la explotación, no capitulo ‘El

colonialismo interno’. Rodolfo Stavenhagen, com ‘Siete tesis equivocadas sobre America Latina’ (Politica

Independiente, nº 1, maio de 1965), acrescenta considerações interessantes à teoria dualista de J. Lambert,

mostrando a necessidade de criticá-la do ponto de vista do colonialismo interno. Inspirado nesses autores,

tive a oportunidade de tratar o problema em meu ‘A noção de ‘colonialismo interno’ na etnologia’

(...)”(Cardoso de Oliveira, 2006: 41, nota 5). Casanova, por sua vez, em artigo de 2006 no qual propôs uma

redefinição do conceito, credita sua origem às ideias de Lenin – ainda que a expressão tenha sido

originalmente empregada por Mills – e assim explicou sua elaboração: “Cuando la noción de colonialismo

interno fue formulada de manera más sistemática en América Latina, su vinculación con la lucha de clases

y el poder del Estado apareció originalmente velada. En La democracia en México sostuve la tesis de que

en el interior de dicho país se daban relaciones sociales de tipo colonial. “Rechazando que el colonialismo

sólo debe contemplarse a escala internacional”, afirmé que este también “se da en el interior de una misma

nación, en la medida en que hay en ella una heterogeneidad étnica, en que se ligan determinadas etnias con

los grupos y clases dominantes, y otras con los dominados” (González Casanova, 1965). Ya en un artículo

de 1963 había analizado el concepto a nivel interno e internacional, que luego amplié en 1969 en ensayos

sobre Sociología de la explotación (González Casanova, 1987). En esos trabajos se precisaron los vínculos

entre clases, imperialismo, colonialismo y colonialismo interno. También se amplió el alcance de este

último, y se lo relacionó con las diferencias regionales en la explotación de los trabajadores y con las

transferencias de excedente de las regiones dominadas a las dominantes. El planteamiento correspondió a

esfuerzos semejantes que fueron precedidos por C. Wright Mills (1963: 154), quien de hecho fue el primero

en usar la expresión “colonialismo interno”.” (Casanova, 2006: 415).

Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

48

produtores de arroz dessa frente de expansão aos médios e grandes produtores, primeiro,

como fornecedores de terra empastada e, nas décadas seguintes, principalmente a partir

dos 1990, quando a pequena produção também se converte à pecuária, em fornecedores

de bezerros. Nos arredores das últimas estradas construídas, como a PA-150 (Moju-

Redenção, a “estrada-tronco” do Pará que liga o nordeste ao sudeste do estado), pude

observar a mudança no próprio padrão de formação das pastagens por parte dos pequenos

produtores dessas frentes de expansão (Felix, 2008). Quando a trajetória anterior previa

uma produção de arroz após o primeiro desmate e, apenas depois da colheita, a formação

da pastagem, a nova trajetória de pecuarização previa um empastamento direto da mata,

sem passar pelo plantio do arroz.

Enfim, passados cinquenta anos de seu início, o processo de desenvolvimento da

frente de expansão agrícola no sul e sudeste do Pará configurou unidades de produção

profundamente integradas na atual cadeia produtiva da carne e de produtos lácteos em

geral, em especial a partir de sua pecuarização. A pequena produção pecuária fornece

leite de baixa qualidade e a baixo custo para laticínios que se instalaram na região,

principalmente a partir de incentivos fiscais, políticas de financiamento de bancos

públicos e diversos subsídios das prefeituras34. E, ao menos até 2007, esses produtos

lácteos abasteciam, em especial, centros consumidores em outras regiões do país,

possivelmente atendendo a uma lógica de mercado semelhante à integração sistêmica que

ocorrera com o arroz maranhense-paraense. Por outro lado, esses pequenos produtores

também fornecem bezerros para médios e grandes proprietários, integrando-se, sobretudo

através deles, à produção de carne realizada nos grandes frigoríficos que se instalaram na

região visando a exportação.

Já nos últimos anos, no entanto, a vinculação ao mercado mundial é direta e

praticamente completa. A atual distribuição de frigoríficos e laticínios cadastrados com

produtos autorizados para exportação abrange toda a região, tal como se verifica na

listagem disponível no site do MAPA, incluindo até mesmo os produtos lácteos35. Nesta,

há frigoríficos e laticínios cadastrados nos municípios de Marabá, Rio Maria, Eldorado

dos Carajás, Santana do Araguaia, Redenção, Xinguara, Tucumã, Ourilândia do Norte,

34 Além de financiamentos para a instalação dos principais grupos, todas as empresas foram beneficiadas,

por exemplo, com a redução do ICMS sobre produtos industrializados de origem láctea de 12% para 2%

no final dos anos 1990 (Alves, 2007). Houve ainda a instalação de um número considerável de indústrias

informais, conhecidas como queijarias, que também captam leite de pequenos produtores e que, muitas

vezes, sequer atendem ao baixo nível sanitário da produção dos pequenos laticínios formais. 35 Em http://sigsif.agricultura.gov.br/sigsif_cons/!ap_exportador_nac_pais_rep_net

Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

49

Água Azul do Norte, São Felix do Xingu, Itupiranga, Piçarra, Sapucaia, Cumaru do Norte,

São Joao do Araguaia, Novo Repartimento, Santa Maria das Barreiras, Dom Eliseu,

Açailândia, Altamira, Rondon do Pará, São Geraldo do Araguaia e Conceição do

Araguaia. Dentre estes, se destacam os seis frigoríficos da empresa JBS S/A (Eldorado,

Marabá, Redenção, Santana do Araguaia, Altamira e Tucumã) e a região da rodovia PA-

279, que, por exemplo, só em Tucumã concentra tanto uma unidade da JBS quanto uma

da empresa Marfrig – as duas maiores empresas exportadoras de carne bovina no país –

além de duas unidades da empresa Frigol (Água Azul do Norte e São Felix do Xingu), de

mais três estabelecimentos em Xinguara e de outros dois em Ourilândia do Norte.

A última fase dessa frente agropecuária, entretanto, se desenvolveu em um

contexto de abertura de novas estradas, de fomento a grandes empreendimentos

agropecuários e de financiamento, em especial, da pecuária por parte de bancos públicos,

agências e programas de desenvolvimento. O “tempo” das estradas significou a

exploração e uma transformação definitiva dos vales do Rio Tocantins, do Rio Araguaia

e de seus vários afluentes, principalmente a partir das cidades e povoados estabelecidos

durante as fases de construção e de abertura das rodovias. Remonta, nesse caso, à

construção da Rodovia Belém-Brasília (BR-010, em 1956-58) e suas vicinais, em 1960,

do denominado “ramal de Marabá” (PA-70, atual BR-222), da Transamazônica (BR-230,

em 1972), e da BR-153 (antiga OP-02, aberta pelo regime militar para reprimir a

Guerrilha do Araguaia, em 1970), assim como das mais modernas, PA-150 (BR-155) e

PA-279 (que estenderia a expansão para o Rio Xingu), nos anos 1980, e da BR-158

(Redenção-Santana do Araguaia). Por outro lado, o fomento dos grandes

empreendimentos agropecuários advém de uma série de políticas e sucessivos programas

de desenvolvimento levados a cabo a partir da transformação da SPVEA em SUDAM

(1966), do BCA em BASA (1966) e de uma agência do BB em Marabá, em 1964, dentre

outras medidas nos anos seguintes. Santos (2011: 65), por exemplo, cita que, em 1960,

existiam 33 estabelecimentos com mais de 10 mil hectares. Em 1980, já seriam 199

estabelecimentos, responsáveis pela propriedade de 35,8% das terras ocupadas do estado

do Pará.

Esta fase já se desenvolve em meio ao “terceiro tempo” anunciado por Velho

(1972), caracterizado pelo advento dos grandes projetos da indústria da mineração e

demais intervenções planejadas associadas, como as hidrelétricas e algumas indústrias

mínero-metalúrgicas. O Programa Grande Carajás (PGC), em 1980, consolidaria o início

de uma sucessão de grandes projetos, em especial, o complexo mina-ferrovia-porto (o

Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

50

Projeto Ferro Carajás, a Estrada de Ferro Carajás e o Porto de Ponta da Madeira, em São

Luís/MA), a UHE de Tucuruí e a produção de alumina e alumínio em Barcarena/PA

(Albras, Alunorte) e em São Luís/MA (Alumar)36. Em certo sentido, este “tempo” dos

grandes projetos se estende até os dias atuais, uma vez que a abertura de novas minas nos

arredores de Carajás na última década também se desenvolve com características

semelhantes (e com especificidades que serão analisadas adiante). Essa nova expansão,

inclusive, é um desdobramento de projetos de exploração mineral previstos desde as

primeiras pesquisas e títulos minerários adquiridos nos anos 1960 e 197037.

Tomados enquanto uma forma de produção, em geral, os grandes projetos

significam uma acumulação de capital centralizada em larga escala, vinculada a interesses

políticos e econômicos nacionais e internacionais. No entanto, uma vez incidentes sobre

economias dependentes, o que frequentemente é o caso, um de seus efeitos seria a

reprodução da dependência. Ribeiro (1987: 4-5), analisando os efeitos dos grandes

projetos, por exemplo, afirma que, apesar de não haver um conhecimento substancial a

respeito de seus processos de execução e de sua relação com o desenvolvimento

econômico, “[los proyectos de gran escala, PGE] Suelen, por lo tanto, reforzar

disparidades económicas preexistentes tanto en el seno de una determinada sociedad

cuanto en términos de las relaciones entre distintas regiones económicas”. E, em resumo,

que: “La dinámica típica de los PGE termina por replicar la dependencia politico-

económica, sobre todo cuando están em juego relaciones com países poco o no

industrializados”38.

36 O Projeto Ferro Carajás, junto à Mineração Rio do Norte (exploração de bauxita), inaugurada em 1978

em Porto Trombetas (Oriximiná/PA) demarcariam a implantação da mineração industrial sob a forma de

grandes projetos a partir dos anos 1970, aumentando a escala de enclaves anteriores, como a citada Icomi

na Serra do Navio/AP (manganês), em operação desde 1957, numa associação com a gigante norte-

americana Bethlehem Steel (Monteiro, 2005). Além das minas, os grandes projetos implicam a construção

de infra-estrutura logística e urbanística: portos, ferrovia, estradas, vilas residenciais, aeroportos, cidades,

linhas de transmissão, etc. Sobre o PGC, ver, por exemplo, Gonçalves Almeida Jr. (1986), que reuniu

artigos de ciências variadas em torno da ecologia da intervenção na época e, por outro lado, para um balanço

mais recente (ainda quando a Vale divulgava interesse na implantação de uma siderúrgica em Marabá/PA),

ver Carneiro (2013). 37 Segundo Hebette (2004, vol. III), em 1985, praticamente todo o território já havia sido explorado, titulado

e loteado (pedidos e requisições de pesquisa, concessões de lavra). 38 Junto a Ribeiro (1987), outros antropólogos também constituíram uma perspectiva crítica no campo da

denominada antropologia do desenvolvimento, principalmente a partir de pesquisas atentas aos efeitos de

um capitalismo mundial sobre grupos sociais situados na periferia do sistema, caso, dentre outros, da escola

animada pelos trabalhos de Eric Wolf nos EUA. A perspectiva da teoria da dependência e suas implicações

para o trabalho de antropólogos, em especial, foram reconhecidas principalmente a partir da pesquisa de

June Nash entre os mineiros bolivianos publicada em We eat the mines and the mines eat us: dependency

and exploitation in Bolivian tin mines (1993 [1979]). No entanto, na sua opinião, os teóricos da dependência

teriam sido precursores da tese do sistema-mundo de I. Wallerstein, que é sua principal referência. Em um

artigo em que fez um balanço das críticas a essa tese – e, inclusive, defendeu que o trabalho de antropólogos

Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

51

O contexto em que se desenvolve essa última fase das frentes de expansão

agropecuárias e o “tempo” dos grandes projetos, no entanto, dados os novos agentes

envolvidos e a escala dos eventos em jogo, compreende transformações mais amplas das

relações de dependência na região. A citada associação entre a antiga Companhia Vale

do Rio Doce e a United States Steel e, em seguida, o Banco Mundial (Programa Grande

Carajás), bem como a formação das grandes inversões de capital dos grandes projetos

associados seguintes, são realizados em um contexto de profunda aliança do grande

capital nacional e estrangeiro impulsionados pelo regime político pós-1964, que, como

propôs Marini (2012), não se deve a um simples efeito da ação do imperialismo dos EUA,

entendido enquanto um “fator externo” às sociedades latino-americanas, mas sim a

desdobramentos de um desenvolvimento integrado, inclusive, de seus sistemas de

produção. E os grandes projetos da indústria da mineração no Pará são, nesse sentido, a

ponta de lança de interesses necessariamente relacionados a uma rede global de produção,

tendo, nesse caso, dupla vinculação intrínseca ao mercado mundial: o fato de se constituir

na forma de grandes projetos e o fato de produzirem novas minas.

Na última década, em um contexto no qual a América Latina é reconvertida em

uma economia exportadora na nova divisão internacional do trabalho e há expansão da

megamineração realizada por empresas transnacionais em vários países, antigos projetos

de exploração da província mineral de Carajás foram retomados com a alta dos preços

dos minérios no mercado mundial. Agora, porém, sob os marcos regulatórios de

inspiração neoliberal definidos nos anos 199039 e após a privatização da antiga CVRD

(1997), renomeada, desde 2007, para “Vale” somente40. Além da megamineração a céu

aberto, outros setores associados também se expandiram, como foi o caso da produção de

poderia contribuir para superá-las – Nash (1981) cita dois artigos de Fernando Henrique Cardoso (1972,

1973), o famoso livro dele com Faletto (1979), um artigo de Theotonio dos Santos (1973), dois artigos de

Osvaldo Sunkel (1972, 1973) e, em especial, três livros de Andre Gunder Frank (1964, 1967, 1975), quem

ela credita como sendo o mais importante “precursor” de Wallerstein. Nesse sentido, tal como os

dependentistas, segundo Nash (1981: 396), Worsley (1973 [1964]) também teria “adiantado” em dez anos

a tese de Wallerstein. 39 Plano Nacional de Desenvolvimento (Lei 8031/90); CFEM (Decreto nº1/91); reformas constitucionais

de 1995 (Emendas Const. Nº 6 e 9/95); Lei Kandir (Lei nº 87/96). Em outros países da América Latina,

algumas legislações minerais foram redefinidas nos anos 2000, visando principalmente maior recolhimento

fiscal. No Brasil, está atualmente em discussão no parlamento um novo marco legal para o setor. O projeto

inicial teria atendido principalmente aos interesses das grandes mineradoras (Malerba et al., 2012). 40 Houve, portanto, mais continuidade do que ruptura ao longo desse processo de integração econômica do

“tempo” dos grandes projetos. Isso se verifica, por exemplo, na agência econômica do Estado, ainda que,

no neoliberalismo, não se predique ao agente estatal um papel de gestor direto do capital. Pesquisadores

que investigaram a ação estatal na Amazônia Oriental desde 1964, como Santos (2009; 2010), acentuaram

mais similitudes e complementariedades do que necessariamente rompimento entre os modelos adotados

no período ditatorial e pós-ditatorial, em especial, no que se refere ao planejamento e promoção do

“desenvolvimento econômico”.

Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

52

ferro-gusa. Todavia, poucas guseiras resistiram à crise econômica mundial de 2008 e até

mesmo um anunciado projeto de instalação de uma grande siderúrgica em Marabá foi

provisoriamente abortado pela Vale, cujos investimentos, no entanto, não se reduziram41.

Voltaram-se exclusivamente para a mineração: para a aquisição e para a abertura de novas

minas em todo o mundo42.

Considerando esse contexto, o trabalhador que dispunha de uma força de trabalho

não especializada, no mundo, não raramente, circulou em atividades bastante variadas

nessas últimas décadas das frentes de expansão. O percurso muitas vezes alternou

atividades ao longo da frente agropecuária, mas também nas mais diversas ocupações das

novas cidades em crescimento, em garimpos e na construção civil em geral. E, neste caso,

em especial, nas grandes obras. Para o trabalhador que se situava no mundo nesse período,

a grande obra foi um destino comumente disponível nas redes sociais de mobilidade

acionadas para um novo deslocamento, dada a possibilidade de se conseguir trabalho,

com ou sem experiência anterior na construção civil, diretamente nas firmas ou nos

arredores das cidades vizinhas. Alguns amazonistas chegaram a afirmar que, com os

grandes projetos da mineração, as motivações de uma intensa circulação de pessoas se

alteravam: “Buscava-se ouro e terra, na região de Curionópolis, Serra Pelada e Eldorado.

Em Rio Verde a busca se desdobrava por três alvos, numa outra ordem: emprego, terra e

ouro” (Ab’Saber, 1996: 281).

Enquanto grandes projetos, sucessivas construções envolveram grandes

contingentes de trabalhadores, por curtos períodos. O auge da construção do Projeto Ferro

41 No setor guseiro atrelado ao pólo de Carajás, seis das onze empresas fecharam e mais de 3 mil

trabalhadores foram demitidos (Milanez, 2012). Em entrevista com o presidente do Simetal Marabá, fui

informado que praticamente todos os trabalhadores da única metalúrgica guseira de propriedade da Vale na

região também foram demitidos, restando cerca de apenas 20, que não foram demitidos porque seriam os

que “tinham mais estabilidade”, no sentido de que não poderiam ser demitidos de imediato, por conta de

comprovado adoecimento no trabalho, por exemplo (Entrevista com presidente do Simetal Marabá,

realizada em 07/11/12 na sede do Sindicato em Marabá/PA). Após a crise de 2008, a Vale demitiu 1,3 mil

trabalhadores diretos no Brasil, principalmente nas unidades de Minas Gerais, e deu férias coletivas a outros

5,5 mil (Milanez, 2012). Também teria demitido cerca de 12 mil terceirizados (Articulação Internacional

dos Atingidos pela Vale, 2010). Para uma análise a respeito da constituição do setor guseiro antes da crise,

ver, dentre outros, Carneiro (2008) e Monteiro (1998; 2006). Para uma análise a respeito das estratégias

empresariais imediatas do setor guseiro na região de Açailândia/MA, ver Carneiro e Ramalho (2009). 42 No que se refere à reconcentração estratégica pós-crise da Vale, cabe ressaltar a venda das ações de

empresas como a Alunorte e a Albras (mina de bauxita em Paragominas/PA, refinaria de alumina e fábrica

de alumínio em Barcarena/PA), para a Hydro, transnacional com sede na Noruega, em 2011, e, um ano

antes, da Pará Pigmentos S/A (produção de caulim) para o Grupo Imerys, que tem sede na França. Tais

reconfigurações acionárias no Brasil se inserem em estratégias de mercado global da Vale e dessas

transnacionais que serão analisadas a seguir e no capítulo 4. In: http://www.hydro.com/pt/A-Hydro-no-

Brasil/Sobre-a-Hydro/A-Hydro-no-Brasil/ ; http://www.imerys.com.br/content/5/imerys-carbonatos ;

http://www.imerys.com/scopi/group/imeryscom/imeryscom.nsf

Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

53

Carajás utilizou cerca de 28 mil trabalhadores em 1982 (Roberts, 1995; Castro, 1994).

Nas obras da Usina de Tucuruí (1975-1984), teriam sido 30 mil trabalhadores, sendo que

aproximadamente 60 mil pessoas se deslocaram para a cidade de Tucuruí, em busca de

trabalho. Em Barcarena, na construção da Albras e da Alunorte, teriam cerca de 12 mil

trabalhadores, em outubro de 1984, e a cidade recebeu cerca de 100 mil pessoas em

poucos anos. No entanto, já no ano seguinte, em 1985, com a primeira parte das obras

concluídas, o número de trabalhadores na construção civil reduziu quase à metade

(Fontes, 2003). A origem desses trabalhadores recrutados para as posições mais baixas

do mercado de trabalho da construção dos grandes projetos era diversa, assim como seus

destinos, terminados os trabalhos, foram descritos como difusos. Já nas obras de

Barcarena/PA, em meados dos anos 1980, Fontes (2003) descreveu haver uma distinção

feita pelos operários entre os que eram “peão cabaço”, aqueles que eram fichados pela

primeira vez numa firma, e os que eram “peão do trecho”, que já vinham de outras obras.

Neste sentido, as grandes obras e os arredores dos grandes projetos concentram –

ou enfeixam – trajetórias de circulação dessa força de trabalho no mundo e constituem

situações-eventos privilegiados para o estudo da formação e da reprodução social de um

proletariado volátil como esse que se desloca ao longo das frentes de expansão no Pará e

em outras regiões do país.

A escolha de uma cidade em que se implantou uma nova mina para a análise

dessas trajetórias implica ainda em algumas notas preliminares sobre as formas como se

organizaram os grandes projetos da indústria da mineração e sobre qual relação

estabeleceram com esses trabalhadores. Antes disso, porém, cabe ressaltar algumas

referências teórico-metodológicas que foram adotadas nesta pesquisa.

1.4) Totalidade

Objetivar, dentre outras questões, os fluxos desse contingente de trabalhadores é,

no entanto, um desafio de ordem metodológica cujas estratégias ainda merecem ser

melhor definidas e aprimoradas. É preciso considerar que a própria formação desse

contingente de trabalhadores no mundo está diretamente relacionada a determinadas

condições sociais de acumulação do capital e a determinadas condições sociais de

mobilidade do trabalho que não se encerram nos limites do concreto pensado pelo

pesquisador (o que, aliás, tal como será revisitado adiante, não é novidade em teoria

Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

54

social, apesar de que suas formas históricas contemporâneas apresentem especificidades

ainda em investigação ou a investigar).

Face aos dados produzidos, essa pesquisa buscou analisar os deslocamentos a

partir de algumas opções teórico-metodológicas que, como quaisquer outras, podem se

realizar por variadas técnicas. A primeira delas foi a de compreender o contexto e o

processo de formação desses contingentes de trabalhadores, bem como de sua

reprodução, sem lhes negar a capacidade de agência, entendida, por sua vez, a partir da

condição, posição e situação do agente em dado momento, isto é, a partir de determinada

situação histórica (o que inclui reconhecer limites e potências do pesquisador, que,

obviamente, também ocupa determinada posição social tanto na situação de pesquisa

quanto no trabalho científico, político, etc, mais amplo)43.

Para tanto, dentre outros dados produzidos ou coletados por mim, utilizei a

notação de percursos de um determinado conjunto de trabalhadores, reconstruídos por

meio de entrevistas que versaram principalmente a respeito da série de posições ocupadas

pelos mesmos ao longo dos deslocamentos empreendidos até aquela determinada situação

de pesquisa e/ou de registro com a qual me deparei44. Neste caso, vale ressaltar que, ainda

43 As opções aqui consideradas foram, em parte, empregadas em pesquisa anterior em que também utilizei

percursos como fontes para a análise de deslocamentos espaciais e sociais (Felix, 2008). Naquela ocasião,

contei com comentário do prof. Otavio Velho, a quem devo, sob minha inteira responsabilidade por

eventual incompreensão, a origem das seguintes observações que decidi fazer: “considerar os agentes como

agentes propriamente ditos significa também compreender que os limites entre racionalidade e

irracionalidade são dados a partir do ponto de vista de quem está observando e que insistir neste tipo de

dicotomia (racional x irracional), não raras vezes, leva a teorizações alheias aos próprios dados em questão

nas pesquisas. Nesta pesquisa, levar-me-ia a algumas armadilhas bem concretas, já que as racionalidades

em jogo articulam entre si sentidos e correlações para além de um ou outro domínio procurado ou

ressaltado, como é o caso, por exemplo, do que se indica como sendo “econômico”. Sendo assim, não será

meu objetivo nesta pesquisa defender uma suposta “racionalidade econômica” desses trabalhadores em seus

deslocamentos, ou qualquer outra, mas apenas analisar contextos cujos motivos tanto eram fruto de

previsões ou de ações mais ou menos encadeadas e cuidadosamente preparadas, como também eram

advindas de dramas de família, brigas de vizinhos, expulsões armadas, ameaças de morte e muitas outras;

rumo a destinos que, por mais que esperados, nem sempre eram conhecidos, com desafios, situações e

desfechos a princípio bem remotos para os viajantes”. 44 Mais uma vez, também friso: “(...) a notação dos percursos através de entrevistas, têm todas as distorções

que uma representação deste tipo acarreta. Uma delas é a possibilidade de “inexatidão” dos fatos, ou seja,

a possibilidade de que o que foi privilégio de lembrança dos trabalhadores que foram meus interlocutores

não registraria, fiel e categoricamente, os deslocamentos/ocupações que eles teriam realizado em outros

momentos de suas vidas. Porém, ainda que a ordem dos fatos, as localidades ou os ofícios desempenhados

em cada um dos casos abordados não tenham se dado tal qual foram inventariados aqui ou ali, devido aos

mais diversos motivos, não me importa defender a verossimilhança dos fatos de um ou outro “caso”

específico. Contudo, sem perder a perspectiva de análise dos dados no sentido propriamente objetivo dos

fatos, quer dizer, sem querer tratar os dados a partir da “trama de si mesmo” que suscitam sempre os

métodos de pesquisa baseados na análise de discursos ou nas histórias de vida, por exemplo, interessa

retratar apenas uma verossimilhança social dos percursos e dos conjuntos de informações obtidas” (Felix,

2008). Na medida do possível, quando considerados pertinentes, também foram utilizados dados de

arquivos disponibilizados para a pesquisa, bem como dados censitários e secundários, obtidos em outras

publicações e pesquisas conduzidas por terceiros.

Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

55

que um deslocamento possa aparentar ser o momento central para se recortar a análise de

um processo de mudança social (instituindo um antes, um durante e um depois), e que

efetivamente represente um lapso de tempo no qual ocorreriam transformações mais ou

menos acentuadas, não há como compreender a existência de um ponto zero ou de uma

situação estática inicial, a partir da qual se começa um deslocamento espacial ou – muito

menos – a partir da qual se principiam os processos de deslocamentos sociais, que não se

confundem com a mudança territorial pura e simples.

Isso nos leva a uma abordagem tomada como inspiração para o manuseio e

produção dos dados, que é a do Eric Wolf de A Europa e os povos sem história (2005

[1982]), em especial, pela démarche teórico-metodológica histórica e processual da

totalidade do sistema capitalista que ele inaugura45. Essa démarche não é contraditória

com a opção anterior, muito pelo contrário46. Distingui-las implicaria, inclusive, um

45 É importante frisar que, em termos teóricos, ao longo do diálogo crítico que Wolf estabeleceu com

Gunder Frank e Wallerstein no livro, há aparente desconhecimento da teoria da dependência (ou

conhecimento apenas de parte dela, como também nos parece ser o caso de J. Nash), tomando-a, não raro,

como precursora, intercambiável ou mesmo idêntica à teoria do sistema-mundo. Tal diálogo foi feito com

base na produção atualmente considerada mais antiga desses autores, sendo que, no caso de Frank, com um

lapso teórico (provavelmente ocasionado pelas fontes disponíveis em língua inglesa). Os textos deles

citados por Wolf, em 1982, por exemplo, foram exclusivamente os seguintes: de Wallerstein, “The modern

world-system...” (1974) e um artigo sobre a teoria de Kondratieff publicado em 1979; de Gunder Frank,

“World accumulation 1491-1789” (1978), e os artigos “The development of underdevelopment” (publicado

na Monthly Review em 1966) e “Sociology of development and the development of sociology” (1967).

Roseberry (1988), por sua vez, fez um balanço da produção antropológica inspirada pela crítica da

economia política nos EUA e distinguiu duas vertentes da teoria da dependência antes da difusão

relativamente bem-sucedida da teoria do sistema-mundo. Tendo como referência principal um artigo

publicado por F. H. Cardoso (1977), e reproduzindo seus argumentos, ele aproximou uma vertente da teoria

da dependência que considerou “rígida” ou “extrema” (citando alguns trabalhos de Gunder Frank) da teoria

de Wallerstein por conta das limitações de “estabilidade estrutural” das duas frente a outra vertente, que

considerou “mais sofisticada”, citando F. H. Cardoso e Faletto (1979). 46 Fato, por exemplo, reconhecido por Sherry Ortner (2011 [1984]). Referenciada na forma como estavam

constituídas as escolas nos EUA – e em uma perspectiva crítica ao que denominou como a “antropologia

da economia política” – ela não só reconheceu que essa corrente não era contraditória com o que chamou

“teoria da prática” como, ao mesmo tempo, apontou para a armadilha da ação-reação, que, por muitas vezes,

caracterizou uma limitação presente na análise dos processos sociais desses estudos: “Pode-se protestar que

os antropólogos da economia política põem a prática numa posição central no seu modelo. Quando os

eventos externos interferem, os atores numa dada sociedade reagem e tentam lidar com aquelas

interferências. O problema aqui é que a ação é primariamente reação” (Ortner, 2011: 460, nota 20). Porém,

é no mínimo incorreto, ou pouco cuidadoso, generalizar essa limitação a todo o conjunto de trabalhos

realizados sob essa referência ou inspiração, ao que se poderia ressalvar o próprio Wolf que, por exemplo,

a favor de “mais etnografia”, resumiu no prefácio de 1997 à nova edição do livro: “Também se faz

necessário mais etnografia para avaliar adequadamente alguns conceitos românticos, ainda não

examinados, sobre a natureza da ação humana no mundo. Tais ideias são cada vez mais populares e serviram

de substrato a algumas reações a este livro. Um determinado conceito retrata os seres humanos como

inerentemente criativos e sempre prontos para reinventar quem são e quem querem ser. Outro conceito

afirma que os seres humanos resistirão instintivamente à dominação e que essa “resistência” pode ser

pensada e estudada como uma categoria unitária. Acredito que, nesse caso, o desejo tornou-se pai e mãe do

pensamento. As pessoas nem sempre resistem aos constrangimentos em que se encontram e nem podem

reinventar-se com toda a liberdade por meio de construções culturais de sua própria escolha. A remoldagem

cultural e a mudança cultural prosseguem continuamente sob condições variáveis, mas também altamente

determinadas. Estas podem ampliar a criatividade ou inibi-la, estimular a resistência ou dissipá-la. Somente

Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

56

distanciamento epistêmico da própria perspectiva de totalidade que nos impõe a análise

de processos sociais de qualquer escala no modo de produção capitalista. Neste sentido,

tal como se verificará ao longo do texto, a circulação da força de trabalho será analisada

a partir do caso específico de um grande projeto da indústria da mineração, ou seja, de

um contexto que não se encontra sincronicamente ou diacronicamente desconectado dos

demais47.

1.5) Um grande projeto japonês, uma mina enxuta

A etapa de pesquisa de campo em questão foi realizada em um contexto que

envolve dois municípios contíguos que tiveram grande crescimento populacional entre

2005 e 2012 por conta da instalação de um grande projeto da indústria da mineração,

Ourilândia do Norte e Tucumã, situados na atual Rodovia PA-279, que liga Xinguara a

São Felix do Xingu, no sudeste do Pará.

a investigação empírica pode dizer-nos como diferentes pessoas, em suas particulares e variadas

circunstâncias, conformam e adaptam suas compreensões culturais e delas se desfazem ou,

alternativamente, se encontram bloqueadas ao fazê-lo” (Wolf, 2005: 15). 47 Embora, nesse sentido, não se trate aqui exatamente de um estudo de caso, cabe reconhecer os limites e

as possibilidades de um estudo dessa natureza, para o que estou de acordo com o que concluíram Marini,

Sotelo e Arteaga (1981): “Un estudio de caso no debe pretender conferirse un grado de generalización que

no le corresponde. En sí mismo, el estudio no prueba nada: su relación con la teoría reside simplemente en

demostrar que un determinado instrumental teórico permite explicar suficientemente los hechos. Ello no

valida para nada la teoría; cuando mucho atestigua a favor de su utilidad para el análisis concreto. Sin

embargo, concluida la presentación del estudio, el investigador tiene el derecho de usarlo como materia

prima para la reflexión teórica y, en este sentido, aventurarse con toda libertad en el terreno de las

inferencias y generalizaciones” (Marini, Sotelo e Arteaga, 1981: 20).

Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

57

Gráfico 3: localização de Ourilândia do Norte/PA

Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

58

Gráfico 4: localização do Projeto Onça Puma na perspectiva da empresa (RIMA da

MOP, 2004)

A Mineração Onça Puma (MOP), atualmente uma planta da Vale, foi um grande

projeto composto pela construção de uma mina e de uma usina metalúrgica, visando

explorar as reservas das Serras da Onça e do Puma, situadas em área limítrofe dos

municípios de São Felix do Xingu, Tucumã e Ourilândia do Norte (foto abaixo)48.

Constitui-se de uma megamina a céu aberto para a lavra e beneficiamento básico de

minério laterítico de níquel, a fim de produzir uma liga primária de ferro-níquel para

exportação. O anúncio da implantação do Projeto foi feito em 2005 e a construção se

concentrou entre 2007-2010. A MOP obteve licença de operação concedida pela

Sema/governo do Pará em maio de 2010 e o início da extração de níquel da mina foi em

maio de 2011, quando ocorreu o primeiro transporte via EFC e o primeiro embarque do

48 Sendo que 16 dos 22km de extensão da Serra do Puma estão no interior da Terra Indígena Xikrin do

Cateté, dos índios Xikrin, com a qual a MOP faz fronteira. Em certo sentido, portanto, o empreendimento

foi feito contando com a previsão de lavra nas Terras Indígenas, matéria que está em regulamentação legal

no Brasil. A TI Xikrin se limita, do lado oposto, com a exploração da Vale na Serra de Carajás e é citada

como um exemplo de delimitação cujos interesses das mineradoras estiveram fortemente presentes em todo

o processo histórico de territorialização do grupo indígena. Ao longo da ocupação, por exemplo, as

nascentes e a parte alta do principal rio utilizado pelo grupo, o Rio Cateté, ficaram fora dos limites da TI.

Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

59

minério no Porto de Ponta da Madeira (São Luís/MA) rumo à Ásia e Europa. A produção

da MOP é praticamente toda exportada, segundo a empresa, com foco para a China,

Japão, Alemanha, Finlândia, Itália e Estados Unidos, entre outros49.

Foto 1: vista aérea da MOP/Vale

Fonte: http://mineracaonaamazonia.blogspot.com.br/2015/09/vale-obtem-liminar-para-retomar-mineracao-em-

onca-puma.html#.VexSPDZRE8o. 06/09/2015.

Dadas as dimensões do Projeto, a instalação foi considerada uma das maiores do

mundo. O valor do investimento foi anunciado em US$ 2,4 bilhões e o período de lavra

foi previsto para se esgotar em 36 anos de operação. Atualmente, depois da aquisição

desse empreendimento e da Inco, mineradora transnacional de origem canadense, a Vale

é a maior produtora global de níquel. Segundo seu site, a empresa teria minas de níquel

no Brasil, no Canadá, na Indonésia e na Nova Caledônia, assim como refinarias, próprias

ou por meio de joint ventures, na China, na Coreia do Sul, no Japão, no Reino Unido e

em Taiwan50.

49 Cf. Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, ICICT/Fiocruz, 2013. Acesso

em 26/11/2013. 50 in http://www.vale.com/PT/business/mining/nickel/Paginas/default.aspx.

Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

60

No planejamento inicial, foi prevista uma estrada entre a MOP e a mina do

Sossego, outra unidade da Vale em operação desde 2004, que, por sua vez, também estaria

interligada através de um novo ramal ferroviário à EFC, que se inicia em Parauapebas.

Estas ligações estão sendo implantadas e os primeiros carregamentos do minério foram

realizados pelas atuais rodovias do estado até o terminal da EFC, de onde segue até o

Porto de Ponta da Madeira, em São Luís/MA. A energia foi suprida pela construção de

uma linha de transmissão específica para o Projeto partindo de Marabá e a captação de

água é realizada no Rio Cateté (RIMA, 2004).

A MOP é parte da atual expansão da indústria da mineração na região e integrou

um planejamento estratégico global de produção de níquel da Vale. Sua história, porém,

advém do processo de exploração de Carajás. A descoberta do minério de níquel em Onça

e Puma remete às pesquisas exploratórias decorrentes da descoberta da Província de

Carajás a partir de 1965 por multinacionais associadas a empresas de exploração mineral.

É a mineradora canadense Inco que registra o depósito de níquel em Onça e Puma em

1973 (Ab’Saber, 1996; Santos, 1983).

O Projeto da MOP, no entanto, só seria concretizado no âmbito da expansão da

megamineração que se inicia nos anos 2000. Integrou, nesse sentido, uma série de

negociações e projetos realizados em conjunto por grandes mineradoras, cujos termos

normalmente são de acesso restrito e envolvem ações estratégicas corporativas e

poderosos agentes em escala mundial. Considerando a maneira como se desenvolveram

e sua viabilidade econômica no sudeste do Pará, foram, em geral, projetos de exploração

associados direta ou indiretamente à Vale, que detém a maioria dos títulos minerários e a

logística de exportação criada no Programa Grande Carajás (bem como uma complexa

relação com o governo federal e com alguns dos principais agentes financeiros nacionais

através da atual composição acionária da ex-estatal).

Os projetos se originaram, principalmente, do substancial aumento dos preços dos

metais a partir de 2002. Considerando a financeirização do mercado de alimentos e

matérias-primas industriais, houve uma relativa queda após a crise de 2008, no entanto, a

tendência foi logo retomada e a abertura de novas minas – grandes projetos relacionados

a decisões políticas e de mercado de prazo mais longo – continuou na região. O gráfico a

seguir representa a forte elevação dos preços de metais entre 2002 e 2008 e queda entre

2008 e 2010, por conta da crise, voltando a subir desde então51.

51 Prates (2007), Sevares (2009) e Serrano (2013), dentre outros, publicaram algumas análises a respeito

desse aumento dos preços.

Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

61

Gráfico 5: evolução dos preços de metais 1960-2011 (Fonte: Banco Mundial, apud

Milanez, 2012)

Além da MOP, em Ourilândia do Norte, outros Projetos foram anunciados a partir

dos anos 2000 em municípios no entorno do Projeto Ferro Carajás, no sudeste do Pará:

Marabá (Projeto Salobo/Vale), Curionópolis (Projeto Serra Leste/Vale, Projeto

Cristalino/Vale, Projeto Serra Pelada/Comigasp-Colossus Minerals), Parauapebas

(Projeto Alemão/Vale), Canaã dos Carajás (Projeto Sossego/Vale, Projeto 118/Vale,

Projeto Vermelho/Vale, Projeto S11D ou Serra Sul/Vale), Xinguara (Projeto

Araguaia/Xstrata), Floresta do Araguaia (Projeto de Ferro da Sidepar), Rio Maria (Projeto

Andorinha/Reinarda), além de outros projetos em fase de pesquisa ou em implantação,

como é o caso de Projetos da empresa Anglo American em São Felix do Xingu, do Projeto

de cobre da Mineração Caraíba em Tucumã e do megaprojeto de exploração de ouro da

empresa Belo Sun Mining na Volta Grande do rio Xingu. Em Juruti, no oeste do Pará, a

Alcoa, gigante da minero-metalurgia com sede nos EUA, opera uma mina de bauxita

desde 2009.

Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

62

O mesmo ocorreu em outras regiões do país e do continente. No caso do Brasil,

porém, a Amazônia é considerada “a atual fronteira de expansão da mineração”, tal como

consta no “Plano Nacional de Mineração 2030”, política vigente do MME (MME, 2011).

O Plano prevê um crescimento de 100% na extração mineral até 2030, uma taxa

exponencial, considerando que os dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM)

já indicavam que “(...) la producción mineral brasileira creció 550% entre 2001 y 2011,

siendo que la industria extractiva mineral creció 156% sobre el PIB brasilero en ese

mismo período: en el año 2000 representaba 1,6% y en 2011, 4,1%. La previsión de

nuevas inversiones para el período 2012/2016 es de US$ 75.000.000.000” (Castilhos e

Campos, 2016). Essa expansão ocorre em um contexto de reformulação dos marcos legais

da mineração no país que, dentre outras questões, inclui a regulamentação da atividade

no interior de Terras Indígenas.

A estratégia corporativa da Vale no mercado mundial de níquel se desdobrou em

aquisições que lhe asseguraram a posição de segunda maior mineradora do mundo, atrás

apenas da transnacional BHP Billiton. Para tanto, adquiriu a MOP, após o processo inicial

de licenciamento, e, no ano seguinte, em outubro de 2006, a própria Inco como um todo.

Porém, o projeto de exploração de níquel a partir do Programa Grande Carajás é antigo.

A CVRD teria tentado, já na década de 1980, iniciar a exploração das reservas de níquel

do vizinho Projeto Vermelho (na atual Canaã dos Carajás) descoberta um ano depois que

Onça e Puma, mas acabou por adiar o projeto, que, na época, teria sido anunciado como

“voltado para o mercado interno” (CVRD, 1992). Em 2004, com a valorização do minério

no mercado mundial, a CVRD privatizada retomou o Projeto, agora voltado

principalmente para abastecer a produção de aço na China, dentro de uma estratégia de

controle do mercado mundial de níquel e em sinergia logística com a implantação de

outras minas no entorno de Carajás (Projetos Sossego, Salobo, 118, Alemão, Cristalino,

Serra Sul).

O processo de constituição da MOP foi semelhante ao de outras minas adquiridas

pela Vale nos últimos anos, como foi o caso da Mineração Serra do Sossego (mina de

cobre/ouro em operação desde 2004 em Canaã dos Carajás/PA); um processo que denota

uma associação estratégica entre mineradoras e operadores financeiros a partir de certas

especializações de mercado, em especial, para a realização dos grandes projetos da

indústria em todo o mundo. Em 2002, com a participação da Inco, detentora dos títulos

das reservas das Serras Onça e Puma, foi formada uma empresa no Canadá, a Canico

Resource Corp., cujo principal Projeto foi a construção da MOP, em Ourilândia do Norte.

Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

63

A Canico promoveu o processo de elaboração do Projeto da MOP e subcontratou as

empresas e as demais assessorias responsáveis pela elaboração dos estudos necessários

para o processo de licenciamento ambiental. Em novembro de 2005, após a obtenção da

Licença de Instalação e imediatamente após a apresentação do relatório final do Estudo

Etnoecológico realizado por antropólogos junto aos índios Xikrin, atingidos diretamente

pelo empreendimento, a Vale adquire a Canico52. Assim como em outros grandes

projetos, essa etapa se desdobrou em processos frente aos quais abro um breve parêntese.

No Brasil, o processo de licenciamento, tal como vêm sendo analisado, é uma

tecnologia de resolução de conflitos ambientais que visa, em geral, viabilizar os grandes

projetos por meio da imposição de negociação das denominadas compensações ou

medidas mitigadoras53. No entanto, uma vez requerido pelos organismos de fiscalização

e demais agências estatais, também instaura ou reverbera processos discursivos

específicos pelas empresas e por outros agentes envolvidos direta ou indiretamente com

elas ao longo dos ritos de instalação dos projetos.

É principalmente nas fases de pesquisa e elaboração de documentos como os EIA-

RIMA, assim como nos estudos específicos com indígenas afetados direta e indiretamente

pelos grandes projetos, que há a institucionalização do agenciamento de cientistas sociais

e ambientais para a realização de estudos de viabilização dos empreendimentos. Neste

sentido, é um momento especial para a análise da relação estabelecida entre essas ciências

e a acumulação de capital atualmente, assim como, de maneira geral, para a análise da

ciência social, nesse caso, enquanto um trabalho imaterial e produtivo, nos termos de

52 O rito das etapas legais dos processos minerários é instaurado atualmente na seguinte ordem:

requerimento de pesquisa, autorização de pesquisa, requerimento de licença, licença, requerimento de lavra,

concessão de lavra, disponibilidade. O processo de licenciamento ambiental, por sua vez, é constituído por

três etapas: Licenciamento Prévio, Licenciamento de Instalação e Licenciamento de Operação, desta forma

descritos no site do IBAMA/MMA: “Licença Prévia (LP) - Deve ser solicitada ao IBAMA na fase de

planejamento da implantação, alteração ou ampliação do empreendimento. Essa licença não autoriza a

instalação do projeto, e sim aprova a viabilidade ambiental do projeto e autoriza sua localização e concepção

tecnológica. Além disso, estabelece as condições a serem consideradas no desenvolvimento do projeto

executivo; Licença de Instalação (LI) - Autoriza o início da obra ou instalação do empreendimento. O prazo

de validade dessa licença é estabelecido pelo cronograma de instalação do projeto ou atividade, não

podendo ser superior a 6 (seis) anos. Empreendimentos que impliquem desmatamento depende, também,

de "Autorização de Supressão de Vegetação"; Licença de Operação (LO) - Deve ser solicitada antes de o

empreendimento entrar em operação, pois é essa licença que autoriza o início do funcionamento da

obra/empreendimento. Sua concessão está condicionada à vistoria a fim de verificar se todas as exigências

e detalhes técnicos descritos no projeto aprovado foram desenvolvidos e atendidos ao longo de sua

instalação e se estão de acordo com o previsto nas LP e LI. O prazo de validade é estabelecido, não podendo

ser inferior a 4 (quatro) anos e superior a 10 (dez) anos” (in: http://www.ibama.gov.br/licenciamento-

ambiental/processo-de-licenciamento). 53 Ver, dentre outros, os artigos organizados em Zhouri e Laschefski (2010).

Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

64

Marx54. Os produtos desse trabalho são sobretudo documentos assinados, requeridos para

a obtenção de uma licença por parte da empresa, o que não se confunde com o que está

escrito neles.

Nas últimas décadas, o discurso presente nas organizações empresariais da

mineração e nos órgãos financeiros internacionais é derivado principalmente da ideologia

do “desenvolvimento sustentável” e desta, especificamente, de uma apropriação singular

desse discurso, a denominada “mineração sustentável”, como se verifica na propaganda

do International Council on Mining and Metals (ICMM), entidade que reúne 21 das

maiores mineradoras do mundo55. Esse discurso é acionado pelas empresas em esferas

que envolvem interlocutores situados nas agências reguladoras, órgãos de governo e de

fiscalização (secretarias e institutos de meio ambiente, ministérios, Ministério Público,

etc), organismos internacionais, cúpulas ambientais, audiências públicas e instituições

financeiras como um todo.

A propaganda que reivindica a “sustentabilidade” e a “responsabilidade social”

em geral apresenta ações e projetos de ONGs financiadas pelas empresas no entorno das

minas, cujas mídias se pautam basicamente na conversão dos itens condicionantes dos

processos de licenciamento ambiental em ações de autopromoção da empresa.

Analisando o discurso da “mineração sustentável” e a instalação de algumas mineradoras

no norte do Rio de Janeiro, Scotto (2014), por exemplo, constatou que: “Por sua vez, a

"intensa" e visível presença de grandes empresas mineradoras na vida cotidiana dos locais

onde atuam, "promovendo o desenvolvimento sustentável" através de programas de

capacitação, apoio a projetos sociais, patrocínios culturais, estágios para jovens, parcerias

com as prefeituras, ONGs e Universidades, etc., parece encontrar sua razão de ser mais

nas exigências derivadas dos processos de licenciamento ambiental do que nos estímulos

provindos do “novo espírito da mineração”. Ao cruzarmos a lista das “medidas

condicionantes” e “mitigadoras dos impactos sociais e ambientais” definidas pelos

Estudos de Impactos Ambiental (EIA) nos processos para a obtenção das Licenças

Prévias (com os quais as empresas devem cumprir se querem obter, no final do processo,

54 O trabalho de aprovação do empreendimento junto às agências do Estado, nesse sentido, quando

requerido em qualquer parte do mundo, valoriza o valor investido nos grandes projetos da mineração,

integra trabalho socialmente necessário para a (re)produção da mercadoria-minério e, portanto, produz

mais-valor. 55 Cf. www.icmm.com. O ICMM foi formado em 2001, às vésperas da Cúpula Mundial de

Desenvolvimento Sustentável de Johannesburg realizado no ano seguinte, como analisou Antonelli (in

Svampa e Antonelli, 2010). Para uma análise do discurso da sustentabilidade presente na mineração

atualmente, ver Kirsch (2010).

Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

65

a Licença de Operação) com as ações projetos implementados localmente, vemos que a

coincidência é quase completa”. (p. 22).

No caso da MOP, no entanto, nem mesmo o conjunto de condicionantes do

processo de licenciamento foi atendido pela empresa, motivo pelo qual o MPF ajuizou

uma ACP contra a Vale56. A obtenção das Licenças atende, nesse sentido, mais à mera

produção e aos ritos de exposição pública dos documentos exigidos por lei do que

necessariamente ao atendimento do que é previsto neles. O processo de licenciamento

não pode ser confundido com o processo de atendimento das “medidas condicionantes”

e “ações mitigadoras” previstas em documentos como o EIA. Às vezes, sequer o

controlador acionário da empresa é mantido, sendo o processo de licenciamento

gerenciado por uma empresa e a construção ou operação da mina por outra. A associação

e a sucessão entre empresas especializadas em cada etapa do empreendimento são práticas

comuns ao longo de um grande projeto de mineração. Há empresas especializadas que

gerenciam apenas o processo de licenciamento (além de todo o mercado da expertise

licenciatória: empresas produtoras de EIAs, biólogos, arqueólogos, cientistas sociais,

gerentes, indigenistas experientes, advogados, etc). A propriedade do título minerário por

parte de uma concorrente que não detém as condições econômicas de operação de uma

determinada mina não impede que essa empresa tenha como meta simplesmente licenciar

sua instalação para vender ações no mercado para a empresa que detém essas condições,

tal como ocorreu no caso da MOP/Inco. Em outros casos, um grande projeto é

fragmentado em diversos processos de licenciamento, tornando um inevitável ao outro.

O licenciamento do mineroduto do Projeto Minas-Rio antes (e separado) das próprias

minas e do Porto é um exemplo (como analisaram Zucarelli e Santos, 2014). Estratégia

semelhante já era bastante comum no setor hidrelétrico, aprovando e construindo uma

primeira barragem cujo projeto político-econômico original prevê várias, ou o

aproveitamento de bacias hidrográficas inteiras. Além disso, é preciso lembrar ainda que

o próprio rito de produção/exposição desses documentos nem sempre é acionado, como

foi o caso da duplicação da EFC, cujo processo de licenciamento só foi iniciado após

denúncia de movimentos sociais e disputa judicial contra a Vale. Por outro lado, a mídia

empresarial e associada não apenas propagandeia as condicionantes (atendidas) como

ações de “responsabilidade social” e promoção do “desenvolvimento sustentável”, mas

56 Ação Civil Pública do Ministério Público Federal contra a Mineração Onça Puma/Vale, FUNAI e

SEMA/Estado do Pará, ajuizada em maio de 2011 (Processo Nº 0002383-85.2012.4.01.3905, Justiça

Federal, Redenção/PA).

Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

66

também qualquer notícia que possa ser relacionada a essa ideia. No caso da MOP, até

mesmo as ações tomadas em virtude de árdua negociação com movimentos sociais que

bloqueavam as atividades da mina ou condenações em processo judicial foram

transformadas em propaganda de “ações sociais”, como era o caso do projeto de

reassentamento de uma parte dos pequenos produtores expulsos pela empresa. O Anuário

Mineral do Pará, publicação bilíngue inglês/português do Sindicato das Indústrias

Minerais do Pará (Simineral), é excelente fonte dessa invenção “social” das

mineradoras57.

Contudo, aproximadamente um ano após a compra da MOP, a compra da Inco e

de suas minas em 2006 consolida essa nova estratégia da Vale transnacional no mercado

do níquel. A empresa pretendia colocar o Projeto Vermelho em operação antes de Onça

Puma, mas o processo de licenciamento demorou mais do que o previsto (e do tempo que

levou a MOP, cujo licenciamento foi “externalizado”), assim como também mudaram as

condições de mercado em 200858.

A instalação da MOP, no entanto, assim como a aquisição e abertura de outras

minas pela Vale e por outras grandes mineradoras não foram desmobilizadas. Sua

construção articulou dezenas de empresas terceirizadas e subcontratadas, principalmente

na construção civil e montagem industrial, que concentram os milhares de trabalhadores

necessários em algumas fases de um grande projeto da indústria da mineração. O regime

adotado na construção da mina e da usina, assim como em sua operação atualmente, não

diferiu do que já fora adotado antes pela CVRD no PGC, ainda que tenha sido

possivelmente aprofundado, dado o processo de extensão da terceirização a cada vez mais

atividades da empresa nas últimas décadas.

No que se refere à Vale, o processo de reestruturação produtiva precedeu a

privatização da empresa. Todo o seu denominado Sistema Norte59, inclusive, já nasceu

sob um “modelo japonês”, como propôs Roberts:

Because of its comprehensive use of subcontractors, Carajás represents

a new model for mining on this side of the Pacific. Mining firms in the

United States, Europe, and Australia have all faced union resistance that

has slowed their implementation of extensive subcontracting schemes

like that of Carajás. The workforce strategy at Carajás suggestively

57 http://www.youblisher.com/p/1086270-4o-Anuario-Mineral-do-Para-2015/ 58 “Início da exploração do níquel em Carajás”, matéria de Lucio Flávio Pinto de 19/06/2012, in:

https://valeqvale.wordpress.com/2012/06/19/inicio-da-exploracao-do-niquel-em-carajas/ 59 Forma como a Vale designa as operações na região norte do país a partir do PGC.

Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

67

resembles the Japanese model of shagaiko, a system of subcontracting

common in Japan’s iron and steel, shipbuilding, and chemical industries

and in mining. (…) Much of Carajás was planned by Japanese advisers

and consultants. (Roberts, 1995: 739-40).

Nos primórdios da CVRD, Minayo (1986: 54-68) constatou a importância dos

“pinantes”, “peões de estrada”, “biscateiros” e “roceiros” para a abertura da primeira mina

em Itabira/MG. O recrutamento dos que vieram a se fixar permanentemente na empresa

teria sido caracterizado por uma seleção por critérios físicos e principalmente

disciplinares através de mecanismos de rotatividade, o que os trabalhadores chamaram de

“grande rodízio” inicial. Outros critérios de diferenciação interna, como entre aqueles que

“sabiam ler” e os “analfabetos”, seriam adotados na empresa apenas a partir da

mecanização, iniciada em 1952, que modifica profundamente todo o processo de trabalho.

Ainda assim, esses primeiros escolhidos, trabalhadores da CVRD, teriam permanecido ao

longo da história da empresa, profissionalizando-se, alguns subindo na hierarquia

funcional, muitos não60. A atual expansão da Vale em praticamente nada se assemelha às

primeiras minas.

A partir dos anos 1990, um processo de reestruturação produtiva abrange toda a

empresa, em especial, o Sistema Sul da CVRD (as atividades mais antigas no estado de

Minas Gerais, a Estrada de Ferro Vitória-Minas e o complexo portuário de Tubarão)61.

Em seguida ao Plano Collor, de 1990, há um processo de enxugamento do quadro, com

demissões (involuntárias ou por meio de planos de demissão voluntária) e aumento da

terceirização de várias atividades antes desenvolvidas diretamente62. Com isso, há

60 Porém, já no período seguinte, Minayo descreve uma expansão com contratação de empreiteiras e a

disparidade entre esses trabalhadores contratados e os antigos, diretos, assim como o efeito que causam na

cidade: “(...) as ‘favelas’ são o resultado da época de expansão das instalações da CVRD, quando grandes

empreiteiras atraem para a cidade contingente enormes de mão-de-obra sem qualificação para as obras de

construção civil (a nova Mecanizada, a usina de Concentração, as oficinas centralizadas, o novo hospital,

o hotel da ‘Companhia’ e as grandes barragens)” (Minayo, 1986: 113). 61 Como é sabido, o mesmo processo de reestruturação produtiva também abrange outros setores da

economia. No caso dos grandes projetos da indústria da mineração, ele altera significativamente os quadros

das empresas em geral. Trindade (1998), por exemplo, cita a implantação dos Programas de Qualidade

Total e a adoção cada vez maior da terceirização que resulta na diminuição do pessoal ocupado e no

aumento da produção de minérios. Nos dados gerais do pessoal ocupado na Indústria Extrativa Mineral

Brasileira, entre 1990-1995, houve redução de 10,66%. Na Mineração Rio do Norte, um grande projeto de

extração de bauxita no Trombetas (oeste do Pará), estabelecida em sinergia ao PGC através de uma joint

venture composta por várias transnacionais da mineração, o autor resume que nesse período teria ocorrido

uma diminuição de 38,52% do quadro direto e um aumento da “produtividade física” de 73,48%. Já os

terceiros teriam aumentado em quase 15%. 62 Dados sobre esse processo são de difícil acesso. Contudo, algumas pesquisas realizadas junto a gestores

de contrato nas unidades de Itabira/MG da Vale indicaram informações bastante significativas sobre ele

(Saraiva; Merces; Magalhaes, 2008; Magalhaes; Neto; Gonçalves, 2010). De maneira geral, e em primeiro

lugar, os funcionários da Vale responsáveis pela gestão dos contratos com as empresas terceirizadas teriam

Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

68

também renovação do quadro, aumento da escolaridade (dos operários já em atividade ou

por aumento do exigido para admissão de novos), introdução de mudanças tecnológicas

e automatização, rebaixamento salarial e intensificação do trabalho, com mudanças

estruturais inspiradas numa matriz toyotista de organização do trabalho. Minayo (2004:

339), tendo por base as minas de ferro, constata que, em 2002, o quadro de trabalhadores

da CVRD reduzia-se a apenas 33% do que era quando se iniciou a reestruturação

produtiva. Com a privatização, em 1997, esse processo é ampliado e as antigas ideologias

relacionadas à CVRD estatal são, enfim, totalmente abandonadas em prol das novas

formas de engajamento dos trabalhadores inseridas, principalmente, através da

demissibilidade e de outras técnicas de gestão do trabalho, como prêmios, recompensas e

participação nos lucros63.

Por outro lado, como afirmei anteriormente, as unidades industriais criadas a partir

do PGC já nasceram sob um “modelo japonês”. Dentre outras, as negociações que deram

origem ao complexo da Albras, por exemplo, realizadas nos “gabinetes de Tóquio, Belém

e Brasília” materializaram a introdução não apenas do capital, do consórcio Nippon

Amazon Aluminium Company, mas também, e principalmente, de suas teorias

organizacionais64. Antonaz (1995), que acompanhou a implantação dos “diálogos de

associado o processo de terceirização à redução de custos para a Vale, obtida, em especial, pela

diferenciação de salários e benefícios entre trabalhadores diretos e terceiros. Para isso, sempre que

necessário, tais gestores relataram que a Vale contrata a força de trabalho de forma terceirizada, mas assume

diretamente o treinamento da mesma no interior de suas unidades, assim como determinadas premiações

que são oferecidas de acordo com o desempenho dos terceirizados. Além disso, a empresa prioriza a

contratação de terceiras que tenham ex-trabalhadores demitidos da Vale, o que denotaria, justamente, o

processo de mudança na gestão do trabalho. Por outro lado, por conta da atual legislação brasileira (que

limita a terceirização às denominadas “atividades-meio” da empresa principal e que, portanto, não permite

que trabalhadores diretos e terceirizados realizem as mesmas atividades no processo produtivo sob pena de

equiparação salarial), utiliza medidas de diferenciação entre efetivos e terceiros para que não haja

comprovação de vínculo empregatício legal e, portanto, aumento de custos (salários e benefícios), como,

por exemplo, a proibição de relação direta entre efetivos e terceiros. Atualmente, a grande maioria dos

trabalhadores da Vale são terceirizados. Estima-se que a Vale teria relações com mais de 16 mil empresas

terceiras (Magalhaes; Neto; Gonçalves, 2010). 63 A privatização da CVRD é fruto de um processo iniciado com as transformações econômicas e políticas

do capitalismo mundial após a crise do petróleo dos anos 1970, concretizado, finalmente, na década de

1990. Minayo (2004) analisa esse processo, elencando os seguintes fatos: criação da Secretaria de Controle

das Estatais (1979); promulgação do Decreto 86215/81, que criou a Comissão de Desestatização;

promulgação do Decreto 91991/85, que estabeleceu um Programa de Privatizações; e, em especial, a

implementação do Plano Collor (Lei 8031/90) e das emendas constitucionais apresentadas pelo governo

Fernando Henrique Cardoso, que, em 1997, leiloa e vende a CVRD. Por sua vez, Pinto (2003) fez uma

descrição do processo do leilão e da formação dos grupos acionários da nova CVRD. 64 Segundo Antonaz (1995: 141), após a crise do petróleo na década de 1970, “o preço do kW de energia

elétrica atingiu no Japão cerca de 6 centavos de dólar, quando o máximo considerado suportável é 1,6. São

necessários 15000kW para produzir uma tonelada de alumínio primário. A estratégia dos produtores de

alumínio japoneses foi a de se associar a empresas em países onde pudesse ser fornecida energia elétrica a

baixo custo. Os produtores e consumidores de alumínio japoneses formaram consórcios e se associaram a

empresas em diversos países, investindo em sua construção ou modernização: na Nova Zelândia (1977), na

Venezuela (1979), no Canadá (1980), nos Estados Unidos (1980), na Indonésia (1974) e na Austrália

Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

69

segurança”, do Total Quality Control (TQC) e da reengenharia na fábrica de Barcarena

(junto com as demissões e a rotatividade), cita: “Tradicionalmente, Julio Lobos, autor de

livros, e formulador de uma nova teoria de relações trabalhistas, participa das negociações

da Albras. Falconi, também autor de livros e o introdutor do TQC no país, foi formado

através dos parceiros japoneses e é consultor habitual da empresa, promovendo

periodicamente grandes seminários para gerências, chefias, profissionais de nível

superior e de nível técnico” (1995: 128).

No Sistema Norte da CVRD, as obras do complexo mina-ferrovia-porto

envolveram milhares de trabalhadores. O regime adotado, porém, desde o início, foi

marcado pela segmentação da força de trabalho entre trabalhadores diretos da CVRD e

subcontratados ou terceirizados tanto na fase de construção quanto na fase de operação

das minas. A construção do complexo empregou cerca de 2500 trabalhadores da CVRD

e 25000 subcontratados. Construído, depois de cinco anos de operação, em 1990, mais de

80 firmas subcontratadas forneciam aproximadamente 3000 trabalhadores

subcontratados, o que representava sete em cada dez trabalhadores de Carajás (Castro,

1994; Roberts, 1995). Naquele momento, as disparidades entre os dois segmentos se

refletiam em uma série de benefícios que os trabalhadores da CVRD ainda dispunham,

além do salário: “(...) the mass of ‘peripheral’ workers are paid less than one-third of the

lowest ‘core’ CVRD workers’ wages, and they receive no benefits such as housing, health

insurance, dental plans, free private schools, recreation centers, and so forth” (Roberts,

1995: 737).

Atualmente, a maioria dos trabalhadores da Vale é de terceirizados. Segundo

dados da empresa, dos seus 206,4 mil trabalhadores, 129,9 mil seriam terceirizados (Vale,

2014). No Brasil, os impedimentos legais para a terceirização deram origem a uma série

de ações judiciais contra a Vale, uma vez que a empresa explora as ambiguidades da

distinção entre atividades “fim” e “meio” presentes nos vários setores envolvidos na

mineração, terceirizando o máximo possível das atividades produtivas e mantendo em seu

quadro direto apenas trabalhadores que desempenham funções de gestão, fiscalização e

supervisão do trabalho. Como normalmente os vários degraus na escala empresa

principal-empreiteiras-subcontratadas-trabalhadores não atendem exatamente à distinção

“atividade-fim” e “atividade-meio”, operar com a distinção entre terceirização e

subcontratação também se torna bastante complexo nessa indústria.

(1974). De cada uma das fábricas recebe cotas anuais fixas de alumínio primário, conseguindo, desta forma,

garantir a manutenção dos seus níveis de consumo”.

Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

70

A terceirização/subcontratação, além do objetivo principal de redução de custos e

rebaixamento salarial, garante a externalização dos conflitos trabalhistas65. No caso da

expansão da megamineração, empresas como a Vale também externalizam conflitos

ambientais (licenciamentos, fiscalizações, indenizações) e, principalmente, sociais para

órgãos como prefeituras, polícias, FUNAI, MPF, ONGs e Fundações. Militantes ligados

a movimentos contestatórios enfatizam que, por causa disso, “a Vale nunca é culpada”, e

sim prefeitos, empresas terceirizadas, empresas de energia, organismos de Estado, etc,

que são responsabilizados por efeitos das atividades da indústria, como, por exemplo,

aumento da violência, falta de moradia, aumento do custo de vida e ausência de serviços

e equipamentos públicos nos municípios.

A contratação de terceirizados, no entanto, oscila de acordo com os grandes

projetos dessa indústria, que se diferenciam nas fases de implantação, de operação e de

fechamento das minas. A primeira fase compreende curto período, mas é a que concentra

a abertura de milhares de postos de trabalho, em geral, na construção civil, desmobilizada

na fase seguinte. Na operação, também há contratação de terceirizados, a princípio para

funções tidas como permanentes na mina. Isso, entretanto, não significa menor circulação

da força de trabalho, como abordarei nos capítulos seguintes.

O Relatório de Impacto Ambiental elaborado pela MOP em março de 2004, previa

durante o período de implantação uma média de 1450 trabalhadores, culminando em 2500

durante 5 meses nos anos de 2006/2007. Essa fase foi planejada para durar 24 meses.

Depois, para a fase de operação previa “(...) um quadro composto por 917 trabalhadores.

Deste total, 297 trabalharão na mina, 464 na planta metalúrgica e 156 na área

administrativa” (RIMA, 2004: 14).

65 Isso se reflete na judicialização desses conflitos, que praticamente se restringem às empresas terceirizadas

e seus trabalhadores, ainda que a Vale seja citada como réu associado ou pólo passivo nessas ações judiciais.

Ao longo do trabalho de campo, tive conhecimento de apenas uma ação trabalhista direta contra a Vale por

equiparação salarial, doença causada pelo trabalho e danos morais. Advogados trabalhistas da cidade

consideravam “corajosos” aqueles colegas que aceitavam entrar com ações contra a transnacional.

Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

71

Gráfico 6: número de trabalhadores no período de implantação da MOP (fonte: RIMA

da MOP, 2004: 14)

Os dados a respeito da quantidade de trabalhadores efetivamente envolvidos na

obra depois não foram divulgados. Segundo dados do Movimento dos Atingidos pela

Mineração, a fase de implantação da MOP contou com sete mil trabalhadores. Na

operação, seriam 850 (Cepasp, 2012). Também não há dados sobre a quantidade de

empresas envolvidas ao longo da obra. Em setembro de 2012, momento em que o auge

da fase de implantação já havia terminado e as atividades da mina estavam totalmente

paralisadas, fui informado por um representante do Sintrapav – sindicato que filiava

praticamente todos os trabalhadores terceirizados da MOP – que haviam 28 empresas

terceirizadas na área da Vale e um número não conhecido de empresas menores

subcontratadas por estas.

1.6) Ouro, terra, madeira, boi e mina: fluxos e refluxos

O período de implantação das minas se caracteriza por um enorme afluxo de

pessoas que se deslocam dos mais variados lugares para as cidades do entorno em busca

de trabalho. Em geral, essa afluência se inicia com os primeiros boatos do Projeto e se

encerra de maneira difusa, em um contexto de expulsões66. Considerando o contexto das

66 Ribeiro (1987), no contexto dos projetos de grande escala que analisou, identificou uma dinâmica própria

de deslocamento dos trabalhadores “não qualificados”, ou seja, daqueles que não integram a fração

especializada da força de trabalho desses projetos. Para tanto, propôs uma distinção entre o que denominou

como fluxos “organizados” e “não organizados” em direção aos projetos. O afluxo organizado seria

caracterizado pelo controle deliberado do recrutamento por meio de um ou vários organismos que recrutam,

elegem e enviam trabalhadores para a região do projeto enquanto o afluxo não organizado seria um

Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

72

frentes de expansão e dos grandes projetos na região, porém, essa fração de trabalhadores

constituiu percursos e práticas de deslocamento singulares em sucessivas expulsões,

analisadas nos capítulos a seguir.

Tal como em outros grandes projetos, o anúncio do empreendimento é seguido

pela rápida formação de bairros improvisados ou, às vezes, cidades inteiras nas

imediações das obras. No Pará, os exemplos das cidades de Parauapebas, no entorno de

Carajás, e de Barcarena foram alguns dos mais significativos após as intervenções

planejadas no PGC. Estudando os trabalhadores da Albras/Alunorte de Barcarena, Fontes

(2003), inclusive, destacou a formação do que classificou como uma população flutuante:

“Em linhas gerais, podemos afirmar que a região do Baixo-Tocantins vive o impacto

provocado pela instalação dos projetos industriais, ligados ao grande projeto Carajás. Há

cada vez mais a concentração e a monopolização da terra por grandes empresas e a

consequente formação de uma população flutuante, que se desloca para as periferias

urbanas de Abaetetuba, Barcarena e Vila do Conde. Essa população serve de mão-de-

obra abundante e barata, principalmente na construção civil”. (Fontes, 2003: 66).

O complexo de Barcarena, no Pará, entrou em operação em 1985 e é um dos

desdobramentos de Carajás, para o qual, além das fábricas de produção de alumínio e

alumina para exportação, foram construídos hidrelétrica, porto, estradas, núcleos

habitacionais, rede de água, rede elétrica, rede de esgoto, sistema de comunicação,

hospital, escolas, centro esportivo, cinema/auditório, estação rodoviária, posto policial,

etc. A população que se deslocou para a construção do projeto formou um “cinturão de

miséria” na cidade:

“No município de Barcarena, em contrapartida, desenvolveu-se um

cinturão de miséria: a sede do município e três pequenas vilas

transformaram-se rapidamente em aglomerados urbanos, sem as

condições infra-estruturais para receber a população que chega à região.

Em 1985, a cidade já contava com 25.000 habitantes; em 1989, essa

população chegou a 100.000 habitantes. A cidade de Barcarena recebeu

um grande número de agricultores (em torno de 20.000) que, por terem

sido desapropriados, recorreram ao assalariamento na construção civil

e à venda ambulante no comércio de Vila do Conde, Itupanema e São

“movimento espontâneo”, que, sendo aleatório e disperso, não provê toda a força de trabalho necessária

para as obras. Nesse e nos próximos capítulos, analiso as formas de recrutamento desses trabalhadores para

as grandes obras e suas implicações para a reprodução dessa força de trabalho não especializada, que, como

proponho mais adiante, compõem uma “esfera baixa” desse circuito, mais complexa por conta das

condições de circulação da força de trabalho que lhes são impostas.

Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

73

Francisco. Os desapropriados construíram um bairro, o Bairro Novo,

sem infra-estrutura alguma”. (Fontes, 2003: 67).

Antonaz (1995) também se referiu ao processo desta maneira:

Esta situação potencial de ‘emprego para todos’ entre 1982 e 1984 e a

possibilidade intermitente de ‘conseguir um serviço’ produziram e

imobilizaram, em moradias precárias, na franja de território marginal a

Vila do Conde e em ocupações de terra, algumas reprimidas com

violência, que se transformaram em novos bairros em Abaetetuba – um

efetivo exército de reserva, um grupamento de homens disponíveis a

qualquer tempo e passível de vender a força de trabalho por qualquer

valor e em quaisquer condições” (grifo da autora. Antonaz, 1995: 48).

A questão do inchaço populacional, habitualmente designada nos Estudos de

Impacto das novas minas como “atração de grandes contingentes humanos”, é motivo de

controvérsia e fator de forte embate político, enfatizada pelos movimentos sociais

contestatórios. As empresas, por outro lado, questionam ou subestimam o poder de

atração de seus novos Projetos. Quando prevista nos textos licenciatórios, essa população

é representada como um fator indesejado dos Projetos e são apontados os fatores que

fariam “amenizar” ou “mitigar” os impactos de seu deslocamento para o entorno das

minas. No entanto, como a própria existência dessa população é questionada, os estudos

a respeito do seu perfil, relacionamento com as minas, origens e percursos migratórios

não são fomentados pelas empresas e por agentes políticos subordinados. Neste sentido,

as informações a seu respeito normalmente são restritas a probabilidades politicamente

orientadas no período de planejamento dos grandes projetos e, depois, às estatísticas

populacionais (sendo que, nesse caso, a flutuação do curto período de construção nem

sempre é pesquisada).

Na MOP, os efeitos decorrentes do inchaço populacional na etapa de implantação

da mina foram dimensionados como “indução migratória pela expectativa de

empregabilidade”, frente a qual se propôs como medida mitigadora um programa de

comunicação social para “(...) manter informada a população dos municípios quanto as

características do projeto, seu andamento e suas demandas”. Foi classificado como um

impacto de “intensidade média, abrangência local e significância marginal” do

empreendimento (RIMA da MOP, 2004: 43).

O processo de construção, entretanto, motivou uma transformação radical das

cidades de Ourilândia do Norte e Tucumã. Em Ourilândia, a parte considerada “urbana”

Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

74

da cidade teria saltado de 8 para 20 mil habitantes em aproximadamente dois anos. Os

moradores mais antigos se referem ao tempo em que se podia “andar pelado na rua”, e,

em contraponto, o ano de 2007, em que “dava umas 5h era um ônibus atrás do outro na

avenida, mais de 5 mil homens”. Em termos estatísticos, tendo os Censos como base, em

2000, o município contava com uma população de 19,471 mil habitantes, com taxa

negativa de 32% em relação a 1991. Em 2010, ano em que a construção da MOP já

declinava, foram contabilizados 27,359 mil habitantes, um aumento de 40%. Movimento

semelhante também foi constatado em Tucumã, a cidade vizinha.

Gráfico 7: população do município de Ourilândia do Norte/PA. Fonte: Censos

demográficos 1991, 2000, 2010 (IBGE).

Ano Ourilândia

do Norte Pará Brasil

1991 28.718 4.950.060 146.825.475

2000 19.471 6.192.307 169.799.170

2010 27.359 7.581.051 190.755.799

Gráfico 8: População do município de Tucumã/PA. Fonte: Censos demográficos

1991, 2000, 2010 (IBGE)

Ano Tucumã Pará Brasil

1991 31.375 4.950.060 146.825.475

2000 25.309 6.192.307 169.799.170

Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

75

Ano Tucumã Pará Brasil

2010 33.690 7.581.051 190.755.799

Além dos variados grupos de trabalhadores em busca de trabalho e dos quadros

fixos das empresas contratadas, a abertura da mina também reuniu outros profissionais e

especialistas que se deslocaram em função da MOP para as cidades: advogados, padres,

missionários, dirigentes sindicais, técnicos agrícolas, médicos, dentistas, ambientalistas,

psicólogos, novos funcionários públicos, antropólogos, geólogos, biólogos, policiais,

mecânicos, corretores, assistentes sociais, contadores, prostitutas, professores e

educadores em geral, como os agentes de prevenção de doenças sexualmente

transmissíveis, de combate à prostituição infantil, dentre outros. Em pouco tempo, foram

construídas novas ruas, novos bairros, mais hotéis (tanto dos que já existiam, voltados

para trabalhadores não especializados e vendedores de passagem, quanto dos novos, de

luxo, voltados para trabalhadores especializados recrutados pelas empresas da MOP),

casas noturnas, cabarés, restaurantes, supermercados e comércio em geral, escritórios,

consultórios, bares, clubes, sedes locais de empresas, escolas e de ONGs “trazidas pela

Vale”, etc. Este epíteto – “trazido pela Vale” – foi comumente utilizado pelos moradores

locais para designar os estabelecimentos que se instalaram nas cidades como prestadores

diretos de serviço para a Vale. Era o caso, por exemplo, das empresas terceirizadas, que

mantêm uma sede local enquanto têm contrato com a Vale, e de duas escolas particulares,

uma construída para atender aos filhos dos funcionários diretos da Vale e outra voltada

para atender os requisitos de formação em serviço dos trabalhadores das empresas

prestadoras de serviço, como os cursos RAC (Requisitos de Atividades Críticas).

Desde o anúncio do novo Projeto, a instalação da grande empresa também

motivou a construção de algumas obras públicas nas cidades, amplamente difundidas

através das mídias corporativas e em placas de apoio nas ruas, praças e prédios públicos.

Através de sua Fundação ou diretamente, a Vale firma convênios com diversos órgãos de

Estado, em vários níveis, mas, em especial, das Prefeituras, do Judiciário e das polícias

dos estados em que atua, como o que permitiu a construção de uma unidade policial em

Ourilândia do Norte e a permanência de uma unidade tática especializada na cidade.

Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

76

Segundo moradores, a Vale fornecia combustível e equipamentos regulares para as

polícias, como veículos.

Foto 2: convênio Vale e Polícia Militar. Foto do autor; novembro de 2012.

A construção civil ao longo desse período foi especialmente aquecida, tal como o

mercado imobiliário das duas cidades. A construção de quitinetes mobilizou grande parte

dos moradores locais, concentrando investimentos advindos dos mais variados setores

para atender o mercado de aluguéis a preços regionalmente altos para forasteiros e novos

moradores temporários. Fazendeiros, pequenos produtores rurais, comerciantes e antigos

moradores em geral entraram nesse mercado. Em 2008, uma pesquisa exploratória

realizada por outra mineradora em Tucumã constatava: “Informações colhidas durante a

pesquisa de campo indicam que o tempo de entrega para tijolos, por exemplo, é de 30

dias, causado pela carência de capacidade de produção na região” (RIMA Caraíba, 2008:

83).

Portanto, com o advento da MOP, o rápido crescimento populacional dessas

cidades envolveu grupos distintos, principalmente nos primeiros anos de construção da

mina. Um membro da CPT local67 – ele mesmo deslocado para a cidade em virtude da

67 Entrevista com agente da CPT, Ourilândia do Norte, 19/08/12.

Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

77

experiência com grandes projetos – buscou definir essa população inicial em quatro

grandes grupos, da seguinte forma: 1) técnicos ligados à mineração, recrutados pela Vale

em outras empresas da área, como seria o caso de uma “colônia de niquelandenses” (de

Niquelândia/GO, da mina de níquel da empresa Votorantim) e de profissionais de outras

regiões; 2) “barrageiros”, trabalhadores da construção civil que se deslocaram de outros

grandes projetos (“gente que já foi em Barcarena, que eu encontrei em Barcarena, gente

que foi lá no Juruti, que foi no manganês do Amapá (...), de projetos grandes na

Amazônia, ou da Transamazônica, que vinha pra cá pra ficar dois, três anos, e depois

voltar (...), todos ligados à construção civil”); 3) pessoas que vieram para “procurar

emprego”, que vinham “pra qualquer coisa”, e; 4) comerciantes, grupo que veio com o

intuito de explorar os serviços e o comércio em geral. Em resumo: “(...) a elite, os técnicos

de alto nível ligados à Vale, que ela chama de fora, inicialmente. Depois, tem esses que

acompanham os grandes projetos da Amazônia, vivendo nos alojamentos. Vivia lá, todo

o tempo, vinha aqui na cidade no fim de semana, pra gastar dinheiro, pra fazer a vida

deles, pegar o dinheiro no banco, ir na boate, tomar uma cerveja, dançar, etc. Depois,

tinha o grupo maior que são aqueles ligados a tudo quanto é serviço, o afluxo de gente...

que ‘tem serviço, tem trabalho’. E tem muito comerciante de Canaã dos Carajás que veio

pra cá, de Xinguara que veio pra cá. Fechava lá e vinha pra cá”.

Após as obras iniciais, o destino dessa população deslocada também foi descrito

de maneira incerta, em especial, destes qualificados como “gente que veio pra qualquer

coisa”, ou que “tem serviço, tem trabalho”, etc. Dada a sucessão de grandes obras e a

dimensão dos deslocamentos, alguns estudos encomendados pelas empresas buscaram

conjecturar sua circulação de maneira bastante curiosa. O estudo citado acima, realizado

para a abertura de uma nova mina em 2008, é representativo nesse sentido:

O início do projeto acontecerá na região que já é alvo de uma forte onda

migratória, em busca de oportunidades de trabalho, devido à

implementação do projeto Onça-Puma (...). Ao final da implantação do

projeto, previsto para 2008/2009, grande parte da mão-de-obra

empregada na construção irá ficar ociosa e o seu destino não pode ser

claramente previsto.

A partir da experiência em outros projetos, é de se esperar que parte

desse contingente volte para os seus locais de origem. A outra fração

irá se deslocar para diferentes frentes de serviço (ou direcionado pela

empreiteira que os contratou ou por notícias de novas obras em outras

regiões do estado e do país). Todavia, uma pequena fração deverá ficar

no município ou na região. Quantificar esses vetores é impossível,

Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

78

devido à falta de dados confiáveis, no entanto, é de se esperar que o

anúncio da implementação de uma siderúrgica em Marabá feita pela

Vale recentemente (agosto de 2008), esteja criando um novo pólo

atrativo para mão-de-obra migrante e que grande parte da utilizada, até

então, no projeto Onça-Puma possa se deslocar para Marabá. (Relatório

de Impacto Ambiental da Mineração Caraíba S/A. Novembro de 2008).

Tal como abordei anteriormente, a abertura das novas minas e outras grandes

obras concentraram essa “população flutuante” nos últimos anos em várias partes do país.

Nos capítulos seguintes, analisarei alguns aspectos envolvidos nos deslocamentos

espaciais dessas frações de trabalhadores, compreendendo-os, de maneira geral, a partir

das formas de circulação mercantil da força de trabalho que caracterizam a acumulação

de capital atualmente. As novas minas na região de Carajás, porém, também devem ser

consideradas frente ao contexto das frentes de expansão das últimas décadas. Muitas

vezes, os mesmos trabalhadores se deslocaram para uma mesma região em momentos

sucessivos de ocupação, acompanhando os fluxos e refluxos dessas frentes. Outras vezes,

mudaram de ofício de acordo com as novas atividades econômicas predominantes

localmente. Ou, ainda, uma trajetória mais comum: acompanharam os fluxos e refluxos,

deslocando-se e mudando de ofício de acordo com as atividades predominantes em cada

fluxo.

As cidades de Tucumã e Ourilândia do Norte representam bem esses movimentos.

Como demonstrado nos dados demográficos, desde os anos 1990, a população decrescia.

Para o trabalhador que se deslocava em busca de trabalho ou de outras oportunidades, não

era mais uma região a ser procurada. Essa foi, por exemplo, a perspectiva de um

trabalhador de 52 anos que acompanhei ao longo do trabalho de campo em Tucumã ao

sintetizar o processo histórico recente:

“- Aqui antigamente era o ouro. Aí, acabou o ouro, virou a derriba. Pra

derribar a mata, sabe? Passando máquina. Aí depois entrou a Vale. Mas

aqui não tinha mais ninguém. Tinha todo mundo ido embora. Não tinha

mais emprego! Aí a Vale veio, deu uns empregozinhos aí”68.

Instado, ele organizou o processo histórico em termos dos fluxos e refluxos

anteriores: primeiro, para os garimpos e, em seguida, para a formação das pastagens e das

fazendas, antes da mina. Esse não era o percurso dele mesmo, que veio para a cidade

68 Entrevista com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã, 23/08/12.

Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

79

deslocado por uma firma para a construção de um frigorífico. Mas, tal como o discurso

de outros, era a narrativa que representava um encadeamento histórico das opções de

deslocamentos daqueles que, como ele, se auto-referenciavam “no mundo”. Nesse

sentido, era também a narrativa de uma maioria de novos moradores, casais ou homens

recém-chegados, jovens ou de meia idade, trabalhando nos ofícios estabelecidos no

último fluxo. Mas, de fato, no caso daqueles mais velhos, esses fluxos e refluxos

organizaram e reorganizaram arranjos familiares estabelecidos antes e depois da MOP.

Mesmo nos bairros de ocupação mais recente dessas cidades, foi comum notar moradores

que estiveram na região nos anos 1980 e que, por volta de 2008, com a instalação da

MOP, voltaram. Eram, em geral, núcleos familiares cujos membros tinham se deslocado

para outras regiões e que formaram novos arranjos na cidade com o advento das obras

(filhos que voltaram a morar com um dos pais que ficou; irmãos que foram para outras

regiões e que voltaram a se agrupar em Ourilândia, etc). Sendo assim, as transformações

ocorridas nas frentes de expansão condicionaram as sucessivas ocupações desses

trabalhadores, deslocando-se ou não.

O percurso do trabalhador abaixo, por exemplo, é um dos que se manteve na

região desde 1984. Suas atividades foram, em sequência: garimpos – construção da

estrada – empreitas de derrubada – motorista de caminhão e de ônibus (terceirizadas da

Vale) e motorista de gaiola (transporte de gado), escolar e mototaxi.

Osvaldo nasceu em Porangatu/GO e com 2 anos de idade foi para Bernardo Sayão, hoje

um município em Tocantins. Em Porangatu, não tinham terra, o pai trabalhava em

fazendas, com empreitadas. Os pais adquiriram uma terra através do INCRA em

Bernardo Sayão. Em 1984, Osvaldo e dois irmãos foram para Tucumã, no Pará, para um

garimpo. Depois de 2 anos, veio outro irmão. Trabalhavam de “porcentagem, para os

outros” (ganhavam uma parte dos 7% garimpados na “cata” ou “barranco” a cada 20

dias, aproximadamente). Os pais separaram, venderam a terra. A mãe foi para Goiânia

trabalhar como doméstica e o pai “sumiu”. A mãe, depois de 6 anos, também foi para

Tucumã. Osvaldo encontrou o pai no Pará como encarregado de “máquina” (motor de

garimpo), mas depois ele “sumiu” de novo. Osvaldo foi para Altamira, para outro

garimpo e depois voltou para Tucumã para trabalhar numa firma na abertura da estrada

PA-279. Fizeram o trecho até Agua Azul do Norte (Xinguara-Água Azul do Norte).

Quando saiu, ficou trabalhando em derrubadas, por empreitadas. Na época, tinha um

comércio e uma casa na rua, em Tucumã, que ficavam com a esposa (primeira) enquanto

Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

80

ele estava envolvido com as empreitas. Depois disso, Osvaldo foi trabalhar em empresas

de ônibus, como motorista. Começou há aproximadamente 3 anos, quando foi motorista

de caminhão na abertura e construção da estrada que leva à MOP. Dali, foi transportar

estudantes num ônibus particular que prestava serviço para a Prefeitura. Em seguida,

foi para uma empresa que transportava os trabalhadores pra MOP. Ficou 2 anos. Os

motoristas fecharam a garagem da empresa porque ela não pagava direito, no dia certo,

sempre atrasava. Depois disso, a empresa perdeu o contrato com a Vale e hoje tem só 3

ou 4 ônibus. Osvaldo fez um acordo para sair e foi demitido. Passou a transportar gado,

em “gaiola” (ganhava uma porcentagem de 12% do ganho do dono do caminhão, cujo

transporte é pago de acordo com a quilometragem de cada viagem). Osvaldo ficou 6

meses nesse trabalho até entrar em outra firma, como motorista de ônibus, onde ficou 7

meses. A empresa terminou o contrato com a Vale também. Foi para outra empresa.

Osvaldo ficou cerca de um ano nessa empresa e pediu para sair há 3 meses atrás. Com

o dinheiro da rescisão e do FGTS fez a casa que está morando atualmente. Está

trabalhando como mototaxi em Tucumã há 2 meses e pouco, mas está procurando outro

serviço depois que foi assaltado. No fim da entrevista, Osvaldo recebeu um telefonema e

aceitou um trabalho como motorista de caminhão. Osvaldo mora com uma esposa

(segunda), que não trabalha fora, e dois filhos. (Baseado em entrevista com Osvaldo, 50

anos, em 23/09/12, Lago das Rosas, Tucumã).

Tucumã e Ourilândia do Norte foram formadas em um mesmo processo no bojo

das intervenções planejadas no PGC, no caso, a partir de um projeto de colonização

privado da Construtora Andrade Gutierrez iniciado em 1981 e falido, oficialmente, em

1988: o Projeto Tucumã (Souza, 2000; Farias e Alencar, 2008; Reydon, Guedes e

Florencio, 2011; Guedes, 2012). Nas fronteiras do Projeto, voltado para colonos de

estados do Sul do país, as pessoas que não podiam adquirir os lotes e atender ao perfil

desejado eram impedidas de entrar, montando barracos e formando as aglomerações que

deram origem à cidade de Ourilândia do Norte. Por fim, em 1985, há o rompimento das

cercas e uma grande tomada das terras do Projeto. No entanto, os garimpos e a extração

de madeira já atraíam migrantes para a região, definitivamente ocupada com a abertura

da estrada PA-279, em 1976, que levava ao Projeto. As primeiras fazendas já tinham sido

formadas nos anos 1970, com incentivos da SUDAM. Nas décadas seguintes,

praticamente toda a região foi convertida para a produção pecuária e a partir dos 1990

houve o declínio dos garimpos.

Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

81

No momento da pesquisa, quando o último fluxo declinava (construção da MOP),

o trabalhador que se deslocava para essa região encontrava trabalho principalmente nas

terceirizadas da Vale, procurando os escritórios das novas firmas em Ourilândia do Norte

ou o sindicato “trazido pela Vale”, que distribuía indicações para as firmas. Também

poderia encontrar trabalho através das mais diversas empreitas e diárias realizadas tanto

nas cidades quanto nas unidades de produção agropecuárias (incluídas nessas as médias

e grandes fazendas, assim como a pequena produção rural situada nos Projetos de

Assentamento criados após 198569).

É importante frisar que os trabalhadores que se deslocaram neste fluxo, entretanto,

não tiveram condições de acesso a terra que possibilitassem sua constituição como

pequenos produtores independentes. O contexto encontrado na região foi, inclusive, de

redução das terras ocupadas pela pequena produção rural. Em Ourilândia do Norte, a

instalação da MOP envolveu a espoliação das terras de pequenos produtores situados em

Projetos de Assentamento, sendo que apenas parte deles integrou um processo de

reassentamento e de lutas por indenizações mediado por movimentos sociais e

associações locais junto à empresa (Guedes, 2012; CPT, 2013). Outra parte, teria vendido

a terra e “saído no mundo”. Segundo um diretor do STR entrevistado em 2011, dos 16%

das terras do município que não eram Terras Indígenas, 8% seriam de propriedade da

mineradora, outros 7% seriam fazendas e apenas 1% seria ocupado por pequenos

produtores. Mesmo a frente de expansão agropecuária que se dirigia ao Rio Iriri, no

município de São Felix do Xingu, teria arrefecido com intervenções de agências estatais

e a criação de áreas de proteção ambiental na denominada “Terra do Meio”. Eram

realizadas operações policiais de desintrusão, como foi o caso da Terra Indígena

Apyterewa. Membros de movimentos de apoio à luta pela terra, como a CPT, afirmavam

que os trabalhadores “não têm mais ilusão nas terras livres”.

Por outro lado, ao longo do trabalho de campo, também me deparei com alguns

trabalhadores terceirizados da Vale que decidiram abandonar pequenas posses de terra

para construir quitinetes ou morar nos bairros de ocupação recente na cidade – uma opção

especialmente preferida a partir de situações tidas como críticas e passíveis de

deslocamento (doenças, separações, mortes, ameaças de morte). Em alguns Projetos de

69 O maior deles é o denominado Projeto de Assentamento Tucumã, criado após a tomada das terras do

Projeto e as indenizações da empresa colonizadora. Segundo Reydon, Guedes e Florencio, (2011: 141), em

1991, ele compreenderia cerca de 3.229 famílias cadastradas pelo INCRA como beneficiárias da reforma

agrária, em três núcleos.

Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

82

Assentamento mais próximos à cidade, os lotes eram subdivididos para a formação do

que se designava como chácaras, ou seja, pequenas faixas de terra (“uma quadra,

50x100”), adquiridas principalmente pelo seleto grupo de trabalhadores que se

estabilizavam no circuito das terceirizadas da Vale e buscavam fixar residência em

Ourilândia ou Tucumã. Estas chácaras eram áreas destinadas para a construção de casas

de fim de semana, para a criação de galinhas e para o cultivo de frutas e pequenas hortas

de legumes e verduras. Além da dedicação das poucas horas vagas que tinham em

atividades vistas como prazerosas e complementares para a alimentação do grupo

doméstico, estes trabalhadores também consideravam as chácaras como um investimento

seguro dos rendimentos porventura poupados. Não eram, portanto, terras que lhe

permitissem “sossegar”, ou seja, não mais depender da venda da força de trabalho, tal

como será analisado no terceiro capítulo.

1.7) Exército de reserva: acumulação de capital e circulação da força de trabalho

As inquietações que orientaram essa pesquisa de campo se deram, dentre outras

razões, em meio às lutas em torno do que significava a implantação e expansão da

mineração na região. Por um lado, pelos movimentos sociais cujas denúncias se baseiam

na acusação de que a mineração “só traz crateras e miséria”, referindo-se à desativação

das minas e ao deslocamento de pessoas para as regiões em que se anunciam novos

“projetos”, e, por outro, pelas empresas cuja intensa e poderosa propaganda é sempre

voltada para a demonstração de que “trouxeram empregos e desenvolvimento”. A análise

dos percursos sociais de um conjunto de trabalhadores era, nesse sentido, dado

fundamental a ser verificado e problematizado, em especial, após as primeiras

readequações que fiz ainda ao longo dessa etapa de campo, que, dentre outras questões,

apresentaram maior complexidade do que fora previsto inicialmente.

A pesquisa previa um trabalho de campo realizado na área urbana dos municípios

situados na rodovia PA-279 que se concentraria em duas unidades básicas de análise: um

bairro de ocupação recente em Ourilândia do Norte e os hotéis e pensões que hospedariam

solteiros, trabalhadores em trânsito sem conhecidos ou núcleo familiar estabelecido na

região. A principal questão que motivava essa distinção era a situação familiar de

deslocamento e as condições colocadas para um e outro grupo, consideradas as opções de

estadia mais ou menos demorada no município, o que denotaria trajetos diferenciados e

relações específicas de trabalho para cada um dos grupos.

Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

83

Neste sentido, desde a chegada e os preparativos para a entrada no campo, busquei

informações para a escolha dos locais a serem visitados e, em seguida, acompanhados

regularmente. Todavia, feitos os contatos necessários, notei que tal escolha deveria ser

refeita em virtude da configuração social e espacial dos grupos de trabalhadores que

procuraram a cidade de Ourilândia do Norte e outras cidades do entorno nos últimos anos,

em especial, as que apresentaram surtos de crescimento populacional provocados pelo

anúncio de grandes projetos da mineração. No caso de Ourilândia, o trabalho de campo

foi realizado num período em que não havia mais crescimento, mas estagnação ou mesmo

decrescimento populacional. A implantação da Mineração Onça Puma se deu no período

2006-2010 e em junho de 2012 foram anunciados acidentes nos fornos de processamento

do minério que levaram à interrupção das atividades extrativas por tempo

indeterminado70. A produção só foi retomada em novembro de 2013, quando um dos

fornos voltou a produzir a liga de ferro-níquel71.

A situação que encontrei, portanto, era de paralisação, fechamento ou

deslocamento de postos de trabalho da Vale de Ourilândia do Norte, o que se refletia em

praticamente todas as demais atividades econômicas do município. Isso fez com que

tivesse em campo uma situação bastante inusitada, que era acompanhar in loco a dinâmica

tanto do crescimento recente quanto de sua estagnação ou possível retração. Na chegada,

era comum ouvir que “o quente agora é Canaã” [dos Carajás; município vizinho em que

a Vale desenvolve outros “projetos” de extração mineral, inclusive aquele que se anuncia

como o maior depois de Carajás, o “Projeto S11D”, ou Serra Sul]. O contexto encontrado

em campo foi, portanto, no que se refere à megamineração, característico não apenas da

fase de operação (consideradas as etapas de implantação, operação e fechamento das

minas), mas de uma operação em estado de interrupção completa das atividades de

extração e beneficiamento. Quanto aos fluxos, foi possível observar que eles seriam mais

70 A empresa, no entanto, não divulgou as causas do acidente. Os trabalhadores presentes no dia relataram

ter ocorrido risco de explosão e necessidade de evacuação completa da área. Devido ao acidente, vários

contratos da Vale teriam sido suspensos ou até mesmo cancelados. A causa mais provável seria uma falha

na construção dos fornos, mas, não raro, outras hipóteses também eram formuladas nas mais diversas

situações de pesquisa que tive. O ritmo das obras de reparo e a possível retomada ou não das operações

eram assuntos bastante frequentes nas rodas de conversa nas cidades. 71 Cf. “Onça Puma retoma produção no Pará”, 14/11/2013, in:

http://www.vale.com/PT/aboutvale/news/Paginas/onca-puma-retoma-producao-no-para.aspx. Pouco

tempo depois já eram batidos novos recordes de produção: “O ramp up da Mineração Onça Puma, da Vale,

em Ourilândia do Norte (PA), contribuiu para que o Brasil repetisse, em julho de 2014, o recorde de

produção de 9,5 mil toneladas de níquel. A melhor marca antes disso foi em janeiro de 2012, com 9,1 mil

toneladas” (Cf. Vale e Bloomberg. In: Blog do Ze Dudu. 18/09/2014. in:

http://www.zedudu.com.br/?cat=652).

Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

84

dinâmicos do que a própria esquematização dessas fases da mineração. De acordo com

outros fatores, a mobilidade desses trabalhadores seria mais intensa e sujeita a flutuações

no interior das próprias fases de implantação-operação-fechamento das minas. Depois,

nas entrevistas, notaria que a circulação das firmas e a instabilidade dos contratos de

trabalho, dentre outras questões, impõem uma circulação da força de trabalho bem mais

intensa ao longo da própria fase de implantação dos projetos, por exemplo. No entanto,

apesar desse “desaquecimento”, havia a exceção de algumas atividades de construção

civil, cuja chegada e saída das firmas me permitiram acompanhar as dinâmicas de

recrutamento e circulação da força de trabalho deste setor crucial para a instalação dos

grandes projetos. Os gestores da Vale decidiram continuar as obras secundárias de

implantação da MOP, em especial, a construção da vila residencial destinada aos seus

funcionários diretos, mobilizando centenas de trabalhadores72.

Entre agosto e dezembro de 2012, acompanhei o deslocamento de trabalhadores

diretos da Vale para outras unidades de trabalho, em outros municípios, e também o

fechamento de postos de trabalho nas atividades subsidiárias como era o caso dos

transportes de cargas e de pessoas, dentre muitos outros. Pude perceber, nesse sentido, os

efeitos do crescimento recente dos anos anteriores, que teria tido 2009 como ápice, bem

como da transição para o início da fase de operação. Isso abria a possibilidade de se

verificar uma camada de trabalhadores que veio no grande fluxo dos períodos iniciais,

mas que teria se estabelecido nos bairros de ocupação recente do município, exercendo

atividades no ramo de serviços (transporte, segurança de patrimônio, segurança do

trabalho, vigilância, limpeza, contabilidade, eletromecânica não especializada, etc). Logo

no início, verifiquei que essa camada não se confundia mais com a massa de trabalhadores

não especializados que procurou as cidades no seu período “quente” e que, em seguida,

se tornou supérflua pela supressão dos postos de trabalho que ocupava. Ela sugeriria

percursos sociais singulares e, embora muito menos presente em termos absolutos,

empiricamente observáveis e socialmente significativos, na medida em que sugeririam

processos de proletarização estabilizados num circuito diferente daqueles percursos que

se mantinham nas atividades da rede de produção agropecuária e/ou da construção civil

72 Apenas metade das cerca de 600 a 700 casas previstas tinham sido construídas. A MOP entrou em

operação com parte do efetivo da Vale morando em casas alugadas nas cidades de Tucumã e Ourilândia.

Assim como a Vale, algumas terceirizadas também realizavam contratos de geralmente 6 meses de aluguel

com os proprietários das casas para abrigar a família dos trabalhadores considerados fixos ou de alto grau

hierárquico das firmas.

Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

85

desmobilizada após a fase de implantação das minas73. Os locais de moradia dessa

camada de trabalhadores eram bairros, ou “setores”, de loteamento recente, cujos terrenos

foram adquiridos por doação, compra ou financiamento junto a órgãos do governo

municipal. No momento da pesquisa, era comum verificar a construção de casas de

alvenaria numa parte do lote e, noutra, a casa de madeira que fora ocupada pelo grupo

doméstico anteriormente. O quadro abaixo sintetiza o percurso de um trabalhador desse

grupo.

Antônio tem 40 anos, nasceu em Couto de Magalhães/TO, onde morou até 23 ou 24

anos. Seus pais eram agricultores e tinham um lote de terra. Em 1975, veio junto com

pai, mãe e 11 irmãos para Conceição do Araguaia/PA. Eles venderam a terra e

compraram uma casa na rua. Tinham um conhecido, ex-vizinho, que já morava em

Conceição e assim como um dos filhos. Antônio estudava trabalhava como caseiro de

uma chácara e por diárias. Em seguida, trabalhou como vigia, sem carteira assinada,

um emprego que conseguiu através de um amigo que o indicou. Ficou dois anos. Casou

e foi trabalhar como vaqueiro, numa fazenda em Conceição do Araguaia/PA, onde

ficou cerca de 2 anos também. Recebia salário mensal e ficava com metade da renda

da venda do leite. Voltou para a “cidade” para trabalhar numa distribuidora de

bebidas, onde também recebia por mês e não tinha carteira assinada. Voltou para casa

do pai, onde ficou cerca de 2 anos e meio. A distribuidora faliu e Antônio foi trabalhar

em uma fazenda onde não tinha salário fixo. Fazia serviços e ganhava por “empreita”

e por diária (cerca, roço de pasto). Ficou 1 ano. De lá, foi para a cidade de Ourilândia

do Norte/PA, onde ganhou uma casa para morar por um ano, de um conhecido de

amigo, que também tinha outras casas. Era o ano de 2005, aproximadamente. Antônio

veio para Ourilândia do Norte para procurar emprego. Tinha dois filhos homens e um

deles estava em idade escolar. Trabalhou como auxiliar de serviços gerais e teve o

primeiro emprego com carteira assinada em uma firma de recuperação ambiental, que

prestava serviço pra Canico (empresa proprietária da Mineração Onça Puma). Entrou

por indicação de um parente e ficou um ano e meio. Saiu da casa emprestada e alugou

outra casa no mesmo “setor”, em outra rua, onde ficou por dois anos pagando aluguel.

73 Na literatura de denúncia dos efeitos da mineração industrial se afirma que apenas cerca de 30% dos

migrantes atraídos na primeira fase permaneceriam nas áreas das novas minas. Ainda que tal porcentagem

esteja (sobre ou sub)estimada, é a própria existência desse tipo de trajetória que nos permite afirmar a

importância social do fenômeno.

Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

86

Foi para outra empresa, para a Odebrecht, onde foi auxiliar de terraplanagem e de

serviços gerais. Antônio entregou currículo e teve uma indicação de um “conhecido”

que era engenheiro de segurança e trabalhava pra Canico e, depois, pra Vale. Antônio

o conheceu quando foi ajudar na reforma da casa dele em Ourilândia do Norte.

Depois, esse engenheiro o indicou para a vaga. Ficou um ano. A Odebrecht estava

saindo (terminando um contrato com a Vale) e Antônio pediu para ser demitido. Com

o dinheiro da rescisão, comprou o lote no qual está morando e construiu uma casa.

Ficou 4 meses vivendo com o seguro desemprego e foi para uma empresa de

manutenção predial, chamada Atlântica. Era auxiliar, contou com a indicação da

mesma pessoa que o indicou para o emprego anterior. Tinha carteira assinada. Ficou

mais ou menos 2 anos. Saiu quando a empresa terminou o contrato que tinha com a

Vale. Antônio voltou a esperar novo emprego com o seguro-desemprego, por 5 meses.

A mesma empresa, Atlântica, voltou a ter contrato com a Vale, em outra área. Antônio

fez um curso pago por ele mesmo em Marabá/PA, por 20 dias e foi contratado por

outra empresa, como segurança, cargo que ocupa até o momento da entrevista. A

empresa tem contrato com a Vale até o final do ano. Antônio não sabe se continua ou

se vai trocar, porém, ele provavelmente continuará, provavelmente só mudará de

empresa. Atualmente, está na Norsegel, como segurança, e tem carteira assinada.

(Entrevista com Antônio, 40 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte/PA,

19/08/12).

Por outro lado, notei ainda que seria possível verificar localidades que

concentravam trabalhadores que estariam numa situação de latente mobilidade, em geral,

desempregados e/ou exercendo atividades nas redes informais de construção civil e de

outros serviços na cidade, tais como construção de casas, pequenos serviços de reparos

ou obras de reforma, carregamento e descarregamento de cargas, fretes com carroça,

distribuição de panfletos de campanha política, limpeza urbana, comércio local, moto-

taxi, etc. Ainda que professassem o desejo de se mudar em busca de emprego em outro

município, às vezes, eles também teriam procurado aqueles municípios no período de

implantação e lá se mantido até o momento da pesquisa, estabelecendo grupos domésticos

com indivíduos com quem manteve relações no período ou trazendo outros indivíduos de

um núcleo familiar localizado em outra região. O local de moradia desses trabalhadores

era mais variado que o primeiro, mas, em geral, pareciam estar em busca de estadias pelas

quais não tivessem que pagar para morar, especialmente dos lotes doados pelas prefeituras

Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

87

ou “grilados” por eles mesmos74. O quadro abaixo sintetiza um exemplo de percurso de

um trabalhador desse grupo.

Paulo tem 37 anos e nasceu em São João do Araguaia/PA, onde ficou até os 5 anos e

morava no lote de terra dos pais, que saíram de lá e foram para Marabá. Paulo ficou

em Marabá até os seus 14 anos. Os pais, primeiro, trabalharam numa fazenda

(ganhavam pelos serviços que faziam) e, depois, tiveram uma terra de cerca de 10

alqueires, que não foi comprada, mas ganhada, era devoluta mas ainda não

cadastrada pelo INCRA. Sua mãe se separou do padrasto e Paulo foi com ela e os

irmãos para Conceição do Araguaia/PA, onde ficou até os 33 anos. Morou numa terra

doada pelo INCRA para sua mãe, que se “juntou” (casou) de novo. Paulo morou na

cidade por cerca de 3 anos, quando casou. Trabalhava no plantio e colheita de

abacaxi, em que o pagamento é feito por diárias e por empreitas. Também começou a

trabalhar na construção civil e construiu uma casa para ele. Tinha um cunhado que

era pedreiro e Paulo foi trabalhar “na colher”, como ajudante, assentando tijolos. De

lá, veio pra Tucumã, onde ficou trabalhando apenas na construção. Vendeu sua casa

em Conceição e veio para Tucumã porque tinha ouvido falar que aqui seria “bom de

serviço”. Na primeira vez que Paulo veio, ficou na casa de um conhecido de Conceição

do Araguaia que era marceneiro. Na 2a vez que veio, resolveu mudar. Ficou na casa

de uma irmã da esposa para procurar uma casa, para alugar e para trazer a mudança.

Paulo pagou aluguel cerca de 5 meses e morou em umas 3 casas até comprar um lote

na área da Ceplac (“invasão”, ou “grilo”, de uma área de propriedade de um órgão

federal). Nesse período, sua mãe já estava em Tucumã e tinha comprado um lote lá

também. O lote de Paulo foi comprado por 600 reais. Ele teria vendido um rack e uma

tv pra comprar. Atualmente, Paulo trabalha na construção de casas. Ele combina o

serviço por empreita e paga ajudantes na diária, ou, às vezes também na empreita.

Paulo trabalha sempre com ajudante. Paulo nunca trabalhou “fichado”, com carteira

assinada. Ele mora com a esposa e 3 filhos (12, 9 e 8 anos de idade). (Baseado em

entrevista com Paulo, 37 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/09/12).

74 No período de campo, pude acompanhar a dinâmica dos denominados “grilos”, que designam as áreas

em que determinados grupos de pessoas se organizam para invadir e “tomar” ou “tirar” lotes, ou seja, cercar

terrenos para a construção de casas para elas mesmas e suas famílias. Ver capítulo “Expulsões”.

Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

88

Neste sentido, dentro da primeira parte do trabalho de campo, decidi acompanhar

não uma, mas duas localidades a fim de encontrar trabalhadores recentemente

estabelecidos com seus respectivos grupos domésticos no município de Ourilândia do

Norte. A primeira foi o “setor” Joel Hermógenes e o “setor” Marcia Veloso, que são

contíguos e ocupados há 5 ou 6 anos, dentre outros, por trabalhadores com percursos

semelhantes ao descrito no primeiro grupo representado acima. A segunda, constituída,

dentre outros, por trabalhadores do segundo grupo, foi a localidade denominada como

Lago das Rosas, que era, na verdade, um loteamento situado no município de Tucumã,

em um local isolado do resto da cidade. Era um “setor” recente, criado pelos gestores da

prefeitura de Tucumã para abrigar um grupo de moradores desapropriados de um grilo.

No momento da pesquisa, a localidade não tinha qualquer equipamento urbano nem

serviços básicos como iluminação pública e transporte escolar, sendo considerada na

cidade como o “bairro mais pobre de Tucumã”. Apenas cinco homens trabalhavam em

uma firma de construção civil terceirizada, mas que estaria “de saída” no mês seguinte,

depois de encerrado o contrato com a Vale. Em sua maioria, no primeiro momento da

pesquisa, os lotes eram ocupados por casas de madeira (as denominadas casas de tábua).

Os moradores mais antigos do Joel Hermógenes e Marcia Veloso também

descreviam que o início da ocupação do setor foi precário: “não tinha água, luz, nada”.

Tal como ocorria em outras localidades, teria sido fruto de organização aparentemente

espontânea, depois regularizada pela prefeitura municipal e batizada com os nomes de

políticos locais75: “ia lá, esse lote aqui está vago, chegavam lá, demarcavam: ‘esse aqui é

meu’, colocava a plaquinha. Aí o outro dizia: ‘ó, mais lá embaixo está vago também...’.

Aí eles foram ocupando assim...”. Além de algumas casas na rua, residências de

pequenos produtores locais, era fundamentalmente um bairro de trabalhadores das firmas

da Vale. Pessoas transitavam de macacão, circulavam e me atendiam em suas casas de

acordo com os horários de trabalho das empresas. Alguns, no lote, cultivavam pequenas

hortas de quiabo, cebola, coentro, etc.

No que se refere aos trabalhadores em trânsito, entrevistados em dormitórios

dessas cidades, em geral, solteiros, sem família ou conhecidos no local76, os percursos de

trabalho registrados por mim eram predominantemente concentrados na rede de produção

75 Marcia Veloso seria a junção dos nomes do prefeito à época, Veloso, com o de sua esposa, Marcia. 76 A categoria conhecidos se refere a indivíduos com quem os trabalhadores na região mantêm certas

relações que influenciam, dentre outras questões, na maneira e nos locais pelos quais transitam (ver Felix,

2008).

Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

89

agropecuária, ou em atividades associadas, como extração de madeira. Os padrões de

circulação nas cidades variaram entre duas situações principais: como assalariados das

fazendas (vaqueiros, cozinheiros, etc) e como trabalhadores temporários remunerados por

empreitas ou por diárias em atividades variadas: roçado e limpeza de pastos, construção

de cercas e curral, poda e colheita de cacau, aplicação de agrotóxicos, etc.

No que concerne à análise dos percursos sociais desse conjunto de trabalhadores,

em geral bastante complexo por conta da intensa movimentação espacial, diversidade e

provisoriedade das situações de trabalho, interessa aqui frisar dois aspectos: a circulação

nas atividades não especializadas da construção civil de grandes obras ou em grandes

centros urbanos (em distintas regiões do país, circulação essa situada antes e depois de

outras diversas vinculações em fazendas e na agropecuária em geral) e a circulação no

mercado de trabalho local, em especial nos ofícios remunerados por diárias nas cidades

que apresentaram crescimento acelerado na região. Sendo assim, tais percursos não

representaram apenas circulação em atividades na frente de expansão agropecuária nos

denominados rincões do país, mas, quase sempre, também nas obras dos grandes centros

ou nas grandes obras que exigiram maior consumo de força de trabalho nos últimos 30 a

40 anos (construção da UHE de Tucuruí, da Estrada Belém-Brasília, da Transamazônica,

das obras do PAC, na construção civil em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e de outros

grandes centros urbanos, etc). Além disso, a circulação nas atividades do mercado de

trabalho informal local das cidades que cresceram aceleradamente também foi uma

constante, como era o caso de Ourilândia/Tucumã ou de outras consideradas “mais

quentes” no momento, que esses trabalhadores indicavam como sendo seus próximos

destinos em busca de trabalho. O quadro a seguir representa um exemplo.

Chico tem 37 anos, nasceu em Pilar de Goiás/GO. Morou em Pilar de Goiás com sua

mãe, depois casou e morou durante 8 anos com a esposa até se separar e vir para

Tucumã, no Pará, há dois anos. Em Pilar de Goiás, trabalhava em fazendas, por

diárias, com gado e porcos, e também “empreitava” [por tarefa] alguns roços de

pastos. Trabalhou numa obra em Goiânia/GO, “fichado” [com CTPS] numa

construtora, construindo casas populares para a Caixa Econômica Federal, como

servente. Ficou mais de 90 dias nessa obra e depois voltou para Pilar de Goiás. A

firma era uma prestadora de serviço, faliu e Chico recebeu menos da metade do que

devia receber (700 reais dos 2500 que lhe deviam). Chico foi pra Tucumã com um

Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

90

primo, trazidos por uma pessoa que lhe ofereceu trabalho tirando madeira para fazer

um curral, numa fazenda. Depois de 90 dias, o primo de Chico voltou e ele foi trabalhar

numa pequena fazenda onde recebia um salário, tirando leite e fazendo queijo. Em

seguida, trabalhou para um colono [pequeno produtor], onde recebia por semana,

colocando veneno na plantação de cacau e tirando leite, por 2 meses, e para uma outra

fazenda, vizinha. Voltou para a “rua”, ficou hospedado em hotéis/dormitórios e

trabalhou como servente por diárias de 30 reais, durante bastante tempo. Trocou de

dormitórios 4 vezes até encontrar um que lhe desse “apoio”, comida. Em seguida,

trabalhou numa fazenda, tirando leite e na serraria, por 2 meses. Saiu porque se

indispôs com outro trabalhador. Ganhava 800 reais por mês, sem registro em CTPS.

Vinte dias atrás, voltou para a “rua” e estava à procura de trabalho novamente. Chico

não tem filhos e sua mãe é falecida; tem um irmão que teria uma terra na Vila

Lindoeste (São Felix do Xingu/PA), mas nunca foi lá e não tem contato com ele; tem

outras 3 irmãs que moram em cidades no interior de Goiás, duas trabalham como

empregadas domésticas; uma irmã é deficiente, internada numa clínica em Goiânia.

(Baseado em entrevista com Chico, 37 anos, em um dormitório em Tucumã/PA,

01/10/12).

Neste sentido, o contingente de trabalhadores pesquisado se desloca de forma a

acompanhar a circulação do capital, buscando os lugares tidos como “quentes” para

encontrar trabalho, serviço, empreitas ou diárias77. As dinâmicas de implantação,

expansão e estagnação da grande empresa de mineração alteraram, concentraram e, em

certo sentido, centralizaram um amplo mercado de trabalho cujas atividades foram

instauradas direta e indiretamente por ela. Na prática, como é comum em cidades

monoindustriais, tudo se amplia (ou se retrai, ou mesmo acaba) de acordo com o que

ocorre com a grande empresa. É a partir das condições tempo-espaciais da circulação do

capital e das condições sociais de acumulação do capital que esse contingente de

trabalhadores se forma e se reproduz socialmente. Como já indiquei, esse pressuposto não

é novidade em termos de teoria social, ainda que suas formas contemporâneas apresentem

especificidades que merecem ser melhor investigadas, como veremos. O conceito de

exército de reserva proposto por Marx no século XIX visava dar conta dessa dinâmica e,

77 De fato, a tese de que “a circulação mercantil da força de trabalho é subsumida pela circulação do capital”

(Berthoud, 1974), óbvia e fundamental, torna-se essencial para se compreender os deslocamentos desses

trabalhadores.

Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

91

inclusive, buscava descrever suas formas a partir das noções de liquidez/fluência, latência

e estagnação. Grosso modo, era o “movimento” que estava no cerne da definição do

conceito. Abro um pequeno parêntese para uma revisita à teoria.

O conceito de exército de reserva industrial (ou exército industrial de reserva) ou

superpopulação relativa78 foi formulado por Marx no Livro I para dar conta de um

fenômeno que está diretamente relacionado à acumulação de capital. Destaco

brevemente, em especial, dois pontos: o processo de produção desse exército de reserva

e a questão da oferta e demanda de força de trabalho.

No capítulo 23, Marx examina “a influência que o aumento do capital exerce sobre

o destino da classe trabalhadora” (Marx, 2013: 689). Seu fator mais importante é a

composição do capital e as variações que ela sofre ao longo do processo de acumulação.

Marx demonstra, nesse sentido, que há uma diminuição relativa do capital variável na

composição do capital à medida que avançam a acumulação e a concentração que a

acompanha. Ou seja, o progresso da acumulação de capital diminui relativamente seu

componente variável enquanto aumenta o componente constante, isto é, o valor dos meios

de produção consumidos, ainda que haja aumento da grandeza absoluta do capital

variável. Quanto maior a acumulação, quanto maior o desenvolvimento da produtividade

do trabalho social, maior a mudança na composição técnica do capital, com maior

importância da sua parte constante em detrimento da sua parte variável. Com isso, Marx

se refere à tendência de aumento da composição orgânica do capital ao longo do tempo,

sendo que o aumento desta composição faz com que se empregue, relativamente, cada

vez menos força de trabalho face aos meios de produção. É a camada excedente, supérflua

ou excessiva de trabalhadores produzida nesse processo que constitui o comumente

denominado “exército industrial de reserva”. A acumulação de capital pressupõe,

portanto, a produção contínua dessa população trabalhadora.

78 Marx trata os dois termos como sinônimos no O Capital [1867], texto em que conceitua, revisa e publica.

Nos “Grundrisse” [1857], ele utiliza apenas a denominação “superpopulação” e faz menção também a um

contexto mais amplo, a outros modos de produção específicos que não o capitalista. É em O Capital que

ele utiliza exército de reserva ou superpopulação relativa para designar um fenômeno do capitalismo, em

especial. Agradeço ao prof. Mauro Almeida a indicação de que no original alemão de 1867 Marx utilizou

“industriellen Reservearmee” e que, portanto, as traduções brasileiras teriam adjetivado erroneamente o

conceito. Na primeira edição francesa, corrigida por Marx, foram utilizados tanto “armée industrielle de

réserve” quanto “armée de réserve industrielle”. Antes de Marx, em 1845, Engels (2010) descreve a

situação de um “exército” ou “reserva” de trabalhadores desempregados na Inglaterra. Marx também já

lidava com a questão desde 1847, como se observa em outros manuscritos não publicados. Ambos, porém,

teriam retirado os termos (exército de reserva) de metáforas criadas no seio do próprio movimento operário

da época (Denning, 2010).

Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

92

A partir disso, num debate direto com a economia política da época, Marx

demonstra que é o próprio movimento da acumulação de capital que determina não só a

demanda de força de trabalho, mas também a oferta79. É a amplitude da acumulação de

capital que faz fileiras do exército industrial de reserva serem recrutadas quando ela

aumenta e engrossarem quando diminui. Essas fileiras acompanham as oscilações do

mercado de força de trabalho e, por sua vez, os movimentos da acumulação de capital nas

suas fases de produção a todo vapor, de produção média ou de crise e estagnação, cada

qual com maior ou menor absorção do exército de reserva.

Os grandes projetos, sem dúvida, são processos de grande absorção, mas também

de repulsão. Mobilizam e centralizam o recrutamento da fração de trabalhadores aqui em

análise, de forma singular. Em momentos em que há proliferação de grandes obras80, é

comum se observar a itinerância de significativos contingentes de trabalhadores que se

deslocam de canteiro a canteiro, ou, como visto no caso do grupo aqui estudado, se

deslocam de atividades da rede de produção agropecuária para a construção civil, por

exemplo, e vice-versa. Retornam à circulação anterior, quando acaba a obra, ou a série de

obras. Outras vezes, podem se “fixar” nas cidades que sediaram essas obras, buscando

lotes nos grilos e invasões, ao menos temporariamente, ou enquanto durar a oferta de

serviço, empreitas e diárias. Uma vez “desaquecida” essa oferta, ou seja, sem mais

trabalho para trabalhadores sem especialização e com pouca ou nenhuma escolaridade,

outro lugar deve ser procurado. E outro deslocamento deve ser iniciado. Seja do

trabalhador sozinho, de um grupo de solteiros, do grupo doméstico ali constituído ou do

grupo doméstico formado na cidade em que se estava antes, quer dizer, formado em um

deslocamento anterior81. Um grupo menor pode ainda circular de forma assalariada na

79 Trata-se de um jogo de “dados viciados”, Marx conclui: “A demanda de trabalho não é idêntica ao

crescimento do capital, e a oferta de trabalho não é idêntica ao crescimento da classe trabalhadora, como

se fossem duas potências independentes a se influenciar mutuamente. Les dés sont pipés. O capital age

sobre os dois lados ao mesmo tempo. Se, por um lado, sua acumulação aumenta a demanda de trabalho,

por outro, sua “liberação” aumenta a oferta de trabalhadores, ao mesmo tempo que a pressão dos

desocupados obriga os ocupados a pôr mais trabalho em movimento, fazendo com que, até certo ponto, a

oferta de trabalho seja independente da oferta de trabalhadores. O movimento da lei da demanda e oferta

de trabalho completa, sobre essa base, o despotismo do capital.” (Marx, 2013: 715). 80 A última década representou uma retomada significativa dos grandes projetos. Atualmente, 14 das 50

maiores obras de infraestrutura e energia do mundo estão no Brasil, por exemplo (Dieese, 2013: 10). 81 Há aqui toda uma série de práticas de deslocamento, que envolvem técnicas e saberes específicos

experimentados e compartilhados por esta fração de trabalhadores na condição de exército de reserva. Há

também uma série de implicações a respeito da formação (e destruição) de arranjos familiares, que se

expressam em modos singulares de constituição dos grupos domésticos. Em geral, as distâncias entre os

que se deslocam na condição de solteiros ou de “casados” refletem apenas situações distintas de uma

trajetória não tão distante entre si (mas sempre relacionadas à circulação e à acumulação de capital).

Questões como essas serão detalhadas adiante.

Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

93

rede de subcontratadas da empresa principal que se instala na região, ou em empresas que

orbitam em torno das atividades econômicas criadas pela presença dela, ou, ainda, dos

novos serviços requeridos pela presença dessas empresas e do seleto grupo de

trabalhadores especializados que vem residir ali. Mas mesmo este último, que

representaria um processo de proletarização mais “bem-sucedido”, mais “fixo” frente aos

demais trabalhadores “no mundo”, só o faz de maneira bem específica, entrando em um

circuito de empresas terceirizadas, tal qual já demonstrei. Voltaremos a esse grupo mais

adiante. Cabe frisar apenas que os grandes projetos e a expansão da acumulação de capital

em geral contam na região com um imenso exército de reserva, formado pela e na própria

sucessão de grandes mobilizações de trabalhadores para a implantação das empresas

agropecuárias e para a construção das estradas e das hidrelétricas ao longo das últimas

décadas. Há trabalhadores sempre disponíveis – e de sobra – que se deslocam quase

imediatamente para onde quer que se necessite de força de trabalho não especializada.

Há, nesse sentido, um exército de reserva específico da expansão capitalista que se

apresenta na região, caracterizada pela necessidade de grande quantidade dessa força de

trabalho em períodos curtos, ou momentâneos: a abertura da mata, a construção da

estrada, as obras de instalação da hidrelétrica ou da mineradora.

No que se refere à atual expansão da mineração, em particular, é preciso observar

mais algumas questões. A formação do exército industrial de reserva atrelado a essa

indústria é fruto de uma série de processos que se combinam de maneira complexa82.

Estão em jogo formas diversas de circulação e também da própria produção da mercadoria

força de trabalho83. Há o “clássico” processo de espoliação das terras de pequenos

produtores locais, mas também a “atração” de forças de trabalho já disponíveis no

mercado e que circulavam em outras atividades ou regiões, a “atração” de uma força de

trabalho proveniente do campesinato que se lança “no mundo” em busca de trabalho pela

primeira vez e, além disso, o próprio movimento de produção de exército industrial de

reserva tal qual analisado por Marx, por meio do aumento da composição orgânica do

capital. Este último, dada a natureza ultramonopolista da indústria mineradora, é um

processo que se desenvolve em âmbito mundial. Detalhá-lo aqui nos levaria a uma

82 É preciso, portanto, diferenciar a produção do exército industrial de reserva, processo que é fruto da

acumulação de capital e cuja dinâmica descrita por Marx já resumimos, de sua formação, que se refere às

formas nas quais se apresentam as forças de trabalho na esfera da circulação, ou seja, quando não estão

subordinadas diretamente ao capital. 83 Assumo aqui a sistematização de Gaudemar (1977), em que ele, para demonstrar o que chama de

“mobilidade do trabalho”, distingue o processo de produção da força de trabalho, de sua utilização e de sua

circulação, tal qual qualquer mercadoria. Retomo essa discussão mais adiante.

Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

94

discussão da história e do estado atual da rede de produção global da mineração, o que

não é o caso. Cabe mencionar apenas que a implantação dessas minas e, quando ocorre,

de usinas de beneficiamento primário do mineral se dão, desde o início, com a inserção

de modernas tecnologias e maquinarias “enxutas” em mão de obra. Passada a fase de

implantação e construção da mina, do “grande projeto”, a fase de operação se caracteriza

por uma indústria extrativa de alta tecnologia, automatizada, e com um quadro direto de

funcionários reduzido e especializado. A abertura de uma mina, inclusive, é uma forma

de implementar um incremento produtivo em relação à anterior. A cada nova mina, maior

composição orgânica do capital. Além disso, o esgotamento das minas é cada vez mais

rápido, dado o avanço no processo produtivo84. No que se refere ao exército de reserva,

o efeito da inserção dessa indústria no Pará é semelhante aos efeitos detalhados por Marini

(2008a; 2008b; 1979) quando analisou o papel do “capital estrangeiro” e o aumento de

produtividade no ciclo do capital de uma economia dependente85.

Mas o conceito de Marx nos ajuda a pensar na fração de trabalhadores em questão

não apenas quando trata de sua produção, mas especialmente quando descreve suas

“formas de existência”, sua reprodução. Afinal, como afirma, “Todo trabalhador a integra

[superpopulação relativa] durante o tempo em que está parcial ou inteiramente

desocupado” (Marx, 2013: 716). O exército industrial de reserva nada mais é, portanto,

do que a simples circulação, como mercadoria, da força de trabalho86. Mas rememoremos

agora as formas contínuas que assumia essa população trabalhadora, tal como Marx a

descreveu no século XIX. Seriam três: líquida ou fluente, latente e estagnada. E, friso

novamente, estas seriam as formas que ela possui “continuamente”, para além das “(...)

grandes formas, periodicamente recorrentes, que a mudança de fases do ciclo industrial

84 Esse fator deve ser relativizado por uma série de fatores, em especial pelas variações de mercado de cada

minério. A concentração e a centralização do capital dessa indústria também influenciam. Afinal, os

monopólios controlam os preços, acelerando ou desacelerando a produção e a oferta do produto no mercado

e – é claro – as crises afetam diretamente a demanda de minério. Mas, enfim, tudo isso faz com que seja

bem comum o anúncio de que as minas têm capacidade produtiva para se esgotar cada vez mais

rapidamente. Carajás, por exemplo, quando começou em 1984, tinha previsão de que duraria 400 anos.

Dado o ritmo da produção, a previsão em 2012 já era de mais apenas 80 anos, e baixando. Ver

http://www.viomundo.com.br/denuncias/lucio-flavio-pinto-ritmo-de-exportacao-de-minerio-de-ferro-e-

crime-de-lesa-patria.html 85 Considerando o contexto de uma formação dependente, há a produção do que chamei em outro momento

de um exército de reserva ampliado. Ver “Sobre o conceito de exército industrial de reserva em Ruy Mauro

Marini” (Felix, Anexo). 86 Esse fator, curiosamente, não foi observado por Gaudemar (1977) quando afirma que Marx teria se

referido mais às formas de “mobilidade do trabalho” vinculadas à produção da força de trabalho do que à

sua circulação, ou que ele “(...) descreve os fluxos migratórios como elementos do momento histórico de

produção da força de trabalho, mais do que da circulação da força de trabalho” (Gaudemar, 1977: 322).

Na verdade, como desenvolvo mais adiante, essas formas distintas de mobilidade do trabalho podem estar

relacionadas, de forma que as duas se confundem ao longo de um mesmo processo de proletarização.

Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

95

lhe imprime, fazendo com que ela apareça ora de maneira aguda nas crises, ora de maneira

crônica nos períodos de negócios fracos” (Marx, 2013: 716). A primeira:

Nos centros da indústria moderna – fábricas, manufaturas, fundições e

minas etc. – os trabalhadores são ora repelidos, ora atraídos novamente

em maior volume, de modo que, em linhas gerais, o número de

trabalhadores ocupados aumenta, ainda que sempre em proporção

decrescente em relação à escala da produção. A superpopulação existe,

aqui, sob a forma flutuante. Tanto nas fábricas propriamente ditas como

em todas as grandes oficinas em que a maquinaria constitui um fator,

ou onde, ao menos, é aplicada a moderna divisão do trabalho, requer-se

uma grande massa de trabalhadores masculinos que ainda se encontrem

em idade juvenil. Uma vez atingido esse ponto, resta apenas um número

muito reduzido que ainda pode ser empregado no mesmo ramo de

atividade, ao passo que a maioria é regularmente dispensada. Essa

maioria constitui um elemento da superpopulação flutuante, que cresce

com o tamanho da indústria. Uma parte dela emigra e, na realidade, não

faz mais do que seguir os passos do capital emigrante. Uma das

consequências é que a população feminina cresce mais rapidamente que

a masculina, teste [testemunha-o] a Inglaterra. Que o aumento natural

da massa trabalhadora não satisfaça plenamente às necessidades de

acumulação do capital e, no entanto, ao mesmo tempo as ultrapasse, é

uma contradição de seu próprio movimento. Ele necessita de massas

maiores de trabalhadores em idade juvenil e de massas menores de

trabalhadores masculinos adultos. A contradição não é mais flagrante

do que a outra: a de que haja reclamações quanto à falta de mão de obra

ao mesmo tempo que muitos milhares estão na rua porque a divisão de

trabalho os acorrenta a um determinado ramo da indústria. Além disso,

o consumo da força de trabalho pelo capital é tão rápido que, na maioria

das vezes, o trabalhador de idade mediana já está mais ou menos

acabado. Ou engrossa as fileiras dos supranumerários, ou é empurrado

de um escalão mais alto para um mais baixo. (...) Nessas circunstâncias,

o crescimento absoluto dessa fração do proletariado requer uma forma

que aumente o número de seus elementos, ainda que estes se desgastem

rapidamente. É necessária, portanto, uma rápida renovação das

gerações de trabalhadores. (Essa mesma lei não vale para as demais

classes da população). (grifos meus; Marx, 2013: 716-717).

A outra forma de existência do exército industrial de reserva, latente, agregaria

tanto a expulsão de trabalhadores do campo por conta do avanço do capitalismo na

agricultura quanto a atração de parte da população rural para as atividades da indústria

não agrícola87. Nos termos de Marx:

87 Alguns autores têm interpretado essa camada do EIR hoje em dia como aquela ocupada em atividades

não capitalistas que diminuem com sua transformação em indústria e comércio capitalistas, como a que se

Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

96

Assim que a produção capitalista se apodera da agricultura, ou de

acordo com o grau em que se tenha apoderado dela, a demanda de

população trabalhadora rural decresce em termos absolutos na mesma

proporção em que aumenta a acumulação do capital em funcionamento

nessa esfera, e isso sem que a repulsão desses trabalhadores seja

complementada por uma maior atração, como ocorre na indústria não

agrícola. Uma parte da população rural se encontra, por isso,

continuamente em vias de se transferir para o proletariado urbano ou

manufatureiro, e à espreita de circunstâncias favoráveis a essa

metamorfose. (Manufatureiro, aqui, no sentido de toda a indústria não

agrícola.) Essa fonte da superpopulação relativa flui, portanto,

continuamente, mas seu fluxo constante para as cidades pressupõe a

existência, no próprio campo, de uma contínua superpopulação latente,

cujo volume só se torna visível a partir do momento em que os canais

de escoamento se abrem, excepcionalmente, em toda sua amplitude. O

trabalhador rural é, por isso, reduzido ao salário mínimo e está sempre

com um pé no lodaçal do pauperismo. (grifos meus. Marx, 2013: 717-

718).

É importante notar que Marx não se refere à destruição ou ao fim dessa

“população rural” e a sua inteira transferência para o proletariado urbano, mas apenas a

uma parte que estaria, grifo mais uma vez, “à espreita de circunstâncias favoráveis a essa

metamorfose”.

Por fim, Marx descreve a camada estagnada, que é composta por trabalhadores do

exército ativo, porém “com ocupação totalmente irregular”88:

Sua condição de vida cai abaixo do nível médio normal da classe

trabalhadora, e é precisamente isso que a torna uma base ampla para

certos ramos de exploração do capital. Suas características são o

máximo de tempo de trabalho e o mínimo de salário. (...) Ela recruta

dá com “(...) a entrada do capital em esferas da produção doméstica, na indústria artesanal tradicional ou

nos resquícios da agricultura não capitalista” (Neto e Germer, 2013: 167). Seguindo o raciocínio de Marx,

eles acentuam ainda que “o capitalismo não precisa entrar necessariamente nestas atividades não

capitalistas para atrair a população aí ocupada. A acumulação nos setores capitalistas da economia pode

atrair parcelas desse EIR latente sem destruir esses setores não capitalistas, que apenas diminuem de

tamanho sem se tornarem capitalistas, ficando cada vez mais insignificantes na economia como um todo”

(id., ib.). Talvez caiba acrescentar que, assim como diminuem de tamanho, dependendo do movimento da

acumulação de capital, das condições de mercado e da própria dinâmica que caracteriza o EIR, também

podem aumentar em determinados períodos, como é o caso da produção doméstica. 88 É interessante notar que Marx observa a produção de uma camada “estagnada” a partir da superação da

produção artesanal pela indústria mecanizada. Caberia uma comparação com o processo que ocorreu e

segue ocorrendo atualmente com o fechamento dos garimpos e a entrada da moderna indústria extrativa. O

resultado disso é uma camada de garimpeiros que simplesmente se desloca para garimpos ainda mais

distantes e outra que se imobiliza na condição de exército de reserva ou de pequenos comerciantes nos

bairros mais pobres das cidades.

Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

97

continuamente trabalhadores entre os supranumerários da grande

indústria e da agricultura e especialmente também de ramos industriais

decadentes, em que a produção artesanal é superada pela manufatura, e

esta última pela indústria mecanizada. Seu volume se amplia à medida

que avança, com o volume e a energia da acumulação, a “transformação

dos trabalhadores em supranumerários”. (grifos meus. Marx, 2013:

718)

Há ainda na superpopulação relativa seu “sedimento mais baixo”, o pauperismo,

que seria composto por camadas que podem vir a integrar o exército ativo de

trabalhadores nos momentos em que a acumulação é mais ampla (“os aptos para o

trabalho” e “os órfãos e filhos de indigentes”), por um lado, e, por outro, dos

“incapacitados para o trabalho”. Sobre estes últimos, Marx afirma: “Trata-se

especialmente de indivíduos que sucumbem por sua imobilidade, causada pela divisão do

trabalho, daqueles que ultrapassam a idade normal de um trabalhador e, finalmente, das

vítimas da indústria – aleijados, doentes, viúvas etc. – cujo número aumenta com a

maquinaria perigosa, a mineração, as fábricas químicas etc.” (grifos meus; id., ib: 719).

O exército de reserva tido como apto para o trabalho era, portanto, o que ainda mantinha

condições de mobilidade. Em última instância, são estas condições que caracterizam a

circulação das forças de trabalho e a própria natureza dessa mercadoria, em particular.

Mas enfatizemos ainda mais algumas passagens do texto de Marx, sobretudo da descrição

que faz de frações da classe trabalhadora da Inglaterra e da Irlanda do século XIX.

1.8) A “população nômade” e o proletariado irlandês: produção e circulação da

força de trabalho

No caso da Inglaterra, Marx citou a existência do que chamou de uma “população

nômade”, que, segundo ele, seria “(...) uma camada da população de origem rural e cuja

ocupação é em grande parte industrial. Ela constitui a infantaria ligeira do capital, que,

segundo suas próprias necessidades, ora a manobra para este lado, ora para aquele.

Quando não está em marcha, ela ‘acampa’. O trabalho nômade é empregado em diversas

operações de construção e drenagem, na fabricação de tijolos, queima de cal, construção

de ferrovias etc.” (grifos meus; Marx, 2013: 738).

No caso da Irlanda, Marx analisa o fluxo campo-cidade-campo que caracterizaria

um típico proletariado “sem eira nem beira”, considerando um contexto no qual a

indústria não recruta o exército de reserva:

Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

98

A insegurança e a irregularidade da ocupação, a frequente repetição e a

longa duração das paralisações do trabalho, em suma, todos esses

sintomas de uma superpopulação relativa figuram nos relatórios dos

inspetores da administração de beneficência como outras queixas do

proletariado agrícola irlandês. Recorde-se de que encontramos

fenômenos semelhantes quando tratamos do proletariado agrícola

inglês. Mas a diferença é que na Inglaterra, país industrial, a indústria

recruta sua reserva no campo, enquanto na Irlanda, país agrário, a

agricultura recruta sua reserva nas cidades, no refúgio dos trabalhadores

agrícolas expulsos do campo. Lá, os supranumerários da agricultura se

transformam em trabalhadores fabris; aqui, aqueles que foram expulsos

para as cidades, ao mesmo tempo que exercem pressão sobre o salário

urbano, continuam a ser trabalhadores rurais e são constantemente

rechaçados de volta ao campo em busca de trabalho. (Marx, 2013: 780).

A existência nas cidades e vilarejos desse proletariado irlandês era a pior possível

e sua saída do campo era acompanhada, segundo Marx, da necessidade de se percorrer

distâncias cada vez maiores entre diferentes trabalhos, ou entre locais de moradia e

trabalho. Além disso, muitas vezes se viam submetidos à “forma salarial mais precária”:

a contratação por dia.

Guardadas as devidas proporções, a curiosa semelhança entre essas frações da

classe trabalhadora do século XIX descritas por Marx e o proletariado formado em torno

das cidades mineiras no sul e sudeste do Pará talvez não seja tão fortuita, em especial, por

conta da sucessão de grandes projetos e da implantação das grandes e médias empresas

pecuárias das últimas décadas, bem como da atual expansão da moderna e “enxuta”

indústria extrativa89. Afinal, o trabalho requerido foi o “trabalho nômade” da construção

das estradas, da construção civil de “grandes obras” Brasil afora, dos inúmeros serviços

89 A guinada extrativista e a “commoditização” da economia dependente latino-americana recolocam na

ordem do dia pautas históricas, formadas a partir da velha economia exportadora do século XIX

(dependência, transferência de valor, superexploração), mas também suas antigas circularidades e

mobilidades do trabalho, mesmo que agora sob moldes industriais moderníssimos e que resultam, por

exemplo, com o acesso a meios de transporte mais desenvolvidos, em um ultra-acelerado e cada vez mais

“onipresente” exército de reserva. No caso do sul e sudeste do Pará, a construção da ferrovia EFC e,

principalmente, das estradas aceleraram de maneira profunda a acumulação do capital. Também ampliaram

o arco de circulação desses trabalhadores para regiões bem mais distantes, incluindo até mesmo Europa e

EUA. Cabe à circulação das forças de trabalho a famosa passagem dos “Grundrisse” em que Marx analisa

a destruição do espaço pelo tempo: “(...) enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para derrubar

toda barreira local do intercâmbio, i.e., da troca, para conquistar toda a Terra como seu mercado, por outro,

empenha-se para destruir o espaço por meio do tempo, i.e., para reduzir a um mínimo o tempo que custa o

movimento de um local a outro. Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o

mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão espacial do

mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo” (Marx, 2011: 445).

Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

99

temporários das fazendas (abertura de matas, construção e reparação de cercas, limpeza

de pastos, etc) e, agora, das diárias e das empreitas na construção civil e demais serviços

das novas cidades da mineração, cujas indústrias recrutam através de subcontratadas, e

pouco90. Para o trabalhador que se lançou no mundo nesse contexto, a venda da força de

trabalho significa, sem dúvida, intenso deslocamento. Trabalhar é “andar”, “correr

trecho”, “sumir no mundo”, definitivamente, não ficar “parado”. A metáfora de Marx

aqui é completa: para trabalhar é preciso fluir.

O próprio surgimento e disseminação do termo “trecho”, por exemplo, estaria

relacionada à sucessão de grandes projetos no Centro-Oeste e Norte do país desde os anos

1970 e às características do trabalho neles requerida. A partir de pesquisa em Goiás,

Guedes (2011) constatou que: “Ao contrário do que se passa com estes últimos (pessoas

de 70 anos ou mais), a geração ‘dos 50 anos’ se destaca pela frequência com que apela

para o termo trecho para se referir àquilo que, para os homens mais velhos, seria mais ou

menos o correspondente ao mundo. O que me parece é que a experiência de rodar o

mundo é comum a todos eles. Por outro lado, somente aquilo posterior aos anos 70 é

designado pela referência ao trecho. Neste último caso, o mundo também é mencionado,

na maior parte dos casos como se fosse um sinônimo do trecho” (p. 241). E, para a origem

do termo, indicou aquela que seria a única referência disponível até o momento: uma

autobiografia intitulada “Urrando no trecho. Recordações de um engenheiro de obras”

(Corrêa, 2007, apud Guedes, 2011), que explica da seguinte forma:

[este termo] vem das grandes e lineares obras de estrada onde é prática

comum dividir-se o volume global de serviço em lotes, entregando-os

a várias empreiteiras. Evita-se assim uma arriscada monopolização da

construção e, aproveitando o natural espírito de competição inerente ao

ser humano, obtém-se um desenvolvimento uniforme, de menor custo

e de menor qualidade nas diversas frentes, ou trechos, da obra. É

comum, num casual encontro entre operários que constroem uma

mesma rodovia, a pergunta: ‘Em que trecho você está?’, seguindo-se a

resposta que identifica a empreiteira responsável pelo mesmo e os

quilômetros que limitam sua faixa de atuação. O termo Trecho

extrapolou suas iniciais fronteiras e como se todo o Brasil fosse um

imenso canteiro de serviços, passou a designar todas as grandes obras e

90 É importante ressaltar aqui que o “trabalho nômade” não significa ausência de imobilização da força de

trabalho, como já observou Ribeiro (1994) a respeito dos trabalhadores dos grandes projetos frente a outras

formas de imobilização, como a de sistemas fábrica-vila operária estudadas antes, por exemplo, por J. S.

Leite Lopes (1979). Segundo Ribeiro, os “nômades industriais” também seriam seguidamente imobilizados

por meio da moradia, mas em uma sequência de migrações, deslocados de obra em obra. Sobre isso, ver o

capítulo “Expulsões”.

Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

100

os homens que as executam, os peões do Trecho, nômades por

excelência e necessidade. (id. ib: 180).

Em etapa de pesquisa anterior, analisei como parte desses trabalhadores reuniu

condições para se constituir como um pequeno produtor rural justamente por meio dessas

circulações em vários trabalhos e sucessivos deslocamentos (Felix, 2008; 2009). O que

lhes permitiu, dentre muitas outras coisas, o acesso a terra foi se deslocar e, ao longo dos

próprios deslocamentos, ir juntando tudo o precisavam para se constituir na situação em

que estavam no momento da pesquisa. Muitas vezes, a venda da terra em dado momento

foi condição para se conseguir uma casa na rua e, daí, trabalhar em outras atividades,

tentar novas transações de terra, estabelecer novos arranjos familiares, conseguir uma

muda de gado, etc. Muitas vezes, a terra em que estavam era não a primeira, mas a terceira

ou quarta que tiveram ao longo do percurso na região, e os grupos domésticos que

constituíam eram fruto de uniões conjugais sucessivamente feitas e desfeitas e de uma

série de outros arranjos familiares. Em certo sentido, foram os deslocamentos que

possibilitaram a poupança. Ainda assim, considerando que as condições que lhes

permitiam aquela situação (friso de novo!) poderiam mudar, exigindo novos

deslocamentos, eles me diziam: “o mundo é grande, se aperta quem quer”, ou seja, caso

necessário, sairiam de novo no mundo. E de fato isso aconteceu outras vezes, como pude

constatar ao longo das visitas que fiz à mesma área nos anos seguintes. Filhos saíram no

mundo, assim como famílias inteiras se mudaram para a rua, “definitivamente”. Nem

sempre foi possível saber o destino exato que tomaram depois. Provavelmente, cidades

“quentes”, fazendas, garimpos na Guiana. Difícil saber se vieram a se reconstituir na

condição de pequeno produtor novamente. Afinal, a terra, pra eles, “(...) pode vir a ser

um meio, por exemplo, de adquirir outra terra, de conseguir algumas cabeças de gado, de

ter vizinhos conhecidos, de solucionar conflitos com fazendeiros vizinhos, de montar um

açougue ou de comprar uma casa na rua” (Felix, 2008: 243). E, se os percursos até ali

não eram tão puramente “camponeses” assim, também não estava em jogo uma “fixação”

enquanto valor, seja espacial e, muito menos, social91.

91 Otavio Velho, numa mesa redonda realizada em 1978, no auge das discussões a respeito do processo de

proletarização em curso no campo brasileiro, já chamava a atenção para o grave erro que significa impor

um sentido dado a priori para esses processos, recusando o elitismo da idealização do campesinato, assim

como o elitismo do ceticismo em relação à proletarização: “(...) estamos falando de homens de carne e osso,

cujos objetivos últimos podem não ser simplesmente se reproduzir como camponeses ou como proletários;

sobretudo dentro da visão que os intelectuais possam ter do que sejam camponeses e proletários. Alberto

Passos poderá sempre dizer que os proletários rurais de Conceição d’Incao seguidamente desenvolvem

atividades camponesas, e estará certo. Mas Conceição d’Incao também poderá dizer que os camponeses de

Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

101

Os percursos daqueles que atribuíam a si mesmos uma experiência anterior no

mundo e que eu entrevistei em 2005, em Nova Ipixuna (sudeste do Pará), eram, inclusive,

muito semelhantes aos dos trabalhadores que encontrei em Ourilândia do Norte e

Tucumã, em 2012. Houve, no entanto, agora, um completo descarte da opção terra e da

condição camponesa por parte de praticamente todos os entrevistados, seja de alternativa

presente (“é mais fácil vender picolé na frente da Vale, ganha mais que o pai lá”; “vou

vender a terra pra fazer quitinetes”; “hoje o pessoal só quer saber das firmas”, etc) seja

futura (“terra não dá mais não, precisa de muita coisa”; “não acha mais”, etc). Cabe

relembrar que esses entrevistados estavam na condição de trabalhadores nos setores de

ocupação recente da cidade, trabalhando nas empresas contratadas da Vale, as firmas, ou

nos mais diversos serviços, por empreitas ou diárias na própria cidade, ou ainda, quando

sozinhos e nos dormitórios, nas fazendas. Constituir-se como pequeno produtor

envolveria, dentre outras várias condições, a poupança de muitos recursos para se

conseguir ter acesso a terra, ter pasto, conseguir gado, produzir leite e bezerros, ou esperar

anos para começar a vender cacau, etc, e, depois, obter um rendimento relativamente

baixo frente a outras opções como o aluguel de quitinetes na cidade “quente”, por

exemplo. Ao longo do período de pesquisa de campo foi mais comum se deparar com

trabalhadores que tinham ou almejavam ter uma chácara em um dos Assentamentos mais

próximos92, do que necessariamente fixar residência e transferir sua principal fonte de

rendimento do “salário” para uma terra, ou seja, se constituir como pequeno produtor.

Para estes trabalhadores que estão no mundo em busca de trabalho, a opção terra

enquanto destino de deslocamento se deve a uma série de condições que, obviamente,

variam de acordo com o momento e o lugar que lhes permitiria acesso ou não a essa

situação, o que, via de regra, se restringe muito e cada vez mais, principalmente em áreas

de expansão da mineração industrial e da pecuária extensiva de corte. A integração ao

mercado nacional de terras das poucas regiões em que ainda era possível se estabelecer

transações envolvendo terras por parte desses camponeses-proletários e o aumento dos

preços das propriedades restringem essas opções, em especial para esses trabalhadores

Alberto Passos já são proletários. Mas, se nos limitarmos a vê-los dentro dessas rubricas, privilegiando uma

ou outra, corremos o risco de seccionar o universo social que dá sentido a suas ações e de pouco

entendermos da sua prática cotidiana. Para muitos menos avisados isso poderá representar passar com o

tempo de uma atitude de idealização para uma outra, tão elitista quanto a anterior, de ceticismo”. (Velho,

1982: 106). 92 Os lotes, como já mencionei, estavam sendo subdivididos e vendidos (ou distribuídos por políticos locais)

em pequenas faixas a uma distância relativamente curta da cidade.

Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

102

cujas (poucas) poupanças “advêm dos deslocamentos”93. Para os trabalhadores que

encontrei em Ourilândia do Norte e Tucumã, por exemplo, sair no mundo foi uma viagem

sem volta.

Como já fiz referência, Gaudemar (1977) distingue o processo de produção, da

utilização e da circulação das forças de trabalho. A produção das forças de trabalho seria

“o momento da aquisição da sua mobilidade, por parte do trabalhador anteriormente

submetido a outros modos de produção”, que Marx denomina acumulação primitiva, o

momento “em que surge o mercado de trabalho”94. A utilização seria “o momento da

submissão da mobilidade do trabalhador às exigências do capital”, em que “ela deve

prestar-se às formas e transformações da organização do processo de trabalho”. E a

circulação das forças de trabalho seria “o momento da submissão da mobilidade do

trabalhador às exigências do mercado, aquele em que o trabalhador, à mercê do capital e

das suas crises periódicas, se desloca de uma esfera de atividade para outra” (pp. 193-

194). Com base nisso, e com base em passagens do Capítulo VI (inédito)95, Gaudemar

93 Como também já citei antes, ao longo do período de campo, foi comum ouvir que a Terra do Meio

“acabou”, em referência às áreas da frente de expansão agropecuária situada entre os rios Iriri e Xingu, no

sudoeste do Pará, cujas denominadas terras livres tiveram o acesso fechado com a criação de áreas de

proteção ambiental e reservas extrativistas. Foi possível acompanhar também o drama envolvido na

desocupação de parte da Terra Indígena Apyterewa, em São Felix do Xingu, que havia sido tomada por

pequenos produtores incentivados por políticos locais, fazendeiros e pelo INCRA até intervenção recente.

Mesmo as ocupações de terra realizadas pelo MST e sindicatos de trabalhadores rurais, que promoveram

uma guinada contrária à concentração das terras no sudeste do Pará nos anos 90, arrefeceram na última

década. 94 Para Gaudemar, a acumulação primitiva, e as formas de mobilidade que lhe correspondem, são um

elemento permanente do processo de acumulação. Deixa de ser apenas uma condição necessária para esse

processo, tal como foi no processo histórico de criação do capital que Marx designou, e passa a ser um

elemento “externo” do aparelho de reprodução da força de trabalho. Ele se soma a vários outros autores

que também interpretam uma “acumulação primitiva permanente” como, por exemplo, do grupo reunido

na revista “The Communer”, em especial, Massimo de Angelis (2001) e Midnight Notes Collective (2001),

de Moulier-Boutang (2005) e de Yeros, Jha e Moyo (2012), assim como, no Brasil, de Sevá Filho (2010),

Brandão (2010), dentre outros. Harvey (2011) – que acompanha Marx de forma mais literal e contorna o

debate Marx-Rosa Luxemburgo – propôs a categoria accumulation by dispossession, buscando dar conta

das formas contemporâneas de espoliação. Contudo, em outro texto, ao comentar o Livro I de O Capital,

ele escreveu que Marx teria “errado” (Harvey, 2013a). Atualmente, a própria categoria proposta por Harvey

está em disputa entre uma série de autores que acusam seu “economicismo”, por um lado, ou seu uso

politicista, por outro (por exemplo: Smith, G., 2011; Levien, 2014). Sobre o conceito de acumulação

primitiva e sua utilização pós-O Capital, ver “Marx e a ‘assim chamada acumulação primitiva’: conceito e

interpretações de sua ‘forma clássica’ (1867-1883)” (Felix, 2013). Para uma leitura da questão no âmbito

da teoria marxista da dependência, ver: “Sobre o conceito de exército industrial de reserva em Ruy Mauro

Marini” (Felix, anexo). 95 Ver, dentre outras: “[O capital] derruba e quebra todas as barreiras jurídicas ou tradicionais que o

impedem de comprar a seu bel-prazer esta ou aquela espécie de força de trabalho ou de se apropriar deste

ou daquele gênero de trabalho. Além disso, se bem que a força de trabalho possua uma forma específica

em cada ramo de produção (...) e que para cada ramo particular de produção seja então necessária uma força

de trabalho particularizada, esta mobilidade do capital implica que ele próprio seja indiferente à natureza

particular do processo de trabalho de que se apropria. Além disso, o capital exige uma mesma fluidez ou

mobilidade de trabalho, isto é, capacidade de aplicação da força de trabalho do operário. (...) De fato, quanto

mais desenvolvida é a produção capitalista de um país, maior é a mobilidade exigida à capacidade de

Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

103

propõe o conceito de mobilidade do trabalho, “(...) que dá conta das formas que tomam,

em referência à produção e à circulação do capital, a produção, a circulação e a utilização

da força de trabalho” (p. 344). Dentre essas formas, ele distingue, portanto, as formas

circulantes da mobilidade do trabalho das suas formas produtivas, quer dizer, as formas

de mobilidade das forças de trabalho já formadas, que já tiveram seu valor de uso utilizado

ao longo da produção capitalista, das formas de mobilidade que se referem à entrada de

novas forças de trabalho no mercado, do processo de produção das forças de trabalho

propriamente dito, processo em que se dá a separação entre produtor e meios de produção

e a criação de um “proletário”, despossuído.

No caso dos trabalhadores tratados aqui, há uma clara imbricação entre produção

e circulação das forças de trabalho ao longo de um mesmo processo de proletarização96.

Com Gaudemar, há, assim, que se pensar em formas circulantes produtivas de

mobilidade, ou seja, daquelas em que houve a saída no mundo de membros da unidade

camponesa e, ao longo do percurso, as condições de se estabelecer como pequeno

produtor autônomo desse membro foram se esvaindo até o ponto de serem completamente

descartadas as opções de deslocamento nesse sentido, permanecendo a força de trabalho

em circulação no mercado, ou formas circulantes circulantes, quando essas opções terra

ainda não foram descartadas. E também em formas produtivas circulantes, quando há

venda ou expulsão da terra, circulação das forças de trabalho criadas e possível circulação

em novas terras; ou ainda produtivas produtivas, quando se fecha essa possibilidade.

Todavia, mais do que inventar novas categorias, interessa aqui compreender a

proletarização enquanto processo. E não associar, imediata e necessariamente, a venda da

força de trabalho de trabalhadores oriundos da pequena produção rural com o que Marx

designou como acumulação primitiva, como já distinguiu, por exemplo, Garcia Jr.

(1989)97. O percurso daquele que vende a força de trabalho em dado momento pode

trabalho. Quanto mais o operário é indiferente ao conteúdo particular do seu trabalho, mais é fluida e intensa

a migração do capital de um ramo de produção para outro” (Marx apud Gaudemar, 1977: 191-192). Em

Marx (1978: 44), a tradução brasileira do trecho usou “fluidez” no lugar do que acima se lê “mobilidade”,

assim como “capacidade de trabalho” ao invés de “força de trabalho”, formas que Marx usou

indistintamente (embora mais a primeira – Arbeitsvermögen – nos primeiros escritos e, depois, quase

exclusivamente a segunda – Arbeitskraft). 96 Na região em questão, estariam em jogo formas de mobilidade de denominada “acumulação primitiva

permanente”, em especial, da acumulação por espoliação, com a expulsão de pequenos produtores das suas

terras pela grande e média pecuária e pela mineração, por exemplo, e também formas de mobilidade

próximas às que Lenin (1985) demonstrou que estariam levando, no caso russo, à “decomposição do

campesinato”. 97 Ainda que, como afirma: “Na verdade, se as condições apontadas por Marx não se realizam plenamente,

é que estamos diante de transformações nesta direção, mas que apresentam várias outras virtualidades no

bojo desse processo” (Garcia Jr., 1989: 269).

Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

104

significar também um retorno à condição camponesa mais adiante. É preciso observar,

porém, que é ao longo do processo de circulação das forças de trabalho que se insere um

outro processo: o do retorno ou não. E este processo pode ser revisto, abandonado,

reatualizado ou mesmo impossibilitado por uma série de motivos ao longo do percurso

desses trabalhadores98. Pode, inclusive, nunca ter sido colocado para aquele que se

desloca. Importa, nesse sentido, a situação em que se encontra o trabalhador e o possível

novo núcleo familiar que formou ao longo do percurso e, quando foi o caso, a situação

do núcleo familiar que ficou na terra. E, claro, a possibilidade ou não de se reunir todas

as condições necessárias para se constituir, ou se reconstituir, como pequeno produtor,

que, ao menos no sul e sudeste do Pará, é cada vez mais remota.

De todo modo, considerando esses percursos, é importante observar que processos

de proletarização devem ser compreendidos a partir de determinadas especificidades

dadas por condições históricas e sociais da atual etapa e padrão de circulação e

acumulação do capital, assim como dos grupos envolvidos. A simples instauração de um

mercado de trabalho, a compra e venda de força de trabalho em dada situação, não implica

proletarização “definitiva”, necessariamente, ainda mais em um contexto em que a

indústria não recruta o exército de reserva do campo e os trabalhadores estabelecem

fluxos campo-cidade-campo. A viagem sem volta dos trabalhadores de Ourilândia do

Norte se dá numa situação em que, afinal, a possibilidade de trabalho é em empresas que

os despedem quase tão logo quanto os contratam e, por outro lado, como concluíam, “a

terra acabou”. A alternativa é voltar para as empreitas e diárias no campo e nas cidades

“quentes”.

Nessa condição proletária, as “circunstâncias favoráveis à metamorfose” de que

dizia Marx nunca estão dadas e, uma vez no mundo, eles seguem “à espreita”,

“estagnando”-se nas cidades ou “fluindo” para um “trabalho nômade”, outra e outra vez,

e sabe-se lá para onde!

98 Em pesquisa com operários da construção civil nos anos 1970 no Grande Rio, Coutinho (1980) assinala

a importância da experiência na obra, a experiência do trabalho, para a tendência de abandono do projeto

de retorno. Ele cita o discurso dos operários: “ ‘No começo eu só pensava em juntar um dinheirinho para

voltar, comprar uma terra, viver lá. Agora já sei alguma coisa, estou aprendendo o meu oficio. Voltar só se

for pra visitar’ (meio-oficial carpinteiro, natural do interior do Espírito Santo, 31 anos, solteiro). ‘Pensei

muito em largar tudo e ir embora de novo pra casa do pai, deixar de aventura. Mas qualquer um pode ter

um ofício aqui, depende só de entender, fazer força. Acho que posso ter uma especialidade, ganhar mais.

Acho que não volto não, só se for visita ou coisa assim’ (Servente, cearense, 25 anos, solteiro). ‘A gente

chega e fica meio aperreiado. A família longe, na terra da gente. A gente só pensa no modo de voltar.

Depois que acostuma, fica diferente, a gente sabe que há jeito de progredir na profissão e vai ficando’

(servente, RN, 28 anos, solteiro)’ ” (id.ib.: 59).

Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

105

No próximo capítulo, analiso algumas trajetórias de circulação no caso específico

das obras da MOP.

Page 106: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

106

CAPÍTULO 2:

FIRMAS

Uma análise detalhada dos percursos dos trabalhadores que buscaram a região

estudada é um exercício complexo, em especial, pela maneira com que articulam

deslocamentos espaciais sucessivos e arranjos reprodutivos diferenciados, muitas vezes,

alternados em trânsitos de curtos períodos. O arco de circulação costuma ser vasto e, por

causa de características como a intersetorialidade e a inter-regionalidade, aparentemente

avesso a qualquer sistematização. Neste capítulo, optei por organizar esses percursos em

termos de trajetórias de circulação da força de trabalho, tendo como ponto nodal as

denominadas firmas, as empresas terceirizadas e subcontratadas da Vale/MOP na cidade

de Ourilândia do Norte. O exercício, no entanto, deve ser precedido por algumas ressalvas

a fim de auxiliar a compreensão do leitor.

2.1) Arranjos reprodutivos

A primeira ressalva a ser feita se refere à relação entre as práticas de deslocamento

e os arranjos reprodutivos dos trabalhadores pesquisados. Isso porque os arranjos

reprodutivos são geralmente confundidos pela forma como o trabalhador se apresenta em

determinada cidade de destino. Desta forma, tomados sem maior cuidado, podem

invisibilizar tanto o próprio arranjo realizado em dada situação de deslocamento/trabalho

quanto o percurso desses trabalhadores que, não raras vezes, por exemplo, alterna

situações de família e situações de não-família (com grupos domésticos residentes no

local ou não). Este é o caso dos denominados peões-de-trecho, forma como são

designados parte dos trabalhadores homens em situação de não família que se encontram

em busca de trabalho nas cidades da região. A análise de seus percursos demonstrou que

apenas parte desses, de fato, não constituíram núcleos familiares e grupos domésticos, e

parte menor ainda não os constituíram em momento pretérito algum, tal como apresento

a seguir. Outra forma comum de deslocamento que os trabalhadores pesquisados

utilizaram, inclusive, rompe apenas transitoriamente a unidade reprodutiva, estando tanto

o marido quanto a esposa do grupo doméstico em busca de trabalho, de cidade em

Page 107: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

107

cidade99. Em geral, portanto, os núcleos familiares também se deslocaram espacialmente

e, certos casos, também se destituíram ou se reconstituíram socialmente ao longo dos

percursos até o momento em que entrevistei os trabalhadores100.

Além disso, no caso de Ourilândia do Norte e Tucumã, os arranjos reprodutivos

da força de trabalho variaram de acordo com os diferentes fluxos de trabalhadores que já

transitavam na região e os que se deslocaram em virtude do grande projeto. Dentre estes

últimos, os arranjos variaram também de acordo com as diferentes etapas das atividades

da mineradora (construção, início da operação e paralisação). Nos grandes projetos, e na

mineração, em particular, os agentes de recrutamento das empresas desenvolvem

estratégias diferenciadas para o deslocamento ou a “atração” da força de trabalho

requerida para cada uma das atividades a ser realizada. Dependendo do tipo de força de

trabalho, do tempo que ela é empregada e da sua disponibilidade no mercado, as

estratégias para reduzir os custos com a sua contratação mudam e, com elas, os arranjos

reprodutivos dos trabalhadores.

Os trabalhadores de mais alto nível hierárquico da Vale tinham acesso a moradia

em um bairro construído pela própria empresa para que se estabelecessem com suas

famílias, com uma escola “trazida pela Vale” e demais condições mínimas e distintas de

reprodução. Foram contratados de outras empresas de mineração (como era o caso da

chamada “colônia de niquelandenses”) e eram a “gente de fora” que formava um grupo

visto como especialmente distinto na cidade, cujo circuito de consumo não se confundia

com o dos demais moradores, em geral, nas empresas e serviços instalados para eles

(“trazidos pela Vale”). Muitos já eram funcionários do grupo Vale e foram apenas

99 A referência que os trabalhadores fizeram em contraposição ao estar no mundo não foi a noção de

“família”, mas a de “sossego”, tal como será analisado no próximo capítulo. Com ela, idealizavam uma

situação futura constituídos como pequenos produtores rurais e/ou como aposentados, ou seja, que não mais

tivessem que se deslocar por causa do trabalho. Muitas vezes, o grupo doméstico constituído ao longo do

percurso era apresentado ao pesquisador como exemplo de “coisas que se ganhou no mundo” e eram

explicadas em detalhes as formas de se “sair no mundo” com esposa e filhos. 100 Dada a diversidade de arranjos reprodutivos, a referência à noção de “família”, simplesmente, não

permite diferenciar as unidades sociais constituídas por esses trabalhadores ao longo de seus deslocamentos.

Nesse sentido, dada sua importância para as redes sociais de mobilidade acionadas por esses trabalhadores,

optei por denominar como núcleo familiar um determinado conjunto de grupos domésticos referenciados

entre si a partir da noção de família e que mantinham contato mais ou menos frequente, circulando pessoas

e dinheiro entre si. Tal como os grupos domésticos, estes núcleos também se constituíram e se destituíram

ao longo dos percursos, dando origem a novos núcleos ou deixando de existir para parte dos trabalhadores

entrevistados. Menciono “arranjos reprodutivos”, justamente, em função da diversidade de formas de

organização das unidades sociais de reprodução, dadas as relações sociais de circulação e as diferentes

trajetórias de circulação da força de trabalho. Sendo assim, tal diversidade também vale para o que se

denomina convencionalmente trabalho reprodutivo, que, nesse caso, é quase completamente realizado pelas

mulheres quando elas estão presentes nesses arranjos, tal como apresento a seguir.

Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

108

deslocados para Ourilândia do Norte. No momento da paralisação, parte deles foi

novamente deslocada para outras unidades.

Os demais trabalhadores da Vale, de nível educacional médio, e os trabalhadores

de alto nível hierárquico das empresas contratadas pela Vale também residiam com suas

famílias, principalmente em Tucumã, em casas construídas para aluguel no momento da

instalação da mineradora. Também eram “gente de fora”, embora parte desses

trabalhadores de mais baixo nível da Vale já fosse recrutada no próprio município, a partir

da formação em cursos de qualificação fomentados direta ou indiretamente pela própria

empresa. São, no entanto, uma pequena minoria, já que esses quadros normalmente são

recrutados através de empresas terceirizadas. Os trabalhadores de alto nível das

contratadas em geral também integram um quadro fixo de funcionários que se desloca

com a empresa de forma a acompanhar suas atividades em diversos pontos do país, como

é o caso das construtoras e de prestadoras de serviços especializados.

Os trabalhadores das empresas terceirizadas eram os únicos recrutados no próprio

município, para o qual se deslocavam das mais diversas regiões. Dentre os considerados

“semiqualificados”, em especial na fase de construção, ou seja, no auge do “grande

projeto”, parte deles foi recrutada em outras regiões e trazida pelas próprias contratadas,

como foi o caso de um “ônibus de soldadores, eletricistas e outros ‘profissionais’ que a

Odebrecht trouxe da Bahia”. No que se refere à reprodução dessa força de trabalho, houve

dois momentos: o primeiro, do “grande projeto”, e o segundo, da fase de operação (e

depois da paralisação) da mineradora. No primeiro, tal como já analisou Ribeiro (1991)

predominou um regime próximo ao “sistema de trabalho migrante” (Burawoy, 1976),

com enormes alojamentos de homens solteiros ou casados que deixavam seus grupos

domésticos nas regiões de origem. Já no segundo, como descrevi no caso do setor que

pesquisei em Ourilândia do Norte, os trabalhadores das terceirizadas fixavam residência

nos lotes doados ou comprados dos bairros de ocupação recente com seus grupos

domésticos, certos casos, com o marido e a esposa empregados nas firmas.

Os trabalhadores que não conseguiram mais encontrar emprego nas terceirizadas,

sem especialização, ou que preferiam permanecer trabalhando por empreitas ou diárias

nas cidades, também se fixavam com grupos domésticos, mas principalmente nas áreas

denominadas grilos ou invasões, como o caso do outro grupo que analisei. Buscavam de

todas as maneiras um lote que lhes permitisse “não pagar aluguel”, uma vez que parte

deles se deslocou, num primeiro momento, para as chamadas quitinetes em uma dessas

duas cidades.

Page 109: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

109

Os únicos que se encontravam sem grupo doméstico constituído no local eram os

peões que estavam nos dormitórios, em que ficavam por pequenas temporadas em busca

de patrões – para se dirigirem para alguma fazenda da região – ou em busca de serviços

por diárias e empreitas na própria cidade. Ou, quando empregados em atividades fixas

dessas fazendas, como era o caso dos vaqueiros, estavam na cidade por alguns dias para

receber o pagamento, se divertir e “gastar o dinheiro”, antes de retornar para a mesma

fazenda. A forma como esses trabalhadores mantinham relações com outros familiares

era variada: havia os que entravam em contato regularmente e enviavam, quando possível,

algum dinheiro (situação mais rara), os que mantinham contato esporádico, ou que

recebiam e enviavam informação por conhecidos vez ou outra, e os que não tinham mais

contato com a família de origem (pais e irmãos) por muitos anos. Era comum, no entanto,

a alternância ao longo de um mesmo percurso desses trabalhadores de situações de

composição de grupos domésticos e núcleos familiares com outras de circulação em

trabalhos temporários, em geral em fazendas e na condição de solteiros101.

Mas, no que se refere à reprodução, outras distinções ainda devem ser feitas. A

principal é entre trabalhadores diretos e terceirizados da Vale102. Os primeiros, além do

que expus acima, têm remuneração composta por benefícios e auxílios referentes aos

gastos não apenas com a manutenção do trabalhador empregado, mas de sua família103.

Os terceirizados têm uma remuneração menor e não têm acesso a esses benefícios. Essa

diferenciação também abrange os espaços da empresa, sempre divididos entre diretos e

101 Tanto esses trabalhadores quanto os que, com família, se encontravam nos grilos e invasões, não

constituíam arranjos reprodutivos próximos do que Burawoy (1976) denominou “sistemas de trabalho

migrante”. Seriam mais próximos, embora com variações significativas entre as circulações na condição de

casados e na condição de solteiros, como peões-de-trecho, do que ele denominou, nos EUA, de “trabalho

migratório”: “Finally, there is a domestic labor force which migrates from place to place in search of

employment. It does not constitute a system of migrant labor as defined here. I shall refer to this fraction

of the labor force as migratory labor” (Burawoy, 1976: 1066). 102 Desde os anos 1990, e principalmente depois da privatização, houve demissões em massa de

funcionários diretos da Vale e cada vez maior contratação proporcional de terceiros. Segundo dados da

empresa, em 2013 a empresa tinha 83,3 mil diretos e 129,1 mil terceiros. Em relação à 2012, houve queda

de 2,4% de empregados próprios e aumento de 17% de terceiros. A empresa alega ter ocorrido venda de

ativos (empreendimentos no Chile e no Paraná) e contratação por conta da implantação do Projeto S11D,

que está em fase de grande projeto em Canaã dos Carajás/PA (a cidade “quente” do momento). (Vale,

2013). Contudo, em 2014, pelos dados que já mencionei no capítulo 1, há ainda maior redução do quadro

de trabalhadores diretos (76,5 mil) – um enxugamento de cerca de 8,2% do próprio ano anterior - e aumento

proporcional dos terceiros (129,9 mil). (Vale, 2014). 103 Em 2006, os funcionários da Vale recebiam o salário-base, uma remuneração variável (avaliação

individual e participação nos resultados), plano de saúde que inclui dependentes, previdência

complementar, reembolso escolar (para empregados cursando Ensino Fundamental, Médio ou Superior),

reembolso creche (para filhos até 6 anos de idade), concessão de um valor anual por dependente para

aquisição de material escolar/uniforme, seguro de vida e auxílio funeral (Instituto Observatório Social,

2004; 2006).

Page 110: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

110

terceirizados, como é o caso do transporte e da alimentação dos terceirizados, de pior

qualidade e realizados por empresas subcontratadas pelas terceirizadas104. Outra distinção

fundamental a ser feita é a que se refere aos deslocamentos: os trabalhadores

especializados são recrutados em âmbito nacional (seleção de currículos via site, etc) e,

dependendo do nível, deslocados “a serviço”, ou contratados na origem, enquanto os

trabalhadores com baixa qualificação formal e os não especializados em geral são

recrutados no destino, ou seja, nos escritórios das firmas recém instaladas na cidade105.

A decisão e os custos do deslocamento da família são, nesse sentido, atribuições do

próprio trabalhador (e os preços das casas, lotes e aluguéis nas cidades “boas de serviço”

em geral são comparativamente altos). A remuneração oferecida pelas empresas não

prevê a família desses trabalhadores e nem visa ser atrativa a ponto de cobrir os gastos do

seu deslocamento familiar, como ocorre nas demais frações mais especializadas do

mercado de trabalho106. Neste sentido, a busca pela denominada qualificação de mão de

obra só é realizada diretamente pelas empresas na medida em que essa formação local vai

custar menos do que os gastos que tem com recrutamento, deslocamento, etc.

No entanto, quando se trata de trabalhadores não especializados, em especial, os

deslocamentos e a reprodução ao longo do trânsito na esfera da circulação da força de

trabalho não são custeados diretamente pelas firmas107. Sendo assim, quando é o caso,

104 O melhor exemplo desta distinção foi o acidente nos fornos de processamento do minério em 2012.

Segundo relato dos trabalhadores, a evacuação seguiu a mesma ordem: primeiro os diretos e, depois, os

terceirizados. 105 A distinção entre “especializados” e “não especializados” no mercado de trabalho foi apresentada na

nota 22. 106 No setor da construção civil, a contratação do trabalhador no escritório local da obra significa, para as

empresas, inclusive, redução dos custos com benefícios como a denominada “folga de campo” ou

“baixada”, já que isso possibilita pressupor legalmente que a família do trabalhador se encontra na própria

cidade. O recrutamento via SINE, por exemplo, também possibilita a retirada do direito. Essa prática

ocorreu na MOP e em outras grandes obras ultimamente, como foi o caso das UHEs de Jirau e Santo

Antonio. Veras (2014) cita relato de um sindicalista da CUT: “(...) além de substituir o agenciador no

processo de seleção, também é preciso fiscalizar a contratação pelo próprio órgão do Governo, porque

detectamos casos em que os operários eram trazidos de outro estado, fichados pelo Sine em Porto Velho e

ingressavam como se fossem da região. Dessa forma, perdiam o direito à baixada e só podiam retornar para

casa durante as férias, diminuindo os custos da empresa com transporte e aumentando o período em que

estavam à disposição para trabalhar” (CUT Brasil, 2011, apud Veras, 2014: 127). As folgas de campo dos

trabalhadores em situação de não família que ficaram alojados no canteiro de obras da MOP foram de 10

dias de 3 em 3 meses, quando casados, ou de 10 dias de 6 em 6 meses, quando solteiros. 107 Recentemente, algumas usinas do estado de São Paulo estão contratando os trabalhadores na região de

origem, mas isso, no que se refere ao universo dos trabalhadores não especializados em geral, ainda é uma

exceção. Há também, nesse sentido, a mediação dos “gatos”, recrutadores de trabalhadores não

especializados para diversas atividades, e a recorrente questão das dívidas que os trabalhadores

normalmente contraem antes de começarem a trabalhar, justamente por conta dos gastos de viagem, por

exemplo. Em campo, no entanto, fui informado que os gatos “acabaram” e que isso era “coisa do passado”.

De fato, as principais fazendas contratavam seus trabalhadores diretamente, por conta das fiscalizações, e

eu tive informação de apenas um gato em atividade ao longo do período nos municípios.

Page 111: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

111

um processo de deslocamento de um núcleo familiar ou até mesmo de um grupo

doméstico envolve arranjos transitórios. E um deslocamento requer sempre a formação

de pequenas poupanças que o viabilizem, em todos os casos, seja para o início de um

deslocamento familiar, do trabalhador sozinho que se desloca na frente do grupo, seja

para o que se desloca na condição de solteiro, em grupo de solteiros, ou para aquele que

se vincula a um trabalho temporário, deixando seu grupo doméstico no local de origem.

O esgotamento desses recursos, por exemplo, com o tempo sem novo trabalho no destino,

pode levar a uma situação de imobilidade e de extrema pauperização, para a qual há,

inclusive, uma categoria regional: ficar “rodado”108.

2.2) Formas de salário e de não pagamento

Outra ressalva a ser feita se refere às condições em que essa força de trabalho

circulava (e que, em sua ampla maioria, voltou a circular depois das obras da MOP). As

firmas da MOP foram um ponto nodal em trajetórias de circulação que alternam diversos

outros vínculos, sendo, em alguns casos, apenas uma referência indireta. Para um

contingente de trabalhadores que é levado a se deslocar em busca de trabalho, uma cidade

“boa de serviço” é a que oferece possibilidade de encontrar qualquer trabalho, de forma

imediata109. Em geral, além das firmas, sob condições específicas indicadas a seguir, esse

recrutamento indiscriminado e imediato também era realizado para diversos trabalhos

temporários, principalmente na construção civil e na rede de produção agropecuária.

Nesse sentido, os deslocamentos tanto antes quanto depois da MOP – e mesmo durante –

foram condicionados também pela possibilidade de trabalho temporário, por exemplo,

nas diárias e empreitas, ou seja, em uma série de trabalhos remunerados por dia ou por

tarefa.

108 A situação dos trabalhadores “rodados”, ou seja, desses que perdem as condições de mobilidade, será

analisada adiante. No entanto, mantendo a exposição realizada até aqui, e tal como sugerem os dados da

pesquisa de campo, compreende-se esses casos a partir de trajetórias de circulação que integram situações

de trabalho e de não trabalho (venda e não venda da força de trabalho). Afinal, como propõe Zamora Vargas

(2013), interpretando uma passagem dos “Grundrisse” em que Marx define o trabalhador livre como um

“pauper virtual”: “El trabajador es trabajador pero trabajando, él se niega en tanto que trabajador ya que

destruye las condiciones de su propia reproducción en cuanto que trabajador, se metamorfosea en pauper.

(…) Ambas figuras –trabajador libre y pobre– son el producto común y contradictorio de un único y mismo

proceso (la acumulación del capital) y no dos estadios diferentes resultado de procesos opuestos” (grifo do

autor). 109 As redes sociais de mobilidade mobilizadas por esses trabalhadores podem circular simplesmente uma

informação de destino, uma localização, e não exatamente um emprego certo ou uma estadia gratuita. Neste

sentido, a referência à “rede” não é contraditória com os denominados movimentos de atração/expulsão,

que são, inclusive, potencializados.

Page 112: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

112

O trabalho temporário por empreitas e diárias é recorrente nos percursos e se

diferencia pela forma de pagamento combinada entre o trabalhador e o seu contratante,

ou subcontratante. Sua opção depende do “serviço” a ser feito e da função que se

desempenha na equipe de trabalho (“turma”). A forma empreita, tal como um salário por

peça, normalmente se relaciona à intensificação do trabalho e a um prolongamento

indefinido da jornada. A diária, um salário por tempo, normalmente corresponde a um

regime disciplinar supervisionado pelo contratante. Uma boa definição me foi dada por

um trabalhador. Para ele, ao contrário da diária, a empreita:

(...) tem o esforço de cada um que dobra além do dia. O senhor está

trabalhando por dia, o dono está por acolá, o dono sempre interessa mais

pra saber se o senhor goteja muito, né? Mas o senhor já sabe que vai

ganhar 10 real. Aí vai trabalhando normal, você não vai agoniar. Mas

quando é de empreita, a hora que você chegou aqui [7h], tem vezes que

já pode estar suado, trabalhando, trabalhando. (...) o rojão é outro, mais

veloz, trabalha até escuro. Aí, pode fazer duas diárias na empreita. E a

diária não tem jeito, é só os 10 mesmo110.

Em geral, o sistema pressupõe subcontratações empreita-diárias. O trabalhador

que detém as condições empreita um “serviço” inteiro e subcontrata diaristas para

terminar a tarefa com mais rapidez. Outras vezes, dependendo do “serviço”, também

podem ser interpostos mais elos na cadeia, com sub-empreiteiros. A contratação pode ser

de tipo livre (“o que dá o de comer”) ou cativo (alimentação não fornecida pelo

contratante ou descontada do pagamento).

As empreitas e diárias oferecidas nas cidades eram, principalmente, na construção

civil, como serventes ou pedreiros nas obras de pequeno porte. Dependendo do tamanho

da empreita, eram envolvidos grupos de até 10 trabalhadores, entre conhecidos e parentes

arregimentados pelo responsável pelo “serviço” como diaristas. Nesse caso, as diárias

tinham jornada entre 7 e 17h, com intervalo para almoço entre 11 e 13h, regra que poderia

ser alterada, dependendo do trabalho e da relação estabelecida com o dono ou o

responsável pela empreita. O mercado das diárias em geral é composto por preços de

acordo com a atividade a ser desenvolvida que variam de cidade para cidade (e pouco, ou

praticamente nada, na mesma cidade ou região)111. Não era necessário conhecimento

110 Entrevista com Pedro, 72 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte/PA, 26/08/12. 111 Em Tucumã e Ourilândia do Norte, no momento da pesquisa de campo, a diária cativa de servente era

30 reais e a de profissional, pedreiro, era 60 reais. Ou seja, se o diarista trabalhasse 24 dias no mês (o que

quase nunca acontecia), ele receberia 720 reais, cerca de 16% a mais do que o salário mínimo da época.

Page 113: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

113

prévio ou técnico para conseguir ser recrutado e receber diárias em alguma turma de

empreiteiros já constituída, em especial, as diárias de ajudante, que exigem apenas

trabalho braçal coordenado pelo profissional112. Alguns trabalhadores ou pequenos

grupos de trabalhadores relatavam que só conheceram o pedreiro responsável pelas

empreitas em que estavam trabalhando já na cidade para a qual se deslocaram em busca

de trabalho. Por outro lado, um trabalhador que gerenciava seguidas empreitas para

construção de casas em Tucumã e em Ourilândia me explicava sua preferência pelo

“estranho” na hora de reunir um grupo de trabalho, comparando-o com o parente, que

“faz de qualquer jeito, tem o trabalho garantido”. Normalmente, sem conhecidos ou

parentes que lhe garantam outras oportunidades, o “estranho” está mais sujeito a ter que

demonstrar esforço e presteza.

Além dessas diárias, a presença na cidade também significa acesso aos mais

diversos tipos de “serviço”: descarga de caminhões (pago por peso descarregado), “bicos”

e outras pequenas tarefas em geral (entregar panfletos, abrir poços, colocar manilhas, etc).

Outra opção de rápido recrutamento eram as empreitas e diárias nas fazendas. As

empresas agropecuárias constituídas ao longo das frentes de expansão eram destinadas

em sua quase totalidade à pecuária de corte, tendo um pequeno núcleo de trabalhadores

assalariados fixos e outros contratados de forma temporária. Gerentes, vaqueiros,

tratoristas e, dependendo do tamanho da empresa, também profissionais de cargos

administrativos ou de nível superior, como contador, fiscal, almoxarife, oficiais, etc, eram

assalariados do quadro fixo, assalariados mensalistas. Tratoristas normalmente também

recebiam adicional por hora de trabalho. Os vaqueiros certas vezes também eram

bonificados com parte dos bezerros nascidos por ano ou semestre. Por outro lado, eram

recrutados trabalhadores para uma série de atividades tidas como temporárias, como

Isso seria equivalente ao dobro de algumas regiões do estado do Maranhão, por exemplo. Segundo os

trabalhadores, o valor das diárias e das empreitas aumenta de acordo com o salário mínimo. No entanto,

ainda assim, ela varia consideravelmente entre regiões e cidades. Não encontrei referência na literatura que

investiga o mercado informal da construção civil a respeito da dinâmica social que orienta as mudanças no

valor das diárias e também não tive tempo suficiente em pesquisa de campo para investigar essas mudanças

diretamente. Tal como outros pesquisadores, foi possível observar apenas a existência de uma espécie de

tabela fixa com preços estipulados de acordo com a cidade e com o tipo de atividade. Em geral, se indica

que há também um “código de ética” frente a esses preços (Cf. Cockell, 2008; Cockell e Perticarrari, 2010)

Pagar ou receber menos do que o estipulado pode significar “exploração”, “sacanagem” ou “escravidão”. 112 A aquisição de conhecimento com o responsável pelas empreitas, o tempo de permanência no local e

em uma determinada equipe de trabalho, permitiam o aprendizado prático das profissões, possibilitando ao

diarista ajudante ascender a profissional. As condições para assumir diretamente as empreitas e constituir

a própria equipe de trabalho, entretanto, dependem de outros fatores, como a construção de uma rede de

contatos e clientela que lhe permitissem ser considerado “autônomo”, o que era uma trajetória independente

das firmas. Estas condições não estiveram colocadas para todos e nem pareciam depender exclusivamente

do tempo de permanência na cidade.

Page 114: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

114

desmate para formação de pastos, serrarias internas, manejo e roço de pastagens,

construção e reparo de cercas, aplicação de agrotóxicos, construção de casas, currais, etc.

Muito embora frequentes e praticamente permanentes nas fazendas, os trabalhadores

recrutados para desenvolver essas atividades eram tidos como temporários e, na maioria

das vezes, pagos por empreitas e diárias. Seus alojamentos eram distintos dos demais,

em geral, organizados em frentes de trabalho a partir das sub-sedes das fazendas, os

retiros (unidades internas com cerca de cinco a dez mil cabeças de gado cada). Certos

casos, ao vaqueiro e aos demais trabalhadores considerados fixos se permite a instalação

com esposa e filhos, em casas separadas. Os grupos de temporários quase sempre eram

totalmente de homens, tendo às vezes apenas uma mulher na função de cozinheira, sendo,

nesse caso, necessariamente esposa ou irmã de um dos trabalhadores. O tempo de

permanência de cada grupo desses na fazenda era restrito ao trabalho para o qual foram

contratados. Quando prolongado por muitos meses, podia ser intercalado em idas à cidade

de 90 em 90 dias113.

A lista que fiz dos diversos “serviços” desenvolvidos pelos trabalhadores

temporários das fazendas foi longa (e provavelmente ainda incompleta). Dentre estes,

constavam: derrubar mata (pago por alqueire ou por diária); limpar pastos ou “roçar

juquira” (por alqueire ou, quando área menor, por linha114, sendo que o preço pode variar

caso se trate de um “juquirão”, uma vegetação mais alta); aplicar agrotóxicos ou “bater

veneno” (por alqueire ou por diária); plantar capim; fazer pé de cerca (por km de cerca);

construir cerca (por diária ou por estaca tirada, sendo que pode variar caso precise cavar

e fazer o buraco ou não, assim como também varia o preço da unidade caso precise tirar,

cerrar, lapidar e instalar – furar, estaquiar e passar o arame – ou só tirar e lapidar); retocar

cerca (por diária, por estaca ou por km); fazer aceiro (por km); apagar fogo (por diária);

113 Como afirmei anteriormente, a frequência na cidade dos trabalhadores fixos ou dos temporários que

permaneciam longos períodos trabalhando na mesma fazenda era curta, de poucos dias. Nestas condições,

praticamente não havia dias de folga, como descreveu um trabalhador que era recrutado tanto como

vaqueiro quanto como trabalhador temporário:

“[trabalhador] – Na fazenda, é só serviço. Vem na cidade só pra dar uma brincada e volta de novo. (...)

Quando eu entro pra fazenda, venho [pra rua] só com 3 meses, 4 meses. O cara aqui na rua vai fazer o que?

Só pra tirar do bolso? Pra gastar? Daí quando o cara está com uns 4, 5 meses, aí a pessoa sai fora. Fala com

o patrão: ‘eu quero ir hoje’. E ele: ‘tá bom. Mas dinheiro aqui não tem não. Vou te dar o dinheiro pra pagar

a passagem, tá aqui uns 3 meses’. Assina o cheque. Chega aqui, destroca.

[pesquisador] – E aí fica aqui no hotelzinho mesmo?

[trabalhador] – Fica aqui, o cara gosta, aqui é tranquilo. Ninguém vê... ninguém vê coisa errada, né? Tudo

anda com todo mundo certo, né? Dá uma trepada com uma mulher por aí, vai dormir, passa uns dois dias e

desce pra fazenda de novo. Vamos embora.” (Entrevista com Beto, 50 anos, 27/09/12, dormitório em

Tucumã). 114 Linha: cerca de 55 m2. Alqueire: 27225 m2 (cerca de 2,7 hectares).

Page 115: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

115

estradão (por diária, livre)115; tirar madeira; trabalhar na serraria no interior da fazenda;

fazer cancelas, porteiras, currais, etc. Assim como as grandes e médias propriedades

pecuárias, os pequenos produtores rurais também recrutavam trabalhadores temporários

para os mesmos “serviços”, sendo diferenciados por alguns trabalhadores apenas pela

preferência pelo sistema livre, com alimentação em geral fornecida pela esposa ou filhas

do dono. Porém, no caso da pequena produção, há também outras formas de recrutamento

de trabalhadores, como era o caso do contrato que estabelecia possibilidade de trabalho e

moradia do trabalhador sozinho ou de casais com filhos em troca da renda do leite

produzido na propriedade ou, às vezes, da renda do leite complementada com pequenos

salários116.

De maneira geral, todos os “serviços” foram considerados fisicamente exaustivos

pelos trabalhadores, “serviços duros”. Uns, porém, ainda mais do que outros. A limpeza

de pastos, regionalmente conhecida por roço de juquira (vegetação secundária), era a pior

posição indicada pelos trabalhadores, ou a que se aceita em último caso117. Uma empreita

nessa atividade foi descrita como suficiente para deixar as mãos latejando e, por conta

das dores, não se conseguir dormir. O trabalhador também estaria exposto a ataques de

marimbondos e de outros animais na juquira ao longo do dia.

As empreitas cativas nas fazendas normalmente seguiam uma combinação,

momento em que se acorda a respeito do “serviço” a ser feito (pagamento, sistema), e,

depois, um acerto, momento em que se recebe a cada “serviço” pronto, quando o

contratante paga o saldo, no caso, o preço combinado, descontados os gastos com

alimentação (rancho) e possíveis adiantamentos. As diárias, em geral, eram no sistema

livre.

115 Estradão é o transporte de gado pelas estradas (“tocar gado na estrada”), normalmente utilizado para

transferir rebanhos entre propriedades. Pode ser utilizado até mesmo para longas distâncias (Pará-

Maranhão, Pará-Mato Grosso, etc) e demorar até seis meses. É formado um grupo de sete ou oito

trabalhadores para cada mil cabeças de gado, liderado por um comissário, responsável pelo “serviço”. Uma

comitiva vai a frente, levando o cozinheiro e o rancho, seguido pelo rebanho tocado pelos trabalhadores,

“no passo do gado”. À noite, são improvisados currais de corda na beira da estrada. O controle do número

de cabeças é feito no início e no fim do percurso, para o qual a comitiva recolhe e apresenta provas do gado

que morre pelo caminho. 116 No caso específico da região estudada, havia também o recrutamento de trabalhadores temporários para

o manejo e a colheita de cacau, cultivo introduzido na época do Projeto Tucumã e fomentado por órgãos

de assistência do governo federal. O cultivo de cacau era em geral associado aos “gaúchos”, grupo de

pequenos produtores atraídos de estados do Sul do país para a compra de lotes do Projeto de colonização

privado da Andrade Gutierrez. A pequena produção rural era a principal fornecedora de leite para os

laticínios locais e o cacau era comercializado junto a uma Cooperativa instalada no município de Tucumã. 117 O uso de tratores em praticamente todas as propriedades rurais na região não tinha eliminado a

necessidade de roçagem de parte deles em, pelo menos, uma vez ao ano.

Page 116: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

116

Esses contratos de trabalho encerram a possibilidade de desacordos e de não

pagamento, um fato relativamente corriqueiro no relato dos trabalhadores. No caso das

empreitas no sistema cativo, o valor recebido no acerto pode não corresponder ao

esperado pelo trabalhador ou simplesmente não ser feito pelo patrão ou gerente. O mesmo

podia acontecer com as diárias, normalmente pagas pelo contratante no fim do “serviço”.

A ocorrência de um imprevisto, conflito ou interrupção ao longo do período pode ser

também motivo de não pagamento118. O recebimento do combinado ao final de algum

“serviço”, nesse sentido, era a prova inconteste da honestidade ou desonestidade de um

patrão, da qual, em geral, dependiam os trabalhadores119.

O contexto em que ocorria o não pagamento era, inclusive, de difícil intervenção

mesmo para aqueles que se dispunham a auxiliar juridicamente os trabalhadores

descontentes e que detinham possibilidade de “procurar os direitos”. Em sua maioria, a

formalização de denúncias baseadas nas normas jurídicas de combate ao “trabalho

análogo à escravidão”, por exemplo, não era possível, restando apenas a alternativa de

reclamação trabalhista comum. Um agente da CPT local, por exemplo, constatou:

“[agente da CPT] - (...) A gente está meio sem saber o que fazer. A

gente recebe os casos, mas não aquele caso típico, né, de trabalho

escravo, com todos os itens, a dívida, o não pagamento, as ameaças... é

muito difícil ter um caso assim com todos [os itens]120. Às vezes, a

pessoa trabalhou, um mês, vinte dias, não recebeu, mas ele não foi

preso, né, ele não foi obrigado a ficar lá. Ele sai. Mas como receber 20

dias, um mês, ou até dois meses? É complicado, porque não tem mais

aqueles 20, 30 trabalhadores lá pra gente encaminhar pro Grupo Móvel

118 O boato de fiscalizações era uma dessas situações em que os trabalhadores poderiam ser retirados

imediatamente das fazendas sem pagamento. O relato também frequente de “perda”, “roubo” ou “queima”

dos documentos pessoais por parte dos trabalhadores se dava por conta das suas condições de circulação.

Havia sempre a possibilidade de fim do contrato por desacordos com outros trabalhadores, gerentes e

patrões em geral, situação mais ou menos conflituosa em que os documentos eram retidos ou destruídos. 119 Esse critério de honestidade do patrão não se refere ao valor final recebido pelo “serviço”, mas à

percepção que os trabalhadores tinham do pagamento “certo”, ou seja, conforme a combinação feita

anteriormente. Nesta etapa da pesquisa, não foi possível tabular os salários por um período suficiente que

me permitisse melhores comparações. Os salários desses trabalhadores temporários nas fazendas, no

entanto, provavelmente estariam abaixo do salário mínimo corrente. Segundo advogados e agentes de

apoio, quando levados a uma formalização jurídica, ou seja, convertidas as empreitas e diárias em salário

mensal devido por algum empregador (já que são formas de pagamento não regulamentadas na legislação

trabalhista), era necessária alguma complementação para atingir o valor do mínimo. Porém, a percepção

dos trabalhadores nem sempre era essa, principalmente em comparação com as firmas. Isso acontecia, em

especial, por conta do total recebido como saldo (abstraída a duração do “serviço”) ou por conta do sistema

livre. 120 Os itens que tipificariam os casos a que o agente se refere seriam: recrutamento em cidade distante da

empresa, deslocamento de ônibus ou avião, pequenos adiantamentos em dinheiro a cada trabalhador,

retenção de documentos, sistema de venda ou barracão na fazenda (dívida), e vigília armada dos

trabalhadores.

Page 117: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

117

[de Combate ao Trabalho Escravo]. Aí pra encaminhar um processo na

Vara do Trabalho também é complicado, porque como tem pouco

tempo, né, é um valor muito baixo. É difícil até achar um advogado que

queira pegar. A gente fica sem saber o que vai fazer com o trabalhador,

de mãos atadas. Como fazer numa situação dessas?”121.

A formalização dos contratos, exigida por força de fiscalização nas últimas

décadas, era realizada sem necessariamente impedir os contratos comuns de trabalho

temporário. Quando exigida, a CTPS dos trabalhadores registrava a contratação por meio

do mínimo mensal, sendo mantidos os pagamentos por empreitada, produção ou mesmo

diária. Segundo os diretores do STR de São Felix do Xingu/PA, empresas maiores como

o grupo Santa Bárbara122, mais expostas à fiscalização, despediam grande parte de seu

efetivo de trabalhadores com no máximo três meses de contrato formal. Em Tucumã,

entrevistei contadores de um dos principais escritórios da cidade que prestava serviço

para fazendas médias na região, com até 30 trabalhadores (dos municípios de São Felix

121 No período da pesquisa, os agentes da CPT convidavam alguns patrões por meio de carta e tentavam

convencê-los diretamente a pagar o trabalhador através de acordos extrajudiciais:

“[agente da CPT] - (...) Quando o empregador não é valente... a gente pergunta, né, se ele acha que pode

fazer um acordo. Se achar que ele vem [o empregador], a gente manda uma carta chamando.

[pesquisador] – Vocês mandam uma carta? Pela CPT?

– É, a gente manda uma carta.

– E como é que é a carta?

– Aí fala, né, que aqui compareceu o trabalhador fulano de tal, que trabalhou pra ele, na propriedade... Aí

bota o nome da fazenda. E que não recebeu os direitos pelo trabalho, conforme o combinado. E aí convida:

‘estamos convidando o senhor para fazer um acordo amigável e para evitar uma possível ação trabalhista...’

quer dizer, pra ver se assim eles vêm, né? E já aconteceu de eles virem. Já fiz acordo. Mas esse ano acho

que não. Não teve nenhum. Ano passado teve, bastante. Já mandei carta, mas nem sempre eles vêm. A

gente fica aguardando.

– E o trabalhador fica aqui, esperando?

– Não, aí eles voltam, assim, nos amigos... A gente fala: ‘na hora que for entregar a carta, aí você vai saber

se ele vem ou não. E vocês têm que combinar pra vir juntos. Porque vir só o patrão, aí não dá, né?

– E quem é que entrega a carta? O próprio trabalhador?

– É o próprio trabalhador.

– Ele vai lá, entrega a carta pro patrão e pede pra ele vir?

– É... porque nesse caso a gente trata porque o patrão não é valente, né?

– E o que é um patrão valente?

– É o que fez ameaças... ou então é um patrão que já mandou ele tratar dos direitos dele. Assim, a gente já

sabe que ele não quer acordo. ‘Ah, vai tratar dos seus direitos’. A gente pergunta: ‘Se a gente chamar, você

acha que tem acordo?’. Porque às vezes o trabalhador também não sabe conversar, né? Aí, eles que falam:

‘Ah, eu acho que dá’. E aí a gente encaminha. Outros, se for alguém que a gente já sabe que não tem acordo

mesmo... Tem alguns conhecidos, né? Aí, a gente já encaminha para o advogado ou encaminha denúncia.

– E isso complica ainda mais para o trabalho temporário... porque são [trabalhos de] um mês, dois meses,

né? Só tempo de experiência, praticamente.

– É. Eu acredito que é esperteza deles. Porque eles já sabem que se tiver muito tempo é mais fácil pra entrar

com uma ação... então por isso que eles dizem ‘Vai tratar dos seus direitos!’. Já é uma defesa que eles

inventaram... Encontraram um caminho pra desviar. ” (Entrevista com agente da Campanha de Combate ao

Trabalho Escravo/CPT, 23 anos, Tucumã/PA, 27/08/12). 122 O grupo empresarial Santa Bárbara é um complexo agropecuário com mais de 50 propriedades, algumas

delas na região da Rodovia PA-279.

Page 118: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

118

do Xingu, Tucumã, Altamira e Água Azul do Norte). Na ocasião, uma contadora me

explicava que eles “só fazem o que o patrão pede” (no caso, representado sempre pelo

gerente, uma vez que os donos não são sequer conhecidos pelos funcionários dos

escritórios) e que, quando há reclamações no Ministério Público, eles preparam um

recibo/declaração “por fora” (do que fora registrado na CTPS), do tipo: “Declaro que

recebi X reais referente a férias, etc...”. Com esses recibos, eles sempre teriam conseguido

“resolver a situação” nos casos de fiscalização. Os trabalhadores (e, quando era o caso, o

STR ou representante substituto) assinavam todos os documentos sempre que

consideravam que foi pago o saldo justo, ou seja, o referente ao combinado anteriormente.

Os termos da formalização feita pelos contadores na CTPS eram ignorados123.

Na construção civil, as empreitas e as diárias também encerravam risco tanto de

não pagamento quanto de um pagamento considerado insatisfatório para os trabalhadores

envolvidos. A possibilidade de um acidente, de uma falha na obra ou de qualquer

imprevisto ocorrido ao longo do período, quando aumentam o número de dias, também

implicam em mais diárias, em mais gastos e possíveis prejuízos que podem ser

transferidos para todo o grupo envolvido124. E a possível dívida do contratante, por

diversos motivos, habitualmente não era cobrada125.

Todas as empreitas e diárias eram realizadas por homens e tidas como “serviços

para homens”. Nas fazendas, em geral, apenas parte dos trabalhadores fixos residiam com

esposas e filhas, que não desempenhavam trabalho pago. Os grupos de trabalhadores

temporários, quando permitido, ou seja, quando não eram contratados cozinheiros

homens, tinham apenas uma mulher por “turma” ou barracão, também esposas ou irmãs

de um dos peões. O trabalho desempenhado por elas (cozinhar e lavar) era pago

123 O discurso público dos donos de empresas agropecuárias era o de inexistência de trabalho temporário

nas fazendas, como sintetizou para mim um diretor do SR de Tucumã e Ourilândia do Norte: “a diária e a

empreita acabou, hoje é tudo fichado”. (Entrevista com vice-presidente do SR de Ourilândia do Norte e

Tucumã, 55 anos, Tucumã, 03/09/2012). A conversa com os trabalhadores e a observação do foi registrado

nas suas CTPS, no entanto, demonstraram as formas como esses contratos permaneciam com a

formalização. 124 Em um acerto que acompanhei, por exemplo, três trabalhadores foram receber o combinado do

trabalhador que subempreitou para eles parte de um “serviço” em um loteamento privado da cidade que

tinha várias casas em construção. Ele os recebeu dizendo que “2 mil deu prejuízo lá, né?”. O trabalhador

que tratou a empreita dizia que parte do trabalho teve de ser refeita, depois que uma parede caiu, mas que

não teria sido culpa deles. No final, os trabalhadores, contrariados, aceitaram receber os 2200 reais antes

combinados, saíram com mil em dinheiro e combinaram de voltar para receber o restante no dia seguinte. 125 Nesses casos, a cobrança da dívida significa uma série de riscos para o descontente. Além de ser

considerada uma ofensa e causar possíveis retaliações, pode implicar também em rompimento de relações

básicas que estabelecem a continuidade da rede de contatos que garantem novos contratos para empreitas

e diárias. Era comum, nesse sentido, esses trabalhadores ressaltarem como princípio de conduta a máxima:

“no Pará não se cobra de ninguém”. O não pagamento, portanto, apesar de causar revolta e muita indignação

devido à quebra no contrato, era algo considerado frequente na circulação por diárias.

Page 119: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

119

individualmente por cada trabalhador ou, na maioria das vezes, não era pago, sendo

considerado como parte do trabalho do peão que a acompanha.

No caso dos trabalhadores que constituíam grupo doméstico, que se deslocaram

ou formaram grupos domésticos com mulheres adultas nas cidades que pesquisei,

praticamente todas tinham ou tiveram algum trabalho remunerado. Além das firmas da

MOP, nos cargos específicos que listarei neste capítulo, elas eram principalmente

empregadas domésticas e, em alguns casos, assalariadas no comércio local ou em serviços

como hotelaria e restaurantes (atendentes, camareiras, faxineiras, cozinheiras).

Praticamente todas recebiam ou receberam no máximo um salário mínimo, tendo

contratos formais de trabalho apenas nos casos das firmas da MOP. A presença ou não

delas justifica parte da distinção que fiz entre as trajetórias de circulação da força de

trabalho recrutada temporariamente nas firmas da Vale. Em especial, devido às formas

específicas de deslocamento dos homens na condição de peões-de-trecho, sobre as quais

faço uma última ressalva.

2.3) Peões-de-trecho

Os peões-de-trecho eram trabalhadores fortemente estigmatizados e, portanto,

sobre os quais geralmente pairava enorme desconhecimento. Assim eram designados, de

maneira geral, os trabalhadores homens em situação de não família que se deslocavam na

região em busca de trabalho, principalmente aqueles que eram recrutados para o trabalho

temporário nas fazendas e que, portanto, eram submetidos a formas de circulação da força

de trabalho que exigiam intensa mobilidade espacial126.

Conversar com os profissionais que, de alguma forma, lidavam com esses

trabalhadores era sempre se deparar com as mais variadas teses a respeito das suas

condições de vida e, principalmente, de comportamentos e costumes tidos como

126 O peão-de-trecho é categoria habitualmente notada nos estudos de grandes obras nas últimas décadas.

Pesquisas realizadas em outros contextos também se depararam com significação semelhante

(trabalhadores homens em situação de não família). Fontes (2003), por exemplo, relata a distinção feita

pelos operários das obras de Barcarena/PA entre os que denominavam “peões de trecho” (que se deslocaram

sozinhos para a obra e ficavam nos alojamentos) e os “peões de casa” (que tinham moradia na cidade e se

deslocavam diariamente da “casa” para o canteiro de obras). A maior observação dos peões-de-trecho nas

grandes obras (e pouco na agropecuária), no entanto, possivelmente se trata de um viés afeito ao campo

acadêmico, aos pontos cegos criados nos recortes dos campos de estudos rurais e de grandes projetos e de

seus objetos mais ou menos consagrados nas últimas décadas. No sul-sudeste do estado do Pará, os peões-

de-trecho eram relacionados sobretudo ao trabalho temporário nas fazendas. Porém, analisadas as

trajetórias de circulação, observa-se que fronteiras como rural-urbano (ou fazendas-grandes obras) não

estiveram colocadas para os trabalhadores que se deslocaram nessa condição.

Page 120: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

120

característicos do grupo. Esse era o caso de donos de dormitórios, gerentes, recrutadores

e quadros superiores das firmas em geral.

Ao longo da pesquisa, também acompanhei a dificuldade que os militantes da CPT

tiveram, por exemplo, para definir essa categoria de trabalhadores. Os agentes da

instituição classificavam os trabalhadores atendidos na sua sede local em três categorias:

“morador”, “trecho” e “migrante temporário”127, assim definidos: “(...) Morador são

trabalhadores que são nascidos ou que moram há muito tempo na região; peão do trecho

são aqueles trabalhadores que já perderam vinculo familiar e vivem de fazenda em

fazenda, de um estado para a outro estado ou seja não tem lugar fixo, nem esposa e vão

para onde tem trabalho, são uma espécie de trabalhadores "nômades"; e o migrante é

aquele que veio somente passar algum tempo, ganhar dinheiro, mas que sua família o

espera em seu local de origem. Ou até mesmo a família vem junto mas que é por pouco

tempo, apenas o período de trabalho”128. A classificação nessas categorias, porém, era

feita pelo agente: “(...) Nós perguntamos para o trabalhador se ele é morador da região,

se veio de fora a quanto tempo está, ou se veio somente para trabalhar, de onde veio, se

tem família. Dificilmente ele vai dizer que é peão do trecho é através da conversa que

fazemos o diagnóstico”129.

Em geral, os trabalhadores que foram classificados como “trecho” eram

trabalhadores cujo último trabalho foi em uma fazenda, mas não só. Em 2012, por

127 A maioria dos atendimentos se refere a conversas em que foram feitos cálculos e orientações de direitos

trabalhistas. A procedência do trabalhador era das mais diversas: fazendas, firmas, restaurantes, hotéis,

construtoras, supermercados, padaria, postos de gasolina, madeireira, serraria, mecânica, boate, matadouro,

frigorífico, laticínio, pizzaria, transportadora, lojas e comércios em geral, casas de família (empregadas

domésticas), dentre outros. De fato, os trabalhadores que procuraram a CPT vinham de praticamente toda

a cidade. Certos casos, foram celebrados “acordos” entre o patrão e o trabalhador, outros encaminhados

para um escritório de advocacia local e alguns encaminhados para outras instituições organizadas na rede

da chamada Campanha de Combate ao Trabalho Escravo, cujos agentes os diferenciavam a partir das

categorias “superexploração” e “trabalho escravo” (Cf. planilhas de controle dos atendimentos feitos na

CPT de Tucumã nos anos de 2010, 2011 e 2012; arquivos da CPT Tucumã). No âmbito interno dessa

Campanha, o agente que atendia o trabalhador classificava a denúncia feita por ele em três tipos: tipo 1

(certeza de que todos os elementos jurídicos que caracterizam “trabalho escravo” estão presentes e há

possibilidade de flagrante, ou seja, os trabalhadores se encontram na propriedade denunciada); tipo 2

(dúvida no enquadramento); tipo 3 (certeza de não enquadramento). A classificação em “tipo 3” significava

o que os agentes denominavam “superexploração”, quando não havia necessidade ou possibilidade de uma

ação de fiscalização trabalhista (flagrante do crime de “trabalho escravo”), informada apenas para haver

controle estatístico por parte dos coordenadores da Campanha. Nesses casos, o trabalhador era

encaminhado para um escritório de advocacia particular. 128 Email de agente da CPT, 12/01/2015. 129 Idem. Figueira e Prado (2014), analisando casos registrados no estado do Pará em documentos do ano

de 2005, por exemplo, constataram: “Em oito declarações (9,3%) de 2005, com histórias de unidades de

produção carvoeira e agropecuária, houve implícita ou explicitamente a informação de presença de peões

do trecho entre os depoentes. Em um só caso, o trabalhador se apresentou desta forma, contudo os demais

derram sinais de o serem quando revelavam não ter “moradia”, “endereço fixo”, ou passar de hotel em

hotel” (2014: 34).

Page 121: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

121

exemplo, também constavam trabalhadores de uma churrascaria e de uma firma

(terceirizada da Vale), assim justificados: “(...) realmente deveria ser peões do trecho,

como você sabe, teve uma época aqui que veio muitas empresas e tinha e atraiu muitos

trabalhadores inclusive peões do trecho. Não se trata apenas dos trabalhadores da fazenda

peão do trecho é mais relacionado aquele que perdeu seu vínculo familiar e não tem

destino certo. Bom agora até eu fiquei com dúvidas. Pois nós começamos a utilizar o

termo "peão do trecho" para classificar o trabalhador das fazendas que também é

conhecido como peão e a palavra trecho quer dizer estrada, caminho por isso peão do

trecho: aquele que vive com as malas nas costas sem olhar para trás. Mas depois de certo

momento não sei dizer o certo mais é recente, começamos a atender também alguns

trabalhadores da cidade construção civil, mercados, etc. E agora que estou vendo que não

atualizamos talvez deveríamos diferenciar o trabalhador urbano que não é peão”130.

A observação dos lugares de circulação desses trabalhadores em condição de

peões-de-trecho nas cidades, como bares, rodoviária, dormitórios ou “hotéis

pioneiros”131, escritórios de sindicatos, de firmas e de fazendas132, bem como,

principalmente, as entrevistas realizadas, permitiram uma análise comparada dos

percursos. Como afirmei anteriormente, as qualificações comumente atribuídas a essa

condição (homens sem família, sem moradia) se referiam a apenas uma situação

específica de circulação, muitas vezes alternada ao longo de um mesmo percurso. Essa

mobilidade e, portanto, diversidade de arranjos reprodutivos – que no senso comum

figurava como “ausência”133 – foi condicionada pelas relações de produção, e não o

contrário, como também figurava em senso comum.

Os deslocamentos dos homens na condição de peões-de-trecho estavam

relacionados diretamente a formas específicas de circulação da força de trabalho nas

últimas décadas. A condição de deslocamento de homens em situação de não família, o

rompimento dos espaços reprodutivos ou, no limite, a destituição de núcleos familiares

ou até mesmo a circulação sem constituição de grupos domésticos eram decorrentes das

130 Idem. 131 O termo “pensão” não foi usado pelos trabalhadores, apenas “hotel” ou “ponto de apoio”. Também era

denominado “hotel pioneiro”, usado, nesse caso, no sentido de pioneiro mesmo, mas também no sentido

do hotel que “junta peão”. 132 Junto a esses lugares, o recrutamento também era feito por meio de anúncios nas rádios locais, nas

estradas ou até mesmo na própria fazenda, quando o trabalhador sozinho ou em pequenos grupos se

deslocavam e batiam de porteira em porteira das fazendas procurando trabalho. 133 A situação de não família do peão de trecho, a provisoriedade da constituição dos grupos domésticos e

a relação muitas vezes descontínua com outros membros do núcleo familiar normalmente não

correspondem a idealizações da família como algo fixo, duradouro e estável, presentes nos discursos de

outras camadas sociais.

Page 122: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

122

condições do trabalho nas fazendas e nos grandes projetos, ou seja, no “terceiro tempo”

das frentes de expansão. A implantação e a expansão das empresas agropecuárias foram

realizadas principalmente por meio de recrutamento para o trabalho temporário (diárias

e empreitas), cuja circulação da força de trabalho exige intensa mobilidade espacial por

meio de “serviços para homens”. Nestes, a presença das mulheres não era permitida e,

muito menos, a de grupos domésticos constituídos no interior das fazendas. Nas grandes

obras, o recrutamento foi individual e, em geral, os alojamentos dos trabalhadores homens

não especializados também foram provisórios, sem a previsão de acompanhantes ou

filhos. A constituição, a alocação e, em especial, o deslocamento de um grupo doméstico

de um trabalhador na condição de peão-de-trecho exigiram estratégias a contrapelo de

seu recrutamento e da circulação que lhe era imposta134.

Nesse sentido, tais condições de circulação eram percebidas criticamente pelos

trabalhadores. A idealização mais comum dos projetos de vida daqueles que se

deslocavam na condição de peões-de-trecho era, por exemplo, fora dessa condição135.

Além das entrevistas que fiz nos lugares de circulação desses trabalhadores, outras fontes

a que recorri também permitiram comparações nesse sentido. Uma delas era o texto das

134 Oliveira (1976) já ressaltara o equívoco de se considerar o trabalhador como proprietário da sua família,

tal como se essa não fosse condicionada pelas relações de produção. A relação entre trabalho temporário e

privilegiamento de trabalhadores solitários foi, por exemplo, observada por Ianni (1984: 97) no caso das

transformações colocadas pela agroindústria canavieira no interior de São Paulo: “Essa é a configuração

social, isto é, político-econômica, na qual o usineiro e o proprietário do canavial passam a preocupar-se,

sob nova perspectiva, com os seguintes problemas: em primeiro lugar, a redução relativa do contingente de

trabalhadores indispensáveis à continuidade e expansão do processo produtivo; em segundo lugar, a

redução, ao mínimo indispensável, do contingente de famílias de trabalhadores residentes nas terras da

usina e do canavial; em terceiro lugar, contratar trabalhadores na escala estrita das exigências do processo

produtivo, ao longo do ciclo do capital agroindustrial: safra e entressafra. Daí a produção de duas categorias

básicas de operários nessa agroindústria: o residente e o não residente. Um deles, o residente, em geral

precisa ter família para entrar nessa categoria. O usineiro e o proprietário do canavial preferem, como

residentes, os que estão casados. E mesmo acham natural que tenham filhos. O homem casado é mais

estável. E mais estável ainda quando tem filhos. Ele se apega à casa e ao lugar, que o usineiro e o

proprietário do canavial lhe apresentam como um privilégio. A casa e o emprego permanente capturam o

trabalhador, tornando-o mais dócil às condições do comprador da força de trabalho. Essa é a categoria de

trabalhadores que é induzida a ser casada, ter filhos, mas não ter senão alguns filhos. Poucos filhos libertam

a mulher para o trabalho assalariado. E quando duas pessoas da família trabalham, os seus salários podem

ser menores. A outra categoria de trabalhador, o não residente, este aparece como uma pessoa só, no

horizonte do usineiro ou proprietário do canavial. É um tanto secundário que ele tenha família ou filhos.

Mais secundário ainda se o não residente for trabalhador temporário. Quando o trabalhador não residente é

também um trabalhador temporário, então o ideal é que ele seja só. Essa condição torna-o perfeitamente

ajustável às estritas exigências do ciclo do capital agroindustrial. Ou melhor, o trabalhador temporário,

bóia-fria, pau-de-arara, ou volante é aquele que compõe, ao mesmo tempo, o exército ativo e o exército de

reserva de trabalhadores. Ele entra e sai do processo produtivo, exatamente no mesmo andamento desse

processo, ao longo das épocas de safra e entressafra”. 135 Dada a impressão de alguém que não era um patrão e nem estaria a serviço deles, as entrevistas

geralmente terminavam com pedidos de auxílio para receber um “serviço” não pago ou com a apresentação

de marcas físicas que serviriam como “provas” de sofrimento (cicatrizes de picadas de insetos e animais

peçonhentos, por exemplo).

Page 123: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

123

Declarações preenchidas pelos militantes que atendiam os trabalhadores que buscavam

“procurar os direitos”, em especial, por conta de não pagamento ou desacordos em relação

ao valor do acerto. Nessas ocasiões, eles os instavam a idealizar e verbalizar um projeto

com perguntas como “O que gostaria de realizar na sua vida?”. Como qualquer tentativa

de objetivação de idealizações desse tipo, as respostas são produzidas em função da

situação de notação das mesmas136. No entanto, ainda assim, sua observação pode ser

relevante pela constância com que foram citados projetos envolvendo, especificamente,

acesso à terra, “emprego fixo” e casa em respostas dadas por trabalhadores atendidos no

estado do Pará e em alguns estados vizinhos.

Neste item (“O que gostaria de realizar na sua vida?”), eram frequentes respostas

como “ter uma terra” ou “ter terra para trabalhar e morar”, ou ainda “ter uma terra para

trabalhar e parar de trabalhar pros outros”, mas também outras como: “Terminar os estudo

e possuir um emprego fixo com patrão que desse valor ao meu trabalho e casa própria.”,

de um trabalhador que há 8 anos faz empreitas nas fazendas e também seria pedreiro no

momento137; “ficar mais sossegado e ter um serviço fixo”, e, no Item seguinte, “O que

mais ajudaria a melhorar a situação de trabalhadores como você? Ter emprego fixo.”, de

um trabalhador “resgatado” quando era cortador de lenha pra uma Carvoaria em

Tupitatins/TO e que teria declarado trabalhar em fazendas há 7 anos em Tocantins e no

Pará138; “Ter uma chance de emprego bom para construir uma família”, de um trabalhador

que circulava em fazendas do Pará e do Maranhão há cerca de 10 anos, nascido em

Tamaraju/BA e que teria declarado ter 2 filhos e que “já teve” cônjuge139; “Comprar uma

casa de morada, pra ter um lugar para ficar sem ter que pagar aluguel (ele paga 250,00 de

aluguel)”, de um trabalhador que denunciou uma Fazenda em Araguaína/TO em 2010,

onde “roçou juquira”140; “Conhecer mais de mecânica de máquina pesada e ser um

profissional qualificado.”, de um vaqueiro que trabalharia em fazendas nos estados de

Goiás, Tocantins e Pará há cerca de 10 anos; “Ter canto próprio para viver, casa própria.”,

136 O crivo daqueles que estariam “buscando os direitos” na presença daqueles que os auxiliariam nessa

tarefa significa, por si mesmo, exclusão daqueles que não o fizeram ou elaborariam projetos diferentes

quando instados em outras relações, com outros interlocutores. O acompanhamento dos trabalhadores em

outras situações (dormitório, bar), porém, não alterou essa postura crítica em relação à condição na qual se

encontravam, ainda que não fosse essa a intenção da abordagem nem o objeto investigado por mim. A

produção de dados a fim de analisar essas questões com maior rigor e sistematicidade demandaria outra

interação e outras estratégias de pesquisa. 137 Declaração de tipo 2 por agente da CPT de São Felix do Xingu/PA em 24/06/2011. 138 Denúncia de tipo 1 em Carvoaria em Tupiratins feita por agente da CPT de Colinas/TO em 17/08/2010. 139 Denúncia de tipo 2 em fazenda em Brejo Grande do Araguaia/PA feita por agente da CPT de Marabá/PA

em 21/07/2010. 140 Denúncia de tipo 2 em Fazenda em Araguaína, feita por agente da CPT de Araguaína/TO em 03/03/2010.

Page 124: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

124

de um casal de trabalhadores que moravam e trabalhavam em fazendas de Mato Grosso

há 30 anos141; “Queria servir no Exército” e, em seguida, “Arrumar emprego melhor. Se

eu pudesse ter uma terra própria... seria meu sonho. Já participei de acampamento de sem-

terra mas não deu certo pois houve tiroteio (era na Santa Bárbara em Xinguara) por parte

de seguranças e ficou muito arriscado. Penso em tentar montar um lava-jato na rua para

melhorar de vida...”, de um trabalhador de 20 anos que realizava empreitas e diárias em

fazendas junto a outros nove irmãos142; “Gostaria de trabalhar em rádio e sentado no

computador...sem estar no sol”, de um diarista de 17 anos que saiu da casa dos pais em

Tufilândia/MA para “roçar juquira” numa fazenda de Parauapebas/PA com outros 2

colegas; “Sair da situação de ter que trabalhar em fazenda, aguentando humilhação.”, de

um trabalhador nascido em Guaraí/TO e morador de Rio Maria/PA, que trabalharia em

fazendas “há mais de 15 anos”143.

2.4) Com ponto certo, sem ponto certo

Apesar de aparentemente errático, o deslocamento dos homens na condição de

peão de trecho se caracteriza internamente pelo que os trabalhadores designam como

ponto ou, certas vezes, “ponto de apoio”. O ponto descrito por eles era um locus de

referência, em geral, de retorno entre um “serviço” e outro, mas também de apoio à

circulação, sendo algumas vezes constituído ao longo do processo de circulação na

condição de peão de trecho (um dormitório, por exemplo). Uma espécie de ponta seca do

compasso de circulação – e ela mesma em movimento, dependendo das condições de

estadia e de deslocamento de um local para outro.

A referência que os trabalhadores faziam à categoria ponto nos seus discursos, a

princípio, não parecia ser do interesse da pesquisa que desenvolvia. Afinal, o ponto

também podia ser apenas uma referência de local: “(...) você chegou agora e me encontrou

aqui, daí em 2 meses o senhor chega e eu não estou mais aqui. Aí você fala: ‘mais o seu

[Pedro] morava nesse ponto aqui...”. Ou seja, uma referência fundamental quando se toma

em consideração um grupo de trabalhadores levado a se deslocar espacialmente com

relativa frequência, porém, de pouco poder explicativo para uma análise das condições

141 Denúncia de tipo 2 em fazenda em Lucas do Rio Verde/MT, feita por agente da CPT do mesmo

município em 10/03/2011. 142 Denúncia de tipo 2 em Fazenda de Xambioá/TO feita por agente da CPT de Araguaína/TO em

17/10/2011. 143 Denúncia de tipo 2 em fazenda de Rio Maria/PA feita por agente da CPT de Xinguara/PA em 06/11/12.

Page 125: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

125

sociais de deslocamento e trabalho do grupo. No entanto, um melhor entendimento das

implicações dessa noção me foi dada por um trabalhador que insistiu em me explicar que

seu neto estava “no mundo”, mas ele tinha “ponto certo”, ao contrário de outros que não

tinham “ponto certo de ficar”144. A insistência também contou com a interrupção da sua

esposa, frisando a norma: “o ponto do filho enquanto ele estiver solteiro é na casa do pai”.

E, em seguida, com a explicação completa do senhor de 72 anos sobre seu neto: ele

trabalha, “mas a responsabilidade dele é com nós aqui”, com quem o criou, de quem

cumpre ordens; “não é dos que estão descabeceados no mundo, rodado, não”; “quando

ele não estiver de serviço, ele vem pra aqui”; “se nós dermos conta, ele pode ficar um

mês, dois, mais nós”. A distinção seria em relação aos que estão no mundo também, ou

seja, que também largaram a família e saíram por conta deles para “se bater com quem

não conhece”, trabalhando, mas que “não tem o ponto certo de ficar”. O ponto desses “é

aonde o povo apoia ele, uma semana, duas, um mês, dois”. Com isso, ele distinguia seus

filhos e netos, alguns com ponto certo, outros não. Quase todos, no entanto, “no mundo”,

sem paradeiro conhecido no momento, em busca de trabalho, “no Tocantins, de fazenda

em fazenda”, outros “em firma também”145.

A saída do homem na condição de peão de trecho alternava, nesse sentido,

rompimento ou não de um dado espaço reprodutivo. Dependendo da situação de saída, o

rompimento implicava em obrigações sociais específicas frente a posição ocupada pelo

trabalhador no núcleo familiar, especialmente quando este homem ocupava posições

correspondentes a de filho ou marido. As condições de circulação dos que tinham ponto

certo asseguravam referência e obrigação de retorno, ainda que por vezes esse retorno

pudesse ser prolongado no tempo (ou, por outro lado, pudessem ser retornos seguidos ou

sazonais a uma mesma empresa agropecuária146). Quando não cumpridas essas

obrigações, o núcleo familiar de origem poderia ser recomposto, em especial, com

recasamentos no caso das esposas de peões-de-trecho ou de maridos-peões-de-trecho e

144 Entrevista com Pedro, 72 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte/PA, 26/08/12. 145 A categoria “mundo”, nesse sentido, fornece ao discurso desses trabalhadores uma clara precisão social,

embora o significado seja, justamente, imprecisão geográfica. Esse significado é geralmente achincalhado

por eles mesmos, tal como: “(...) aí, no nosso dizer, se pergunta: ‘rapaz, onde está fulano?’ – ‘ah, fulano

está aí no meio do mundo’. E ninguém sabe onde é o meio do mundo, né? (risos). Disse que uma vez alguém

perguntou onde era esse meio do mundo e o outro disse assim ‘ó, eu sei.’ ‘E onde é?’. ‘é aqui!’. ‘E como é

que você sabe?’. ‘É só você medir de lá pra cá e de cá pra lá que você vai ver onde é o meio do mundo’

(risos). Quer dizer, não provam nunca, né, onde é esse meio do mundo” (Entrevista com Pedro, 72 anos,

setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte/PA, 26/08/12). 146 Alguns trabalhadores eram despedidos das empresas agropecuárias (que formalizaram o trabalho

temporário), retornavam para cidades de origem e, depois, tentavam ser recontratados pelas mesmas

empresas na viagem seguinte em busca de trabalho na região.

Page 126: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

126

com a constituição de outro grupo doméstico após a saída. Membros do núcleo familiar

podem procurar por aquele que saiu e não mandou notícias ou não mais voltou, obtendo

informações das mais diferentes formas, como era o caso de recados recebidos ou

enviados por pessoas que estiveram nos locais de destino ou de origem. Em geral, as

esposas procuraram os maridos que ficaram sem entrar em contato depois de cerca de três

meses e eram, principalmente, uma garantia de volta (ou de “ida”, quando a volta foi para

buscá-la para levar para outra cidade). Quando solteiros, o retorno dos homens foi ainda

mais incerto, ou com intervalos mais prolongados, e os mecanismos de controle social

mais fluidos.

Porém, dadas as condições de circulação, os trabalhadores na condição de peões-

de-trecho nem sempre constituíram grupos domésticos e a referência com o núcleo

familiar de origem era esporádica ou até mesmo inexistente. Havia uma circulação que,

ao contrário, tal como me explicara o trabalhador, não tinha ponto certo. Geralmente, os

percursos alternavam essas situações, de acordo com a constituição ou a destituição de

novos grupos domésticos, porém, a duração de cada uma delas foi indeterminada. O peão

de trecho, às vezes, permaneceu décadas em uma ou em outra, ou sequer as alternou.

Circular sem ponto certo era a condição em que pairava maior desconhecimento,

apesar de ser a que melhor corresponde ao senso comum de quem seriam os comentados

peões-de-trecho. As entrevistas com os trabalhadores, porém, confirmaram o que já

observava na circulação em outras condições, principalmente a circulação alternada em

outros setores – que incluía sobretudo a construção civil e as grandes obras –, o trânsito

em outras regiões e a dinâmica de constituição e destituição de grupos domésticos ao

longo dos percursos, de acordo com as próprias condições de circulação.

Citarei os dados produzidos em uma das situações de pesquisa que tive, que bem

dimensionam as questões indicadas. Uso o itálico para o texto recopilado de um diário de

campo147:

Beto, chamado “[apelido]” pelos colegas, 50 anos, desde 1981 “correndo

trecho”, nunca teve casa. Sempre morou em alojamentos, em fazendas. Quando está na

cidade, se hospeda em hotéis. Veio para a região de Tucumã-São Felix do Xingu há 5

anos e costuma ficar sempre no mesmo dormitório em que o encontrei, seja para passar

alguns dias na cidade ou para procurar um novo serviço. Explica que às vezes fica

147 Recopilações de anotações em diário de campo, 26/09 a 01/10/12.

Page 127: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

127

devendo ao dono e paga a conta quando volta para a cidade, outras vezes “acerta” o

pagamento na hora em que é contratado por algum patrão (em geral, quando o patrão

paga a conta devida, compra a dívida do trabalhador e depois desconta do salário ou do

pagamento da empreita).

Encontrei-o pela primeira vez numa quarta-feira, quando fazia 3 dias que ele

viera do último trabalho e procurava outro serviço. Nesse dia ele estava com outros

peões, que eu também entrevistei e acompanhei até onde pude, hospedados no dormitório

e em busca de serviço. Beto fez questão de me mostrar suas pernas, completamente

feridas por carrapatos. Já no domingo, ele seguiu para uma fazenda no Iriri (a região

mais distante na frente que se expande a partir de São Felix do Xingu), depois que um

fazendeiro conhecido o chamou para trabalhar numa propriedade considerada pequena,

onde ficaria responsável por 1500 cabeças (número bem abaixo das até 8 mil que se

costuma atribuir a um vaqueiro em fazendas maiores). Na fazenda anterior, ele ficou “1

mês e 21 dias” tomando conta de um retiro que ficava a 8 km da sede da fazenda, cujo

combinado era receber 1200 reais por mês, mas que, dados os descontos, recebeu apenas

mil por todo o período. Discutiu com o dono da fazenda depois que se recusou a trabalhar

sob chuva e resolveu sair: “o ‘homem’ [fazendeiro] paga bem, mas tem que trabalhar

direto; cobrou 30 reais por umas panelas velhas”. Saiu, portanto, devido à “sebosidade”

do patrão.

Conta que foi casado duas vezes. Com a primeira esposa, teve três filhos, que

moram com o avô em Santa Luzia do Tide/MA. Com a segunda esposa, teve mais dois

filhos, mas ele diz que “perdeu o contato deles” desde que ela saiu da fazenda em que

moravam em Breu Branco/PA para seguir para Serra Pelada e ele veio para Tucumã, há

cinco anos. Beto teria 14 irmãos, mas explica que, depois que “correu trecho”, “andou

no mundo”, perdeu o contato. Imagina que os pais estão vivos, porque, há cinco anos

atrás, um amigo esteve em Pedro II, no Piauí, e o avisou que estariam bem. Ele conta

que nunca estudou e sabe apenas escrever o nome, para assinar. Resolvo saber se teve

terra em algum momento e pergunto. Beto afirma que nunca teve e que também nunca

quis “abrir” uma terra, nem “tirar”. Já teria “botado o nome no Incra” uma vez, mas

não deu em nada. Apenas seu pai, que era lavrador, em certo momento, “pegou um

pedaço de terra”, “mas era pequena”. Tento começar a tomar nota do seu percurso, mas

as informações são tantas que resolvemos marcar novamente no dia seguinte, com mais

calma.

Page 128: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

128

Na quinta-feira, Beto me aguarda e me recebe para uma longa conversa no

espaço interno do dormitório, dessa vez, com o auxílio de um gravador. Descubro que

entre os 13 e os 19 anos, ele morou e trabalhou numa pequena fazenda em um município

do Maranhão. Beto se refere ao dono da terra pelo nome e frisa que “ele foi uma boa

pessoa pra mim”, “como um pai”, mas que teria saído de lá quando tinha 19 anos para

vir para o Pará. Essa idade de Beto corresponde exatamente a 1981, ano que ele me deu

como sendo o marco de quando começou a “correr trecho” na entrevista anterior. Foi

trabalhar na construção da Usina de Tucuruí. Instado para relatar por onde trabalhou,

desde que saiu da casa dos pais, Beto relata rapidamente seu percurso: saiu do Nordeste

e começou a trabalhar quando tinha 13 anos, veio para o Maranhão, “ficou trabalhando,

trabalhando...” e, aos 19, veio para o Pará. Dali, ele resolve abreviar o que já tinha

começado a contar no dia anterior e dizer que já poderia estar aposentado, caso tivesse

trabalhado todo o tempo com carteira assinada. Cita uma das fazendas em que ficou

trabalhando “por oito anos, quatro com carteira assinada e quatro sem”. Pergunto em

que ano foi e ele resolve buscar suas carteiras de trabalho. Ele me entrega e, antes de

abrir, ainda continuamos conversando longamente sobre os lugares em que trabalhou.

Ele tira minhas dúvidas sobre o que fizera em cada um desses trabalhos, mas tenho

dificuldade para encadear cronologicamente o que relata, já que ele não segue essa

ordem, ou simplesmente abrevia alguns períodos. Insisto, com a certeza de que as

informações das CTPS se restringem principalmente às firmas em que ele trabalhou (e,

ainda assim, entrecortadas, com possibilidade de retratarem com grande imprecisão até

mesmo essas passagens). Beto cita e explica o que fez nas firmas, em uma série de

fazendas e no estradão, em municípios no Pará, Maranhão, Mato Grosso, São Paulo. Nas

fazendas, em geral, foi vaqueiro. Em uma delas, chegou a ser giriqueiro (de “girico”,

trator de pneus). Quando trabalhou nas firmas, ele sentencia, “não ganhava dinheiro”.

Em São Paulo, de onde decidiu voltar para o Pará depois de uma experiência de 6 meses,

se teria apenas a “liberdade de comer” e de mais nada. Resolvo ler em voz alta o que

estava registrado nas suas CTPS e guiar a conversa dali em diante a partir disso. Ele

tinha três CTPS, duas antigas e uma nova, que acabou de tirar, depois que lhe falaram

que a anterior “não valia mais nada”, porque molhou. O mesmo teria acontecido com a

primeira. Leio os registros de emprego. Numa folha solta, que provavelmente era da

primeira CTPS, leio: Ajudante geral, Camargo Correa, em 1981. Ele explica que foi

quando veio do Maranhão para Tucuruí/PA, trabalhar na construção da UHE de

Tucuruí, em que teria ficado 6 meses. Corresponde aos seus 19 anos, à primeira vez em

Page 129: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

129

que foi fichado e ao início do “trecho”. Na CTPS antiga: Ajudante geral, março a

setembro de 82, construtora em São Paulo. Conta que foi sozinho, chegou na rodoviária,

soube de uma firma em que estavam contratando e, junto com outras pessoas “do

Nordeste”, se dirigiu para essa firma, fez os exames e começou no dia seguinte. Beto diz

que, depois de ficar 6 meses lá, voltou para trabalhar em fazendas, e, dessa vez, “direto

para o Pará” (na gravação, noto que ele cita o ônibus de ida saindo de Teresina/PI e,

portanto, provavelmente, esteve na casa dos pais em Pedro II/PI). Em uma das fazendas,

ficou por um ano e três meses, como vaqueiro. Continuo a leitura: Servente; volta grande

do rio Xingu [Altamira/PA], Mineração Oca, menos de um mês de trabalho. Beto explica

que faltou comida, atrasava pagamento: “Viemos embora, todo mundo”. Ajudante;

Mendes Junior Engenharia, canteiro de obra da Vale em Carajás/PA, durante quase um

ano, 1985. Beto explica que teria passado a oficial, montador, mas essa classificação

não constava na CTPS. Voltou para as fazendas. Auxiliar de campo, 1988, menos que um

ano, Mineração São Francisco, em São Felix do Xingu/PA. Depois disso, só teve outro

registro em 1994, como “trabalhador da agropecuária”, por aproximadamente dois

anos, em uma grande empresa agropecuária, Companhia de Desenvolvimento do Norte

(Codenorte), Moju/PA, uma fazenda em que ele “mexia com gado”. Ele diz que teria

ficado mais 4 anos nessa fazenda, mas não há o registro. Ele indica que tem também a

Santa Teresinha (fazenda), “mais pra frente, alguma ficha dela está aí”. Não encontro.

Ele teria trabalhado em seguida à Codenorte. Na outra CTPS, tirada em 1997: Ajudante,

Eletrotel, outubro de 2002 a janeiro de 2003. Seria uma firma de energia em que ele

trabalhou na instalação/construção de linha de transmissão. Ele explica: “Fiquei até

acabar o serviço. Acertaram com todo mundo e, daí, pronto, fui embora”. Em seguida:

Auxiliar de serviços gerais, Scovan Serviços Gerais. Beto diz ser um grande projeto de

cultivo de eucalipto, em Breu Branco/PA, onde ficou pouquíssimo tempo, para ir pra uma

fazenda no mesmo município. Foi a primeira registrada em CTPS, como “Vaqueiro”.

Ele afirma que teria saído do projeto de eucalipto direto para essa fazenda, porém só o

trabalho dos últimos 3 meses foi registrado, em 2004.

Depois desse registro, só há outro em 2010, numa Fazenda em São Felix do

Xingu/PA, que ele se lembra depois que leio o nome da proprietária. Como já tinha me

contado, Beto veio pra região da estrada PA-279 por volta de 2007. Ele diz que ficou 5

meses e pediu conta porque estariam “pagando pouco”. No registro seguinte, há outra

fazenda, mas ele explica que se trata da mesma. Provavelmente, os proprietários

registraram o período total como dois contratos (com menos que 3 meses cada).

Page 130: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

130

Conversando com ele, noto que o mesmo procedimento foi adotado nos outros quatro

registros de trabalho em fazendas da região que se seguem nas suas CTPS. São sempre

de, no máximo, três meses, mesmo quando ele teria trabalhado mais tempo do que isso.

O motivo mais provável é para que sejam registrados dentro do prazo de um contrato de

experiência. Em todos, a CTPS foi assinada com um salário mínimo e o acerto final,

segundo Beto, se deu de acordo com a combinação que ele e o recrutador fizeram antes,

indo a um escritório de contabilidade da fazenda, na cidade, apenas para assinar os

papéis. Em geral, o vaqueiro recebe mais do que o salário mínimo (na época, a

combinação estaria entre 900 e 1200 reais e o mínimo 622 reais). Confirmo se ele prefere

trabalhar nas fazendas e ele nega: “depende do que aparecer, do que arranjar”. Poderia

sair das fazendas, se fosse o caso. O problema é que, como disse, nas firmas, pode até

ganhar menos do que nas fazendas e que, nestas, dependendo da sorte, o patrão pode ser

“bom”, pode “ajudar”, o que nunca acontece quando se trabalha nas firmas.

Considerando as grandes empresas agropecuárias instaladas na região, as últimas

fazendas que Beto trabalhou eram de porte médio.

Antes de ir embora, nesse dia, Beto me mostra seu quarto na pensão e os pertences

que levava com ele: documentos, duas ou três mudas de roupa, desodorante, sabonete,

aparelho de barbear e uma capa de chuva. Ainda nos falamos nos dias seguintes,

enquanto fazia entrevistas com outros trabalhadores ou simplesmente visitava o

dormitório, conversando no pequeno pátio interno. Na sexta-feira, pela manhã, encontro

a pensão fechada. O dono foi viajar, mas encontro Beto e outros hóspedes na rua, que

me mostram como estavam entrando para a área dos quartos que fica atrás do bar, por

meio de uma pequena passagem entre a parede do bar, que é de tábua, e o salão de beleza

vizinho. Eles frisam que o dono é “gente boa”, confia, deixando-os sozinhos. Recebe

mesmo quando não têm dinheiro, deixa pagar depois, oferece comida quando precisam

ou pedem, “dá apoio”. Também tem contato com fazendeiros e pessoas que os contratam

para os mais diversos serviços. Essa é uma das típicas pensões da cidade que aceitam

trabalhadores que se hospedam “esperando patrão”. Um trabalhador me pergunta se

poderia ajudá-lo a receber uma empreita que não foi paga. Outro diz que queria

conversar comigo depois e eu imagino que se trata de situação semelhante (à noite,

quando voltei, explica que se trata de uma fazenda em que teria trabalhado 4 anos sem

CTPS assinada e que saiu sem receber nada). Durante o dia, vou à CPT e converso com

agentes da Pastoral sobre o que poderia ser feito nesses casos, ainda antes de uma

reunião que tinha marcado na Vale. Saindo de lá, volto à CPT. A única opção é mesmo

Page 131: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

131

encaminhar para o escritório de advocacia que a CPT tem contato para entrar com uma

ação trabalhista. O STR do município não tem advogados e, de fato, não atende os

assalariados. Como sempre, a chance de resolver essas questões é mínima, ou bem

demorada148. A Vara do Trabalho fica em Xinguara/PA. A audiência só será marcada lá

4 ou 5 meses depois. E são necessárias duas testemunhas que comprovem o trabalho na

fazenda.

No sábado, um dos trabalhadores que tinha marcado uma entrevista comigo não

estava. Ele e outros dois hóspedes “pegaram um bico na casa de um professor” para

abrir um poço. Passo a tarde conversando na pensão. No início da noite, encontro Beto,

visivelmente alcoolizado. Converso rapidamente com ele. Ele vai para o seu quarto e eu

vou embora. Foi a última vez que o vi. Saiu na manhã do domingo para a fazenda.

Gráfico 9: registros formais de trabalho do período “correndo trecho” de um

trabalhador (1981-2012)

Ano do registro Registro e duração do vínculo registrado

1981 Ajudante geral, Construtora Camargo Correa, trabalho na

construção da UHE de Tucuruí, Tucuruí/PA, 6 meses

1982 Ajudante geral, empresa de construção civil, trabalho na

construção civil em São Paulo/SP, 6 meses

[sem data legível]

[entre 1982 e 1985]

Servente; Mineração Oca, construção da mineradora na Volta

Grande do rio Xingu, Altamira/PA, menos do que um mês

1985 Ajudante [e oficial montador]; Mendes Junior Engenharia,

canteiro de obras da construção de Carajás (CVRD), Carajás/PA,

quase um ano

148 De fato, ao longo do trabalho de campo, nenhum trabalhador decidiu iniciar uma ação judicial trabalhista

por conta de não pagamento nas fazendas. Quando conversava com trabalhadores que, por algum motivo,

me identificavam como alguém que poderia lhes “ajudar” a resolver essas questões e explicava que era a

única opção indicada pelos movimentos sociais locais, eles recusavam prontamente ou desistiam de levar

adiante uma ação no intervalo de alguns dias. Os motivos eram óbvios: “falta de tempo” e demora até uma

resolução favorável que “não compensava” o esforço. Em todos os casos, ficaram sem receber o pagamento

e procuraram um próximo patrão que “pague direito” pelo serviço. Advogados do escritório de direito

trabalhista de Tucumã relataram que já ganharam uma ação envolvendo cerca de 20 trabalhadores contra

uma fazenda de Ourilândia. Na ocasião, metade dos trabalhadores teriam aceitado um acordo após sentença

favorável do Juiz em uma Ação de “superexploração do trabalho”. No entanto, frisaram que são raras as

ações trabalhistas contra fazendas na região. Ao longo do ano de 2012, foram iniciadas apenas três ou

quatro.

Page 132: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

132

1988 Auxiliar de campo, Mineração São Francisco, apoio à

prospecção e pesquisa minerária em São Felix do Xingu/PA,

quase um ano

1994 Trabalhador da agropecuária, Codenorte, vaqueiro em uma

grande empresa agropecuária, Moju/PA, aproximadamente dois

anos

2002 Ajudante, Eletrotel, firma de energia, instalação/construção de

linha de transmissão entre Tucuruí e Carajás/PA, quatro meses

2003 Auxiliar de serviços gerais, Scovan Serviços Gerais, trabalhador

em um grande projeto de cultivo de eucalipto, Breu Branco/PA,

menos que três meses

2004 Vaqueiro, fazenda, Breu Branco/PA, 3 meses

2010, 2011 e 2012 Vaqueiro em fazendas na região de São Felix do Xingu/PA e

Tucumã; registros de trabalho sempre com, no máximo, três

meses

2.5) Rodados

Um deslocamento em busca de trabalho encerrou vários riscos. Um deles era o de

“ficar rodado”, forma como era designada uma situação de pauperização possível frente

ao prolongamento do tempo de circulação e o fim dos recursos poupados previamente

pelo trabalhador para realizar determinado deslocamento. Em geral, “ficar rodado” era

relacionado a estar sem parentes, não ter conhecidos, não ter onde dormir, não ter casa,

não ter dinheiro149.

Logo na primeira viagem de trabalho de campo, fui abordado por um homem

assim reconhecido em uma barraca de comida na praça de Tucumã. Tinha

149 Rodado(a) era uma das categorias cuja pesquisa causa estranheza por se tratar de uso comum e

praticamente generalizado, tal como:

[agente da CPT] - (...) Eles [os trabalhadores] falam que vêm porque se fala que aqui tem muito emprego,

que aqui tem essa fama, né? Que tem muitas vagas, que é só chegar que arruma uma vaga. Aí eles vêm por

isso, não necessariamente pra mineração. Mais pela fama. (...) [muitos] Vêm com o dinheiro só da

passagem, aí chega... fica rodado. Alguns ficam até na praça, sem ter pra onde ir.

– Rodado é o quê?

– (risos) Rodado? É esse. Que não tem pra onde ir. Aí, fica rodado.

– Não tem lugar pra ficar?

– É. Não tem lugar pra ficar. Não conhece ninguém. Tem só a ida. Aí, ou ele arruma um dinheiro emprestado

pra voltar... emprestado, não, ganha dinheiro pra voltar, ou ele tem que arrumar um emprego o mais rápido

possível. Aí, ele topa qualquer coisa” (Entrevista com agente da CPT, 23 anos, Tucumã/PA, 27/08/12).

Page 133: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

133

aproximadamente 40 anos, dizia estar com muita fome e me pediu para pagar a comida.

Comemos na mesma mesa e ele me respondeu que estaria sozinho na cidade há um dia,

não conhecia ninguém e dormiria na rua. Tinha “família” perto de Imperatriz/MA (mas

apenas o pai e a mãe continuavam lá) e estava vindo de Xinguara/PA. Ao contrário do

que diziam, “não era fácil arrumar serviço” ali. Perguntou se eu morava em Tucumã ou

se estaria indo para São Felix do Xingu/PA.

Ao longo do período em que morei na cidade, outras situações como essa

ocorreram. Donos de dormitórios me contavam, por exemplo, que “ontem mesmo um

rodado pediu para colocar uma rede” e dormir na área comum do hotel por uma noite.

Assistentes sociais relatavam rotinas de trabalho e procedimentos adotados pelos policiais

e fiscais das prefeituras com as pessoas que “dormiam na rua”, uma prática não tolerada

nas duas cidades150. Sindicalistas comentavam que na época do “inchaço” muitos ficaram

pela rua, “muita gente chegava e não tinha aonde ficar”151. Agentes da CPT relatavam

casos de trabalhadores que buscavam a sede da instituição em busca de dinheiro para sair

da cidade, assim como de trabalhadores atendidos que “não tinham para onde ir” e que se

buscava localizar alguns familiares através da Rádio Nacional, depois que teriam perdido

o contato há muitos anos.

Entrevistei alguns trabalhadores nessa situação. Um deles, por exemplo, estava

em um bar e dormitório em Tucumã e dizia estar “rodado no mundo” 152. Tinha 32 anos

e voltava de um garimpo de ouro no rio Fresco (São Felix do Xingu/PA), mas que não

tinha ouro e ele não recebeu nada, só “o de comer”. Antes desse, esteve em outro, de

cassiterita, em que recebeu algum dinheiro e comprou roupas. Não conhecia ninguém em

Tucumã, apenas o colega com quem estava num ponto de apoio e que esteve com ele no

último garimpo. Antes desses dois garimpos, tinha ido para Redenção/PA e, depois de 5

dias na rodoviária, foi recrutado por um gato que o levou junto com vários trabalhadores

em um ônibus para fazer um acero de 100 km numa fazenda em São Felix do Xingu/PA.

Ficou 66 dias e, quando saiu, ganhou apenas uma “ajuda” de 200 reais, porque não tinha

mais saldo. Seu colega, que estava ao lado, antes do garimpo fracassado em que se

conheceram, trabalhou no estradão por 50 dias com um comissário de Tucumã. Mas o

comissário ainda lhe devia 600 reais do acerto, cujo pagamento iria depender da “boa

vontade dele”.

150 Ver capítulo a seguir. 151 Entrevista com diretor do STR de Tucumã, Tucumã, 17/09/2012. 152 Entrevista com Luís, 32 anos, bar em Tucumã/PA, 02/10/2012.

Page 134: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

134

No momento da entrevista, o trabalhador reclamou comigo que um gato de

Tucumã teria lhe oferecido trabalho e ficou com as suas roupas, mas ainda não o tinha

levado153. Enquanto isso, ele e o colega estavam nesse ponto que abrigava rodados como

eles, em que teriam recebido abrigo e comida até conseguirem trabalho por eles mesmos

ou através do responsável pelo ponto154.

Assim como o prolongamento do tempo de circulação, especialmente na busca

fracassada de trabalho em determinado destino, o não pagamento também era relacionado

diretamente a uma situação de miserabilidade. Tal como citei, os relatos eram vários.

Alguns, inclusive, documentados, como a de um grupo de trabalhadores contratados para

uma “empreita de derrubada” que não foi paga155. Nesse caso, o documento incluiu

informações que bem dimensionam a pauperização do grupo, tal como se observa em

suas condições de moradia e alimentação:

“Lista de trabalhadores envolvidos:

[Homem 1] RG (...) CPF (...)

[Homem 2] RG (...) CPF (...) cidade de origem Paragominas- PA tem

casa em SFX, entrou na fazenda dia 22 de abril para fazer trabalho de

derrubada o combinado foi ganhar 750,00 por alqueire sendo que o

mesmo em um grupo de três pessoas derrubou 53 alqueires, saindo da

Faz. no dia 10 de junho e recebeu em dinheiro 1500,00 somente pelo

serviço. (foi cobrado do grupo dele as despesas de alimentação e os

materiais de equipamentos um valor de 18700,00.)

[Homem 3] RG (...) CPF(...) Título de Eleitor(...) (Pensão Rua Ireno

Leda) cidade de origem São Raimundo de mangabeira- MA

[Homem 4] RG (...) CPF(...)

[Homem 5] RG (...) (está no Hotel Miranda, devendo as diárias e com

dividas no mercado) Monção- MA

[Homem 6] RG (...) CPF (...) (Paga Aluguel SFX, devendo aluguel e

dividas para pagar no mercado)

153 O gato indicado pelo trabalhador era o único da cidade. Segundo outros trabalhadores, apenas os rodados

ou recém-chegados, pessoas que não tem conhecimento ainda, aceitariam trabalhar com ele, dada sua fama

de mau pagador. 154 O ponto que abrigava os rodados exercia também uma agência de recrutamento para trabalho temporário

nas fazendas e garimpos. 155 Na ocasião, um agente da CPT incluiu observações a respeito: “Os trabalhadores chegaram na cidade

depois de serem retirados da fazenda as pressas por causa do IBAMA e da força nacional que estava

rondando na área próxima ao que estavam derrubando, o fazendeiro mandou que todos fossem embora, os

trabalhadores saíram deixando todos seus documentos para trás e seus equipamentos de trabalho no local

da derrubada. Hoje estão a 14 dias na cidade de São Felix do Xingu e ainda não receberam nada, muitos

não tem local para morar e estão sem dinheiro para se alimentar. Entraram em contato com os gatos e estes

disseram que o fazendeiro mandou avisar que não iria acertar com eles e que os mesmos poderiam procurar

seus direitos, os trabalhadores precisam de ajuda imediata” (Observações feitas em Declaração de tipo 2

por agente da CPT de São Felix do Xingu/PA em 24/06/2011).

Page 135: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

135

[Homem 7] RG (...) CPF (...) (está devendo no mercado onde comprou

alimento)

[Homem 8] RG (...) CPF (...) ( mora Com a Mãe SFX, com dividas para

pagar e sem dinheiro para comprar mantimentos)

[Homem 9] RG (...) CPF(...) (morador local casa Própria, sem dinheiro

para alimentação)

[Homem 10] RG (...) CPF (...) (não mora na cidade ta na casa de

conhecido em SFX, não tem dinheiro para manter-se) nascido em

Bacabau MA

[Homem 11] (não estava com os documentos mora com conhecido na

Vila dos crentes, no momento está no hotel Miranda em SFX, devendo

diárias e alimentação) cidade de origem Zé doca- MA

[Homem 12] (não tem documentos foram queimados e o registro

sumiu) cidade de Origem conceição do Araguaia- PA está em pousada

e devendo diárias e alimentação.

[Homem 13] CTPS (...) Cidade de origem Redenção –Pa mora de

aluguel em SFX está devendo aluguel.

[Homem 14] RG (...) CTPS (...) CPF (...) (mora de Aluguel em SFX,

devendo o aluguel e sem dinheiro para comprar alimentos) cidade de

orgem- Zé doga MA

[Homem 15] RG (...) cidade de origem Jaicoz- PI (mora com um

conhecido em SFX, paga aluguel, devendo o aluguel e sem dinheiro

para comprar alimentos)

[Homem 16] RG (...) CPF (...) cidade de origem Porto Marruás- PI

(mora na casa de um conhecido em SFX, sem dinheiro para comprar

alimento)

[Homem 17] RG (...) CPF (...) cidade de origem Miranorte-TO ( está

dormindo no hotel Miranda, devendo as diárias e alimentação)

[Homem 18] RG (...) CPF (...) cidade de origem Guaraí- TO (está na

casa de outro trabalhador casa alugada, devendo aluguel e sem dinheiro

para comprar alimentos)

[Homem 19] RG (...) CPF (...) cidade de origem Floriano- PI (está

morando de aluguel num quartinho junto do trabalhador [nome]

[telefone]

[Homem 20] RG (...) CPF (...) cidade de origem Montalvani-MG (está

num hospedado em uma pousadinha chamada alcanja, devendo as

diárias e alimentação)

[Homem 21] RG (...) CPF (...) cidade de origem Natividade-TO (está

dormindo na pensão da Laura, devendo as diárias e alimentação)

[Homem 22] RG (...) CPF (...) cidade de origem Santa Inês- MA (está

morando no hotel Primavera, devendo as diárias e alimentação) entrou

na Faz. Dia 22 de abril para fazer trabalho de roço e derrubada foi

combinado 700,00 por alqueire estava no grupo de tres trabalhadores

que derrubaram 53 alqueires e recebeu em dinheiro somente 300,00.

(foi cobrado do grupo dele as despesas de alimentação e os materiais de

equipamentos um valor de 18700,00.)

[Homem 23] (declarante da denúncia) RG (...) CPF (...) cidade de

origem Bela Vista-GO entrou na fazenda dia 19 de março e saiu dia 10

Page 136: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

136

de junho o combinado foi combinado 600,00 por alqueire derrubado e

450,00 por alqueire roçado. O declarante derrubou 15 alqueires roçou 5

depois roçou 26 alqueire em outro grupo de trabalhadores.

[Mulher 1] RG (...) CPF (...) cidade origem Gonçalves Dias-MA entrou

na fazenda dia 19 de março e saiu para fazer pré-natal dia 22 de abril

retornando para fazenda no dia 25 de maio e saiu novamente no dia 10

de junho, teria sido combinado com ela R$ 500,00 para a mesma

preparar as refeições dos trabalhadores e ela não recebeu nada pelo seu

trabalho”156.

2.6) Trajetórias de circulação

O recrutamento realizado pelas firmas, terceirizadas e subcontratadas da Vale,

atendeu a necessidades das diferentes etapas da construção e da operação da MOP e

condicionou trajetórias específicas de circulação da força de trabalho. A seguir, distingo

e analiso três dessas trajetórias.

2.6.1) peões-de-trecho-firma

Além do trabalho temporário nas fazendas, os trabalhadores na condição de peões-

de-trecho circularam também nas firmas, nesse caso, principalmente na construção civil

pesada dos grandes projetos. Ou seja, em trabalhos de curtos períodos e sob condições

específicas de recrutamento. A circulação nas firmas esteve condicionada especialmente

aos momentos em que os agentes recrutadores contrataram trabalhadores com baixa ou

nenhuma especialização e sem recurso a sistemas de controle, como indicações. Em

grande parte, apenas nessas situações o trabalhador que se deslocou em busca de trabalho

das empreitas e diárias das fazendas pôde ser fichado de forma imediata nas firmas.

No caso da MOP, esse fichamento indiscriminado e amplo ocorreu nos anos da

etapa de construção da mina e da usina. No período da pesquisa de campo, o recrutamento

dos peões-de-trecho era restrito aos momentos de “chegada” de novas firmas, sendo que

algumas delas já exigiam experiência em CTPS ou indicações das firmas anteriores. Além

disso, não mais ofereciam a possibilidade de alocação em alojamentos, tendo o

trabalhador, portanto, que se instalar por conta própria na cidade. Houve, porém, registros

156 Notar que, como há subcontratação e formação de “turmas” diferentes para cada novo “serviço”

acordado, há diferença de valores. Cabe mencionar que o trabalhador que buscou a instituição declarou

também ser pedreiro. Na Denúncia constam nomes e números de documentos de cada um dos trabalhadores,

aqui omitidos (Declaração de tipo 2 por agente da CPT de São Felix do Xingu/PA, em 24/06/2011).

Page 137: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

137

variados do recrutamento de homens nessa condição, inclusive de percursos fazendas-

firmas, ou mesmo fazendas-firmas-fazendas novamente, tal como observara na circulação

anterior de outros peões-de-trecho que não estavam nas firmas da MOP no momento.

Em janeiro de 2012, por exemplo, um trabalhador de 28 anos denunciou uma

fazenda em Ourilândia do Norte em que teria feito um “serviço” de roço de pasto,

conserto de cerca e plantio de capim. No registro feito por um agente da CPT de

Araguaína/TO, há a seguinte informação: “Na fazenda ele deixou: bolsa, celular, máquina

fotográfica digital, roupas, calçados, CPF e papeis do FGTS (trabalhou fichado na Santa

Bárbara durante um ano em Redenção, em 2010, e na Odebrecht de Ourilândia, durante

7 meses, dirigindo girico).” (grifos meus). Ou seja, esse trabalhador foi fichado em uma

empresa agropecuária da região, em seguida, em uma firma na construção da MOP e,

depois, teria voltado para as empresas agropecuárias, considerando que ele denunciava

uma fazenda situada no mesmo município, Ourilândia do Norte. E, sobre sua qualificação,

há o seguinte comentário: “nasc 22/03/1984 em Imperatriz/MA, RG (...) - CPF (...) – Tit.

eleitoral: sim – Analfabeta: só estudou o pré e foi criado na roça, em Montes Altos, MA.

Começou a trabalhar de roça aos 8 anos, na parcela do seu pai, assentado na PA Vila

Palmares (uma ocupação que começou com o MST), município de Ribeirãozinho. Havia

uma escola, mas (...) não se interessou pelo estudo e o pai não deixava; (...) gostava mais

de tratar dos animais”157.

Os gerentes das firmas de construção civil contratadas pela Vale disseram

estranhar uma característica observada entre os candidatos recrutados nos municípios no

Pará: trabalhadores com cerca de 40 anos com pouca ou nenhuma experiência anterior

em CTPS. Isso seria um indício de que se tratam de trabalhadores que circulavam

principalmente por meio de contratos informais de trabalho. Na opinião desses gerentes,

eles viriam “das fazendas”. Possivelmente, além disso, também se trataram de CTPS

novas. Além da perda, roubo, queima, etc, das CTPS, havia a prática comum de troca das

carteiras que, por algum motivo, tinham registros que impediriam novas contratações.

Ainda assim, na verdade, essas “fazendas” mencionadas pelos gerentes podem significar

uma grande diversidade de situações de origem. Uma delas seria a de que, de fato,

estariam circulando nas fazendas anteriormente, seriam peões-de-trecho. Nas fazendas, o

processo de formalização do contrato de trabalho era recente e restrito geralmente às

médias e grandes propriedades. Mas a primeira ficha, principalmente no auge das

157 Denúncia de tipo 2 em fazenda de Ourilândia do Norte feita por agente da CPT de Araguaína/TO, em

20/01/2012 (arquivo da CPT).

Page 138: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

138

contratações, pode ser também do trabalhador que inicia um processo de circulação,

daquele que parte de uma condição camponesa, assalariando-se temporariamente ou não,

daquele que nunca esteve nessa condição antes ou mesmo daquele que a alternou algumas

vezes em seu percurso até ali. A distinção que era feita pelos próprios trabalhadores em

relação aos fichados pela primeira vez também não permitia separar claramente as

origens, como no caso do “peão valente” ou do “cara bravo” nas firmas, descritos mais

adiante no texto.

2.6.2) diárias/emprego doméstico-firma

Outra condição de circulação era a dos trabalhadores que se deslocaram com o

grupo doméstico e buscavam fixar residência nas cidades do entorno da MOP. Em um

contexto no qual as firmas não mais ofereciam alojamento, parte dos trabalhadores

constituía grupos no local ou deslocava mulheres e filhos (ou mesmo núcleos familiares

inteiros) para Tucumã e Ourilândia do Norte. Nesta situação, era possível observar o

trabalho de mulheres e as condições de deslocamento de um amplo contingente de

trabalhadores que alternava trabalhos principalmente no emprego doméstico e nas diárias

das cidades consideradas por eles como “boas de serviço”.

Nesses casos, a mudança do grupo doméstico foi precedida pela viagem

exploratória do trabalhador homem e dependeu do seu sucesso em “arrumar serviço” ou

ser fichado numa firma. Ainda que, em geral, seja uma viagem previamente direcionada

com, por exemplo, informações obtidas a respeito de determinado destino, outras vezes,

qualquer viagem ou mesmo qualquer passagem pode ser reconvertida em uma possível

mudança de todo o grupo doméstico, especialmente quando essa passagem do trabalhador

resultou no seu fichamento em uma firma158. Mas é preciso enfatizar que, mesmo

direcionada, o trabalhador não possuía condições de avaliar o sucesso ou não de sua

viagem ou passagem pela cidade e, menos ainda, em um primeiro momento, as condições

de deslocamento do restante do grupo159.

158 Sendo assim, ainda que escassos, a procura pelo uso dos serviços públicos dessas cidades foi

privilegiada, mesmo quando isso significava maior deslocamento da moradia anterior. O “tempo vago” de

uma consulta médica da esposa grávida, por exemplo, também era uma possibilidade para tentar ser fichado

no escritório de uma firma na cidade. 159 O deslocamento do grupo depende de condições estabelecidas apenas após o deslocamento do

trabalhador, sendo, portanto, o destino tão incerto quanto o sucesso ou não dessas viagens:

“[pesquisador] - Eles vêm em busca de algum emprego fixo ou é só temporário?

– Eles vêm pra tentar a sorte. Se der certo aqui, eles ficam. Vai mandando dinheiro, manda buscar a família,

se for pra ficar. E se for temporário, eles aceitam também. Eles não têm isso de veio pra ficar, ou veio pra

Page 139: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

139

Em grande parte, foi essa impossibilidade de definir o próximo destino que eles

resumiam na condição daquele – ou daqueles, no caso dos que estão em uma situação de

composição de grupo doméstico – que estavam, portanto, “no mundo”: a permanência ou

a mudança espacial estavam em função da circulação da força de trabalho do grupo. Para

eles, o destino era, portanto, o próprio deslocamento.

No capítulo anterior, citei um trabalhador de 52 anos que se auto-referenciava “no

mundo”, chamado Alfredo. No momento da pesquisa de campo ele estava em uma casa

de madeira (“casa de tábua”), em um lote improvisado para reassentar parte dos expulsos

de um grilo, com esposa, que casou em Tucumã, e três filhos. Ele explicava, em algumas

ocasiões, o que era estar no mundo: (...) “é sair de uma cidade pra outra, de um estado pro

outro”; “estar no mundo é assim... você sai de uma cidade pra outra, né? Sem destino, pra

caçar serviço. Aí ganhou o mundo, caçando serviço. É assim”. E resumia: “Eu ganhei o

mundo grande aí, rodei todo lugar, é assim...”; “você pode ficar a vida toda no mundo...

trabalhando...”160.

Uma vez bem-sucedido após a viagem, o trabalhador procura moradias de aluguel

ou moradias pelas quais não tenha que “pagar para morar” (como os lotes comprados ou

“tirados” nos grilos ou ocupações irregulares recentes) e os demais membros do grupo

também se deslocam em seguida. Pessoas tratadas como conhecidos e parentes já

estabelecidos na cidade em geral recebem aqueles que se deslocam para as primeiras

estadias, mesmo quando o último contato entre os mesmos tenha sido há muitos anos. A

busca pelo parente ou conhecido, nesse sentido, era realizada das mais diferentes formas:

procurando pelo nome nos “setores” de ocupação recente, de casa em casa, colocando

anúncios nas rádios locais, etc.

A imprevisibilidade, o caráter exploratório e as intempéries das primeiras viagens

ou meses de estadia foram indicadas pelos trabalhadores como motivo para o

deslocamento inicialmente solitário. Para eles, estar acompanhado de mulher e filhos

dificultaria o primeiro intento de “arrumar serviço”161. No caso dos filhos em idade

escolar, no entanto, o acesso e a transferência entre escolas também seriam um motivo de

voltar. Eles vêm sem saber. Querem saber que querem trabalhar. Se der certo, fica. Outras vezes, eles

chegam aqui [na CPT], trabalhou e o dinheiro não deu, eles querem só um dinheiro de voltar (...), porque

viu que não era tudo isso”. (Entrevista com agente da CPT, 23 anos, Tucumã/PA, 27/08/12). 160 Entrevista gravada com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12. 161 Por outro lado, o deslocamento de mulheres solitárias para viagens exploratórias deste tipo era

socialmente desaprovado ou relacionado à circulação de prostitutas. O deslocamento entre cidades à

procura de trabalho era papel eminentemente masculino. Não obtive informações que permitissem

confirmar que as mulheres em situação de prostituição circulassem em condição solitária ou em grupos

exclusivamente de mulheres.

Page 140: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

140

descompasso entre o tempo de deslocamento do homem trabalhador e do seu grupo

doméstico. Já o trabalho das mulheres, porém, acompanhava direta e imediatamente o

dos homens e não era um impeditivo para o deslocamento. Compreendia-se que uma

cidade “boa de serviço” também o seria para as mulheres.

Além dos homens, em quase todos os grupos domésticos havia também o

assalariamento das mulheres, ainda que precariamente, ou de forma entrecortada por

conta do trabalho no espaço reprodutivo, cuja atribuição lhes era praticamente

exclusiva162. Analisados de maneira separada, o trabalho das mulheres fora do âmbito

doméstico nestes grupos era relacionado à circulação do marido, à ausência ou sumiço

temporário (ou definitivo) sem o envio de dinheiro, e, sempre, a um complemento da

renda do núcleo familiar. Em termos gerais, Alfredo também explicou quais seriam os

respectivos papéis de um casal “no mundo”:

“[pesquisador:]

– E o que acontece? [quando o marido sai “no mundo” e não manda

dinheiro pra família]

[trabalhador:]

- A mulher não pode ficar lá sem comer né? Então, se ele não quer

manter, ela tem que se virar. Casar de novo, pra manter os filhos.

- Tem que casar de novo?

- Casa, trabalha.

- E tem como ganhar o mundo com a mulher também?

- Tem. Você vem primeiro, arruma serviço, aluga uma casa. Aí, se não

pode vir, manda dinheiro pra mulher vir. Aí vem. Vai embora os dois.

Vai assim.

- E assim vai? Se não der certo, vai de novo?

- Pra todo lugar... até arrumar um lugar pra sossegar” 163.

162 Nesse sentido, o trabalho doméstico das mulheres era um fator destacado pelos trabalhadores, homens

e mulheres. Já a objetivação desse trabalho em discurso, dependendo da situação, dada a circulação de

ideias a respeito dele, causava sua própria desnaturalização no mesmo plano em que era objetivado:

“[pesquisador:]

- e o que é melhor: ganhar o mundo com a mulher ou sozinho?

[trabalhador:]

- tudo é ruim. Mas se você estiver num lugar sossegado, não trabalhando, é melhor você arrumar uma

mulher (...). Estando só, você não tem divisão, tudo o que você tiver... teu filho está lá pra lavar. Você

chega, não tem o que comer, você vai fazer de comer...

[esposa que ouvia interrompe a conversa:]

- mas do jeito que você está falando aí, você não tem uma mulher. Tem é uma empregada!

[trabalhador continua, sem responder:]

- aí tem tudo, tudo... (...) aí adoecer, quem é que vai... né? (...) Aí, se adoecer, de noite, quem chama?

- então é melhor ganhar o mundo já acompanhado?

- acompanhado.”

(Entrevista gravada com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12). 163 Entrevista gravada com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12.

Page 141: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

141

Algumas mulheres tinham percursos com origem em pequenas propriedades

rurais ou alternância, como acompanhantes não remuneradas, nas fazendas. Nestes casos,

a presença “na rua” significava acesso a trabalhos remunerados e à renda individualizada

das mulheres, esposas e filhas, tendo especial centralidade o emprego doméstico ou

pequenas tarefas associadas. Nas cidades “boas de serviço”, haveria ainda outras opções,

no comércio local e em serviços como hotelaria e restaurantes, geralmente como

atendentes, camareiras, faxineiras ou cozinheiras.

Os percursos a seguir exemplificam o caráter do trabalho das mulheres nesses

grupos:

Dina tem 25 anos, nasceu em São Geraldo do Araguaia/PA. Pai era vaqueiro e, quando

ela tinha 15 anos, se mudou para Ourilândia, para o setor Aeroporto, porque aqui

conseguia mais “serviço”, junto com sua mãe e mais dez irmãos. Dina casou e saiu de

casa com 19 anos. Mudou várias vezes, sempre em casas alugadas. A casa em que estava

no momento era de um de seus irmãos, que deu pra Dina morar e não ter mais que pagar

aluguel. Moram na casa hoje: Dina, três filhos dela e um irmão, que está solteiro e

trabalha em uma serraria. Dina foi empregada doméstica em São Geraldo do

Araguaia/PA. Em Ourilândia, trabalhou como auxiliar de serviços gerais em um colégio

particular. Ficou seis meses e “pediu as contas” porque estava grávida e o serviço era

muito pesado. Em seguida, foi ajudante em dois restaurantes. Ficou um mês no primeiro

e cinco meses no segundo. Faz seis meses que está “parada”, não trabalha. O marido de

Dina é pedreiro em Parauapebas/PA, em uma firma que presta serviço para a Vale.

Começou como ajudante de pedreiro em Ourilândia, agora está como pedreiro. Ele já

estava em uma firma em Ourilândia como pedreiro, mas “pediu as contas” porque a

firma “ia embora” dali a dois meses. Um amigo indicou essa outra firma em

Parauapebas/PA. Por enquanto, ele está morando lá na casa de um “conhecido”.

(Baseado em entrevista com Dina, 25 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte,

26/08/12).

Fátima tem 36 anos, nasceu em Porto Franco/MA. Veio com dois anos para uma fazenda

de Ourilândia. O avô e avó que lhe “criaram” trabalharam nessa fazenda, desmatando

e plantando capim. Quando o dono vendeu a propriedade, comprou uma casa para eles

em Xinguara/PA, quando ela tinha aproximadamente 15 anos. Fátima casou com 20 anos

e veio para Ourilândia, onde o marido trabalhou como empregado em um supermercado.

Em seguida, foi para Redenção/PA, trabalhar em um frigorífico. Quando saiu, o marido

comprou uma moto e trabalhou como moto-taxi por cerca de dois anos. Quando saíram

de Redenção, venderam a moto e a casa que tinham e compraram uma terra em Santana

do Araguaia/PA, onde moravam seus cunhados. Plantavam arroz e vendiam leite e queijo

na cidade. O marido de Fátima trabalhava por diárias (capinava, roçava, colhia “para

Page 142: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

142

os outros”). Ficaram cerca de quatro anos. Depois, venderam a terra e vieram pra

Ourilândia, onde o marido já tinha “conhecidos”, comprou o lote e construiu a casa. Ele

trabalhou com diária. Era chamado por vizinhos e outros para “ganhar diária”. Em

seguida, foi para uma firma, como vigia. A firma, que prestava serviço para a W Torre

(empresa de construção civil, terceirizada da Vale), “foi para Marabá/PA” e ele não

quis ir. Voltou para as diárias de pedreiro. Ficou assim mais um ano até entrar na firma

Vision, como vigia, onde está agora. Sempre que esteve “na rua”, desde Xinguara/PA,

Fátima trabalhava como doméstica. Há cinco anos – e pela primeira vez – Fátima

trabalha como faxineira, em uma loja de móveis de Ourilândia. Ela trabalha “meio

período” e recebe meio salário. Ela pediu para ficar só meio período para “cuidar da

casa”. (Baseado em entrevista com Fátima, 36 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia

do Norte, 16/09/12)

A entrada de mulheres nas firmas era restrita a algumas funções específicas,

especialmente auxiliar de serviços gerais (limpeza). No caso delas, porém, mais do que a

experiência anterior, era a escolaridade que definia o encaminhamento daquelas que

buscavam os escritórios das firmas na cidade ou outros órgãos de recrutamento. Dados

sobre a totalidade dos homens e mulheres recrutados no conjunto das terceirizadas e

subcontratadas da MOP não foram disponibilizados, ou sequer existiam. Ainda assim, foi

possível fazer algumas aproximações indiretas como, por exemplo, através dos dados do

SINE.

O atendimento do posto do Sistema Nacional de Emprego (Sine), localizado na

Secretaria de Trabalho e Promoção Social da Prefeitura Municipal de Ourilândia do

Norte, registrou parcela dos encaminhamentos para as firmas no auge da fase de

construção da MOP. Nas planilhas dos trabalhadores inscritos e admitidos que foram

feitas entre novembro de 2007 e dezembro de 2009, na maioria das vezes constavam

nome, endereço, função, escolaridade e a firma em que teria sido contratado. Caso tivesse

sido apenas inscrito e não contratado no mês, esse último campo ficava em branco. É

possível observar que, no caso desses trabalhadores que procuraram o Sine, a escolaridade

dos trabalhadores encaminhados para as firmas variou desde analfabetos até o Ensino

Médio completo e não parece ter sido um critério impeditivo (talvez sequer fosse um

critério) para a maioria das vagas que foram assumidas, ao menos entre os homens. Salvo

em casos especiais em que é comum qualificação em curso específico e apresentação de

certificados (Técnicos em Segurança, em Planejamento, etc), o critério determinante

provavelmente foi a experiência em CTPS. Nesse sentido, praticamente todos os

trabalhadores que tinham o mínimo de especialização vieram “de fora”, em especial de

Page 143: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

143

cidades que receberam grandes projetos ou que também têm mineradoras, siderúrgicas,

portos ou indústrias pelas quais as mesmas firmas (ou outras concorrentes do ramo)

também já tinham passado no Brasil: Barcarena e Abaetetuba, Parauapebas, Paragominas,

Canaã dos Carajás, Tucuruí, Ipatinga, São Luís, Itabira, Serra, Volta Redonda, Macaé,

Niquelândia, além de outras cidades, principalmente nos estados do Pará, Maranhão,

Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro e Tocantins. E praticamente todos

foram contratados: mecânico montador, soldador, montador instalador, rigger,

caldeireiro, encanador, maçariqueiro, eletricista, topógrafo, instrumentista, nivelador,

pedreiro, meio oficial, técnicos em segurança do trabalho, planejamento, etc,

encarregados e mestres em geral. Os trabalhadores que declararam endereços de

Ourilândia do Norte ou Tucumã nem sempre foram contratados. E em sua quase

totalidade assumiram a função de ajudante (a que não requer qualquer experiência ou

escolaridade e é remunerada no nível mais baixo, em geral o salário mínimo vigente).

Apenas alguns foram contratados inicialmente como pedreiro, carpinteiro, apropriador,

vigia, motorista, almoxarife e auxiliar de serviços gerais. Já as mulheres foram

encaminhadas principalmente para a função de auxiliar de serviços gerais, zeladora e

auxiliar de cozinha. Alguns casos para cozinheira. Mas, no caso delas, o fator escolaridade

foi um critério definidor, por exemplo, para o encaminhamento para o cargo de auxiliar

administrativa/secretária, que exigia Ensino Médio completo (o que não impediu que

parte considerável de mulheres com essa escolaridade também fosse recrutada como

auxiliar de serviços gerais, provavelmente aceitando as vagas que eram oferecidas pelas

firmas no momento em que se apresentou no posto). Praticamente todas as mulheres

foram encaminhadas para essas funções (em especial, duas: auxiliar de serviços gerais e

auxiliar administrativa), com pouquíssimas exceções, como técnicas em segurança do

trabalho e de, ao menos, uma soldadora, que, no entanto, não tinha registro de endereço.

Mesmo quando se registrou alguma especialização, esses trabalhadores de Ourilândia do

Norte e Tucumã raramente foram encaminhados para as firmas em outras funções. Nesses

casos, ou a especialização não atendia às funções requeridas pelas firmas (mecânico de

motos, eletricista predial, balconista, recepcionista, vendedor, borracheiro, camareira,

professora, garçom, porteiro, frentista), ou, provavelmente por causa da experiência

anterior, ou talvez por mera preferência dos recrutadores, não foram fichados.

Dependendo dos arranjos e rearranjos realizados anteriormente e das condições

oferecidas na cidade “boa de serviço”, houve também o deslocamento de núcleos

familiares inteiros que se estabeleciam nessas cidades ao longo do período que podiam

Page 144: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

144

recorrer às diárias e empreitas164. No capítulo anterior, citei o percurso de Paulo, um

trabalhador que estava em Tucumã há três anos e que fazia empreitas de casas. Ele foi o

primeiro a vir para Ourilândia e Tucumã. Em seguida, vieram esposa e filhos, mas não

só. Como vizinhos, tinha a mãe, que morava com quatro netos dela (entre 10 e 15 anos

de idade) e quatro meios-irmãos de Paulo, sendo que uma era empregada doméstica na

cidade e os outros três, homens, todos diaristas. Além deles, em outra casa, também

morava uma irmã, casada, empregada doméstica. E, antes dele, já tinham se deslocado

para a cidade um conhecido que fez na cidade anterior (no momento, trabalhador de uma

firma da Vale) e uma irmã da esposa, casados e com seus respectivos grupos domésticos.

Todos moraram em um mesmo grilo e, depois, expulsos, foram realocados nos lotes do

novo bairro, Lago das Rosas. Na cidade em que estavam antes, Conceição do

Araguaia/PA, Paulo e o núcleo que o acompanhava trabalhavam por diárias e empreitas

principalmente no plantio e colheita de abacaxi e na construção civil165.

Tal como o de Paulo, o deslocamento de um núcleo familiar envolvia até três

gerações. Sua composição, no entanto, variou de um deslocamento para o outro,

dependendo dos arranjos feitos para a atividade em cada destino, dos rompimentos e

rearranjos feitos em cada origem, em especial, quando o deslocamento resultou também

em uma separação ou em uma nova união conjugal. O núcleo de Paulo, por exemplo,

formado em Tucumã, era composto apenas por parte dos filhos e netos da sua mãe. Outra

parte dos filhos e netos estaria dispersa em outros locais ou não se tinha mais informação.

Neste sentido, o rompimento ou perda de contatos entre parentes foi fato comum: em

praticamente todos os percursos havia irmãos ou irmãs que não se via há décadas, pais

haviam “sumido” no mundo, um ou outro filho ou filha não tinha mais notícia, “não tem

crédito de telefone”, “perdeu o chip” (número de telefone), “não sabe se está vivo”.

Para os homens, a presença em uma cidade “boa de serviço” permitiu acesso ou

retorno ao trabalho por diárias, uma alternativa frente ao assalariamento intermitente nas

164 Em decorrência dessa mobilidade espacial, a importância dos processos domésticos e da esfera da

domesticidade em geral é cada vez maior para esses grupos de trabalhadores sujeitos à alta circulação no

que se refere ao parentesco e a dinâmicas de familiarização e desfamiliarização, que devem ser analisadas

a partir do movimento. A análise também precisa ser metodologicamente cuidadosa para dar conta de

unidades diferenciadas em termos de morfologia social do deslocamento: grupo doméstico (grupo de

pessoas que compartilham a mesma unidade doméstica), núcleo familiar (grupos de pessoas com grau de

parentesco referenciado na noção de família), rede social de mobilidade (tal como definido no capítulo 1)

e unidade social de deslocamento (grupo que compõe um determinado deslocamento espacial feito em

conjunto), sendo que, transversalmente, em termos de relações sociais de circulação, essas unidades

também podem compor unidades sociais de trabalho ou unidades sociais de reprodução. 165 Entrevistas com Paulo, 37 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/09/12, e com Sônia, 58 anos, idem,

16/09/12.

Page 145: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

145

firmas, em circulações diárias-firma-diárias, tal como se verifica no percurso resumido

abaixo. A demissão de uma firma, nesses casos, implicava nova busca de diárias ou de

outros “serviços” então disponíveis (empresas locais, moto-taxi, “chapa”, motorista de

“gaiola”, lavador de carros, etc) até conseguir uma indicação para uma outra firma ou

enquanto se esperava um momento no qual uma nova firma recrutasse sem indicação, por

exemplo.

Juca nasceu em Araguaína/TO. O pai trabalhava “cavando poço”. A mãe era zeladora

da feira. Juca casou e saiu de casa com 18 anos. Em Araguaína, foi assalariado em um

depósito por um ano e meio. Veio pra Tucumã/PA quando tinha 22 anos junto com o

sogro e trabalhou fazendo cerca um uma fazenda. Trabalharam e moraram juntos na

mesma fazenda. Quando terminou o “serviço”, veio para a “rua”. Morou numa casa

dada pelo sogro e foi trabalhar um uma cerâmica, fazendo tijolos. Ficou 8 meses. Em

seguida, trabalhou como servente, recebendo diárias. Depois, também recebendo

diárias, mas como pedreiro, ficou entre 2 e 3 anos. Entrou em uma firma na área da Vale

(Cogelta), como pedreiro. Ficou 7 meses e saiu quando a firma “foi embora”. Voltou

para a “rua”, recebendo diárias. Entrou de novo em uma firma, como pedreiro, para

construir um frigorífico e ficou 7 meses. Voltou para a “rua”, por mais um ano. Voltou

a trabalhar em uma firma (Engefort), como pedreiro. Ficou 4 meses, até a firma também

“ir embora”. Ele entrou nas firmas quando teve indicação ou quando ela “está

chegando”, momento em que contrata sem indicação. A primeira que ele entrou só

pediram um teste (teste prático para pedreiro). Pediram para fazer parede, reboco, etc,

porque ele não tinha experiência em CTPS. Saiu da casa do sogro para morar de aluguel.

Entrou em uma “invasão” [“Morro dos macacos”, área da Ceplac], mas, quando entrou,

já estava “lotada”. Ainda assim, ele não comprou. Um amigo “tirou” dois lotes e deu

um para ele. Estava lá há dois anos, construiu um “barraco de tábua”, até vir para o

lote no Lago das Rosas, que foi “dado pelo prefeito”. Atualmente, está trabalhando na

“política”, dirigindo um carro de som de campanha para um candidato a vereador por

um salário mensal. Juca mora com esposa e 2 filhos da esposa, que não trabalha (fora).

(Baseado em entrevista com Juca, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/09/2012).

A circulação entre o mercado das diárias e as firmas era salientada pelos

trabalhadores no que se refere principalmente à remuneração. Na firma, frisavam, “tem

aquele certinho, mas é pouco”. A comparação com o salário das firmas só se equivalia ao

que recebiam nas diárias a partir do momento em que se trabalhava o máximo permitido

em horas-extra, incluindo sábados e domingos, em máxima intensidade. A entrada nas

firmas, portanto, tinha como diferencial apenas a regularidade (fator relativizado em uma

cidade “boa de serviço”, em que não era considerado difícil “arrumar serviço” por

diárias) e os benefícios oferecidos pela formalização, sendo que, dentre estes, os

Page 146: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

146

trabalhadores citavam apenas a existência do seguro-desemprego e, certos casos, da cesta

básica166. Os demais (férias, horas-extra, 13º salário, salário-família) não eram citados,

por não serem compreendidos fora do que eles designavam como “salário”, ou seja, do

que estaria dentro do “pouco” que recebiam nas firmas, em comparação com as diárias.

Tal como descrevi, a opção exclusiva pelas diárias dependia, no entanto, de

recrutamento pelos grupos responsáveis pelas empreitas e encerrava o risco de não

pagamento. E, por outro lado, a possibilidade de tomar diretamente as empreitas dependia

de uma rede de clientes perenes e da constituição de uma “turma” de diaristas ou sub-

empreiteiros que lhe garantisse uma renda maior que a que conseguiria com os salários

das firmas, o que os trabalhadores resumiam na ideia de construir “conhecimento” em um

determinado local. Alguns se deslocaram para a cidade e preferiram ficar como

“autônomos”, sem trabalhar nas firmas, outros, que nunca tinham trabalhado na

construção civil, entraram nas firmas como ajudantes, aprenderam a “profissão” e

optavam por não voltar mais porque, ao menos por um momento, possuíam os

conhecimentos necessários que lhes permitiam seguidas empreitas na cidade. Essa opção,

portanto, dependia de uma carreira na área, ou seja, de experiências adquiridas a partir da

passagem pelas firmas ou de um aprendizado iniciado nas cidades anteriores a partir das

diárias de servente. Ainda assim, em geral, tornar-se “autônomo” dependia de condições

específicas de constituição de conhecimento, além da carreira e do aprendizado prático,

que podem estar disponíveis apenas ocasionalmente167. Como, por exemplo, de um filho

de pequeno produtor rural que, na cidade anterior, deixou uma pequena oficina de

motocicletas para se deslocar para Ourilândia. Antes de conseguir “pegar empreitas”, ele

foi diarista ajudante por um ano, depois “profissional”, pedreiro, passou por três firmas

166 Pesquisas na construção civil em outras regiões também constataram que os salários de formais e

informais praticamente se equivalem, restando a diferença formais-informais apenas nos benefícios

(Cockell e Perticarrari, 2010). Este fato torna a construção civil formal geralmente menos atraente do que

quaisquer outras opções disponíveis para os trabalhadores. Recrutadores de empresas de construção civil

entrevistados em Ourilândia do Norte citavam que, dependendo da região em que se desenvolve uma obra,

os trabalhadores optam por outros trabalhos para obter uma renda maior do que teriam na construção civil:

“preferem vender cerveja com um isopor na praia do que trabalhar na construção civil”; “se tem lavoura,

quando chove, prefere cuidar da lavoura”; etc. 167 O sentido de “autônomo” se assemelha ao que era comumente encontrado em outros contextos da

construção civil, ou seja, não significa exatamente quem é informal, mas apenas quem assume empreitas

diretamente com o proprietário da obra, sem intermediários, podendo ou não recrutar ou subcontratar outros

sob sua autoridade para realizar o serviço; aquele que é “dono do próprio nariz” (Cockell e Perticarrari,

2010). Nesse sentido, em algumas ocasiões também me deparei com trabalhadores se referindo a pequenos

produtores rurais como “autônomos”, quer dizer, aquele que tem terra e que, para eles, “não tem horário”.

Haveria, portanto, um significado não exatamente atrelado a uma condição de ofício, mas a uma relação a

ser oportunamente verificada entre autonomia, controle autodisciplinado do horário de trabalho e ausência

de “patrão”.

Page 147: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

147

na área-Vale e uma obra particular. Só a partir disso ele constituiu o conhecimento

necessário para assumir diretamente as empreitas, sendo que, nesse caso, contava no

momento com as indicações de um tio que lhe repassava pequenas obras financiadas pela

prefeitura municipal168.

Por outro lado, o trabalho nas firmas se caracterizava por remunerações

necessariamente compostas sobre jornadas prolongadas e, dependendo da função,

intensificadas. Na construção civil – e, como Ribeiro (2008) demonstrou, especialmente

nas grandes obras –, mesmo quando há formalização do contrato de trabalho e um salário

mínimo fixo (dado, por exemplo, por Convenção Coletiva), a estipulação de metas e o

pagamento do adicional (“tarefas”) intensifica o ritmo de todos os ofícios, assim como

prolonga ao máximo a jornada de trabalho. A reestruturação produtiva dos grandes

projetos, inclusive, recrudesceu e formalizou essas formas de salário sob discursos de

modernização dos contratos e processos de trabalho. Nas últimas décadas, por exemplo,

o pagamento por “tarefa” foi incorporado nos processos de formalização dos contratos de

trabalho em empresas de construção civil que adotaram processos de reestruturação

produtiva, o que, aliás, é coerente com o que se preconiza nesses processos (salários

flexíveis, pagamento por produção, metas de “produtividade”, etc)169.

A jornada de trabalho nas terceirizadas da Vale era, no mínimo, de 11 horas

diárias, sem folgas170. Em uma entrevista feita por advogados de um escritório trabalhista

168 Entrevista com Nunes, 25 anos, Lago das Rosas, Tucumã, 23/09/2012. 169 Tomasi (2014) e Costa (2010), dentre outros, observaram a incorporação do pagamento por produção (a

“tarefa”) em uma grande empresa de construção civil. 170 Não entrevistei nem investiguei diretamente as condições de trabalho dos trabalhadores diretos da Vale,

mas, provavelmente, não seriam muito diferentes quanto à prática de prolongamentos indefinidos da

jornada, tal como já foi notado em outras unidades mais antigas da Vale, mesmo após a etapa de construção

das minas (ou seja, do período de “grande projeto”). De acordo com ativistas sindicais, a jornada de trabalho

dos trabalhadores diretos da Vale em Carajás seria em média de 12 a 14 horas/dia (Cf. “Os trabalhadores

nas minas vivem situação análoga à escravidão”, Brasil de Fato, 06/11/2014,

http://www.brasildefato.com.br/node/30427). Minayo (2004: 30), que realiza pesquisa com os

trabalhadores diretos da Vale de Itabira/MG desde 1980, levando em consideração as condições de trabalho,

considera por exemplo que: “Há nos tempos passados e continua a haver no presente, uma superexploração

da força de trabalho”. As minas, como Marini (2008a [1973]) frisou em sua leitura de O Capital, permitem

regimes de superexploração do trabalho próprios das indústrias extrativas: “Ahora bien, los tres

mecanismos identificados —la intensificación del trabajo, la prolongación de la jornada de trabajo y la

expropiación de parte del trabajo necesario para que el obrero reponga su fuerza de trabajo— configuran

un modo de producción fundado exclusivamente en la mayor explotación del trabajador, y no en el

desarrollo de su capacidad productiva. Esto es congruente con el bajo nivel de desarrollo de las fuerzas

productivas en la economía latinoamericana, pero también con los tipos de actividades que allí se realizan.

En efecto, más que en la industria fabril, donde un aumento de trabajo implica por lo menos un mayor gasto

de materias primas, en la industria extractiva y en la agricultura el efecto del aumento de trabajo sobre los

elementos del capital constante son mucho menos sensibles, siendo posible, por la simple acción del hombre

sobre la naturaleza, incrementar la riqueza producida sin un capital adicional. [em nota: Cf. Marx, El

Capital, t. I, cap. XXII, 4, pp. 508-509]. Se entiende que en estas circunstancias, la actividad productiva se

basa sobre todo en el uso extensivo e intensivo de la fuerza de trabajo: esto permite bajar la composición-

Page 148: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

148

de Tucumã em 13/11/2008, um trabalhador da construção civil que reclamava dos

cálculos rescisórios de uma firma relatou sua jornada, que seria de cerca de 11 horas de

segunda-feira a sexta-feira e de cerca de 8 horas nos sábados e domingos:

“FATOS: O reclamante foi contratado pela reclamada em 12.02.2008

para exercer a função de ajudante, promovido posteriormente para

montador de estruturas, mediante salário base no valor de R$ 402,60,

com reajustes posteriores conforme CTPS, sendo que o último salário

foi no valor de R$ 847,00. Foi dispensado no dia 13.10.2008, sem justo

motivo e sem prévio aviso. (...)

Jornada de trabalho: o reclamante embarcava em ônibus fornecido pela

reclamada por volta de 06h10/6h15min em Ourilândia do Norte,

chegando ao site da mineradora após 20/25 minutos de trajeto. Ao

chegar, se dirigia ao refeitório, onde tomava o café da manhã, gastando

entre 15 e 30 minutos para tomá-lo, uma vez que tinha que pegar a fila,

e se esta estivesse grande, demoraria a fazer a refeição referida. Após o

café se dirigia para o local onde passaria o cartão. O cartão era batido

sempre por volta de 07h30min. Depois fazia o DDS e seguia para suas

atividades diárias. O horário de intervalo para almoço e descanso era de

média de 01 hora, só sendo maior que isso quando a fila para o almoço

estivesse muito grande. O reclamante encerrava suas atividades

comumente às 19h30min, sendo que apenas eventualmente encerrava

às 17h30min. Após o encerramento das atividades ia aguardar o ônibus

para retornar a Ourilândia, aonde chegava por volta de 20h05/20h10,

em virtude da demora dos ônibus (tomava o ônibus por volta de

19h45min/19h50min). De qualquer forma, gastava entre 20min/25min

de trajeto . Esta jornada era cumprida de 2ª a 6ª feira, sendo que aos

sábados o reclamante encerrava suas atividades por volta das

16h30min, chegando a Ourilândia 20/25 minutos depois de tomar o

ônibus (havia uma espera de 15 a 20 minutos, sempre). O reclamante

laborava ainda aos domingos, tomando o ônibus no mesmo horário dos

demais dias e encerrando suas atividades às 16:30, com trajeto de 20/25

minutos até Ourilândia, e espera de ônibus como nos demais dias. Aos

domingos o reclamante gozava de uma hora para almoço e descanso.”

(grifos dos autores)171.

valor del capital, lo que, aunado a la intensificación del grado de explotación del trabajo, hace que se eleven

simultáneamente las cuotas de plusvalía y de ganancia.”. Esse mecanismo, tal como analisei no capítulo

anterior, também pode e, de fato, ocorre concomitantemente com o aumento da força produtiva e com o

aumento da composição orgânica do capital atualmente na indústria transnacional da mineração. Uma

dinâmica que, aliás, Marini (2008b) também frisou no mesmo texto citado, quando analisa a relação entre

aumento da produtividade, prolongamento da jornada e intensificação do trabalho. 171 Entrevista com ex-trabalhador da Construtora Icec Ltda, Tucumã, 13/11/2008. Arquivo digital de um

Escritório de Advocacia, Tucumã/PA.

Page 149: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

149

Nas firmas subcontratadas, como era o caso dos motoristas das firmas prestadoras

de serviço para as terceirizadas, a jornada era prolongada ao limite, como se observa em

uma entrevista com um motorista em dezembro de 2009172:

“FATOS: Admitido em 15.12.2008 para trabalhar como motorista de

ônibus, mediante pagamento de salário base no valor de R$ 726,00

(embora o salário convencional fosse à época no valor de R$ 1.050,73,

reajustado em maio/09 para R$ 1.111,98).

Laborou até o dia 19.05.2009, quando foi dispensado com pagamento

de aviso prévio indenizado.

Jornada de trabalho: por volta de 5h10min o reclamante embarcava em

carro da reclamada para ir até a garagem, em Ourilândia do Norte

(gastava em torno de 20 minutos de trajeto). Ao chegar à garagem, por

volta de 5h30min o reclamante batia o ponto e iniciava sua jornada de

trabalho fazendo os ajustes no veículo e saindo para apanhar o pessoal

da administração da SMI comumente por volta de 5h40/, e

transportando-os para o site da mineradora Onça Puma. Por volta de

6h40min chegava ao site. Depois do café levava os trabalhadores do

grupo CIL/SMI à área de serviço e ficava à disposição, realizando

transporte dentro e fora do site. Depois do transporte de todos os

trabalhadores, por ocasião do almoço, o reclamante tinha média de 01

hora de intervalo para almoço e descanso e ficava novamente à

disposição para transportes dentro e fora do site. Os deslocamentos

internos se davam em ocasião de eventos climáticos, mudança de

trabalhares de área, encerramento de jornada antecipado e qualquer

outro que se fizesse necessário. No final do dia o reclamante deixava o

pátio da mineradora desde às 17h30min, chegando a Ourilândia do

Norte comumente às 18h30min, porém podia ocorrer de chegar mais

cedo ou mais tarde. Após isto o reclamante retornava para o site e ou

ficava aguardando o pessoal que encerrava a jornada às 22h00min

(quando então encerrava sua jornada às 23h00min) ou efetuava o

transporte dos trabalhadores em lazer, encerrando a jornada por volta

de 23h30min. Aos sábados o encerramento em média se dava à

1h30min. Os feriados seguiam horário dos dias normais. Laborou

feriados (todos). Laborava vários domingos por mês (média de 03 por

mês): começava no mesmo horário dos demais dias e concluía

geralmente entre 22h00min e 23h00min (média de 22h30min)”173.

172 Recentemente, nas minas da Vale de Itabirito/MG foram denunciadas jornadas de trabalho excessivas

entre trabalhadores motoristas terceirizados. No caso, a empresa terceirizada oferecia prêmios para

estimular a extensão da jornada, como bônus, motocicleta e aparelho de televisão (“Vale é autuada por

manter pessoas em condição análoga à de escravo”, http://www.ligaoperaria.org.br/1/?p=8064 em

19/03/2015). Na MOP, não tive informações de oferecimento de premiações para os trabalhadores. As

jornadas prolongadas eram obrigatoriamente cobradas de todos os trabalhadores dessas empresas. 173 Entrevista com ex-trabalhador da Izamar Bady Comercial e Mercantil Ltda., Tucumã, 10/12/2009.

Arquivo digital de um Escritório de Advocacia, Tucumã/PA.

Page 150: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

150

Entretanto, a passagem dos trabalhadores pelas atividades subsidiárias da Vale

não significava o trabalho em uma firma apenas, mas sucessivos recrutamentos e

demissões em seguidas firmas, em especial quando permaneciam na cidade e se

submetiam a novas seleções. Isso ocorria com todos os trabalhadores terceirizados,

mesmo aqueles que permaneceram na cidade apenas ao longo do curto período de

construção da MOP174. Este tipo de organização do trabalho condicionou uma trajetória

de circulação firma-firma da força de trabalho, uma das resultantes da circulação das

firmas.

2.6.3) firma-firma

Tal como descrito no capítulo anterior, todo o Sistema Norte da Vale já nasceu

sob um “modelo japonês”, caracterizado sobretudo pelas terceirizações, que foram,

inclusive, ampliadas após a privatização da empresa nas últimas décadas. Sendo assim,

todas as etapas de construção da MOP/Vale foram realizadas por dezenas de empresas

terceirizadas, as firmas, que se instalavam na cidade concomitantemente, deslocando

trabalhadores de outras obras e recrutando diretamente nos seus improvisados escritórios

locais. A operação da mina e da usina também era caracterizada pela subcontratação e

terceirização de uma série de atividades. Dada a relação entre as empresas principal-

terceiras ou entre terceiras, o período de contrato entre empresas era curto, assim como,

portanto, o contrato firma-trabalhadores.

174 No campo dos grandes projetos, a circulação entre firmas foi aparentemente uma constante. Porém,

como normalmente não foi objeto de maior atenção por parte dos pesquisadores, nem sempre há melhores

informações a respeito, salvo quando constatada a existência de um fluxo projeto-projeto, como é o caso

daqueles que a literatura que trata da construção de hidrelétricas denomina barrageiros, por exemplo. Isso,

porém, não quer dizer que tal circulação não tenha sido notada, como nas obras de Barcarena/PA: “A

experiência, que vai permitir o acesso a empregos melhores, é acumulada nesse processo através da

mobilidade entre projetos, em primeiro lugar, e de empreiteira para empreiteira no interior do mesmo

projeto, em segundo. (...) A mobilidade dos trabalhadores no interior do projeto também é intensa, em

virtude da própria fragmentação do trabalho, que ocorre em etapas sucessivas e diferenciadas, por um lado,

e por outro, pela concentração de um número muito grande de empresas em uma área delimitada, o que

permite o acesso rápido aos vários empregos disponíveis para trabalhadores integrados no mercado de

trabalho. Diversos trabalhadores relatam essa passagem de uma empresa para outra: ‘Primeiro emprego

meu foi em 83 na Paranapanema. Depois passei para auxiliar de liberação de concreto. Aí da Paranapanema

eu saí e entrei na Tenenge-Techint, consórcio que estava construindo a Alunorte. Lá eu trabalhei de

apropriador. Fazia apropriação de serviços. Depois saí de lá. Aí dessa época fiquei um pouco desempregado.

Em Belém entrei na Terraplena, uma empreiteira. Isso já foi em 87. Eu saí da Tenenge-Techint em 86.

Quando começou a segunda fase, entrei na SADE. A primeira vez trabalhei 3 meses só porque o chefe

chegou comigo, falou que era pra eu sair e voltar com 90 dias que era pra ele me fichar de novo. Com

menos de 90 dias ele foi lá em casa me chamar e eu fichei para uma posição melhor. Eu era apropriador,

fichei de auxiliar administrativo’ (Terêncio)” (Antonaz, 1995: 56-57).

Page 151: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

151

As terceirizações vêm sendo sistematicamente analisadas no âmbito dos estudos

do trabalho nas últimas décadas, em especial, como uma forma de redução de custos para

as empresas através da redução de salários e da burla de direitos trabalhistas175. Interessa

aqui enfatizar apenas algumas questões. A principal delas se refere à utilização do

mecanismo das terceirizações no intuito de promover contratações “just in time”, ou seja,

de reduzir a compra e o uso de força de trabalho de acordo com cada etapa específica a

ser realizada no grande projeto. Não raro, esse procedimento significa a contratação de

empresas distintas (ou a recontratação das mesmas) para cada atividade a ser

desempenhada. Nesse sentido, a Vale contratou firmas diferentes para diferentes etapas

da construção da MOP e das obras anexas como, por exemplo, a construção das casas

para trabalhadores diretos de cargos superiores (instalação do canteiro, fundação,

elevação/estrutura, acabamento), sendo recrutados e dispensados em seguida os

trabalhadores terceirizados, de acordo com o que eles denominavam a “chegada” e a

“saída” das firmas. O mecanismo dos contratos entre empresas possibilita também a não

renovação ou até mesmo sua rescisão, sempre que a Vale/empresa principal alega quebra

de termos contratuais por parte da contratada, atraso na prestação dos serviços, alto

número de “acidentes CPT” (isto é, “com perda de tempo”), existência de greve ou

rebelião dos trabalhadores, melhor concorrência de outra, etc.

Além das terceirizações, outros procedimentos próprios da reestruturação

produtiva foram inseridos no processo de trabalho a fim de permitir grandes projetos mais

“enxutos” e de mais rápida construção. No caso das grandes obras da mineração, em que

as etapas de construção civil são executadas por grandes empresas de engenharia e

construção civil, também foram introduzidas transformações no processo produtivo e

incorporados elementos característicos da reestruturação produtiva, expressos, por

exemplo, no que os gestores dessas empresas denominam “fast construction” (Villela,

2007; 2008)176. Por exemplo: a firma que construía a segunda fase da vila residencial

175 No último capítulo eu discuto e apresento referências específicas. 176 Segundo Villela (2008), a “fast construction” seria caracterizada por: “1º) Produção Enxuta (“Lean

Production”) – Construção Enxuta (“Lean Construction”); 2º) Programas de Qualidade Total; 3º)

Racionalização dos Processos de Trabalho em Escritório; 4º) Logística e Racionalização do Canteiro de

Obras; 5º) Horizontalização das Empresas; 6º) Organizações em Constante Aprendizagem (“Learning

Organizations”); 7º) Gestão Participativa; 8º) Políticas de Engajamento e Fixação dos Trabalhadores à

Empresa; 9º) Terceirizações (“Outsourcing”); e 10º) Novas Estratégias Organizacionais.”. No que se refere

à terceirização, uma pesquisa que acompanhou o histórico de sua implantação em uma empresa do setor

demonstrou que ela resultou em três fatores: deterioração na política salarial (até os anos 1990 a empresa

oferecia salários 30% acima do piso definido em Acordo Coletivo e dez anos depois oferecia o piso exato);

desemprego (diminuição em cerca de 70% dos empregos, com a manutenção do mesmo número de obras)

Page 152: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

152

destinada a trabalhadores da Vale em Ourilândia no momento do trabalho de campo,

recrutando alguns moradores do Lago das Rosas, era, justamente, uma das que adotou

esse modelo: “Além de utilizar o regime Turn-key e Built to Suit (“customização”), a

empresa Walter Torre Jr. saiu a campo para pesquisar novos sistemas construtivos tipo

Fast Construction. Em 1993, importou uma tecnologia de construção mundialmente

conhecida como Tilt up” (Villela, 2007: 332). A Tilt up propicia maior rapidez ao

processo construtivo. Talvez por isso essa era uma das firmas que já estava “saindo” e os

trabalhadores que lá estavam – moradores de ocupações recentes da cidade que tinham

deslocado seus grupos domésticos – cumpriam aviso prévio177 e tentavam “arrumar uma

indicação” para a contratação na firma que assumiria a próxima fase da obra.

Outra questão a ser ressaltada se refere à cadeia de subcontratações, a partir da

empresa principal, no caso, a Vale. Em grandes projetos como a MOP, médias, pequenas

e microempresas eram subcontratadas indiretas da Vale, isto é, contratadas pelas

terceirizadas (“quarteirizadas” em diante). Tal como se constata em outros contextos no

setor da construção civil, a existência dessas empresas menores, terceirizadas indiretas,

quase sempre se restringe ao tempo da fase do projeto que se requer a utilização de certa

força de trabalho subcontratada por ela (Tomasi, 2014). Como é sabido, essa cadeia

propicia redução de custos para as empresas contratantes, uma vez que se reduzem

salários e outros direitos a cada degrau de subcontratação. As empresas principais

terceirizam os serviços a menor custo e alegam fiscalizar o cumprimento das garantias

trabalhistas mínimas exigidas por lei. Por outro lado, as contratadas descumprem

sistematicamente tais garantias para vencer as concorrências dos contratos, sendo

substituídas quando necessário por outras novas ou, quando menores, abrindo falência no

fim de um contrato enquanto outras são formadas especificamente para os seguintes.

Neste sentido, as condições de trabalho não eram precarizadas apenas nas subcontratadas

das terceirizadas, embora nestas houvesse um descumprimento claramente aberto de uma

série de prerrogativas. A intensa circulação das firmas, tanto na MOP quanto em outras

obras da Vale e de outras empresas contratantes, garantia a permanência no mercado das

maiores terceirizadas, como as grandes empresas de construção civil, mesmo nos casos

e; redução de projetos de formação profissional (quase extinção dos projetos, como alfabetização e outros)

(Caetano, 2001, apud Villela, 2007: 205-6). 177 “Aviso prévio” é a expressão utilizada na legislação trabalhista brasileira para se referir à obrigatoriedade

de comunicação da rescisão do contrato de trabalho formal por uma das partes envolvidas. Pode ser

“indenizado” (quem solicita rescisão paga imediatamente o período legalmente determinado) ou

“trabalhado” (quando o trabalhador permanece trabalhando até o término do período).

Page 153: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

153

supostamente imprevistos de quebra de contrato por irregularidade trabalhista, grande

número de “acidentes CPT”, sublevação operária, etc. Sempre que, por algum motivo, os

custos em um dos contratos aumentam, essas empresas circulam e outras são

recontratadas sem necessariamente mudarem as condições de trabalho da anterior. Na

rodada seguinte, mais uma vez, a empresa principal procura os serviços a menor custo e

a empresa concorrente, contratada, oferece-os de forma a obter maiores lucros, ou seja,

com reduções de custo que fazem com que as condições de trabalho sejam semelhantes à

anterior. A circulação das firmas, nesse sentido, era acionada pelos mais diversos motivos

pelos operadores das empresas e se configurava ao mesmo tempo causa e efeito das

condições de trabalho na MOP, influenciando nível salarial, jornada de trabalho, tipos de

salário, recrutamento, etc. Até mesmo o uso de equipamentos de proteção poderia motivar

circulação das firmas, como relatado pelo trabalhador na entrevista citada a seguir. Como

outros, o acidente relatado por ele era, portanto, mais um que “pegava” para os

trabalhadores178:

“[trabalhador:]

– Quando tem acidente, é pesado... tem uns 15 dias que um rapaz furou

o pé em uns pregos (...) até uns dias desses ele ainda estava caminhando

pro escritório de segurança, pra segurança-Vale, lá dentro, pra dar

entrevista, pra fazer tudo certinho... é problema. Eles caem em cima,

tem que saber. Às vezes coloca a hora: a hora que o rapaz furou no

prego, a hora que o socorro chegou... (...) tudo é especificado, colocado

certinho e o pessoal vai analisar aquilo ali. Junta o cara que furou o pé,

o encarregado e, se tiver, algumas testemunhas pra fazer essa entrevista

pra ver esse tipo de ação... é problema!

[pesquisador:]

– E aí? Pegou pra ele?

– Não pegou porque pegou pra empresa e não chegou a prejudicar muito

a gente. Porque as botas que a gente trabalha tinha que ter uma palmilha

de aço e era de plástico. Se caso a empresa tivesse fornecido essas botas,

o rapaz não teria furado o pé. Então pegou um pouquinho pro lado da

empresa, né? Faltou nessa parte aí. (...) E aí ficou pra empresa localizar

as botas com um prazo determinado...

178 As apurações e fiscalizações dos acidentes de trabalho normalmente eram vistas pelos trabalhadores

como formas de culpabilização das vítimas e não como punições às empresas ou seus superiores. “É sempre

assim”, disse para mim um trabalhador terceirizado da Vale a respeito de um caso de uma morte na área-

Vale em que o andaime caiu com dois trabalhadores, matando um e ferindo gravemente o outro, que, ao

final da perícia, foram apontados como culpados do acidente. “Os encarregados e supervisores querem

livrar a barra deles e colocam a culpa nos operários! Como? Por que então eles liberaram o andaime, se

estava errado? ” (entrevista com João, 27 anos, Lago das Rosas, Tucumã, 24/09/12). Ele se referia ao

controle de operações e inspeções que devem ser realizadas antes e após cada uma das atividades no canteiro

de obras, regulamentados por documentos específicos.

Page 154: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

154

– A Vale cobrou da empresa?

– Cobra. Ela cobra da empresa. E aí foi agora que eles pediram, mas aí

parece que a empresa não deu... não chegou no eixo lá mais a Vale, né?

Essa empresa que a gente está trabalhando está se deslocando da área-

Vale, vai partir pra outro lado agora...

– Vai partir pra onde?

– Ela tem obra em Parauapebas, tem obra aqui em Araguaína, tem obra

em São Paulo, tem obra fora do Brasil... e aí eles estão saindo e a gente

está só aguardando a outra empresa chegar. A gente está trabalhando

aqui de aviso [prévio] até o dia 4 e a partir de lá é só acerto e a empresa

está saindo...

– E aí? Entra na outra? Como é que é?

– É... a gente está com essa fiscalização que pegou pra gente lá... a gente

está tentando indicar gente pra outra empresa, né? Manter as pessoas...

Eles ficam lá dentro, né? Eles sabem as pessoas que trabalham, o cara

que não faz nada, o cara que dá produção pra empresa, o cara que se

liga muito na segurança, tudo, eles estão lá pra ver isso aí, né? Uma das

pessoas já passou pra nós lá que a Vale pediu pra que aproveitasse pelo

menos 50% a 40% do pessoal que estava na obra, né? Pedido-Vale, né?

Que ela prefere mais o pessoal do município aqui, tem muita gente que

vem de fora aí, mas também pega muita gente daqui, que ela prefere

mais o pessoal daqui da cidade, de Tucumã e Ourilândia, né?”179.

Nestas condições, além da busca pela redução de custos e salários, prima-se

também – e sobretudo – por uma gestão flexível da força de trabalho, que deve ser

recrutada e dispensada sob medida exata e “enxuta” ao longo do processo produtivo. Uma

gestão deste tipo se caracteriza principalmente pela plena demissibilidade dos

trabalhadores, fator aprimorado por meio das terceirizações, mas que não se restringia

apenas às firmas, como proponho no capítulo 4. As gerências das firmas, no entanto,

evitavam acintosamente qualquer elemento que impedisse a rápida substituição ou

demissão dos trabalhadores ao longo ou ao fim do contrato com as empresas contratantes.

Evitavam, por exemplo, emitir o CAT do lesionado junto ao INSS, que, uma vez afastado

por doença ocupacional, poderia adquirir estabilidade para além do prazo do contrato.

Uma entrevista prévia para uma ação judicial trabalhista realizada em julho de 2008

atestou um caso assim:

“FATOS: Admitido em 18.07.2007 para trabalhar com auxiliar de

serviços gerais, mediante salário base de R$ 2,04 por hora (R$ 451,00

mensais), posteriormente, em 01.11.07, reajustado para R$ 2,24 por

hora (R$ 492,80 por mês). Trabalhou até o dia 30.06.2008, tendo

179 Entrevista com Mário, 41 anos, Lago das Rosas, Tucumã, 17/09/2012.

Page 155: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

155

recebido aviso prévio em 01.07.08, quando foi dispensado

injustamente, sem cumprimento do aviso prévio. Trabalhava

normalmente carregando peso, pois exercia suas atividades fazendo

descarregamento e armazenagem de materiais (ferro, metal, etc). No

final do mês de setembro/07 o reclamante passou a sentir dores na

coluna. Após fazer exames, em início de outubro/07, teve diagnóstico

de que estava com desvio na coluna. Recebeu atestados médicos para

afastamento do trabalho, porém os mesmos se encontram em poder da

reclamada. O reclamante foi afastado da função que exercia e passou a

laborar no escritório, executando serviços mais leves. Houve indicação

médica para cirurgia, porém a reclamada não acatou à sugestão. Em

janeiro/08 fez TC da coluna em Marabá, que constatou as doenças

relacionadas nos laudos em anexo, confirmados pelo TC realizado em

Redenção. O reclamante não recebeu CAT, não tendo podido recorrer

ao INSS para requerer benefício. A reclamada tinha pleno

conhecimento de que o reclamante encontrava-se doente, inclusive

porque fora ela quem o levou a Marabá e Redenção para exames

médicos, aliado ao fato de que encontrava-se em função diversa da sua

justamente por causa da doença. Atualmente não consegue mais

trabalhar em serviços pesados em razão das dores na coluna. Em que

pese a doença do reclamante, recebeu Atestado Demissional como se

estivesse apto para o trabalho. O reclamante é nascido em 13.03.1986

(tinha 22 anos)”180.

Contudo, em geral, a plena demissibilidade era obtida justamente por meio da

demissão. Caso das trabalhadoras grávidas e de outros trabalhadores que, por algum

dispositivo legal, poderiam obter estabilidade:

“A reclamante foi admitida pela reclamada no dia 01.09.2009, para

exercer a função de oficial de serviços gerais, mediante pagamento de

salário base no valor de R$ 500,00 mensais. Foi abrupta e injustamente

despedida no dia 09.11.09, não obstante se encontrar grávida, conforme

faz prova o exame de ultra sonografia gestacional obstétrica em

anexo”181.

A circulação das firmas significava a demissão e a possibilidade dos trabalhadores

não serem recrutados pela firma seguinte, uma vez submetidos a uma nova seleção. Neste

sentido, as “saídas” e as “chegadas” das firmas eram situações-eventos que concentravam

180 Entrevista realizada em Tucumã, em 16/07/2008, com um ex-trabalhador da empresa Emterpel Ltda.

(terceirizada da Vale). Arquivo digital de um Escritório de Advocacia, Tucumã. 181 Reclamatória Trabalhista na Vara do Trabalho de Xinguara/PA contra as empresas Vale S/A e Refeições

Puras Rid Ltda., Tucumã, 25/01/2010. Arquivo digital de um Escritório de Advocacia, Tucumã.

Page 156: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

156

as circulações firma-firma e que permitiam acompanhar o processo a partir de algumas

de suas principais agências. Acompanhei uma dessas “chegadas”.

A nova empresa tomou como sede inicial um hotel em Ourilândia do Norte e, em

seguida, uma casa alugada na cidade. Nela, instalavam os escritórios e atendiam os

trabalhadores que se apresentavam buscando ser fichados. Sua contratação seria para uma

nova fase da construção das casas da vila residencial para trabalhadores diretos da Vale e

ela não ofereceria alojamentos, buscando e transportando os trabalhadores nos bairros em

que já estivessem instalados ou que viessem a se instalar na cidade. Os recrutadores, no

entanto, não contrataram aqueles que não cumpriram o aviso prévio na firma anterior

trabalhando, ou que, como me informou um delegado sindical local, teriam se “recusado”

a trabalhar (provavelmente, seu planejamento previra contar com o trabalho

informalmente obrigatório no próximo aviso prévio também, ao fim do contrato com a

Vale). O mesmo delegado sindical informava ainda que a empresa anterior demitira 600

trabalhadores, sendo que apenas 170 ou 180 teriam mais do que um ano de contrato (e,

portanto, apenas estes teriam que homologar a rescisão de contrato de trabalho na

presença de representação sindical)182. Para isso, ele levaria “os carimbos” e faria as

homologações na própria empresa.

Os trabalhadores “operacionais” foram contratados no escritório local da firma,

isto é, de acordo com a classificação das empresas de construção civil, os ajudantes e

oficiais (profissionais). Estas são funções por vezes denominadas “volantes” ou

“tarefeiras” pelos gestores das empresas – funções em que são recrutados trabalhadores a

cada novo empreendimento, em cada local para o qual as firmas se desloquem. Segundo

os gerentes dessas empresas, parte dos outros quadros, como os técnicos, seria necessário

“trazer de fora” ou recrutar em outras empresas do ramo, contratados, por exemplo,

através de currículos enviados para o site da empresa. Já os denominados “estratégicos”,

ela desloca de outras obras em andamento (engenheiros, médicos, mestre de obras, etc)183.

No entanto, como indicarei adiante, dependendo da região em que desenvolve a obra,

certos quadros tidos como não-permanentes, “operacionais”, também podem ser

deslocados de uma obra para outra, especialmente quando a empresa não prevê o

182 De acordo com a legislação atual, quando o contrato de trabalho tem mais do que um ano de trabalho,

sua rescisão precisa ser homologada, isto é, assinada por um representante do Sindicato ou por uma

autoridade do MTE. 183 Esta distinção está presente nas formas de pagamento. Funções como ajudante, servente, carpinteiro,

pedreiro, ladrilheiro, etc, são contratadas como horistas porque seriam rotativas, com contratação média de

seis meses, ao contrário do quadro permanente, mensalista, como engenheiros, encarregados, mestres,

almoxarifes, etc.

Page 157: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

157

recrutamento de um número adequado de profissionais já formados para o início dos

trabalhos. Contudo, essas empresas vêm aprimorando técnicas produtivas que permitem

pouco depender de profissionais (pedreiros, carpinteiros, montadores, etc). Visam, nesse

sentido, aproveitar o máximo possível ou formar o mais rapidamente possível esses

profissionais no local da obra a partir do recrutamento de ajudantes, ou seja, de

trabalhadores que podem estar sendo fichados pela primeira vez e não têm ainda

experiência prática na função, tal como ocorre em condições de grandes projetos. As

empresas da construção civil pesada foram as que primeiro introduziram uma série de

processos de racionalização da produção no ramo. Alguns deles só chegariam aos demais

subsetores da construção civil a partir dos anos 1980 (Farah, 1996, apud Costa, 2010)

Em geral, a contratação prioritariamente para a função de ajudante e a formação

de profissionais ao longo da obra atendia também a outras funções, como intensificação

do trabalho, redução de custos e disciplinamento da força de trabalho. Certos

trabalhadores, mesmo com comprovada experiência na função como profissional eram

contratados como ajudantes e assim permaneciam por longos períodos. Em outras grandes

obras, além dessa prática, também foi relatado recentemente a contratação de

profissionais experientes como aprendizes, o que significava pagamento de salário abaixo

do piso da categoria184. No Pará, o piso da categoria, pago ao ajudante, era o próprio

salário mínimo vigente no país.

As formas habituais de ascensão por experiência, boa conduta e confiança pessoal

dos superiores descritas no setor da construção civil eram geridas de acordo com a maior

ou menor necessidade de ajudantes, profissionais ou encarregados em cada fase da obra,

de cada empresa e da facilidade de recrutamento ou não no momento. Dependendo dessas

condições, podia não haver qualquer ascensão ao longo de todo o período na firma, apesar

dos encarregados e quadros superiores dessas empresas difundirem a informação de que

haveria “classificação” em média após três meses de trabalho como ajudante185. Havia

184 Caso das grandes obras em Pernambuco e possíveis outros estados: “O piso salarial praticado estava

abaixo do da categoria metalúrgica em Pernambuco (R$ 650), o que era permitido por meio de um artifício

através do qual a empresa contratava a todos como aprendizes, sob o argumento de que ninguém tinha

experiência em indústria naval. Dessa forma, soldadores e caldeireiros “que podiam ter dez, vinte anos de

função, tinham que passar pela escola do Estaleiro”. (Queiroz, 2014: 120). 185 A não ascensão também é uma trajetória comum no setor da construção civil em geral (Cockell, 2008).

A informação, entretanto, como observado em outros contextos da construção civil, disciplina e incentiva

a intensificação do trabalho. Isso se verifica no discurso de um trabalhador (marceneiro na cidade anterior)

que foi recrutado como ajudante, e que, só depois, atendendo a necessidade do quadro superior, foi

classificado para carpinteiro:

“[trabalhador:]

Page 158: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

158

ainda o direito de baixada ou folga de campo, que, como frisei no início desse capítulo,

era prática comum reduzir custos contratando o máximo de trabalhadores na própria

cidade. Além de declarar endereço em outra cidade, para ter esse direito, o trabalhador

também necessitava, primeiro, ser classificado como profissional, pois ele não era

previsto para ajudantes.

Ainda assim, em geral, a baixada era atribuída a uma convenção apenas formal.

Nas grandes obras, o direito de baixada não chega a ser usufruído, pois, mesmo quando

não é simplesmente ignorado pelas empresas, parcela dos trabalhadores não completaria

o período mínimo de contrato. Na greve de abril de 2013 nas obras do Consórcio

Construtor da UHE Belo Monte, por exemplo, representantes dos trabalhadores

organizados numa Comissão de Base vinculada à Central Sindical e Popular Conlutas se

reuniram com membros do MPT e teriam denunciado que não teriam acesso à baixada

devido à alta rotatividade: “Ainda de acordo com o MPT também é reivindicada pelos

operários a destituição do SINTRAPAV. Segundo os representantes, o acordo coletivo

vigente, assinado pelo sindicato, não é o mesmo aprovado em assembleia. ‘Os acordos

coletivos são manobrados’, disseram ao órgão, acrescentando que há uma rotatividade

muito grande nos canteiros, o que faz com que dificilmente um trabalhador chegue a seis

meses de trabalho, período a partir do qual teria direito à baixada. ”186.

O deslocamento de trabalhadores para o início dos trabalhos também visaria o

preenchimento dos cargos de supervisão e chefias que, nestas condições, são instados a

– (...) aí eu já trabalhei uns dias, o cara necessitou do trabalho e classificou como carpinteiro. A gente já

tinha uma base de trabalhar com máquinas, essas coisas...

– Foi assim, num dia de trabalho [qualquer]?

– É. Isso varia de 3 meses a 6 meses. Dependendo do desempenho do cara, com uns 4 meses ele vira. Tem,

na parte de área, o encarregado. O encarregado, sendo um cara bacana e vendo teu esforço no trabalho, ele

já te classifica logo como profissional porque ele sabe que você dá conta do trabalho. Senão, se o cara

estiver meio lento pra desenvolver a profissão, é equivalente a média de 6 meses a 7 meses pro cara ganhar

uma classificação, seja pedreiro ou qualquer uma que seja”. (Entrevista com Mário, 41 anos, Lago das

Rosas, Tucumã, 17/09/2012). Em época de “fast construction”, as antigas ideologias de ascensão

profissional sur le tas são expostas aos trabalhadores junto a procedimentos e discursos próprios da

reestruturação produtiva. Segundo estudos específicos, como o de Villela (2007), a introdução do modelo

toyotista na construção civil se deu entre meados da década de 70 a meados da década de 90. Farah (1992)

exemplifica a introdução de “gestões participativas” nas construtoras, no quadro da difusão de uma nova

filosofia de produtividade e qualidade entre os operários. O objetivo, como enfatizaram de forma recorrente

os autores que analisaram esses modelos, é a intensificação do trabalho e o aumento do número de horas

trabalhadas sem a identificação da gerência como fonte de pressão para que isso ocorra. No caso da MOP,

os cursos introdutórios e alguns treinamentos pós-admissão na firma tinham fundamental importância para

a adoção de estratégias de racionalização da produção e para a propaganda de certas ideologias

horizontalistas visando construção de consentimento e colaboração (uso da categoria colaborador,

possibilidade de formalizar denúncia de superiores, condenação formal das agressões verbais nos

ordenamentos e na lida cotidiana, etc). 186 “MPT deve apurar denúncias de trabalhadores de Belo Monte”, 19/04/2013, CSP-Conlutas com edição

do ANDES-SN, in: http://portal.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=5981.

Page 159: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

159

formar profissionais a partir de ajudantes ainda não afeitos à disciplina do canteiro de

obras. Na MOP, alguns desses trabalhadores diferenciavam, por exemplo, aqueles que

seriam os “peões valentes” dos “peões experientes” ou “de fora”. “Valente”, nesse caso,

não seriam exatamente os trabalhadores de Ourilândia do Norte e Tucumã (até mesmo

porque esse fichamento local significa apenas local de recrutamento e não proveniência),

mas sim os trabalhadores contratados na função de ajudante e ainda sujeitos a um

disciplinamento nas condições de trabalho oferecidas nas firmas. Seriam, principalmente,

aqueles que se insurgiam de alguma maneira frente aos chefes imediatos. Um carpinteiro

deslocado por uma firma para o início do trabalho relatava porque preferiu mudar de área

e recusar uma classificação para encarregado nesses termos:

“[pesquisador:]

(...) – O senhor pediu para ir pra soldador?

[trabalhador:]

- eu conversei com o (...), mestre de obras. Era pra ele me classificar de

encarregado de carpintaria e eu não quis. Falei para ele me classificar

de soldador, que ganhava o mesmo que o encarregado de carpintaria.

- mas esse pessoal que era valente aí... era o quê?

- os ajudantes daqui.

- não era gente que veio de fora como o senhor não, né?

- não. Era peão daqui mesmo. Daqui, de Tucumã. Acho que acostumado

a trabalhar de garimpo e aí foi trabalhar em empresa e chegou lá... como

ganhava pouco, aí ficava aborrecido e em vez de descontar nos grandão

ia e descontava nos encarregados... aí então confusão eu não quis.

- mas eles arrumavam confusão com o encarregado, como assim? de

briga?

- briga. Eles ficavam bem neles lá. Se um encarregado mandasse

trabalhar, falasse ‘faz uma coisa ali’, eles não iam. Aí se o cara falasse

que ia dispensar eles aí... ameaçava pegar aqui na rua.

- isso chegou a acontecer?

- chegou. Comigo não, mas com alguns, aconteceu. Com o rapaz que

me trouxe pra trabalhar pra cá. Ele foi ameaçado umas duas vezes. O

cara ameaçou pegar ele na rua. Quando ele saía do alojamento pra vim

na rua, ele teve que não vir sozinho. Vinha sempre acompanhado com

duas cria porque os cara queriam pegar ele aqui.

- por que ele mandou os caras trabalhar?

- ele mandou trabalhar, os caras não trabalhou, ele dispensou.

- ah, ele dispensou os caras?

- dispensou os caras. Aí eles ficaram com raiva dele e queriam pegar

ele aqui na rua.

- mas eles pegaram mesmo ou não?

- não, pegaram não. Ele ficou um bom tempo aqui, alugou uma casa ali

embaixo... só foi mesmo aquela pressão no início, né? Pra ver se a turma

Page 160: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

160

acostuma com tanta gente, né? Foi muita gente que veio pra Ourilândia,

né? Até o povo se acostumar e parar com isso.

- e na solda? Também tinha isso?

- não, na solda não. Na solda era peão de fora, peão experiente, né?

Trabalhei com o (...), lá de Angra dos Reis [RJ]... e aí os funcionários

era tudo de fora, tudo profissional. Só bastava a gente falar o que era

pra fazer e pronto.

- ele veio de Angra, é?

- o que ficou sendo meu supervisor, quando eu passei pra cá. Ele veio

de Angra. E aí os cara que veio, que ele trouxe uma pá de gente lá do

Rio, né? Trouxe profissionais de lá... Era só a gente falar o que era pra

fazer, os caras iam e pronto” (Jorge, motorista [na última firma que

trabalhou], 38 anos, Ourilândia do Norte, 30/10/12).

Já os trabalhadores que eram fichados pela primeira vez se referiam ao período

em que se tornaram “mansos”, ou que teriam deixado de ser “bravos” nas firmas. Esse

“amansamento”, porém, era relacionado ao aprendizado de qualquer ofício. Levando em

consideração trabalhadores que circulam em atividades muitas vezes significativamente

diferentes entre si, essa expressão era bastante utilizada: “aprendi rápido porque já tinha

dois irmãos que eram mansos no garimpo”; “era cara bravo, não sabia das coisas”; “já era

manso na firma”. No caso do trabalho nas firmas, tornar-se “manso” era também ter

acesso a informações específicas: salário, benefícios trabalhistas, circulação das firmas,

“direitos”. Eles se referiam ao tempo em que ainda eram “caras bravos” nas firmas,

quando “saíram da roça” e não receberam o salário corretamente ou não sabiam dos

benefícios a que tinham direito quando demitidos. A primeira firma era uma referência

sempre lembrada de demissão desinformada, daquela que se “saiu sem ganhar nada”187.

O período de socialização, no entanto, era relativamente rápido. Acompanhava, nesse

sentido, as condições de passagem e de circulação nas firmas. Pouco mais de um ano era

o suficiente para um trabalhador se considerar deveras experiente na função em que

trabalhou, manejando com propriedade o léxico próprio da área e dando conselhos para

outros iniciantes. Um montador que não tinha ainda dois anos nas firmas (e que, contando

o tempo que ficou desempregado entre uma e outra, não seriam mais do que um ano e

187 A distinção entre os peões já experientes nas firmas e os recém-recrutados é frequentemente enfatizada

nos contextos da construção civil pesada, cujos canteiros são repletos de neófitos ajudantes. Já nas obras de

Barcerena/PA, Fontes (2003), como citei anteriormente, relatou a diferença que os trabalhadores faziam

entre o “peão de trecho”, aquele que já fora fichado em firmas antes, e o “peão cabaço”, tal como era

chamado pelos “de trecho”, o que estaria sendo fichado pela primeira vez numa empresa. Na MOP, porém,

além da socialização e do tornar-se “manso” dos novatos, o deslocamento de trabalhadores, junto à

circulação das firmas, estratificava os operários de acordo com a disciplina do canteiro de obras. Os

“trazidos pelas firmas” eram deslocados para assumir posições superiores no início das atividades e para se

deparar com a possível rebeldia dos ajudantes fichados no local.

Page 161: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

161

meio em exercício), por exemplo, já me contava sobre os colegas que são “carteirão”188,

de um “roda-chave”189 que lhe ensinou algumas técnicas em Minas Gerais pelas quais ele

“agradece até hoje”, do colega “boca dura”190, etc.

Dada a circulação da firma, o deslocamento de trabalhadores era realizado de

maneira a atender ao planejamento estratégico dos gestores de pessoal frente às condições

em que a próxima obra (ou prestação de serviço) iria se iniciar. Neste sentido, dependendo

da fase em que foi recrutado e do período do contrato, o trabalhador também pode ser

deslocado pela firma em pouco tempo. Entretanto, para os trabalhadores que não integram

o quadro considerado “estratégico” ou fixo da empresa, esse recrutamento entre obras é

hierarquicamente piramidal e estabelece uma espécie de “esfera baixa” dos circuitos dos

grandes projetos191. Ao fim de um contrato ou obra, dependendo das que serão iniciadas

em outros locais, as firmas transferem encarregados, que são chefias intermediárias

muitas vezes formadas na própria obra. Estes, quando não é possível recrutar profissionais

no próprio local, escolhem alguns trabalhadores para convidar para a próxima obra. Por

sua vez, esses profissionais garantem o início da obra e a formação dos primeiros

ajudantes em profissionais, passando eles mesmos para encarregados em seguida e

ampliando, dessa forma, a pirâmide. Em alguns casos, notei que a transferência foi

realizada até mesmo para a função de ajudante, o que, quando foi o caso, para o

trabalhador significava apenas o custeio do transporte entre obras. Muitas vezes, no

entanto, houve apenas a garantia de emprego no próximo destino. Como a regra dos

gestores dessas firmas era que “ajudante se pega em qualquer lugar”, o trabalhador

deslocado na função de ajudante não teve alojamento garantido e recebeu o mesmo salário

oferecido aos recrutados no local. Sendo assim, os trabalhadores que se encontravam em

uma situação de composição de grupos domésticos na posição de maridos, com esposa e

filhos, quando não deslocavam o grupo inteiro, eram obrigados a duplicar o espaço

reprodutivo, o que significava aumento considerável de gastos. O deslocamento a serviço

das firmas era, nesse sentido, associado principalmente a solteiros, ou a quem “não tem

morada”, e os trabalhadores que “vieram trazidos” pela firma A ou B também como

188 Trabalhadores que adulteram a CTPS para conseguirem ser fichados em um trabalho que não tinham

experiência anterior, imediatamente notados e geralmente acolhidos pelos colegas de função. 189 Trabalhador experiente na montagem. 190 Trabalhador tido pelos colegas como aquele que “não aceita opinião” e que “fala demais”. 191 Lins Ribeiro (1991: 156-174) se referiu ao que chamou de circuito migratório dos grandes projetos,

sendo composto tipicamente pela trajetória do “segmento especializado da mão-de-obra”. Insiro aqui uma

nova referência à “esfera baixa” desse circuito, ou seja, ao operariado semi ou não especializado que se

desloca com condições precárias de reprodução, sujeito à demissibilidade, à descartabilidade e a maior

circulação da força de trabalho.

Page 162: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

162

aqueles que estavam no trecho. Porém, tal como ocorria com os peões-de-trecho em

circulação no trabalho temporário das fazendas, no circuito das firmas essa associação

obscurecia arranjos reprodutivos feitos (e desfeitos) pelos trabalhadores deslocados.

O caso a seguir foi de um trabalhador casado deslocado quando ainda era ajudante.

Após seguidos deslocamentos, ele foi demitido da primeira firma após um ano e três

meses. Na entrevista, ele fez questão de frisar os onze meses que não pôde retornar ao

local de recrutamento, Tucumã, onde deixara esposa e filho em um grilo.

João tem 27 anos, nasceu em Paraibano/MA e veio ainda recém-nascido para

Curionópolis/PA. Em 2006, veio para Tucumã e conheceu a atual esposa já nessa cidade.

Na época, Curionópolis não estava “bom de serviço”, mas em Tucumã tinha um tio que

teria vindo para essa região. Estavam há mais de 25 anos sem contato com ele. João

chegou e colocou anúncio nas rádios. Encontrou o tio e morou com ele, mas, por ele ser

“muito ignorante”, ficaram juntos só 3 meses. Morou em seguida com o vizinho do tio

cerca de 5 meses. Assim que chegou em Tucumã, João foi em um laticínio e foi fichado.

Trabalhou 9 meses, foi para outro laticínio, ficou 10 meses. Dali, “foi para as firmas”.

Na primeira, ICEQ, João foi ajudante de montagem de andaime. Essa firma foi para

vários locais de Minas Gerais e João foi junto, em novembro de 2010. Em todos os locais,

a firma prestou serviço na área da mineração. A esposa de João ficou em Tucumã com

seu filho, que tinha 4 meses. João ficou 11 meses sem vir a Tucumã. Ficou, ao todo, um

ano e três meses nessa firma até ser demitido. Ficou 3 meses desempregado. Deu entrada

no seguro-desemprego e não trabalhou. Depois, voltou para a mesma firma, em

Curionópolis/PA. Teriam prometido colocá-lo como encarregado, mas não cumpriram e

João resolveu sair, em agosto (2012). Logo em seguida, entrou em outra firma, a W

Torre, também como montador, em Ourilândia do Norte. No momento, estava esperando

para saber se o contrato dessa firma com a Vale será renovado. João morava com esposa

e 2 filhos. Esposa não trabalhava (fora). Recebiam o bolsa-família. João tem outra filha,

que morava em Parauapebas/PA com uma ex-esposa. (Baseado em entrevista com João,

27 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 24/09/12).

Seguidos deslocamentos para o local de recrutamento, transferências e local de

demissão condicionaram arranjos realizados antes, durante ou depois da entrada na firma,

dispersando espacialmente relações estabelecidas ao longo do trânsito. Acompanhar uma

firma implica em distanciamentos e incertezas para os membros que ficam e para o

trabalhador deslocado, podendo ocasionar um retorno (em um prazo indefinido), um

rompimento ou uma mudança para algum dos locais transitados. Como os convites para

uma transferência dependiam do planejamento estratégico da firma, ou seja, das

condições de recrutamento no próximo destino, o trabalhador deslocado não tinha

informações a respeito da continuidade na cidade ou não ao fim do prazo de contrato da

Page 163: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

163

firma com a empresa principal. Ele aguardava a notícia da renovação ou não do contrato,

da sua transferência ou da sua demissão. Quando uma firma demitia em uma cidade ainda

considerada “boa de serviço”, havia opção de buscar ser fichado na próxima firma.

Quando não, ele retornava para a cidade em que foi recrutado inicialmente, em especial

quando deixou um grupo doméstico constituído, ou se dirigia para a próxima cidade na

qual avaliava que poderia ser recontratado em outra firma.

Recentemente demitido, um trabalhador de 38 anos deslocado para as obras da

MOP conversava comigo na sala de espera de um escritório de advocacia trabalhista em

Tucumã: “depois que o cara se casa, ele pára, se aquieta e começa a poupar as coisas; não

gasta tudo o que ganha, começa a se preocupar com o local aonde mora. Não pode mais

dormir em qualquer lugar, como na época de solteiro”. E, sintetizando: “solteiro é que

nem cachorro, pode dormir ali na rua mesmo”. Outro dia, em uma entrevista, também

disse que, casado, “você sai de manhã e pensa em voltar pra casa”. Ele era motorista de

uma terceirizada, demitido no último corte de serviços promovido pela Vale. Mas, depois,

descubro que ele veio da Bahia porque, como explicou, “a Odebrecht veio pra cá e me

trouxe junto”, e que, quando terminou o serviço, continuou em Ourilândia do Norte,

trabalhando em outras empresas terceirizadas, em várias funções, até essa última, em que

foi motorista. A distinção que fez entre o tempo que era solteiro com o tempo que me

encontrara, casado, procedia, ou ao menos procedia em parte. Ele estava casado e

instalado em uma casa que construiu no terreno que era da esposa, na cidade. Ao lado,

construiu uma quitinete que alugavam para famílias que vinham trabalhar em Ourilândia,

mas que, nos últimos tempos, era mais para recém separados, “marido que separa da

esposa, esposa que separa do marido”. Também tinha uma pequena chácara que

compraram nos arredores da cidade, que visitava todos os dias e criava galinhas. Na

companhia da esposa, disse que colocaram uma placa de “vende-se” na rua no ano

anterior e recusaram uma oferta de uma terra de 4 alqueires e mais 50 mil reais pelas

quitinetes. E que, no ano em que os encontrei, já teriam combinado de vender tudo, sair

da cidade, comprar animais e ir morar em uma terra maior, que podia ser em qualquer

lugar, caso aparecesse uma oferta que comportasse um sonho desses. Mas, por outro lado,

também sabiam me descrever em detalhes a última firma que chegou e que estava

fichando na cidade. E, ao longo de uma entrevista, descubro que ele já tinha sido casado

antes também e que, recrutado, acompanhara o deslocamento das firmas. Numa delas,

terminou descasado; na outra, estava solteiro e quase foi para uma obra em Angola, mas,

aconselhado pelos pais, teve outra opção, Ourilândia do Norte; na última, foi e voltou

Page 164: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

164

acompanhado da atual esposa (ver representação a seguir). Permaneceu entre 2007 e 2012

na cidade porque não foi apenas carpinteiro – como na época em que foi deslocado para

Ourilândia – mas também porque foi, em seguida, soldador, encarregado de solda,

soldador de novo, carpinteiro de novo, de novo, e, por fim, motorista. Nesse último caso,

porque conseguiu comprovar uma breve experiência em carteira da época em que ainda

não tinha profissão e morava com os pais. Circulou em cinco terceirizadas. Mesmo assim,

nesse período, ainda passou cerca de seis meses na reforma de uma refinaria na Bahia. E

estava há quatro meses desempregado, ou seja, dali em diante provavelmente procuraria

outro emprego.

Percurso de um trabalhador recrutado e deslocado a serviço das firmas192

Salvador/BA

ida e volta para Aracaju/SE, onde era ajudante de pedreiro; 16 anos de idade, sem

ficha

ida e volta para Bolívia, como ajudante de motorista

motorista em cooperativa de transporte

Camaçari/BA

1ª firma: ajudante de carpintaria

2ª firma: ajudante de carpintaria, classificação para carpinteiro

1º casamento

Macaé/RJ

carpinteiro em obra de um Consórcio Odebrecht-Andrade Gutierrez

1ª separação

Camaçari/BA

carpinteiro na construção da fábrica da Firestone, obra da Odebrecht

no fim da obra, encarregado o convida para ir para Angola

outro encarregado o convida para ir para Ourilândia do Norte/PA

Ourilândia do Norte/PA (2007-2012)

transferido pela Odebrecht; carpinteiro na construção da mina de Onça Puma

2º casamento

saída da Odebrecht

soldador, encarregado de solda, carpinteiro e motorista em outras cinco firmas

ida e volta “da Bahia”, onde foi carpinteiro por 6 meses na reforma de uma

refinaria; esposa acompanhou

4 meses desempregado

192 Baseado em entrevista realizada em 30/10/12 com Jorge, 38 anos, Ourilândia do Norte/PA.

Page 165: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

165

A socialização dos trabalhadores nas firmas previa a iniciação e certo domínio das

regras e direitos trabalhistas em situação de alta circulação da força de trabalho, assim

como das formas de troca de uma firma para outra: como ter acesso ao seguro-

desemprego juntando o tempo trabalhado em duas ou mais empresas; como ter acesso ao

acerto193, ainda que não houvesse domínio do cálculo dos benefícios; como e quando as

firmas estavam recrutando, etc. No entanto, as informações obtidas por eles geralmente

eram insuficientes para assegurar condições satisfatórias de circulação firma-firma. E,

mesmo para um trabalhador experiente, circular entre firmas significava, sempre, uma

probabilidade bastante alta de pauperização ou, no mínimo, de empobrecimento ainda

maior.

O agenciamento dos trabalhadores na troca entre firmas e no tempo de circulação

(período sem salário) envolvia sempre uma série complexa, perversa e praticamente

ininterrupta de decisões que deviam ser tomadas e reconsideradas por eles a cada pequena

mudança no quadro levado em consideração ao longo dessa situação; uma série de apostas

rápidas com possibilidade de consequências ainda mais graves do que a própria situação

já lhes impunha, frente a fatos sobre os quais eles não tinham domínio, a começar, claro,

pela possibilidade de novo recrutamento ou não, do tempo até esse possível novo

recrutamento e, último caso, do local em que isso iria ocorrer ou não194.

193 O acerto a que os trabalhadores se referiam era o total recebido da firma quando demitidos sem “justa

causa”, isto é, sem ato legalmente tipificado como motivo para uma rescisão involuntária do contrato de

trabalho que lhes retira determinados benefícios. De acordo com a CLT, a rescisão de contrato de trabalho

por tempo indeterminado implica em pagamento pelo patrão do saldo de salário, aviso prévio de 30 dias (já

que poucos trabalham mais do que um ano na mesma empresa, nas vezes que acompanhei nas firmas ele

foi trabalhado e não indenizado – de acordo com o fim de contrato com a Vale, ou seja, integrando o

planejamento normal de trabalho das firmas); 13º salário proporcional, férias proporcionais, saque do

FGTS, multa rescisória de 40% do saldo do FGTS e seguro-desemprego. Para ter acesso ao seguro-

desemprego, a firma entregava um formulário preenchido e assinado para aqueles que teriam direito a esse

benefício. Em 2012, ele era devido aqueles que tinham mais de seis meses de trabalho formal ininterruptos.

Em janeiro de 2015, esse tempo mínimo de trabalho foi modificado. 194 Tal como venho ressaltando na agência relacionada aos deslocamentos dos trabalhadores, o firma-firma

também encerra armadilhas analíticas problemáticas para a imposição de racionalidades alheias aos dados

das pesquisas que, muitas vezes, ao contrário do que anunciam, esvaziam a potência da observação

sociológica mais metodologicamente atenta aos próprios agentes assim analisados. De maneira semelhante

ao que já descrevi, mesmo a previsão, preparação, ação meticulosa, acesso à informação correta, etc, ou

seja, a conspiração prática para a intervenção, por exemplo, não só não era restrita ao domínio de atos que

outros agentes teriam como “econômicos” propriamente ditos, como também era concomitante com a briga,

o drama de família, a doença, o pagamento abaixo do esperado ou o não pagamento, o não recrutamento, a

demissão do cônjuge, do colega, etc. E, por outro lado, como ressalto, esse agenciamento dos trabalhadores

está colocado tanto para uma circulação firma-firma a contrapelo, brutal e fortemente penalizada

(empobrecimento, risco de pauperização) quanto para a circulação diretamente imposta e calculada pela

circulação das firmas. Sendo que ambas, obviamente, produzem e reproduzem dinamicamente dominação

característica do trabalho assalariado já descritas por Marx (2006b; 2013) frente, por exemplo, a outras

formas históricas de dominação de classe. Nesse caso, porém, além das armadilhas usuais da busca de uma

suposta “racionalidade” ou “irracionalidade econômica”, estaria em jogo ainda uma das principais pautas

das lutas de classe institucionalizadas por meio das organizações de empresários e de trabalhadores

Page 166: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

166

Na troca, o novo recrutamento pela firma seguinte ignorava a experiência anterior,

quase sempre feito para a função de ajudante ou servente, pior remunerada. Em geral, a

circulação também era mais rápida do que o período mínimo para a requisição de seguro-

desemprego ou para requisições em seguida, portanto, o trabalhador nem sempre recebia

esse benefício195. Para receber, certos casos, precisava juntar o trabalho em duas

empresas, sendo que o intervalo entre um registro e outro não podia ultrapassar 30 dias.

O acerto, por outro lado, era um adendo aos baixos salários recebidos tanto na

firma anterior quanto na seguinte, considerando que esses baixos salários não permitiam

ao trabalhador arcar com gastos de alimentação, saúde, moradia ou transporte de

membros do seu núcleo familiar. Seu uso, porém, apenas acessível em termos

constrangedores e profundamente desiguais para os trabalhadores, tratando-se de uma

decisão patronal arbitrária, envolvia mais questões196. Podia se tornar obrigatório em

determinadas situações, como doença, morte ou necessidade de uma viagem imediata,

por exemplo. Nesses casos, tentar acessar o acerto não era decisão relacionada a maior

ou menor possibilidade de recontratação ou mesmo antecipação condicionada pela

circulação das firmas, mas a impositivos socialmente previstos no núcleo familiar ou em

outras unidades sociais de referência e pertencimento. Nos demais casos, a imposição da

negociação era característica constitutiva da circulação firma-firma. “Negociar” uma

demissão era uma forma do trabalhador arriscar perder menos, de expor membros dessas

unidades a menor privação, menor tempo de incertezas, desemprego, etc. Decisão, enfim,

não apenas diretamente condicionada pelas gerências das firmas, mas também

diretamente imposta por elas por mero cálculo contábil empresarial já incluído no valor

do contrato e na estimativa de lucro por parte das empresas contratante e contratada.

Contudo, para os trabalhadores, a troca de firmas era feita completamente às

cegas. Como o salário muitas vezes é variável, por produção (“tarefa”), às vezes os

operários não têm formas de precisar as informações da firma que está fichando acerca

atualmente, frente a qual as pesquisas são formuladas, financiadas, propagadas, posicionadas, etc. Como

abordarei no último capítulo, o uso, acesso e mesmo a existência de direitos trabalhistas atrelados à

circulação da força de trabalho em geral – como é o caso desses que, no Brasil, compõem o que os

trabalhadores denominavam acerto – são objeto de atenção pari passu a transformações mais amplas no

capitalismo das últimas décadas. 195 Levando em consideração a legislação vigente em 2012, o direito ao benefício também era restrito a um

período a cada um ano e meio do último. Com a mudança das regras ocorrida em 2015, o acesso a esse

benefício ficou ainda mais restrito para esses trabalhadores. 196 O acerto era de uso praticamente institucionalizado na construção de moradias pelos trabalhadores, tal

como será analisado a seguir. De demissão em demissão, eles adquiriam lotes nas ocupações recentes das

cidades e construíam suas próprias casas. Dependendo do caso, o acerto também era usado para uma nova

viagem exploratória em busca de trabalho em outra cidade.

Page 167: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

167

do trabalho que efetivamente realizarão e do pagamento final que receberão. Sendo assim,

dado o momento de chegada de uma nova firma, a decisão de sair da firma em que se está

e buscar ser fichado na nova implica uma aposta que pode dar certo ou não. Jorge, o

trabalhador citado acima, quando era encarregado de solda, saiu de uma firma para outra

porque “a turma falava que estava pagando mais”, mas, depois, teve que assumir o

trabalho não só de soldador, mas também de maçariqueiro e lixador, por um salário

menor:

“[trabalhador:]

– (...) eu estava fazendo os trilhos e aí... quando eu fiquei sabendo que

ela estava fichando, eu pedi pra me dispensar e fui pra lá. Saí de

encarregado para ir pra soldador de novo. Cheguei lá e não era nada do

que o pessoal falava. Mas como eu já tinha saído de um, eu tinha que

fichar, né? Aí eu fichei. Mas eu fichei pra soldador e quando chegou lá,

aí eu tinha que fazer solda, cortar de maçarico e trabalhar com lixadeira.

E ganhava menos.

[pesquisador:]

- mas era na mesma obra?

- na mesma obra.

- só mudou a empresa?

- só mudou a empresa. (...) aí eu ficava fazendo as soldas naqueles silos

lá da Vale, solda lá dentro. Aí quando foi no fim do mês que eu peguei

a mixaria... aí não teve outra, só vim em casa, peguei uma moto, fui lá

e só entreguei o material deles lá...

- lá o material era deles?

- é. Cheguei lá na portaria e falei ‘ó, vim dar baixa no material’.

Liberaram. Aí eu peguei uma carona até lá na Vale e pedi pra dar baixa

lá, em tudo lá. Aí saí perdendo tudo. Não teve acerto, não. Aí não veio

foi nada mesmo, só os dias trabalhados.

- aí o senhor ficou um tempo sem emprego?

- não, aí eu entrei na (...)[outra firma] como carpinteiro.

- voltou pra carpintaria?

- voltei pra carpintaria.

- e foi na mesma hora?

- não. Fiquei ainda seis meses em casa. Fiquei trabalhando aqui mesmo.

- e lá na [nova empresa] o senhor ficou quanto tempo?

- fiquei seis meses. E ficou como encarregado também?

- não. Só carpinteiro.197”

Da mesma forma que a avaliação da pertinência ou não de se trocar de firma é

relativamente inviabilizada pelos salários variáveis, os cálculos dos “direitos” na rescisão

197 Entrevista com Jorge, 38 anos, Ourilândia do Norte, 30/10/12.

Page 168: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

168

de um contrato também são encobertos pela desinformação e inexatidão dos pagamentos.

Muitas vezes, os trabalhadores se indignavam com os baixos valores recebidos,

calculados pelo salário-base e sujeitos a todo tipo de burla, facilitada sempre pelos curtos

períodos de vinculação. Normalmente, eles desconfiavam do sindicato e, quando tinham

possibilidade, procuravam outros apoios, principalmente, quando comparavam o total que

recebiam ao término do contrato com as rescisões de outros colegas. A comparação, nesse

sentido, acabava sendo a única forma de aferição de uma possível burla, já que eles não

dominavam as demais formas de cálculo. Quando a empresa, ou as empresas,

equiparavam o acerto tendo por base a retirada de alguns direitos ou cálculos enviesados,

esse exercício de comparação dos trabalhadores ficava prejudicado e eles perdiam o

principal argumento de “prova” do erro face a outros agentes, como advogados, entidades

de apoio, sindicatos ou mesmo colegas demitidos.

Por outro lado, o acerto também podia ser “negociado”, em prejuízo ao

trabalhador, ou não pago. Tal como em outros contextos, havia prática comum de burla

de direitos trabalhistas e não pagamento da multa rescisória (40% do saldo do FGTS),

normalmente feita nas demissões com menos de um ano de trabalho (sem homologação).

Essa burla também podia acontecer com diversos outros direitos e benefícios (férias,

horas-extra, 13º salário, etc), quando a demissão ocorria após o limite do contrato de

experiência (três meses), prazo a partir do qual as empresas devem arcar com a

indenização.

Ao sair de uma firma para outra, o trabalhador era obrigado a perder algumas

garantias previstas na legislação trabalhista formalmente em vigor e, também às cegas,

lidar com a possibilidade de não receber pagamento algum, o que era uma possibilidade

sempre considerada pelos trabalhadores no fim de contratos e, por outro lado, uma

informação sempre manipulada pelos gerentes.

A “saída” da firma, ou sua falência após o fim do contrato (ou da cadeia de

subcontratações), era fator de não pagamento do acerto e de salários. Não raro,

trabalhadores relatavam em seus percursos casos em que não receberam salários e

rescisão com a falência de empresas na construção civil em outras regiões. Nesses casos,

enquanto ainda não foi “dado baixa” na CTPS da firma em que estava, o trabalhador não

pode fichar em outra, o que pode levá-lo a uma situação de pauperização ainda maior198.

198 Essa é uma situação comum em contextos de terceirização e em grandes obras, como o caso mais recente

dos trabalhadores do Comperj (construção de um Complexo Petroquímico em Itaboraí/RJ) em janeiro de

2015, quando a “saída” da empreiteira Alumini, prestadora de serviço para a Petrobras, deixou cerca de 3

Page 169: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

169

Da mesma forma, o atraso de salários era uma das formas de provocar transações de

rescisão amplamente desfavoráveis para os trabalhadores.

Certos casos, essas práticas eram formalmente institucionalizadas pelas empresas.

Na sede do principal sindicato dos trabalhadores terceirizados na cidade de

Parauapebas/PA, em novembro de 2012, presenciei uma conversa entre um trabalhador

terceirizado da Vale de Carajás e uma diretora do Sindicato, enquanto conversava com

ela. O trabalhador se dirigiu a ela com um documento e pediu para assinarem. Ela olhou

rapidamente e respondeu também prontamente, tal qual um procedimento corriqueiro,

administrativo. Disse para o trabalhador que aquele documento não tem valor judicial,

mas declarava que ele estaria “abrindo mão do direito de entrar na Justiça” contra a

empresa depois de terminado o contrato (com a Vale ou com uma subcontratada da Vale).

Eles assinariam, mas o trabalhador deveria saber que ele estaria fazendo isso “por livre e

espontânea vontade”. O trabalhador respondeu simplesmente que caso não levasse o

documento assinado, a empresa iria demiti-lo. E saiu do Sindicato com o documento

assinado. Não tive informações de documentos assinados com este teor nas firmas da

MOP, mas, dada a circulação das firmas entre as minas e obras da Vale, não deixavam de

ser um acontecimento plausível naquele contexto também.

mil trabalhadores sem receber salários, assistência à saúde, indenizações rescisórias e passagens de volta,

no caso daqueles que foram recrutados em outras cidades. A empresa alegava que uma ação judicial movida

por trabalhadores de outro grande projeto em que também prestava serviço – a Refinaria Abreu e Lima, em

Pernambuco – bloqueou suas verbas. Em Abreu e Lima, a prestadora de serviço devia dinheiro a

aproximadamente 4600 trabalhadores. O caso deu origem a uma série de manifestações no Rio de Janeiro,

cuja direção foi disputada entre diretores do Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Próprias e

Contratadas na Industria e no Transporte de Petróleo, Gás, Matérias-primas, Derivados, Petroquímica e

Afins, Energias de Biomassas e Outras Renováveis e Combustíveis Alternativos no Estado do Rio de

Janeiro, o popular “Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro” (Sindipetro-RJ), e do

recentemente estabelecido representante legal dos trabalhadores do Comperj, o Sindicato dos Trabalhadores

Empregados nas Empresas de Montagem e Manutenção Industrial do Município de Itaboraí (Sintramon).

O Sintramon, que teria sido estabelecido representante legal desses trabalhadores para a celebração do

próximo Acordo Coletivo, atribuição que teria sido até então do Sinticom (Sindicato dos Trabalhadores da

Indústria da Construção Civil e Pesada, Montagem e Manutenção Industrial, Olaria, Cerâmica, Mobiliário,

Mármore e Granito de São Gonçalo, Itaboraí e Região), publicou matéria em Boletim intitulada “Ato

público de diretores do Sindipetro pode manchar reputação de trabalhadores”, em que afirmava: “(...) Não

se pode esquecer ainda que essas pessoas que utilizam os recursos do Sindipetro para essa manifestação

não tiveram capacidade para conquistar a PLR até agora, enquanto a nossa base recebe normalmente.

Deveriam fazer barulhos em favor de sua classe profissional. Rejeitamos a ideia de que a questão é briga

entre sindicatos. O Sindipetro integra a CUT, da qual somos filiados, mas nem por isso aceitamos

intromissões na nossa categoria. Por falar em base, o referido sindicato nada tem a ver com os trabalhadores

da Alumini, porque estes não são petroleiros. Ao tentar assumir a bandeira da luta que não é deles, os tais

diretores ferem a ética, o respeito à autonomia sindical” (Sintramon, Boletim da Montagem Industrial,

Itaboraí, 5 de fevereiro de 2015, Ano I, Nº 14, em

https://www.facebook.com/sintramonitaborai/photos/pcb.410376305800044/410362999134708/?type=1

&theater). Os três sindicatos são filiados à CUT. Cito as disputas de representação sindical deste caso a

título de comparação com as considerações a respeito da MOP feitas adiante no texto.

Page 170: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

170

Quando possível, nos casos em que permaneciam na cidade, os trabalhadores que

estabeleciam circuitos firma-firma nas terceirizadas recorriam ao judiciário para resolver

pendências da firma anterior, em geral, por conta da jornada de trabalho e da falta de

pagamento (não pagamento de horas extras, não pagamento das horas referentes ao trajeto

casa-trabalho, não pagamento de adicional noturno, falta de pagamento de salários,

cálculos rescisórios, etc). Como em outros contextos, esse encaminhamento também era

privilegiado pelas empresas, uma vez que o trabalhador aceita acordos judiciais que não

ressarcem tudo o que a empresa lhe deve e, por outro lado, a empresa adquire uma

sentença ou acordo com força de trânsito em julgado, sem possibilidade de recurso. A

judicialização interessava, portanto, às empresas e, dentre essas, em especial, à que

terceirizava suas atividades199.

No entanto, assim como observei em Parauapebas/PA, os agenciamentos dos

sindicatos de trabalhadores eram fundamentais para a circulação das firmas, assim como

para a circulação firma-firma da força de trabalho recrutada por elas. Na entrevista com

um gerente da firma que “chegava”, ele frisou, inclusive, que “uma das primeiras coisas

a se fazer é procurar o sindicato”200. Na “saída”, como já citei, mais uma vez, os sindicatos

também eram procurados, assim como, quando era o caso, na transferência entre firmas,

no novo recrutamento. Cabe, nesse sentido, expor algumas informações a respeito.

A representação sindical dos trabalhadores nas áreas da Vale no Pará era disputada

– em geral, e principalmente, judicialmente – entre alguns sindicatos. A representação

dependia dos ofícios e das subdivisões de sindicatos estaduais ou regionais em sindicatos

municipais, ou sub-regionais. Entre os terceirizados, na maioria das vezes, cada empresa

estabelecia uma parceria ou associação (nos termos que serão apresentados adiante) com

um sindicato, que assumia a representação de seus trabalhadores. Outras vezes, era a

função formalizada na CTPS que enquadrava o trabalhador em um ou outro sindicato,

situação amplamente manipulada pelas empresas e que, dependendo da disputa judicial,

envolvia também sindicalistas e juristas do trabalho. Nas minas de Carajás, em

Parauapebas/PA, os trabalhadores na área da Vale tinham cinco sindicatos: Metabase

199 Entre trabalhadores que apresentam alta circulação, que não dispõem de condição de poupança e que

recebem baixos salários, a Justiça do Trabalho é considerada morosa e o primeiro acordo proposto é o

máximo que podem esperar. É, nesse sentido, talvez a mais aprimorada forma de descumprir a legislação

trabalhista e de construir consentimento em torno disso. Entre os que são expulsos, que não têm mais

perspectiva de serem empregados pelas próximas firmas, ou em grandes projetos cuja Vara do Trabalho é

distante, esse recurso nem sempre está no leque de opções. Obviamente, como era o caso da maioria dos

terceirizados na construção e na operação de Onça Puma, a Justiça do Trabalho não foi utilizada pelos

trabalhadores. 200 Entrevista com gerente local da Engeform, na sede da empresa em Ourilândia do Norte, 21/11/2012.

Page 171: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

171

Carajás201 (diretos da Vale), Sinticlepemp202 (construção civil), Sintrapav203 (construção

civil), Sintrodespa204 (rodoviários) e Simetal Parauapebas205 (metalúrgicos, mecânicos e

outros).

Na mina de Ourilândia do Norte, os trabalhadores terceirizados eram quase todos

filiados ao “sindicato trazido pela Vale”, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da

Construção Pesada e Afins do Estado do Pará (Sintrapav-PA): construção civil,

montagem industrial/mecânica, serviços em geral. Seus diretores firmavam Acordos

Coletivos específicos com as firmas que tinham no quadro categorias não representadas

na Convenção Coletiva do Sindicato, o que, na prática, garantia a representação sindical

de praticamente todos os terceirizados da MOP. Apenas no caso de algumas empresas

terceirizadas pela Vale para fazer o transporte de seus trabalhadores diretos, os

trabalhadores eram filiados ao Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário do

Sul e Sudeste do Pará (Sintrarsul), conhecido como “sindicato dos motoristas”. Segundo

o presidente do Simetal Marabá, o Simetal estadual (Pará)206 teria enviado um diretor de

Belém/PA para a cidade e começado uma disputa judicial por representação dos

trabalhadores diretos da Vale, baseando-se no fato de que a MOP teria atividades de

metalurgia além da mineração207. Apenas o Sintrapav mantinha sub-sede local.

O Sintrarsul, sediado em Marabá/PA, também manteve uma sub-sede em

Ourilândia do Norte entre 2008 e 2011. Em 2012, com a desmobilização pós-interrupção

e acidente nos fornos, retirou sua representação fixa, limitando-se a visitas para participar

de algumas reuniões de negociação ou para assinar homologações, quando não eram

“carimbadas” por meio de mala direta. O Sintrarsul filiava motoristas em geral de todo o

201 Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Ferro, Ouro e Metais Básicos de Marabá,

Curionópolis, Parauapebas, Eldorado dos Carajás e Canaã dos Carajás. 202 Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil Leve e Pesada e do Mobiliário de

Parauapebas. 203 Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada e Afins do Estado do Pará. 204 Sindicato dos Trabalhadores Rodoviários nas Empresas de Transporte de Passageiros Interestadual,

Intermunicipal e Urbano, Cargas e Similares nos Municípios de Parauapebas e Canaã dos Carajás. 205 Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Prestadoras de Serviços Metalúrgicos, Eletromecânicos,

Eletroeletrônicos e nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas, de Material Elétrico, Eletrônico e de

Informática do Município de Parauapebas. 206 Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas, Eletromecânicas,

Eletroeletrônicos, Eletrônicos, de Material Elétrico, de Informática e Empresas Prestadoras de Serviços

Metalúrgicos, Mecânicos, Eletromecânicos, Eletroeletrônicos, Eletrônicos e de Informática do Estado do

Pará. 207 Em outras cidades, como Marabá/PA e Barcarena/PA, o Simetal do município filia trabalhadores diretos

da Vale em atividades metalúrgicas. Em Ourilândia, já estaria “em contato” com o diretor de relações

trabalhistas da MOP/Vale (Entrevista com presidente do Simetal Marabá, realizada em 07/11/12 na sede

do Sindicato em Marabá/PA). Ao longo do período de campo, esse diretor era responsável por manter uma

relação de parceria entre a Vale e os sindicatos de Ourilândia, encaminhando decisões da empresa para os

delegados sindicais locais.

Page 172: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

172

sul e sudeste do estado do Pará, com exceção de Parauapebas/PA e Canaã dos Carajás/PA,

que, com a expansão das minas da Vale, uma antiga delegacia sindical se transformou em

sindicato local, o Sintrodespa. Era filiado à Nova Central Sindical e à Fetronorte208.

Quando se instalou em Ourilândia do Norte, segundo relato de seu secretário-geral,

dirigentes do Sintrarsul teriam procurado os diretores da Vale, alegando representação

sindical da categoria e existência de Convenção Coletiva específica no setor209. Teriam,

em especial, questionado Acordos Coletivos já firmados pelo Sintrapav com algumas

empresas que estariam em desacordo com os termos da Convenção Coletiva em vigor na

época (carga horária maior, salário menor, ausência de plano de saúde e de cesta básica)

e, desde então, contando com os mediadores da Vale, assumido a representação legal dos

motoristas dessas empresas. Em 2012, teria três de seus diretores em duas empresas que

prestavam serviço para a MOP.

Já os trabalhadores das empresas subcontratadas pelas terceirizadas muitas vezes

não tinham representação, como era o caso dos motoristas de uma empresa que fazia o

transporte dos trabalhadores terceirizados (Danistur), cujos ônibus em estado precário de

conservação circulavam pelas cidades de Tucumã e Ourilândia. Outras empresas teriam

seus trabalhadores filiados em sindicatos nas cidades em que tinham sede, como São

Luís/MA. A Danistur, por exemplo, teria sido “associada” ao Sintrarsul apenas durante

o período que prestou serviço para a Odebrecht, nas obras da MOP. Essas empresas, como

relatado pelo diretor do Sintrarsul, não atendiam direitos trabalhistas e suas relações de

trabalho não seguiam a Convenção Coletiva da categoria em vigor210.

A associação da empresa ao sindicato foi uma categoria utilizada pelos diretores

dos sindicatos dos trabalhadores terceirizados da MOP para se referir, dentre outros, à

filiação e ao cumprimento (formal) de acordos trabalhistas do sindicato. Estava

relacionada a uma noção de que “as empresas filiam os trabalhadores” e que, portanto,

tinham empresas “associadas” a um ou outro sindicato ou a nenhum. Diretores das

empresas que assumiam contratos de prestação de serviço com a Vale ou terceirizadas

entravam em contato com os representantes sindicais das categorias que viriam a admitir,

solicitavam a Convenção Coletiva em vigor e, uma vez aderentes, filiavam seus

trabalhadores, “associando-se” ao Sindicato. Quando não estavam “associadas”, havia

208 Federação dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários dos Estados da região Norte. 209 Entrevista com secretário geral do Sintrarsul, 34 anos, realizada em 05/11/12 na sede do Sindicato em

Marabá/PA. 210 Entrevista com secretário geral do Sintrarsul, 34 anos, realizada em 05/11/12 na sede do Sindicato em

Marabá/PA.

Page 173: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

173

possibilidade de descumprir a Convenção Coletiva, o que acontece principalmente nas

contratadas pelas terceirizadas, as “quarteirizadas”. O processo de associação, no entanto,

envolvia negociação. Em geral, os representantes das empresas terceirizadas alegavam

não ter meios de cumprir os termos da Convenção Coletiva e negociavam com o sindicato

seu descumprimento, o que, não raro, resultava em novos Acordos específicos para a

empresa ou empresas em questão no município da MOP (que podem diferir, por exemplo,

seu salário base de outro da região representada pelo mesmo Sindicato). O relato de um

dirigente de um dos sindicatos dos terceirizados de Parauapebas/PA a uma pesquisadora

também constatou essa prática nas minas de Carajás: “Por exemplo a Vale terceirizou

uma frente de serviço de montagem, é uma empresa especializada em montagem

industrial, essa empresa de montagem quarteirizou o transporte de seus trabalhadores, fez

um contrato com uma empresa de ônibus para fazer esse tipo de serviço. A empresa de

montagem não é do nosso segmento, mas a de transporte é, então o que acontece, essa

empresa vai ter que seguir a convenção, sempre que possível seguir a convenção, mas a

choradeira das empresas é grande, elas sempre alegam que a convenção é pesada [...] As

empresas chegam ao sindicato e dizem “ Ah! Eu não tenho condições de arcar com isso,

meu contrato é com uma terceirizada, eu sou quarterizado né, eu não tenho contrato com

a Vale [...] hoje mesmo veio uma empresa alegando isso, a gente sempre tem que buscar

uma saída viável, principalmente para nós. (Cláudio, dirigente sindical)” (Bezerra, 2015:

98).

Foi, no entanto, acompanhando o principal e praticamente único sindicato dos

terceirizados da MOP que obtive maiores informações sobre as práticas decorrentes dessa

associação, ainda melhor descritas em uma categoria assemelhada e mais conhecida:

parceria. Nesse sentido, a parceria a que se referiam os sindicalistas e os gerentes das

empresas terceirizadas e da Vale também significava sindicalismo de parceria, forma

histórica de colaboracionismo que caracteriza um setor significativo do sindicalismo

brasileiro. No caso dos sindicatos filiados à central Força Sindical, é uma categoria

fundante, como já analisaram, dentre outros, Rodrigues e Cardoso (1993), Giannotti

(2002), Graciolli (1999) e Tropia (2009). Contudo, a menção à “parceria” não se restringe

a uma central sindical especificamente, mas a uma ideologia referente a um conjunto de

práticas amplamente difundidas na relação sindicato-empresa no Brasil, presente em

discursos dos mais variados agentes envolvidos com o mundo do trabalho, em maior ou

menor medida (gerentes empresariais, sindicalistas, operadores do Direito, gestores e

funcionários estatais, etc). Nesta pesquisa, ainda que a referência à “parceria” mantivesse

Page 174: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

174

relação com a literatura a respeito e com outros contextos em que também se acionava

essa noção, não me limitei a reduzi-la a mera expressão local ou mesmo mimética desses

contextos, já que a intenção foi, antes, compreender a que práticas os agentes que

acionavam esse discurso se referiam especificamente.

Neste sentido, o Sintrapav era um sindicato de difícil filiação ideológica. Os

sindicalistas vinculados a outros sindicatos consideravam que o Sintrapav era um

sindicato “criado por empresários” (por executivos da empresa Camargo Correa, no

momento da construção da UHE Tucuruí) e que teria “conchavo com a Vale”211. Na

MOP, o Sintrapav não tinha uma filiação sindical definida e nem mesmo conhecida. Não

havia menção de filiação a central sindical nas suas sub-sedes de Ourilândia e de

Parauapebas/PA e nem em sua página na internet, embora o Sindicato seja relacionado à

Força Sindical e, inclusive, utilize a mídia dessa Central para divulgação de Notas

Oficiais, tendo, provavelmente, filiação formal212. A informação dada pelo delegado

sindical local foi a de que eles seriam um “sindicato patronal”213. Internamente, o

Sintrapav era tratado e organizado como uma empresa: os delegados sindicais eram

funcionários; diretores eram denominados “chefes”, que atendiam os interessados com

cartões que tinham o “telefone da empresa”; as sub-sedes seriam “filiais” e eles seriam,

211 Foi o caso, por exemplo, do presidente do Simetal Marabá em entrevista realizada em 07/11/12 na sede

do Sindicato em Marabá/PA. 212 No caso das manifestações de trabalhadores na construção da hidrelétrica de Belo Monte, em

Altamira/PA, o Sintrapav-PA publicou uma Nota Oficial na mídia da Força Sindical condenando os

protestos e afirmando que é “favorável à construção de Belo Monte”. In: http://fsindical.org.br/forca/nota-

oficial-do-sintrapav-pa-nao-apoiamos-lutas-que-possam-tirar-emprego-de-trabalhadores-em-belo-monte/ 213 “[Pesquisador:]

- O Sintrapav é filiado a alguma central sindical?

[delegado sindical:]

– Sim. Nós somos filiados ao Sinicon. Nós somos um sindicato patronal na verdade. É Sinicon.

– Sinicon?

– É: Si-ni-con e Sinduscon. Sinicon, da Construção civil, e Sinduscon por onde a gente é controlado pela

montagem industrial.

– Sinduscon?

– Sinduscon e Sinicon.

– É porque o Sintrapav é filiado?

– É. Porque o nosso sindicato é patronal, no caso, como eles falam. [silêncio]

– Mas, assim, à central sindical... não?

– Olha, eu acho que funciona tudo de uma forma só, entendeu? Nós todos aqui somos... É ao que o Sintrapav

está ligado: ao Sinicon e Sinduscon, do nosso patronal, ficha presa. Então isso aí é uma central sindical,

mesma coisa.

– Entendi.

– Porque essas convenções coletivas, acordos coletivos, tem lá: “Sinicon-Sintrapav”, “Sinduscon-

Sintrapav”, entendeu?” (Entrevista com delegado sindical do Sintrapav, 24 anos, na sub-sede do Sindicato

em Ourilândia do Norte/PA, 18/09/2012). Sinicon e Sinduscon eram os sindicatos patronais: Sindicato

Nacional da Indústria da Construção Pesada; Sindicato da Indústria da Construção do Estado do Pará.

Page 175: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

175

tal como as demais empresas, “fiscalizados e auditados pelo MTE”214. Em 2012, tinha

cerca de 100 mil filiados no estado, sendo, destes, 4 mil em Ourilândia. A sede ficava em

Tucuruí/PA, com 14 “filiais” em todo o estado, cada uma delas com um delegado sindical

e outros funcionários auxiliares administrativos.

O Sindicato foi instalado em Tucumã desde que começaram as pesquisas para a

implantação da MOP, visando já estar consolidado para filiar os trabalhadores das obras

iniciais de construção civil. Assim que a MOP decidiu implantar o escritório em

Ourilândia, o sindicato mudou de Tucumã para a cidade vizinha. Mantinha um

consultório odontológico em outro local e, no escritório, atendia dezenas de trabalhadores

todos os dias, demitidos (homologações de rescisão de contrato) ou em busca de emprego

nas firmas da MOP. Como no momento da pesquisa algumas firmas exigiam indicação,

uma das formas adotadas pelos trabalhadores que se deslocavam para Ourilândia em

busca de emprego era preencher um formulário no Sintrapav, que, então, indicava o

trabalhador, encaminhando-o para as empresas.

Quando entrevistado, em setembro de 2012, o delegado sindical do Sintrapav em

Ourilândia havia sido contratado há 2 anos e três meses, através de uma seleção de

currículo. Sua experiência anterior fora no setor administrativo-financeiro de um laticínio

local, quando teria ficado sabendo que estariam precisando de alguém para “tomar conta

do sindicato”. Fazia aproximadamente um ano que ele era dono de uma empresa de

“locação de equipamentos, veículos e montagem de andaime”, que, no momento, tinha

dois contratos com uma empresa de montagem industrial, terceirizada da Vale. Teria

começado apenas com a locação de veículos, mas, em seguida, feito outro contrato para

a montagem de andaimes215.

Além da rotina de homologações e indicações, o Sintrapav também receberia

trabalhadores que iriam reclamar das condições de trabalho nas firmas. Nestes casos, o

procedimento adotado pelo Sindicato previa um contato inicial com os gerentes da

empresa e, caso não resolvido, com os diretores da Vale cuja mediação era considerada

fundamental pelos sindicalistas, devido a possibilidade de serem aplicadas multas

previstas no contrato de prestação de serviços. Em último recurso, quando havia claro e

comprovado descumprimento de cláusulas da CLT, encaminhariam denúncia ao MTE. A

214 A fiscalização do MTE, porém, não existia, seja para as empresas em geral, seja para os sindicatos. Sua

agência mais próxima ficava em uma cidade a 260km de distância e não se tinha notícia se alguma operação

de fiscalização in loco já havia sido realizada na MOP. 215 Entrevista com delegado sindical do Sintrapav, 24 anos, na sub-sede do Sindicato em Ourilândia do

Norte/PA, 18/09/2012.

Page 176: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

176

aplicação de multas por conta da Vale, porém, nem sempre ocorria. Em um dos poucos

casos listados pelo delegado sindical do Sintrapav em que houve busca do sindicato para

reclamação, a empresa foi penalizada pela Vale, mas não multada. Em agosto de 2011,

uma empresa estaria obrigando os trabalhadores a continuar a jornada indefinidamente,

até 23h ou meia noite, sem fornecer alimentação, aplicando advertências e demitindo por

justa causa os trabalhadores que se recusavam a ficar. A Vale teria penalizado a empresa,

mas não aplicou multa e o Sindicato, após aguardar o prazo legal de 10 dias, denunciou

o caso ao MTE. Por fim, a Vale teria sido condenada a pagar as indenizações, porque a

empresa subcontratada abriu falência. Em seguida, no entanto, a “mesma empresa” teria

trocado sua razão social e teria se deslocado para o Mato Grosso.

A relação de parceria era estabelecida com a Vale e com as terceirizadas, as

empresas que “chegavam”. Dessa relação, dependiam principalmente as ações de

fiscalização e a filiação dos trabalhadores, já que, tal como enfatizei, compreendia-se que

a “empresa se filia ao sindicato” e que a filiação seria realizada de maneira concomitante

com o próprio fichamento do trabalhador recrutado para a firma. Junto com essa parceria

estabelecida com os gestores das empresas, o Sintrapav mantinha também uma política

de filiação voltada para os cargos superiores e de chefia. A contribuição sindical era de

2% do salário base, porém, limitada a 25 reais, o que impedia que ficasse com valores

mais altos para todos os trabalhadores que exercem função de chefia como, por exemplo,

os encarregados, considerados pelos sindicalistas um elemento central para a filiação dos

seus subordinados. Enfim, a resultante da parceria garantia praticamente a totalidade da

filiação dos trabalhadores da empresa ao sindicato. Por outro lado, não estabelecer uma

relação de parceria expunha a empresa a ações de fiscalização “mais pesada” por parte

dos sindicalistas216. A parceria principal, no entanto, era estabelecida com a Vale, que

mantinha um setor da MOP voltado especialmente para o contato direto e frequente entre

216 Tal como descrito pelo representante do Sintrapav:

“[Pesquisador:]

– E não tem problema com a Vale e com as empresas? Ou são eles mesmos que incentivam o pessoal a

procurar o sindicato?

– Geralmente as empresas que incentivam o pessoal é que trabalham correto. As empresas que não querem

o sindicato perto são as que a gente mais bate pesado, porque a gente já sabe que algum tipo de problema

no futuro ela vai pagar. Por algum motivo vai acontecer. Então, a gente aborda e fala o seguinte: ‘a gente

quer o sindicato pra negociar. Se tiver alguma coisa errada, vamos botar certinho. Vai ter medo do sindicato

se você estiver trabalhando errado’, a gente já fala pra eles. ‘Porque a gente está aqui não é pra te levar pra

cadeia, pra te prender, pra fechar as portas da sua empresa: ‘Vamos fechar as portas da sua empresa, você

não vai trabalhar.’ O papel do sindicato não é esse’. E mesmo assim eles não querem a gente lá. Então a

gente bate pesado, porque não pode proibir a gente de entrar, né?” (Entrevista com delegado sindical do

Sintrapav, 24 anos, na sub-sede do Sindicato em Ourilândia do Norte/PA, 18/09/2012).

Page 177: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

177

os sindicalistas e os gerentes das terceirizadas, a quem era indicado, por exemplo,

procurar o sindicato quando “chegavam”:

“[pesquisador:]

– Mas... assim, a Vale incentiva o pessoal a ser sindicalizado?

[delegado sindical:]

- Olha, a Vale até hoje não mostrou nenhum tipo de incentivo, mas tem

esse (...) [gerente da Vale], que é Relações Trabalhistas da Vale, ele

vem aqui e ele sempre prega o seguinte: ‘Vamos trabalhar em parceria’.

É o que ele prega pra mim, entendeu? E o que eu peço dele é ‘Poxa,

quando uma empresa vier pra cá, incentiva eles a se filiar, a procurar [o

sindicato]’. Porque muitas vezes a gente não atinge todos os

trabalhadores, de maneira, assim, geral. Sempre tem um ou dois que

escapa. Então [eu digo]: ‘Incentiva o pessoal a procurar a gente aqui’,

entendeu? Porque sem associado também o sindicato não sobrevive”.

(Entrevista com delegado sindical do Sintrapav, 24 anos, na sub-sede

do Sindicato em Ourilândia do Norte/PA, 18/09/2012).

Entre os trabalhadores, o sindicato era, em geral, mal visto. Era apontado como

um dos principais responsáveis pelos baixos salários ou até mesmo pelo rebaixamento

dos salários. Para alguns, receberia “propina das empresas”, “caixa dois”: “(...) eles falam

que é sindicato dos trabalhadores, mas eu considero que é mais sindicato dos empresários,

porque eles não ajudam a parte da gente”217. Eles se referiam, em especial, ao valor mais

baixo dos salários no Pará e à adequação das firmas que “chegavam” aos valores

estipulados na região, considerando que o sindicato atuava em seu desfavor:

“(...) uma empresa que chegou esses dias aí... esses dias não, há mais

de ano, chamada Engefort, parece que de São Paulo218... Ela chegou

com um salário de 1200 reais pra profissional, carpinteiro, pedreiro. Aí

as outras empresas, o sindicato [dos trabalhadores], baixou em cima e

ela teve que diminuir o valor. Inclusive é uma das que paga melhor aqui,

porque ela está pagando mais, ainda. O salário é 941, e ela paga 970 pro

pessoal. Mas ela chegou com um salário que estava correndo na capital

lá, o mesmo preço que estava lá, eles estavam querendo pagar aqui. Só

que o pessoal do sindicato... porque as empresas, né, caiu em cima...”

(Entrevista com Mário, carpinteiro, 41 anos, Lago das Rosas, Tucumã,

em 17/09/12).

217 Entrevista com Mário, carpinteiro, 41 anos, Lago das Rosas, Tucumã, em 17/09/12. 218 O site da empresa indica que sua sede seria em Goiânia, o que não descarta a possiblidade de ter tido ou

deslocado equipe de uma obra em São Paulo, antes da MOP, ou que o trabalhador tenha simplesmente

confundido as duas cidades.

Page 178: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

178

Além do recrutamento e da relação de parceria estabelecida com as empresas, os

sindicatos também exerciam importante agência na demissão e na expulsão dos

trabalhadores, tal como desenvolvo no próximo capítulo.

2.7) Difusão da categoria trecho

Atualmente, a referência ao “trecho” transcende seu provável contexto de origem.

Os trabalhadores, ao acompanharem a circulação das firmas da construção civil e o

circuito dos grandes projetos, em geral se deslocaram por obras em várias regiões do país,

alternando demissões e recontratações a cada destino. Não raro, agentes políticos

envolvidos com as grandes obras nas últimas décadas se depararam com os mesmos

trabalhadores em firmas no Pará, Minas Gerais, São Paulo, Amazonas, Pernambuco, etc.

O reencontro com esses trabalhadores, ao mesmo tempo fortuito e esperado, era relatado

tal como na fala de um membro da CPT deslocado para uma militância pastoral junto aos

operários de grandes projetos:

“(...) Mas o mundo é pequeno. Quando fui em São Paulo pra fazer um

curso, depois de Barcarena (...), um dia, na Catedral da Sé, encontro um

grupo de operários que trabalhavam aqui no Pará, em Barcarena. Eu

estava lá e ouvi: ‘[nome do membro da CPT]!”... São esses que andam

por aí... Depois me levaram lá onde eles dormiam, na construção da

obra”219.

O mesmo ocorreu com demais frações de trabalhadores e de profissionais

envolvidos com essas obras, direta ou mediatamente em contato com os peões deslocados

a serviço ou, como foi o caso na maioria das vezes, recrutados no próprio local das obras,

para o qual se deslocaram das mais variadas formas em busca de “serviço”. Por outro

lado, a aproximação entre determinadas condições de circulação das frações menos

especializadas da força de trabalho com outras mais especializadas e escolarizadas

também promoveu a circulação das categorias pelas quais esses trabalhadores eram

reconhecidos. Dentre estas, teve especial difusão o “trecho”, tendo como provável

referência os peões-de-trecho por eles comandados nas grandes obras. Atualmente,

grupos de trabalhadores altamente especializados, gerentes de recursos humanos,

médicos do trabalho, engenheiros, técnicos superiores, operadores de grandes máquinas

219 Entrevista com membro da CPT, Ourilândia do Norte, 19/08/12.

Page 179: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

179

e outros profissionais recrutados pelas firmas também fazem referência ao estar “no

trecho” ou a uma “vida no trecho”.

Ao longo do trabalho de campo, não pesquisei contextos de circulação desses

profissionais nem os entrevistei, com exceção de alguns gerentes das firmas. Nesse caso,

utilizei outras fontes, especialmente as páginas na internet usadas para busca de emprego

ou para o simples relato de experiências, postagem de fotos da MOP, de fotos de outras

minas, etc. Encontrei exemplos desse empréstimo cosmológico, por exemplo, nas

conversas realizadas entre pessoas que moraram em Ourilândia do Norte no período da

construção da MOP ou que em algum momento trabalharam nas firmas subcontratadas

da Vale.

Uma página pessoal que concentrou algumas dessas conversas era operado por

alguém que se apresentou com o seguinte texto: “Amigos, meu nome é Monique, sou

estudante de Engenharia. Este é o meu cantinho que escrevo com muito carinho. Meus

maiores tesouros são: meu marido Alair e meu filho Rafael. Viajamos pelo Brasil,

morando em muitas cidades diferentes, onde tiver oportunidade de trabalho estaremos

indo, e aqui no Blog conto um pouco da nossa história, desafios, o que aprendemos,

novidades que conhecemos, nossos amigos, e muito mais. Espero que gostem, deixem

comentários, enviem sugestões. Respondo a todos os emails que me enviarem e as

respostas que não souber encaminho a quem possa ajudar”220.

Em uma postagem datada de 15 de março de 2010, o operador da página inseriu

uma série de fotos internas da MOP: silos, precipitadores, sistema de refrigeração,

galpões, máquinas e outras estruturas da mina, colocando como marcadores “mineração

Onça Puma”, “Ourilândia do Norte”, “Pará” e “Vale”. Em seguida, havia um total de 81

comentários. O primeiro foi de uma pessoa que se identificou como alguém que morou

no início da cidade, entre 1984 e 1989; o segundo parabenizou a postagem das fotos e

disse lembrar do tempo que trabalhou no “site” (termo usado pela Vale para se referir ao

local da unidade operacional da MOP em Ourilândia); o terceiro afirmou ter trabalhado

em 2008 como auxiliar técnico de medição, disse ter gostado de morar na cidade “mesmo

com aquela poeira toda” e pediu para “dar um abraço no pessoal do hotel verona”; o

quarto escreveu que morava no Rio de Janeiro/RJ, foi convidado para trabalhar em uma

220 A página era intitulada “Blog da Monique”. In:

http://moniquecristinadesouza.blogspot.com.br/2010/03/mineracao-onca-puma-obra-273-ourilandia.html .

Esta página mantinha links com uma “comunidade” em um site de relacionamentos intitulada “Meu marido

trabalha no trecho”.

Page 180: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

180

obra da Vale em Ourilândia do Norte e que, caso aceitasse, teria que pedir demissão do

seu emprego. Já o quinto postou: “Oi, Monique! Tudo bem? Parabéns pelas fotos! Meu

nome é Thiago, moro em Belém-PA, sou Técnico em Química, e tenho interesse em

trabalhar em grandes projetos como essa da Vale em Ourilãndia do Norte (na área de

Níquel). Porém, sempre a gente fica com um pouco de receio em sair da nossa cidade

natal e se aventurar em num local totalmente desconhecido por nós. Do seu ponto de vista,

vale a pena sair da capital (Belém-PA)em busca de novas experiências e conhecimentos

em Ourilãndia do Norte? Desde já agradeço a sua resposta e desejo muito sucesso pra

você nessa sua etapa profissional aqui no nosso Estado do Pará (que sempre está de

abraços abertos para aqueles que desejam crescer junto com ele!)”. E a resposta a esse

comentário foi a seguinte: “Thiago, sou suspeita pra falar pois adoro essa vida no trecho...

No momento eu estou apenas acompanhando meu marido que trabalha na obra, mas essa

vida de mudanças, novas culturas, pessoas diferentes... é fascinante!!! Acho que o Brasil

é grande demais e tem muita coisa pra conhecer, é um desperdício ficar preso em lugares

onde já conhecemos tudo... Obrigada pela visita ao BLOG e continue acompanhando

nossas postagens. ” (grifos meus).

Outros comentários perguntaram sobre a estrutura da cidade: melhores hotéis,

escolas, supermercados, ensino superior, aeroporto, hospital, preço dos aluguéis, custo de

vida, etc. Esses, em geral, eram de mulheres que afirmaram estar acompanhando maridos

recém contratados pela Vale ou pelas grandes firmas e queriam ter informação de

possibilidade de trabalho em suas áreas de formação (fisioterapeuta, enfermeira,

pedagoga, etc). Um engenheiro de materiais disse estar indo “acertar a moradia” para

levar a esposa. Uma técnica de segurança do trabalho em uma “empresa dentro da

Alunorte” escreveu que tem curiosidade para conhecer essa “obra tão falada aqui em

Barcarena”. Alguns procuraram emprego: um engenheiro hídrico do “sul de Minas” que

no momento estaria com a esposa em Cuiabá/MT (“onde viemos tentar trabalho”) buscou

saber sobre uma vaga na área; um técnico em manutenção elétrica de equipamentos

pesados buscou saber se teria trabalho. Grande parte, porém, alegou passagem nas obras:

um estudante de engenharia que teria trabalhado 1 ano e 11 meses na Usiminas Mecânica

S/A e estaria procurando voltar para trabalhar diretamente na Vale, como engenheiro; um

estudante de Ipatinga/MG, nascido em Minas Gerais e antigo morador de Tucumã entre

1988 e 2008, que também afirmou ter trabalhado um ano na montagem da MOP; um

soldador que teria ficado 8 meses na obra da MOP e que “no momento estamos tocando

a obra do ltq2 em cubatao”; um operador de escavadeira que teria trabalhado “mais de

Page 181: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

181

dois anos pela Odebrecht”; outra pessoa que seria do “norte de minas” também teria ido

para parte da obra terminada há três anos atrás (entre 2007 e 2008); um analista de

qualidade que teria trabalhado um ano e seis meses na MOP (“trabalhei na smi e o pessoal

passou para progen” [empresas de engenharia]).

Mais adiante, em 17 de novembro de 2010, houve a seguinte mensagem: “Oi

Monique, sou do Rio Grande do Norte e meu esposo está trabalhando na obra da vale ai

em Ourilândia do Norte/PA. Tenho muita vontade de acompanha-lo mais trabalho aqui e

fica mais complicado. Mais é muito bom ter contado com alguém dai. Adorei seu blog,

muito criativo e podemos conhecer um pouco da obra e de Ourilândia. Abraços para vc e

família.”. E, como resposta: “Oi Sanara, obrigada pela visita. Como você, meu marido

também trabalha no trecho. Moramos em Ourilandia por 2 anos. Atualmente estamos em

Paracatu-MG. Mas adorei morar em Ourilandia, deixamos lá muitos amigos e amigas e

que continuamos a nos corresponder pela net. Mas sempre que recebo presentinhos deles

sobre novidades na cidade eu posto aqui, tá. Continue acompanhando nossas postagens.”

(grifos meus).

Em outras postagens, a pessoa que se identifica como Monique também informa

ter morado com o marido e filho de 2008 a 2010 em Ourilândia do Norte e que o marido

também já morou em Niquelândia/GO. Ele seria Inspetor de Qualidade da MIP (MIP

Engenharia S/A) e teria sido transferido pela empresa quando estava “em Minas” para a

obra de Ourilândia do Norte. Em 04 de abril de 2011, ela escreveu estar morando em

Paracatu/MG. Em 10 de agosto de 2011, estaria em Parauapebas/PA. Em 27 de janeiro

de 2015, descreveu sua mudança de carro de Carandaí/MG “rumo ao S11D em Canaã dos

Carajás/PA” [projeto de extração de ferro da Vale].

Era, portanto, o caso de um quadro considerado permanente – ou “estratégico” –

pelas firmas, cujo gerenciamento prevê deslocamento entre obras ou, melhor, entre as

fases das obras especificamente assumidas pela firma, pelo tempo do contrato, ou pelo

tempo da necessidade desse quadro superior no tempo de contrato, que pode ser menos.

Era a condição dos próprios gerentes de recrutamento deslocados para a abertura do

escritório da firma, seleção de trabalhadores, administração dos contratos, relação com a

empresa contratante, etc. Ao contrário dos trabalhadores que entrevistei, tal como frisei

antes, há certa garantia (ao menos formal, ou esperada) de permanência na firma para

além da próxima obra e, dependendo do período no próximo destino, no caso daqueles

que optam por isso, há garantia de condições de reprodução da família (esposa e filhos,

já que se tratam, em sua grande maioria, de homens). Particularmente, escola e moradia,

Page 182: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

182

pressupondo um cônjuge que não trabalha ou que busca novo trabalho ao longo da estadia

e a cada nova estadia.

Esse tipo de cargo em uma firma era equiparado ao trabalho “no trecho” dos peões,

isto é, dos ajudantes e profissionais que ocupam posições subordinadas. A apropriação

do discurso, porém, era também uma ressignificação que reafirmava o trecho (a “vida no

trecho”, o “ser do trecho”) como um estilo de vida condicionado, principalmente, pelo

deslocamento e/ou pela duplicação do espaço reprodutivo. Assim como nos comentários

da página da internet citada, encontrei outros exemplos de idealizações correlatas. Um

deles bastante curioso, propagado em um agenciamento recrutador. Era uma página de

oferta de vagas de emprego em que havia uma postagem de 20 de agosto de 2013, sem

autor, intitulada “Eu sou do trecho”. Antes do texto, foram inseridas fotos de uma obra,

sem legendas, aparentemente a construção de um duto. O objetivo do recrutador, operador

da página e provável autor do texto seria divulgar diversas vagas de empregos “onshore

e offshore”, “em plataformas, portos, e grandes canteiros de obras espalhados no

Brasil”221:

Eu Sou Do Trecho...

Ser do trecho é arrumar as malas sem saber o que vem pela frente com

uma única certeza: eu tenho que me acostumar!!!

É estar longe da família e dos amigos de confiança e conviver com

pessoas que, geralmente, nunca viu e tentar fazer delas seus novos

amigos, pois é com eles que estará convivendo dali pra frente.

É não ter todos os dias o abraço da mãe, do pai, dos irmãos, do marido

ou da esposa; e gastar um dinherão de telefone para poder apenas

ouvir a voz deles.

É ter a alegria de reencontrar um amigo de trecho que não via há anos,

se emocionar e constatar que "o mundo é grande, mas o trecho é

pequeno".

É acordar bem cedo para ir pro trampo e não saber que horas vai

voltar; mas se sai mais tarde fica feliz de anotar mais uma hora extra

no seu caderninho.

Ser do trecho é falar mal do gato(firma) quando o dinheiro não cai no

dia certo e sair espalhando que não caiu!!!!

Ser do trecho é sair espalhando que a grana caiu e já aproveitar pra

chamar a turma para comer água mais tarde (se tiver baiano então...

rs)

221 In: http://www.empregosadmitindo.com.br/2013/08/eu-sou-do-trecho.html. A autoria da página é

atribuída a “Ricardo Ricado”.

Page 183: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

183

É fazer, geralmente, trabalho desgastante e de responsabilidade,

correr riscos, e estar sempre com o sorriso no rosto.

Ser do trecho é ficar louco para ir para casa ver a família, sempre estar

ligado em promoções de passagens aéreas pra poder visitar a família.

É sempre passar um tempão tentando explicar pq leva essa vida e

ninguém nunca entende, mas não precisa ficar muitos dias, porque não

consegue mais ficar longe do trecho... é querer logo viajar de novo.

ÉÉÉÉ

É ter tudo cabendo em uma mala bem grande, e deixar o resto pra trás

nas repúblicas por onde passa...

Ser do trecho é ser amigo, ser divertido, ser carente, ser batalhador.

É sempre saber jogar dominó, baralho, sinuca ou tótó...rsss

É não ter feriado, fins de semana ou qualquer outro tipo de folga e

sempre está pronto pra trabalhar no fim de semana.

É ter a sanidade mental posta em cheque antes dos 5 meses de trabalho

no GATO(empresa).

É ter vontade de desistir, Puxa... tem horas que dá vontade de largar

tudo e ir embora... tem horas q bate um desespero... em pensar na

turma, na namorada longe, na familia...

É não se apegar ao teu lar, pois ter que se apegar a um lugar fixo

deixará tua alma IRRIQUIETA E ANSIOSA PELO AMANHÃ...

É fazer muita amizade, conhecer lugares diferentes, culturas diferentes,

a gente conhece o nosso País.

Ser do trecho é uma questão de estilo: ou vc tem ou vc não tem...

hehehehehe...

Se fosse pra ter um adesivo no carro, o mesmo seria: "Orgulho de ser

do trecho"

Só quem vive sabe como somos e como estamos...

SOMOS GUERREIROS E PENSAMOS EM UM FUTURO MELHOR

PARA NOSSOS FILHOS...

Tem gente que diz que a gente é bicho burro, mas eu digo:

A gente é gente BOA!!!!!

E eu adoro ser do trechooo!!! hehehe!!!

Tal como esses quadros superiores, outros trabalhadores vêm adotando a categoria

trecho para se referir ao seu trabalho e, certos casos, a um estilo de vida. Acompanhada

pelo amplo arco intersetorial e inter-regional de circulação dos trabalhadores que a

adotam, a referência a essa categoria já não se restringe ao contexto da construção civil e

dos grandes projetos. Em geral, o uso se deve a uma exigência da função assumida, como

no caso dos deslocamentos a serviço das firmas, mas também ocorre em decorrência da

alta circulação firma-firma a que foram submetidos (redução do tempo de contrato) ou

mesmo da necessidade de deslocamento em busca de trabalho atrelada a essa circulação

(demissão e recrutamento em locais distintos). O trabalhador demitido ou em vias de

Page 184: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

184

demissão, nesse sentido, uma vez em contato, pode fazer uso da expressão, referindo-se

à necessidade de “sair no trecho”, “cair no trecho”, passar a “ser do trecho” ou “voltar

para o trecho”. No último capítulo, apresento uma hipótese para as condições que

propiciariam essa adesão (e conseguintes ressignificações) de cada vez mais frações de

trabalhadores.

Page 185: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

185

CAPÍTULO 3:

EXPULSÕES

Saskia Sassen (2014) recentemente acentuou a emergência de “novas lógicas de

expulsão” e deu a este conceito um amplo escopo no capitalismo global: “expulsões” da

sociedade, da economia ou da biosfera, isto é, expulsão de trabalhadores dos sistemas de

assistência social e de saúde, expulsão de partes da biosfera de seu espaço vital – água,

terra, ar -, encarceramento, expulsão do trabalho, da casa, da terra, etc. Meu objetivo nesse

capítulo também é tratar de expulsões, a partir da pesquisa junto aos trabalhadores que se

deslocaram para Ourilândia após a notícia de implantação da MOP. O caráter que

pretendo demonstrar dessas expulsões, no entanto, é intrínseco, sistemático, acelerado e

diretamente relacionado às condições de circulação dessa força de trabalho subsumida ao

atual processo de acumulação do capital, tal como abordarei no próximo capítulo. Isso,

portanto, a princípio, não valida nem refuta a tese de Sassen. Se o Brasil foi tido como

uma “exceção” por ela (pelo menos até 2014 e, certamente, não depois de 2015), cabe

investigar em que condições houve “incorporação” e não “expulsão”222. Nesse sentido,

acredito ser importante enumerar parte dos processos sociais em jogo, tendo em tela,

principalmente, os dados da pesquisa de campo.

A abertura de novas megaminas tem sido comumente associada à expulsão de

camponeses e indígenas. Em Ourilândia, como já ressaltei, a implantação da MOP foi

realizada em um processo de espoliação das terras de pequenos produtores e de

contaminação do principal rio utilizado pelo grupo indígena vizinho223. As expulsões

listadas aqui não são essas, embora parte daqueles que foram expropriados possivelmente

tenham feito parte da força de trabalho recrutada na cidade. Mas sobre esses,

222 “(...) Most of the governments in the Americas and Europe, and in the immediate postcolonial period of

the 1960s in much of Africa, could not do today what they did during the massive reconstruction and

infrastructure developments of the 1950s and 1960s because they are now indebted. The exceptions are

several Asian countries, Brazil, and a few others where governmental capacity to encourage and directly

undertake development is in full force. It is an important question whether they will avoid the drift toward

the mode of expulsion we face in the West. The indicators are that they will not” (Sassen, 2014: 217). 223 Em um primeiro momento, parte dos pequenos produtores vendeu individualmente as terras ou foi

violentamente expulsa a partir da intervenção de agentes vinculados à empresa. A partir de 2008, com a

mediação de movimentos sociais e organização de lutas coletivas de resistência, houve um processo

negociado de reassentamento e de indenizações, tendo como modelo a criação de uma pequena produção

mercantil cooperativada ou a realocação de pequenas vilas atingidas pela MOP (CPT, 2013; Guedes, 2012).

Page 186: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

186

especificamente, havia pouca informação, a não ser a referência de que tinham “saído no

mundo” por parte dos que eram reassentados e participavam de negociações coletivas

com a Vale e com movimentos sociais. Não entrevistei nem tive melhores informações

sobre sua localização ou situação “no mundo”. É provável que não tenham tido sorte

diferente dos que abordarei a seguir e de todos que me explicavam, em 2012, que ali não

era mais lugar para eles.

3.1) “Aqui não é mais pra nós...”: demissões, arrastões, tratores e pastos

Logo na chegada para uma etapa de trabalho de campo em Ourilândia e Tucumã,

fui informado que naquele momento o “quente” era Canaã [dos Carajás/PA, cidade em

que a Vale instalava o Projeto S11D, com novas e ainda maiores minas de ferro]. Esse

seria o destino das firmas no momento; o local em que se poderia ser fichado. A MOP

estava paralisada em virtude dos acidentes nos fornos e apenas as obras de outra parte da

unidade residencial continuavam. O fluxo de trabalhadores na cidade nem de perto seria

igual ao auge da construção da mina e da usina, já em fase de operação. Em um dormitório

de Tucumã, um peão me dizia que queria “ir embora”, explicando que “as firmas não

querem mais fichar” e que, por outro lado, “acabou a mata”, ou seja, as fazendas também

não requeriam mais tantos trabalhadores como no período de sua implantação, nas

décadas anteriores. E resumiu: “aqui não é mais pra nós...”. Com isso, ele se referia a um

mesmo processo de deslocamento já descrito por outros que, como ele, trabalhavam como

“braçal” ou “sem profissão” nas fazendas.

Um deles, com 66 anos, após descrever longamente as fazendas que trabalhou

desde os 13 anos, primeiro em Minas Gerais, depois, em Goiás e, por fim, no Pará,

também já tinha dito que “a região vai ficando ruim de serviço e a gente vai andando...”.

E essa percepção não era apenas daqueles que se deslocavam para Ourilândia e Tucumã

em busca de “serviço”. Mesmo um “diagnóstico” realizado por uma empresa contratada

pela Vale para a avaliação dos impactos da implantação da MOP, por exemplo, relatava

que 75% dos moradores de uma vila e 80% dos moradores de Projetos de Assentamento

vizinhos à MOP declararam que houve diminuição de oferta de trabalho de diárias em

fazendas (Diagonal, 2011; CPT e CEPASP, 2012). Afora as diárias e empreitas correntes

no manejo das pastagens e demais “serviços” na cidade, não era mais necessário o volume

de trabalhadores que permitiria ao recém-chegado classificar a região como um lugar

“bom de serviço”, como nos anos anteriores.

Page 187: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

187

O fluxo de trabalhadores ainda existente era revertido para as fazendas pecuárias,

que também já não recorriam ao recrutamento indiscriminado, como antes:

“(...) agora não é mais assim, eles mesmos vêm. Eles vêm com essa

fama de que aqui é bom para ganhar dinheiro, que tem a mineradora.

Só que eles chegam e não é pra qualquer um, tem que ter um estudo,

tem que ter pelo menos um curso técnico, ou alguém que indica... e aí

eles ficam aí, sem conseguir emprego e encontram alguém que diz

‘olha, ali tem uma fazenda’, ou um gerente, ou um trabalhador mesmo,

que convida o outro, e eles acabam indo assim. Essa história que o gato

ia lá no Maranhão e trazia um caminhão cheio de homens não acontece

mais. É mais difícil. Às vezes, o próprio fazendeiro, que é de outra

região, arruma trabalhador lá na região dele e ele mesmo traz, mas é

um, dois, no máximo. Não traz aquele monte mais não”224.

Outras vezes, sem esta opção, o trabalhador buscava meios para se dirigir para

outra cidade ou para “voltar”, como relatado por uma assistente social da Prefeitura

Municipal de Ourilândia:

“Meados do ano passado [2011], o que a gente teve de solicitação de

passagem... o pessoal: ‘não, é que eu vim pra cá pra trabalhar...’. Teve

muitos homens, né, a maioria homens, de vir só com uma mochila nas

costas ‘é que vim pra cá pra Ourilândia porque eu fiquei sabendo que

aqui tem muito emprego, tem muito trabalho...’ e ficava aí preso em

rodoviária, pelas praças aí da vida, de Ourilândia. Quando eles vêm não

tem mais aquela qualificação que eles estavam solicitando na época, aí

o que acontece? Não consegue emprego e acabava aqui solicitando

passagem pra voltar”225.

Na primeira fase da obra da MOP, a Vale e as firmas mantinham cursos de

formação e certificação de trabalhadores nas funções requeridas e, dependendo da

necessidade, recrutavam o trabalhador e o submetiam a uma formação rápida e específica

em serviço. Na fase seguinte, de operação, o fluxo de trabalhadores em busca de trabalho

era suficiente para suprir os quadros e uma série de funções relativas à construção e

montagem industrial não eram mais necessárias, ou eram necessárias em menor escala.

Neste sentido, as firmas inseriam exigências para o recrutamento e, às vezes, mecanismos

de seleção, como indicações ou experiência anterior na função. Em outros cargos, já

224 Entrevista com agente da CPT, Tucumã/PA, 27/08/12. 225 Entrevista com assistente social, Secretaria de Trabalho e Promoção Social da Prefeitura Municipal de

Ourilândia do Norte, 19/09/2012.

Page 188: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

188

seriam necessários cursos técnicos ou um determinado grau escolar e apenas uma pequena

parte deles era preenchida por jovens trabalhadores formados na própria cidade226.

Além disso, a paralisação da MOP também ocorreu em meio a mudanças de gestão

da Vale e de novas estratégias de mercado por parte da empresa no contexto de crise

mundial pós-2008. Houve paralisação ou redução de investimento em todos os projetos

apoiados financeiramente pela empresa nos municípios: cursos profissionalizantes,

atividades esportivas e recreativas para a comunidade, convênios com escolas técnicas,

parcerias com ONGs, prefeituras, secretarias estaduais, construção de equipamentos

urbanos, etc. Assim, mesmo as atividades que eram mantidas na fase seguinte da MOP –

em grande parte desenvolvidas como atendimento de condicionantes legais e vinculadas

à propaganda da empresa – foram suspensas.

Em dado momento de setembro de 2012, por exemplo, segundo informações

obtidas no Sintrapav, muitas vagas só eram preenchidas por comprovação de experiência

ou certificação prévia dos trabalhadores. Apenas a função de servente/ajudante não exigia

pré-requisitos e as de pedreiro e carpinteiro requeriam contratação mediante teste prático.

Para todas as outras, era necessário apresentar curso das Normas Regulamentadoras e

experiência comprovada, além de ensino fundamental completo. Ainda assim, as

empresas de construção civil recrutavam e demitiam em seguida de acordo com o

histograma das obras, na sequência planejada de cada etapa: primeiro, pedreiros,

montadores de andaime, ajudantes; depois, quando suspensa a alvenaria, eletricistas; mais

a frente, carpinteiros, etc. E, junto à circulação firma-firma, inseriam mecanismos de

controle e seleção, tais como listas de trabalhadores indesejados e necessidade de

indicação.

Apesar desses dois mecanismos terem sido utilizados ao longo de todo o período

das obras, com a menor necessidade de força de trabalho na segunda fase da MOP, eles

eram cada vez mais empregados pelos recrutadores, eliminando cada vez mais

trabalhadores. Certas firmas, por exemplo, já no momento da “chegada”, só contratavam

mediante indicação, o que exige certo conhecimento que o trabalhador, quando era o caso,

226 Era comum a constatação de que a “Vale seleciona apenas os melhores que lhe servem para trabalhar”.

A aprovação nos cursos profissionalizantes ofertados na cidade após a implantação da MOP não garantia a

contratação pela Vale ou pelas principais firmas. Um membro da CPT envolvido com atividades pastorais

na cidade, por exemplo, constatava a frustração de muitos com “os cursos”: “gente que é daqui, que faz os

cursos e está entrando pra trabalhar, só que não garante serviço pra todos... Mas, você vê o currículo deles,

são duas, três páginas” (Entrevista com membro da CPT, Ourilândia do Norte, 19/08/12). No capítulo

anterior, citei o caso de alguns comentários em páginas na internet. Neles, alguns trabalhadores relatavam

ter saído de Ourilândia ou Tucumã para estudar em outros estados com o intuito de tentar voltar e trabalhar

diretamente na Vale. Alguns, inclusive, teriam trabalhado nas firmas apenas na fase de construção da MOP.

Page 189: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

189

apenas obtinha com algum tempo de estadia no local. Obter uma indicação, no entanto,

significava contratação imediata, como descreveu um trabalhador:

“(...) indicado não tem problema. Se você me indicar... você pode

trabalhar numa empresa que você estiver lá, você é um cara mais alto

lá, um encarregado, um supervisor de alguma coisa, um engenheiro,

você fala ‘tal hora você vem aqui’. Pode ter mil pessoas aí, mas se você

me enxergar lá no meio: ‘(...), chega aí’, porque eu sou indicado, não

tenho que esperar ninguém, passo direto, pego meu documento e vou

fazer meus exames e pronto. E os outros ficam esperando, né, porque

está esperando vaga. E você sendo indicado não, você já passa

direto”227.

Essa fala é de um ex-marceneiro que foi indicado para uma vaga de pedreiro por

um encarregado de uma firma que era conhecido de um colega da empresa em que ele

estava. Na medida em que representa principalmente colaboração para com a disciplina

requerida pela firma, a indicação prevalecia sobre qualquer outro pré-requisito.

O número de demissões, entretanto, tendia a ser maior conforme se aproximava o

fim das últimas obras da implantação da MOP. Ourilândia deixava de ser uma cidade

“boa de serviço”. Contudo, em 2012, nas salas de espera dos sindicatos e em outros locais

de passagem de demitidos e de recém-chegados, ainda era possível ouvir trocas de

informações sobre novos destinos: firmas em Canaã dos Carajás/PA, em Altamira/PA, na

construção da UHE de Belo Monte, etc228.

Mas, neste sentido, a probabilidade de sucesso em uma viagem em busca de

trabalho em Ourilândia ou em Tucumã diminuía e, por outro lado, aumentava o risco de

se ficar rodado. Citei anteriormente os casos de rodados na praça da cidade e de outros,

abrigados em um ponto de apoio, mas sem condições de novo deslocamento, tendo posse

somente das roupas no corpo. Para esses, não era possível permanecer nas ruas das

227 Entrevista com Mário, 41 anos, Lago das Rosas, Tucumã, 17/09/2012. 228 Dadas as dimensões das obras realizadas no Brasil até 2012 e sua atual desativação (ou finalização da

fase de construção), é possível afirmar que as experiências caracterizadas pela vinculação da circulação da

força de trabalho ao deslocamento espacial envolveram um contingente de trabalhadores muito mais

expressivo do que em qualquer época anterior, assim como também provavelmente envolverão suas

dinâmicas de expulsão ainda em curso. Só o que foi mobilizado para o Complexo Industrial Portuário de

Suape, em Pernambuco, por exemplo, equivaleria a uma nova Brasília. O fim das obras envolverá cerca de

67 mil demitidos. Como relatou uma procuradora do trabalho citada por Godoy (2014: 13): “As demissões

já começaram. Só este mês já foram registrados 1,6 mil desligamentos, sem o pagamento devido de verbas

rescisórias. Ficamos apreensivos com a situação porque o ápice das demissões vai ocorrer no período entre

2014 e 2015, quando as obras da Refinaria Abreu e Lima forem gradativamente sendo concluídas,

demitindo 40 mil trabalhadores [...] O governo só se preocupou com a chegada dos investimentos, sem

fazer qualquer planejamento social em torno de Suape”.

Page 190: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

190

cidades por muitos dias. Em momentos de maior aglomeração de rodados, fui informado

que as empresas de mineração já teriam financiado um ônibus para retirá-los. De maneira

corrente, porém, eram organizadas algumas operações de agentes públicos para as

expulsões. Em Tucumã, por exemplo, uma força-tarefa de diversos órgãos da Prefeitura

Municipal denominada “arrastão” era realizada frequentemente para abordar e retirar

pessoas das ruas, sempre com uso de força policial:

“(...) a gente faz algumas ações, com polícia, com outros atores sociais,

a gente vai até a praça porque às vezes acontece de muitos serem

mandados embora, que eram de uma terceirizada e acabou aquela

empreitada. E alguns acham que vai vir pra cá, realmente vai fazer a

vida, vou fazer o rumo porque lá onde eu estou no Maranhão, Teresina,

outros lugares, a maioria é do Maranhão, vem pra cá começa a trabalhar

com serviços braçais, mas aquela parte, que é o principal, que é o início,

acaba e eles acabam não conseguindo retornar. Porque as empresas vão

e chamam, mas pra retornar... Eles pagam seus direitos, mas eles

acabam ficando pelas ruas, vai ficando, vai gastando o seu dinheiro e

eles acabam não tendo como voltar”229.

Nestas ocasiões, as secretarias de Assistência Social dos municípios forneceriam

passagens rodoviárias para as “cidades de origem” indicadas pelos trabalhadores

recolhidos230.

3.2) Fogo, rebelião, greve

Algumas demissões devem ser destacadas em meio ao processo mais amplo de

expulsões. Considerando uma gestão da força de trabalho pautada pela demissibilidade e

pronta substituição dos trabalhadores, como frisei, as demissões ocorriam com grande

frequência pelos mais variados motivos e a qualquer momento, especialmente entre a

imensa maioria tida como “volante” pelas firmas, ou seja, os trabalhadores recrutados no

local da obra. Um dos motivos não só para a demissão como para a não contratação era a

229 Entrevista com assistente social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Tucumã, Tucumã,

20/09/2012. 230 Em entrevista, uma assistente social fez questão de frisar essa questão: “(...) não é aquela coisa de tirar

aqui da praça e mandar para uma cidade um pouquinho mais longe só pra ele sair daqui, pra uma praça

vizinha. Não. Nós mandamos pra cidade de origem” (assistente social da Secretaria de Assistência Social

da Prefeitura de Tucumã, Tucumã, 20/09/2012). Em outras cidades teriam a prática de expulsar pessoas

nessa situação para qualquer outro lugar, provavelmente para evitar maiores custos com passagens

(Rumstain, 2012). Voltarei mais adiante à questão da “volta” ou da “cidade de origem” desses

trabalhadores.

Page 191: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

191

participação (ou suspeita de participação) em ativismo operário, contestação ou protesto.

Esse motivo reservava, inclusive, desdobramentos específicos por parte das gerências das

firmas e também dos trabalhadores e da militância operária que eu destaco aqui não só

nas obras da MOP e na Vale, mas, dada a semelhança das experiências, também em uma

perspectiva brevemente comparada com outros grandes projetos do período no Brasil.

Em geral, a participação em ações ou movimentos contestatórios foram punidas

com a demissão sumária e imediata dos trabalhadores. Outra prática comum era o

impedimento de novas contratações por outras firmas, a partir de diversas formas, em

especial por meio de troca de informações entre os gerentes das firmas, certos casos, com

a colaboração de dirigentes sindicais. Contudo, as exclusões de indesejáveis se referiam

a uma série de restrições a interesse das empresas. Além da proibição de ações

contestatórias e atitudes consideradas indisciplinadas, o trabalhador também poderia ser

eliminado por não ter trabalhado no período de aviso prévio, por ter se envolvido de

alguma maneira em um acidente de trabalho, por uma discussão, etc.

Na MOP e em outros grandes projetos no período, porém, como descrevo a seguir,

observei não apenas a ocorrência de trocas de listas de indesejáveis entre firmas, mas

outra prática comum em contextos de terceirização: o fim do contrato com a firma e a

proibição de recontratação pelas demais firmas de todos os trabalhadores que tiveram

registro de trabalho nela. Assim, a empresa principal não apenas demitia imediatamente

os envolvidos, como pretendia excluir do quadro das terceirizadas todos aqueles que

participaram indiretamente da experiência, especialmente em casos de rebelião ou greves,

momentos em que as gerências das firmas e da empresa principal não tinham informação

exata sobre qual trabalhador participou ou não e nem qual era seu grau de envolvimento

nos atos. Sendo assim, de maneira geral, o registro de trabalho em uma empresa em que

houve conflitos ou greve impede que o trabalhador, participado ou não do movimento,

seja contratado por outra. Para o trabalhador que tem esse registro, portanto, resta a opção

de se deslocar para outra grande obra ou, como notei depois nas entrevistas com um

participante de uma tentativa de greve em uma firma da MOP, buscar uma ocupação

alternativa até conseguir ser novamente recrutado por uma firma que não tenha mais esse

filtro, algumas rodadas de contrato depois. Isso significava retornar às diárias e empreitas

ou qualquer outro “serviço” por um período indefinido, fora das firmas. Certos casos,

mesmo após alguma circulação, a restrição era mantida através da empresa principal, no

caso, a Vale, cujos diretores informavam a proibição da contratação dos trabalhadores

diretamente envolvidos nas tentativas de greve aos gestores da firma que “chegava”. Para

Page 192: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

192

alguns, portanto, a opção de permanecer na cidade e tentar voltar ao circuito das firmas

não estava presente, ou era ainda mais indefinida do que aos participantes e fichados em

geral na firma em que ocorreu o evento.

A demissão por participação em ações contestatórias e a proibição do ativismo

operário nos grandes projetos são práticas antigas. Nas obras do PGC e entre os

terceirizados nas minas de Carajás, por exemplo, Roberts (1995) já constatava:

“There are numerous stories among subcontractors at Carajás of union

organizers or complainers being fired summarily. As Antonio, a

mechanic and subcontractor worker, put it, ‘They fire people here

without just cause. There’s just no organ here that can enforce the rights

of workers. To talk truthfully, I’ve never seen a place as bad as this.

Other places a worker can complain, but not here’. A driver disparaged:

‘I talked to my supervisor who said, ‘If you’re not satisfied, then quit

and go hungry.’ If you complain here, you get fired’.” (Roberts, 1995:

742).

Antonaz (1995) e Fontes (2003) também já tinham relatado a existência de “lista

negra” nas obras da Albras, em Barcarena/PA, nos anos 1980. Fontes cita que, em 1983,

um grupo de trabalhadores demitidos por participar de greves no canteiro de obras

divulgou uma carta-denúncia com o apoio da Associação Profissional dos Trabalhadores

nas Indústrias da Construção Civil de Barcarena, Pastoral Operária, Diocese de

Abaetetuba e Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Na carta,

denunciavam a existência de uma lista feita pelas empreiteiras que impedia a

recontratação de operários identificados como líderes. A mesma pesquisadora menciona

que outros trabalhadores foram demitidos por distribuir um jornal informativo de sua

Associação nos alojamentos.

Na pesquisa junto à MOP, obtive informações de algumas estratégias utilizadas

por parte das gerências empresariais para evitar as rebeliões e o ativismo operário

contestatório. De maneira geral, mesmo após a contratação, os agentes de disciplina e os

quadros superiores promoviam uma intensa vigilância dos operários, especialmente

quando estavam em situação de alojamento, quando todas as atividades dentro e fora dos

canteiros de obras seriam controladas e supervisionadas sob pena de demissão e expulsão

imediata das firmas. Ribeiro (2008; 1991), neste sentido, por exemplo, já propunha que a

situação desses operários de grandes projetos seria a de um contexto de instituição total.

Em Ourilândia, em determinada ocasião, entrevistei um gerente local de uma empresa da

Page 193: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

193

área de construção civil que se apresentou como responsável pelo recrutamento da firma

na obra vinculada à mina de Onça Puma e do Projeto Salobo, também da Vale, localizado

em Marabá/PA231. Na perspectiva dele, um gerente que já teria tido experiência anterior

com revoltas em obras anteriores da empresa, os protestos seriam “rápidos e

destruidores”, com queima de alojamentos ou quebra de equipamentos, “sem liderança

formal” e sem contato com os sindicatos. As reivindicações apenas seriam conhecidas

por eles através de boatos, no entanto, haveria preocupação por parte das gerências com

a qualidade da água e da comida e com o fornecimento de energia elétrica, principais

causas das revoltas e das queixas apresentadas pelos trabalhadores232. A maior

231 Entrevista com gerente local da Engeform Construções e Comércio Ltda, Ourilândia do Norte, 21/11/12. 232 É sabido que no setor da construção civil, especialmente em grandes obras, as rebeliões operárias são

construídas sob um contexto desconsiderado no discurso dos quadros superiores das firmas e empreiteiras,

constituído tanto a partir do desconhecimento etnocêntrico de sua posição de classe quanto do papel de

porta-voz dos interesses empresariais que lhes é atribuído nessas situações. Os administradores das firmas

estão interessados em dissociar as condições de trabalho e de moradia dos trabalhadores das causas das

rebeliões aparentemente espontâneas, creditando-as à ação de “elementos” e “agitadores” externos, “brigas

de peões”, uso de álcool ou de outras drogas, falha “ocasional” na comida ou nos alojamentos. Os fatos que

desencadeiam as rebeliões, contudo, não podem ser separados de seu contexto e do processo que decorre a

partir de cada uma delas. Em geral, as rebeliões, enquanto ações diretas de classe, são politicamente eficazes

(Moisés e Martinez-Alier, 1978). Pesquisas que se detiveram sobre algumas delas, caso a caso, em situações

concretas, relacionaram a repentina adesão e violência da ação coletiva dos operários a um contexto de

superexploração da força de trabalho, enorme descontentamento com as condições de vigilância, de

alimentação, de alojamento, de trabalho e remuneração, acidentes e mortes por falta de segurança,

reprimendas violentas ou tidas como moralmente insuportáveis pelos trabalhadores, castigos físicos por

parte de policiais, feitores e seguranças a serviço das empresas, etc, junto com a conivência ou afastamento

dos aparatos sindicais e a impossibilidade de greve ou contestação, ainda que informal. As situações

específicas que desencadearam as rebeliões, nesse sentido, seriam apenas o estopim da revolta, dentro das

condições de possibilidade de ação coletiva disponíveis aos operários de grandes obras em contextos de

instituição total canteiro-alojamento. E elas, portanto, foram bastante variadas (sendo que, quando

registradas, quase nunca contaram com as versões dos trabalhadores). Nas obras de Brasília, Ribeiro (2008)

elaborou uma versão de uma narrativa sempre destacada pelos operários da noite de 8 de fevereiro de 1959:

“Para contextualizar, cabe lembrar que os operários da firma construtora não tinham sido pagos ainda

naquela semana para evitar que, com o carnaval, grande número deles abandonasse os canteiros de obra em

busca de diversão. Além disso, já vinham, há muito, insatisfeitos com a cantina e a falta de água no

acampamento em que viviam. Vejamos a versão sintética que elaborei: Noite de carnaval. Operários (três

no máximo) chegam do trabalho para comer na cantina e não encontram comida que deveria ter sido provida

pela administração. Resto lhes é servido, comida de má qualidade. Irritam-se, ou um deles se irrita e

arremessa o prato no encarregado da cozinha, no cantineiro, ou no cozinheiro. Os outros operários se

solidarizam. Alguém (o agredido, um sargento, um engenheiro, o chefe da cozinha, o dono da cantina,

“gente da alta”) chama a polícia. A polícia enviada é pouca. Os operários não deixam seus companheiros

serem presos. Um reforço de grande número de soldados chega atirando. Grande tiroteio. A polícia não

pergunta nada, já vai atirando contra os alojamentos. Mataram muita gente. Muitos morrem em suas camas.

Outros são despertados violentamente e colocados em fila com as mãos na cabeça, espancados e humilhados

(...)” (Ribeiro: 2008: 229-230). Valladares (1983), referindo-se à onda de greves e revoltas na construção

civil em várias cidades durante o ano de 1979, descreve em detalhes o caso dos “quebra-quebras” dos

operários do metrô do Rio de Janeiro, reconstituídos a partir de fontes jornalísticas: “Em 1º de janeiro de

1978 irrompe o primeiro quebra-quebra no lote 21 (Estácio) (...). O tumulto teve por móvel imediato a falta

de comida e o estopim foi a fome. (...) Às 12:30, cansados de esperar, um grupo de cerca de 15 invadiu a

cozinha arrombando as geladeiras a procura de comida. A partir daí o tumulto generalizou-se depredando-

se a cantina, quebrando-se copos e garrafas, amassando-se bandejas e marmitas, arrancando-se até as portas

das geladeiras. Os operários só foram contidos com a chegada de patrulhinhas e um contingente de soldados

do 1º BPM (cerca de 15) que, empunhando metralhadora, dispersaram os operários e prenderam o ‘cabeça’”

Page 194: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

194

(pp. 129-130); “[o] segundo quebra-quebra, que ocorreu também na hora do almoço, revestiu-se de algumas

características distintas do anterior. Seu móvel não foi propriamente a falta de comida: a galinha é que

estava crua. Os eventos tiveram a seguinte sequência: por volta das 11:30, quando a maior parte das 600

refeições já haviam sido servidas, as 100 pessoas que permaneciam no refeitório deram-se conta de que a

galinha, servida juntamente com feijão, arroz e macarrão, estava crua. Passaram a reclamar em voz alta e

no coro de protesto queixavam-se também da pouca quantidade de comida diariamente servida pela cantina.

Do coro para a ação foi apenas um passo: as mesas começaram a ser reviradas, a comida foi atirada ao chão

quebrando-se copos e garrafas. O tumulto só foi controlado às 12:35 com a chegada das patrulhinhas, do

camburão da PM e de um choque de 20 soldados” (pp. 130-131); “Segundo o único jornal que noticiou o

fato [quebra-quebra ocorrido a 26 de janeiro, terceiro da série], a revolta ocorreu na cantina, à tarde, sem

grandes danos (...) Tentou-se, inclusive, desmentir o início de quebra-quebra sob alegação de tratar-se de

briga entre dois colegas de serviço. Os operários, no entanto, conseguiram ser ouvidos por uns poucos

jornalistas aos quais manifestaram suas queixas: a comida estava estragada, seu preço era elevado, havia

desvio de alimentação por parte do encarregado da cozinha. Segundo ainda a mesma fonte, a Banguri era

acusada de vender material de trabalho como botas e luvas, não prestar qualquer assistência medica e manter

300 homens num só alojamento, em péssimas condições” (p. 132); “Novo quebra-quebra (o quarto da série)

(...). A ação se deu, desta feita, na hora do jantar, tendo por móvel imediato o atraso do serviço da cantina.

Cansados de esperar o jantar (a empresa atrasou na entrega), os operários quebraram, como de costume,

tudo o que encontraram a sua frente: mesas, bancos, copos, garrafas, etc. Só que, neste caso, a depredação

atingiu proporções até então desconhecidas, uma vez que todas as instalações da cantina, inclusive o

telhado, foram destruídas” (p. 134); “O tumulto teve início por volta das 17:45 (...). Não parece ter havido,

como nos quatro casos anteriores, um elemento deflagrador bem especificado: a comida veio tao ruim

quanto nos outros dias e estivera pior ainda no domingo, três dias antes, quando nada acontecera. A ação

foi deflagrada pelos operários que se encontravam no interior da cantina e que se puseram a atirar longe

pratos, copos, talheres e garrafas. Os que estavam no lado de fora, aguardando na fila, juntaram-se aos

primeiros, arrancando as paredes de tábuas do refeitório. Gradualmente a violência foi crescendo: os

operários passaram a incendiar aventais e guarda-pós dos serventes da cozinha, ateando fogo também aos

montes de madeira. Quando já se dirigiam às outras instalações do lote, chegaram as guarnições do 13º

Batalhão da PM, sendo a revolta controlada” (p. 135); “A questão da alimentação é mais uma vez o móvel

imediato das revoltas (...). Os 1800 operários queixaram-se do jantar onde fora servida a mesma comida do

almoço mas foram mobilizados (e sobretudo) pelo anúncio de que a partir do dia 25 de abril a cartela de

refeições iria aumentar. Como nos demais casos estudados, a ação coletiva implicou a depredação da

cantina, tendo-se chamado a Polícia Militar para ‘acalmar os ânimos’ dos operários” (p. 138); “É no sábado

5 de agosto, por volta do meio-dia, que os trabalhadores do metro voltam à cena. Cerca de 400 operários

(...) depredaram a Kombi de uma firma distribuidora de refeições, imediatamente após os cinco primeiros

operários terem recebido seu almoço em embalagens térmicas. Os operários alegaram que vinham

recebendo comida azeda desde a semana anterior e que estavam trabalhando desde as 20 horas de sexta-

feira, não tendo até as 11 horas de sábado recebido qualquer refeição. A ação se circunscreveu à destruição

da Kombi que foi apedrejada e virada várias vezes” (p. 138-139); um último “quebra-quebra” ocorreu com

um intervalo de apenas 18 dias, com a mesma configuração das primeiras revoltas: “os operários jogaram

a comida fora, depredaram totalmente a cantina, virando mesas e cadeiras, quebrando pratos e até mesmo

uma TV a cores” (p. 140). Antonaz (1995) assim fez referência a uma rebelião nas obras de Barcarena/PA,

em sua fase de grande projeto: “Um dos episódios mais violentos ocorridos em canteiro de obra, que

culminou em quebra-quebra e greve, foi ocasionado pela repressão praticada pela administração do

acampamento contra um grupo de trabalhadores de uma localidade piauiense que tentava passar comida

para seus conterrâneos sem emprego através da cerca do acampamento” (1995: 78). Recentemente, na

última onda de protestos nas obras do PAC, uma das maiores greves no Comperj (Itaboraí/RJ, 2011), citada

adiante, teria se iniciado com um ato de violência da polícia: “As demissões aconteceram na semana

passada, contrariando acordo coletivo firmado, que garante estabilidade no emprego. Trabalhadores que

lideraram o movimento reivindicatório foram não apenas demitidos mas também retirados dos ônibus de

maneira violenta por policiais, a mando das empreiteiras. A arbitrariedade provocou revolta e uma onda de

protestos que culminaram com a greve, que tem como objetivo reverter as demissões” (“Operários do

Comperj aprovam nova greve em repúdio às demissões arbitrárias”. Portal de Notícias da Frente Nacional

dos Petroleiros, 11/12/2011. In: http://fnpetroleiros.org.br/?p=1192 ). Nesses casos mais recentes, portanto,

a rebelião foi maneira politicamente eficaz de pressionar diretorias e oposições sindicais a iniciarem

imediatamente um processo de greve, o que, não raro, ocorre em meio a intensos conflitos. Em 2014,

também no Comperj, a tentativa de membros da direção do Sindicato de impedir a deflagração de uma

greve teria sido o estopim para uma rebelião que terminou com o carro do Sindicato incendiado. No dia

seguinte, dois trabalhadores que faziam parte da mobilização foram baleados e a uma Nota foi publicada

Page 195: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

195

preocupação, porém, seria, de fato, com o aspecto disciplinar, para o qual cargos como o

de mestre de obras e encarregados em geral eram considerados fundamentais para

identificar e demitir o mais rápido possível alguns trabalhadores. Isto porque, segundo

ele, sempre teriam alguns “elementos ruins misturados aos demais trabalhadores”. Por

mais que as empresas troquem informações entre si, “sempre passa um ou outro”.

Já os militantes operários de facções políticas de oposição aos sindicatos locais,

por outro lado, buscavam transpor o controle no recrutamento e, quando admitidos,

empreendiam um ativismo semiclandestino, evitando demissões não planejadas. Um

membro da CPT local, por exemplo, relatou-me um desses casos233. Segundo ele, um

trabalhador já conhecido das obras de Barcarena/PA teria sido enviado pelo Sindicato dos

Trabalhadores da Construção Civil de Belém para começar um “trabalho” nas obras da

região. Como em Ourilândia só tinha o “sindicato das empresas”, a atividade que ele

iniciou era “bem inicial, sobre a comida, coisa bem leve, só para começar a perceber,

enfim”. Ainda assim, esse militante já estava vigiado. Ele teria lhe contado: “O pessoal

da Odebrecht me chamou: ‘Olha, você é [nome]? – Sou. – você é de Abaeté? – Sou. –

você estava em Barcarena? – Tava. – Você participou do sindicato? – Sim. – Toda vez

com os seguintes dizeres: “Desde o ano de 2012, pessoas sem compromisso com os trabalhadores do

COMPERJ, levadas por interesses escusos vêm se aproveitando de oportunidades para promover badernas

e quebra-quebra no interior do Complexo Petroquímico, fazendo desta tarefa de desordem sua arma

principal em prejuízo dos trabalhadores por todo o Brasil. Com isso, provocam várias perdas irreparáveis

aos trabalhadores em seus benefícios diretos e indiretos, tudo isto na busca de obter vantagens políticas e

eleitoreiras. É certo afirmar que os trabalhadores deixam de prosperar e avançar quando caminham sem a

ajuda da organização sindical verdadeira, honesta, lutadora de classes e ordeira. Estas pessoas que beiram

a criminalidade não têm autonomia nem tampouco autorização para falar ou agir em nome dos trabalhadores

da Construção Civil e Montagem Industrial, e de seu sindicato, SINTICOM que, com sua diretoria

legalmente instituída pelo voto direto da categoria, sempre se pautou por atuar dentro da legalidade,

ouvindo os anseios dos trabalhadores. Aqueles que participam de atos criminosos, como desta quinta-feira,

em Itaboraí, se já foram um dia, deixaram de ser trabalhadores há muito tempo. Fazem deste expediente

hostil sua principal atividade, esta digna de polícia. É crime neste país a pratica de: (art. 197 do CP) atentar

contra a liberdade do trabalho, (art. 200 do CP) fazer paralisação do trabalho seguida de violência ou

perturbação da ordem, (art. 201 do CP) paralisar o trabalho de interesse coletivo, e (art. 203 do CP) frustrar

direito assegurado por lei trabalhista. O terror e a desestabilização da ordem social não elevam qualquer

relação. O objetivo desta entidade sindical é o desenvolvimento do Estado Rio de Janeiro como um todo, e

em especial do município de Itaboraí, que recebe diretamente um grande investimento, repartido com

diversas cidades em seu entorno. Esta iniciativa visa à melhoria da qualidade de vida não somente dos

trabalhadores, mas de todos os brasileiros. A agressão desferida em desfavor do próprio sindicato,

quebrando e ateando fogo em um carro em via pública, adquirido com os recursos dos trabalhadores, sem

contar a agressão a diversos de nossos colaboradores, inclusive integrantes da comissão dos trabalhadores,

por si só depõe no sentido de que estas pessoas não são trabalhadoras. Elas fazem parte de uma “quadrilha

armada” que visa em último caso se arvorar em causa própria. Estas atitudes nunca atendem os verdadeiros

anseios dos trabalhadores organizados em torno de seu sindicato”. (“Nota Oficial”, 06/02/2014. in:

http://www.sinticomrj.com.br/visualizar_noticias.php?id=60 ). Os diretores do Sindicato, contudo,

convocam a greve nos dias seguintes (“Comperj: convocação para assembleia”, 08/02/2014,

http://www.sinticomrj.com.br/visualizar_noticias.php?id=61; “Greve no Comperj completa dezessete dias

sem proposta patronal viável”, 26/02/2014, http://www.sinticomrj.com.br/noticia-68.php ). 233 Entrevista com membro da CPT, Ourilândia do Norte, 19/08/12.

Page 196: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

196

que tinha 1º de maio, que tinha manifestação, você estava lá? – Sim. – Escuta bem,

[nome], nós precisamos da profissão do senhor, não da pessoa. Pode continuar se

quiser’”234. E, resumindo, sobre os operários: “O pessoal das firmas sabe (...). Tem um

controle danado: tem controle dos dormitórios, tem controle da área de lazer que tem lá

dentro, tem controle também aqui na cidade. Quando eles vêm pra cá, eles sabem pra

onde vai, com quem vai. O pessoal sabe disso”235.

Atualmente, na Vale, em particular, essas práticas por parte das gerências

abrangeriam também os trabalhadores diretos em minas gerenciadas pela empresa no

Brasil e em outros países. Em janeiro de 2015, ativistas sindicais denunciaram demissões

por conta do contexto da eleição para a diretoria do Sindicato Metabase Carajás236. No

Canadá, a Vale processou individualmente os sindicalistas e demitiu trabalhadores da

Inco por conta da greve de 2010, a mais prolongada da história do país, que completou

18 meses em algumas localidades. No fim, o único ponto que a empresa se recusou a

negociar foi a reintegração dos demitidos. O sindicato (United Steelworkers) só reverteu

as demissões no Judiciário canadense cerca de dois anos depois237.

Nos últimos anos, no entanto, em grande parte das obras dos grandes projetos no

Brasil ocorreram ações coletivas cujo repertório incluiu principalmente a queima de

fardas (uniformes), ônibus, equipamentos, alojamentos e demais unidades das empresas.

Em alguns casos, também ocorreram tentativas de greves ou paralisação das atividades.

Em seguida, em praticamente todos os casos registrados a que tive acesso, demissões e

expulsões.

No Complexo Industrial e Portuário do Pecém238, na região metropolitana de

Fortaleza, os operários colocaram fogo nos alojamentos em 2010:

234 Idem. 235 Idem. 236 Ver “Vale controla sindicalismo em Carajás”, Brasil de Fato, 14/01/2015,

http://www.brasildefato.com.br/node/30996. 237 Cf. Atingidos pela Vale, 2010; “Vale, a multinacional dos conflitos”, Le Monde Diplomatique,

01/10/2010, http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=789; “Trabalhadores da Inco podem encerrar

greve histórica no Canadá”, 06/07/2010,

http://www.pcdob.org.br/noticia.php?id_noticia=132817&id_secao=8; “Steelworkers, Vale meeting ahead

of negociations”. Northern Life, 09/12/2014, http://www.northernlife.ca/news/localNews/2014/12/09-

steelworkers-vale-sudbury.aspx; Vale/Inco USW Campaign,

http://www.usw.ca/workplace/campaigns/campaigns/vale. 238 O Complexo seria “(...) um grande empreendimento caracterizado pela integração entre o Porto do

Pecém e indústrias de base, como a Companhia Siderúrgica do Pecém – CSP, com funcionamento previsto

para o ano de 2015 e uma refinaria da Petrobrás ainda em projeto, além de indústrias de produção de energia

operando desde 2012” (Teles, 2014).

Page 197: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

197

“No período de execução das obras das termelétricas, os trabalhadores

vindos de outros estados e países passaram a viver em residências

coletivas e alojamentos. Essas formas de moradia, em sua maioria, eram

precárias e não ofereciam conforto básico. Os trabalhadores com

melhores qualificações e salários passaram a viver em casas e

apartamentos nas localidades de Icaraí e Cumbuco, no Município de

Caucaia, e no Distrito de Pecém, em São Gonçalo do Amarante. Essas

são localidades turísticas com maior oferta de serviços, como

estabelecimentos de hospedagem, alimentação, bancos e entretimentos.

Já os trabalhadores de menos qualificação e menores salários, bem

como aqueles que preferiram economizar com a hospedagem, passaram

a viver em alojamentos situados em locais com pouca ou quase

nenhuma oferta de serviços, fato que causou uma série de manifestações

e paralisações. As principais reivindicações dos trabalhadores foram a

melhoria da qualidade dos alojamentos e aumento de salários. Em uma

dessas manifestações, ocorrida em 2010, eles atearam fogo em três das

oito alas de quartos que compunham o alojamento da empresa ENESA,

num período em que havia cerca de 900 trabalhadores alojados em

espaços precários e sem opção de entretenimento, além de estarem

situados a uma relativa distância dos núcleos centrais das localidades e

distritos”. (Teles, 2014).

Em julho de 2013, os trabalhadores da Montcalm, empresa terceirizada da

mineradora Anglo American no Projeto Minas-Rio (complexo mina-mineroduto-porto),

também incendiaram alojamentos em Conceição do Mato Dentro/MG. Segundo Zucarelli

e Santos (2014), eles reivindicavam melhorias salariais, de alimentação e de salubridade.

Os autores, no entanto, citam entrevistas com policiais militares, sendo que um deles

assim definiu a revolta operária: “Como há várias empreiteiras em Conceição, e os

contratos são diferentes, os trabalhadores ficam sabendo de melhores condições de outras

empreiteiras e acabam reivindicando outros direitos que não estavam no contrato”

(Entrevista com representante da Polícia Militar, Julho 2013), o que pode deflagrar em

atos como o que aconteceu no alojamento da Montcalm.” (p. 21).

Em 2015, em resposta a uma autuação por “trabalho análogo a escravo” nas suas

minas no município de Itabirito/MG, a Vale divulgou uma nota em que, buscando

desqualificar os denunciantes, assim descrevia: “no fim do mês de janeiro, alguns

empregados da Ouro Verde [nome da empresa terceirizada] praticaram atos de

vandalismo no local, com depredação do canteiro de obras, ameaça à segurança de

gestores e tentativa de incêndio de alguns veículos”239.

239 Cf. “Vale é autuada por manter pessoas em condição análoga à de escravo”, in:

http://www.ligaoperaria.org.br/1/?p=8064 em 19/03/2015.

Page 198: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

198

As obras do Complexo de Suape, em Pernambuco240, foram bons exemplos da

reação das gerências empresariais frente aos protestos, irredutivelmente voltadas para a

expulsão dos contestadores. Nos atos, os trabalhadores da construção naval e da

construção civil queimavam fardas e ônibus, símbolos das obras (Queiroz, 2014). Em

seguida, muitos eram demitidos, em geral por justa causa241. Em um contexto de

negociações envolvendo facções políticas organizadas em oposições e diretorias

sindicais, em certos momentos foram estabelecidas negociações entre representantes dos

trabalhadores e das firmas sem, no entanto, reverter as demissões. Em 2008, após uma

paralisação no início das operações do Estaleiro, as demissões por justa causa foram

retiradas e foram pagos uma “bonificação” e um “curso profissionalizante de até 500

reais” pela empresa para os demitidos, mas não houve reintegração. Em setembro de

2011, após outro conflito seguido de demissões em massa, o desfecho foi semelhante:

revertida a “justa causa”, mas sem reintegração nem mesmo de lideranças a princípio

estáveis, como cipeiros242 (Queiroz, 2014).

Em outro contexto que também envolveu diferentes facções políticas e intensa

disputa por representação das manifestações operárias, nas obras do Complexo

Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí/RJ, houve o único registro que

tive acesso de um caso de reintegração de demitidos por participação em greve. Em

novembro de 2011, após 10 dias de greve, 35 operários foram demitidos pelo Consórcio

Technt/Andrade Gutierrez, incluindo seis que compunham uma Comissão de

Negociação. Os trabalhadores iniciaram nova greve, exigindo a reintegração. No fim,

depois de mais 19 dias de greve, por conta de uma decisão judicial, eles teriam sido

reintegrados243. Contudo, os dias parados foram descontados, assim como nas

240 O Complexo de Suape ou Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros está localizado na

região metropolitana de Recife/PE. Compreende um distrito industrial, um porto marítimo, estaleiros e uma

refinaria. As principais obras estiveram concentradas a partir de 2007. 241 Expliquei o dispositivo de demissão por “justa causa” em nota anterior. 242 Segundo a CLT, membros da CIPA não são passíveis de demissão arbitrária ou sem justa causa. 243 Segundo informação publicada em mídia do TRT/RJ, seriam 37 e não 35 operários demitidos

inicialmente. “Greve do Comperj está no caminho da conciliação”. Assessoria de Imprensa e Comunicação

Social do TRT/RJ. In:

http://portal.trt1.jus.br:7777/pls/portal/PORTAL.wwv_media.show?p_id=14162329&p_settingssetid=381

905&p_settingssiteid=73&p_siteid=73&p_type=basetext&p_textid=14162330. Ver também: “Com

reintegração dos demitidos, acaba a greve no Comperj”. Agência Petroleira de Notícias. 22/12/2011. In:

http://apn.org.br/w3/index.php/movimentos-sociais/71-lutas-sociais/3735-com-reintegra-dos-demitidos-

acaba-a-greve-no-comperj; “Justiça concede liminar exigindo a reintegração imediata dos 35 operários

demitidos sumariamente no Comperj”. FUP/CUT, 21/12/2011. In: http://www.fup.org.br/ultimas-

noticias/item/9792-justica-concede-liminar-exigindo-a-reintegracao-imediata-dos-35-operarios-

demitidos-sumariamente-no-comperj; “Justiça concede liminar pela reintegração imediata dos 35 operários

demitidos no Comperj”. CSP-CONLUTAS. 02/01/2012. In: http://cspconlutas.org.br/2012/01/justica-

concede-liminar-pela-reintegracao-imediata-dos-35-operarios-demitidos-no-comperj/

Page 199: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

199

manifestações e paralisações seguintes as demissões continuaram, tal como nas demais

obras. Em março de 2012, após 23 dias de paralisação, 22 operários foram demitidos por

justa causa244.

Nas obras da UHE de Belo Monte, em Altamira/PA, os demitidos também

buscaram negociar os termos das demissões. No dia 8 de abril de 2013, em greve,

representantes de trabalhadores denunciaram a demissão sumária de manifestantes e a

repressão de um organismo de polícia federal: “O membro da CSP-Conlutas Walter

Santos encaminhou, nesta segunda-feira (8), uma denúncia ao Ministério Público Federal

(MPF) sobre a ação de intimidação e de truculência que a Força Nacional de Segurança

empregou contra trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. De acordo com

Santos, a ação ocorreu durante manifestação pacífica realizada no sábado (6). Após a

passeata, cerca de 450 trabalhadores foram demitidos e a Força Nacional os obrigou a

entregar o crachá. Outra lista de demissão com mais 450 nomes também está sendo

preparada para os próximos dias”245. Dias depois, denunciaram a membros do MPT que

“mais de 1000 empregados” foram demitidos e buscavam negociar melhores condições,

como o direito a buscar seus pertences nos alojamentos: “Na reunião com o MPT os

trabalhadores reivindicaram que, em caso de dispensa, os empregados que estão em

Belém sejam desligados na capital do Estado e que lhes seja assegurado: o

encaminhamento às cidades de origem, a quitação das verbas rescisórias, a realização de

exame demissional e a devolução de pertences que se encontram nos alojamentos do sítio

Belo Monte. As mesmas garantias são requeridas aos trabalhadores desligados em

Altamira. Quanto àqueles que optarem por ficar na obra, que seus empregos sejam

minimamente garantidos”246.

Contudo, o caso que obteve maior repercussão, dada sua dimensão, foi, sem

dúvida, o das obras das Usinas de Jirau e Santo Antônio em Rondônia. Os conflitos

eclodiram a partir de 15 de março de 2011, quando os trabalhadores destruíram

244 “Greve suspensa no Comperj”. Agência Petroleira de Notícias. 16/03/2012. In:

http://www.apn.org.br/w3/index.php/movimentos-sociais/71-lutas-sociais/4206-greve-suspensa-no-

comperj; “Obras do Comperj continuam paradas após dez dias de greve dos trabalhadores”. Agência Brasil

de Comunicação. 20/04/2012. In: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-04-20/obras-do-

comperj-continuam-paradas-apos-dez-dias-de-greve-dos-trabalhadores; “Trabalhadores do Comperj

encerram greve após 30 dias de luta”. CUT/RJ. 09/05/2012. In:

http://cutrj.org.br/imprimir/news/13dfc973b2bcff428b1e8afa38b29867/ e

http://cut.org.br/noticias/operarios-do-comperj-encerram-greve-com-10-5-de-reajuste-salarial-ab1f/ 245 Cf. “CSP-Conlutas denuncia ao MPF ação truculenta contra operários de Belo Monte”. 10/04/2013. In:

http://portal.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=5961 246 Cf. “MPT deve apurar denúncias de trabalhadores de Belo Monte”, 19/04/2013, CSP-Conlutas com

edição do ANDES-SN, in: http://portal.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=5981

Page 200: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

200

“alojamentos, escritórios, ônibus, pontos comerciais e outros prédios e equipamentos” até

a chegada da Polícia Militar e da Força Nacional de Segurança, enviada pelo governo

federal (Veras, 2014). Dada a proporção da rebelião, as obras foram paralisadas. Centrais

sindicais, empresários e governo federal estipulariam um acordo pela “melhoria das

condições de trabalho nas obras”, visando evitar novas interrupções nas obras do PAC.

Em seguida, as empresas teriam demitido aproximadamente 6 mil trabalhadores por justa

causa, segundo um dos sindicatos, como citou Veras (2014): “Temos mais de 30 ações

na Justiça denunciando isso. Alguns sequer sabem que foram demitidos enquanto estavam

em casa. Desde os conflitos, a relação com as empresas retrocedeu e aumentou a

dificuldade para ter acesso ao canteiro de obras” (Rondônia Dinâmica, 2011, apud Veras,

2014: 127). Trinta e um trabalhadores teriam sido presos. Um ano depois, os

trabalhadores iniciaram uma greve e, em 3 de abril, novamente os alojamentos foram

incendiados em Jirau. Em seguida, além das demissões por justa causa, trabalhadores

denunciaram agressões, tortura e prisões arbitrárias por parte das polícias que, desde a

revolta anterior, já estavam instaladas dentro do canteiro de obras247. No dia 10 de maio,

24 operários foram denunciados pelo Ministério Público de Rondônia e, no mínimo, 12

teriam sido presos e outros 12 teriam desaparecido. Ao longo do mês, 2 mil teriam sido

demitidos248.

Outros casos possivelmente não foram registrados, ou não tiveram a repercussão

das maiores obras. Dias depois da primeira rebelião na UHE de Jirau, por exemplo,

operários na construção da UHE São Domingos, em Água Clara, no Mato Grosso do Sul,

também teriam provocado “(...) um incêndio nos seis pavilhões usados para alojamento

dos mil trabalhadores da obra. Eles também atearam fogo no centro ecumênico, no

refeitório, na guarita e no centro de inclusão digital”, segundo uma matéria publicada em

25/03/2011249. Recentemente, os operários das obras do Projeto S11D da Vale, em Canaã

dos Carajás/PA, segundo noticiado em 30/06/2014, também teriam se rebelado: “No

último feriado, um grupo queimou parte do alojamento, quebrou máquinas e fez um

247 “Prisões, desaparecimento e tortura nas grandes obras do PAC”. Jornal Opção, 08/07/12. In:

http://www.jornalopcao.com.br/posts/ultimas-noticias/prisoes-desaparecimento-e-tortura-nas-grandes-

obras-do-pac. 248 “Jirau: perseguição e militarização no canteiro de obras”. A Nova Democracia, Ano X, nº90, junho de

2012. In: http://www.anovademocracia.com.br/no-90/4019-jirau-perseguicao-e-militarizacao-no-canteiro-

de-obras. 249 “Novo protesto de trabalhadores paralisa obras em mais uma hidrelétrica. Desta vez, em Mato Grosso

do Sul”. Agência Brasil, 25/03/2011. In: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2011-03-

25/novo-protesto-de-trabalhadores-paralisa-obras-em-mais-uma-hidreletrica-desta-vez-em-mato-grosso-

do-su.

Page 201: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

201

engenheiro de refém”250. Porém, dadas as rápidas intervenções policiais, as demissões

sumárias e a dificuldade de acesso a informações no interior das dependências das

empresas, em geral, há poucas fontes escritas disponíveis. Sempre que não se conta com

os relatos dos próprios trabalhadores envolvidos, portanto, as informações se restringem

ao que publicam as empresas ou o que foi informado por autoridades policiais, que, na

maioria das vezes, já atuavam como um corpo auxiliar dos funcionários de segurança

privados das empresas. Os trabalhadores, no entanto, demitidos e expulsos o mais

rapidamente possível daquelas firmas, geralmente não permanecem na cidade.

Nas obras da MOP também ocorreram ações semelhantes: uma rebelião e algumas

tentativas de greve. Em maio de 2008, os trabalhadores da Usiminas Mecânica, firma que

assumiu as tarefas de montagem industrial da MOP, atearam fogo em todos os

alojamentos. Mas há poucos registros da rebelião. Quatro anos depois, não encontrei

trabalhadores que tenham participado dessa rebelião e também não obtive relatos ou

memória dela por parte daqueles que foram fichados depois pelas firmas. Um dos

registros escritos foi feito por Cruz Neto (2008), que, apesar da divergência na data,

provavelmente se refere ao mesmo movimento. Ribeiro Junior (2010) repete a mesma

passagem. É a única referência que apresenta os motivos da revolta e a repressão da

empresa que, tal como nos casos ocorridos em outras obras, teria demitido e expulsado

os trabalhadores.

Os trabalhadores das empresas MIC/ISEC/Usiminas, responsável pela

montagem das estruturas metálicas, por não tolerarem a cobertura dos

alojamentos com telhas de amianto e apertados, alimentos de baixa

qualidade e constante falta de água, por até três dias, no início de junho,

se revoltaram e tocaram fogo em todos alojamentos. Muitos

trabalhadores foram demitidos e vários deportados, os que continuaram

na cidade estão proibidos de serem contratados por outras empresas que

prestam serviços para a Vale. (Cruz Neto, 2008).

Outro registro é uma “Nota de Repúdio” do Sintrapav: uma folha ofício distribuída

na época, sem imagens e com os dizeres que reproduzo a seguir, ipsis litteris:

250 Cf. “Em Canaã dos Carajás, o maior projeto da Vale”. Estadão, 30/06/2014,

http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,em-canaa-dos-carajas-o-maior-projeto-da-vale-imp-

,1520550

Page 202: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

202

Sintrapav – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada e

Afins do Estado do Pará

Ourilândia do Norte, 13 de maio de 2008

NOTA DE REPÚDIO

O SINTRAPAV – SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS DA

CONSTRUÇÃO PESADA E AFINS DO ESTADO DO PARÁ, entidade

representativa dos Trabalhadores da Construção Pesada do Município de Ourilândia

do Norte, vem expressar o sua indignação face ao lamentável incêndio criminoso

ocorrido no dia 11 de maio do corrente Ano, praticado por empregados de Empresas

prestadoras de serviço, nos alojamentos localizado próximo ao Projeto Onça Puma.

O Sintrapav, que sempre teve como objetivo o diálogo e a interação entre Empresa e

Empregado, de forma alguma poderia compactuar com atos de extremo vandalismo

como esse, principalmente quando praticados por uma minoria mal intencionada, que,

em desacordo com a sua entidade classe, bem como com seus demais colegas

empregados, resolveu partir para destruição total, o que em nada ajudou nas relações

dos trabalhadores com as empresas.

Conforme o apurado, os causadores do sinistro já chegaram da cidade de Ourilândia

totalmente embriagados.

Ressalte-se que, este sindicato muitas vezes já atuou intermediando conflitos entre

empregados e empresas que atuam neste Município e jamais se esquivou de qualquer

obrigação que tivesse de assumir em prol dos trabalhadores, desde que se tratasse de

negociações pacíficas e baseadas no diálogo.

O Sintrapav sempre vai estar, a qualquer hora, à disposição dos trabalhadores, em

busca e uma solução pacífica e consensual para satisfazer os interesses legítimos de

seus associados.

Por outro lado, o Sintrapav não pode compactuar nem incentivar atos dessa natureza,

já que o sindicalismo se faz com atitudes sensatas e discutidas com a categoria.

Por isso, rejeitamos e não incentivamos este e qualquer outro ato de vandalismo que

venha por em risco a vida dos empregados, principalmente quando essa atitude não

parte de estranhos, mas sim dos próprios companheiros de alojamento, que

embriagados e descontrolados, agem de maneira insensata e criminosa.

Giovani Resende Silva

Presidente

Sintrapav

Page 203: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

203

Dentre outros fatores que não me interessam desenvolver aqui, as condições de

possibilidade para tal repertório de ações coletivas por parte desses trabalhadores está

relacionado à prática adotada por agentes empresariais e sindicais frente não só ao

ativismo operário contestatório, mas também a tentativas de movimentos paredistas ou

paralisações, tal como acompanhei no contexto da Vale e das firmas da MOP.

Através de um diretor do Sintrarsul, o “sindicato dos motoristas”, por exemplo,

fui informado de um caso de não pagamento de salários. Uma das empresas terceirizadas

de transporte não cumpria o adiantamento de 40% do salário entre os dias 15 e 20 do mês

(o habitual “vale”, normalmente negociado em acordos coletivos). Segundo o diretor do

Sindicato, eles teriam notificado os gerentes da Vale, que teriam solicitado que não

fizessem qualquer movimento reivindicatório. A Vale, em seguida, rescindiu o contrato

com essa terceirizada e contratou outra251.

No Lago das Rosas, encontrei um trabalhador que foi fichado durante dois anos

nessa empresa, o Osvaldo, cujo percurso, inclusive, descrevi no capítulo 1. O relato dele,

no entanto, foi diferente: a empresa “não pagava direito, no dia certo, sempre atrasava”.

Daí, eles teriam “parado os carros”, fechando a garagem da empresa. O Sindicato teria

apoiado, mas, depois disso, a empresa perdeu o contrato com a Vale e ele foi demitido.

Osvaldo, então, ficou seis meses “puxando boi, em gaiola” (motorista de caminhão

“gaiola”, que recebe do dono do caminhão por porcentagem de cada frete pago por um

interessado em transportar gado). Só depois desse período conseguiu fichar novamente

como motorista de ônibus em uma terceirizada que prestava serviço para uma contratada

da Vale e voltou para o circuito dessas empresas – o que, porém, como frisei no capítulo

anterior, não implicava menor circulação, mas apenas a possibilidade de voltar a circular

entre firmas. Na volta às firmas, Osvaldo foi demitido depois de sete meses na empresa.

O relato de Osvaldo acrescenta um movimento paredista inicial que teria

denunciado a situação dos trabalhadores dessa empresa e, provavelmente, acionado uma

intervenção sindical. Sua resolução, no entanto, a partir da ação da diretoria sindical junto

à Vale, ocorreu através da rescisão imediata do contrato com a empresa e,

consequentemente, da demissão desses trabalhadores.

Essas formas de resolução dos conflitos presentes tanto no relato do trabalhador

quanto no do diretor do Sindicato não diferiram de outras situações que acompanhei ao

251 Entrevista com diretor do Sintrarsul, realizada em 05/11/12 na sede do Sindicato em Marabá/PA.

Page 204: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

204

longo do período de pesquisa de campo e em outros relatos. A regra implícita em toda

operação da denominada área-Vale foi, nesse sentido, a proibição de greves e a primeira

medida tomada para mantê-la foi a demissão.

Além desse movimento inicial descrito por Osvaldo, tive conhecimento de apenas

uma greve entre os trabalhadores ligados à mina em Ourilândia. Nesse caso, segundo

relato dos próprios diretores do Sintrarsul. Teria ocorrido na Araújo Transportes, uma

empresa subcontratada por uma terceirizada da Vale, em uma manhã de julho ou agosto

de 2009. Às cinco horas, cerca de 40 motoristas bloquearam a saída dos veículos na

garagem da empresa. Eles reivindicavam que o tempo que ficavam à disposição da

empresa também fosse incluído na jornada de trabalho e, consequentemente, no salário.

Eles recebiam apenas pelo tempo em que estavam em “efetivo exercício”, dirigindo, e

não pelo tempo de espera. Os encarregados de transporte da firma terceirizada contratante

teriam ido até o local e ameaçado os trabalhadores, exigindo o fim do movimento. Dez

deles teriam resistido e foram imediatamente demitidos. Alguns deles, depois, teriam

iniciado um processo judicial, com advogados particulares. Na ocasião, o diretor do

Sindicato explicou: “Eles foram mandados embora porque a própria Vale não iria mais

aceitar eles. É a Vale que manda qual trabalhador pode ficar lá ou não”252.

Não encontrei trabalhadores que participaram dessa greve em Ourilândia e

Tucumã e não houve relato escrito sobre o caso. Provavelmente, como sugeriu o diretor

do Sindicato, eles saíram da cidade, buscando outras empresas em que pudessem ser

contratados. Na cidade, seriam reconhecidos pela participação em um movimento

grevista e, logo, eliminados na seleção das firmas.

Uma última situação ainda confirmaria os relatos das experiências anteriores.

Quando estava em pesquisa de campo, fui informado de um início de movimento

reivindicativo em uma das duas empresas “associadas” ao Sintrarsul. Noticiados, os

diretores do Sindicato iriam enviar um representante da sua sede, em Marabá/PA, para

acompanhar o movimento. Porém, nos dias seguintes, a empresa demitiu quase a metade

do quadro de trabalhadores. Em entrevista, algumas semanas depois, um diretor do

Sintrarsul me relatou que “não teve acordo coletivo e o movimento não foi adiante”, que

as demissões teriam sido por conta da relativa paralisação das atividades da mina e que

252 Entrevista com diretor do Sintrarsul, realizada em 05/11/12 na sede do Sindicato em Marabá/PA.

Page 205: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

205

haviam rumores de que outra empresa assumiria esse contrato de prestação de serviços

com a Vale253.

3.3) Grilo, casa de tábua e casa de tijolo: cidades terceirizadas

Tratando da chamada “questão da moradia”, em sua crítica a uma teoria de matriz

prodhoniana, Engels [1887] cita o caso do hipotético operário Pedro:

“No dia do decreto libertador do mundo que proclama a abolição das

casas de aluguer, Pedro trabalha numa fábrica de máquinas em Berlim.

Ao cabo de um ano ele é proprietário, digamos, de um quinze avos da

sua habitação composta por um quarto situado num quinto andar

próximo da Porta de Hamburgo. Ele perde o seu trabalho e encontra-se

pouco depois numa habitação semelhante, com brilhantes vistas para o

pátio, no terceiro andar, junto a Pothof, em Hannover, onde, ao fim de

uma estada de cinco meses, adquiriu exactamente 1/36 da propriedade,

quando uma greve o empurra para Munique e o obriga, após onze meses

de permanência, a possuir exactamente 11/180 do direito de

propriedade de uma construção bastante escura, ao nível do chão, por

trás da Ober-Angergasse. Outras mudanças, como hoje tão

frequentemente acontece aos operários, se lhe vêm acrescentar: 7/360

de uma não menos recomendável habitação em St. Gallen, 23/180 de

uma outra em Leeds e 347/56223, calculados com exactidão, para que

a «justiça eterna» não se possa queixar, de uma terceira em Seraing.

Mas que recebe então o nosso Pedro de todas estas partes de habitações?

Quem lhe dá o valor correcto por elas? Onde vai ele descobrir o ou os

proprietários das partes restantes das suas diferentes antigas habitações?

E quais serão as relações de propriedade de uma qualquer grande casa

que no conjunto dos seus pisos tem, digamos, vinte habitações e que,

depois de decorrido o período de amortização e de terem sido abolidas

as casas de aluguer, pertence talvez a trezentos proprietários parciais

espalhados por todas as regiões do mundo?” (Engels, 1982).

Dessa forma, ao longo do debate, Engels relaciona a condição proletária das

grandes cidades da Europa do século XIX à “liberdade de movimento”. Além disso,

considerando a moradia tal qual qualquer outro item indispensável à reprodução do

trabalhador, relaciona também as condições de moradia ao preço e ao valor da força de

253 Na outra empresa “associada” ao Sintrarsul, contratada para fazer o transporte dos trabalhadores diretos

da Vale, eles já tinham firmado um Acordo Coletivo. Chegaram a um acordo de 8% de reajuste salarial, em

um salário que era de 1327 reais, e mais 65 reais de aumento na cesta básica (o Sintrarsul propusera 12%).

Isso representava uma diferença salarial de cerca de 750 reais entre as duas empresas e, segundo o diretor

do Sindicato, teria motivado o movimento.

Page 206: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

206

trabalho dos trabalhadores na Alemanha da época254. No caso em questão aqui, as

mesmas relações poderiam ser realizadas, mas em diferente combinação de fatores, o que,

por exemplo, se verificava nas estratégias que os trabalhadores empregavam frente à

circulação e ao regime de baixo preço da força de trabalho.

Para aqueles trabalhadores que se deslocaram com o restante do grupo doméstico,

ou constituíram um grupo nas cidades do entorno da MOP, a permanência também esteve

relacionada às condições de moradia encontradas, em especial, ao acesso ou à expulsão

dos terrenos em que construíam suas casas. O deslocamento de trabalhadores nessa

situação envolvia principalmente o acesso aos lotes urbanos nas cercanias das cidades ou,

no mínimo, a possibilidade de acesso a um desses lotes no menor tempo possível, já que

os aluguéis eram considerados altos e ainda mais precários do que as construções

provisórias feitas por eles nas ocupações recentes da cidade.

As condições de moradia da maior parte desses trabalhadores estavam diretamente

relacionadas à situação inicialmente provisória e indefinida desses terrenos. A incerteza

na ocupação dos lotes e, muitas vezes, a necessidade de seguidos deslocamentos se

refletia na opção pelo material que montavam e desmontavam as casas, tentando

permanecer no local, ou, uma vez desalojados, buscando outro terreno para remontá-la

sem perder o que já havia sido investido. Nesse sentido, a madeira era um material que

permitia aos trabalhadores certa vantagem para a montagem, desmontagem e

deslocamento e que dava certa segurança frente às incertezas enfrentadas na ocupação de

um lote nos arredores das cidades. O uso de alvenaria encerrava maior risco de perda e

não permitia esse deslocamento.

Para alguns grupos de trabalhadores economicamente empobrecidos que se

deslocam para essas cidades, o material das casas representa um investimento

considerável e, nesse sentido, perdê-lo pode significar um período mais ou menos longo

para formação de nova poupança. Como descrevo a seguir, o acesso a um lote se dava,

em especial, através de eventos que se requer rápido deslocamento, gasto imediato e,

254 Sendo que, é importante frisar, tal valor e preço estariam relacionados a uma determinada inserção da

produção alemã no mercado mundial: “E aqui se revela em todo o esplendor a «bênção» da posse de casa

e campo próprios para o operário moderno. Em lado nenhum, quase nem mesmo na indústria caseira

irlandesa, se pagam salários tão infamemente baixos como na indústria caseira alemã. Aquilo que a família

produz na sua própria hortazinha ou campozinho é o que a concorrência permite ao capitalista descontar do

preço da força de trabalho; os operários têm precisamente de aceitar qualquer salário estipulado

[Akkordlohn], porque de contrário não recebem absolutamente nada e não podem viver apenas do produto

do seu cultivo da terra; e porque, por outro lado, são precisamente esse cultivo e propriedade da terra que

os amarram ao lugar, que os impedem de ir procurar outra ocupação. E é nisto que reside a razão que

mantém a Alemanha capaz de concorrência no mercado mundial em toda uma série de pequenos artigos”

(Engels, [1887]).

Page 207: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

207

portanto, alguma poupança já constituída. Muitas vezes, a poupança estava na aquisição

do próprio material para a construção da casa.

Sendo assim, quando possível, representantes dos moradores negociavam um

período para a desmontagem e o recolhimento do material das casas em uma situação de

expulsão das ocupações na região. O mesmo também ocorria em outros contextos, como

acampamentos rurais mediados por organizações sindicais e movimentos sociais

previamente institucionalizados. Em uma observação etnográfica de uma reunião da

“Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo”, no INCRA de Marabá em

outubro de 2011, por exemplo, Castro (2013) relatou um caso de salvaguarda das tábuas

em uma ação policial de reintegração de posse. A pesquisadora assim relatou certo

momento da reunião:

“(..) O advogado da CPT expõe para a Comissão o caso de uma ação de

reintegração de posse que envolvia uma associação de acampados

representada pelo sindicato rural de Marabá, ligado à FETAGRI. Na

ação foi negado aos trabalhadores o direito de tirar as tábuas de suas

casas, e quando o advogado chegou ao local, a polícia os estava

forçando a entrar em um caminhão para levá-los à cidade mais próxima.

Ele explicou aos policiais que existia um acordo com a Ouvidoria

Agrária Nacional sobre como proceder naqueles casos e que era

necessário deixar os trabalhadores recolherem seus bens. Só então os

policiais deram um prazo de três dias para que os acampados

recolhessem as tábuas de suas casas, “mas se eu não estivesse lá na

hora...”, completa o advogado” (Castro, 2013: 85).

As ocupações urbanas ou grilos, forma como os trabalhadores as designavam,

eram, portanto, uma aposta, no sentido de que eram algo que poderia não dar certo,

principalmente em seus primeiros momentos. Dependendo da situação, nem sempre era

possível recolher as tábuas nas expulsões. No início, no mínimo, podia-se perder alguns

dias de trabalho na demarcação, limpeza e vigília dos lotes. Se o lote não foi “tirado”

junto com os primeiros ocupantes no exato momento da entrada no terreno, podia-se

perder dinheiro ou algum bem trocado com os primeiros donos do lote ainda vazio.

Depois, o material da casa de tábua, tal como denominavam, caso a expulsão não fosse

negociada. Já para aqueles que acreditaram demasiadamente na segurança da posse antes

do tempo e usaram alvenaria, podia-se perder todo o material e trabalho empregados em

uma casa de tijolo.

Page 208: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

208

As casas de tábua apenas eram substituídas pelas casas de tijolo quando nova

poupança era formada, quando as condições de circulação mudavam e, principalmente,

quando a situação dos terrenos era considerada mais estável, isto é, menos passível de

uma expulsão compulsória por parte das polícias e/ou dos proprietários. Essa estabilidade

era atestada por outros sinais de segurança da posse – como a instalação dos primeiros

equipamentos e serviços públicos (luz, água, escola ou transporte escolar, etc) – e permitia

a venda do lote, cujos preços variavam de acordo com as mais diversas informações que

comprovavam a permanência nos terrenos, desde os primeiros momentos da ocupação.

Quanto mais elementos afastassem a possibilidade de despejo, maior possibilidade de

venda tinha o lote e, portanto, mais poderia ser investido nele sem risco de perda. Por

outro lado, mais caro também se tornava o lote e mais distante ficava das possibilidades

de compra por parte dos trabalhadores. Quanto mais economicamente empobrecido

estava o trabalhador, quanto menor a possibilidade de formação de poupança, mais ele

tinha que arriscar perder, recorrendo a um lote de situação indefinida, ou seja, a uma ação

imediata de ocupação ou compra de um lote no grilo o mais rápido possível, antes que

aumentasse o preço e não lhe permitisse, por exemplo, trocar o terreno por uma pequena

quantia de dinheiro, um móvel da sala, uma moto, etc.

Nas ocupações recentes em Ourilândia ou Tucumã, os trabalhadores explicavam:

“[eu] não queria correr risco. Assim [casa de tábua] não perde nada”. Outras vezes:

“como aqui não está garantido ainda, não tem luz, não tinha água... não é certo”. A

construção de uma casa de tijolo, antes de tudo, dependia dessa certeza na ocupação do

lote e na possibilidade de vendê-lo depois, caso necessário, situação que requer a

estabilidade da posse. De fato, para parte dos que acompanhei em campo, no Lago das

Rosas, as casas de tábua já tinham garantido duas mudanças nas ocupações da cidade

“sem perder nada”.

Além disso, construir uma casa de tijolo sem ter essas condições também pode

levar a outras perdas, além do material da casa. Em uma expulsão, pode-se perder o acesso

a uma indenização ou remanejamento para outro terreno, especialmente quando essa

expulsão for mediada por agentes públicos do âmbito da assistência social ou das

instituições de caridade. A alvenaria, em geral, significa exclusão dos critérios de

miserabilidade pela qual se avalia o direito ao acesso a programas de assistência e, dentre

eles, até mesmo ao mais precário reassentamento, como era o caso de um dos que

acompanhei em campo. Para esses agentes, simboliza riqueza. Em uma das expulsões no

município de Tucumã, a seleção dos moradores que teriam direito a um novo lote teria

Page 209: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

209

usado esse critério, como afirmava uma assistente social da Prefeitura Municipal: “tinha

gente que dizia não ter nada e construiu até casa de alvenaria”255.

Embora a decisão de construir uma casa de tijolo em substituição a uma casa de

tábua certos casos também representasse um desejo de permanência, isso não significava

necessariamente menor possibilidade de deslocamento para o trabalhador que, inclusive,

pouco ou mesmo nenhum indício de estabilidade tinha. Substituir a madeira pela

alvenaria, nesse sentido, estava mais relacionada a uma perspectiva de ininterrupção do

trabalho e melhoria imediata das condições de moradia do que a uma perspectiva de

estabilidade, de menor circulação ou mesmo de menor deslocamento.

Em um dos bairros ou “setores” que acompanhei em campo, em Ourilândia, os

trabalhadores construíam suas casas de tijolo no lote. Alguns as construíam no mesmo

lote, ao lado das casas de tábua que ocuparam nos primeiros anos. No “setor” Joel

Hermógenes, ocupado plenamente há cerca de 5 ou 6 anos na época da pesquisa, residiam

principalmente trabalhadores em circuitos firma-firma nas terceirizadas da MOP. Como

os salários normalmente eram gastos com a compra de mantimentos e com a compra de

um ou outro eletrodoméstico ou móvel para a casa, dificilmente eles formavam a

poupança necessária para a construção.

Nesse sentido, era apenas no momento da demissão, com o dinheiro do acerto,

que eles compravam o material e pagavam diárias para vizinhos e conhecidos ou

pagavam uma empreita para uma casa de tijolo. Em geral, demitidos, eles mesmos

integravam o grupo de trabalho. E, assim, a construção da casa era uma nova aposta, não

mais na segurança da posse, mas, agora, na próxima contratação pela firma que “chegava”

ou, caso frustrado, na busca por trabalho em outra cidade. Ou seja, uma aposta que o

trabalhador ou trabalhadora fazia nas condições apresentadas no capítulo anterior, às

cegas, tendo como certeza apenas a procura por novo recrutamento, sem controle do prazo

ou até mesmo do local em que isso poderia ocorrer, em uma gestão complexa de decisões

que deviam ser tomadas e retomadas rapidamente frente a diversos fatores: recebimento

ou não do acerto, quantia recebida no acerto, acesso ou não ao seguro-desemprego,

quantia recebida no seguro-desemprego (geralmente menor, calculada com referência no

salário nominal sem acréscimos variáveis relativos à intensificação, prolongamento, etc),

vicissitudes dos pagamentos por diárias e empreitas (seja como diarista, como parte da

255 Entrevista com assistente social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Tucumã,

Tucumã, 20/09/2012.

Page 210: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

210

“turma” ou como contratante), momento do ciclo doméstico, saúde, situação do núcleo

familiar, da rede social de mobilidade, etc.

Nessa condição, portanto, em último caso, iniciado outro processo de

deslocamento, a casa de tijolo era vendida e a poupança ali formada deslocada, isto é,

perdida parcialmente ou perdida totalmente. Em um contexto de “saídas” das firmas, por

exemplo, as condições de mercado para o trabalhador que deixa uma cidade que não está

mais “boa de serviço” para outra, tornada “boa de serviço”, são desfavoráveis em dupla

medida: para quem procura compradores de casas de tijolo na cidade de saída e para quem

procura moradia na cidade de destino. Para os trabalhadores em circulação, porém, não

trabalhar nesse período pode significar um risco de empobrecimento ainda maior, ou uma

perda ainda maior na situação de venda256.

Em Ourilândia do Norte e Tucumã, para o trabalhador que se deslocava com o

grupo doméstico, haviam três formas de ter acesso a um lote: nos grilos ou nos setores

recentes, ocupando-o diretamente, comprando ou fazendo alguma transação de troca com

o dono da posse; nos novos setores criados pelas prefeituras municipais, ganhando-o ou

o financiando, o que geralmente envolvia algum conhecimento prévio; ou comprando-o

nos loteamentos criados por empresários da região, que variavam de preço de acordo com

o mercado a que se destinavam, mas que, em geral, não eram empreendimentos voltados

para os trabalhadores de baixos salários das firmas. Nas quitinetes ou repúblicas,

moradias alugadas, consideradas caras e provisórias pelos trabalhadores, os contratos de

locação eram verbais e o inquilino era expulso pelo dono tão logo não podia mais pagar

o aluguel. Sempre que possível, os trabalhadores já instalados recebiam os que se

deslocaram depois, compartilhando as residências até que conseguissem um lote próprio

nos próximos grilos. A intensa pressão sobre as terras dessas cidades se refletia na

quantidade de tentativas de novas ocupações e na sua rápida expansão logo nos primeiros

momentos, comentadas comumente entre seus moradores: “bastam 5 pessoas para fazer

256 Uma hipótese a ser verificada oportunamente é a relação que essas “cidades terceirizadas” – ou a

“terceirização da construção” dessas cidades – sugere, em termos sistêmicos, entre mecanismos de

transferência de valor e de superexploração do trabalho por parte do grande capital. Provavelmente, a

“poupança” do trabalhador, na verdade, a construção de moradia com seu próprio salário e trabalho, seria

determinada pelo quantum de valor que ele perde na circulação da moradia como mercadoria. Ou seja,

considerando essa hipótese, ao contrário do que é sugerido no senso comum, essa “poupança” seria uma

“perda relativa de valor” (formada por meio de um mecanismo de transferência de valor no plano

combinado da circulação mercantil da força de trabalho vendida por esses trabalhadores e da circulação

mercantil das moradias construídas por eles). Contudo, um exercício do tipo implica em uma pesquisa que

tenha essa questão como objeto específico, o que não é o caso aqui.

Page 211: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

211

uma invasão”, em minutos, “aparecem pra mais de 50”; “basta o pessoal saber que o

terreno não tem título ou que é área do município”, etc.

Nas cidades “boas de serviço” da região, as ocupações comumente cresciam de

maneira excepcional, especialmente com as obras das novas minas. Desde o início, a

implantação da indústria da mineração estabeleceu um vasto entorno de ocupações

irregulares às margens das cidades ou bairros planejados pelas empresas.

Parauapebas/PA, a cidade que se expandiu no entorno de Carajás, nos anos 1990, foi

quase completamente constituída por ocupações, nas quais residiam grande parte dos

trabalhadores terceirizados da antiga CVRD:

“In Parauapebas, seven-eighths of the city was settled by invasion, and

there was a statistically significant correspondence between

subcontractor workers households and squatter-invaded

neighborhoods. While subcontractor workers occupied only 14% of

households in planned neighborhoods, they comprised 44% of squatter-

invaded parts of town. In one invasion during the fieldwork for this

project, over 2400 lots were claimed in just 48 hours, increasing the size

of the town by almost 50%” (Roberts, 1995: 750).

No entorno da MOP, assim como nos demais municípios da região, a dinâmica

das ocupações era diretamente influenciada pela situação jurídica das terras e pelas

disputas políticas entre as facções envolvidas com as instâncias de poder local. Em geral,

não há títulos de propriedade das terras dos municípios da região e grande parte dessas

terras são, em último caso, públicas ou posses antigas. Em Tucumã, por exemplo, com a

tomada das terras e a derrocada do projeto de colonização da Construtora Andrade

Gutierrez, a situação jurídica dos terrenos do município ficou indefinida e apenas os lotes

de pequenos e médios produtores que foram adquiridos ainda na época do controle da

Andrade Gutierrez tinham títulos de propriedade. Até mesmo os setores centrais da atual

cidade de Tucumã tinham uma situação jurídica ainda confusa após a declaração de

falência do Projeto. Nas demais cidades, não planejadas, a situação não era diferente. A

ocupação das terras tinha sido desde o início juridicamente desordenada a partir de

núcleos de casas construídas ao longo das frentes de expansão das últimas décadas.

Uma nova ocupação, nesse sentido, ao tomar terras públicas ou terras de algum

proprietário/posseiro, envolvia sempre uma intervenção de alguns agentes públicos

(especialmente da prefeitura municipal), além das polícias e, certos casos, seguranças

privadas. Era, porém, dos prefeitos que se esperava uma intervenção para a resolução do

Page 212: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

212

conflito, sempre que os ocupantes iniciais resistiam e não eram expulsos do terreno nas

primeiras horas. Considerando essa intervenção, uma nova ocupação era uma forma de

pressionar os gestores municipais para promover alguma distribuição de terras, ainda que

a propriedade dessas terras não seja pública ou da prefeitura local originalmente. Para o

trabalhador, conseguir um lote num grilo era, portanto, uma tentativa de não pagar aluguel

e construir uma casa, caso fosse regularizado (fato para o qual a gestão atual na prefeitura

era fundamental, adquirindo as terras, ou simplesmente declarando um novo “setor” ali

mesmo ou em outro local)257. Caso isso não acontecesse, com resistência, podia ser

também uma forma de conseguir uma “indenização” ou de ser selecionado para um

programa da assistência social, como era o caso das famílias que tinham o aluguel pago

pela Prefeitura Municipal de Ourilândia (“mas por no máximo seis meses e de até 300

reais”, bem entendidos, na advertência de um agente de assistência local258). Em um dos

casos de uma tomada de terras públicas do INCRA, por exemplo, opondo resistência, os

ocupantes apenas aceitaram sair do terreno quando um novo prefeito pagou indenizações:

“eles botavam a gente pra correr de lá, armados com paus”, disse uma assistente social,

referindo-se às visitas que agentes da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura e

representantes do INCRA faziam ao local buscando negociar a retirada259.

Em geral, as várias e sucessivas ocupações eram seguidas pelos despejos, pelas

ações de resistência e negociação, expulsões, criações de novos “setores” ou

reassentamentos, chegada de novos ocupantes, compra, troca e venda de lotes, casas de

tábua ou casas de tijolo, enfim, de centenas de famílias entrando em poucas horas em um

grilo ou, por outro lado, sendo expulsa e se dispersando novamente. A população que

gravitava em torno da dinâmica das ocupações, por conseguinte, era deslocada de um

lugar a outro da cidade, expulsa, reassentada, trocando entre moradias alugadas,

vendendo ou comprando um lote, “tentando” ou testando a sorte em um ou outro grilo.

Muitas vezes, quando bem-sucedidos nas primeiras horas e dias, os processos de

ocupação duravam alguns anos até consolidarem um novo “setor”, seja no próprio local

ocupado inicialmente ou não. Ao longo desse período, muitos eram expulsos e tinham

que voltar aos aluguéis, refazer os arranjos domésticos nas casas que lhes abrigaram

originalmente, buscar outra cidade, organizar ou esperar o próximo grilo.

257 Para uma parcela de pequenos produtores rurais, ou de seus filhos, também podia ser uma forma de

conseguir uma casa na rua, nos termos analisados em Felix (2008). 258 Entrevista com assistente social, Secretaria de Trabalho e Promoção Social da Prefeitura Municipal de

Ourilândia do Norte, 19/09/2012. 259 Idem.

Page 213: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

213

Em Tucumã, acompanhei o caso de um grupo de moradores expulsos de um grilo

e deslocados para um novo loteamento denominado pela Prefeitura como “Lago das

Rosas”, uma das localidades que escolhi para entrevistar os trabalhadores na cidade.

Como descrito no capítulo 1, relativamente isolado da cidade, em 2012 o novo setor não

tinha serviços nem equipamentos públicos, com exceção de um serviço de transporte

escolar considerado perigoso pelos moradores, da definição dos lotes e da abertura de

parte das ruas260. O grilo do qual eles haviam sido expulsos fora denominado “Morro dos

Macacos” e ficava em uma área de propriedade de um órgão federal vinculado ao MAPA,

a Comissão Executiva de Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac). Esse era um dos terrenos

disputados entre o governo federal e a Prefeitura de Tucumã. Com o fim do Projeto

Tucumã, a Prefeitura assumiu a responsabilidade pela massa falida do Projeto da Andrade

Gutierrez em 1986, porém, em 2005, o domínio das terras é repassado para o INCRA,

que a destina para a Ceplac/MAPA. Parte da área sediava um projeto de produção de

sementes de cacau e de mudas em geral, antes da Andrade Gutierrez, atendendo ao

planejamento do projeto de colonização, depois, da Prefeitura e, em seguida, da Ceplac.

Em 2007 ou 2008, a região é ocupada, dando origem a um setor que, no momento

da pesquisa, margeava as cercas da Ceplac. Além dessa área, também parte do terreno da

Ceplac foi ocupado261. Por ação de advogados do Incra na Justiça Federal em Marabá/PA,

a ocupação dá origem a um processo judicial de desapropriação e reintegração de posse,

culminando com duas retiradas dos moradores ao longo de 3 anos. Na segunda, uma

operação da Polícia Federal expulsou definitivamente os moradores da área e destruiu as

construções com o uso de tratores.

Tal como nos demais grilos, dado o processo político instaurado pela pressão

sobre as terras no entorno das cidades, normalmente é comum que as facções políticas

locais se aliem a favor ou contra um determinado grupo de moradores de um grilo ou

setor cuja situação ainda não esteja definida e regularizada. O processo que levou à

formação do Lago das Rosas não foi exceção, nesse sentido. Dependendo da pessoa e da

260 A luz era servida por um sistema organizado pelos próprios moradores, cotizando-se o combustível

usado. Depois, foram instaladas ligações irregulares na rede elétrica mais próxima. A água era servida por

poços. 261 Embora as informações sejam incertas, é provável que a primeira ocupação do denominado Morro dos

Macacos tenha sido em 2008, depois do resultado das eleições municipais em outubro. O processo judicial

de reintegração de posse movido pelo INCRA foi ajuizado em 03/12/2008. A reintegração de posse foi

deferida judicialmente em setembro de 2009 e executada em 27 de maio de 2010 (Justiça Federal,

Marabá/PA, Processo 2008.39.01.001611-0).

Page 214: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

214

situação em que se discutia sobre o caso na cidade, um ou outro aspecto do processo era

ressaltado262.

Segundo os moradores reassentados no Lago das Rosas, na primeira retirada da

área, eles foram alocados em um ginásio da cidade e lhes teria sido apresentada um

projeto de reassentamento com casas novas e um terreno com infraestrutura urbana, que

seria providenciado pela Prefeitura local. Após um determinado período no ginásio, eles

teriam voltado para as casas no Morro dos Macacos e, um ano depois, desalojados em

uma operação policial que destruiu todas as construções. Parte dos moradores, então, foi

realocada no novo terreno indicado por agentes da Prefeitura, no qual eram definidos os

lotes e, certos casos, oferecida lona (plástico) para construir barracos improvisados.

Aqueles que seriam “contra o prefeito”, não teriam recebido lotes. Os que foram

contemplados frisavam que o terreno era “só mato” e que, em virtude da expulsão policial,

aqueles que não tinham outra moradia provisória na cidade tiveram que ficar muitos dias

nos barracos de lona até construírem as primeiras casas de tábua.

Ao longo da pesquisa, fui informado que mesmo os primeiros ocupantes do grilo

provinham de outra ocupação anterior e que, expulsos, teriam organizado a tomada das

terras na área da Ceplac. Não consegui confirmar essa informação com os próprios

moradores. Contudo, considerando as seguidas seleções, expulsões e trocas dos

moradores que ocorreram é provável que os que teriam feito esse percurso tenham sido

alijados no processo e não tenham recebido lotes no reassentamento do Lago das Rosas.

Apenas os primeiros ocupantes “tiraram” diretamente os lotes no Morro dos Macacos.

Aqueles que entraram na área em seguida compraram. Um dos moradores do Lago das

Rosas, por exemplo, que vendeu um móvel e uma televisão na época para comprar um

262 O grupo vinculado ao prefeito então em exercício enfatizava, por exemplo, que o caso era “político”,

criado por agentes vinculados ao prefeito anterior e sua facção política; que o Morro dos Macacos teria sido

uma invasão incentivada pelo prefeito anterior no momento em que estava de saída da Prefeitura; que a

invasão foi feita com violência; que os projetos que eram desenvolvidos na área pelo órgão do MAPA eram

“bonitos”, assim como a vegetação e as espécies animais que teriam sido degradadas pelos ocupantes; que

o terreno que hoje é o Lago das Rosas foi reavido pelo município por conta de dívidas dos donos de um

hotel que foi construído em área doada ilegalmente por esse prefeito anterior; que, além dessa área, o

prefeito também teria loteado e vendido vários terrenos públicos ilegalmente, etc. Borges (2003), que

analisou o contexto de expansão na periferia de Brasília e de suas “invasões” também classificadas como

“políticas”, por exemplo, resumiu: “Essa forma de nomear como ‘política’ aquilo que o outro faz é muito

intrigante. A apreciação de um evento como político depende do tipo de envolvimento de quem classifica

(essa ou aquela situação como política) com a própria situação. Se nem as ações nomeadas como ‘políticas’

nem os espaços comumente usados como palco para tais demonstrações possuem propriedades intrínsecas,

somente através dessa modalidade classificatória podemos apreender que implicações, que sentimentos se

pode nutrir em face do que poderíamos supor como sendo um único e ‘mesmo’ fenômeno social – isto é,

um evento ou ação política” (Borges, 2003: 35).

Page 215: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

215

lote, explicava para mim que sabia do risco da transação “porque era grilo”, mas que essa

seria a “única forma de sair do aluguel”.

Moradores do Lago das Rosas me explicaram como se dava o processo de se “tirar

um lote”: dado o movimento de entrada no terreno, quem chegar primeiro e demarcar

seus limites é o dono (ou novo dono, caso o lote não se mantenha ocupado ou seja

abandonado, como ocorreria no próprio Lago das Rosas, depois). Nos casos que tive

informação ou acompanhei, o tamanho dos lotes foi previamente definido em

praticamente todas as ocupações, reservando-se um espaço adequado para a construção

de uma casa e um pequeno quintal. Houve uma organização prévia de um grupo que

iniciou o processo e, inclusive, quando foi o caso, enfrentou seguranças, entrando

primeiro e tirando os primeiros lotes. Logo em seguida, outras pessoas se somaram ao

movimento e a informação de que havia um novo grilo ainda aberto se espalhou

rapidamente em efeito cascata. Dependendo do tamanho do local, em um intervalo de

algumas horas, todo o terreno era demarcado. Alguns tinham relação direta com o grupo

inicial, mas essa informação normalmente era omitida na medida em que não havia

liderança pública, nem movimento institucionalizado de ocupação. Em geral, os

movimentos de moradores que deram origem às associações formais foram processos

iniciados após a regularização das posses, com a declaração de um novo “setor”, momento

em que essas terras se inseriram definitivamente no mercado de lotes das cidades e se

valorizaram tal qual os setores mais antigos263. Mesmo o grupo inicial, com o rápido

movimento que se seguia, não tinha mais informação de quem entrou depois ou comprou

um lote já “tirado”.

O processo de negociação com os ocupantes foi realizado principalmente por

funcionários e gestores da Prefeitura Municipal de Tucumã. Antes da expulsão, os

moradores teriam sido entrevistados e selecionados. A questão era tratada com reserva

pelas assistentes sociais locais, cuja lembrança remetia especialmente aos conflitos

gerados pela operação. Em 2010, técnicas da Prefeitura foram ao Morro dos Macacos

para fazer uma “triagem” e um “levantamento socioeconômico”, para avaliar quais

moradores teriam direito a um remanejamento para outra área. Com a informação de que

263 Em uma situação de campo, um trabalhador que visitava um morador do Lago das Rosas para acertar

uma empreita, brincava com o morador, dizendo “então esse que é o setor da macacada”. Em seguida, em

meio ao acerto, disse que queria vir morar ali e perguntou se conhecia alguém que quisesse vender o lote.

E o próprio morador que tratava a empreita ofereceu o seu por 20 mil reais, preço de um lote com casa

construída em um setor regularizado na época. Em outros lotes, entrevistei trabalhadores que compraram o

lote já na área de reassentamento, no Lago das Rosas, e, imediatamente, construíram uma casa de tijolo,

considerando a situação do “novo setor”, em um terreno adquirido e regularizado pela Prefeitura.

Page 216: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

216

o trabalho resultaria em mera expulsão ou no remanejamento para um terreno distante e

sem infraestrutura, os moradores começaram a resistir às abordagens e a operação se

tornou cada vez mais uma abordagem policial: “No início, começaram com quatro

técnicas, iam duas para cada lado [da área]. Depois, a situação ficou mais complicada, os

policiais começaram a andar mais próximo. Daí, ficou pior, e terminou que eram dois

policiais para cada técnica, para poder andar”264. Com a informação daqueles moradores

que aceitaram responder os questionários, um relatório foi encaminhado, com a indicação

daqueles que atendiam aos critérios de corte. Enfim, o processo de seleção e

reassentamento foi gerenciado diretamente pelo prefeito da época e sua esposa, que era a

secretária de Assistência Social265. Em virtude desse processo, os moradores reassentados

no Lago das Rosas se referiam ao lote como “dado pelo prefeito”. Outros, buscando

resumir a narrativa do processo, referiam-se ao lote como o “lugar onde colocaram a

gente”.

Nos primeiros meses, em uma das visitas ao Lago das Rosas, fui informado por

um trabalhador que parte dos moradores “estava com o candidato da oposição” e que,

dependendo do resultado das eleições municipais que ocorreria em breve, eles iriam

264 Os ocupantes se insurgiam contra a iminente expulsão do terreno e o precário reassentamento

apresentado pelos gestores da Prefeitura:

“[pesquisador:]

– E, aí, os que não quiseram, não entraram [na triagem]?

[assistente social:]

– É: ‘Não quero’, ‘Não quer, tudo bem. É um direito seu.’, ‘Mas aí pra onde eu vou?’. ‘A gente está te

mostrando um lugar. Não tem outra opção. A opção é o lugar X, infelizmente.’ E aí, muitos, de repente,

voltaram. Não eram nem da cidade. Voltaram pra sua cidade de origem... Lindoeste, Sudoeste, indo pra São

Felix [do Xingu], que veio de lá pra tentar alguma coisa e acaba voltando pra lá. Muitos casos acabaram

voltando pros seus lugares de origem, porque vieram aqui tentar uma ‘terrinha’, vamos dizer assim”.

(...)

[pesquisador:]

– Já tinha aquela área [local em que foram distribuídos os novos lotes]?

[assistente social:]

– Aquela área tinha, mas não era uma área própria pra uma construção. Porque você vê que lá eles foram

fazendo, não tinha rua, toda infraestrutura ainda tem que ser adequada ainda... Não tem uma escola, não

tem posto de saúde, não tem uma creche... Pelo tamanho que é aquele bairro teria que ter... Não se tem nada

ainda. Então, existe projeto pra fazer toda a construção”. (Entrevista com assistente social da Secretaria de

Assistência Social da Prefeitura Municipal de Tucumã, Tucumã, 20/09/2012). 265 Como essa etapa do trabalho de campo foi realizada em meio às campanhas das eleições municipais de

2012 e esse prefeito disputava uma reeleição, não tive acesso a outros agentes da Prefeitura de Tucumã,

além das assistentes sociais, servidoras públicas. Como afirmei antes, a questão dos grilos é sempre uma

questão fulcral para todas as facções políticas em disputa e, embora não seja o único, o momento das

eleições é fundamental na pressão popular sobre as terras próximas das cidades. Isso se verifica, por

exemplo, na noite e nos dias seguintes da apuração. Aproximar-se dos trabalhadores nessa situação ou,

simplesmente, lidar com os grilos, necessariamente implica em suspeitas de adesão ou tomada de posição

por uma ou outra facção. No caso de Tucumã, portanto, minha entrada em campo e interesse pelo processo

que levou ao reassentamento do Lago das Rosas, visitando e entrevistando trabalhadores na área,

certamente fizeram com que o atendimento dessa pesquisa fosse secundarizado frente às demais atividades

de campanha.

Page 217: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

217

“invadir” a área da qual haviam sido expulsos de novo. De fato, em outubro de 2012, logo

após o resultado da eleição vencida por esse candidato, o terreno foi ocupado. Mas não

só. Na mesma noite e nos dias seguintes da apuração, uma série de terrenos de cidades da

região também foram ocupados, certos casos, reocupados. Em Ourilândia, casos

semelhantes de expulsão-reocupação também ocorreram, embora não necessariamente

com os mesmos ocupantes. Em Tucumã, não só a área do antigo “Morro dos Macacos”,

mas, por exemplo, os lotes que ainda não tinham sido construídos no terreno do Lago das

Rosas também foram tomados por novos ocupantes.

O restante do terreno foi ocupado ainda na madrugada seguinte à divulgação do

resultado das eleições, enquanto ocorriam os festejos promovidos pelas facções

vencedoras no setor central da cidade. Nessa área, os lotes ocupados eram demarcados

com arame, fitas de plástico ou pedaços de madeira nos seus limites. Muitos deles tinham

pequenas construções de madeira, palha ou barracas cobertas com lona ou plástico. Em

alguns, as pessoas já davam início à construção de casas de alvenaria, o que demonstrava

o grau de certeza e de decisão na situação do lote. Alguns apenas teriam ocupado para

vender o lote em seguida, cujos preços estavam em torno de 300 reais no dia seguinte à

tomada das terras. Nos anos anteriores, a Prefeitura teria iniciado um processo de emissão

de documentos de posse da área. Muitos dos lotes que foram ocupados após as eleições

tinham “donos” antes, mas, ausentes, foram reocupados. Segundo os moradores, teria

corrido o boato de que “quem não construiu nada nos últimos três anos perdeu o direito”.

Acompanhei os dias seguintes à nova ocupação do Morro dos Macacos e algumas

situações que bem dimensionam a dinâmica das ocupações foram registradas em um

diário de campo. O itálico a seguir grifa um texto recopilado desse diário entre 21/10/2012

e 25/11/2012:

Depois de visitar [nome] no Lago das Rosas e ver o andamento das construções

nos lotes que foram ocupados na madrugada do resultado das eleições, fui para a área

da Ceplac, para ver pessoalmente a nova ocupação do Morro dos Macacos iniciada

ontem. No final da rua transversal à Ceplac, há um córrego e uma cerca que divide o

bairro em frente ao terreno. Há uma cerca de arame liso, portão com cadeado e corrente

e uma placa com os dizeres “área de entrada proibida; desocupada por ordem judicial”,

ou algo do gênero. De longe, vi cabines de segurança e um segurança sentado debaixo

de árvores no alto do morro de entrada. Esperei e olhei por instantes até notar que havia

cercas de fita plástica em várias áreas do outro lado do córrego e pessoas descendo a

Page 218: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

218

ladeira. Todas saíram em seguida por entre a cerca, tranquilamente. Quase todas

pegaram motos que estavam estacionadas na entrada da área e saíram. Conversei com

uma mulher que descia e que subia em uma moto bem velha. Perguntei se estava na

ocupação e ela confirmou, sem problemas. Ao contrário do que imaginei, não houve

problemas nem dela e nem de outras pessoas para falarem sobre a “invasão” e de sua

participação nela. Conversei com ela, com um segurança, com os funcionários da Ceplac

e com uma família que estava no próprio lote, depois, nos dias seguintes. Ela disse que

era moradora do setor “Palmeira II” e que ligaram para ela avisando da “invasão”.

Como os demais, disse que não tem como ficar pagando aluguel. Ela também disse que

tentou invadir antes uma área na região “Laranjeiras”, mas foi expulsa ainda antes de

achar um lote, porque avisaram que a polícia estava vindo e todos os ocupantes saíram

correndo, deixando os lotes já “tirados” para trás. O dono do terreno teria chamado a

polícia. Disse ainda que não soube a tempo do grilo no Lago das Rosas e que não

conseguiu ir lá “tirar” um lote, mas que teria gente vendendo os lotes tirados ali por até

5 mil reais. Uma pessoa teria oferecido outro lote para ela em troca da moto, mas ela

recusou. Estranhei essa informação no momento, porque ali não se teria tanta certeza da

permanência no local. Provavelmente essa incerteza só veio depois, com novas

informações nos dias seguintes que fizeram baixar os preços dos lotes.

Perguntei se havia risco de alguém tomar o lote dela. Ela frisou que não porque

seu marido trabalha em uma serraria e eles colocaram pedaços de pau novos ao redor

do lote. Caso alguém fizesse isso, também não iria ficar com o lote. Eles queimariam

tudo o que fosse construído depois. Ela soube que estariam dizendo que o prefeito “não

iria mandar tirar ninguém até o final do mandato dele”, que, como foi derrotado nas

eleições, acabava em janeiro. O fato de ser uma área federal não influiria em nada na

opinião dela, porque as pessoas só seriam retiradas dali com a autorização do prefeito.

Se, por um acaso, fosse expulsa, iria cobrar outro lote no lugar desse, porque o prefeito

eleito teria lhe prometido um antes da eleição.

Depois que nos despedimos e eu agradeci a entrevista, passei pela cerca e fui até

o segurança do terreno. Ele estava sentado em um banco e olhava todo o movimento de

cima, sem se preocupar muito com a circulação das pessoas pela cerca. Ele me contou

que um grupo de pessoas entrou lá às 5 horas da manhã. Teriam sido retidos por alguns

instantes pelos seguranças no momento e um deles chegou a dar um tiro para cima,

porque eles não têm ordem para atirar em pessoas desarmadas. O grupo, que seria

pequeno, portava apenas facões e enxadas. Os seguranças, então, ligaram para a polícia.

Page 219: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

219

Em resposta, teriam vindo dois agentes da Polícia Civil no local que negociaram com o

grupo como poderia ser feita a “invasão”. Eles teriam combinado que a “invasão”

poderia continuar, mas os ocupantes não poderiam entrar na “área do cacau e das

seringas” e nem na área plantada perto do prédio mantido pela Ceplac atrás do morro.

Enquanto isso, outros ocupantes já estariam entrando e demarcando seus lotes. O

segurança contou também que conhece algumas pessoas na ocupação, mas que evitaria

“falar muito” para não dizerem que ele estaria favorecendo um ou outro ali. Enquanto

conversávamos, ele cumprimentava as pessoas que passavam pela cerca. Essa ocupação,

ele dizia, estaria “muito devagar”: as pessoas ainda não teriam limpado o lote,

construído barracões, casas, etc, como a do Lago das Rosas, onde isso já estava

acontecendo e ele mesmo teria comprado um lote por 500 reais. “Aqui é tudo assim”,

referia-se aos terrenos na cidade, lamentando-se do fato de já ter perdido um grilo antes

e do quanto as pessoas zombavam dele, dizendo que deveria “deixar de ser bobo, tirar a

farda e pegar um lote”. Agora, todo dia teria gente vigiando o lote que acabou de

comprar e construir uma barraca provisória de palha. Ele mesmo estava indo em dias

alternados na área, nas suas horas de folga. Até o início do próximo ano, eles iriam

construir as casas e, portanto, o próximo prefeito não iria mais expulsá-los. Não faria

isso sem, no mínimo, dar-lhes um novo lote (ele não tinha conhecimento que os lotes

teriam tido donos antes ou não, “documento” ou não, o que retrucou: nada importa, caso

expulsos, os novos lotes vão ser dados para quem estiver na ocupação no momento). Mas,

no caso dessa nova ocupação da área que ele era o segurança, haveria um boato de que

a Polícia Federal iria retirar as pessoas antes. Provavelmente, não iriam ganhar nada.

Para ele, as “invasões” teriam sido feitas pelo candidato que perdeu as eleições, o atual

prefeito em exercício, mas não tinha certeza disso. Sabia apenas que o terreno no Lago

das Rosas era da Prefeitura, onde seriam construídas casas no ano seguinte. Daí, como

disse, “as pessoas se adiantaram para entrar antes” e, assim, também ter direito.

Page 220: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

220

Foto 3: grilo, primeiro dia de uma segunda tentativa de ocupação da área da Ceplac,

Tucumã, 22/10/2012. Fitas de plástico demarcam os lotes. Foto do autor.

Foto 4: grilo, primeiro dia de uma segunda tentativa de ocupação da área da Ceplac,

Tucumã, 22/10/2012. Fumaça das fogueiras feitas para a limpeza dos lotes. Foto do

autor.

Page 221: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

221

Foto 5: grilo, primeiro dia de uma segunda tentativa de ocupação da área da Ceplac,

Tucumã, 22/10/2012. Ao fundo, casas e luzes das casas de um setor já instalado,

também anteriormente ocupado. Foto do autor.

Em um primeiro momento, a visita às ocupações cruzou informações a respeito

da disputa política local. Ocupantes que “estariam” com o candidato da oposição,

vencedor, buscavam lotes para cobrar dele depois, como prefeito, a regularização do

terreno ou um novo lote. Ocupantes que “estariam” com o candidato da situação,

derrotado, buscavam lotes para pressionar o novo prefeito, depois, a não mais retirá-los

dos terrenos ou, no mínimo, a incluí-los nos reassentamentos. A posição tomada não era

um impedimento para o acesso às ocupações. Na prática, contudo, pouco importava a

intenção ou a adesão política daqueles que iniciavam o movimento, dado que, quase

imediatamente, todos buscariam um lote nas áreas ocupadas, principalmente naquelas em

que o risco de expulsão imediata era menor. Sobre isso, houve a primeira definição da

situação futura de algumas ocupações nos dias seguintes. Continuo o fragmento

recopilado do diário:

Tomo conhecimento pelos funcionários da Ceplac de que a informação de que

iria ocorrer nova ocupação da área já era conhecida por servidores do órgão. Quatro

Page 222: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

222

dias antes, chegaram a enviar ofício para a Superintendência da PF no Pará, relatando

os boatos: “(...) pessoas da redondeza tem demonstrado intenções de efetuar nova

invasão naquela unidade”266.

Dez dias depois da ocupação da área, o procurador da Ceplac visita cidades da

região e organiza uma reintegração de posse com representantes de outras instituições,

em especial, da Polícia Federal e do Incra, tal como ocorrera em 2009. Antes disso,

policiais federais já tinham ido até o local. Colheram depoimentos e bateram algumas

fotos do grilo. Em 2009, para a realização da operação de desocupação, representantes

da Polícia Federal exigiram, dentre outras coisas, o fornecimento de caminhões, trator

e marmitas da Coordenação Geral da Ceplac em Tucumã267. Provavelmente, teriam sido

novamente negociados os custos da operação. Na área, depois do acordo inicial da

ocupação, policiais ordenaram a saída dos lotes e avisaram que haveria uma operação

de reintegração de posse em breve. A operação, enfim, não foi realizada. Aos poucos, os

ocupantes decidiram sair, deixando os lotes que tinham sido demarcados e roçados. No

dia em que os últimos ocupantes abandonavam os lotes, pessoas de uma família que ainda

trabalhava até aquele momento na guarda e na limpeza do lote me explicavam: “Tem

que tentar, né? Vai que dá certo... Daí, não perdemos nada.” No lote, estavam um senhor

de aproximadamente 60 anos, acompanhado por dois jovens de, no máximo, 20 anos. Ele

tinha uma terra a 60 km de Tucumã e buscava construir uma “casa na rua”. Toda a área

do grilo estava quase intocada. Ninguém decidiu construir barracos e poucos

continuaram com a limpeza e a guarda dos lotes. As informações de que seriam expulsos

novamente em breve fez com que não continuassem a investir mais trabalho na área nos

dias seguintes.

A saída, porém, não arrefeceu os conflitos de posse nos meses seguintes. Ao sair,

ocupantes avisaram que voltariam no dia 2 de janeiro, logo após o início do mandato do

prefeito eleito, e que cobrariam um lote desse novo prefeito. Qualquer aproximação da

área era prontamente abordada pelos seguranças que, segurando as armas,

demonstravam o clima tenso que pairava sobre o terreno. Eles diziam ter ordem para

“evitar conflito”, mas que, acima de tudo, estariam atentos dali em diante para defender

a propriedade da Ceplac.

Por outro lado, bem diferente do terreno da Ceplac, no Lago das Rosas, os

ocupantes construíam “casas de tijolo” na parte recentemente ocupada. Desde o

266 Ofício SUEPA/CEPLAC 509/2012 de 15 de outubro de 2012. 267 Cf. Ofício GAB/DPF/RDO/PA 138/2009 de 01/04/2009.

Page 223: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

223

momento em que se apossaram dos lotes, fizeram barracos e logo em seguida iniciaram

a construção das casas, dada a segurança que os ocupantes tinham de que não seriam

expulsos e de que, dentro em breve, seriam oferecidos serviços e equipamentos públicos

no local. Quarenta e cinco dias depois, já era nítido o crescimento repentino do novo

setor.

Foto 6: Lago das Rosas, Tucumã, 22/10/2012, aproximadamente 14 dias após a tomada

do restante do terreno. Acima, as casas construídas desde 2010, após reassentamento,

abaixo, cercas de madeira e arame demarcam os lotes. Foto do autor.

Page 224: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

224

Foto 7: Lago das Rosas, Tucumã, 25/11/2012. Casas de tijolo sendo construídas após

cerca de 48 dias da tomada dos lotes no restante do terreno, à esquerda. À direita está

a área cuja ocupação iniciou em 2010 com o reassentamento. Foto do autor.

Tal como em Tucumã e Ourilândia, o mesmo processo de ocupações também teria

ocorrido em Marabá e em Canaã dos Carajás, outros municípios “bons de serviço” na

região, que implantavam projetos de novas unidades da indústria da mineração em 2012.

Só em Parauapebas, a cidade que se expande ao redor das minas da Vale em Carajás,

teriam tido mais de 15 ocupações. Tal como provavelmente ocorreu nos demais

municípios, algumas dessas ocupações foram destruídas e seus moradores expulsos com

o uso de tratores e força policial nos primeiros meses de 2013268.

3.4) O sossego e a questão da volta

268 http://pebinhadeacucar.com.br/prefeitura-de-parauapebas-se-posiciona-sobre-desocupacao-de-invasao/

e http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/01/moradores-de-invasao-sao-tirados-de-terreno-em-

parauapebas-pa.html. Interessante notar que, no processo das expulsões de 2013 em Parauapebas, a

Prefeitura indicou uma legislação que impediria a distribuição de casas/lotes a pessoas com menos de 3

anos de moradia no município. Parauapebas/PA se inseria assim no leque de municípios que adotam

critérios de classificação que visam legitimar normativamente tanto a expulsão dos ocupantes quanto a

exclusão das “políticas habitacionais” da fração de trabalhadores mais pauperizada e sujeita a

deslocamentos. Para uma análise das implicações de política semelhante no Distrito Federal, ver Borges

(2003).

Page 225: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

225

Outro fator que expulsa e impele os trabalhadores a novos deslocamentos é o custo

de vida nas cidades que outrora foram consideradas “boas de serviço”. A permanência

nessas cidades implica em gastos dificilmente suportados quando o trabalhador não

encontra outro trabalho logo em seguida. Como a maioria deles não têm condições de

poupança, também não tem condições de prolongar o período entre um trabalho e outro,

que é o que acontece quando a demanda pelo trabalho desses trabalhadores cai e a cidade

deixa de ser, portanto, “boa de serviço”.

O custo de vida era calculado por eles em relação ao salário: “Aqui é bom, tem

emprego, mas tudo é mais caro (...). Você ganha um salário e aqui não dá pra você

comer”269. Aqueles que tiveram, mesmo que em um passado relativamente longínquo,

alguma experiência de produção direta de alimentos, frisavam a dependência do

“emprego” e da necessidade de se “comprar tudo”: “Aqui ninguém faz roça. Só vive do

emprego, ou então do cacau ou do leite. (...) [Lá] Tem arroz, a farinhazinha. Aqui não

tem nada disso, vem tudo de fora. Tem que comprar tudo. Por isso tudo é caro”270.

Instados a refletir sobre o preço das diárias e das empreitas, que, como é o caso

dos municípios da região, são maiores, as respostas também não variaram. Dependendo

da origem, da idade e do percurso do trabalhador, a relação com o salário era bastante

conclusiva: “É a mesma coisa, no fim”271. Ou seja, pouco importa se a diária é maior.

Passada a primeira experiência, em que se “achava que ia ficar rico” com a notícia de que

a diária em Goiás era cerca de cinco vezes maior do que a do Piauí, por exemplo, logo se

depara com o alto preço das despesas. Se no Maranhão o salário era menor, “não se

ganhava nada” ou se comprava “só as roupas”, no Pará, em compensação, o salário é

maior, “o povo tem mais recurso”, mas as coisas são mais caras.

Não foram produzidas estatísticas a respeito de Ourilândia do Norte e Tucumã,

porém, essa percepção dos trabalhadores não era despropositada. Praticamente todos os

estudos feitos a respeito das transformações motivadas pela implantação da grande

indústria da mineração em outras cidades, por exemplo, observaram inflação generalizada

e alto custo de vida.

269 Entrevista com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12. 270 Idem. A referência aos que vivem “do cacau ou do leite” é aos pequenos produtores rurais da região,

também diferenciados de alguns contextos de origem desses trabalhadores por não “fazerem roça”, isto é,

voltarem toda a produção para a venda e adquirirem todos os produtos de subsistência por meio do mercado,

“comprado”. Ele também relaciona esse fato ao mercado local, quase totalmente suprido por mercadorias

vindas de outros municípios, “de fora”. A possibilidade de um acesso à terra que permitiria não “viver do

emprego” é discutida adiante. 271 Entrevista com Pedro, 72 anos, setor Joel Hermógenes, Ourilândia do Norte/PA, 26/08/12.

Page 226: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

226

Em Congonhas/MG, com a expansão das minas de ferro, constatou-se: “A vinda

de novos trabalhadores tem elevado substancialmente o preço dos aluguéis” e que “Outro

problema também associado ao aumento da população diz respeito à especulação

imobiliária; agências imobiliárias de Belo Horizonte vêm promovendo uma série de

novos loteamentos e o preço de alguns imóveis triplicou em Congonhas nos últimos anos

(Secretaria Municipal de Comunicação e Eventos, 2010, apud Milanez, 2011).

Em Conceição do Mato Dentro/MG, em uma nova mina da empresa Anglo

American no contexto do Projeto Minas-Rio, foi observado aumento do custo de vida em

geral: “Nesse sentido, a pesquisa de campo revela que, embora 78,1% dos entrevistados

considerem que o comércio local está mais dinâmico, 66,5% percebem aumento nos

preços das mercadorias e 74,2% no valor dos serviços, configurando um segundo grupo

de impactos mais destacados. Os entrevistados destacaram ainda, em sua quase totalidade,

o aumento do valor dos aluguéis (94,3%) e dos preços de terras e imóveis (94,7%),

constituindo, certamente, nos impactos mais explicitados na pesquisa de campo realizada,

especialmente nos bairros mais centrais da sede do município como Brejo e no próprio

Centro, onde 100% dos entrevistados constataram a elevação de ambos” (Becker e

Pereira, 2011).

Em Paracatu/MG, em que uma nova barragem de rejeitos da mineradora Kinross

expulsou a comunidade quilombola Machadinho, foi constatado que: “(...) segundo os

integrantes do extinto quilombo, a comunidade se arrependeu, pois quem conseguiu

receber dinheiro pelas terras não conseguiu comprar casas na periferia da cidade por causa

do alto preço” (Souza, Alamino e Fernandes, 2011).

Em geral, as pesquisas em contextos de grandes minas têm demonstrado ainda o

que se denominou “efeito expulsão”, um efeito econômico indireto da mineração, para

além dos espoliados diretamente pelas instalações da planta industrial, da mina e de sua

logística. Com isso, referem-se à saída dos antigos moradores por conta do aumento do

custo de vida e a permanência apenas daqueles que se mantêm na mina, ou seja, uma

rotação quase completa dos residentes e uma permanência na cidade restrita ao emprego

nas firmas e aos setores indiretos da cadeia: “Ainda em Niquelândia a importância das

duas grandes minas que nela se localizam “pode ser observada pela quantidade de

prestadores de serviços existentes na cidade”. O mesmo caso é descrito pelo município

de Cataji (SP), no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo,

em que fica explícito que os supostos benefícios da mineração, expresso pelo pleno

emprego dos fatores, e que poderemos denominar de ‘efeito ímã’ são igualmente fontes

Page 227: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

227

de problemas, tais como inflação alta do custo de vida. Assim, quem não é absorvido na

mina tem que se mudar para outra cidade, o que gera o que denominamos ‘efeito

expulsão’” (grifos dos autores; Enriquez, Fernandez e Alamino, 2011).

Sendo assim, frente ao alto custo de vida na cidade, muitos trabalhadores em

Ourilândia do Norte e Tucumã expressavam uma permanência na cidade atrelada ao fato

de estarem empregados ou de “ter serviço”. Esse era, portanto, mais um dos motivos que

os levavam a associar sua condição a um ontológico deslocamento. Contudo, à percepção

das condições de circulação a que em geral estavam sujeitos, eles, em geral, contrastavam

uma outra, denominada “sossego” ou, certos casos, “se aquietar”. Assim, o significado

seria relacionado a um momento ou situação na qual não estariam mais, portanto, “no

mundo”, sujeitos à circulação da força de trabalho que dispunham. Com o tempo, percebi

se tratar de uma idealização tão bem definida quanto a localização que eles tinham do

estar “no mundo” e busquei conversar mais detidamente com alguns trabalhadores que

conseguia manter uma relação mais próxima ou que se disponibilizavam a ficar mais

tempo comigo, para além da “entrevista”, da notação de percursos, etc. Alfredo, o

trabalhador que já citei nos dois capítulos anteriores, era um deles. Morador do Lago das

Rosas, expulso e reassentado em Tucumã, me recebia, conversava e indicava outros

moradores para entrevistar no novo setor. No capítulo 2, citei trecho de uma entrevista

com ele em que o provocava com a possibilidade de se “sair no mundo” e não “dar certo”,

isto é, da necessidade de seguidos deslocamentos: “E assim vai? Se não der certo, vai de

novo?”. E ele respondeu, tal como outros trabalhadores usualmente também faziam: “Pra

todo lugar... até arrumar um lugar pra sossegar”. Discutimos algumas vezes sobre essa

noção.

Alfredo era um interlocutor que compreendia as minhas visitas como a de um

“trabalhador”, de alguém que estaria “empregado” fazendo pesquisa, que ganhava

“salário” para estar ali e que, portanto, teria viajado para Tucumã para “trabalhar” e para

“cuidar da minha família”, tal como, inclusive, era o motivo de praticamente todos os que

estavam na cidade. Desde as primeiras visitas, quando eu ainda estava desacompanhado

em Tucumã e buscava começar a entender a condição dos trabalhadores que se

encontravam em uma situação de composição de grupos domésticos, ele confrontava as

perguntas com a minha própria situação, aproximando as nossas experiências

propositalmente e, assim, descartando as pretenciosas ingenuidades ou as desconfortáveis

suspeições de alteridade que o métier impõe. A conversa, nesse sentido, permitia

questionamentos e, não raro, fazia com que Alfredo abordasse com certo distanciamento

Page 228: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

228

a “nossa” própria condição. Mas, então, eu também não teria vindo antes da esposa para

Tucumã? Ou então:

“[Alfredo:]

- Sua mãe criou quantos filhos?

[pesquisador:]

- Dois.

- E tá tudo com ela lá ainda?

- Nada.

- Então você vê, né? Criou asa, voou. Cada um vai cuidar da sua vida.

Você está fazendo isso aí pra cuidar da sua família, né?

- É...

- Então, é assim”272.

Alfredo dizia que já estava há “40 anos no mundo”. Fazia, para isso, uma

associação aproximada, pois sua idade era de 52 anos. Provavelmente era uma

aproximação à primeira vez que saiu da “cidade que nasceu” para trabalhar. De Bacabal,

no Maranhão, de fato, ele saiu diversas vezes para trabalhar. Seu pai era assalariado na

cidade como vigilante noturno, “vigia da bomba”, e também “fazia roça”, como

arrendatário. A primeira esposa de Alfredo, com quem teve quatro filhos, ficava em

Bacabal, enquanto ele estava “no mundo”. Nesse período, tiveram um lote de terra na

região, que foi vendido depois da separação. De lá, Alfredo já tinha ido trabalhar em

abertura de estradas no Piauí, em firmas e, uma vez, em um garimpo na Guiana Francesa

também, onde contava que ficou 6 meses, adoeceu com malária algumas vezes e voltou

“sem nada”. Em 1980, depois de separado, foi para Marabá/PA e foi contratado em um

frigorífico em que ficou dois anos. Daí em seguida, sempre convidado por um

encarregado, trabalhou na construção de novos frigoríficos, ficando cerca de um ano na

cidade, como foi o caso de Colinas e de Nova Olinda, no norte do Tocantins. A última

delas foi Tucumã, onde continuou no mesmo frigorífico por seis anos até ser demitido.

Sua aposta, então, foi fazer duas casas no grilo do Morro dos Macacos, uma delas seria

para alugar. Perdeu tudo. Antes disso, já tinha tentado comprar uma terra na região, mas

“o governo tomou”, foi expulso e também perdeu o dinheiro investido na compra do lote

e na abertura (derrubada da mata). Em 2012, estava em uma casa de tábua no Lago das

Rosas, recomprando, aos poucos, alguns móveis e eletrodomésticos que foi obrigado a

vender para não deixar debaixo da lona até construir uma casa no novo terreno. Como já

272 Entrevista com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12.

Page 229: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

229

citei, ele morava com a esposa, que conheceu em Tucumã, e três filhos, sendo o mais

velho, de 6 anos, filho do casamento anterior da esposa. Nos últimos anos, Alfredo

trabalhava na limpeza urbana de Tucumã, depois que agentes da Prefeitura foram até o

novo setor recrutar trabalhadores, oferecendo, a princípio, algumas diárias, depois, um

salário mensal. Sua esposa era empregada doméstica na cidade. Cerca de dois meses

depois que o conheci, em fins de outubro, Alfredo não sabia o que faria a partir de janeiro.

O novo prefeito eleito provavelmente iria despedir todos os trabalhadores contratados na

gestão anterior.

Na primeira ocasião em que estivemos juntos, Alfredo disse que quando “se

aquietar”, ele quer voltar para Bacabal. Na segunda vez, frisou novamente: “Aqui é

passageiro, em breve estou voltando”. Ao longo da conversa, porém, entendendo melhor

o que ele (e outros trabalhadores que estavam na mesma situação que ele) definiam como

sossego ou se aquietar, discutimos as condições que ele teria, então, para isso e o que

significava, enfim, uma “volta”. A noção compreendia, principalmente, uma condição na

qual não mais tivessem que trabalhar naquelas circunstâncias, “no mundo”, o que, no caso

da força de trabalho que dispunham, implicava na idealização de duas alternativas:

aposentadoria e, certas vezes, dependendo da trajetória, “terra”273.

Alfredo era um dos que ainda pretendia ter terra:

“[pesquisador:]

- O senhor ainda pensa em ter terra?

[Alfredo:]

- Rapaz, eu quero comprar um bocado de terra, com fé em Deus... e me

aquietar.

- Aonde?

- Onde achar, se poder comprar... só me aposentar, receber um dinheiro

que eu quero receber, e quero comprar. 10 alqueires, 20 alqueires, 20

hectares... e me aquietar.

- Aquietar que o sr. diz é o que?

- Ficar dentro... comprar uma vaquinha, criar um porco, uma galinha.

Não ter mais que trabalhar assim não...

- Assim, que o sr. diz...

- Assim... todo dia, né? Pode chover, pode não chover, você vai, né?

Trabalhar por conta da gente, se o sol tiver quente, ninguém vai, né?

273 Nesse sentido, era semelhante ao que foi relatado nas declarações dos peões-de-trecho citadas

anteriormente, quando os trabalhadores idealizavam outra condição a partir, principalmente, da “terra”, de

um “emprego fixo” ou de uma “casa”. Tal como já abordei no capítulo anterior, como as condições de

circulação desses trabalhadores se relaciona à situação conjugal (casados ou não), também era comum ouvir

em determinadas ocasiões de um ou outro peão sua pretensão de “sossegar” associada com o casamento,

ou de uma situação “mais sossegada” quando está casado.

Page 230: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

230

Amanhece, você trabalha às vezes até seis, seis e meia, pra não ter que

trabalhar naquele sol quente né? Eu cheguei agora do serviço, você vê,

até agora debaixo do sol quente”274.

A referência à “terra”, porém, como era o caso do Alfredo, compreendia dois

significados: um acesso à terra que permitisse um complemento à renda da aposentadoria

ou, por outro lado, no contexto da região no período em que acompanhei, um quase

impossível acesso à terra que lhe permitisse reunir as condições para se constituir como

pequeno produtor275:

“[pesquisador:]

- Tem que ter terra pra se aquietar?

[Alfredo:]

- Tem que ter a aposentadoria e terra. Porque tendo a terrinha, se você

é aposentado, você vai trabalhar, vai plantar um feijãozinho, criar uma

galinha, uma porca, que vai parir uma cria pra você comer... e o cara

que não é aposentado, não pode, porque tem que trabalhar todo dia pra

comer, né? Se não ganhar dinheiro pra comer no mês, vai morrer de

fome, né? Aposentado não, tem aquele certo. (...) Porque uma porca

pega cria hoje, daqui a 4 meses, três meses, dá cria. Pra um leitão ficar

bom, seis meses. Se você não tiver o dinheiro pra comer, você morre de

fome.

- Mas o sr. acha que é fácil comprar terra ainda hoje? Encontra?

- Fácil é... tendo dinheiro.

- Mas está caro?

- Está caro. Aqui mesmo um alqueire de terra, eles estão cobrando 10

mil reais. O mais caro está 20 mil, 30 mil. (...) Porque um alqueire só

dá pra criar galinha e uma porca. Pra criar gado tem que ter mais de 10

alqueires.

- Então, pra se aquietar com um alqueire...

- Aposentado. Você não vê o aposentado na rua que só vive daquele

salário? Ele vive só de salário. Então dá pra ficar com um alqueire, mas

aposentado. Que aí você vai ter criação de galinha, um porquinho e

pronto.

- Agora, sem a aposentadoria, tem que ter gado, né?

- Tem que ter gado, porque aí você vive do leite, das coisas... vende um

bezerro. Você vai levando, né?”276

274 Entrevista com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12. 275 Uma propriedade rural com até 100 alqueires era considerada pequena nos quadros do Sindicato Rural

de Ourilândia do Norte e Tucumã. Segundo o cálculo de Alfredo, nada despropositado naquele contexto,

era preciso de no mínimo 100 mil reais apenas para a compra da terra na época, uma poupança praticamente

impossível para aqueles trabalhadores. Contudo, além disso, o processo para se constituir como pequeno

produtor envolveria ainda muitas outras condições prévias, sendo a transação de compra da terra só uma

delas. Para uma análise a respeito, ver Felix (2008). 276 Idem.

Page 231: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

231

A “volta” era outra questão que, quando citada, significava a idealização de um

processo de retorno intrigante no caso dessas frações de trabalhadores, dependendo da

composição de sua última unidade social de deslocamento e da distribuição espacial de

seu núcleo familiar em dado momento. Até mesmo a menor e, a princípio, mais sólida

unidade – o homem solitário casado no local de origem, alojado no acampamento e que

se deslocou apenas para a obra – enseja sempre a possibilidade de rearranjos, não retorno,

de novo deslocamento, de rompimento da união conjugal anterior no destino ou mesmo

na origem. Por outro lado, unidades sociais de deslocamento compostas por todo ou

praticamente todo o núcleo familiar não mais ensejam possibilidade de “retorno”, algo

principalmente notado, por exemplo, pelo deslocamento da mãe (ou do ponto) do

trabalhador.

Nas franjas dos grandes projetos, em geral, foi percebida uma população que se

deslocou “sem volta”. As famílias de trabalhadores que se deslocaram e se instalaram nos

arredores do complexo de Barcarena/PA, ao longo dos anos 1980, por exemplo, foram

percebidas de maneira bastante sugestiva por Antonaz (1995): “Os grupos domésticos

instalados em Conde apagaram o passado e o espaço do passado. Só existe o grupo, agora,

naquele espaço, ou na antevisão da retomada da estrada” (p. 78); “As famílias alojadas

em Conde não têm para onde voltar. A sua possibilidade de saída é seguir para um outro

polo de atração, para outro projeto mais adiante” (p. 83). O “terceiro tempo” das frentes

de expansão, o tempo dos grandes projetos, nesse sentido, formou uma geração proletária

condicionada por seguidos deslocamentos e seus filhos seriam, portanto, aqueles cujas

“saídas foram bloqueadas”, como propôs Bertaux (1979), filhos de “camponeses

desenraizados”277.

Em Ourilândia do Norte e Tucumã, essa questão estava especialmente presente no

âmbito das secretarias municipais de assistência social, organismos a que cabia a

responsabilidade pelo auxílio aos trabalhadores que não tinham recursos para “voltar para

suas cidades de origem”. No entanto, a “cidade de origem” indicada por parte desses

trabalhadores era a última que ele ou algum membro do núcleo familiar se deslocou. Ou

277 Bertaux (1979) ressaltou a diferença geracional dos chamados “camponeses desenraizados” que se

tornaram operários na primeira Revolução Industrial para seus filhos, estes sim, “sem volta”: “Para seus

filhos, nascidos senão na fábrica (às vezes), pelo menos sob o vento das chaminés, incorporados à força à

sua população trabalhadora desde a mais tenra idade, submetidos e disciplinados pelo ritmo do trabalho

imposto pela maquinaria. Para essas crianças, a fábrica se transformou num modo de vida, o único possível

de viver sua vida. Não existia outro: todas as saídas foram bloqueadas” (Bertaux, 1979: 189).

Page 232: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

232

seja, ou o ponto anterior do qual ele estaria sendo expulso ou um novo destino que ele

tentaria trabalho para, justamente, deslocar depois quem ficou. E a “volta” muitas vezes

era um pedido de passagem para a próxima cidade em busca de trabalho278.

Além disso, essas secretarias também eram buscadas por mulheres que perderam

o contato dos trabalhadores com quem tiveram relacionamento e necessitavam de auxílio

para o enxoval de filhos recém-nascidos ou para obter cesta básica. Certos casos, essas

mães também solicitavam auxílio para localizar os pais, o que, segundo as assistentes

sociais, raramente acontecia por conta dos deslocamentos por diárias ou empreitas,

informais, sem possibilidade de rastreamento, ou então, quando formal, nas firmas

terceirizadas, por conta da circulação:

“(...) nas terceirizadas até tem [uma situação formal], mas assim, até

então eu sei que estão aqui, terceirizado. Transferiu e foi lá pra Canaã

[dos Carajás/PA]. De repente, como é realizada lá, eles não ficam lá.

Então essa pessoa que está, tem o endereço, a gente sabe que foi pra lá,

mas chegou lá não se adaptou a alguma coisa, ao alojamento, alguma

coisa lá que ele não gostou... Ele pede a conta. Ela vai ter esse contato

278 Nesse caso, porém, nem sempre bem-sucedido já que os trabalhadores precisavam driblar uma série de

suspeitas e critérios de seleção dos órgãos de assistência. Os assistentes sociais da Prefeitura Municipal de

Ourilândia do Norte, por exemplo, faziam uma “pesquisa” de antecedentes criminais, de miserabilidade ou

de familiares na cidade, que eram critérios de exclusão do auxílio. Em um dos casos de um grupo de

trabalhadores que a assistente social da Prefeitura de Ourilândia se recordava de ter atendido, ela explicou:

“[assistente social:]

– (...) A gente concedeu passagem apenas pra dois.

[pesquisador:]

– Por quê? Os outros tinham ‘condição’?

– Tinham condição e também, assim, eles estavam querendo enrolar a gente. Eles disseram que não tinham

família aqui... O que que eu faço: sem eles perceberem, eu pego a identidade deles e o CPF. A gente tem

uma estratégia aqui no sistema, no computador, principalmente no Tribunal de Justiça. A gente vai lá e faz

uma pesquisa. Um deles, inclusive, tinha um processo criminal contra ele, lá no Maranhão. O outro tinha

aqui em Xinguara [Pará]. Quer dizer, eles vêm contando uma história e quando a gente vai verificar não é

aquilo. (...)

– Aí, no caso desses que têm algum ‘problema’ na Justiça não é concedido [passagem]?

– Não. Nesses dois casos que estou me recordando agora, eles tinham família aqui e eles disseram que não

tinham família nenhuma aqui. O outro, que eu acabei de recordar agora, inclusive a mãe dele que vinha

aqui, a gente atendia com cesta básica. Ele disse que não tinha família nenhuma aqui e tinha a mãe...

[outra assistente social que assistia a entrevista interrompe:]

– E a mãe dele era aposentada...

[assistente social que dava a entrevista:]

– A mãe era aposentada!

[a que interrompeu continua a frase:]

– E, assim, ele não trabalhava porque ficava acomodado...

[assistente social que dava a entrevista:]

– Acomodado, porque a mãe dele vinha aqui.” (Entrevista com assistente social, Secretaria de Trabalho e

Promoção Social da Prefeitura Municipal de Ourilândia do Norte, 19/09/2012). Outros casos, o pedido de

passagem de “volta” era, na verdade, para uma cidade a 260km de Ourilândia do Norte que tinha agência

da Caixa Econômica Federal, do INSS e da Receita Federal, órgãos a que os trabalhadores tinham que

recorrer para solicitação de FGTS, para questões de Previdência Social e para regularizar o CPF, algo

necessário para fazer um agendamento no INSS.

Page 233: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

233

pra onde ele foi, mas... Existe também aqui na Oficina Jurídica, muitos

que vem que ela também não sabe, perdeu o contato. Ela não consegue

saber se ele foi transferido, se ele pediu conta e foi pra uma cidade

vizinha... Acaba-se perdendo esse contato. Aí acaba não conseguindo

encontrá-lo. (...) Ela chega aqui: ‘eu tenho aqui o meu filho e preciso da

pensão alimentícia.’ Aí pergunta: ‘Tá. Quem é a pessoa?’, ‘É fulano de

tal’, ‘Ele mora aonde?’, ‘Não sei’. Como que se vai notificar pra ele

comparecer a uma audiência, pra conversa, juiz, promotor? Não tem

como localizá-lo. Mas se for, ‘ah, tem o endereço. Ele voltou pra Bahia.

Mora no bairro tal, rua tal, na Bahia’. Problema nenhum. Faz por

precatória, tudo certinho. Mas, sem um endereço... não tem como

localizá-lo no Brasil!”279.

Nem todos os trabalhadores que entrevistei se referiam a uma “volta”, uma vez

que isso nem sempre fazia sentido frente ao percurso que tiveram ou aos arranjos

reprodutivos constituídos no momento em que os encontrei. Alguns, porém, como

Alfredo, diziam que iriam voltar. No caso dele, para a cidade em que nasceu e que ainda

moravam sua mãe, dois irmãos e dois dos sete filhos que tinha na época. Ele e uma irmã

que morava em Goiânia, costureira em uma fábrica de roupa, mandavam dinheiro todo

mês para a mãe em Bacabal. Mas a “volta” de Alfredo não seria um processo fácil, mesmo

quando aquietado, aposentado. A nova esposa de Alfredo já teria ficado lá por três meses

e voltado porque “não gostou”. Ao mesmo tempo que ele dizia que queria voltar, também

dizia que, quando se aquietasse, iria comprar terra em qualquer lugar “que aparecer e que

dê pra comprar, gostando do lugar”. Além disso, dada a situação em que estava, ele

sempre fazia questão de frisar que depois que se sai de casa e se casa, não tem mais como

voltar, tudo muda: “Não tem mais jeito, sabe? Se você passar 10 anos na sorte no mundo

com a mulher, você não tem meio de morar mais lá não. Tudo é diferente já. Sua casa vai

ser... não tem mais lugar certo com sua família. Se você quiser voltar, você não acha.

Tudo é diferente. Na sua família, as coisas mudam”280.

Entretanto, enquanto esse momento do sossego não chegava, Alfredo continuava

no mundo. Já em novembro, depois de quase oito anos em Tucumã, ele pintava “vende-

se” na sua casa de tábua no Lago das Rosas.

279 Entrevista com assistente social da Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Tucumã, Tucumã,

20/09/2012. 280 Entrevista com Alfredo, 52 anos, Lago das Rosas, Tucumã/PA, 23/08/12.

Page 234: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

234

CAPÍTULO 4:

CIRCULAÇÃO

O processo de implantação do grande projeto da indústria da mineração em

Ourilândia do Norte, como demonstrei nos capítulos anteriores, mobilizou/imobilizou e

expulsou distintos contingentes de trabalhadores. Milhares que vieram para sua

construção seguiram para outras obras, outros ficaram.

Contudo, a permanência na cidade não significava uma menor circulação da força

de trabalho. Mesmo quando tal processo representou a prestação de serviços na indústria

e a formação de um grupo mais “fixo” – constituído por trabalhadores que, no momento

da pesquisa, circulavam nas firmas subcontratadas da empresa transnacional e moravam

nos setores já estabilizados da cidade –, esse processo também se caracterizava pela

reprodução em um mercado de trabalho altamente circulatório. Neste sentido, a diferença

entre os diversos contingentes de trabalhadores mobilizados restava apenas no maior ou

menor grau de atrelamento entre a circulação da força de trabalho e seu deslocamento

espacial, variando desde uma vinculação direta, tal como no nomadismo dos peões-de-

trecho, até frações espacialmente mais estabilizadas em circuitos firma-firma na MOP281.

Neste capítulo, partindo da condição desses trabalhadores da MOP, analiso

algumas características das formas de circulação mercantil da força de trabalho em um

regime de acumulação flexível do capital. Para tanto, inicio com um breve comentário

sobre a circulação da força de trabalho em geral.

4.1) Circulação e reprodução da força de trabalho

Em Marx, como frisei, os trabalhadores do exército de reserva ainda “aptos para

o trabalho” eram os que mantinham condições de mobilidade. E talvez os trabalhadores

281 Como abordei anteriormente, o processo de formalização dos contratos de trabalho não teria mudado a

condição dos trabalhadores que circulavam nas fazendas. Eles eram, na maioria das vezes, contratados por

3 meses, ou menos, e despedidos em seguida. As empresas agropecuárias da região, por conta da

fiscalização trabalhista dos últimos anos no âmbito da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo,

normalmente exigiam CTPS dos trabalhadores e os registravam como contrato de experiência, com

remuneração mínima (serviços gerais). Essa formalização não alterou o pagamento por empreita e por

diária, uma vez que o registrado em carteira não correspondia ao que era negociado entre patrões ou

gerentes e os trabalhadores.

Page 235: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

235

em análise aqui sejam os que encarnem de forma mais literal essa premissa. Trabalhar

significa sair no mundo, se deslocar sempre de forma a acompanhar a circulação do

capital, ir para onde está “bom de serviço”. A compra dessa força de trabalho não

especializada se dá de forma descontínua e, certos casos, espacialmente dispersa. Ou seja,

para vendê-la, é preciso que o trabalhador se desloque sempre, entre cidades, entre

fazendas, entre empresas.

Eles também talvez sejam os trabalhadores que melhor encarnam a mobilidade do

capital, isto é, os mais diretamente submetidos a essa mobilidade. Eles são “indiferentes”

ao conteúdo do seu trabalho tal como o capital é indiferente ao ramo de produção em que

se situa seu processo de valorização, tal como o capitalista é indiferente à natureza

particular do processo de trabalho de que se apropria para obter lucro. São, nesse sentido,

a melhor representação do “proletário”, do sujeito despossuído que nada mais tem além

de sua força – nesse caso, especificamente muscular, física – de trabalho.

Contudo, as condições de mobilidade que mantêm esses trabalhadores “aptos para

o trabalho” não são apenas deles, mas da natureza da força de trabalho, em geral, enquanto

mercadoria. Afinal, essa mercadoria circula em um mercado de trabalho, particular e

especial, mas um mercado, no qual o capitalista compra a força de trabalho, e não o

trabalhador e nem o trabalho. O trabalhador, por definição, é “livre” e “móvel”: “Isto é,

livre de se vender, livre de se vender apenas ao capital. Móvel, isto é, capaz de ir sozinho

ao mercado para se vender e se submeter à exploração capitalista” (Gaudemar, 1977:

265)282. Mas a mobilidade da força de trabalho, mesmo sendo uma mercadoria como

qualquer outra, obviamente, também é bastante singular. Vejamos como.

Gaudemar (id.) sugere reler os primeiros capítulos de O Capital, em que Marx

trata da circulação simples das mercadorias em geral, para se pensar na mobilidade da

força de trabalho. Como se sabe, Marx apenas apresenta a mercadoria força de trabalho a

282 Marx expõe esse mercado com toda sua ironia: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em

cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos

inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham.

Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são

movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O

contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes.

Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam

equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada

um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a sua utilidade

própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa

apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia

preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providencia todo-astuciosa, realizam em conjunto a

obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral” (Marx, 2013: 250-251).

Page 236: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

236

partir do seu 4º capítulo. Façamos o exercício, de forma resumida. Destacarei apenas dois

pontos: o valor e o deslocamento espacial das mercadorias.

Marx, no capítulo 1, afirma que a grandeza do valor de uma mercadoria é a

quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente

necessário para sua produção. Isso porque o trabalho é a “substância do valor” e o tempo

de trabalho a sua medida. “Essas coisas [os produtos do trabalho, as mercadorias]

representam apenas o fato de que em sua produção foi despendida força de trabalho

humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristais dessa substância social que lhes

é comum, elas são valores – valores de mercadorias” (Marx, 2013: 116).

No capítulo 2, sobre o processo de troca, Marx afirma: “As mercadorias não

podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de

nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias” (id.,ib.: 159). No que se

refere à troca, é sabido que a circulação simples das mercadorias não altera seu valor e

expressa apenas sua metamorfose, M-D-M. O transporte, no entanto, constitui trabalho

necessário para a produção de uma mercadoria: para que uma mercadoria seja oferecida

e trocada numa praça de mercado, deve ser deslocada até lá, o que significa, portanto,

mais tempo de trabalho necessário para sua produção283. Como também é de pleno

conhecimento, Marx desenvolve mais detidamente esse assunto no Livro II, em que

conclui, por exemplo, que “(...) o valor de uso das coisas só se realiza em seu consumo,

o qual pode exigir seu deslocamento espacial e, portanto, o processo adicional de

produção da indústria do transporte” (Marx, 2014: 229). Logo, o valor da mercadoria tem

em sua composição o valor acrescido do seu transporte, o tempo de trabalho socialmente

necessário para o seu transporte284.

E a força de trabalho?

A particularidade mais evidente – ou, melhor, aparente – é que ela é a única que

vai “por si só ao mercado”. Como observa Gaudemar (id.), a força de trabalho “(...) se

apresenta ela própria no mercado, como única mercadoria ‘livre’ de se deslocar, de se

283 Sendo assim, obviamente, a indústria do transporte cria mais-valor como qualquer outra e aquele que

desempenha essa atividade é um trabalhador produtivo, do mesmo modo que Marx teve como objeto de

estudo no Livro I. Sobre o assunto, ver notas de Marini (s/d). 284 Marx conclui que a indústria do transporte “se distingue pelo fato de aparecer como continuação de um

processo de produção dentro do processo de circulação e para o processo de circulação” (grifos do autor.

Marx, 2014: 231). O aumento da produtividade nessa indústria reduz o tempo socialmente necessário para

a produção de praticamente todas as mercadorias e permite, como explicita Marx, uma “destruição do

espaço pelo tempo”. Junto com a indústria das comunicações e o desenvolvimento de suas novas

tecnologias, esse fator influenciou, inclusive, a divisão internacional do trabalho nas últimas décadas e as

mudanças da atual etapa de acumulação do capital.

Page 237: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

237

dirigir ao local de venda da sua escolha” (p. 201). E conclui: “Os fluxos migratórios

tomam aqui o seu lugar na constelação do capital” (id. ib.: 321). Porém, se levarmos

adiante o raciocínio proposto, notaremos que o que vale para as outras mercadorias,

grosso modo, vale também para a força de trabalho. O deslocamento compõe seu valor,

necessariamente. Os custos do deslocamento espacial são sempre parte do valor da força

de trabalho, uma vez que, para que tenha valor de uso para seu comprador, o capitalista,

o trabalhador precisa necessariamente se deslocar até o lugar em que se dará esse

consumo, o local de trabalho. A busca de redução dos gastos por parte do capital inclui

sempre, dentre outros, a redução dos gastos com o deslocamento espacial da força de

trabalho285. E isso vale tanto para o transporte diário do trabalhador, quanto para as

migrações de trabalho internacionais. Essa seria, portanto, uma particularidade aparente.

Continuemos.

A mobilidade espacial da força de trabalho normalmente implica outras

complexificações. Peña López (2012), por exemplo, que pesquisa os trabalhadores

mexicanos nos EUA, afirma que a reprodução social de um trabalhador migrante não está

fixada a um só espaço geográfico e social, mas a vários:

“Al considerar los medios de subsistencia del trabajador migrante se

debe tener en cuenta los diversos espacios de reproducción que

requieren él y su familia (de forma inmediata y mediata), y también los

espacios de traslado o movimiento, que en sí mismos son también

espacios de reproducción. Este “rompimiento” de los espacios de

reproducción determina el proceso de reproducción del trabajador el

cual se vuelve extraordinariamente complejo” (grifos meus). (Peña

López, 2012: 61)286.

285 Gaudemar (1977: 321) margeia essa questão: “(...) a mobilidade permite à força de trabalho deslocar-se

à sua vontade. O único entrave é sua disponibilidade. Melhor, é o trabalhador que paga frequentemente as

suas despesas de deslocação. O capital encontra então diante de si o trabalho de que tem necessidade.

Contentou-se em criar um chamamento de ofertas. A parte do seu capital, que usa para recrutar mão-de-

obra, se bem que em permanente crescimento, mantém-se ainda fraca”. 286 E ela continua, a fim de demonstrar que há, portanto, aumento do valor da força de trabalho e, sempre

que esse valor não é coberto pelo salário, superexploração: “Al tener más de un espacio reproductivo

requiere, por un lado, las condiciones materiales para mantener esos distintos espacios (su hogar en el lugar

de origen y otro en el de llegada así como los lugares que ocupa durante su traslado – dependiendo de las

distancias y los tempos necesarios para recorrerlas –); los medios que necesita para transportarse y

comunicar esos espacios reproductivos y la ampliación de necesidades que surge en el espacio de

inmigración, lo que conlleva un traslado de nuevos objetos de consumo al país de emigración (objetos de

moda, drogas, alimentos, etcétera). Por otro lado, tener más de un espacio reproductivo también implica un

despliegue de una más amplia red de relaciones sociales en cada espacio que se ocupa. Por lo tanto, se

elevan los costos de reproducción ya que se requiere de una masa más grande y diversos medios de

subsistencia, en tanto son más espacios reproductivos en los que tiene lugar una más amplia y compleja

socialización y producción de capacidades y necesidades de este sujeto social. Por tanto, el trabajador que

migra requiere de una masa de valor de uso y por lo tanto, de una magnitud de valor mayor para reproducir

Page 238: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

238

O que assinala Peña López nesta citação se refere não apenas ao denominado

“trabalho migrante”, quando os espaços de reprodução são “rompidos” (e duplicados, ou

triplicados), mas à circulação mercantil da força de trabalho em geral. Como afirma, os

próprios espaços de movimento e de deslocamento são também espaços de reprodução,

que, dependendo da distância e do tempo envolvidos, implicam em elevação dos custos

da reprodução da força de trabalho. Ou seja, também há “re-produção” da mercadoria na

esfera da circulação. A reprodução do trabalhador (e de sua unidade social de reposição)

também inclui o tempo que permanece no exército de reserva, seu “tempo de circulação”,

ou seja, o período que compreende uma venda e outra da força de trabalho – “tempo”, é

bom frisar, já que, obviamente, como mercadoria, a força de trabalho também pode

circular sem se deslocar espacialmente287. E o tempo de circulação é uma reprodução não

paga imediatamente na forma salário. Esta é a verdadeira especificidade da mercadoria

força de trabalho, no que se refere à circulação simples de mercadorias288. Um fator que,

embora claramente percebido por Marx, não foi desenvolvido por ele na época289. O

processo atual de acumulação, contudo, nos impele a isso.

su fuerza de trabajo. (…) En la medida en que este trabajador migrante se separa de su comunidad y

profundiza su situación asalariada, los costos de su reproducción deberán ser cubiertos por el salario que

perciba por la venta de su fuerza de trabajo. Si el salario no cubre el valor de esos medios de subsistencia

tiene lugar una superexplotación y degradación del trabajo así como del trabajador y de su familia” (Peña

López, id.: 61-62). 287 Marx, no Livro II, sintetiza: “No interior do ciclo do capital e da metamorfose das mercadorias, que

constitui uma fase desse ciclo, realiza-se o metabolismo do trabalho social. Esse metabolismo pode

condicionar o deslocamento espacial dos produtos, seu movimento real de um lugar para o outro. Mas a

circulação de mercadorias é possível sem seu movimento físico e o transporte de produtos, sem a circulação

de mercadorias – e mesmo sem a troca direta de produtos. Uma casa que A vende a B circula como

mercadoria, mas não sai para passear. Valores-mercadorias móveis, como algodão ou ferro-gusa, jazem no

mesmo depósito de mercadorias, ao mesmo tempo que percorrem dezenas de processos de circulação, sendo

comprados e vendidos pelos especuladores. O que realmente se move é o título de propriedade sobre a

coisa, não a coisa em si. Por outro lado, no Império Inca, por exemplo, a indústria do transporte

desempenhou um grande papel, embora o produto social não se distribuísse nem como mercadoria, nem

por meio das trocas comerciais” (Marx, 2014: 229). 288 Considerando aqui como “tempo de circulação” os custos de circulação como um todo no período em

que a força de trabalho não está vendida (isto é, pensando a partir do que Marx analisou para as mercadorias

em geral no Livro II, por exemplo, em três itens: custos líquidos, armazenamento e transporte). Cf. Marx

(2014: 209-231). Cabe frisar que o que estou denominando aqui como “tempo de circulação” e, como

designo mais a frente, “tempo de produção” para a força de trabalho, foram abstrações que fiz para o

exercício que demonstrarei a seguir. Marini, por exemplo, se referiu a uma “circulação da venda da força

de trabalho” e a uma “especificidade da venda da força de trabalho (M-D-M) na circulação capitalista”, em

um guia de leitura que preparou em conjunto para um curso na UNAM sobre o processo de circulação do

capital (Marini et al., 1979). 289 Obviamente, o capitalismo que Marx toma por base para sua análise era caracterizado por outras

estratégias de acumulação e reprodução. Isso, porém, não o impediu de fazer o seguinte exercício a respeito

de um suposto “subemprego anormal”, dentro das premissas metodológicas cuidadosamente adotadas por

ele no Livro I: “A unidade de medida do salário por tempo, o preço da hora de trabalho, é o quociente do

valor diário da força de trabalho dividido pelo número de horas da jornada de trabalho habitual. Suponha

Page 239: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

239

O valor da força de trabalho é definido por Marx em diversas passagens do Livro

I de O Capital (2013: 245-247; 338; 388-389; 587) e de outros textos (Marx, 2006a: 44;

2006b: 126)290. Como resume, ao contrário das outras mercadorias, sua determinação

contém um “elemento histórico e moral”. Mas, continuando nosso exercício, é também

uma mercadoria como qualquer outra. Então, assim como as demais mercadorias, é

preciso diferenciar valor, valor de troca e preço da força de trabalho291. E, para isso, no

entanto, é preciso observar que o modo de exposição de Marx no Livro I considera,

metodologicamente, valor = preço (ou seja, no caso da força de trabalho, que ela é

remunerada de acordo com o seu exato valor). Esta exposição se deve ao objeto em

questão, o processo de produção do capital, e, assim, ao interesse em demonstrar e

analisar a valorização do valor, a pertinência das categorias força de trabalho, mais-valor

absoluto, extraordinário e relativo, etc. Porém, sua complexificação (não equivalência

valor-preço) não só está indicada em diversas passagens neste mesmo Livro I, como

também nos outros textos que escreveu e que foram publicados nos outros Livros de O

Capital292.

que esta última seja de 12 horas e que o valor diário da força de trabalho seja de 3 xelins, isto é, o produto

de valor de 6 horas de trabalho. Nessas circunstâncias, o preço da hora de trabalho será de 3 pence e seu

produto de valor somará 6 pence. Ora, se o trabalhador estiver ocupado menos de 12 horas por dia (ou

menos de 6 dias por semana), por exemplo, somente 6 ou 8 horas, ele receberá, mantendo-se esse preço do

trabalho, um salário diário de apenas 2 ou 1 ½ xelins [em nota: “O efeito desse subemprego anormal é

totalmente diferente do que resulta de uma redução geral, imposta por lei, da jornada de trabalho. O primeiro

não tem qualquer relação com a duração absoluta da jornada de trabalho e tanto pode ocorrer quando esta

é de 15 horas como quando é de 6 horas. O preço normal do trabalho, no primeiro caso, é calculado sobre

a base de que o trabalhador trabalhe uma média de 15 horas; no segundo, que ele trabalhe 6 horas por dia

em média. O efeito seria, assim, o mesmo se, no primeiro caso, ele só estivesse ocupado por 7 ½ horas e,

no segundo, apenas por 3 horas”]. Como, segundo o pressuposto que adotamos, ele tem de trabalhar uma

média diária de 6 horas para produzir apenas um salário correspondente ao valor de sua força de trabalho,

e como, segundo esse mesmo pressuposto, de cada hora ele trabalha somente meia hora para si mesmo e

outra meia hora para o capitalista, é claro que não poderá obter o produto de valor de 6 horas se estiver

ocupado por menos de 12 horas. Se anteriormente vimos as consequências destruidoras do sobretrabalho,

aqui descobrimos as fontes dos sofrimentos que, para o trabalhador, decorrem de seu subemprego” (Marx,

2013: 615-6). 290 Sendo que “Trabalho assalariado e capital” (2006a) é um texto de Marx republicado postumamente por

Engels, cujas alterações, em especial, na questão da mercadoria força de trabalho, foram detalhadas por ele

no prefácio de 1891. “Salário, preço e lucro” (2006b) também é um texto póstumo publicado por Eleanor

e Eduard Aveling em 1898 a partir do manuscrito de 1865, porém as alterações nesse texto se restringiram

aos títulos. 291 O valor de troca, modo de expressão do valor, forma de sua manifestação, forma fenomênica

(Erscheinungsform), é diferente do valor, substância (Substanz). A característica do valor da força de

trabalho não é diferente: tal como as demais, ela é uma abstração real, possui uma materialidade social e

histórica, também se trata de trabalho humano objetivado (Marx, 2013: 169). No caso, no próprio

homem/mulher. 292 Tal como no Livro III, cujo manuscrito editado por Engels é anterior ao próprio Livro I. Nesse sentido,

ter como objeto a relação valor e preço em nada significa o abandono da teoria do valor trabalho tal qual

utilizada por Marx, muito pelo contrário.

Page 240: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

240

Façamos uma observação atenta da definição de força de trabalho293. Marx calcula

um valor médio (no caso, diário) cuja composição compreende toda a reprodução do

trabalhador (e de sua unidade social de reposição da força de trabalho)294. Se o preço da

força de trabalho não compreende esse valor médio mínimo, significa que este preço está

abaixo de seu valor.

Neste sentido, a forma salário, sempre que não compreende também o valor da

circulação da força de trabalho (da reprodução como um todo) estaria abaixo de seu

valor295. Sua aparência e sua referência, portanto, apenas condicionam a própria

circulação da mercadoria força de trabalho. Como é sabido, em uma sociedade de

mercado, a “grande transformação” histórica do trabalho assalariado também está no fato

de que a forma salário apenas remunera imediatamente as horas compradas da força de

trabalho e não sua circulação. A condição de mercadoria da força de trabalho só existe no

próprio mercado e, uma vez que sua circulação não é remunerada imediatamente, ela

293 “O valor da força de trabalho se reduz ao valor de uma quantidade determinada de meios de subsistência

e varia, portanto, com o valor desses meios de subsistência, isto é, de acordo com a magnitude do tempo de

trabalho requerido para a sua produção. [Considerando que, tal como Marx definiu nos parágrafos

anteriores, esses meios de subsistência compreendem não só aqueles necessários ao proprietário da força

de trabalho, mas também aos “substitutos dos trabalhadores, isto é, de seus filhos, de modo que essa peculiar

raça de possuidores de mercadorias possa se perpetuar no mercado”, ou seja, à sua unidade social de

reposição de força de trabalho]. Uma parte dos meios de subsistência, por exemplo, a alimentação, o

aquecimento etc., é consumida diariamente e tem de ser reposta diariamente. Outros meios de subsistência,

como roupas, móveis etc., são consumidos em períodos mais longos e, por isso, só precisam ser substituídos

em intervalos maiores de tempo. Algumas mercadorias têm de ser compradas ou pagas diariamente, outras

semanalmente, trimestralmente, e assim por diante. Porém, independentemente de como se divida a soma

desses gastos no período de, por exemplo, um ano, ela deve ser coberta diariamente pela receita média. Se

a quantidade de mercadorias requeridas para a produção da força de trabalho por um dia = A, por uma

semana = B e por um trimestre = C, e assim por diante, então a média diária dessas mercadorias seria =

365A + 52B + 4C + etc./365. Supondo-se que nessa quantidade de mercadorias necessárias à jornada média

de trabalho estão incorporadas 6 horas de trabalho social, então objetiva-se diariamente na força de trabalho

meia jornada de trabalho social médio, ou, dito de outro modo, meia jornada de trabalho é requerida para a

produção diária da força de trabalho. Essa quantidade de trabalho requerida para sua produção diária forma

o valor diário da força de trabalho ou o valor da força de trabalho diariamente reproduzida” (Marx, 2013:

246-7). Em seguida, Marx também delimita uma situação em que o preço da força de trabalho cai abaixo

de seu valor, que seria quando se paga abaixo desse valor médio mínimo. Por exemplo, quando o valor

recebido é reduzido a apenas o imprescindível para o dia, ou para o homem: “O limite último ou mínimo

do valor da força de trabalho é constituído pelo valor de uma quantidade de mercadorias cujo fornecimento

diário é imprescindível para que o portador da força de trabalho, o homem, possa renovar seu processo de

vida; tal limite é constituído, portanto, pelo valor dos meios de subsistência fisicamente indispensáveis. Se

o preço da força de trabalho é reduzido a esse mínimo, ele cai abaixo de seu valor, pois, em tais

circunstâncias, a força de trabalho só pode se manter e se desenvolver de forma precária. Mas o valor de

toda mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho requerido para fornecê-la com sua qualidade

normal”. (Idem, ib.). 294 Nesse sentido, tal como qualquer mercadoria, seu valor equivale ao tempo socialmente necessário para

sua (re)produção, isto é, para sua produção em dado momento. Essa média, portanto, obviamente, sempre

varia em decorrência das mudanças do valor como um todo (não é necessariamente igual de uma venda

para a outra). 295 As teorias do “salário indireto”, supostamente críticas de Marx, como Meillassoux (1977), constatam

isso, ainda que de outra forma.

Page 241: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

241

também não pode ter existência fora dele, seu possuidor exclusivo deve vendê-la

novamente, mantê-la em circulação no mercado296. Tal como qualquer outra mercadoria,

a força de trabalho não tem valor sem valor de uso, e seu valor de uso só se realiza com

seu consumo.

Se para as demais mercadorias, a esfera da circulação não acresce valor (exceto

em seu transporte, que, de certa forma, ainda integra a esfera da produção), no caso da

mercadoria força de trabalho, apesar da circulação integrar seu valor, a forma salário tem

como referência imediata apenas as horas em que foi vendida, isto é, a esfera da

produção297. É no processo de trabalho que a força de trabalho é (re)criada ipso facto, ela

só se realiza com seu consumo. Porém, seu valor é composto também pelo tempo em que

circula. Portanto, o devido entendimento da condição de mercadoria da força de trabalho

deve levar em conta sua rotação, para o que importa tanto a esfera da produção quanto a

da circulação. Assim como qualquer outra mercadoria, essas esferas não podem ser

epistemologicamente separadas298.

296 Daí a constatação habitual de que, no capitalismo, o trabalhador é escravo da sua condição de vendedor

de mercadoria, da imposição da venda da força de trabalho para sua reprodução social. Ele não é

mercadoria, mas é, necessariamente, vendedor de mercadoria. E, justamente, só nessa condição de

mercadoria, inclusive, que há a possibilidade de algo inerente ao capitalismo: do preço dessa mercadoria

cair abaixo do seu valor. Uma possibilidade indicada por Marx (como no trecho citado acima) e

desenvolvida para a análise de um processo histórico concreto, por exemplo, por Marini (2008a; 2008b),

que define o que denominou como superexploração do trabalho, uma característica histórico-estrutural das

formações dependentes (ainda que não exclusiva delas, tal como desenvolveu em textos posteriores,

analisando suas novas manifestações após a crise dos anos 1970: Marini, 1993; 1996). Como se demonstra

adiante, na medida em que se aumenta o tempo de circulação da força de trabalho, sem aumento dos

salários, também há uma tendência a um pagamento por debaixo do valor da força de trabalho. 297 “Imediato” aqui se refere à precificação da mercadoria, à referência direta da fixação do preço

combinado no contrato de compra da força de trabalho, e não ao momento ou à forma em que o pagamento

é feito. O fato da força de trabalho ser paga depois do seu consumo pelo capitalista e não exatamente no

momento em que o contrato é feito não altera em nada o argumento apresentado. Em O Capital, Marx

constata esse fato: “Em todos os países em que reina o modo de produção capitalista, a força de trabalho só

é paga depois de já ter funcionado pelo período fixado no contrato de compra, por exemplo, ao final de uma

semana. Desse modo, o trabalhador adianta ao capitalista o valor de uso da força de trabalho; ele a entrega

ao consumo do comprador antes de receber o pagamento de seu preço, e, com isso, dá um crédito ao

capitalista” (Marx, 2013: 248-9). E, em seguida, a fim de continuar sua exposição teórica, adota um

pressuposto metodológico: “O preço da força de trabalho está fixado por contrato, embora ele só seja

realizado posteriormente, como o preço do aluguel de uma casa. A força de trabalho está vendida, embora

ela só seja paga posteriormente. Para uma clara compreensão da relação entre as partes, pressuporemos,

provisoriamente, que o possuidor da força de trabalho, ao realizar sua venda, recebe imediatamente o preço

estipulado por contrato” (Marx, 2013: 250). Contudo, o crédito que o trabalhador dá ao capitalista é

importante e também se relaciona com a minha tese por outras questões, tal como discuto adiante a respeito

da financeirização da circulação da força de trabalho. Em seu tempo, Marx indicou o risco de não

pagamento por conta da falência do capitalista, os endividamentos dos trabalhadores e uma série de outros

efeitos desses endividamentos exemplificados em uma longa nota após esse primeiro parágrafo que citei

(Marx, 2013: 248-9). 298 Ao tratar da rotação do capital, Marx, por exemplo, indica a possibilidade do que estou querendo chamar

a atenção aqui: “O trabalho realizado ontem não é o mesmo que se realiza hoje. Seu valor, somado ao mais-

valor por ele gerado, existe agora como valor de uma coisa diferente da força de trabalho em si, isto é, como

valor do produto. No entanto, é porque o produto se transforma em dinheiro que a parte do valor desse

Page 242: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

242

Para compreender o tempo de circulação, especificamente, é necessário observar

a relação que guarda com o valor e o preço da força de trabalho299. A inserção da variável

tempo de circulação, nesse sentido, implica uma alteração do preço da força de trabalho,

caso se mantenham as demais variáveis constantes (valor da força de trabalho e suas

determinantes). Assim, por exemplo, para que a força de trabalho não caia abaixo de seu

valor, a grandeza de seu preço deve necessariamente aumentar em razão direta com o

aumento do tempo de circulação.

Podemos ilustrar essa relação com alguns exercícios. Por exemplo, quando se

observa a variação entre dois momentos: um primeiro em que não há circulação

(momento 1) e um outro, em que se insere um determinado tempo de circulação

(momento 2). Se não houver mudança no valor da força de trabalho entre os dois

momentos (assim como em variantes como duração da jornada, intensidade do trabalho

e força produtiva do trabalho, que poderiam alterar esse valor), ocorre aumento de preço,

na forma:

Considerando:

VFT = valor da força de trabalho

TP1 = tempo de produção do momento 1

TP2 = tempo de produção do momento 2

TC = tempo de circulação do momento 2

P1 = preço da força de trabalho no momento 1

P2 = preço da força de trabalho no momento 2

produto que equivale ao valor do capital variável adiantado pode ser novamente convertida em força de

trabalho e, assim, voltar a funcionar como capital variável. É irrelevante, nesse caso, a circunstância de que

com o valor de capital não só reproduzido como reconvertido à forma-dinheiro sejam empregados os

mesmos trabalhadores, isto é, os mesmos portadores de força de trabalho. É possível que o capitalista, no

segundo período de rotação, empregue novos trabalhadores, em vez dos anteriores” (grifos meus; Marx,

2014: 404-5). 299 As categorias “valor” e “preço” estão aqui empregadas no mesmo sentido dado por Marx no Livro I,

suficientes para expor a questão considerada fundamental a respeito do tempo de circulação.

Page 243: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

243

E sendo:

Momento 1:

___________________________________

TP1

Momento 2:

_________________|__________________

TC TP2

Ou seja:

𝑇𝑃1 = 𝑇𝑃2 + 𝑇𝐶

Então:

Momento 1:

𝑃1 =𝑉𝐹𝑇

𝑇𝑃1

Momento 2:

𝑃2 =𝑉𝐹𝑇

𝑇𝑃1 − 𝑇𝐶

Ou seja:

𝑃2 > 𝑃1

Podemos numerar um exemplo fictício para ficar ainda mais claro. Consideremos

que o preço da força de trabalho mensal é $300 e que o trabalhador vendeu sua força de

trabalho por 30 dias. Consideremos também que esse preço corresponde ao valor da força

de trabalho300. O preço da sua força de trabalho foi, portanto, $10/dia. Agora

consideremos que, no mês seguinte, o valor da força de trabalho não se alterou e seu preço

mensal continua igual, $300. Mas, ao contrário do mês anterior, o trabalhador procurou

trabalho por 15 dias e, depois, só vendeu sua força de trabalho nos 15 dias restantes. Para

ter os mesmos $300 correspondentes ao valor da força de trabalho ele precisa receber

300 O mesmo exercício pode ser feito para outras formas de salário por tempo – para um valor diário da

força de trabalho, semanal ou anual, por exemplo – assim como para outras formas de salário por peça, que,

como demonstra Marx (2013), é apenas uma metamorfose do salário por tempo.

Page 244: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

244

$20/dia. Se ele receber apenas os mesmos $10/dia, ele terá recebido no fim desse mês

apenas a metade do valor da força de trabalho. Como a forma salário tem como referência

o tempo de produção, ou seja, só há efetivamente remuneração do tempo em que a força

de trabalho foi vendida, o mais provável é que o trabalhador receba no máximo o mesmo

preço diário da força de trabalho pelos 15 dias restantes. E que esse seja o pagamento

considerado justo tanto por ele, quanto pelo capitalista. Afinal, eles consideram que esse

é o pagamento correto pelas mercadorias que trocaram. Antes disso o trabalhador não

tinha ainda vendido sua força de trabalho e nada tinha a receber. O capitalista não vai

pagar pelo tempo que ele não comprou a força de trabalho. Só a partir da troca, do contrato

de compra/venda. A referência poderá ser diária, semanal ou mensal, mas só a partir daí,

não antes. E o trabalhador também não vai cobrar o tempo que ficou sem receber salário

(não vai reajustar seu preço), já que não vendia mais sua força de trabalho para o patrão

anterior e nem tinha começado a vender para o próximo301.

É preciso ressaltar que tempo de produção não se confunde com jornada de

trabalho. Tempo de produção se refere ao período no qual a mercadoria força de trabalho

foi vendida e não ao tempo de duração da jornada de trabalho. O tempo de produção

compreende tanto as horas voltadas para a jornada de trabalho quanto as horas de

descanso (horas de não-trabalho) do trabalhador ao longo do período em que ele vende a

força de trabalho para o capitalista. A jornada de trabalho compreende apenas as horas

em que a força de trabalho está sendo consumida no processo de trabalho, ou seja, o

período em que produz valor, no caso de um trabalho produtivo.

A redução do tempo de produção da força de trabalho não significa redução da

jornada de trabalho. O resultado normalmente é o exato oposto disso. É, na verdade, uma

forma de prolongar a jornada e reduzir as horas de não-trabalho pagas na compra da força

301 Isso não significa que o preço da força de trabalho sempre estará abaixo de seu valor quando ocorre

circulação da força de trabalho, mas sim, como já demonstrei acima, que o aumento da circulação

necessariamente significa aumento do preço, quando não há variação no valor. A situação inicial poderia

supor, por exemplo, 5 dias de circulação e 25 de produção, 1 mês de circulação e 11 de produção, 11 meses

de circulação e 1 de produção ou qualquer outra proporção, desde que a segunda situação sempre aumente

o tempo de circulação em relação à primeira. Nesse caso, é imperioso frisar aqui que a não equivalência

entre valor e preço da força de trabalho, isto é, a remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor, não

decorre necessariamente de sua mercantilização. Considerando que se trata de um regime de trabalho

assalariado e não de escravidão, o valor em dado momento inclui sempre uma circulação média da força de

trabalho. Nesse sentido, cabe citar que sempre existiram diversos mecanismos de transferência de valor

regulatórios e disciplinadores da situação de reserva da classe trabalhadora, instituídos, por exemplo,

diretamente entre distintas unidades sociais de reprodução da força de trabalho (por relações de parentesco,

domesticidade, vicinalidade, amizade, etc), por instituições como sindicatos ou pelas antigas sociedades de

socorro mútuo, pelo Estado ou diretamente pelo mercado (instituições financeiras), tal como vem se

implantando mais recentemente no bojo de um receituário neoliberal.

Page 245: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

245

de trabalho, seus faux frais302. Isso porque não há prejuízo para aquele que compra a força

de trabalho, uma vez que o preço da força de trabalho não tem referência imediata com o

aumento do tempo de circulação, ou seja, ele não é reajustado tal qual a fórmula acima

prevê. Sendo assim, não se altera a grandeza absoluta do mais-valor e nem sua grandeza

relativa: o preço da força de trabalho permanece igual. Por outro lado, aquele que vende

a força de trabalho tem o valor referente ao tempo de circulação subtraído do preço.

Quanto mais o tempo de circulação aumentar (e o tempo de produção reduzir), menos o

trabalhador receberá proporcionalmente. E o limite dessa subtração está, inclusive, mais

além do que a compra da força de trabalho por um dia apenas, ou seja, quando o tempo

de produção se depara com uma jornada de trabalho. Está, por exemplo, nas formas de

compra de força de trabalho em que é possível retirar completamente o valor referente à

reprodução de todas as horas de não-trabalho, como é o caso do preço atingido em certos

salários pagos por peça ou por hora de trabalho. Os efeitos diretos dessa subtração são,

justamente, o prolongamento da jornada de trabalho e sua intensificação, únicas maneiras

do trabalhador obter o mínimo para sua reprodução303.

Atualmente, formas de compra/venda de força de trabalho que colidem o tempo

de produção com a jornada de trabalho estão em expansão em todo o mundo provocando

não só esse processo que estou indicando, mas também um processo de aceleração e

amplificação da circulação mercantil da força de trabalho, tal como proponho a seguir.

Além das diversas formas de salários por peça ou por hora trabalhada, talvez o zero-hour

contract seja o mais radical exemplo dessa expansão. Nele, o comprador de força de

trabalho paga apenas e exatamente o tempo de produção, requerido quando e na medida

em que se necessita. Não há jornada fixa304. Em dezembro de 2015, teriam 801 mil

trabalhadores nessa condição no Reino Unido. Em 2009, eram cerca de 200 mil305. A

302 Isto é, uma forma que o capitalista tem de retirar o que considera faux frais da compra da força de

trabalho (aqui, no sentido original da contabilidade, do agente unitário de mercado capitalista, e não

exatamente no sentido reapropriado por Marx, da totalidade da produção capitalista). 303 A intensificação do trabalho e o prolongamento da jornada são mecanismos de extração de mais-valor

que, tal como Marx demonstrou, também podem fazer com que a força de trabalho caia abaixo de seu valor.

Mas isso se deve a um aumento do valor da força de trabalho devido ao seu maior desgaste (Marx, 2013:

594). A subtração do valor do tempo de circulação não significa necessariamente aumento do valor da força

de trabalho, ainda que sejam dimensões geralmente relacionadas. 304 “A zero-hour contract is the name given to a type of contract between an employer and a worker, where

the employer is not obliged to provide any minimum working hours, while the worker is not obliged to

accept any work offered. The employee may sign an agreement to be available for work as and when

required, so that no particular number of hours or times of work are specified”. In:

https://en.wikipedia.org/wiki/Zero-hour_contract#cite_note-1 305 Cf. “UK workers on zero-hours contracts rise above 800,000”. The Guardian. 09/03/2016. In:

https://www.theguardian.com/uk-news/2016/mar/09/uk-workers-on-zero-hours-contracts-rises-above-

800000

Page 246: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

246

empresa Uber de serviços de transporte, sediada nos EUA e que declara estar operando

em 539 cidades e em mais de 100 países, também é outro exemplo radical dessa expansão,

nesse caso, inclusive, global306.

Por outro lado, pesquisadores têm constatado que a distinção entre a jornada de

trabalho e o tempo de não-trabalho pagos na compra da força de trabalho também

estariam cada vez mais em xeque. Contribuiriam para isso não apenas o aumento da

jornada por meio do aumento do número de horas dedicadas ao trabalho (horas-extra,

transporte, alimentação, qualificação/estudo, sobreaviso, trabalho doméstico, etc) ou por

meio da introdução de banco de horas, por exemplo (ambos instrumentos diretos de

redução das horas de não-trabalho bastante conhecidos em uma situação na qual ocorreu

venda de força de trabalho e na qual em geral já se desenvolveu histórica e politicamente

a luta de classes no mínimo desde o século XIX)307. Haveria agora uma tendência à

indistinção contábil das horas, dada a não mensuração do tempo de não-trabalho, isto é,

ao entrecruzamento de tarefas objetivas feitas fora da jornada formal, cada vez mais

potencializadas pelas tecnologias de informação e comunicação (celular, computador), e

de preocupações subjetivas, cada vez mais inseridas pela gestão participativa e pela

captura não mais apenas do corpo físico, mas da mente, da subjetividade do

trabalhador308.

Marx analisou detalhadamente como o trabalho assalariado mascara o trabalho

não pago; como a venda da mercadoria força de trabalho mascara a produção do mais-

valor, uma vez que tanto o capitalista quanto o trabalhador consideram que a forma salário

condiz exatamente com o produto do trabalho de uma jornada de trabalho. No que se

refere à circulação da força de trabalho, mesmo que o trabalhador perceba a ausência de

salário ou o aumento do tempo de circulação como empobrecimento, ainda assim a forma

salário também é normalmente um mascaramento do rebaixamento do preço da força de

trabalho a níveis inferiores do próprio valor da força de trabalho. Ou seja, em certo

sentido, a forma salário também mascara a reprodução não paga.

306 Dados informados na página eletrônica da empresa. In: www.uber.com 307 Em outras dimensões, porém, como na questão da intensidade do trabalho, não há sequer mensuração

regulada, a despeito do enorme avanço das estratégias empresariais das últimas décadas. 308 Cardoso (2010; 2013) vem analisando nesse sentido o que denomina como intensificação do tempo de

trabalho a partir dos anos 1980. Aqui salientamos a dimensão mercantil da força de trabalho relacionada a

esse processo.

Page 247: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

247

4.2) Rumo a uma “classe trabalhadora de reserva”? A aproximação entre exército

ativo e exército de reserva

Feita essa observação inicial, interessa agora demonstrar o estado atual de um

processo de transformações no capitalismo mundial e, consequentemente, no comumente

denominado “mundo do trabalho” que estaria alterando as formas de circulação mercantil

da força de trabalho. Como indicado na introdução do capítulo, parto da condição na qual

parte dos trabalhadores foram incorporados na fase de operação da nova mina da Vale.

Como é característico das terceirizações, os empregos nas firmas da MOP

variavam de acordo com os contratos firmados entre a empresa principal e a contratada,

vencedora da concorrência, por tempo limitado. Findo esse prazo, em geral de um ano, a

mesma empresa renovava o contrato ou não, assumindo outra empresa, normalmente para

oferecer os mesmos serviços e, de preferência, a menor custo. Assim, esses trabalhadores

eram demitidos e recontratados, submetendo-se a avaliações e seleções constantes. Neste

sistema, como já citei, a remuneração permanece sempre baixa, não há direito a greve e,

certos casos, também não há férias, já que o período de férias é o da recontratação (prática

reconhecida como “rodar carteira”, quando o trabalhador fazia uma nova carteira de

trabalho para ser recontratado temporariamente)309. Sendo assim, apenas a minoria dos

trabalhadores apresentava mais do que um ano de contrato com uma firma.

Como descrevi em capítulo anterior, a terceirização foi amplamente implantada

desde os anos 1990 nas atividades da antiga Companhia Vale do Rio Doce. E, como

também já destaquei, o Sistema Norte (Carajás) da empresa no Brasil, por sua vez, foi

instalado sob um “modelo japonês” desde o início. Uma pesquisa realizada em 1990 nos

arredores de Carajás, por exemplo, constatou:

“Of the 61 subcontractor workers residing in company barracks who

responded to my question on their tenure at their firm, 16% had been

on the job less than 30 days, and 78% had been on the job less than 6

months. Of subcontractor workers living in Parauapebas homes, 14%

had been at their jobs less than 1 month, while 50% had been there for

6 months or less. Only one in 42 had more than 3 years of tenure. In

contrast, the CVRD workers I interviewed in their Parauapebas

barracks all had 4 or 5 years of tenure. The high turnover of workers at

309 A Vale já foi condenada em 2003 por conta de uma cooperativa contratada que não tinha funcionários,

mas 50 “sócios”, que, portanto, não tinham direito a férias nem 13º salário. Os trabalhadores já tinham sido

funcionários diretos e foram demitidos (exerciam a mesma função e recebiam remuneração superior). (Cf.

Carvalho, 2013).

Page 248: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

248

the Carajás subcontracting firms has translated into a city of new

arrivals and transients. Of 100 household heads living in Parauapebas

encountered in the random home survey, 30% had been living in

Parauapebas less than 1 year. Meanwhile, at the city’s employment

office, a line of new arrivals forms every day in search of work. An

examination of 65 registration forms analyzed in mid January 1990

revealed that two in three workers had arrived in Parauapebas in the

previous 6 months. One in three had been in town less than 10 days.”

(Roberts, 1995: 742).

Considerando que a empresa adotou a terceirização na quase totalidade das suas

operações ao longo das últimas décadas, essa dinâmica atualmente envolve a imensa

maioria de seus trabalhadores. Estima-se que, em 2007, por exemplo, 90% dos

trabalhadores de Carajás eram terceirizados ou subcontratados. Cerca de 20 mil (de um

total de 23 mil) seriam contratados por 175 empreiteiras310.

Essa gestão do trabalho, porém, não se restringe aos terceirizados, embora, como

analiso a seguir, eles representem a “infantaria ligeira do capital” – caso nos apropriemos

livremente da expressão de Marx – ou, em termos presentes, a quase perfeita adequação

flexível do emprego ao limite das micro-oscilações do mercado. Em especial após a

privatização da CVRD em 1997, a demissibilidade e as políticas de rotação de pessoal

foram adotadas também para os trabalhadores diretos. Após a crise de 2008, como já fiz

referência no capítulo 1, por exemplo, a Vale demitiu 1,3 mil trabalhadores diretos no

Brasil (e cerca de 12 mil terceirizados), mantendo, no entanto, intocados os valores pagos

aos acionistas e diretores, assim como a política de aquisições de outras empresas e minas

em todo o mundo, conforme denunciou o Movimento dos Atingidos pela Vale

(Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, 2010; Milanez, 2012)311.

Os dados fornecidos pela empresa indicam demissões no período imediato pós-

crise, mas também nos anos posteriores. Em 2009, em meio à crise, a Vale realizou uma

rotação dos seus trabalhadores em quase todas as suas unidades no mundo. A taxa de

turnover312 global divulgada foi de 10,6% (Vale, 2010). Certos casos, a crise desencadeou

310 Cf. “A mina e os mineiros”. Lucio Flávio Pinto, 05/07/2015, in:

https://valeqvale.wordpress.com/2015/07/05/a-mina-e-os-mineiros/ 311 Entre os trabalhadores diretos, o risco de demissões atualmente também é apontado como responsável

pela inexistência de greves nas unidades da Vale no Brasil. Contudo, mesmo nas fases anteriores não era

comum. Houve apenas uma na história recente da empresa no país, em 1989. Antes dessa, teria ocorrido

apenas mais uma greve, em 1945, ainda na fundação da CVRD em Itabira/MG, citada por Minayo (1986:

79-82) e por Moura, 2001, apud Minayo (2004). 312 Assim definida: “Taxa de turnover corresponde à soma de empregados que deixaram a organização

voluntariamente ou não (incluindo aposentados), dividida pelo número de empregados próprios” (Vale,

2010: 44). Em 2015, a empresa anunciou uma mudança na metodologia de cálculo da taxa, assim definido:

Page 249: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

249

agressivos processos de reestruturação produtiva em outras unidades adquiridas pela

Vale, como no Canadá em 2009 e 2010 – quando, como citei antes, os trabalhadores

iniciaram uma longa greve – e na Austrália, país em que a Vale aportou em 2007 e que

em 2011 e 2012 teria atingido taxas de turnover de 19,1% e 26,4%, respectivamente. No

Canadá, em 2009 e 2010 teriam sido de 19,7% e 10,8%. Nestes casos, ao contrário do que

ocorre nas operações já iniciadas sob as políticas de gestão do trabalho adotadas

globalmente pela empresa, as gerências da Vale modificaram rapidamente o modelo

produtivo313.

Tabela 1: rotatividade entre trabalhadores diretos da Vale por país, 2008-2010 (Fonte:

Vale, 2010: 45)

“Taxa de turnover calculada por meio da soma das admissões e desligamentos anuais dividida por dois. O

resultado é dividido pelo número total de empregados do ano anterior” (Vale, 2014: 59). O resultado final

após essa mudança reduziu o índice apresentado, como apresento a seguir. Adiante, também retomo a

questão do conceito de “rotatividade” ou turnover. 313 A nova política estratégica da direção da empresa, porém, ao priorizar o que denomina ativos essenciais

em um contexto de redução de preço dos minérios, não vem mais investindo em novos projetos “não

essenciais”, como é o caso de algumas minas de carvão na Austrália vendidas em 2015 (Cf. “Vale vende

mina de carvão na Austrália para Glencore e Bloomfield”. Reuters, 27/08/2015. In:

http://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN0QW19Y20150827). Novos projetos em países centrais,

por exemplo, que demandem altos custos em processos de reestruturação produtiva, enfrentando

resistências sindicais, legislações e fiscalizações trabalhistas menos colaborativas nesse sentido, vem sendo

descartados. Como frisei em capítulo anterior, para manter as taxas de lucro e a remuneração dos acionistas

não baixar, a nova política da empresa priorizou principalmente o mercado de minério de ferro, aumentando

a produção das minas já existentes e implementando os novos grandes projetos.

Page 250: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

250

Tabela 2: rotatividade entre trabalhadores diretos da Vale por país, 2010-2012 (Fonte:

Vale, 2012: 40)

Page 251: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

251

Tabela 3: rotatividade dos trabalhadores diretos da Vale: global, por gênero, faixa

etária e por região entre 2012 e 2014 (Fonte: Vale, 2014: 59)

Nos anos seguintes, a taxa de turnover global iria baixar, porém, logo em seguida,

voltou a subir, tal como se observa nos dados fornecidos pela Vale314. Em 2014, quando

a taxa praticamente atingiu o mesmo valor da crise de 2009, em 9,1%, a empresa anunciou

mudança na metodologia de aferição desse índice, reduzindo-o. O mesmo processo ocorre

nas unidades da Vale no Brasil, especificamente, onde se concentra a maior parte de seus

trabalhadores diretos.

314 Os dados citados são os fornecidos pela própria empresa. É importante notar que ela não divulgava esse

índice nos seus Relatórios públicos antes de 2008 e que nem sempre a empresa divulga dados isolados de

todos os países em que opera ano a ano. Também é mister ressaltar que os dados se referem apenas aos seus

trabalhadores próprios, aos empregados diretos da Vale. Sobre os terceirizados, não há publicação

conhecida de dados de rotatividade, além daqueles obtidos por trabalho de campo nas minas do Pará.

Page 252: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

252

Gráfico 10: taxa de turnover global dos trabalhadores diretos da Vale (elaboração do

autor). Fonte: Vale, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2014.

Gráfico 11: taxa de turnover dos trabalhadores diretos da Vale no Brasil (elaboração

do autor). Fonte: Vale, 2008; 2009; 2010; 2011; 2012; 2014.

É fato, portanto, que a rotatividade também vem sendo adotada para os

trabalhadores diretos dessa empresa no Brasil e, em especial, nos demais países. Isto

significa que, no Brasil, por exemplo, há rotatividade crescente inclusive entre quadros

que exercem cargos superiores de supervisão, fiscalização e coordenação do processo

8

10,6

6

4,75,1

6,6

9,1

0

2

4

6

8

10

12

2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

taxa de turnover global da Vale (trabalhadores diretos)

taxa de turnover global da Vale (trabalhadores diretos)

8

9,2

5,4

3,9

4,7

5,9

8,3

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

taxa de turnover da Vale no Brasil (trabalhadores diretos)

taxa de turnover da Vale no Brasil (trabalhadores diretos)

Page 253: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

253

produtivo, considerando que as demais atividades são geralmente realizadas por

terceirizados. Como as políticas de gestão do trabalho adotadas pela empresa são globais,

a tendência é que as gerências locais busquem assemelhar ao máximo o modelo já adotado

nas suas operações no Sistema Norte do Brasil, o que, dependendo das formas de contrato

trabalhista previstas em cada país (implantação de novos projetos) e da necessidade de

reestruturação produtiva (empresas adquiridas), se expressou mais ou menos nas

estatísticas dos seus trabalhadores “próprios”.

Contudo, a condição desses trabalhadores reflete uma característica predominante

não apenas da empresa Vale, mas das demais transnacionais da indústria da mineração e

do atual mercado de trabalho em geral. A Vale, nesse sentido, expressa um padrão de

acumulação flexível cujo processo remonta às transformações do sistema capitalista

mundial após a década de 1970. Não interessa aqui descrever esse processo, já

sistematicamente abordado e amplamente referido315. Desenvolverei somente alguns

aspectos, que são: 1) a relação entre um padrão de acumulação flexível do capital e as

formas de circulação da força de trabalho que lhe são decorrentes; 2) o processo de

aceleração e amplificação da circulação mercantil da força de trabalho que estaria

ocorrendo em todo o sistema; 3) as especificidades que esse processo estaria assumindo

em formações dependentes como o Brasil.

Em geral, vem sendo observada a metamorfose de um proletariado “estável” e

“fixo” para um “flexível” e “móvel”, mesmo nos limitados nichos que ele teria assumido

essa condição anterior nas periferias do capitalismo. Nas economias centrais, ela erode

junto com o fordismo, motivando abordagens a respeito de um “retorno da

superexploração” (Harvey, 2008)316, da crise da “sociedade salarial” (Castel, 1998),

315 A referência principal utilizada por mim nessa investigação está nos textos de D. Harvey sobre o tema,

especialmente em Condição pós-moderna (Harvey, 2008), quando propôs a categoria acumulação flexível.

Em sintonia com Harvey, uma série de autores também analisaram o processo de transformações do

trabalho após a década de 1970 e, sob variados enfoques, a adoção de elementos do padrão flexível pelas

empresas decorrentes de reestruturações produtivas convencionalmente denominadas como neotaylorismo,

reengenharia, toyotismo, “modelo japonês”, kalmaranismo, neofordismo ou pós-fordismo (Gounet, 1999). 316 É importante frisar, porém, que o uso que Harvey fez da expressão “superexploração” tem conotação

distinta daquele utilizado pela literatura com a qual dialogo nesse trabalho e com o sentido que eu também

utilizo. Harvey utilizou o termo superexploração em referência ao sentido comumente utilizado de uma

“maior exploração” e, em especial, relacionado à mais-valia absoluta e ao contexto do século XIX europeu,

superado ou diminuído após 1850 (por ex. em Harvey, 2013a: 145; 154). Embora globais, suas análises

tomam por base principalmente a cultura, a política e a economia do que denomina “países capitalistas

avançados”. Porém, como é sabido, em sua proposta o regime de acumulação flexível instaura uma

recombinação de métodos de extração de mais-valia absoluta e de mais-valia relativa. E isso o fez notar as

transformações recentes nesses países como um “retorno da superexploração”, por um lado, e, por outro,

de forma interessante, a refutar certa ideologia desenvolvimentista, tal como em: “No final, com efeito, o

que conta é o modo particular de combinação e de alimentação mútua das estratégias absoluta e relativa.

Curiosamente, o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes de força de trabalho que tornaram

Page 254: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

254

emergência de um “precariado” (Standing, 2015), dentre outros. Nas antigas economias

planificadas, a desestatização veio acompanhada de demissões em massa, promoção da

circulação de força de trabalho e do desemprego, o que, por sua vez, se reflete em uma

redução cada vez maior do tempo médio no emprego e no fim do “trabalho para toda a

vida”.

Harvey (2008) utiliza a seguinte representação gráfica de um esquema da

“empresa enxuta”, estratégia empresarial adotada em um padrão de acumulação flexível

que estaria na base desse processo:

o retorno de estratégias absolutas de extração de mais-valia mais viável mesmo nos países capitalistas

avançados. O que talvez seja mais inesperado é o modo como as novas tecnologias de produção e as novas

formas coordenantes de organização permitiram o retorno dos sistemas de trabalho doméstico, familiar e

paternalista, que Marx tendia a supor que sairiam do negócio ou seriam reduzidos a condições de exploração

cruel e de esforço desumanizante a ponto de se tornarem intoleráveis sob o capitalismo avançado. O retorno

da superexploração em Nova Iorque e Los Angeles, do trabalho em casa e do ‘teletransporte’, bem como o

enorme crescimento das práticas de trabalho do setor informal por todo o mundo capitalista avançado,

representa de fato uma visão bem sombria da história supostamente progressista do capitalismo” (Harvey:

2008: 175).

Page 255: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

255

Gráfico 12: estruturas do mercado de trabalho em condições de acumulação flexível

(Flexible Patterns of Work, 1986, apud Harvey, 2008: 143)

E o explica, dessa forma:

“O resultado é uma estrutura de mercado de trabalho do tipo detalhado

na figura [acima], retirada, como as citações seguintes, de Flexible

Patterns of Work (1986), do Institute of Personnel Management. O

centro – grupo que diminui cada vez mais, segundo notícias de ambos

os lados do Atlântico – se compõe de empregados “em tempo integral,

condição permanente e posição essencial para o futuro de longo prazo

da organização”. Gozando de maior segurança no emprego, boas

perspectivas de promoção e de reciclagem, e de uma pensão, um seguro

e outras vantagens indiretas relativamente generosas, esse grupo deve

atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se necessário,

geograficamente móvel. Os custos potenciais da dispensa temporária de

empregados do grupo central em época de dificuldade podem, no

entanto, levar a empresa a subcontratar mesmo para funções de alto

nível (que vão dos projetos à propaganda e à administração financeira),

mantendo o grupo central de gerentes relativamente pequeno. A

periferia abrange dois subgrupos bem distintos. O primeiro consiste em

“empregados em tempo integral com habilidades facilmente

Page 256: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

256

disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro,

secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual

menos especializado”. Com menos acesso a oportunidades de carreira,

esse grupo tende a se caracterizar por uma alta taxa de rotatividade, “o

que torna as reduções da força de trabalho relativamente fáceis por

desgaste natural”. O segundo grupo periférico “oferece uma

flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados em tempo

parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo

determinado, temporários, subcontratação e treinandos com subsídio

público, tendo ainda menos seguranças de emprego do que o primeiro

grupo periférico”. Todas as evidências apontam para um crescimento

bastante significativo desta categoria de empregados nos últimos anos”

(grifos do autor; Harvey, 2008: 143-44).

A utilização generalizada desse padrão nos mais variados domínios da vida social

implica no que normalmente se agrupa sob os termos de “flexibilidade” ou, outros casos,

“precarização do trabalho”317. Com isso, se indica uma série de questões: os impactos

das empresas em rede e do que Castells denominou como novo “paradigma

informacional” (com a adoção das novas tecnologias de informação e comunicação)318;

desemprego ou contratos por tempo parcial ou determinado319; informalização,

317 Alguns autores, como Alves, se referem a um “modo de vida just-in-time” (Alves, 2014). 318 “No geral, a forma tradicional de trabalho com base em emprego de horário integral, projetos

profissionais bem-delineados e um padrão de carreira ao longo da vida estão sendo extintos de forma

lenta, mas indiscutível” (grifos do autor; Castells, 1999: 288); “Entre várias formas de flexibilidade,

análises corretas distinguiriam a flexibilidade em: salários, mobilidade geográfica, situação profissional,

segurança contratual e desempenho de tarefas. Muitas vezes, todas essas formas são reunidas em uma

estratégia voltada para os próprios interesses, visando apresentar como inevitável aquilo que, sem dúvida,

é uma decisão empresarial ou política. Mas é verdade que as tendências tecnológicas atuais promovem

todas as formas de flexibilidade, de modo que na ausência de acordos específicos sobre a estabilização de

uma ou várias dimensões do trabalho, o sistema evoluirá para uma flexibilidade generalizada multifacetada

em relação a trabalhadores e condições de trabalho” (Id., ib.: 293). 319 Nos países que se caracterizavam em sua quase plenitude pelos contratos formais por tempo

indeterminado de compra da força de trabalho, como a França, o processo de mudança no emprego foi claro

nesse sentido: “Quaisquer que possam ser as “causas”, o abalo que afeta a sociedade no início dos anos 70

manifesta-se de fato, em primeiro lugar, através da transformação da problemática do emprego. Os números

são por demais conhecidos e ocupam hoje o primeiro plano da atualidade: perto de 3,5 milhões de

desempregados, ou seja, mais de 12% da população ativa. Mas o desemprego é apenas a manifestação mais

visível de uma transformação profunda da conjuntura do emprego. A precarização do trabalho constitui-

lhe uma outra característica, menos espetacular, porém ainda mais importante, sem dúvida. O contrato de

trabalho por tempo indeterminado está em via de perder sua hegemonia. Esta forma, que é a forma mais

estável de emprego, que atingiu o apogeu em 1975 e concernia, então, acerca de 80% da população ativa,

caiu hoje para menos de 65%” (grifo do autor; Castel, 1998: 513-14). Com isso, o próprio significado do

trabalho estaria em mudança, segundo Sennett (2010): “Essa ênfase na flexibilidade está mudando o próprio

significado do trabalho, e também as palavras que empregamos para ele. “Carreira”, por exemplo,

significava originalmente, na língua inglesa, uma estrada para carruagens, e, como acabou sendo aplicada

ao trabalho, um canal para as atividades econômicas de alguém durante a vida inteira. O capitalismo flexível

bloqueou a estrada reta da carreira, desviando de repente os empregados de um tipo de trabalho para outro.

A palavra “job” [serviço, emprego], em inglês do século XIV, queria dizer um bloco ou parte de alguma

coisa que se podia transportar numa carroça de um lado para outro. A flexibilidade hoje traz de volta esse

Page 257: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

257

desregulamentação, diminuição ou ausência de direitos trabalhistas320; remuneração

variável321; multifuncionalidade ou polivalência322; jornadas variáveis, deslocalizadas ou

indeterminadas323; subcontratação e terceirização em geral324.

sentido arcano de job, na medida em que as pessoas fazem blocos, partes de trabalho, no curso de uma

vida” (p. 9). 320 “Uma vez que concebemos a informalidade como ruptura com os laços formais de contratação e

regulação da força de trabalho, podemos acrescentar que, se a informalidade não é sinônimo direto de

condição de precariedade, sua vigência expressa, com grande frequência e intensidade, formas de trabalho

desprovidas de direito, as quais, portanto, apresentam clara similitude com a precarização. Desse modo, a

informalização da força de trabalho vem se constituindo como mecanismo central utilizado pela engenharia

do capital para ampliar a intensificação dos ritmos e dos movimentos do trabalho e ampliar seu processo

de valorização. E, ao fazê-lo, desencadeia um importante elemento propulsor da precarização estrutural

do trabalho” (grifos do autor; Antunes, 2013: 17). 321 As referências nesse sentido são tanto no aumento do salário por peça (produto, tarefa ou serviço), quanto

no que descrevem, por exemplo, Linhart et al. (1993) e Linhart (2007): adoção de políticas de

individualização das remunerações e das situações de trabalho, isto é, aumento diferenciado dos salários,

atribuição de formações personalizadas, definição de carreiras individualizadas. 322 “Para atender às exigências mais individualizadas de mercado, no melhor tempo e com melhor

“qualidade”, é preciso que a produção se sustente num processo produtivo flexível, que permita a um

operário operar com várias máquinas (em média 5 maquinas na Toyota), rompendo-se com a relação um

homem/uma máquina que fundamenta o fordismo. E a chamada “polivalência” do trabalhador japonês, que

mais do que expressão e exemplo de uma maior qualificação, estampa a capacidade do trabalhador em

operar com várias máquinas, combinando “várias tarefas simples” (...). Coriat fala em desespecialização e

polivalência dos operários profissionais e qualificados, transformando-os em trabalhadores

multifuncionais” (Antunes, 2011: 33). Ou, no mesmo sentido: “A flexibilidade do processo de trabalho

requer simultaneamente uma organização flexível do trabalho, ou seja, o trabalhador deve ser capaz de

ocupar diferentes postos de trabalho, de intervir em diferentes tipos de materiais, de inserir-se em diferentes

segmentos do processo de trabalho, etc. A exigência de flexibilidade conjuga-se, assim, com a de fluidez

para requerer uma mão-de-obra polivalente, qualificada, bem formada, operando em equipes que lidam

estreitamente operários, técnicos, administradores, integrando os objetivos de produtividade e de qualidade,

etc” (Bihr, 1998: 92). 323 “As organizações flexíveis hoje estão fazendo experiências com vários horários do chamado

“flexitempo”. Em vez de turnos fixos, que não mudam de mês para mês, o dia de trabalho é um mosaico de

pessoas trabalhando em horários diferentes, mais individualizados (...). Esse mosaico de tempo de trabalho

parece distante da monótona organização do trabalho (...); na verdade, parece uma libertação do tempo de

trabalho, um verdadeiro benefício do ataque da organização moderna à rotina padronizada. As realidades

do flexitempo são bem diferentes (...). Um trabalhador em flexitempo controla o local do trabalho, mas não

adquire maior controle sobre o processo de trabalho em si. A essa altura, vários estudos sugerem que a

supervisão do trabalho muitas vezes é na verdade maior para os ausentes do escritório que para os presentes.

Os trabalhadores, assim, trocam uma forma de submissão ao poder – cara-a-cara – por outra, eletrônica (...).

O trabalho é fisicamente descentralizado, o poder sobre o trabalhador mais direto. Trabalhar em casa é a

ilha última do novo regime” (Sennett, 2010: 66-68). 324 Práticas de externalização (outsourcing) que se apresentam sob variadas formas: contratos de trabalho

domiciliar, contratos de empresa fornecedoras de componentes, contratos de serviços de terceiros (empresas

e/ou indivíduos) e contratos de empresas cujos trabalhadores executam a atividade produtiva ou serviço na

planta da contratante, geralmente com a formação de “cascatas” de subcontratações (Druck, 1995; Alves,

2011). No Brasil, a adoção da terceirização foi generalizada principalmente a partir dos anos 1990 (Druck

e Franco, 2007; Marcelino, 2002; Pochmann, 2007; Ramalho e Martins, 1994). Recentemente, processos

pontuais de desterceirização foram motivados por ordem judicial ou em casos em que a terceirização de

alguns setores, ao contrário do planejado, desencadeou aumento dos gastos (resistência e luta sindical dos

terceirizados, aumento de fiscalização e multas). Certos casos, ainda que seu estudo seja recente, os

processos de desterceirização resultaram em intensificação do trabalho e até mesmo em redução salarial

(Dias e Oliveira, 2011), o que demonstra que as estratégias empresariais de reversão do processo são

semelhantes àquelas que o instauraram inicialmente, e que o objetivo é o mesmo: redução de custos através

do rebaixamento salarial, da intensificação do trabalho e do prolongamento das jornadas de trabalho. Nesse

sentido, tem consequências também similares: precarização das condições de trabalho de todos os

trabalhadores da empresa: fixos, terceirizados e desterceirizados. Resta saber ainda, porém, o que implica

Page 258: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

258

No mesmo sentido, pretendo demonstrar algo transversal às análises já realizadas:

o processo de aceleração e amplificação da circulação da força de trabalho, que, na falta

de outra alusão, vou me referir como supercirculação. Para tanto, parto da relação

epistemologicamente simples que se estabelece entre o novo padrão de acumulação

flexível – em especial a dinâmica específica que assume a circulação do capital – e a

circulação da força de trabalho que lhe é, obviamente, subsumida.

Penso esse processo em termos de mudanças no tempo e no espaço da circulação

mercantil da força de trabalho, questões que podem ser desdobradas teoricamente em

vários sentidos. Por amplificação, por exemplo, podemos atribuir quantidade (mais

exército de reserva, principalmente em sua forma líquida/fluente/flutuante); extensão

(maior mobilidade espacial da força de trabalho); qualidade (maior amplitude e alcance

das forças de trabalho: polivalente, poli-especializado, intersetorial, plástico, “flexível”).

A aceleração, por sua vez, envolve mais compra e venda da mercadoria. Relaciona-se,

em certa medida, com o processo normalmente designado como “flexibilização

trabalhista”, que é a forma de adequação das regulações trabalhistas à atual etapa de

acumulação flexível do capital e ao seu congruente mercado de trabalho, seja com a

retirada de direitos anteriormente conquistados pela classe trabalhadora, nos países antes

regulados por leis que impedem a total demissibilidade e liberdade de compra/venda e

uso da força de trabalho, ou com a criação de novos postos de trabalho já previamente

regulados dessa forma ou não legalmente formalizados em geral. É preciso frisar que

supercirculação não significa necessariamente nomadismo, já que, como destaquei

anteriormente, enquanto mercadoria, obviamente, a força de trabalho pode circular sem

se deslocar espacialmente. Circulação, mobilidade e deslocamento são questões

analiticamente distintas325.

Considerando que a acumulação flexível envolve fundamentalmente uma

mudança na circulação do capital em termos de rotação, de relação tempo-espacial em

em termos de substituição e contratação flexível e enxuta de trabalhadores, procedimentos facilitados pelo

dispositivo da terceirização. E, nesse sentido, também resta saber até que ponto, quer dizer, até qual

abrangência a desterceirização permite redução de custos das empresas. Um resultado provável é o de

acelerar o processo de equiparação trabalhadores diretos-terceirizados em sua demissibilidade, no sentido

de que, em um futuro próximo, não se permita mais relacionar aos trabalhadores diretos maior estabilidade

ou, melhor, flexibilidade relativa, e aos terceirizados, ou indiretos, extrema flexibilidade. 325 A “população nômade” de Marx seria uma condição proletária mais próxima daquela em que a

circulação da força de trabalho é atrelada à mobilidade espacial, tal como ocorre, por exemplo, na

construção civil pesada, nos acampamentos dos grandes projetos, construção de estradas, etc, e na

agropecuária, por exemplo. Os peões-de-trecho do Pará, nesse sentido, são a expressão mais radical dessa

condição (uma vez que atrela a aceleração da circulação da força de trabalho a uma mobilidade espacial

extrema e necessária, através de sucessivas expulsões).

Page 259: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

259

compressão, há também uma mudança em curso das formas de produção, circulação e

utilização da força de trabalho, que decorrem dessa nova circulação do capital. Como o

que se requer é o uso “flexível” da força de trabalho no processo de trabalho advindo da

acumulação flexível do capital, isto é, a adoção de métodos de compra e venda just-in-

time ou de “fim dos estoques” de força de trabalho, não se trata de prescindibilidade, mas

sim de aumento de sua circulação, enquanto mercadoria, o que, por sua vez, implica em

uma série de mudanças, insisto, também na produção e na utilização da força de

trabalho326. Isso não significa, portanto, que haveria uma “nova classe social” em

formação, como defende Standing (2015), por exemplo, mas uma nova morfologia da

classe trabalhadora, algo que decorre da própria natureza da força de trabalho, que é

necessariamente “móvel”, isto é, sujeita à mobilidade, como propunha Gaudemar (1977),

referindo-se às mudanças espaciais e qualitativas impostas pela circulação e acumulação

do capital.

Ter em mente um processo de supercirculação, assim, significa levar em

consideração não apenas efeitos teóricos clássicos de maior intensidade da ação social do

exército de reserva, como demissibilidade, concorrência e rebaixamento ou controle

salarial, mas uma alteração na própria relação entre exército ativo e exército de reserva,

como sugeri no título dessa seção do capítulo, no sentido de uma aproximação.

326 Abordar esse processo em sua totalidade implicaria investigar uma série de aspectos gerais: variações

em termos de (re)produção da força de trabalho (tais como a necessidade de poli-especialização, ou seja,

mais e melhores especializações em áreas diversas; aumento da necessidade de formação e das

concorrências intraclasse em geral); em termos de circulação (aceleração e/ou amplificação desses tempos-

espaços da compra e venda da força de trabalho; morfologias sociais do deslocamento e dos arranjos

reprodutivos dos/as trabalhadores/as frente a esse processo); e em termos de utilização da força de trabalho

(intensificação do trabalho, prolongamento das jornadas de trabalho, aumento do tempo de circulação,

contratos/compra sem horas de não-trabalho ou salários restritos ao momento de efetivo consumo). Neste

sentido, as questões analisadas nos capítulos anteriores podem contribuir heuristicamente, assim como toda

a literatura que lidou especificamente com as reestruturações produtivas. Contudo, mais do que desenvolver

cada uma dessas possíveis implicações, interessa antes aqui propor uma démarche. Haveria, ainda, um

enorme campo de discussões a desenvolver, caso se observe as consequências psicopatológicas da

supercirculação. Dejours (2007), que pesquisou as consequências da crise do emprego (estável), do fim da

estabilidade no emprego e das demissões, por exemplo, analisou os usos do medo, motivo de adoecimento

dos trabalhadores, por um lado, e de intensificação do trabalho, por outro: “(...) por sua própria experiência

do medo, eles [gerentes] sabem que, usando da ameaça de demissão, eles podem intensificar o trabalho dos

operadores bem mais do que se acreditava ser possível (...)” (Dejours, 2007: 55); “(...) pudemos constatar

um outro possível motor da mobilização da inteligência no trabalho. Sob a influência do medo, por exemplo,

com a ameaça de demissão pairando sobre todos os agentes de um serviço, a maioria dos que trabalham se

mostra capaz de acionar todo um cabedal de inventividade para melhorar sua produção (em quantidade e

em qualidade), bem como para constranger seus colegas, de modo a ficar em posição mais vantajosa do

que eles no processo de seleção para as dispensas” (id., ib.: 58); “Também entre os operários, vimos que a

ameaça de demissões individuais (...) permite obter deles mais trabalho e melhor desempenho, quando não

sacrifícios, sob o pretexto de que é preciso fazer, individual e coletivamente, um ‘esforço extra’ (...)

Operários e gerentes aceitam trabalhar ainda mais. Logo em seguida, porém, aproveita-se esse novo

desempenho para transformá-lo em norma e justificar um novo enxugamento de pessoal” (id., ib.: 74).

Page 260: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

260

As formas que assume hoje a circulação mercantil de força de trabalho tendem a

fazer diminuir cada vez mais a distância entre exército ativo e exército de reserva,

constituindo uma classe trabalhadora constantemente sem emprego ou entre empregos.

Isto é, aquilo o que caracterizava historicamente algumas camadas contínuas do exército

de reserva agora também tenderiam a ser características, ou situações, da classe

trabalhadora como um todo. Marx denominou uma das formas do exército industrial de

reserva como “flüssige”327 e “fließender”328 e as traduções para o português foram

“flutuante”329 e “líquida/fluente”330. Hoje, ambas as traduções estariam em xeque, por

exemplo, na medida em que não se trata mais de uma camada que flutua, mas que, pela

sua densidade, afunda, ou melhor, se confunde com o próprio fluido. Em vez de fronteira,

há trânsito, movimento, ou, certos casos, quase indistinção331.

Por outro lado, mas no mesmo sentido, a acumulação flexível do capital também

envolve um processo de transformação e aprofundamento das disparidades das formações

sociais sob as quais foi gestada a partir da crise dos anos 1970, o que significa considerar

também novos regimes de superexploração do trabalho.

Alguns autores têm buscado demonstrar uma agência cada vez mais plenamente

mundializada do exército de reserva, ampliando o alcance de seus efeitos. François

Chesnais, por exemplo, propôs que a emergência de um capitalismo dominado pelo

capital financeiro e pelo livre deslocamento transnacional do capital, estaria colocando

em franca concorrência trabalhadores do mundo inteiro. Haveria, portanto, um processo

de “mundialização do exército industrial de reserva” (Chesnais, 2006). Ursula Huws

(2012) também observou a formação de um “exército de reserva global”, frente aos atuais

327 Líquida (não sólido); fluente (estilo); fluida (trânsito, circulação); disponível, em caixa (dinheiro). 328 Corrente (água); fluente (estilo); tênue (passagem, transição). 329 Preferida pelo tradutor da edição da Boitempo de 2013 e, antes, pelo tradutor da edição da Civilização

Brasileira (Marx, 2009). 330 Preferida pelos tradutores da edição da Abril/Nova Cultural (Marx, 1996). 331 Isso nos leva a considerar que Marx teria acertado, afinal, ao desdobrar essas camadas do mesmo

processo que forma a classe trabalhadora. Enfim, separar os que trabalham dos que “não trabalham”, os

proletários dos “marginais” ou os operários dos “excluídos”, faz menos sentido ainda do que já não fazia

antes. Neste sentido, e nesse contexto, ganha importância o estudo das formas que assumem hoje as frações

que estão sendo incorporadas à classe trabalhadora, assim como dos fluxos que estabelecem nesse processo,

muitas vezes permanentemente circulares, certas vezes entre espaços rurais e urbanos, formais e informais

ou entre diversas condições proletárias, como era o caso, por exemplo, dos trabalhadores da MOP. Por

outro lado, considerando as questões analisadas na primeira seção do capítulo, dado o processo de

“flexibilização” ou precarização dos contratos de trabalho, essa aproximação não implica necessariamente

um trânsito formal-informal. A situação ativo-reserva pode ser intermitente ou, certos casos, até mesmo

praticamente indistinguível dentro do próprio mercado formalizado de compra e venda de força de trabalho,

tal como se observa no já citado zero-hour contract, por exemplo.

Page 261: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

261

fluxos do capital e do trabalho332. Foster, McChesney e Jonna, em artigo publicado na

Monthly Review em 2011, vão ainda mais longe: as atuais mudanças no sistema

imperialista e no trabalho tanto no “Sul” quanto no “Norte” se devem justamente por

conta de um “exército de reserva global”333. Bastante interessante, porém, é o impasse

que eles enfrentaram ao tentarem adequar as categorias utilizadas pela OIT (como, por

exemplo, part-time workers e vulnerably employed) nas contas de um exército ativo ou

de “reserva global”334.

Esta concorrência mundializada do exército de reserva que esses pesquisadores

estão defendendo, portanto, reforça e exponencializa a análise aqui proposta. De toda

forma, se uma das bases apontadas por Marini para a consolidação de regimes de

superexploração do trabalho nas formações dependentes foi a existência de um “imenso

exército de reserva”335, poder-se-ia pensar em uma ação agora cada vez mais

mundializada do mesmo em uma etapa de acumulação flexível do capital e, por

conseguinte, em efeitos também mundiais. Entretanto, tal como grifei, o processo em

332 E, em decorrência desses fluxos, Huws também enfatizou a aplicação de um conceito de mobilidade

espacial e temporal: “And the concept of mobility does not just apply to travel across borders but must also

be applied to the increasing requirements for workers to move from job to job and occupation to occupation

along an increasingly unstable life-course. In other words, mobility has to be viewed in both spatial and

temporal dimensions.” (Huws, 2012: 2). 333 “Our argument here is that the key to understanding these changes in the imperialist system (…) is to be

found in the growth of the global reserve army—as Hymer was among the first to realize. Not only has the

growth of the global capitalist labor force (including the available reserve army) radically altered the

position of third world labor, it also has had an effect on labor in the rich economies, where wage levels are

stagnant or declining for this and other reasons. Everywhere multinational corporations have been able to

apply a divide and rule policy, altering the relative positions of capital and labor worldwide” (Foster;

McChesney; Jonna; 2011). 334 “The enormous reserve army of labor depicted in Chart 2 is meant to capture its maximum extent. Some

will no doubt be inclined to argue that many of the workers in the vulnerably employed do not belong to

the reserve army, since they are peasant producers, traditionally thought of as belonging to non-capitalist

production—including subsistence workers who have no relation to the market. It might be contended that

these populations are altogether outside the capitalist market. Yet, this is hardly the viewpoint of the system

itself. The ILO classifies them generally, along with informal workers, as “vulnerably employed,”

recognizing they are economically active and employed, but not wage workers. From capital’s

developmental standpoint, the vulnerably employed are all potential wage workers – grist for the mill of

capitalist development. Workers engaged in peasant production are viewed as future proletarians, to be

drawn more deeply into the capitalist mode. In fact, the figures we provide for the maximum extent of

global reserve army, in an attempt to understand the really-existing relative surplus population, might be

seen in some ways as underestimates. In Marx’s conception, the reserve army also included part-time

workers. Yet, due to lack of data, it is impossible to include this element in our global reserve army

estimates. Further, figures on the economically inactive population’s share of the reserve army include only

prime age workers between 24 and 54 years of age without work, and exclude all of those ages 16–23 and

55–65. Yet, from a practical standpoint, in most countries, those in these ages too need and have a right to

employment. (Foster; McChesney; Jonna; 2011). No Brasil, um impasse semelhante com as categorias

utilizadas pelo IBGE pode ser encontrado, por exemplo, em Neto (2013). 335 No debate com F.H. Cardoso e J. Serra, Marini, por exemplo, resumiu: “(…) la superexplotación del

trabajo es acicateada por el intercambio desigual, pero no se deriva de él, sino de la fiebre de ganancia que

crea el mercado mundial, y se basa fundamentalmente en la formación de una sobrepoblación relativa”

(grifos meus; Marini, 1978). Para uma sistematização da questão, ver Anexo.

Page 262: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

262

curso cada vez mais nos exige uma abordagem de cunho transversal da questão – no

sentido de que seja atenta à totalidade da circulação da força de trabalho –, dado que até

mesmo as fronteiras classificatórias entre exército ativo e exército de reserva já parecem

estar em disputa.

Não surpreende, nesse sentido, um interesse renovado por teorias de origem

latino-americana para buscar explicar o crescimento de uma suposta “superpopulação

absoluta”, como é o caso do antropólogo canadense Gavin Smith336. Ou mesmo propostas

de leituras atuais dos escritos de R. M. Marini que sequer foram publicados em língua

inglesa até o momento, tal como propôs recentemente John Smith (2016), a partir de

Londres, com relativo sucesso editorial.

Já a teuto-canadense Susanne Soederberg, em parte também inspirada pelas

mesmas fontes de Gavin Smith, mas, no caso, a partir de uma leitura chamada politicista

de Harvey, vem propondo observar os novos mecanismos de endividamento financeiro

empregados de forma cada vez mais ampla pelas indústrias de cartão de crédito, micro-

empréstimos, hipotecas, cheques, etc (Soederberg, 2014; 2013; 2012). Embora ela

compartilhe da controversa tese de que “formas secundárias de exploração” (que estariam

fora da esfera da produção e da reprodução ampliada do capital) seriam “a forma central

de acumulação na era neoliberal”, sua análise da incorporação cada vez maior de frações

da superpopulação relativa como devedores no mercado financeiro implica em

reconhecer transformações significativas na natureza do exército de reserva. Ela enfatiza

implicações fundamentais dessa incorporação, como o disciplinamento e a expropriação

brutal dos salários pela rapina financeira, além dos fatores de ordem ideológica337. Por

outro lado, dentro da perspectiva que estou propondo, caberia observar ainda as

implicações desta espécie de financeirização da circulação da força de trabalho para os

processos que elenquei acima. Uma hipótese lógica a ser seriamente considerada é, assim

336 Em, dentre outros, G. Smith (2011; s/d), tem como referência a teoria da marginalidade de Jose Nun.

Para uma abordagem crítica dessa teoria, embora atenta à questão da especificidade do exército de reserva

nas formações dependentes que inspira a análise aqui realizada, ver o Anexo. 337 Vale lembrar que a expropriação contemporânea de parte da renda do trabalho por meio de instituições

financeiras, cobrança de juros, etc, pode ser comparada a um mecanismo de expropriação do fundo de

consumo do tipo que Marini indicou como um dos procedimentos característicos da superexploração do

trabalho, tendo como base a possibilidade aventada por Marx n’O Capital: “Habría que señalar, finalmente,

un tercer procedimiento, que consiste en reducir el consumo del obrero más allá de su límite normal, por lo

cual “el fondo necesario de consumo del obrero se convierte de hecho, dentro de ciertos límites, en un

fondo de acumulación de capital” implicando así un modo específico de aumentar el tiempo de trabajo

excedente” (grifos do autor; Marini, 2008a: 124-5). Contudo, uma análise a partir desse referencial

implicaria necessariamente em uma abordagem, no mínimo, a partir da esfera da produção ou, como o fez

Marini, da totalidade do processo de reprodução do capital, atenta, agora, para essas novas formas de

transferência de valor.

Page 263: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

263

como no caso da chamada “mundialização”, haver um efeito exponencializador dos

mesmos338.

4.3) O trabalho nas prateleiras do supermercado

Esses processos teriam implicações observáveis de forma aproximada nos dados

que vem sendo produzidos sobre as atuais tendências do trabalho no mundo. Aproximada

porque há um desconhecimento empírico a respeito da circulação da força de trabalho em

virtude da falta de instrumentos de aferição do fenômeno e, sendo assim, ausência de

dados específicos ou diretos sobre isso. Uma métrica da circulação pressuporia

acompanhamento e produção de conhecimento tanto do tempo de produção quanto do de

circulação da força de trabalho em percursos individualizados, o que não é produzido

sequer pelas agências estatísticas dos países cujas relações de trabalho são em sua maioria

reguladas por contratos formais.

Porém, alguns dados das últimas décadas podem ser citados: diminuição do tempo

no emprego (job tenure; casos citados a seguir); aumento da rotatividade (turn over; cf.

item abaixo); aumento do número de trabalhadores assalariados (gráficos 13 e 14), por

um lado, e aumento do desemprego, do outro (nesse caso, especialmente na Europa)339;

338 O que pode ser observado a partir das próprias pistas indicadas pela autora: “(…) the debtfare state has

enhanced the social power of money by legally and morally permitting credit card issuers (banks) to

generate enormous amounts of income from uncapped interest rates and by continually extending plastic

money to those who fall within Marx’s category of the surplus population: the partially employed

(underemployed) or wholly unemployed (Marx 1990). This spatial fix also subjects surplus workers to the

disciplinary requirements of the market, such as compelling them to find and accept any form of work to

continue to be “trustworthy” creditors” (grifos meus; Soederberg, 2013: 495); “As a form of money,

fictitious capital is dependent on future revenue. In order for the credit card industry to ensure future income

streams from a large number of workers holding maxed out credit cards with high interest rates, there must

be a possibility for these workers to earn wages to service their debt” (Soederberg, 2013: 498-9); “Los

deudores del payday necesitan internalizar la disciplina de mercado y someterse voluntariamente a la

violencia estructural del capitalismo, reajustando las prioridades de sus necesidades de subsistencia diaria,

trabajando mayor cantidad de horas para cumplir así con el calendario quincenal de pagos” (grifos meus;

Soederberg, 2014: 103-4). A submissão, porém, não é exatamente “voluntária”, como ela também frisa, por

exemplo, no caso mexicano, em que os trabalhadores são em sua maioria informais e usam exclusivamente

dinheiro em moeda (não poderiam ser coagidos através do próprio sistema de crédito e/ou bancário): “With

the assistance of its jefes de crédito y cobranza customers who fail to meet a payment are dispossessed of

their possessions in order to cover their debt. The ambit of what belongs to a particular customer and his/her

immediate family is blurred as are the ramifications when a debtor does not own enough value in

possessions to cover his/her debt. Due to these coercive debt-collection practices, and its equally

unregulated accounting practices, Azteca claims a default rate on consumer loans of just 1% compared with

banks serving more affluent clients, who average a 5.3% default rate” (grifos da autora; Soederberg, 2012:

572). 339 Depois da crise de 2008, o desemprego aumentou quantitativamente em todo o mundo, em especial, nos

denominados países emergentes e em desenvolvimento (gráfico 17): “Emerging economies are expected to

see an increase in unemployment of 2.4 million in 2016. This largely reflects the worsening labour market

outlook in emerging Asian economies, in Latin America and in commodity-producing economies, notably

Page 264: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

264

continuidade das distâncias salariais entre países centrais e periféricos340, que estaria

sendo reduzida com a estagnação ou diminuição real dos salários nos países centrais

(gráfico 16); diminuição do aumento dos salários reais entre 1995-2007341 (gráfico 15) e

ainda menor depois da crise de 2008 (gráfico 16); crescimento vertiginoso dos empregos

vinculados às denominadas global supply chains, que a OIT define como as “(...)

demand–supply relationships that arise from the fragmentation of production across

borders, where different tasks of a production process are performed in two or more

countries” (ILO, 2015a: 132) 342.

in the Arab States region and Africa. In developed economies, the number of unemployed is expected to

decline slightly, but this will only marginally offset the increase expected in emerging economies. In a

number of European countries, unemployment rates will remain close to historical peaks. In the United

States and some other developed economies, unemployment will decline to pre-crisis rates, but the outlook

is for continuing or increasing underemployment. Depending on the economy, this takes the form of

involuntary temporary or part-time work and lower participation rates, especially among women and

youth.” (ILO, 2016: 3-4). 340 “Os salários médios nas economias emergentes e em desenvolvimento ainda são consideravelmente mais

baixos do que nas economias mais desenvolvidas. Quando expresso em Paridade de Poder de Compra

(PPC), o salário médio mensal nos Estados Unidos por exemplo, e mais do triplo do verificado na China.

Embora as diferenças ao nível das definições e metodologias dificultem a comparação rigorosa entre os

níveis salariais dos vários países, o salário médio nas economias desenvolvidas é de aproximadamente USD

(PPC) 3.000, em comparação com um salário médio de cerca de USD (PPC) 1.000 nas economias

emergentes e em desenvolvimento” (ILO, 2015b: xvii). 341 “Keeping in mind the data limitations, we provide some estimates of wage growth 16 over the period

2001–07. These estimates are based on wage data for 83 countries, representing about 70 per cent of the

world’s population. Globally, we estimate that average wages grew by 1.9 per cent per year. There are large

regional variations. Among developed countries, we find that wages in the median country grew by about

0.9 per cent per year. Comparable figures were 0.3 per cent in Latin America and the Caribbean, 1.8 per in

Asia, and a much higher 14.4 per cent in CIS and non-EU Central and South-Eastern Europe. Compared to

earlier periods, we find that wage growth has tended to slow down in the majority of countries for which

data are available. This can be seen in figure 7 [gráfico 15], where we plot countries’ growth in two periods,

1995–2000 and 2001–07. The slope of the trend line, which is less than 1, indicates a general decline in

wage growth” (ILO, 2009: 12). 342 Em cerca de 40 países centrais e ditos “emergentes”, um quinto dos empregos seriam diretamente

vinculados a essas cadeias: “Based on the ILO methodology, it is estimated that the number of GSC-related

jobs has increased rapidly over the past decades, both in absolute terms and as a share of total jobs. Out of

40 countries with available data to which the methodology could be applied, 453 million people were

employed in GSCs in 2013, compared with 296 million in 1995 (figure 5.2).2 Most of the overall increase

is driven by emerging economies, where GSC-related jobs grew by an estimated 116 million. Overall, GSC-

related jobs represent 20.6 per cent of total employment among the countries analysed, compared with 16.4

per cent in 1995” (ILO, 2015a: 132). No período pós-crise (2007-2013), contudo, esses empregos teriam

diminuído na maioria dos países ditos emergentes (suprimidos ou retornados para as economias centrais).

(Cf, id. ib.: 125-6).

Page 265: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

265

Gráfico 13: Crescimento do número de trabalhadores assalariados no mundo (Fonte:

OIT, 2015a: 29)

Gráfico 14: trabalhadores no emprego total 1999-2013 (fonte: ILO, 2015b: 16)

Page 266: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

266

Gráfico 15: crescimento global dos salários reais 1995-2007 (ILO, 2009: 12).

Page 267: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

267

Gráfico 16: tendência mundial dos salários segundo metodologia da ILO (fonte: ILO,

2015b: 5)

Page 268: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

268

Gráfico 17: desemprego global (ILO, 2016: 17)

Segundo o relatório da OIT intitulado Changing nature of jobs (ILO, 2015a), há

uma tendência mundial de crescimento, ou substituição, dos empregos de tempo integral

e contrato estável de trabalho para as denominadas non-standard forms of employment,

assim definidas: “The ILO considers the following employment arrangements to be non-

standard: (1) temporary employment; (2) contractual arrangements involving multiple

parties, including temporary agency work; (3) ambiguous employment relationships,

including dependent self-employment and disguised employment relationships; and (4)

part-time employment” (ILO, 2015a: 33). Como conclusão, indicou:

“This report, based on an analysis of employment patterns in over 180

countries at all levels of development, finds that employment patterns

have changed considerably over the past decade. Full-time, stable

employment contracts represent less than one in four jobs and that

statistic is not improving noticeably. Moreover, a continuation of past

trends would suggest that the incidence of stable employment

relationships will represent an even smaller fraction of the total number

of jobs in coming years” (ILO, 2015a: 5)

E, ainda:

“In the vast majority of countries with available information, the rise in

the number of part-time jobs outpaced gains in full-time jobs between

2009 and 2013. (…)It should be stressed that, in the countries for which

Page 269: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

269

information is available, much of the increase in part-time employment

has been involuntary (that is, workers have moved into part-time work

because full-time job opportunities were not available)” (ILO, 2015a:

29-30).

Como decorrência desses processos, o tempo médio de permanência no emprego

estaria diminuindo em todos os países que obtive dados a respeito, ainda que em ritmos

diferentes, a partir de parâmetros historicamente distantes e sob processos também

distintos no que se refere à luta de classes. Nos EUA, por exemplo, um estudo sobre o

tempo no emprego no período compreendido entre 1973 e 2006 concluiu:

“Long-term employment relationships have long been an important

feature of the labor market in the United States. However, increased

international competition and the wave of corporate downsizing in the

1990s raised concerns that long-term employment relationships in the

United States were disappearing. To the extent that there has been a

substantial change in career employment dynamics, young workers

entering the labor force in recent years and in the future will face a very

different type of career than did earlier cohorts. (…)The evolution of

the structure of careers in the U.S. has played out in the context of

dramatic growth in employment over the last 40 years. Civilian

employment was 85.1 million in 1973 and rose to 144.4 million in

2006.1 Thus, almost sixty million jobs have been created on net in the

past 33 years, for an average rate of employment growth of 1.6 percent

per year over this period. Despite this record of sustained growth in

employment in the United States, there is longstanding concern that the

quality of the stock of jobs in the economy more generally is

deteriorating. The concern about job quality is based in part on the fact

that the share of employment that is in manufacturing has been

declining over a long period of time.2 This has led to the view that, as

high-quality manufacturing jobs are lost, perhaps to import

competition, they are being replaced by low-quality service sector jobs

(so-called hamburger-flipping jobs). The high-quality jobs are

characterized by relatively high wages, full-time employment,

substantial fringe benefits, and, perhaps most importantly, substantial

job security (low rates of turnover). The low-quality jobs are

characterized disproportionately by relatively low wages, part-time

employment, an absence of fringe benefits, and low job security (high

rates of turnover). (…) It seems clear that more recent cohorts of

workers are less likely than their parents to have a career characterized

by a “life-time” job with a single employer” (Farber, 2008: 2).

Na França, além do já citado decrescimento dos contratos de trabalho por tempo

indeterminado, há ampla utilização por parte das construtoras do trabalho temporário,

Page 270: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

270

desde a sua legalização em 1972, via agências especializadas nesse tipo de contrato, que,

na prática, permitem a demissão do trabalhador a qualquer momento e sem custos (Jounin,

2004, apud Costa, 2010). A média de duração desse trabalho temporário no setor é de 6

semanas (id.). Atualmente, os sindicatos e centrais sindicais têm enfrentado duramente as

tentativas de reformas das leis trabalhistas que visam, sobretudo, permitir maior

demissibilidade343.

Pesquisas que acompanharam as gerações operárias formadas antes e depois dos

anos 1970, como a de Beaud e Pialoux (2009) nas fábricas da Peugeot, por exemplo,

destacaram as características das lutas internas entre aqueles que (não) ascendiam

internamente e os que, depois, se preparam para ficar apenas pouco tempo na fábrica:

“Sem querer dar, retrospectivamente, a ilusão de que houve uma ‘idade

de ouro’ operária, não é inútil lembrar que, nos anos 1960 e 1970,

existia na fábrica um sistema de promoção para os operários – é claro

que sob uma forma rudimentar (pouco formalizada e influenciada por

lógicas personalizadas). Essa promoção era relativa, lenta e difícil.

Podemos distinguir dois tipos: o primeiro, e mais importante, dependia

da obtenção de uma qualificação (de ‘operário profissional’) ou do

acesso ao controle de baixo; o segundo, sobretudo nas oficinas de OE,

ocorria quando se ascendia aos ‘pequenos’ postos (‘reparador’,

‘regulador’, ‘retocador’...). Concentraremos nossa atenção no primeiro,

porque o caminho de promoção mais comum para os OE da fábrica

consistiu durante muito tempo em tornar-se ‘profissional’ – palavra

carregada de sentido que, sozinha, simbolizava o respeito e a

consideração que se davam aos OP. Estes formavam a ‘aristocracia

operária’ da fábrica, encarnavam localmente o ‘ideal do nós’ operário;

era o caso, sobretudo, daqueles que haviam passado pela escola de

aprendizado da Peugeot (EAP), também chamada de ‘escola

profissionalizante’, que fechou as portas em 1970 depois de quarenta

anos de existência. (...) A partir do início dos anos 1980, os ‘setores

profissionais’ da fábrica (mecânica, ferramentaria etc.) foram

reduzidos, o quadro de OP diminuiu inexoravelmente do fim dos anos

1970 ao início dos anos 1990 (passando de 6 mil em 1980 para 2,5 mil

em 1993). (...) O que desaparece com o enfraquecimento dos

profissionais não é apenas um saber operário, uma tradição de ofício

(linguagem, gestos, atitudes...) que se transmitiam de geração em

geração, mas é também uma ‘figura’ operária de prestígio, com a qual

343 Em agosto de 2016, enfim, foi promulgada por decreto a legislação trabalhista que, dentre outras

alterações, instituiu novas regras a fim de facilitar as chamadas “demissões econômicas”. Cf. Loi Nº 2016-

1088 du 8 août 2016 relative au travail, à la modernisation du dialogue social et à la sécurisation des

parcours professionnels. Journal Officiel de la République Française, 9 août 2016. In:

https://www.legifrance.gouv.fr/jopdf//jopdf/2016/0809/joe_20160809_0003.pdf

Page 271: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

271

os outros podiam se identificar. Os operários desejavam naturalmente

que seus filhos obtivessem um CAP para um dia se tornarem operários

profissionais. Alguns OE da fábrica almejavam ‘virar profissional’ sem

ter a impressão de trair seu grupo de pertencimento, mas, ao contrário,

com uma espécie de boa consciência meritocrática. Com o declínio do

grupo dos OP, colocou-se um dúvida a possibilidade, havia muito

conhecida e reconhecida, de ascensão coletiva no próprio interior do

operariado. (...) Paralelamente ao movimento de homogeneização por

baixo da condição operária por meio da aproximação da situação dos

OP à dos OE, não saberíamos insistir o suficiente na nova forma de

consciência introduzida pela chegada maciça de novas categorias à

fábrica: os ‘bacs profissionalizantes’ e sobretudo os ‘BTS’. De fato,

muitos jovens técnicos foram contratados durante a modernização. Para

muitos, era o primeiro emprego – que escolheram não pelo salário, mas

para adquirir um know-how, uma reputação de ‘técnico Peugeot’ que

seria capitalizada dois ou três anos depois nas PME. Portanto, são

extremamente ‘disponíveis’, não contam as horas, realizam o trabalho

com uma espécie de entusiasmo de estreante e são apaixonados por

carros. Mas, por falta de um ‘bom’ salário, a rotatividade dos jovens

técnicos é elevada. A maioria sabe bem, ao entrar ‘na Peugeot’, que está

apenas ‘de passagem.” (Beaud e Pialoux, 2009: 80-90).

Na China, as reformas do final dos 1980 em diante aboliram o pleno emprego, a

garantia do “trabalho para toda a vida” e a relação que fixava o trabalhador ao seu danwei,

isto é, à sua unidade de trabalho, dando aos gerentes das novas firmas o poder de

determinar salários, recrutar e demitir. Com isso, apenas entre 1996 e 1999, por exemplo,

25 milhões de trabalhadores foram demitidos (Appleton et al., 2002, apud Yueh e Knight,

2004), formando um vastíssimo exército de reserva e inserindo gradualmente a circulação

mercantil da força de trabalho. Pesquisas atuais têm indicado que há uma grande distância

entre trabalhadores com residência urbana (hukou urbano), cujo tempo médio no emprego

ainda estava em quase 20 anos em 1999, e os chamados “migrantes” (hukou rural), que

tinham cerca de 4,5 anos em média (tabela 4), ou seja, naquela época, menos do que o

ultra-flexível mercado dos USA. A manutenção do sistema hukou – que garante acesso a

serviços públicos de acordo com um controle de residência – e a permissão do trabalho

temporário formaram um contingente de proporções chinesas de uma força de trabalho

altamente circulatória, espacialmente móvel e parcamente remunerada.

Page 272: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

272

Tabela 4: diferenças de tempo no emprego entre grupos de trabalhadores chineses e de

outros países (Fonte: Yueh e Knight, 2004: 639)

Porém, o Japão talvez seja o melhor exemplo desse processo com a dissolução do

sistema de “emprego vitalício”, o shuūshin koyou, que abrangia parte dos trabalhadores

japoneses no mínimo desde os anos 1920. O Japão era reconhecidamente um país de

pouquíssima circulação, o que, inclusive, era considerado um fator de crescimento e

“sucesso” econômico344. Mas, em 2010, segundo dados oficiais, mais de 6 milhões de

trabalhadores japoneses (14,5% do total) experienciaram alguma rotatividade de trabalho.

Em 1985, essa taxa era de apenas 1% (Roncato, 2013). Atualmente, crescem não só a

circulação, mas a inserção cada vez mais precária dos trabalhadores: um em cada quatro

trabalhadores seria um woorking poor345, condição que atinge principalmente os

estrangeiros ou os dekassegui, ou seja, de todos aqueles que “saem em busca de dinheiro

através do trabalho”.

344 No entanto, como relatou o jornalista Satoshi Kamata – que descreveu o Sistema Toyota por dentro – a

política de “emprego vitalício” nunca existiu de fato para todos os trabalhadores, excluía não apenas os

temporários, mas também as mulheres e quiçá os ditos “estáveis”: “Na eletrônica, por exemplo, foi sempre

assim. Somente nos anos de rápido e prolongado crescimento econômico (kodo seicho ki) – de 1960 a 1973

– não existiram grandes demissões. Visto de fora, esses treze anos sem grandes movimentos de demissão

puderam aparecer como ‘o modelo japonês de emprego’. Fora do Japão, o sucesso econômico japonês é

atribuído a este sistema de emprego e à promoção por tempo de serviço”. (Kamata, 1991: 151). 345 Categoria utilizada, por exemplo, pela OIT, dessa maneira: “The working poor or the number of

employed persons living in households with incomes below the nationally-defined poverty line are based

on real disposable income and refer to a nationally-defined real absolute poverty line, whenever possible”

(Cf. ILOSTAT, 2016, in:

https://www.ilo.org/ilostat/faces/home/statisticaldata/conceptsdefinitions;jsessionid=X2wN5iHzx_lp7zag

CWqHSShgTVO3TjPGcdktQlOXxo7a_Mj9kPix!1576007238?_afrLoop=51735131009851#%40%3F_af

rLoop%3D51735131009851%26_adf.ctrl-state%3D17ir0q38xk_4

Page 273: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

273

No mesmo sentido, os dados a respeito da chamada rotatividade também permitem

uma aproximação dos efeitos do processo. Estatísticas apontam que ela estaria crescendo

mesmo entre os trabalhadores altamente qualificados. A Robert Half, por exemplo, maior

empresa de recrutamento especializado no mundo, com 340 escritórios na América do

Norte, Europa, Ásia, América do Sul e Oceania, anunciou os resultados de uma pesquisa

global que teria feito com 1.775 diretores de Recursos Humanos de 13 nacionalidades.

Segundo a empresa, que presta serviços de recrutamento de “executivos de finanças,

contabilidade, mercado financeiro, seguros, engenharia, tecnologia, jurídico, RH,

marketing e vendas”, o turnover teria aumentado em 38% das empresas no mundo entre

2010 e 2013 e, no Brasil, em 82% delas346.

Mas, nesse caso, é preciso certa problematização teórica e metodológica.

4.4) A assim chamada rotatividade

“Rotatividade”, no Brasil, é a forma como foi traduzido para o português o

conceito de turnover ou labor turnover, frequentemente usado no campo dos Recursos

Humanos e da Psicologia do Trabalho cuja unidade de análise é a empresa e o

indivíduo347. Sem as devidas mediações, é um “problema social” que entra de

contrabando na sociologia.

346 Cf. “Brasil lidera aumento na rotatividade de profissionais”. 22/11/2013. In:

https://www.roberthalf.com.br/imprensa/brasil-lidera-aumento-na-rotatividade-de-profissionais 347 Organismos de pesquisa frequentemente usam o conceito para abordar o mercado de trabalho no Brasil

e no mundo. O DIEESE definiu “rotatividade” como a “substituição do ocupante de um posto de trabalho

por outro, ou seja, a demissão seguida da admissão, em um posto específico, individual, ou em diversos

postos, envolvendo vários trabalhadores” (Dieese, 2011: 11). Fora do país, outros organismos também

costumam adotar algumas diferenciações, como entre “labour turnover” e “job turnover”, dando ênfase à

substituição de trabalhadores ou simplesmente ao número total de empregos da unidade empresarial em

dado período: “A number of concepts are used in the analysis of job creation and job destruction. Job

turnover, at the level of an individual establishment or firm, is simply the net change in employment

between two points in time – the total number of jobs created less the number of jobs which have

disappeared. It does not include job vacancies which remain unfilled and jobs that begin and end over the

interval of observation, which is most often one year. The economy-wide job turnover rate is simply the

absolute sum of net employment changes across all establishments or firms, expressed as a proportion of

total employment. (…)By contrast, labour turnover is concerned with movements of individuals into jobs

(hirings) and out of jobs (separations) over a particular period. The difference between job and labour

turnover can be illustrated as follows. Suppose a given establishment has 100 people employed at time t

and 110 at t+1. During this period, 10 people have been hired to fill newly created posts. The job turnover

rate, i.e. the net change in employment, is 10 per cent. But, suppose that, during the same period, 10

individuals left the establishment and 10 were hired to replace them. Labour turnover, which concerns the

movement of workers into and out of jobs, is 30 per cent [the sum of all hirings (20) and separations (10)

divided by initial employment (100)].” (OECD, 1996: 165). Frente a isso, alguns autores diferenciam

turnover de “mobilidade laboral”, tal como: “Concerning the unit of analysis, we distinguish labor turnover

in which the employer is the unit and labor mobility in which the employee is the unit. Turnover is the

number of quits per period as a percentage of the workers in a firm. Since our data are household-based,

Page 274: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

274

A origem de “Labor turnover” advém de uma definição oficial adotada por

administradores na National Conference of Employment Managers ocorrida em

Rochester/NY de 9 a 11 de maio de 1918, que formaria a National Association of

Employment Managers. Seu primeiro presidente era o gerente de pessoal da Armco Steel

Corporation (Crum, 1919; Brissenden, 1920; Jacoby, 2004). O termo surgiu em

discussões que eles travaram na época a respeito do custo de se contratar e demitir

trabalhadores348. Nesse sentido, uma comissão foi nomeada no congresso para elaborar

um relatório que iria definir o que significava a expressão e estabelecer como seria

calculada a sua taxa349. Dali em diante, foi difundida e abreviada para turnover e, pelos

dados que tenho, no mínimo desde os anos 1950 a significação dada pelos

administradores foi inserida no verbete dos dicionários de língua inglesa.

Com a I Guerra Mundial, o contexto enfrentado por esses gerentes era de escassez

de força de trabalho, “produtividade” reduzida e agitação da classe trabalhadora, cujas

greves e militância ameaçavam abranger também a massa de trabalhadores não

especializados ou semiespecializados. É apenas nesse contexto que o chamado “turnover”

se torna um problema nacional nos EUA: “Turnover, which before the war was a topic of

concern only to a small group of employment reformers and personnel managers, began

to receive national attention and became the subject of numerous books, articles, and

conferences” (Jacoby, 2004: 101).

Neste sentido, a produção de dados sobre a rotatividade visa detectar aspectos da

vida da empresa, em especial de sua taxa de lucro, dados os gastos de

demissão/recrutamento/treinamento frente à receita total do negócio350. Em geral, na

we focus on labor mobility, which can be measured as the number of quits per period by a worker” (Yueh;

Knight, 2004: 639). 348 Harry W. Kimball, em um artigo na Industrial Management, relatou: “What most persons mean by labor

turnover is labor replacement. The term labor turnover arose in conection with discussions of the cost of

hiring and firing workers. It was recognized that men drifted in and drifted out of industries. Competent

men often did not stay, and incompetent men had to be fired after expensive trial. Effective labor service

finds the right man for the right job and then gets him to stick. If he does not stick then someone else has

to be hired to take his place, ori f a mistake in judgment is made and an unfit person employed, then that

person has to be fired and another worker found for his job. This is labor turnover but a better and more

accurate phrase is to think of it has necessary labor replacement” (Kimball, 1918, apud Crum, 1919: 365). 349 “Standard definition of labor turnover and method of computing the percentage of labor turnover”,

National Conference of Employment Managers, Rochester, New York, May 9 to 11, 1918. Monthly Labor

Review (June, 1918), pp. 172-173; apud Brissenden (1920). O método para calcular a taxa foi assim

definido: “To compute the percentage of labor turnover for any period, find the total separations for the

period considered and divide by the average of the number actually working each day throughout the

period” (Crum, 1919). Várias objeções foram feitas e essa definição oficial, obviamente, não encerrou as

lutas de classificação em torno do conceito (que caracterizam o campo de estudo até hoje). Para isso, por

exemplo, ver Morrell et al. (2001). 350 As narrativas da literatura em Recursos Humanos, em geral, expressam um discurso no qual o turnover

é algo a ser combatido, enfatizando gastos perdidos no investimento em qualificação interna e treinamento.

Page 275: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

275

literatura, o turnover foi problematizado apenas no caso dos trabalhadores especializados,

isto é, entre os quadros profissionais que são considerados estratégicos (quando significa

investimento empresarial em busca e atração de outro para a reposição). É, portanto,

estudado a partir do ponto em que prejudica a organização empresarial, desdobrando-se

enquanto técnicas de retenção ou de expulsão de quadros, que, dependendo do mercado,

podem ser mais ou menos importantes de acordo com uma série de fatores

correlacionados. Uma das primeiras revisões bibliográficas que definem o campo de

estudos na psicologia do trabalho, a de Porter e Steers (1973), por exemplo, têm como

objeto apenas os estudos do “avoidable turnover or absenteism”, ou seja, da saída ou da

falta dos empregados que a empresa pretendia manter em seus quadros. Daí a opção de

revisar a literatura de turnover e de absenteísmo juntas (o que depois vai ser abandonado

e complexificado351). Como tal, turnover e absenteísmo representavam o mesmo

“problema”. E, nesse sentido, parte dos psicólogos do trabalho a serviço das empresas

encontrou amplo campo para discussões a respeito do porquê esses quadros preferem sair

(motivações, interesses, comportamentos, noções de satisfação e de insatisfação). Já os

administradores e pesquisadores em Recursos Humanos buscariam criar e aprimorar uma

tecnologia para a retenção desses quadros: percepção, conceituação, quantificação,

receituário em geral. Dentre estes, também há aqueles que frisam a necessidade de

“renovação” constante e “oxigenação” da empresa com novos quadros, ou seja, de uso da

rotação enquanto estratégia empresarial de acirramento da concorrência entre

trabalhadores e de intensificação do trabalho. Atualmente, por exemplo, nos EUA se

consideraria que o “tempo ideal” de emprego de um trabalhador é 23 ou 24 meses352.

Porém, qualificação, ou melhor, “competência”, segundo o jargão empresarial, e investimento em formação

são atribuições cada vez mais tão “flexíveis” e entrecortadas quanto as carreiras dos trabalhadores em um

processo de supercirculação. Alguns, como Alves (2014), sugerem que as novas modalidades de contrato

de trabalho provocaram até mesmo uma “degradação da relação tempo presente-tempo futuro”. 351 Ver, por exemplo, March & Simon (1958), Hill & Trist (1955); Rice & Trist (1952); Burke & Wilcox

(1972) apud Mobley et al. (1979). 352 Em “How to prevent” do verbete “Turnover” da wikipedia em língua inglesa foi publicado o seguinte

texto: “Employees are important in any running of a business; without them the business would be

unsuccessful. However, more and more employers today are finding that employees remain for

approximately 23 to 24 months, according to the 2006 Bureau of Labor Statistics”. In:

https://en.wikipedia.org/wiki/Turnover_(employment). Analisando o exército de reserva nos EUA,

Magdoff e Magdoff (2004) resumiram dessa forma a dinâmica do mercado para algumas camadas de

trabalhadores: “Workers may move from one segment of the reserve army to another, sometimes gaining

employment and sometimes losing jobs, sometimes being so discouraged with the poor job market that they

stop looking for work, then renewing their job search under more favorable conditions. A recent newspaper

article illustrated the unpredictable changes for someone in a state of employment flux. It described a person

who lost his job and looked for work for a while, then stopped looking (and was therefore no longer

officially unemployed), then earned a little money through self-employment, and then got a temporary job

at less pay than the original job he lost, “with no paid holidays, no sick leave, no pension plan, no health

insurance, no future” (Los Angeles Times, December 29, 2003). (…)The use of part-time and temporary

Page 276: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

276

Essas práticas integram, portanto, um amplo mosaico de lutas políticas por

posições e estratégias empresariais que transcorrem em um campo que é tanto interno

quanto externo à empresa.

Atualmente, em meio a políticas que aumentam ainda mais a chamada

flexibilidade do mercado formal de trabalho no Brasil, a literatura a respeito da

rotatividade se divide na luta em torno dos seus efeitos, em especial a respeito da

destinação dos recursos do FAT. E essa luta toma ares de uma aberta e franca luta de

classes: partidários de contra-reformas trabalhistas x partidários da taxação das empresas

com “rotatividade acima da média” ou da plena estabilidade353. Por outro lado, também

crescem as pressões pelo fim do regime de estabilidade que vigora em parte do setor

público, visando estabelecer um mercado plenamente “rotativo”354.

workers—readily available because many people are not able to find full-time work—as well as the use of

workers hired through contractors, are other tactics to control labor and weaken the position of full-time

employees. Part-time, temporary, and contract workers are generally paid lower wages than fulltime

permanent workers and are not eligible for pensions, health insurance, or paid holidays. (…) The increased

use of temporary labor makes it easier to hire and fire workers” (Magdoff e Magdoff, 2004: 6). 353 A luta em torno da questão da “alta rotatividade” no Brasil se define entre aqueles que creditam as taxas

de rotatividade à “rigidez institucional” do mercado de trabalho ou aos benefícios que o trabalhador recebe

ao ser demitido (FGTS, 40% de multa e, certos casos, seguro-desemprego) e os que recusam essa tese,

demonstrando todos os seus equívocos teóricos e empíricos. Além de pesquisadores afiliados em um lado

e do outro, o processo de construção da “alta rotatividade” como um problema social envolve centros e

instituições de pesquisa e de educação, empresas, jornais, mídias, partidos, representantes políticos em

geral. Os que creditam a rotatividade aos benefícios ou à falta de “flexibilidade” visam uma contra-reforma

trabalhista que altere os benefícios financeiros pagos ao trabalhador demitido de forma involuntária e/ou

que acelere os mecanismos formais de demissibilidade/recrutamento. Para eles, esses benefícios poderiam

ser reduzidos, suprimidos, se tornarem parte do FAT ou outro fundo coletivo ou serem sacados apenas no

futuro (na aposentadoria, por exemplo). Em contraposição, já se demonstrou que a dinâmica das taxas de

rotatividade não se alterou, por exemplo, com a criação e posterior ampliação do seguro-desemprego desde

1986 e nem com o aumento da multa rescisória de 10 para 40% com a nova Constituição de 1988 (Ramos

e Carneiro, 1997; 2002). Também que, como é de pleno conhecimento, que o tempo de permanência no

trabalho no mercado informal, que não tem esses benefícios, é ainda menor do que no formal. E que,

portanto, tal como em outros países: “Quando o nível de atividade está aquecido, torna-se mais atrativo

forçar o afastamento, dado que as oportunidades de trabalho no mercado informal são maiores, os

rendimentos neste espaço mais elevados, e um posterior retorno ao mercado formal mais provável (ou

menos difícil) ” (Ramos e Carneiro, 2002: 40). Enfim, que o determinante para a circulação ou não está nas

características dos postos de trabalho que são oferecidos e na gestão do trabalho adotada pelas empresas.

Entre os que creditam a “alta rotatividade” aos benefícios estão, dentre outros, Camargo (1986); Gonzaga

(1998); Gonzaga et al. (2013); Gonzaga e Pinto (2014); Chahad e Pozzo (2013). Baltar e Proni (1996)

indicam tanto a instituição do FGTS, quanto a “liberdade de atuação das empresas” (ou seja, a

regulamentação permissiva da demissibilidade no Brasil) e a fraqueza ou inexistência dos sindicatos.

Pastore (1994) está entre os que creditam à falta de flexibilidade no mercado brasileiro. Os textos críticos

são os citados acima. Entre aqueles que defendem a taxação das empresas com “rotatividade acima da

média” estão os trabalhos realizados pelo DIEESE (2014). 354 Em entrevista, o reitor da USP em 2014 criticou a estabilidade de funcionários e professores, defendendo

a prerrogativa de “contratar e demitir de acordo com o desempenho”. No mesmo tom, o presidente da

CAPES/MEC anunciou que pretendia iniciar contratações de professores nas universidades pela CLT (e

não pelo Regime Jurídico Único, estável), porque atualmente “ninguém é mandado embora”. Cf. “CAPES

propõe contratação de docentes das IFES via Organização Social”, 01/10/2014, in:

http://www.anpg.org.br/?p=6364

Page 277: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

277

Recentemente, a luta de classes que se estabeleceu em torno da questão da “alta

rotatividade” no Brasil pendeu para o lado contrário aos trabalhadores que apresentam

alta circulação com as modificações no benefício do seguro-desemprego em janeiro de

2015. Neste sentido, o menor acesso a esse benefício aumenta a expulsão e aprisiona

ainda mais o trabalhador a uma nova venda da força de trabalho, reduzindo o tempo de

inatividade e o obrigando a vendê-la por qualquer preço e em qualquer setor que aparecer,

o que acontece sempre na medida exata em que ele não tem recursos para se reproduzir,

o que, no caso desses trabalhadores que recorriam ao seguro-desemprego, era mínimo.

Portanto, um cenário possível face a essa modificação legal é justamente o efeito contrário

do que se anuncia, ou seja, uma adequação do Estado e do mercado à supercirculação.

Contudo, essas políticas de rotação se desenvolveram e se desenvolvem em

condições históricas específicas. No mínimo desde Taylor (2006 [1911]), a moderna

administração científica racionaliza o processo de produção de forma a cada vez depender

menos dos trabalhadores-indivíduo ou, como ele propunha, a cada vez mais tornar o

“sistema” independente do “homem eficiente”355. O trabalhador-massa taylorista é uma

peça da máquina, do corpo-fábrica, ou seja, imprescindível, mas substituível, quando

necessário. A política de retenção de Ford também era fundada justamente nessa

possibilidade de substituição progressivamente racionalizada pelo taylorismo. Ou, como

ele sustentava: “Men work for only two reasons: one is for wages, and one is for fear of

losing their jobs”.

Tal racionalização, ao expandir cada vez mais sua abrangência, potencializa a

circulação da força de trabalho e as políticas empresariais de rotação, ou seja, insere a

demissibilidade/descartabilidade ou troca imediata do trabalhador-indivíduo. Significa,

nesse sentido, o processo contínuo de subsunção do trabalho ao capital já descrito por

Marx n’O Capital. Um processo que, como Marx também analisou no chamado capítulo

355 No que se refere ao mercado do trabalho, Taylor afirmava no seu item “Procura de homens eficientes”:

“O que todos procuramos, entretanto, é o homem eficiente já formado; o homem que outros prepararam”.

E, em seguida, fazia um apelo: “Só entraremos, todavia, no caminho da eficiência nacional, quando

compreendermos completamente que nossa obrigação, como nosso interesse, está em cooperar

sistematicamente no treinamento e formação dessas pessoas, em vez de tirar de outros os homens que eles

prepararam” (Taylor, 2006: 22). O princípio fundamental da administração de Taylor, afinal, era a primazia

do “sistema” frente à dependência dos “homens eficientes”. Neste sentido, ele sistematizou, aprofundou e

vaticinou como universalizável para todas as funções, enquanto teoria científica administrativa. E ele parece

ter acertado a previsão: “No passado, o homem estava em primeiro lugar; no futuro, o sistema terá a

primazia. Isso, entretanto, não significa, absolutamente, que os homens competentes não sejam necessários.

Pelo contrário, o maior objetivo duma boa organização é o aperfeiçoamento de seus homens de primeira

ordem; e, sob direção racional, o melhor homem atingirá o mais alto posto, de modo mais seguro e rápido

que em qualquer outra distinção” (Taylor, 2006: 23).

Page 278: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

278

VI inédito, desenvolve-se através da transformação tanto dos meios de trabalho

propriamente ditos, quanto das relações de trabalho, e que “prossegue e se repete

continuamente”, mesmo após a subsunção real do trabalho ao capital356.

Nesta perspectiva, tal como frisei no item anterior, as mudanças organizacionais

da administração científica após o paradigma taylorista-fordista não só aprofundam essa

racionalização, como também inserem um processo diretamente relacionado a esse, de

supercirculação357. Neste sentido, a metodologia utilizada por Linhart (2007: 94-103) é

interessante. Para ela, a análise de um novo modelo implica dar a mesma importância ao

que muda e ao que não muda, cabendo distinguir o que deriva do discurso e o que está

relacionado às práticas e aos resultados.

Ohno conta em seu livro que a primeira coisa que quis ver nos EUA foi um

supermercado. Foi a partir dele que teria tirado as ideias para implantar as metas just in

time na Toyota (ou pelo menos foi dessa forma que ele tentou explicar o que fez). A

ordem era evitar “desperdícios”. Ele explica:

“Do supermercado pegamos a ideia de visualizar o processo inicial

numa linha de produção como um tipo de loja. O processo final (cliente)

vai até o processo inicial (supermercado) para adquirir as peças

necessárias (gêneros) no momento e na quantidade que precisa. O

processo inicial imediatamente produz a quantidade recém retirada

(reabastecimento das prateleiras). Esperávamos que isso nos ajudasse a

356 “Com a subsunção real do trabalho ao capital, dá-se uma revolução total (que prossegue e se repete

continuamente) no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre o capitalista

e o operário” (Marx: 1978: 66). Sendo assim, o processo de substituição da subsunção formal à subsunção

real do trabalho ao capital e, depois, seu prosseguimento através de modalidades de produção de mais-valor

relativo (como a intensificação do trabalho, por exemplo), potencializa continuamente a aceleração da

circulação da força de trabalho. Esse movimento que estou apontando, embora previsto, não foi

desenvolvido por Marx, que analisou um capitalismo no qual as formas de extração de mais-valor absoluto

transitavam sua hegemonia com o nascimento da grande indústria a partir da reprodução ampliada da

dependência e a divisão internacional do trabalho que se estabelece desde então (Cf. Marini, 2008a).

Contudo, vale lembrar que Marx, nos rascunhos publicados no Livro III, analisou outro movimento, que

não é contraditório com esse, enquanto uma das causas contrariantes da lei da tendência de queda da taxa

de lucro, que é a ação contrária que exerce a superpopulação relativa sobre o aumento de produtividade e

sobre o próprio processo de subsunção do trabalho ao capital: “Ela [superpopulação relativa] permite que,

em muitos ramos de produção, perdure mais ou menos incompleta a subordinação do trabalho ao capital, e

por mais tempo do que seria à primeira vista de esperar da situação geral de desenvolvimento; isto acontece

por baratearem e se tornarem abundantes os trabalhadores desempregados ou liberados, e por vários ramos

de produção oporem, de acordo com sua natureza, maior resistência à transformação do trabalho manual

em trabalho mecânico” (Marx, 2008: 312). 357 Gaudemar (1987), por exemplo, chegaria a ironizar: “trabalhador-flexível”, etapa superior do

“trabalhador-massa”: “Competent et disponible, tel doit etre le travailleur moderne. Individu et masse a la

fois, pourrait-on dire. Le travailleur flexible, en un mot, incarnant tout a la fois la puissance de la masse et

l'adaptabilite de l'individu. Le stade supreme du travailleur-masse, pourrait-on ironiser en paraphrasant

Lenine.» (1987 : 20).

Page 279: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

279

atingir a nossa meta just-in-time e, em 1953, implantamos o sistema na

nossa oficina na fábrica principal” (Ohno, 1997: 45).

Sendo assim, as gerências referenciadas no “novo modelo” aplicaram essas

estratégias ao uso da força de trabalho no processo produtivo, tomadas das prateleiras na

medida exata do que se precisa dela, isto é, no momento e na quantidade exata do que se

precisa. Ou seja, adquirida e descartada na quantidade e no momento o mais exato

possível do que se utiliza; contratada e remunerada, em último caso, apenas pelo dia, hora,

peça ou tarefa necessários em determinado processo produtivo.

4.5) Supercirculação, superexploração: (breves) notas finais sobre o caso brasileiro

Tal como indiquei nas seções anteriores, o processo descrito se desenvolveu a

partir de condições já estabelecidas historicamente nas diversas formações sociais. Neste

sentido, interessa agora relacionar algumas breves notas a respeito da forma como estaria

se manifestando em uma formação específica, no caso, o Brasil, tendo como base

informação não apenas da indústria da mineração, mas também de outros setores.

Chesnais (1996), vinte anos atrás, indicou que a chamada mundialização do

capital não diminuía a polarização internacional da “época clássica” (dominação política,

intercâmbio desigual), mas sim aprofundava “brutalmente a distância entre os países

situados no âmago do oligopólio mundial e os países da periferia” (p. 37), considerando

o impacto das deslocalizações e da concorrência frente ao preço da força de trabalho358.

358 Chesnais (1996) acentuava, a partir da análise de Samir Amin: “Essas implicações [das deslocalizações

para os países de baixos custos salariais e fluxos comerciais resultantes] decorrem de relações cuja iniciativa

cabe aos grupos industriais e comerciais dos países pertencentes ao oligopólio mundial, que podem assim

pôr em concorrência a oferta de força de trabalho entre diferentes países. S. Amin (1990) lembrou que a

expansão do sistema capitalista baseou-se na integração simultânea, no quadro dos Estados-nações

“regulamentados”, de três mercados: “o das mercadorias, o do capital e tecnologia, e o do trabalho”. Em

seu movimento de mundialização, o capital está mandando pelos ares essa integração, e tomando todo o

cuidado em não reconstruí-la. O sistema mundial “começa a se tornar integrado quanto às mercadorias; (...)

tende igualmente a se integrar no que diz respeito às tecnologias e às novas técnicas financeiras (...). Mas

não está integrado quanto ao trabalho” [em nota: ‘Seria mais correto dizer “integrado quanto ao preço de

venda da força de trabalho”]. Ora, um mercado não-integrado nessa terceira dimensão permite que as

companhias explorem a seu bel-prazer as diferenças de remuneração do trabalho, entre diversas regiões

(depois de mandar pelos ares a legislação trabalhista e as convenções salariais nacionais), entre diferentes

países (como no seio da CEE), entre continentes. A liberalização do comércio exterior e dos movimentos

de capitais permitiram impor às classes operárias dos países capitalistas avançados a flexibilização do

trabalho e o rebaixamento dos salários. A tendência é para o alinhamento nas condições mais desfavoráveis

aos assalariados. As “deslocalizações”, em função das condições que as regem, integram-se ao movimento

de polarização e o acentuam, juntando seus efeitos aos da “desconexão forçada” no intercâmbio comercial”

(1996: 39-40). Seu livro, contudo, apontava para a formação de zonas de marginalização em relação ao

sistema de comércio internacional e para a “desconexão” que a nova mobilidade do capital promoveria em

relação ao arranjo anterior, em um sentido não só desintegrador, mas também fundamentalmente excluidor

Page 280: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

280

Mesmo Castells (1999), que cunhou o chamado “novo paradigma informacional” e

descreveu as empresas em rede que decorriam dele, também não advogou uma anulação

das distâncias sociais antes estruturadas, levando em conta justamente a questão do

trabalho359.

Os dados das últimas décadas que citei, no mínimo, reforçam a tese da reprodução

histórica da dependência sob a nova etapa de acumulação flexível do capital e, por

conseguinte, da vigência dos regimes de superexploração do trabalho que caracterizam

essas formações sociais. Por outro lado, também indicam transformações profundas na

natureza desses regimes. Atualmente, há um amplo debate sobre a manifestação da

superexploração do trabalho também nos centros capitalistas sobre o qual, dentre outros,

o mexicano Adrián Sotelo vem desenvolvendo análises inspiradas nas teses originais de

Marini (2008a; 2008b; 1993; 1996)360. Minha intenção aqui, contudo, visa apenas

(o que, por um lado, atualmente poderia ser questionado frente à expansão sobre os recursos naturais da

América Latina, África, etc, e às exportações de matérias-primas de base, por exemplo, embora, por outro

lado, não enfraqueça sua tese da prevalência dos IEDs): “(...) Os teóricos da “nova divisão do trabalho”

haviam fundamentado suas posições sobre a dupla hipótese de que os países do Terceiro Mundo possuiriam

vantagens comparativas duradouras, com base na mão-de-obra abundante e barata, e de que as

multinacionais promoveriam uma deslocalização bastante duradoura dos segmentos intensivos em mão-de-

obra, para esses países. Os exemplos do setor têxtil e da eletrônica eram citados com frequência. Os fatos

vieram demonstrar que a primeira hipótese só se verificou na medida em que tais países se revelaram

capazes de adquirir e utilizar técnicas e formas de organização do trabalho quase idênticas àquelas vigentes

nos países avançados. Nesse caso, os países de nível salarial baixo tornaram-se concorrentes diretos e

perigosos. À falta disso, a adoção das tecnologias dos microprocessadores industriais permitiu repatriar

para os países avançados indústrias que antes eram consideradas “maduras” ou muito intensivas em mão-

de-obra (E.M. Mouhoud, 1993). As operações das multinacionais são caracterizadas pela elevada

mobilidade dos investimentos, pela capacidade de redirecionar constantemente suas atividades e, no que

diz respeito aos países do Terceiro Mundo, pela total ausência de enraizamento em dado país ou de

compromisso com o mesmo. São características que explicam os numerosos retrocessos sofridos nos

últimos vinte anos pelos países em desenvolvimento “ricos em mão-de-obra”. Correntes de exportação

desapareceram tão depressa como haviam surgido; supostas “vantagens comparativas” evaporaram. O IED

mostrou a que ponto prevalecia sobre o comércio” (Chesnais, 1996: 223). 359 “Havendo uma economia global, também devem existir um mercado de trabalho e uma força de trabalho

global. Entretanto, como acontece com muitas declarações obvias, considerada em seu sentido literal, essa

é empiricamente incorreta e analiticamente enganosa. Embora o capital flua com liberdade nos circuitos

eletrônicos das redes financeiras globais, o trabalho ainda é muito delimitado (e continuará assim no futuro

previsível) por instituições, culturas, fronteiras, polícia e xenofobia” (Castells, 1999: 254). 360 Tal como em Sotelo (2009) e, principalmente, em “Los rumbos del trabajo: superexplotación y

precariedad social en el siglo XXI” (Sotelo, 2012). A tese principal foi por ele assim resumida: “(...) la

crisis del plusvalor relativo es la esencia de la crisis estructural del capital en el capitalismo avanzado.

Siendo así, entonces, se abre de manera consecuente la ruta de la generalización de la superexplotación del

trabajo en todo el sistema – con sus modalidades específicas, claro está! – como contrapartida tanto de la

crisis del plusvalor relativo, como de la caída tendencial de la tasa media de ganancia y sus implicaciones

en otras categorías como renta, inflación, impuestos y desempleo” (Sotelo, 2012: 71). Porém, ainda segundo

Sotelo, no mesmo livro, a generalização da superexploração do trabalho na atual crise do capitalismo não

dissolve a diferença entre as formações dependentes e os centros imperialistas, considerando que a

produção de mais-valor relativo não se torna hegemônica nas primeiras. No Brasil, recentemente, Alves

(2014) também dialogou com o mesmo referencial, defendendo a vigência da superexploração do trabalho,

ao que reconheceu ser um “traço ontogenético do capitalismo brasileiro” (p.115). No mesmo livro, Alves

defende ainda uma “nova superexploração da força de trabalho”, que “(...) se caracterizaria pelo aumento

da intensidade do trabalho por meio da maior exploração do trabalhador assalariado utilizando-se a gestão

Page 281: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

281

apresentar algumas observações da forma como o processo que indiquei estaria se

manifestando de maneira mais ampla na formação dependente brasileira. Outro exercício

a ser oportunamente feito seria a verificação da relação desse processo enquanto uma

tendência associada à superexploração do trabalho também em outras formações,

inclusive centrais361.

Tal como já mencionei, embora os dados indiquem que se trate de algo cada vez

mais amplo e generalizado, enquanto processo, as maneiras pelas quais estaria se

desenvolvendo envolvem formas, ritmos e graus bastante diferenciados entre si. Em geral,

por exemplo, análises que se pretendem mundiais, mas que se restringem aos efeitos e às

lutas em torno do desmonte do Estado de Bem-Estar (crescimento dos índices formais de

“desemprego”, fim do regime de pleno assalariamento formalizado, etc) têm sério risco

de reproduzir um eurocentrismo grosseiro. Como é de pleno conhecimento, um vasto

setor informal da economia e um exército de reserva de enormes proporções não são

características novas na maior parte do mundo, especialmente na América Latina, na Ásia

e na África362. Pensar a partir do Brasil evita esse risco, embora também possa, por outro

lado, recair em uma miopia cética oposta, ao não perceber as transformações recentes.

Neste sentido, o processo de supercirculação se relaciona diretamente com a atual

reprodução histórica de um regime de superexploração do trabalho de diversas formas no

Brasil. Em primeiro lugar, intensificando os efeitos da ação social exercida pelo exército

de reserva. Em termos clássicos, tal como Marx expôs no capítulo 23 d’O Capital, a

acumulação de capital produz uma superpopulação relativa que, por sua vez, seria “(...)

até mesmo uma condição de existência do modo de produção capitalista” (2013: 707).

Isso porque estaria diretamente vinculada a fatores fundamentais e normalmente inter-

toyotista acoplada às novas tecnologias informacionais, que elevam a intensificação do trabalho num

patamar superior” (Alves, 2014: 117). Outras pesquisas recentes também têm se debruçado sobre o poder

explicativo desse referencial para a análise do mundo do trabalho no Brasil, tal como Guanais (2016), que

realizou um profundo estudo sobre a intensificação do trabalho e sobre os assalariados rurais nas primeiras

décadas do século XXI. 361 Neste sentido, vale ressaltar que Marx teria enumerado dentre os fatores teóricos contrariantes da lei da

tendência de queda da taxa de lucro o aumento do grau de exploração do trabalho (prolongamento das

jornadas, intensificação do trabalho), o “comércio exterior”, a “redução dos salários” (ou sua remuneração

abaixo do valor) e a superpopulação relativa (Marx, 2008: 305-316). Fatores que, como frisei anteriormente,

estão diretamente relacionados entre si. A associação desses fatores com a categoria da superexploração,

contudo, também exige um investimento de análise da questão da transferência de valor atenta à totalidade

da reprodução do capital atualmente. 362 Sendo assim, os índices de “desemprego” no Brasil estão historicamente sujeitos às diversas

controvérsias, revisões e disputas de mensuração e classificação. Alguns pesquisadores do mercado de

trabalho, por exemplo, defendem que o crescimento dos números do desemprego pós-1980 refletiria mais

o impacto de uma parcela de trabalhadores que estava sendo expulsa da indústria (após o ciclo de

industrialização 1930-1980) do que necessariamente o histórico trabalho precário informal (Dedecca,

2005).

Page 282: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

282

relacionados, em especial: a) descolamento da acumulação de capital face à necessidade

ou mesmo à natureza do crescimento demográfico; b) produção de um excedente de força

de trabalho em circulação; c) acirramento das concorrências entre trabalhadores; d)

rebaixamento e/ou controle salarial.

No caso das formações dependentes, dentre outros fatores, segundo Marini, a

superexploração do trabalho se basearia fundamentalmente em uma imensa

superpopulação relativa. Neste sentido, relaciona-se diretamente a mecanismos de

dilapidação da força de trabalho, como intensificação do trabalho, prolongamentos de

jornada e remuneração abaixo de seu valor. Além disso, o exército de reserva nessas

formações também estaria vinculado a outras questões específicas que o autor

desenvolveu em alguns de seus textos, tais como a reposição do exército ativo

superexplorado ou precocemente descartado, o debilitamento da capacidade

reivindicativa da classe trabalhadora e, em especial, o papel estabelecido em ciclos de

crescimento econômico, quando há incorporação formal de maiores parcelas de

trabalhadores e trabalhadoras sem alteração do regime de superexploração363. Mediado

por esse exército de reserva ampliado, portanto, a acumulação dependente permaneceria

dependendo mais do aumento da massa de valor do que da taxa de mais-valor. De acordo

com os dados que citarei a seguir, tanto as teses de Marx quanto as de Marini teriam fortes

indícios empíricos de sustentação no contexto brasileiro mais recente.

Face à supercirculação, contudo, acrescentaria ainda outros aspectos. De maneira

geral, a “flexibilidade”, como apontado nos estudos feministas desde os anos 1980364, é

sexuada, ao que poderíamos acrescentar: racializada, etnicizada, corporada. Seria, nesse

caso, mais uma forma de intensificar ao máximo a exploração econômica dos corpos e

mentes a partir do uso seletivo e da reprodução de subalternidades sociais historicamente

constituídas em dado contexto. Mas não só. O processo de aumento da circulação da força

de trabalho também estaria permitindo, por exemplo, a adoção de determinadas

estratégias empresariais que intensificam todos os efeitos acima elencados de forma

seletiva. Em cada vez mais setores, por exemplo, permite práticas de

recrutamento/expulsão contínuas, selecionando determinados perfis de trabalhadores

363 Cf. Anexo. Vale lembrar que, após um longo apagamento, o interesse por uma revisita das teorias

marxistas da dependência aumentou no Brasil justamente na década em que houve maior crescimento

econômico. As teses mais recentes da reprodução histórica do regime de superexploração do trabalho estão

sendo apresentadas exatamente a partir desse período. O citado Alves (2014) é uma delas, ao analisar a

primeira década do século XXI, caracterizada pelo chamado “neodesenvolvimentismo”. 364 Cf. descrevem, revisando essa literatura, Hirata e Cattanéo (2009).

Page 283: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

283

(idade, estado civil, maior qualificação, escolaridade, etc), introduzindo reestruturações

produtivas (extinção de funções, expulsão e troca de profissões, “renovação de quadros”,

“enxugamento de pessoal”), reduzindo custos com capacitação profissional interna,

exigindo maior intensidade do trabalho (sendo o período de contratação associado a uma

“prova” de desempenho ou “seleção” constante)365, produzindo e reproduzindo

economicamente as mais variadas opressões (raça, etnia, nacionalidade, sexo, gênero,

deficiência, orientação sexual, etc), assim como rotacionando a força de trabalho já

dilapidada (adoecidos, mortos, desgastados, “pouco produtivos” em geral).

A questão da chamada rotatividade nos oferece uma aproximação aos processos e

à relação que propus. No Brasil, a alta rotatividade é considerada “histórica”. De maneira

geral, em meio a esses índices, a substituição de trabalhadores vem sendo usada no Brasil

como uma estratégia empresarial de rebaixamento de salários (ou redução de custos para

as empresas)366. Contudo, teria sido estimulada justamente no período em que houve

maior crescimento do exército ativo em situação formal no mercado de trabalho no século

XX e, mais recentemente, também teria crescido vertiginosamente na primeira década do

século XXI, outro momento em que isso também ocorreu. Além disso, nas últimas

décadas, os índices estariam em paulatino crescimento em todos os postos de trabalho,

salvo momentos em que houve alguma alteração estrutural significativa, tal como em

função dos efeitos imediatos da crise de 2008.

Atualmente, segundo dados de 2014, a probabilidade de duas pessoas continuarem

juntas após um ano de empresa no Brasil seria de apenas 13%. Na década de 1990, 45%

dos trabalhadores com carteira assinada trocavam de emprego em um ano. A taxa global

acelerou para 53,9%, em 2002, e em 2013 chegou a quase 64% (Dieese, 2014). As taxas

365 Estar sujeito continuamente a “provas” de intensidade, disciplina, etc, é, na verdade, uma estratégia há

muito utilizada principalmente para a seleção de trabalhadores não especializados no Brasil, tal como se

nota em algumas observações de um pesquisador que tomou por base dados de 1987/88 do estado de São

Paulo (o mercado de trabalho mais formalizado do país): “A facilidade com que o empregado pode ser

dispensado permite à empresa evitar o custo de uma seleção criteriosa, no momento da contratação do

empregado. Na realidade, a verdadeira seleção é realizada através da observação do desempenho dos

empregados temporariamente contratados” (Baltar, 1994: 101). 366 Uma série de autores identificaram essa prática empresarial, dentre outros: Pochmann (2009); Baltar

(1994); Orellano; Mattos; Pazello (2009). Estes últimos mensuraram a prática de “labor churning” e

calcularam os custos e vantagens que a indústria paulista nos anos 1990 tinha ao recorrer à essa política por

meio de demissões/contratações em sequência que, segundo eles, seria responsável por mais da metade do

movimento total da rotatividade do período. Labor churning é a forma como a literatura internacional

nomeia a substituição de trabalhadores entre firmas sem alteração no estoque geral de empregos, cujos

debates são correlatos à questão do turnover em geral, tais como na mensuração da demissão voluntária ou

involuntária e seus custos para as empresas. Neste caso, em especial, normalmente também se baseiam nas

denominadas teorias de matching, ou seja, a partir de pressupostos neoclássicos de “equilíbrio geral” do

mercado, enumeram os fatores que impedem ou não uma plena agência dos recrutadores e trabalhadores

em busca dos postos de trabalho que lhes seriam adequados.

Page 284: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

284

da chamada “rotatividade” no mercado formal são das mais altas do mundo.

Considerando os dados da RAIS, ou seja, apenas os empregos formalizados, o tempo

médio de emprego era de 4,4 anos em 2000 e de 3,9 anos em 2009 (Dieese, 2011: 17).

Há também uma fração de empregos em que a rotação é ainda mais curta. Em

aproximadamente 63,6% dos casos de desligamento ao longo da década de 2000, o tempo

de trabalho não durou sequer um ano (id. ib.: 53).

Gráfico 18: taxa de rotatividade no mercado formal (CLT) segundo o Dieese (2014: 3)

O mercado de trabalho formal brasileiro é um dos mais “flexíveis”, quer dizer, um

dos que é mais fácil (menos custoso) demitir/contratar um trabalhador e adotar estratégias

de “giro de pessoal” por parte das gerências de Recursos Humanos das empresas. Isso

não é exclusividade do Brasil, embora, de fato, aqui apresente cifras muito distantes, em

especial, dos países centrais que ainda erigem traços da antiga tradição fordista e do

Estado de Bem-Estar Social. Mas nos EUA, reino da “flexibilidade”, por exemplo, o

tempo médio é ainda menor: 4,4 anos (ver gráfico e tabela abaixo). É preciso frisar que

nesses países o que predomina no mercado de trabalho é o assalariamento formalizado da

força de trabalho, ao contrário do Brasil e de outras formações dependentes. Os dados do

Brasil nesses gráficos se referem apenas ao mercado formal, aos dados da RAIS. Se os

Page 285: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

285

dados compreendessem o setor informal, que é ainda mais circulatório, o tempo seria

menor367.

Gráfico 19: tempo médio de permanência no emprego (Dieese, 2011: 59)

367 A literatura publicada sobre o assunto indica que a taxa de rotatividade no emprego assalariado informal

seria de 3 a 4 vezes maior do que no formal (Ulyssea, 2006).

Page 286: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

286

Tabela 5: faixas de tempo de permanência no emprego (Dieese, 2011: 61)

Segundo o Dieese (2011), a rotatividade no Brasil é um “problema geral”, que

afeta a todos, trabalhadores e empresários, baseando-se na forma como aparece o tema na

literatura de Recursos Humanos:

“Para os trabalhadores, representa insegurança quanto ao contrato de

trabalho, levando-os a períodos de desemprego, seguido da busca de

nova colocação no mercado de trabalho. (...) a insegurança diz respeito

também às condições de trabalho, sobretudo em relação ao

rebaixamento salarial, devido ao uso recorrente do mecanismo da

rotatividade como expediente de redução de custos pelas empresas; à

Page 287: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

287

formação profissional, pois pode representar a interdição da

aprendizagem e da experiência no exercício de certas ocupações. Do

lado empresarial, a literatura da área de Recursos Humanos é enfática

ao apontar os custos decorrentes do processo de seleção e de

treinamento e de avaliação do admitido contratado para substituir o

desligado; a perda de “capital intelectual”; os problemas decorrentes da

“aculturação” do novo trabalhador, de forma mais ampla; a influência

da rotatividade sobre a “saúde organizacional”, com impactos negativos

sobre a produtividade e a lucratividade das empresas” (Dieese, 2011:

11-12).

A taxa, no entanto, reflete mais as estratégias do que necessariamente

contingências dos agentes de mercado, quando se verifica, por exemplo, que a

rotatividade é extremamente concentrada em um pequeno grupo de empresas:

“(...) constata-se que pouco menos de 2/3 dos desligamentos anuais

foram realizados por cerca de 6% do total dos estabelecimentos, que

demitiram trabalhadores durante esses exercícios [2007-2009] da

RAIS, o que evidencia o grande número de demissões ocorrido nessas

empresas e, como consequência, a forte influência de um pequeno

grupo de estabelecimentos sobre a rotatividade anual. A forte

concentração dos desligamentos em um pequeno grupo de

estabelecimentos fica ainda mais evidente se considerarmos que eles

representam aproximadamente 3,5% do total dos que prestaram

informações à RAIS, diante de aproximadamente 5,5% daqueles que

praticaram algum desligamento” (id. ib.: 16).

Quando se observa por setores, os que apresentam maior rotatividade são

justamente aqueles em que se situa grande parte da circulação do grupo de trabalhadores

que analisei, normalmente considerados “estruturalmente rotativos”: construção civil e

agricultura. Porém, como pesquisadores especialistas frisaram, ambos os setores vêm

sendo profundamente transformados nas últimas décadas e a rotatividade adotada se trata

de uma estratégia empresarial aprimorada ao longo dos anos, em especial após processos

de reestruturação produtiva, concentração e centralização do capital.

Para Alain Morice (1992, apud Costa, 2010), a elevada rotatividade na construção

constitui uma política do setor, a qual permite às empresas adaptarem o quadro de mão-

de-obra à instabilidade do mercado e à sucessão das etapas construtivas. A elevada

rotatividade possibilita ainda, segundo Morice, uma redução de gastos trabalhistas e

Page 288: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

288

previdenciários, associados à permanência do trabalhador na empresa368. Na

agroindústria brasileira, seria uma estratégia diretamente relacionada a aumentos

extremos da intensidade do trabalho, como analisou Guanais (2016). A modernização,

formalização e fiscalização dos contratos legalizaram a prática:

“O avanço no processo de modernização do setor sucroalcooleiro

trouxe consigo a insegurança na própria ocupação pelos trabalhadores.

Essa modalidade de insegurança ocupacional encontra-se diretamente

relacionada à elevação da rotatividade no conjunto dos empregados

formais. Em conformidade com as informações disponibilizadas pelo

Ministério do Trabalho e Emprego, torna-se possível constatar que 60%

dos empregados formais foram demitidos em 2005 no setor

sucroalcooleiro. Essa taxa de substituição de mão de obra situa-se muito

acima da taxa de rotatividade do emprego formal do país (43%) (...)

Simultaneamente, a rotatividade nas ocupações favorece o achatamento

salarial, com substituição dos trabalhadores de mais alta remuneração

pelos de salário inferior” (Pochmann, 2009: 136-137).

A taxa de rotatividade no mercado formal na construção civil em 2011 foi de 86%

e no setor agrícola foi 74% (id.ib.: 14)369. Sobre a construção civil – um setor que sempre

foi tido como sinônimo de atraso e que atualmente emprega estratégias de referência para

os demais – é importante notar uma dinâmica que bem representa o movimento recente

do mercado de trabalho brasileiro370. Na última década, o setor combinou um processo

de formalização com altas taxas de rotatividade e baixos salários. A expansão dos

empregos no setor privado com carteira assinada (característica dos anos 2000) foi

principalmente entre aqueles que receberam em média 1 mil reais e que ficaram

contratados por menos de 1 ano (id., 2011b; ver gráfico abaixo).

368 Para tanto, é praxe combinar estratégias legais e ilegais de contratação/demissão. Um exemplo disso é a

prática comum de rescindir os contratos de trabalho com 11 meses, de forma a evitar as homologações no

Sindicato da categoria, mesmo quando os trabalhadores continuam trabalhando informalmente (Costa,

2010). 369 Descontadas as demissões voluntárias, desligamentos por mortes e aposentadorias e

transferências/mudança contratual. 370 A construção civil hoje seria o melhor modelo da supercirculação e da superexploração do trabalho:

terceirizações e subcontratações até a base da contratação do serviço de um ou dois indivíduos, sócios de

uma microempresa; rotatividade de acordo com o término da obra, contratações para cada empreitada e

demissões em seguida, alternando períodos formalizados e informais; remuneração por semana, dia, hora,

tarefa; intensificação e prolongamento das jornadas com as remunerações flexíveis; baixos salários.

Page 289: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

289

Gráfico 20: rendimento médio na construção civil por tempo de emprego (Dieese,

2011b: 5)

A mesma prática pode ser observada também em outros setores que não

considerados “estruturalmente rotativos”, como agricultura e construção civil. É o caso,

por exemplo, do telemarketing, dos supermercados, das grandes redes varejistas e dos

terceirizados em geral, seja na agricultura, na indústria ou nos serviços.

Pesquisando em empresas de telemarketing, que se caracterizam pela força de

trabalho predominantemente feminina, Nogueira (2011: 105) afirma que “As mulheres,

mesmo tendo as tarefas domésticas sob sua responsabilidade, buscam a sua inserção no

espaço produtivo em boa parte para compensar o desemprego masculino”. Ou seja, o

emprego de um garante o tempo de circulação do outro e vice-versa371. Sabendo das

péssimas condições de trabalho, da intensificação a que estarão expostas(os), baixos

salários, etc, a entrada na empresa se dá por falta de outras oportunidades de emprego e,

em seguida, estar em uma das “listas de demissão” é desejado. Não raro, as gerências

371 Como frisei, acelerar e amplificar a circulação da força de trabalho significa a adoção de estratégias de

rebaixamento de salários associada à seleção de trabalhadores com base em critérios de idade, gênero, sexo,

raça, etnia, nacionalidade, etc. Vale acompanhar a análise que Venco (2006) realiza dos trabalhadores do

telemarketing ao responder às perguntas que equivalem a alguns subtítulos da sua tese como “Por que

mulheres?” e “Por que homossexuais?” e os vários depoimentos de empresários do setor em que se explicita

os critérios para a seleção dos contratados, como o de que devem ser os mais pobres para “suportar a

pressão” das metas. Os recrutados pelo telemarketing são geralmente jovens que estudam ou visam estudar

em universidades pagas e que não têm perspectiva de continuar no setor. O caráter passageiro aqui implica

sujeição à intensificação extrema e aos baixos salários.

Page 290: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

290

podem simplesmente adiar, assediar e ameaçar demitir por justa causa, forçando

demissões formalmente voluntárias. Outros negociariam o alcance e superação de metas

mais do que extraordinárias com as chefias para serem nomeados nas próximas listas

(Venco, 2006: 74-78).

Para as caixas de supermercados, outro exemplo, os gerentes de Recursos

Humanos teriam como critérios de seleção a ausência de experiência anterior e o

recrutamento de mulheres jovens, entre 18 e 26 anos, de preferência sem filhos e que não

sejam casadas (Soares, 1997)372. Estas são consideradas mais adequadas para as

intensificadas e flexíveis jornadas de trabalho, muitas vezes prolongadas com horas extra,

sem problemas de saúde. Ao não apresentar mais essas condições, elas são em geral

substituídas.

Fruto desses processos, na década de 2000, em que houve crescimento econômico,

a aceleração da circulação da força de trabalho proporcionou um curioso processo de

rebaixamento dos salários. Se por um lado houve aumento do salário mínimo real, fixo

por lei, por outro, os salários foram em grande parte reduzidos a esse mínimo, tal como

se nota na razão estabelecida entre o salário médio real de admissão e o salário mínimo

real (gráfico abaixo). Já em relação aos rendimentos médios reais dos trabalhadores

ocupados ocorreu o seguinte movimento entre 2004 e 2012: “(...) em 2004 o salário dos

empregados com carteira assinada e dos empregados sem carteira assinada registrou uma

queda de 8,8% cada, comparado a 2002. Para os trabalhadores por conta própria, a queda

foi maior, de aproximadamente 20,0%. Da análise de todo o período de 2002 a 2012,

nota-se, contudo, que todas as categorias elencadas tiveram elevação dos ganhos reais,

mas os trabalhadores por conta própria foram os que obtiveram maior evolução nos

rendimentos (cerca de 15,0%). Os empregados com carteira assinada, por sua vez, foram

os que menos tiveram aumento de rendimento (5,6%)” (Chahad; Pozzo, 2013: 21).

372 A pesquisa de Soares (1997), que também se refere às operadoras de caixas de supermercado no Quebec,

encontrou dados que lhe permitiram afirmar que essas trabalhadoras, por falta de oportunidade e por

necessidade, se mantinham trabalhando na função. Isso, no entanto, não significa menor circulação da força

de trabalho no setor: é de pleno conhecimento que a taxa de rotatividade nos supermercados é uma das mais

altas do país, em média mais de 50%.

Page 291: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

291

Gráfico 21: razão entre salário real médio de admissão e salário mínimo real. Brasil:

2002-2012 (Fonte: Pozzo e Chahad, 2013: 24)

Um Relatório do MTE, a partir de dados de 2000 a 2009, por exemplo, também

concluiu: “A remuneração média das admissões é inferior à remuneração média dos

desligamentos, com algumas variações setoriais” e “Um grande contingente de

trabalhadores tem participação intermitente no mercado de trabalho formal, variando

entre a condição de desligados e admitidos durante anos seguidos”373.

Sendo assim, considerando as vagas criadas na economia como um todo, trocar

de emprego nos anos 2000 significou circular em ocupações com salário base, ou seja, ao

redor do salário mínimo nacional. Dos 2,1 milhões de vagas abertas anualmente no

mercado formal, em média 2 milhões encontram-se na faixa de até 1,5 salário mínimo

mensal. Como afirma Pochmann (2012), em relação ao trabalho, houve um alargamento

da base da pirâmide social, com formalização de postos com salário de base

principalmente no setor terciário (assim como construção civil e indústria extrativa),

ocupados em sua maioria proporcional por não brancos e mulheres.

Ao menos até a chegada dos efeitos da crise, em 2009, essa foi a tônica da

economia com baixas taxas de desemprego ou, como alguns entusiastas chamaram, de

“pleno emprego”. Após a crise, o aumento do índice de desemprego não diminuiu o de

rotatividade que, pelo contrário, depois de uma mudança repentina no auge do impacto,

373 MTE. “Movimentação contratual no mercado de trabalho formal e rotatividade no Brasil”. In:

http://portal.mte.gov.br/data/files/FF8080812D0A02C0012D0A2802AB3852/relatorio_anual2007.pdf

Page 292: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

292

retomou os mesmos índices e manteve a tendência de crescimento das últimas décadas

(Pochmann, 2009; Dieese, 2014)374.

O caso da indústria de mineração tratado especificamente nos capítulos anteriores

expressa bem esse movimento. Vinculada principalmente ao mercado chinês, a expansão

da indústria da mineração no Pará foi afetada, mas não interrompida, como o atesta o

investimento no maior projeto de expansão já feito desde a instalação de Carajás, o S11D

e a duplicação da Estrada de Ferro Carajás. Houve, no entanto, como exposto no caso da

paralisação do beneficiamento do níquel em Ourilândia do Norte, mudanças estratégicas

e readequações produtivas das empresas, priorizando a extração de um ou outro mineral

frente aos preços de mercado, concorrência com outras transnacionais, etc. Diante da

queda do preço do minério de ferro, a Vale tem aumentado vertiginosamente a produção

e a exportação para manter a margem de lucro da empresa. Assim, a produção, ao invés

de diminuir, tem crescido, principalmente a partir da intensificação do trabalho nas minas

que já estão em atividade no Sistema Norte, no Pará. Como frisei no segundo capítulo, a

natureza da indústria extrativa permite regimes próprios de superexploração do trabalho,

dada a exploração de recursos naturais. Por outro lado, a forma como ocorre essa

expansão, no entanto, como também abordei, acompanhando a imensa maioria composta

pela “infantaria ligeira” de terceirizados e pelos cada vez mais “rotativos” trabalhadores

diretos, não significa postos de trabalho diferentes dos que já foram abertos até o

momento. Sendo assim, o fim do “superciclo das commodities” significou

recrudescimento do regime de superexploração do trabalho para manter as margens de

lucro da empresa e, com isso, também a manutenção dos projetos de expansão por meio

do recrutamento de força de trabalho de altíssima circulação375.

374 Já nos anos 1980 e 1990, décadas de crescimento das taxas de desemprego, observava-se o seguinte

movimento do mercado de trabalho formal em meio a crises e expansões conjunturais: “Em períodos de

forte aumento da produção e do emprego, eleva-se a proporção de empregados com pouco tempo no

serviço. Em épocas de intensa redução da produção e do emprego, diminui a necessidade de contratação de

novos empregados e os que tinham conseguido estabilizar o vínculo com a empresa podem perder o

emprego” (Baltar, 1994: 101-2). 375 A partir da crise, a queda dos preços deu início a seguidos recordes de produção: “O preço atual do

minério de ferro é o menor desde 2009 e neste ano, na China, principal consumidora, caiu pela metade.

Além disso, há excedente acumulado ao redor do mundo. Mesmo assim, a Vale decidiu não parar de bater

recordes de produção. Em 2014 produziu quase 320 milhões de toneladas, 6,5% a mais do que em 2013,

ultrapassando a sua meta de extração, que era de 4%. Para este ano sua previsão é de crescer para 340

milhões de toneladas de minério de ferro” (“Estratégia da Vale: a exaustão”. Lucio Flavio Pinto,

28/02/2015, in: https://valeqvale.wordpress.com/2015/02/28/estrategia-da-vale-a-exaustao/). Em Carajás e

no Sistema Norte da CVRD (atual Vale), apesar da Constituição Federal ter instituído em 1988 um limite

de 6 horas diárias, por se tratar de turnos ininterruptos (operação durante 24 horas), esse limite só teria

vigorado entre 1990 e 1992. Os acordos e convenções coletivas desde então aumentaram a jornada mínima

para 8 horas diárias e 44 semanais. O texto de uma Ação Civil Pública do Ministério Público do Trabalho

Page 293: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

293

Nesse caso, o prolongamento da jornada (normalmente, além dos limites legais) e

a intensificação do trabalho são procedimentos comuns entre os trabalhadores, que,

habitualmente, percebem o pagamento sempre junto com as horas extras e/ou com a

remuneração por produção. O “salário” já é considerado pelos trabalhadores com a carga

horária ampliada e com o ritmo acentuado ao máximo no momento em que é contratado,

desde o início. O salário base é baixo a ponto de, com esses artifícios, na maioria das

vezes chegar a ser “dobrado”. O trabalhador não tem alternativa a não ser cumprir esse

regime de trabalho e naturaliza o “salário” de um determinado trabalho dentro desse

regime; é esse valor final que ele leva em consideração ao ser contratado. Assim, o regime

de baixos salários é sempre atrelado a jornadas de trabalho prolongadas e intensificadas.

Como o “salário” final é variável, são recorrentes também as mais variadas burlas: não

pagamento de horas extras, contagem errada da produção, etc. No caso cada vez mais

frequente do condicionamento do pagamento de metas/produção à qualificação do serviço

prestado, ou do trabalho concluído, há sempre o risco de não ter contabilizado o trabalho

no pagamento. Há que se levar em conta ainda que, no caso desses trabalhadores a regra

parece ser não o respeito à legislação trabalhista, mas o desrespeito sistemático e

calculado mesmo do que é previsto em lei, já que, no caso daqueles que tiverem condições

de questionar, o desenlace judicial pós-demissão e a judicialização dos conflitos em geral

interessam às empresas.

Contudo, os períodos de maior crescimento econômico no Brasil foram

exatamente os períodos em que a chamada rotatividade aumentou, tal como demonstra a

literatura que pesquisa o tema praticamente desde que se começou a escrever sobre isso,

após o fim da estabilidade decenal, em 1966 (Dieese, 2011). Dentre outras condições

históricas, foi um dos fatores que propiciou uma expansão econômica que não alterou a

estrutura fundamental de uma economia de baixos salários, mesmo ao longo da transição

de uma sociedade agrário-exportadora para uma predominantemente urbana no século

XX.

O período compreendido entre 1956 e 1974, especificamente, em que houve um

significativo aumento do número de trabalhadores empregados – em particular dos que

recebiam até um salário mínimo –, foi o que, inclusive, houve decrescimento do salário.

Para isso acontecer, como analisou Marini (1978), uma medida foi fundamental: a criação

do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço em 1966, já que, segundo ele, “al promover

ajuizada contra a Vale e terceirizadas em 2009 indicou que o trabalhador em Parauapebas/PA (minas de

Carajás), por exemplo, ficaria cerca de 13 horas diárias à disposição das empresas.

Page 294: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

294

la rotatividad de la mano de obra, el FGTS expande el ejército industrial de reserva bajo

su forma flotante y actúa directamente sobre el nivel salarial”376. Assim, sob intensificada

rotatividade, a incorporação de força de trabalho no “milagre econômico” de 1968-1973

ocorreu com redução de salários reais (Marini, 1977).

A pesquisa de Rainho sobre “os peões do Grande ABC”, por exemplo, realizada

no final dos anos 1970, destacava um item inteiro à “falta de estabilidade no emprego”

(Rainho, 1980: 247-253). Nele, analisava principalmente a rotatividade a que estavam

sujeitos os operários sem especialização e semiespecializados, em um contexto de

balanço dos cerca de dez primeiros anos de instituição do FGTS e do fim do estatuto da

estabilidade. Segundo Rainho, os trabalhadores viviam sob o “fantasma da justa causa”,

ameaçados por demissões que não permitissem o acesso a um “complemento quase

indispensável” à sua baixa renda. Da mesma forma que outros autores, também

constatava que “(...) com o FGTS, as empresas passaram a demitir permanentemente um

razoável número de empregados (especialmente no mês anterior à época dos aumentos

salariais), contratando, para as vagas, outros por salários inferiores e, com isso,

provocando constante rotatividade de mão-de-obra. Acresce a circunstância de que as

portas das fábricas estão sempre cheias de operários sem especialização ou mesmo semi-

especializados necessitando de emprego e, por isso, dispostos a se sujeitarem a qualquer

condição de trabalho” (Rainho, 1980: 248). Ainda no contexto da “grande migração”

brasileira, seriam recrutados tanto “migrantes recém-chegados” à São Paulo, quanto

outros cuja trajetória foi assim descrita por Rainho:

“Do momento de sua chegada a são Paulo até o ingresso na indústria

automobilística, cumprem um percurso cujos pontos fundamentais vale

a pena aqui relembrar: a) após a chegada, ingressam especialmente na

construção civil, como serventes de pedreiros ou ajudantes em

pequenas empresas; b) esse período permite-lhes adquirir aprendizado,

prática e experiência em certas atividades até mesmo semi-

especializadas, o que é mais fácil em pequenas do que nas grandes

empresas. Nesta fase, os documentos também são “preparados” à

medida que vão passando de empresa em empresa; c) trata-se de uma

fase em suas vidas que se caracteriza por um grande nomadismo de

376 Segundo Marini (1978), por exemplo, com o FGTS, foi possível que as empresas dispensassem os

trabalhadores na véspera das demissões coletivas e os readmitissem depois, ou contratassem novos, por

salários mais baixos que os estabelecidos no acordo salarial. Além disso, as indenizações por tempo de

serviço que os trabalhadores passaram a receber no regime do FGTS eram menores do que as que recebiam

pelo mesmo tempo no regime anterior. A rotatividade propiciada pelo novo regime também influiu,

indiretamente, no nível salarial, pois desorganizou os trabalhadores, privilegiando os novos em detrimento

dos mais antigos, cuja taxa de sindicalização era maior.

Page 295: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

295

empregos. Passam por muitos, geralmente diferentes uns dos outros,

ficando nos mesmos por curtos períodos. Sentem-se predispostos a

mudar frequentemente de firma. Os problemas mais comuns são os do

baixo salário, desentendimento com chefias e mormente o período de

experiência, que os leva a serem dispensados com frequência. A

dispensa traz-lhes preocupações com relação à manutenção da família,

mas não os desanima com relação à procura de outro serviço. Isso faz

parte da vida de muitos, e alguns mudam de emprego até mesmo pelo

motivo de permanência de dois ou três anos numa empresa. Após certo

período, passam a sentir uma espécie de “saturação” e aí a presença

torna-se-lhes insuportável. Querem sair, “só para mudar de ambiente”.

Dizem que sabem que “tudo continuará do mesmo jeito, mas mesmo

assim querem mudar”. No espaço entre os empregos, costumam ficar

alguns meses desempregados. Aí, vivem com o dinheiro do Fundo de

Garantia, biscates e ajuda de parentes ou amigos. Ao conseguirem um

novo emprego, submetem-se, frequentemente, ao rebaixamento do

salário em carteira, o que contribui para a desvalorização da oferta da

mão-de-obra, constituindo-se, ainda, infração a dispositivos da

legislação vigente” (Rainho, 1980: 250-251).

Uma circulação inter-setorial, formal-informal e de amplas distâncias pode ser

considerada uma característica relativamente frequente de uma fração não especializada

de trabalhadores no Brasil nesse processo histórico. Algumas vinculações, porém, como

era o caso da indústria, representavam maior tempo no emprego (ou mesmo estratégias

de imobilização da força de trabalho pela moradia, tal como foi detalhadamente

observado nas pesquisas dos anos 1970 e 1980 de J. S. Leite Lopes e de R. Alvim, por

exemplo). O percurso relatado por um trabalhador de 53 anos da construção civil de São

Carlos/SP, que circulou entre os anos 1971 e 2007, seria representativo dessas trajetórias

de circulação:

“Comecei com 17 anos. Trabalhava como tratorista em Minas em

plantação, tinha registro. Fiquei três anos. Era plantação de arroz.

Fiquei desempregado, aí trabalhei de servente lá em Minas, fiquei mais

ou menos um ano, sem contrato de trabalho. Aí voltei para a lavoura

para o plantio de arroz, fiquei pouco tempo porque começou a faltar

emprego. Fui para Campinas e comecei a trabalhar na ferrovia. Na

ferrovia eu trabalhava como cozinheiro, fiquei mais de oito anos. Era

registrado. A ferrovia começou a falir, fui demitido. Depois saí de lá e

fui trabalhar com pré-moldado em Minas. Aí não tinha emprego vim

pra Abaeté trabalhar como pedreiro, depois consegui um emprego com

pré-moldado na prefeitura. Na prefeitura fiquei um ano, terceirizaram a

firma, foi todo mundo para o olho da rua. Fui trabalhar na usina, fiquei

pouco tempo cortando cana, aí eles me achavam velho e tive que ir pra

Page 296: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

296

Campinas trabalhar na construção. [Na construção civil, Matheus

explica que:] Eu tinha carteira, foi meu único emprego registrado na

construção, mas fui demitido quando acabou a obra. Tentei voltar para

a cana, mas não me quiseram, tentei o pré-moldado não deu certo. Fui

ser pedreiro, por conta própria, porque não achei emprego em

construtora. Não conseguia clientes. Voltei para Minas, trabalhei em

firma de limpeza, mas ela não durou muito tempo. Em Minas eu

trabalhei de novo na construção, quando fiquei desempregado. Voltei

para Abaeté, trabalhei como encarregado de pré-moldado aí parei uns

tempos e vim pra cá trabalhar na CBT (Companhia Brasileira de

Tratores), antiga fábrica de motores. Trabalhei oito anos lá, de uma hora

pra outra meu trabalho não prestava mais. Aí voltei para construção.

(Matheus, pedreiro).” (Cockell, 2008: 83).

Neste sentido, alguns pesquisadores do mercado de trabalho brasileiro nos anos

1990 notavam a discrepância entre os altos índices de rotatividade das frações não

especializadas e menos escolarizadas da classe trabalhadora frente a frações

especializadas e escolarizadas, propondo, dentre outras medidas, o aumento do nível de

instrução377. Entretanto, dado o processo de supercirculação, foi possível notar que a

chamada rotatividade aumentou principalmente nas faixas que englobam os trabalhadores

mais escolarizados (considerando que os menos escolarizados se mantêm em níveis altos

de circulação), sendo difundida cada vez mais amplamente no mercado formal (gráfico

abaixo). Os postos de trabalho que antes seriam mais estáveis também se tornaram mais

circulatórios e os métodos de seleção que antes caracterizavam essas frações, com a

tendência de aumento da escolaridade, também estariam sendo utilizados para

trabalhadores mais escolarizados ou especializados.

377 A partir de dados da RAIS de 1987-1988 do estado de São Paulo, por exemplo, notava-se: “(...)

destacando os extremos, somente 4 de cada 10 empregados que não completaram a 4a série do 1o grau e

têm menos de 1 ano no serviço conseguem estar no mesmo emprego um ano depois, enquanto a proporção

é de 3 a cada 4, no caso dos empregados que tem o curso superior completo. (...) Em resumo, a probabilidade

do empregado permanecer no emprego é maior nos postos de trabalho que exigem maior nível de instrução,

notadamente se exigir ao menos o 2o grau completo. A diferença de chance de permanecer no emprego

conforme o nível de instrução é particularmente grande logo após a contratação e tende a diminuir à medida

que o empregado passa pelo período de prova e começa a acumular tempo de serviço. Não obstante, a

grande diferença de chance de perder o emprego com pouco tempo de serviço torna muito diferente, por

nível de instrução, as distribuições dos empregados por tempo de serviço, notadamente entre os que

conseguem ou não completar o 2o grau e ter ou não um título de curso de nível superior. (Baltar, 1994:

105-6)

Page 297: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

297

Gráfico 22: rotatividade segundo faixas de escolaridade entre 2003-2013 (Dieese,

2014: 7)

O processo de reestruturação produtiva, nesse sentido, expulsou antigas gerações

de trabalhadores para circuitos de altíssima circulação da força de trabalho e recrutou

novas gerações mais especializadas e escolarizadas sob um regime de maior circulação

também. Não raro, nas últimas décadas, antigos “estáveis” das indústrias do estado de

São Paulo, por exemplo, teriam sido expulsos para a construção civil, setor em que

predominam contratos informais, como o “contrato de boca”, jornadas prolongadas e

intensificadas por meio de remunerações “por hora, por semana, por empreitada ou por

tarefa”, como no caso do ex-metalúrgico que deu esse depoimento:

“Acho que ninguém se sente estável! Hoje em dia, principalmente.

Antes, tínhamos a sensação que se perdesse um emprego achava outro

rapidamente. Também tinha os direitos, então sabia que podia pegar

FGTS. Não me sinto estável. A instabilidade não vem só do lugar que

você está, e sim da condição social que está no Brasil, econômica. De

repente, você está seguro em determinada firma e esta firma vai embora,

vai embora, e aí? Acho que é isso aí é difícil. Por isso que eu te falo: a

gente tem que sempre aprender, procurar sempre fazer o que gosta,

estudar. É importante estar sempre se reciclando. Olha meu caso: a

Climax foi vendida, e, mesmo com curso superior, eu fui mandado

Page 298: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

298

embora. Custo, né? Na construção, eu não tenho estabilidade nenhuma.

A minha estabilidade é a mulher. Ela é funcionária pública, isso sim, é

garantido. Então, diminui o desespero, tenho tempo para arrumar outro

serviço cada vez que acabo um. (Moisés, acabamento final).” (Cockell

e Perticarrari, 2010: 647)

No caso das novas unidades já fundadas sob o “novo regime”, o emprego das

estratégias de rotação foi adotado desde o início e, dado o processo mais amplo,

aprimorado e estendido a fim de compreender todo o quadro funcional. Sendo assim, além

dos fatores que citei, a supercirculação e a superexploração do trabalho potencializariam

o processo de adoecimento tanto como causa (demissão por adoecimento, aposentadoria

por adoecimento), mas também como decorrência específica dessa supercirculação

(desgastes físico e psicológico do desemprego eventual e constante, do empobrecimento,

do risco de demissão e dos assédios ao longo do tempo em que se está empregado, ou em

recrutamento, ou em demissão).

Cruz Neto e Pinassi (2012) enfatizaram alguns dados das associações de ex-

trabalhadores diretos da Vale, por vezes considerados privilegiados frente aos

terceirizados, por exemplo:

“Es importante señalar que muchos de los trabajadores que tienen la

“suerte” de obtener trabajo en Vale con contrato, vivienda, escuela y

educación, acaban por contraer graves enfermedades como cáncer,

depresión y lesiones serias e irreparables, sobre todo en la columna—

causadas por el esfuerzo y el contacto con sustancias químicas, tóxicas

y radioactivas. Dada la cantidad de trabajadores que se enferman —son

más de cien los lesionados y abandonados a su propia suerte en

Carajás— se presenta una gran rotación de personal. Según información

del grupo Lesionados de la Vale y de la Asociación de Trabajadores

Enfermos del Sudeste del Pará, la compañía viene expulsando

sumariamente a los trabajadores lesionados y suprimiendo todos los

beneficios ofrecidos al momento de la contratación.” (Cruz Neto;

Pinassi, 2012).

Embora mais raros (ou menos conhecidos, dada as provas jurídicas que se requer

de um vitimado nesses casos), também tive conhecimento de pelo menos uma demissão

por adoecimento entre trabalhadores diretos da Vale, recrutados para a mina de Ourilândia

do Norte através de uma Reclamação Trabalhista com pedido de indenização por danos

morais e materiais na Vara do Trabalho de Xinguara/PA em janeiro de 2011:

Page 299: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

299

“O reclamante foi contratado pela reclamada em 09.04.2008 para

exercer a função de caldeireiro, mediante pagamento de salário base no

valor de R$ 934,56 mensais, reajustado em 01.10.08 para R$ 1.016,40.

Além do salário base o reclamante recebia ainda “Adicional Ourilândia

do Norte” calculado em percentagem de 25% sobre o salário base. O

reclamante foi injustamente dispensado em 24.04.09, com pagamento

de aviso indenizado. O aviso prévio não foi projetado no tempo de

serviço para efeito de baixa na CTPS. De acordo com o Perfil

Profissiográfico Previdenciário do reclamante, as atividades a executar

perante a reclamada seriam as seguintes: “confecção, reparação e

instalação de peças e elementos diversos em chapas de metal como aço,

ferro galvanizado, cobre, estanho, latão, alumínio e zinco; fabricação

ou reparação de caldeiras, tanques, reservatórios e outros recipientes de

chapas de aço; recorte, modelagem e trabalho com barras perfiladas de

materiais ferrosos e não ferrosos para fabricar esquadrias, portas,

grades, vitrais e peças similares”. A despeito das atribuições constantes

da profissiografia do reclamante, ele executava tarefas que mais se

assemelhavam à de oficial de serviços gerais/encanador que de

caldeireiro: transportava peso diariamente (ferramentas, tubos, canos,

etc.); alguns dos materiais que tinha que deslocar pesava desde 45/50

kg até média de 180 kg, sendo os mais elevados geralmente

transportados por dois trabalhadores; habitualmente apenas pesos

superiores a este eram transportados mecanicamente. Observe-se que a

tração manual de materiais pesados não se encontra descrita no PPP

como uma das atividades ligadas à função do reclamante. O reclamante

nasceu em 03.03.1984 e foi contratado sem nenhum problema de saúde,

porém em março de 2009 passou a apresentar dores no abdômen, mais

especificamente sobre o local de cirurgia de apendicite realizada

quando tinha 07 anos de idade, dores estas que se manifestaram pela

primeira vez quando levantava tubo para transporte manual. A partir daí

passou a sentir dores fortíssimas sempre que realizava/realiza qualquer

esforço físico. Em consulta realizada pela médica da empresa, em

março/09, atestou-se hérnia incisional e recomendou-se afastamento de

função que exigisse esforço físico. O atestado e laudos médicos foram

entregues à reclamada para providenciar cópias, porém tais documentos

não mais foram devolvidos ao reclamante. A despeito da recomendação

médica, o reclamante continuou a exercer a função e a realizar esforços

físicos, por determinação da reclamada. O laudo médico e o laudo de

ultrassonografia anexos também atestam o problema, havendo inclusive

recomendação de cirurgia para a correção do problema (retirada da

hérnia e colocação de tela de proteção), que o reclamante deixou de

realizar por não possuir condições materiais para tanto, sobretudo após

a dispensa pela reclamada, o que retirou-lhe o acesso ao plano de

saúde.” (grifos do autor. Ação Trabalhista contra a Vale S/A., Tucumã,

31/01/2011. Arquivo digital de Escritório de Advocacia).

Page 300: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

300

Este mesmo trabalhador, uma vez demitido, também denunciou assédio e buscava

indenização por danos morais em outra Ação Trabalhista:

“(...) Por volta de agosto de 2008 o reclamante passou a sentir dores

constantes na coluna cervical devido a uma hérnia de disco, conforme

laudos anexos. Por conta das dores, adquiriu o hábito de movimentar

constantemente o pescoço na tentativa de aliviá-las. Em conseqüência,

por volta de janeiro/09, passou a ser vítima de chacotas de um de seus

superiores hierárquicos, o supervisor de mina, senhor (...), que o imitava

gestualmente e o chamava de “BICHINHA”, “GAY” e “VEADO”.

Tudo isso ocorria na presença dos colegas de trabalho, sobretudo no

refeitório, por ocasião das refeições. Apesar de o reclamante ter

solicitado inúmeras vezes que parasse com as gozações, continuava a

promover as piadas de mau gosto. A situação durou cerca de 01 ano,

até quando o reclamante procurou o gerente geral para que intercedesse

no sentido de fazer cessar o constrangimento. Lamentavelmente, a

situação descrita acima não foi a única em que experimentou

sentimento de vergonha, raiva, tristeza e humilhação enquanto laborou

para a reclamada. (...) Tudo isso foi testemunhado e filmado, pois a

reclamada mantém câmeras de vigilância na sala.” (grifos do autor.

Ação Trabalhista na Vara do Trabalho de Xinguara contra a Vale S/A.,

Tucumã, 29/08/2011. Arquivo digital de Escritório de Advocacia).

Entre os terceirizados, cujos nexos médicos causais seriam ainda mais

remotamente comprováveis, como frisei nos capítulos anteriores, em geral o trabalhador

sequer buscava reparações judiciais para as doenças adquiridas ao longo da circulação

firma-firma, diárias-firma, firma-diárias-firma, etc.

Page 301: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

301

MAIS MERCADO! O IMPÉRIO DAS COISAS

Considerações finais

Meados do século XX, Karl Polanyi previa uma diminuição do papel do mercado

na economia, frente ao turning point que o século XIX representou na história mundial:

“In our century, with the lapse of the gold standard, a recession of the

world roles of markets from their nineteenth century peak set in – a turn

of the trend which, incidentally, takes us back to our starting point,

namely, the increasing inadequacy of limited marketing definitions for

the purposes of the social scientist’s study of the economic field”

(Polanyi, 1957: 256).

Hoje, difícil crer que poderíamos menosprezar o poder do mercado nas mais

variadas dimensões da vida social em qualquer parte do mundo. Ao contrário da previsão

de Polanyi, a discussão se volta para compreender se há limites para uma mercadorização

nunca antes vista de quase todos os meios de vida. Para praticamente tudo se apresenta

uma “solução de mercado” (ou, do excelente eufemismo que melhor anima a “coisa”

como classe, “do mercado”). Para Burawoy, Polanyi não teria levado a lógica do

capitalismo a sério378. No que se refere à questão da “força de trabalho” atualmente,

acrescentaria outras notas.

As estratégias de mercado para o trabalho tornado mercadoria só são devidamente

compreendidas a partir das contradições internas do próprio modo de produção

capitalista, mantendo a relação entre a força de trabalho e as demais mercadorias e,

portanto, recusando completamente as “limitadas definições de mercado” para a

compreensão sociológica do próprio mercado e, enfim, da economia. É nisso que nos

auxilia a teoria do valor trabalho e que permite um “retorno à Marx” enquanto se insistir

em “soluções de mercado” para o que quer que seja. Trata-se, nesse sentido, de reinserir

378 “The reason for Polanyi’s false optimism lies in his failure to take the logic of capitalism seriously.

While he embraces Marx’s early writings on alienation, he rejects Marx’s theory of history, whether

understood as a succession of modes of production, the self-destroying dynamics of capitalist competition,

or the intensification of class struggle. But in rejecting the idea of laws of history, Polanyi also jettisons the

logic of capital, in particular its recurrent deployment of market fundamentalism as a strategy for

overcoming its internal contradictions” (Burawoy, 2013: 38).

Page 302: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

302

as contradições sociais nas “leis do mercado”, que foi, afinal, a principal descoberta de

Marx ao longo da sua crítica da economia política379.

A capacidade ou força de trabalho, tal como qualquer mercadoria, não tem

essência; objetivamente, cristaliza trabalho abstrato. A sua “substância” é social, própria

de relações sociais historicamente constituídas. Não é o cérebro, as mãos, os músculos ou

os nervos em si que tornam a força de trabalho mercadoria, é o seu uso ou, como propunha

Marx, seu valor de uso, sua “utilidade” para outrem, no caso, para o capitalista (e os usos

do corpo, como se sabe, são sociais); seu valor não se confunde com as propriedades

naturais, físicas e químicas, da mercadoria, do corpo humano380. Não são os homens e

mulheres que são comprados, nem o trabalho.

A recusa por completo das definições de mercado para a devida compreensão da

mercadoria é condição primeira para a recusa dos mais variados economicismos, seja em

suas variantes ideológicas (animismos mercadológicos modernos e pós-modernos), seja

em suas variantes metodológicas (análises baseadas no “mercado” ou “economia” x

“sociedade”; como entidades distintas, ou, pior, como instituições distintas), que chegam

ao curioso resultado teórico da sociedade sem divisão de classes, da “economia” sem

relação social e do fato “econômico puro” 381. Não por acaso, portanto, teorias

essencialistas da mercadoria foram e permanecem sendo historicamente a mais poderosa

expressão das filosofias de dominação de classe e de negação da ação política.

379 Uma obliteração deliberada de Polanyi (e que se reflete, por exemplo, no emprego de uma teoria

subjetiva marginalista do valor por ele e por sua corrente de entusiastas), como ele mesmo teria

sistematizado: “Polanyi himself expressed the point concisely by contrasting Marx’s account of the role of

economy in society, ‘an exploitation theorem – class war’, with his own, ‘a market theorem – no class war’”

(Rotstein, 1957, apud Dale, 2010). 380 O fato de que o corpo emite significados e que, portanto, portamos, adquirimos, transmitimos ou

incorporamos sinais através do corpo não altera essa questão. Na medida em que esses sinais são mais ou

menos empregados na compra e venda da força de trabalho, isto é, na medida em que têm “utilidade para

outrem”, mesmo simbolicamente, eles também estão necessariamente atrelados a essa “substância” da

mercadoria força de trabalho, comprada e vendida, trocada. Integram mecanismos cruéis empregados desde

sempre na concorrência capitalista, tal como se observa claramente, por exemplo, no nosso caso, em

estratégias empresariais de circulação da força de trabalho descritas no capítulo anterior, ou no manejo

comercial de outras ideologias, como “sustentabilidade”, “responsabilidade social”, etc. O valor da força

de trabalho, contudo, não é “simbólico”, assim como lucro não é mais-valor. Não foi interesse aqui, porém,

um exercício nesse sentido que, com essa ou com qualquer outra mercadoria, tem de levar em consideração

uma distinção entre valor, valor de troca, preço, etc., tal como se discute no âmbito de uma teoria da

concorrência em Marx – que, em termos atuais, demonstra que o capital tem cor, corpo, sexo, gênero,

condição sexual, etc., porém, ele não é cor, sexo, gênero... 381 É, justamente, o raciocínio radicalmente oposto que levou sociólogos como P. Bourdieu a exercícios

criativos com a sua “economia” de bens simbólicos, tentando dar conta do que seria, então, na sua ironia,

“interesse ‘não-econômico”, isto é, o que ficou de fora da teoria econômica (embora ainda, paradoxalmente,

o “interesse” tivesse sido mantido).

Page 303: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

303

Nesse sentido, ao longo da tese, dialoguei com outra tradição, compreendendo as

implicações da lógica do capitalismo contemporâneo para aqueles que dependem da

venda da mercadoria força de trabalho sem desconsiderar que há uma relação direta entre

a exploração dessa mercadoria e a troca de todas as outras, estabelecida, justamente, pelo

advento do trabalho assalariado. A partir do caso da nova mina da Vale, abordei

estratégias de mercado para a exploração do trabalho na atual etapa de acumulação de

capital que, dadas as novas condições de circulação e rotação, nas últimas décadas,

instaurou um processo de aceleração e amplificação da circulação mercantil da força de

trabalho, de “supercirculação”. No último capítulo, demonstrei como esse processo

implica em uma maior aproximação entre o exército ativo e o exército de reserva

industrial e, portanto, em uma nova condição imposta à classe trabalhadora. Também

demonstrei suas possíveis implicações teóricas no âmbito de uma teoria da

superexploração do trabalho, ou seja, no âmbito da produção, em formas específicas de

aumentar a extração de mais-valor absoluto e relativo e, por outro lado, na remuneração

da força de trabalho abaixo de seu valor. Em parte, indiquei a relação entre esse processo

de supercirculação e o regime de superexploração do trabalho no Brasil, considerando a

reprodução histórica da formação dependente.

A ideologia tornada científica do mercado, que oblitera as relações de produção

e, por conseguinte, a centralidade do trabalho, teoriza a respeito das “trocas de

mercadorias” e produz o “mercado sem classes” ou a “mercadoria sem trabalho”. Em

tese, acelerar e ampliar a circulação das mercadorias acarretaria transformações

profundas do tempo e do espaço, mas não maiores contradições sociais. Minha hipótese

aqui demonstrada vai no sentido oposto. A reprodução social do trabalhador é

profundamente alterada em termos de espaço e tempo e também profundamente

dilapidada, inclusive, e justamente, por meio das próprias “leis de mercado”. O

“trabalho”, que é considerado pela gestão empresarial moderna um “serviço” que deve

ser adquirido pelo menor preço no mercado, usado da forma a mais intensa possível e

substituído sempre que não é mais necessário ou rentável por outro melhor, ou seja, que

é uma “coisa” como qualquer outra, elemento rentável ou peça, obviamente, tem

implicações diferentes para seu vendedor.

A estratégia de acumulação flexível do capital, cada vez mais empregada a fim de

redução de custos com rebaixamento salarial e adequação do processo produtivo às

oscilações do mercado, racionaliza a produção com formas de compra e uso exato e

“enxuto” da força de trabalho no processo produtivo. Aumentar a circulação da força de

Page 304: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

304

trabalho provavelmente também seria um dos mecanismos de superexploração do

trabalho. A classe trabalhadora não apenas circula mais, mas também trabalha mais, de

forma mais intensa e prolongada, quando vende sua força de trabalho, e recebe menos,

fica mais tempo circulando de forma não remunerada. O que na aparência significa a

simples desregulamentação ou o aumento da jornada de trabalho, tal como se tem

verificado no mundo em geral, na verdade se traduz em formas comerciais extremamente

eficazes de extração de mais-valor que não são voltadas para o avanço das forças

produtivas do trabalho, mas sim, principalmente, e fundamentalmente, para a dilapidação

da força de trabalho. Seu resultado objetivo atualmente mensurável – aumento de horas

de trabalho e aumento de horas no “desemprego” – encerra, portanto, forma que não se

confunde com o aumento das jornadas de trabalho que desencadearam as lutas de classe

na indústria inglesa do século XIX. São formas que só puderam ser desenvolvidas sob

outras condições. Apenas nas condições atuais do trabalho está sendo possível promover

esse comércio de força de trabalho e adotar essas estratégias de extração de mais-valor,

de maneira cada vez mais generalizada e praticamente em todos os processos produtivos

e setores da economia.

Como tem sido observado, um processo como esse tem como consequência não

só a invisibilização do trabalho e das relações de produção, como propunha Marx, mas

também uma circulação extrema da força de trabalho que invisibiliza a própria compra e

venda da mercadoria, tornada plenamente parcial, como é o caso limite da compra por

peça, serviço, hora ou fração de hora (em parte, também em condições distintas de

trabalho por peça e sob formas que interseccionam complexamente trabalho produtivo e

improdutivo). Quando consideramos a condição de mercadoria da força de trabalho a

partir do seu valor, isto é, a partir da sua relação necessária e indispensável com a troca

de todas as demais mercadorias, podemos compreender um processo contraditório de

dilapidação da força de trabalho dado pelo aumento do tempo de circulação (tempo de

não venda) da mercadoria ao mesmo tempo em que aumenta o tempo de trabalho (horas

de consumo).

Assim compreendido, considerando outras condições de circulação da força de

trabalho e a aproximação entre exército ativo e exército de reserva, uma série de questões

ainda mereceriam ser melhor estudadas, não apenas no que se refere às relações de

produção propriamente ditas, mas também, de forma ampla, às relações sociais de

circulação, isto é, à nova morfologia das classes trabalhadoras nas condições de

exploração circular do trabalho que lhe impõe a aceleração do mercado de compra e venda

Page 305: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

305

da única mercadoria que dispõem. Um amplo leque de questões se abre à pesquisa

empírica diante, por exemplo, dos deslocamentos espaciais e sociais (entre profissões,

entre setores, entre firmas, etc) e dos rearranjos intergeracionais, de gênero, de parentesco,

conjugalidade, domesticidade e morfologia social reprodutiva em geral. Nesse sentido, a

análise do processo de acumulação e das trajetórias de circulação a partir das cidades do

sudeste do Pará pode ter certo valor heurístico.

Em primeiro lugar, por conta da relação entre as frentes de expansão e a

reprodução histórica da dependência, cuja análise atual permite observar o sentido da

integração mundial dos seus agentes de mercado desde o início da ocupação. Por outro

lado, ressaltei os impactos dos significativos deslocamentos sucessivos frente ao advento

dos grandes projetos, que teriam, por sua vez, em termos mais amplos, desdobramentos

empíricos que dialogam com aqueles propostos por Marini em sua teoria a respeito dos

investimentos de “capital estrangeiro” no ciclo do capital na economia dependente (Felix,

anexo).

Depois, em relação ao debate a respeito da formação do “enorme exército de

reserva” de homens e mulheres que se deslocam para as cidades das minas, grandes obras

e cidades tidas como “boas de serviço” em geral. A análise dos percursos desses

trabalhadores permitiu perceber e inverter algumas concepções bastante arraigadas no

senso comum regional e, certos casos, também acadêmico. As complexas constituições e

desconstituições dos arranjos reprodutivos demonstra o leque de questões que indiquei

acima e a forma como eram determinadas em meio a condições específicas de circulação.

Dependendo delas, os trabalhadores organizavam suas unidades sociais de reprodução

desde unidades de deslocamento compostas por grupos de três gerações e/ou núcleos

familiares distintos até o peão-de-trecho solitário e sem ponto certo, assim como, na

maioria das vezes, também alternavam esses arranjos de acordo com a situação de venda

da força de trabalho (e não, por exemplo, a partir de uma determinada opção cultural pelo

“movimento” ou pela “fixidez”). O “mundo” era, nesse sentido, referência social da

própria indefinição espacial e temporal da permanência; referência da sujeição a um

movimento (ou fixidez) sobre o qual eles não tinham controle, embora, frente a essa

sujeição, como qualquer outro agente, lidassem em termos práticos com tecnologias e

gramáticas socialmente constituídas de deslocamento, conjugalidade, moradia, rebeldia,

etc.

Além disso, os percursos dos trabalhadores também demonstraram alguma

potência teórica para a revisita do próprio conceito de exército de reserva, cujas formas

Page 306: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

306

permanentes indicadas por Marx tinham referência etimológica a situações de movimento

dado pela circulação da força de trabalho (“flüssige”382 e/ou “fließender”383, latente384 e

stockende385) e a sua condição de maior ou menor recrutamento, ou seja, de maior ou

menor tempo na reserva, maior ou menor tempo no exército ativo; a situações, fluxos e

processos de trabalhadores e trabalhadoras frente às necessidades de acumulação de

capital e não exatamente a grupos sociais determinados ou a grupos que, despossuídos de

outros meios de vida, estariam fora de forma “absoluta” da produção, circulação ou

realização do valor.

Em 1967, E. P. Thompson (1998) previa uma distinção entre as sociedades

industriais modernas e os “países em desenvolvimento” em relação ao tempo de trabalho.

As primeiras estariam se deparando com o problema social do “lazer” enquanto as demais

estariam introduzindo a nova disciplina de trabalho por sobre outras concepções e usos

do tempo que vigoravam em grupos camponeses, populações originárias, etc. O

pressuposto era de que o capitalismo iria se desenvolver a ponto de, seguindo o avanço

dessas sociedades industriais modernas, ter cada vez mais tempo livre. Daí sua sugestão

de se inspirar em usos alternos de tempo, não-europeus, superar as misérias da disciplina

industrial e de sua condenação moral do ócio, por exemplo, e rumar em direção a

concepções mais avançadas.

Atualmente, a questão em debate é o que realmente significa um contingente cada

vez maior de trabalhadores que não encontra mais trabalho estável ou fixo e que se

reproduz em condições precárias de trabalho. O que dizer que o capitalismo, enquanto

sistema global, iria justamente reintroduzir modos de extração de mais-valor que se

pensava extintos nessas sociedades (e, quando reconhecidos, isto é, não invisibilizados,

pensados em extinção no mundo)? O processo histórico reservaria um contexto de avanço

do capital sobre esse, agora, antigo “problema social” do lazer que se debruçavam os

sociólogos ingleses. Grande parte dos trabalhadores agora passaria mais tempo em busca

de emprego ou simplesmente à espera de um serviço remunerado por hora trabalhada.

A introdução de novas tecnologias de comunicação, por exemplo, possibilitou não

exatamente tempo livre, mas sim mais tempo de circulação, não remunerado, e com todo

382 Líquida (não sólido); fluente (estilo); fluida (trânsito, circulação); disponível, em caixa (dinheiro). 383 Corrente (água); fluente (estilo); tênue (passagem, transição). 384 Latente. Do latim “latente”, cuja etimologia remonta a “aquilo que permanece escondido, que não se

manifesta, que está oculto, sub-entendido, disfarçado, dissimulado”. 385 Estancado; estagnado; congestionado; engarrafado; embarrilado. No Brasil, traduzido como

“estagnado”.

Page 307: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

307

o amargor da reprodução social ameaçada do desemprego – mais formação, melhor

qualificação, mais deslocamento, empobrecimento, esforço, angústia, insegurança, mais

sofrimento em busca de trabalho, mais desgaste para tentar se manter nele, menor

exigência de qualidade do trabalho conforme mais tempo se demora para encontrar outro.

Enfim, nada de tempo livre e, muito menos, de livre fruição do tempo, pois, afinal,

circulação não é tempo livre. Paradoxalmente, só há tempo de lazer quando a força de

trabalho é explorada, isto é, no tempo de produção, quando o tempo de não trabalho é

remunerado, como resguardo, descanso, férias, reprodução e reposição sociais da força

de trabalho para se apresentar nas mesmas condições no dia seguinte e trabalhar com a

mesma intensidade. Assim, se a exploração da força de trabalho pouco permitiu uma livre

fruição do tempo, premida pela indústria cultural do lazer, do aproveitamento produtivo

do tempo, do tempo-dinheiro, o aumento do tempo de circulação o permitiria ainda

menos, sendo que, agora, com as agruras da discutida fusão de “emprego” e

“desemprego”.

Se certa ideologia do desenvolvimento voltava os pesquisadores para o estudo das

sociedades avançadas anteriormente, para delas tirar modelos e idealizar uma projeção

histórica a seguir, o processo de supercirculação, atualmente, os obrigaria a voltar os

olhos para o estudo das sociedades do “Sul global”, periféricas, semi-periféricas,

dependentes, “atrasadas”. Contudo, por algum momento, sem pleno entendimento dos

rumos sistêmicos globais da acumulação de capital, se pensou que o trabalho iria acabar

ou perder sua centralidade. Agora, com o mesmo grau sempre presente de eurocentrismo

apoiado pelas pesadas hierarquias acadêmicas mundiais forjadas no processo colonial, se

debate se há uma “nova classe social” que estaria se mundializando.

Recentemente, em “Deux jours, une nuit” (2014), filme dos irmãos Jean-Pierre

Dardenne e Luc Dardenne, uma trabalhadora belga é demitida e, buscando reverter, passa

o dia de casa em casa dos colegas a fim de convencê-los a desistir de um bônus salarial,

oferecido para intensificar o trabalho e reduzir o número de operários. No fim, depois de

remédios, desespero, adesões e frustrações, demitida, ela diz para o marido: “lutamos

bem”. Tinha acabado de recusar trocar a sua própria permanência pela demissão de outro

colega. Logo em seguida, teria que começar a procurar outro trabalho. Sem o salário dela,

eles não teriam mais dinheiro para pagar o aluguel e iriam voltar para um alojamento

social, tal qual da última vez que ela ou o marido alternaram uma situação de desemprego.

Estará a Europa no meio do mundo?

Page 308: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

308

Referências bibliográficas

Ab’Saber, Aziz. Amazônia: do discurso à práxis. São Paulo: Edusp, 1996.

Afonso, José Batista G. et al.. “De posseiro a sem-terra: o impacto da luta pela terra do

MST no Pará”. In: Carter (org.). Combatendo a desigualdade social. São Paulo:

Editora UNESP, 2010.

Almeida, Alfredo W. B. “Estrutura fundiária e expansão camponesa”. In: Gonçalves Jr.

(org.). Carajás: desafio político, ecologia e desenvolvimento. São Paulo:

Brasiliense/CNPq, 1986.

Almeida, Alfredo W. B. Carajás: a guerra dos mapas. Belém: Falangola, 1994.

Alves, G. “Terceirização e acumulação flexível do capital”. Estud. sociol., Araraquara,

v.16, n.31, p.409-420, 2011.

Alves, Giovanni. Trabalho e neodesenvolvimentismo. Bauru: Canal 6, 2014.

Alves, Lívia. “Arranjo produtivo local do leite do sudeste do Pará”. In: Plano de

Desenvolvimento Sustentável da Amazônia legal: PDSA 2005-2008. Agência de

Desenvolvimento da Amazônia, Universidade Federal do Pará, Fundação de Amparo

e Desenvolvimento da Pesquisa. Belém: ADA, 2007.

Antonaz, Diana. Na escola dos grandes projetos. Dissertação de mestrado em

Antropologia Social, UFRJ, 1995.

Antunes, Ricardo. “A nova morfologia do trabalho e suas principais tendências:

informalidade, infoproletariado, (i)materialidade e valor”. In: Antunes (org.).

Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013.

Antunes, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez, 2011.

Araújo, Paula H. Os (des)caminhos da estrada: a organização do trabalho dos

caminhoneiros no Porto de Santos. Dissertação em Ciências Sociais,

UNESP/Marília, 2010.

Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale. Dossiê dos impactos e violações da

Vale no mundo. I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale, 2010.

Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.

(2012). Carta para a CAPES. Recuperado de http://www.abant.org.br/file?id=893,

consultado em dezembro de 2012.

Baeninger, R. (2011). “Migração, migrações”. In: Idéias, n.2, nova série, 1º semestre de

2011. p. 31-41.

Baeninger, Rosana. “Rotatividade Migratória: um novo olhar para as migrações no século

XXI”. Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais,

da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu, set/out, 2008.

Ballard, C.; Banks, G. (2003). “Resource wars: the Anthropology of Mining”. Annual

Review of Anthropology, vol. 32 (2003), pp. 287-313.

Baltar, P. “Rotatividade da mão-de-obra e diferenciação das remunerações no Estado de

São Paulo”. Economia e sociedade. Campinas, n. 3, dez. 1994.

Baltar, Pedro; Proni, Marcelo. “Sobre o Regime de Trabalho no Brasil: Rotatividade de

Mão-de-Obra, Emprego Formal e Estrutura Salarial”. In: Oliveira; Mattoso

(orgs.). Crise e Trabalho no Brasil: Modernidade ou Volta ao Passado. São Paulo,

Scritta, 1996.

Beaud, S.; Pialoux, M. Retorno à condição operária. São Paulo: Boitempo, 2009.

Becker, Luzia; Pereira, Denise. “O projeto Minas‐Rio e o desafio do desenvolvimento

territorial integrado e sustentado: a grande mina em Conceição do Mato Dentro

(MG)”. In: Fernandes, Francisco et al. (eds.). Recursos Minerais & Sustentabilidade

Territorial: grandes minas. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI, 2011.

Page 309: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

309

Bertaux, Daniel. Destinos pessoais e estruturas de classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Bertaux, Daniel. Les récits de vie: perspective ethnosociologique. Paris, Nathan, 1997.

Berthoud, Arnaud. Travail productif et productivité du travail chez Marx. Paris: François

Maspero, 1974.

Bezerra, Rose. O trabalho em tempos de flexibilização. Dissertação em Dinâmicas

Territoriais e Sociedade na Amazônia, Unifesspa, 2014.

Bihr, Alain. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998.

Borges, Antonadia. Tempo de Brasilia. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003.

Bourdieu, Pierre. (1986). “L’illusion biographique”. In: Actes de la recherche en sciences

sociales. Vol. 62-63, juin 1986. pp. 69-72.

Brandão, Carlos. “Acumulação primitiva permanente e desenvolvimento capitalista no

Brasil”. in: Almeida et al.(org), Capitalismo globalizado e recursos territoriais:

fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina,

2010.

Brissenden, Paul F. “The Measurement of Labor Mobility”. Journal of Political

Economy. Vol. 28, No. 6 (Jun., 1920), pp. 441-476.

Brito, J. A. F.; Carvalho, J. A. M. (2006). “As migrações internas no Brasil e as novidades

sugeridas pelos Censos Demográficos de 1991 e 2000 e pelas PNADs recentes”.

Parcerias Estratégicas, Brasília, v. 22, p. 441-455, 2006.

Bunker, Stephen. “Da castanha-do-pará ao ferro: os múltiplos impactos dos projetos de

mineração na Amazônia brasileira”. In: Monteiro e Coelho (orgs.). Mineração e

reestruturação espacial na Amazônia. Belém: NAEA, 2007.

Burawoy, M. (1976). “The functions and reproduction of migrant labour: comparative

material from Southern Africa and the United States”. American Journal of

Sociology. 5: 1050-1087.

Burawoy, Michael. “Marxism after Polanyi”. In: Williams; Satgar (eds). Marxisms in the

21st century. Johannesburg: Wats University Press, 2013.

Camargo, J. M. “Flexibilidade e produtividade do mercado de trabalho brasileiro”. In:

Flexibilidade do Mercado de Trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

Cardoso de Oliveira, Roberto. “O movimento dos conceitos na antropologia” [1993]. In:

O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 2006.

Cardoso de Oliveira, Roberto. “A noção de ‘colonialismo interno’ na etnologia” [1966].

In: A sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro/Brasília: Tempo

Brasileiro/Editora da UnB, 1978.

Cardoso, Ana. “Organização e intensificação do tempo de trabalho”. Sociedade e Estado.

Volume 28, Número 2, Maio/Agosto 2013.

Cardoso, Ana. “Os trabalhadores e suas vivências cotidianas”. RBCS. Vol. 25, n° 72,

fevereiro/2010.

Cardoso, F. H. “The consumption of dependency theory in the United States”. Latin

American Research Review, Vol. 12, No. 3 (1977), pp. 7-24, 1977.

Cardoso, F. H.; Faletto, E. Dependency and development in Latin America. Berkeley:

Univ. Calif. Press, 1979.

Carmo, Roberto Luiz do; Correa, Vinicius. “Fronteira da exploração mineral na

Amazônia: o setor mineral e a dinâmica demográfica na mesorregião sudeste

paraense”. In: Carmo e D’Antona (orgs.). Dinâmicas demográficas e ambiente.

Campinas: Nepo/Unicamp, 2011.

Carneiro, M.; Ramalho, J. R. “A crise econômica mundial e seu impacto sobre o setor

siderúrgico maranhense”. In: Carneiro e Costa (orgs.). A terceira margem do rio. São

Luis: EdUFMA, 2009.

Page 310: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

310

Carneiro, Marcelo. “Crítica social e responsabilização empresarial”. Cadernos CRH,

v.21, n.53, 2008, p. 319-331.

Carneiro, Marcelo. “Mineração, siderurgia e desenvolvimento na Amazônia Oriental: um

balanço da experiência do programa grande Carajás”. In: Terra, trabalho e poder.

São Paulo: Anablume, 2013.

Carvalho, L. “De mãe a madrasta? Análise da ação dos sindicatos dos trabalhadores da

Vale na região sudeste brasileira”. Encontro da Anpocs, 2013.

Casanova, Pablo González. “Colonialismo interno (una redefinición)” [2006]. In: Boron,

Amadeo, González. La teoría marxista hoy. Problemas e perspectivas. Buenos Aires:

CLACSO, 2006.

Casanova, Pablo González. “El colonialismo interno” [1969]. In: De la sociología del

poder a la sociología de la explotación: pensar América Latina en el siglo XXI.

Bogotá: Siglo del Hombre Editores y Clacso, 2009.

Castel, Robert. As metamorfoses da questão social. Petropolis, Vozes, 1998.

Castells, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

Castilhos, Clarisse; Campos, Cristiane. “La expansion de la mineria en Brasil: ¿una trama

macabra entre el gobierno y el capital internacional?”. In: Herramienta web, 18,

Marzo 2016.

Castro, Camila. Conexões e controvérsias no INCRA de Marabá: o Estado como um ator

heterogêneo. Tese em Sociologia. UNB, 2013.

Castro, Edna. Industrialização, transformações sociais e mercado de trabalho. Papers do

NAEA, 23. Belém, maio de 1994.

CEPASP. Impactos da mineração no sudeste paraense. Marabá: Centro de Educação,

Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular, 2010.

CEPASP. Informativo da Campanha contra o saque dos nossos minérios. Junho de 2012.

CEPASP; Neto, Raimundo G. C. A mineração no sul e sudeste paraense. Marabá:

CPT/MST/MAB/Fetagri/CEPASP/ MTM/Mov. Debate e Ação, s/d.

Chahad, J. P.; Pozzo, Rafaella. “Mercado de trabalho no brasil na primeira década do

século XXI”. Informações Fipe, Temas de economia aplicada, junho de 2013.

Chaloult, Yves. Estado, acumulação e colonialismo interno. Petrópolis: Vozes, 1978.

Chesnais, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

Chesnais, François. “A mundialização do exército industrial de reserva”. O Comuneiro,

n.3, setembro 2006. in: http://www.ocomuneiro.com/nr03_01_francois.htm

Cleary, David. A garimpagem de ouro na Amazônia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992.

Cockell, Fernanda. “Da enxada à colher de pedreiro: trajetórias de vulnerabilidade social

na construção civil”. Tese em Engenharia de Produção, UFSCar, 2008.

Cockell, Fernanda; Perticarrari, Daniel. (2010). “Contratos de boca: a institucionalização

da precariedade na construção civil”, Caderno CRH, 23(60), 633-653.

Comissão Pastoral da Terra. “Histórico da luta contra a mineração”. Tucumã: mimeo.,

2013.

Costa, Luciano. Trabalhadores em construção: mercado de trabalho, redes sociais e

qualificações na construção civil. Tese em Ciências Sociais, Unicamp, 2010.

Coutinho, R. do L. Operário de construção civil: urbanização, migração e classe

operária no Brasil. Rio de Janeiro: Achiame, 1980.

CPT; CEPASP. Pela garantia dos direitos: leitura dos dados do Diagnóstico realizado pela

Diagonal. Marabá, mimeo. 2012.

Crum, Frederick S. “How to Figure Labor Turnover”. Publications of the American

Statistical Association. Vol. 16, No. 126 (Jun., 1919), pp. 361-373.

Cruz Neto, Raimundo G. Aspectos da mineração da Vale em Ourilândia. Marabá, 2008.

In: http://www.ecodebate.com.br/2008/06/20/aspectos-da-mineracao-da-vale-em-

Page 311: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

311

ourilandia-para-artigo-de-raimundo-gomes-da-cruz-neto/. Acessado em:

26/11/2012.

Cruz Neto, Raimundo G.; Pinassi, Maria Orlanda. “La minería y la lógica de producción

destructiva en la Amazonía brasileña”. Herramienta. 2012. Disponível em:

http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-51/la-mineria-y-la-logica-de-

producciondestructiva-en-la-amazonia-brasilena.

CVRD. Companhia Vale do Rio Doce: 50 anos de história. Rio de Janeiro: CVRD, 1992.

D’Incao e Mello, Maria Conceição. O “Bóia-fria”: acumulação e miséria. Petrópolis:

Vozes, 1976.

Dale, Gareth. Karl Polanyi: the limits of the Market. Cambridge, Polity Press, 2010.

Damonte, Gerardo; Castillo, Gerardo. (2010). “Presentación: una mirada antropológica a

las industrias extractivas en los Andes”. Anthropologica, ano XXVIII, n. 28, 2010,

suplemento 1, pp. 5-19.

Dedecca, C. S. “Notas sobre a evolução do mercado de trabalho no Brasil”. Revista de

Economia Política, v. 25, n. 1 (97), p. 94-111, jan./mar. 2005.

Dejours, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2007.

Delgado Ramos, Gian Carlo. (ed). Ecología política de la minería en América Latina.

Mexico: CIICH/UNAM, 2010.

Delgado Ramos, Gian Carlo. (ed). Ecología política del extractivismo en América Latina.

Buenos Aires: Clacso, 2013.

Dening, Michael. “Wageless life”. New Left Review, 66, nov/dec, 2010.

Diagonal. Diagnóstico Socioeconômico (entorno da Mineração Onça Puma). 2011.

Dias, Sabrina; Oliveira, R. Depois da terceirização, a desterceirização: comparação dos

processos na CSN e na Caixa. Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de

Sociologia, Curitiba, 2011.

DIEESE (2013). Estudo Setorial da Construção 2012. Estudos e Pesquisas, 65, maio de

2013.

DIEESE. (2011). Rotatividade e flexibilidade no mercado de trabalho. São Paulo:

DIEESE.

DIEESE. (2011b). “Salários na construção civil nos anos 2000: entre a formalização e a

rotatividade”. Boletim Trabalho e Construção, 6, Dezembro 2011.

DIEESE. (2012). “A situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000”.

São Paulo: DIEESE.

DIEESE. (2014). “Os números da rotatividade no Brasil: um olhar sobre os dados da Rais

(2002-2013)”. São Paulo: DIEESE.

DIEESE. (2014). “Rotatividade e políticas públicas para o mercado de trabalho”. São

Paulo: DIEESE.

DIEESE. (2014b). “Rotatividade setorial: dados e diretrizes para a ação sindical”. São

Paulo: DIEESE.

Dobb, Maurice. “Introduction”. In: Marx, K. A contribution to the critique of political

economy. New York: International Publishers, 1970.

Druck, G.; Franco, T. (orgs.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e

precarização. São Paulo: Boitempo, 2007.

Druck, Graça. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. Tese em Ciências Sociais,

UNICAMP, 1995.

Engels, F. [1845]. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo,

2010.

Engels, F. [1878]. Anti-Duhring. In:

http://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/

Page 312: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

312

Engels, F. [1887]. Para a questão da habitação. Obras escolhidas. Moscou: Edições

Progresso, 1982. In:

http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/habita/index.htm

Enriquez, Maria; Fernandes, Francisco; Alamino, Renata. “A mineração das grandes

minas e as dimensões da sustentabilidade”. In: Fernandes, Francisco et al. (eds.).

Recursos Minerais & Sustentabilidade Territorial: grandes minas. Rio de Janeiro:

CETEM/MCTI, 2011.

Esterci, Neide. Escravos da desigualdade: estudo sobre o uso repressivo da força de

trabalho hoje. Rio de Janeiro: CEDI/Koinonia, 1994.

Farah, M. F. S.. Tecnologia, processo de trabalho e construção habitacional. Tese em

Sociologia, USP, 1992.

Farber, Henry. “Employment Insecurity: The Decline in Worker-Firm Attachment in the

United States”. CEPS Working Paper No. 172, January 2008.

Farias, William; Alencar, Antonio. Ourilândia do Norte. Belém: Açaí, 2008.

Felix, Gil. O caminho do mundo: mobilidade espacial e condição camponesa numa

região da Amazônia Oriental. Niterói: Editora da UFF, 2008.

Felix, Gil. “Os vira-mundos e a condição camponesa”. in: Neves, D. P. (Org.). Processos

de constituição e reprodução do campesinato no Brasil, vol. 2, Coleção História

Social do Campesinato no Brasil. São Paulo/Brasília: Editora UNESP/NEAD, 2009.

Felix, Gil. “Intervenção planejada, conflito e expectativa num Assentamento Rural”. In:

Antropolítica. Niterói, n. 29, p. 181-200, 2. sem. 2010.

Felix, Gil. “Marx e a ‘assim chamada acumulação primitiva’: conceito e interpretações

de sua ‘forma clássica’ (1867-1883)”. Trabalho apresentado no II Congresso

Internacional Karl Marx, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 24 a 26 de outubro

de 2013.

Ferguson, J. Expectations of modernity: myths and meanings of urban life on the Zambian

Copperbelt. Berkeley: University of California Press, 1999.

Fernandes, Francisco et al. (eds.). Recursos Minerais & Sustentabilidade Territorial:

grandes minas. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI, 2011.

Figueira, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no

Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

Figueira, Ricardo; Prado, Adonia. “Trabalhadores denunciam trabalho escravo”. Hendu,

4(1): 22-40 (2014).

Fontes, Edilza (2003). “O peão de trecho e o peão de casa: identidade operária entre os

trabalhadores da construção civil de Barcarena no canteiro de obras da

Albras/Alunorte”, Novos Cadernos NAEA, 6(1), 65-82.

Foster; McChesney; Jonna. “The Global Reserve Army of Labor and the New

Imperialism”. In: Monthly Review, Volume 63, Issue 06 (November), 2011.

Garcia Jr., A. O Sul: caminho do roçado. Estratégias de reprodução camponesa e

transformação social. Brasília: Marco Zero/EdUnB, 1989.

Gaudemar, J.-P. Mobilidade do trabalho e acumulação de capital. Lisboa: Editorial

Estampa, 1977.

Gaudemar, J.-P. « De l'ouvrier-masse au travailleur flexible ». Vingtième Siècle. Revue

d'histoire, No. 14 (Apr. - Jun., 1987), pp. 13-24.

Giannotti, Vito. Força Sindical: a central neoliberal. São Paulo: Mauad, 2002.

Godelier, M. “Moeda de sal’ e circulação das mercadorias entre os Baruya da Nova

Guiné”. In: Godelier. Col. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1981.

Godelier, M. Horizon, trajets marxistes en anthropologie. Paris: François Maspero, 1973.

Godelier, M. Racionalidade e irracionalidade na economia. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, s/d.

Page 313: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

313

Godoy, José. “Novo desenvolvimentismo do Nordeste: industrialização, crescimento

econômico e equidade no Território Estratégico de Suape/PE”. Trabalho apresentado

no Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2014.

Godoy, Ricardo. (1985). “Mining: anthropological perspectives”. Annual Review of

Anthropology. 14: 199-217.

Gonçalves Jr. (org.). Carajás: desafio político, ecologia e desenvolvimento. São Paulo:

Brasiliense/CNPq, 1986.

Gonzaga, G.; Pinto, R. “Rotatividade do trabalho e incentivos da legislação trabalhista”.

Texto para discussão nº 625. Departamento de Economia PUC-Rio. Rio de Janeiro,

2014.

Gonzaga, Gustavo. (1998). “Rotatividade e qualidade do emprego no Brasil”. Revista de

Economia Política, 18(1): 120-140.

Gounet, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo:

Boitempo, 1999.

Graciolli, Edilson. Um laboratório chamado CSN: greves, privatização e sindicalismo de

parceria. Tese em Ciências Sociais, Unicamp, 1999.

Guanais, Juliana. Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração

na agroindústria canavieira brasileira. Tese de Sociologia, Unicamp, 2016.

Guedes, André. O trecho, as mães e os papéis: movimentos e durações no norte de Goiás.

Tese em Antropologia, UFRJ, 2011.

Guedes, Lucilei. Deslocamento compulsório de agricultores familiares por empresas

mineradoras: o caso do Projeto Onça Puma no município de Ourilândia do Norte/PA.

Dissertação em Agriculturas familiares e desenvolvimento sustentável, UFPA, 2012.

Guimaraes Neto, Regina B. “Vira mundo, vira mundo: trajetórias nômades. As cidades

na Amazônia”. Projeto História, (27), p. 49-69, dez. 2003.

Gunder Frank, Andre. “A agricultura brasileira: capitalismo e mito do feudalismo”

[1964]. In: Stedile (org). A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular,

2005.

Gunder Frank, Andre. Capitalism and underdevelopment in historical studies of Chile

and Brazil. New York: Monthly Rev., 1964.

Gunder Frank, Andre. Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York:

Monthly Rev., 1967.

Gunder Frank, Andre. On capitalist underdevelopment. New York: Oxford Univ. Press,

1975.

Harvey, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2008.

Harvey, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2011.

Harvey, D. Para entender O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013a.

Harvey, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013b.

Harvey, David. “The Most Dangerous Book I Have Ever Written”: A Commentary on

Seventeen Contradictions and the End of Capitalism”. (2015). Disponível em:

http://davidharvey.org/2015/05/the-most-dangerous-book-i-have-ever-written-a-

commentary-on-seventeen-contradictions-and-the-end-of-capitalism/. Acessado em:

19/05/2015.

Hebette, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. (4

vol.). Belém: Edufpa, 2004.

Himmelweit, S. “Valor da força de trabalho”. In: Bottomore, T. (Org.). Dicionário do

pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Hirata, H.; Cattanéo, N. “Flexibilidade”. In: Hirata et al. (org). Dicionário crítico do

feminismo. São Paulo: Edunesp, 2009.

Page 314: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

314

Huws, Ursula. “Bridges and barriers: globalisation and the mobility of work and

workers”. Work organisation, labour & globalisation, Volume 6, Number 1. Spring,

2012.

Ianni, Octavio. “Trabalho e multiplicação”. In: Origens agrárias do Estado brasileiro.

São Paulo: Brasiliense, 1984.

ILO (International Labour Organization). Global Wage Report 2008/09. International

Labour Office. Geneva: ILO, 2009.

ILO. World employment and social outlook 2015: The changing nature of jobs.

International Labour Office. Geneva: ILO, 2015a.

ILO. Relatório global sobre os salários 2014/15: Salários e desigualdade de

rendimentos. International Labour Office. Geneva: ILO, 2015b.

ILO. World Employment and Social Outlook: Trends 2016. International Labour Office.

Geneva: ILO, 2016.

Instituto Observatório Social. (2006). Companhia Vale do Rio Doce: perfil de empresa.

São Paulo, fevereiro de 2006.

Jacoby, Sanford. Employing Bureaucracy: Managers, Unions, and the Transformation of

Work in the 20th Century. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2004.

Kamata, Satoshi. “Outro lado do Modelo Japonês: Entrevista de Satoshi Kamata a Helena

Hirata”. Novos Estudos CEBRAP, nº 29, março, 1991, pp. 148-155.

Kirsch, Stuart. “Sustainable Mining”. Dialectical Anthropology. Volume 34 (1), March

2010, pp. 87-93.

Lara Flores, Sara (org). Migraciones de trabajo y movilidad territorial. Mexico: Miguel

Angel Porrua, 2010.

Leal, Aluizio Lins. Grandes projetos amazônicos: dois casos precursores. Tese em

História Econômica. USP, 1996.

Leite Lopes, J. S. “Sobre um debate da Antropologia Econômica: a economia política de

Polanyi”. América Latina, 14, 3-4, 1971.

Leite Lopes, J. S. “Fábrica e vila operária: considerações sobre uma forma de

subordinação burguesa”. In: Lopes et al. Mudança social no Nordeste. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1979.

Lenin, V. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

Levien, M. “Da acumulação primitiva aos regimes de desapropriação”. In: Sociologia e

Antropologia, rio de janeiro, v.04.01: 21 – 53, junho, 2014.

Linhart, Daniele et al. “Vers une nouvelle rémuneration scientifique du travail ? ».

Travail et Emploi, nº 57, 1993.

Linhart, Daniele. A desmedida do capital. São Paulo: Boitempo, 2007.

Magalhaes; Neto; Gonçalves. “Os múltiplos desafios da gestão de terceirizados: a

experiência dos gestores de contratos”. Revista de Ciências da Administração, v. 12,

n. 26, jan/abr 2010, p. 116-143.

Magdoff, F.; Magdoff, H. “Disposable Workers: Today’s Reserve Army of Labor”.

Monthly Review, vol. 55, n. 11, april 2004.

Malerba, Julianna et al. (org). Novo Marco legal da mineração no Brasil: para quê? Para

quem? Rio de Janeiro: FASE, 2012.

Mandel, Ernest. A formação do pensamento econômico de Karl Marx. Rio de Janeiro,

Zahar, 1968.

Mao Tsetung. [1937]. Sobre a contradição. In:

http://www.marxists.org/portugues/mao/1937/08/contra.htm

Marcelino, Paula. A logística da precarização: terceirização do trabalho na Honda do

Brasil. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2002.

Page 315: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

315

Marini, R. M. “Las razones del neodesarrollismo (respuesta a F.H. Cardoso y J. Serra)”.

Revista Mexicana de Sociología, número especial, 1978.

Marini, R. M. “El ciclo del capital en la economía dependiente”. In: Oswald (coord).

Mercado y dependencia. Mexico: Nueva Imagen, 1979.

Marini, R. M. “Prefácio”. In: Sotelo, A. México: dependencia y modernización. Mexico:

FCPyS/UNAM/CELA, 1993.

Marini, R. M. “Proceso y tendencias de la globalización capitalista”. In: Marini; Millán

(orgs). La teoría social latinoamericana, t. IV: Cuestiones contemporáneas. México:

UNAM/FCPyS/CELA, 1996.

Marini, R. M. (2008a) “Dialéctica de la dependencia”. In: América Latina, dependencia

y globalización. Bogotá: Siglo del Hombre/Clacso, 2008.

Marini, R. M. (2008b) “En torno a Dialéctica de la dependencia (postscriptum)”. In:

America Latina, dependencia y globalización. Bogotá: Siglo del Hombre/Clacso,

2008.

Marini, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012.

Marini, R. M. (s/d). “El concepto de trabajo productivo: nota metodológica”. In:

http://www.marini-escritos.unam.mx/023_trabajo_productivo_es.htm

Marini, R. M. et al. “Economía Política III. El proceso de circulación del capital (Tercer

semestre)”. Facultad de Economía, Sistema de Universidad Abierta, UNAM, 1979.

Marini, R. M.; Sotelo, Adrian; Arteaga, Arnulfo. Proceso de trabajo, jornada laboral y

condiciones técnicas de producción: estudio de caso. Cuadernos CIDAMO, 4,

Mexico DF., 1981.

Marini, R. M. “La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo”. Cuadernos

Politicos, numero 12, abril-junio de 1977.

Martinez-Alier, Verena; Moisés, José. “A revolta dos suburbanos ou ‘patrão, o trem

atrasou”. In: Moisés et al. (eds.). Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Martins, J. S. “A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão

no Brasil”. Tempo Social; 6(1-2): 1-25, 1994 (editado em jun. 1995).

Martins, J. S. Fronteira. São Paulo: Contexto, 2009.

Marx, Karl. O Capital. Livro I. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Editora Ciências

Humanas Ltda., 1978.

Marx, Karl. (2006a). “Trabalho assalariado e capital”. in: Trabalho assalariado e capital

& Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

Marx, Karl. (2006b). “Salário, Preço e Lucro”. in: Trabalho assalariado e capital &

Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

Marx, Karl. O Capital. Livro III. (vol. IV). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

Marx, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

Marx, Karl. O Capital. Livro II. São Paulo: Boitempo, 2014.

Marx, Karl. “Ad Feuerbach”. In: Marx; Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo,

2007.

Marx, Karl. “Marx to Nikolai Danielson. 10 April 1879 ». In: Marx; Engels. Collected

Works. Vol. 45. New York, International Pub., 2010.

Massimo de Angelis. (2001). “Marx and primitive accumulation: the continuous character

of capital’s ‘enclosures’”. The Commoner, 2 (september 2001).

Mauss, Marcel. “Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós: estudo de

morfologia social”. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

Meillassoux, Claude. Mulheres, celeiros e capitais. Porto: Afrontamento, 1977.

Page 316: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

316

Michelotti, F; Rodrigues, F. (s/d). “Desafios para a sustentabilidade ecológica integrada

a trajetórias de estabilização da agricultura familiar na região de Marabá”. Mimeo.

Midnight Notes Collective. (2001). “The new Enclosures”. The Commoner, 2 (september

2001).

Milanez, Bruno. “O novo marco legal da mineração: contexto, mitos e riscos”. In:

Mallerba (org). Novo marco legal da mineração: para quê? Para quem? Rio de

Janeiro: FASE, 2012.

Minayo, Maria Cecilia. Os homens de ferro. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.

Minayo, Maria Cecilia. De ferro e flexíveis. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

Ministério de Minas e Energia (MME). Plano Nacional de Mineração 2030. Brasília:

MME/Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, 2011.

Mobley et al. “Review and Conceptual Analysis of the Employee Turnover Process”.

Psychological Bulletin, 1979, Vol. 86, No. 3, 493-522.

Monteiro, Maurílio. “Em busca de carvão vegetal barato: o deslocamento de siderúrgicas

para a Amazônia”. Novos Cadernos do NAEA, Belém, v.9, n.2, p.55-97, 2006.

Monteiro, Maurílio. “Meio século de mineração industrial na Amazônia e suas

implicações para o desenvolvimento regional”. Estudos Avançados, 19 (53), 2005:

187-207.

Monteiro, Maurílio. Siderurgia e carvoejamento na Amazônia. Belém: NAEA/UFPA,

1998.

Morrell; Loan-Clarke; Wilkinson (2001). “Unweaving leaving: The use of models in the

management of employee turnover”. International Journal of Management Reviews,

3(3), 219-244.

Moulier-Boutang, Yann. (2005) “Formes de travail non libre; Accumulation primitive:

préhistoire ou histoire continuée du capitalisme?” Cahiers d’Études Africaines, 179-

180 (2005), págs. 1069-1092.

Moyo, S.; Yeros, P.; Praveen Jha. (2012). “Imperialism and Primitive Accumulation:

Notes on the New Scramble for Africa”. Agrarian South, 1-2 (2012), págs. 181–203.

Musumeci, Leonarda. O mito da terra liberta. São Paulo: Vertice/ANPOCS, 1988.

Nash, June (1981). “Ethnographic Aspects of the World Capitalist System”. In: Annual

Review of Anthropology, Vol. 10(1). p. 393-423.

Nash, June. We eat the mines and the mines eat us: dependency and exploitation in

Bolivian tin mines [1979]. New York: Columbia Univ. Press., 1993.

Neto, Nelson. Exército industrial de reserva: conceito e mensuração. Dissertação em

Desenvolvimento Econômico, UFPR, 2013.

Neto, Nelson; Germer, Claus. “A evolução recente do mercado de trabalho brasileiro sob

a perspectiva do conceito de exército industrial de reserva”. Ciências do trabalho.

Vol.1, numero 1, 2013.

Neves, Delma P. “Agricultura familiar e mercado de trabalho”. Estudos Sociedade e

Agricultura, 8, abril de 1997: 7-24.

Neves, Delma P. “Agricultura familiar: questões metodológicas”. Revista da Associação

Brasileira da Reforma Agrária. Campinas, v. 24, n. 2 e 3, p. 21 - 36, mai./dez. 1995.

Nogueira, Claudia. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e na reprodução:

um estudo das trabalhadoras do telemarketing. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

Novaes, José Roberto; Alves, Francisco (orgs). Migrantes: trabalho e trabalhadores no

Complexo Agroindustrial Canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São

Carlos: EdUFSCAR, 2007.

OECD (Organization for Economic Cooperation and Development). “Employment

Adjustment, Workers and Unemployment”. In: Employment Outlook, 1996.

Page 317: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

317

Ohno, Taiichi. O sistema Toyota de produção: além da produção em larga escala. Porto

Alegre: Bookman, 1997.

Oliveira Filho, João P. “O caboclo e o brabo: notas sobre duas modalidades de força de

trabalho na expansão da fronteira amazônica do século XIX”. In: Silveira, E. (Org.).

Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista [1972]. São Paulo: Boitempo, 2008.

Oliveira, Francisco de. “A produção dos homens: notas sobre a reprodução da população

sob o capital”. (1976). In:

http://www.cebrap.org.br/v2/files/upload/biblioteca_virtual/a_producao_dos_home

ns.pdf

Olivier de Sardan, J.-P. Anthropologie et développement: essai en socioanthropologie du

changement social. Paris: Karthala, 1995.

Olivier de Sardan, J.-P. “Les trois approches en anthropologie du

développement ». Tiers-Monde, tome 42, n°168, 2001. pp. 729-754.

Ong, Aihwa. Spirits of resistance and capitalist discipline: factory women in Malaysia.

New York: SUNY Press, 2010.

Orellano, V.; Mattos, E.; Pazello, E.. “A substituição de trabalhadores como instrumento

para redução de gastos com salários: evidências para a indústria paulista”. Rev. Bras.

Econ., vol.63, no.2, Rio de Janeiro, abril/jun, 2009.

Ortner, Sherry. “Teoria na antropologia desde os anos 60” [1984]. In: Mana, 17(2): 419-

466, 2011.

Pacheco, C. A.; Patarra, N. L. “Movimentos migratórios Anos 80: novos padrões?”. Anais

do Encontro Nacional sobre Migração. Curitiba, 1997. pp.445-462.

Palmeira, Moacir et al. “A invenção da migração”. In: Projeto emprego e mudança sócio-

econômica no Nordeste. Convênio UFRJ/Finep/IPEA/IBGE, vol. 1. Rio de Janeiro,

Museu Nacional, 1977.

Palmeira, Moacir. “Campesinato, fronteira e política”. In: Anuário Antropológico 76. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

Patarra, N. L. “Movimentos Migratórios no Brasil: tempos e espaços”. Rio de Janeiro:

Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Textos para discussão), 2003.

Peliano, José Carlos. Acumulação de trabalho e mobilidade do capital. Brasília: Editora

da UnB, 1990.

Peña López, Ana Alicia. Migración internacional y superexplotación del trabajo. Mexico

DF: Itaca 2012.

Petit, Pere. Chão de promessas. Belém: Pakatatu, 2003.

Pinto, Lucio F. CVRD: a sigla do enclave na Amazônia. Belém: CEJUP, 2003.

Piore, M. J. Birds of passage: migrant labour industrial societies. Cambridge: Cambridge

Univ. Press., 1979.

Pochmann, M. “Evolução recente da rotatividade no emprego formal no Brasil”. Brasília:

IPEA, 2009. (Nota técnica).

Pochmann, M. A superterceirização dos contratos de trabalho. Campinas:

SINDEEPRES, 2007.

Pochmann, M. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira.

São Paulo: Boitempo, 2012.

Polanyi, K. (2000). A grande transformação. Rio de Janeiro: Elsevier.

Polanyi, K. “The economy as instituted process”. In: Polanyi; Arensberg; Pearson (eds.).

Trade and market in the early empires. Chicago: Henry Regnery, 1957.

Porter, L. W.; Steers, R. M. “Organizational, work, and personal factors in employee

turnover and absenteeism”. Psychological Bulletin, 1973, 80, 151-176.

Postone, Moishe. Time, labor and social domination. Cambridge, University Press, 1995.

Page 318: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

318

Prado Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.

Prates, Daniela. “A alta recente dos preços das commodities”. Revista de Economia

Política, vol. 27, nº 3 (107), pp. 323-344, julho-setembro/2007.

Queiroz, Pedro. Trabalhadores de Suape: estudo sobre a diversidade de experiências

operárias. Dissertação em Sociologia, Unicamp, 2014.

Rainho, Luis Flavio. Os peões do Grande ABC. Petropolis: Vozes, 1980.

Ramalho, José R.; Martins, Heloisa (Orgs.) Terceirização: negociação e diversidade no

mundo do trabalho. São Paulo: Hucitec, 1994.

Ramos, C. A.; Carneiro, F. “Rotatividade e instituições: benefícios ao trabalhador

desligado incentivam os afastamentos?”. Ipea, Texto para discussão nº 503, Brasília,

agosto de 1997.

Ramos, Carlos Alberto; Carneiro, Francisco. “Os determinantes da rotatividade no Brasil:

instituições x ciclos econômicos”. Nova Economia, 12 (2), julho-dezembro de 2002,

31-56.

Reydon; Guedes; Florencio. “Direitos de propriedade e usos econômicos da terra: um

estudo de caso de assentamentos de reforma agrária no sul do Pará”. Raízes, v.31,

n.2, jul-dez / 2011: 135-148.

Ribeiro Junior, Ribamar. A expansão da mineração: Problemas e Desafios Para Os

Assentados na Riqueza em Ourilândia do Norte – PA. Trabalho apresentado no VIII

Congresso Latinoamericano de Sociologia Rural, 2010.

Ribeiro, Gustavo Lins. (1987). “Cuanto más grande mejor?’ Proyectos de Gran Escala:

una forma de producción vinculada a la expansión de sistemas económicos”.

Desarrollo Económico. 105: 3-27.

Ribeiro, Gustavo Lins. Empresas transnacionais: um grande projeto por dentro. Brasília:

Marco Zero/ANPOCS, 1991.

Ribeiro, Gustavo Lins. O capital da esperança: a experiência dos trabalhadores na

construção de Brasília. Brasília: Editora UnB, 2008.

Ribeiro, Gustavo Lins. “Imobilização e dispersão da força de trabalho: considerações

sobre os modos de expansão concentrada e difusa”. Série antropologia, 172, Brasília,

1994.

Roberts, J. T. (1995). “Subcontracting and the omitted social dimensions of large

development projects: household survival at the Carajás mines in the Brazilian

Amazon”. Economic Development and Cultural Change, 43, 735-758.

Rodrigues, Leôncio Martins; Cardoso, Adalberto. Força Sindical: uma análise

sociopolítica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

Roncato, Mariana. Dekassegui, cyber-refugiado e working poor: o trabalho imigrante e o

lugar do outro na sociedade de classes. Dissertação em Sociologia, Unicamp, 2013.

Roseberry, William. “Political economy”. Annual review of Anthropology, vol. 17, pp.

161-185, 1988.

Rubin, Isaak. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.

Rumstain, Ariana. Peões no trecho: trajetórias e estratégias de mobilidade no Mato

Grosso. Rio de Janeiro: E-papers, 2012.

Santos, Breno Augusto dos. Amazônia: potencial mineral e perspectivas de

desenvolvimento. São Paulo: T.A. Queiroz, 1983.

Santos, Rodrigo S. P. A forja de Vulcano: siderurgia e desenvolvimento na Amazônia

Oriental e no Rio de Janeiro. Tese em Sociologia, UFRJ, 2010.

Santos, Rodrigo S. P. “Estado Nacional e desenvolvimento econômico na Amazônia

Oriental: modelos de ação estatal e representações da modernização induzida nos

últimos 40 anos”. In: Ramalho; Ferretti (orgs.). Amazônia: desenvolvimento, meio

ambiente e diversidade sociocultural. São Luis: Edufma, 2009.

Page 319: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

319

Santos, Valdeci. A economia do sudeste paraense: fronteira de expansão na periferia

brasileira. Tese em Desenvolvimento Econômico, UNICAMP, 2011.

Saraiva; Merces; Magalhães. “A terceirização na gestão da manutenção em uma empresa

mineradora de Minas Gerais”. XXVII Encontro Nacional de engenharia de produção.

Rio de Janeiro, 2008.

Sassen, Saskia. Expulsions. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2014.

Sassen, Saskia. The mobility of labor and capital: a study in international investment and

labor flow. Cambridge Univ. Press, 1992.

Sayad, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

Scotto, Gabriela. “Discursos globais e práticas locais: empresas, mineração e

desenvolvimento sustentável”. Trabalho apresentado no Encontro anual da Anpocs,

Caxambu, 2014.

Sennett, Richard. A corrosão do caráter. Rio de janeiro: Record, 2010.

Seoane, Jose et al. Extractivismo, despojo y crisis climática. Buenos Aires: Herramienta,

2013.

Serrano, Franklin. “A mudança na tendência dos preços das commodities nos anos 2000”.

Oikos. Rio de Janeiro, Volume 12, n. 2, 2013.

Sevá Filho, A. O. “Problemas intrínsecos e graves da expansão mineral, metalúrgica,

petrolífera, e hidrelétrica nas Amazônias”. in: Zhouri e Laschesfski (orgs),

Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Sevares, Julio. “Nueva vulnerabilidad financiero-comercial”. In: CEDLA (ed.).

Postneoliberalismo: cambio o continuidad. La Paz: CEDLA, 2009.

Sigaud, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana de

açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas Cidades, 1979.

Smith, Gavin. “Selective Hegemony and Beyond-Populations with “No Productive

Function”: A Framework for Enquiry”, Identities: Global Studies in Culture and

Power, 18:2–38, 2011.

Smith, Gavin. Hegemonía selectiva o administración de poblaciones: enfoques distintos

a la población residual. s/d.

Smith, John. Imperialism in the twenty-first century: globalization, super-exploitation

and capitalism’s final crisis. New York: Monthly Review, 2016.

Soares, Angelo. “Se eu pudesse não ser caixa de supermercado...”. In: Estudos

Feministas, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 5, n. 1, p. 82-102, jan/jun 1997.

Soederberg, S. “El debtfare y la creación de los cercos financieros: el caso del payday

(día de pago) de la industria prestamista”. Razón y revolución, n. 28, 2014, pp. 97-

117.

Soederberg, S. “The Mexican Debtfare State: Dispossession, Micro-Lending, and the

Surplus Population”. Globalizations, 9:4, pp. 561-575, 2012.

Soederberg, S. “The US Debtfare State and the Credit Card Industry”. Antipode. Vol. 45,

n. 2, March 2013, pp. 493-512.

Sotelo Valencia, Adrián. A reestruturação do mundo do trabalho: superexploração e

novos paradigmas da organização do trabalho. Uberlândia: Edufu, 2009.

Sotelo Valencia, Adrián. Los rumbos del trabajo: superexplotación y precariedad social

en el siglo XXI. Mexico DF: UNAM/Miguel Ángel Porrúa, 2012.

Souza, Carlos. Urbanização na Amazônia. Belém: UNAMA, 2000.

Souza, Keila; Alamino, Renata; Fernandes, Francisco. “Paracatu (MG): o conflito entre

o “Rio Bom” e a mineração”. In: Fernandes, Francisco et al. (eds.). Recursos

Minerais & Sustentabilidade Territorial: grandes minas. Rio de Janeiro:

CETEM/MCTI, 2011.

Standing, Guy. O precariado. Belo Horizonte: Autentica, 2015.

Page 320: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

320

Stavenhagen, Rodolfo. “Siete Tesis Equivocadas Sobre América Latina” [1965]. In:

Sociología y Subdesarrollo. México: Nuestro Tiempo, 1981, pp. 15‐84.

Svampa, M.; Antonelli, M. Minería transnacional, narrativas del desarrollo y

resistencias sociales. Buenos Aires: Biblos, 2010.

Targino, I.; Moreira, E. “Migração e trabalho na construção civil”. IV Encontro Nacional

sobre Migrações. Rio de Janeiro, 2005.

Taussig, M. The devil and commodity fetishism in South America. Chapel Hill: University

of North Carolina Press, 2010.

Taussig, Michael. “History as commodity: in some recent American anthropological

literature”. Critique of Anthropology. Vol. 9, n. 1, pp. 7-23, 1989.

Taylor, Frederick. Princípios de administração científica. São Paulo: Atlas, 2006.

Teles, G. “Mobilidade da força de trabalho e produção do espaço: o complexo industrial

e portuário do Pecém na região metropolitana de Fortaleza”. Revista Pegada, Vol.

15, No 2 (2014). Pp. 115-136.

Thompson, E. P. “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial” [1967]. In:

Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

Tomasi, A.; Costa, L. “De peão a colaborador: racionalização e subcontratação na

construção civil”. Caderno CRH. V. 27, nº 71, maio/ago, 2014. pp. 347-365.

Tomasi, Antonio. “A construção social da qualificação dos trabalhadores da construção

civil de BH”. Relatório de Pesquisa. 1999.

Trindade Jr., Saint-Clair; Rocha, Gilberto. Cidade e empresa na Amazônia. Belém:

Pakatatu, 2002.

Trindade, José Raimundo B. “Terceirização e impacto sobre as relações de trabalho na

indústria extrativa mineral: o caso da Mineração Rio do Norte”. Belém, Paper do

NAEA, 110, 1998.

Tropia, Patricia. Força Sindical: política e ideologia no sindicalismo brasileiro. São

Paulo: Expressão Popular, 2009.

Ulyssea, G. “Informalidade no mercado de trabalho brasileiro: uma resenha da literatura”.

Revista de Economia Política, vol. 26, n. 4 (104), pp. 596-618, outubro-dezembro

2006.

Vale S/A. Relatório de Sustentabilidade (2006; 2007; 2008; 2009; 2010; 2011; 2012;

2013; 2014). In: www.vale.com

Valladares, L. “Quebra-quebra na construção civil. O caso dos operários do metrô do

Rio.” In: Ciências Sociais Hoje. Movimentos urbanos, minorias e outros estudos.

Anpocs, 1983.

Velho, Otavio. Frentes de expansão e estrutura agrária: estudo do processo de

penetração numa área da Transamazônica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Velho, Otávio. Capitalismo autoritário e campesinato. Rio de Janeiro: Difel, 1976.

Velho, Otavio. “Análise preliminar de uma frente de expansão da sociedade brasileira”

[1967]. Sociedade e agricultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Velho, Otávio. “O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural

brasileiro” [1969]. Sociedade e agricultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Velho, Otavio. “Campesinatos e política”. In: Anuário Antropológico 77. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1978.

Velho, Otavio. Mais realistas do que o rei. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.

Venco, Selma. Tempos moderníssimos nas engrenagens do telemarketing. Tese em

Educação, Unicamp, 2006.

Veras, Roberto. “Brasil em obras, peões em luta, sindicatos surpreendidos”. Revista

Crítica de Ciências Sociais, 103, maio de 2014: 111-136.

Page 321: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

321

Villela, Fábio. “O admirável mundo novo do trabalho na indústria da construção civil”.

História Social. Nº 14-15, 2008, pp. 307-323.

Villela, Fábio. Indústria da Construção Civil e Reestruturação Produtiva. Tese em

Sociologia, Unicamp, 2007.

Vincent, Joan. “A sociedade agrária como fluxo organizado”. [1977]. In: Feldman-Bianco

(org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Edunesp,

2010.

Wolf, Eric. A Europa e os povos sem história [1982]. São Paulo: Edusp, 2005.

Woortmann, Klass. “Migração, família e campesinato”. Revista Brasileira de Estudos de

População, v.7, n.1, jan/jun, 1990.

Worsley, Peter. El tercer mundo. Mexico: Siglo Veintiuno Eds., 1973.

Yueh, L.; Knight, J. “Job mobility of residents and migrants in urban China”. Journal of

Comparative Economics, 32 (2004) 637–660.

Zamora Vargas, D. “A propósito de la sobre-población y del proletariado”. Herramienta

Web. 14, octubre de 2013.

Zhouri, Andrea; Laschefski, Klemens (org). Desenvolvimento e conflitos ambientais.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Zucarelli, Marcos; Santos, Ana. “Pode um mineroduto operar sem uma mina para

captação do minério?”. Trabalho apresentado no Encontro Anual da Anpocs,

Caxambu, 2014.

Page 322: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

322

ANEXO 1:

Sobre o conceito de exército industrial de reserva em Ruy Mauro Marini

Gil Felix

O debate que travaram Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini no final

dos anos 1970 se caracterizou por uma série de desentendimentos e, uma vez abortado

por Cardoso, acabou deixando muitos pontos em aberto386. Um deles é sobre a natureza

e origem do regime de superexploração do trabalho, que, segundo Marini, caracteriza as

formações dependentes.

Cardoso e Serra (1978) atribuíram a tese de Marini da superexploração do trabalho

ao intercâmbio desigual e sobre isso gastaram longo trecho de seu texto a fim de

demonstrar que Marini se equivocara, dentre outros pontos, ao confundir o intercâmbio

desigual com a “tendência à deterioração das relações de troca”, que, ainda que seja

relacionada à transferência de valor, trata-se de tema claramente distinto387. A resposta

de Marini (Marini, 1978), no entanto, também reafirma:

“(…) la superexplotación del trabajo es acicateada por el intercambio

desigual, pero no se deriva de él, sino de la fiebre de ganancia que crea

el mercado mundial, y se basa fundamentalmente en la formación de

una sobrepoblación relativa. Pero, una vez en marcha un proceso

económico sobre la base de la superexplotación, se echa a andar un

mecanismo monstruoso, cuya perversidad, lejos de mitigarse, es

acentuada al recurrir la economía dependiente al aumento de la

productividad, mediante el desarrollo tecnológico.” (id. ib. Grifos

meus)

Para Marini, portanto, a superexploração do trabalho é derivada do mercado

mundial e, tal como ele afirma categoricamente, se baseia na formação de uma

superpopulação relativa. Essa base a que se refere Marini pouco foi analisada e constitui

386 Prado (2011), por exemplo, chega a afirmar que teria ocorrido um “não-debate”. 387 Essa questão foi analisada recentemente por Borges Neto (2011); Amaral e Carcanholo (2012).

Page 323: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

323

um dos pontos em aberto do debate realizado com Cardoso e Serra388. Na falta de maiores

sistematizações da relação entre o regime de superexploração do trabalho e a formação

de uma superpopulação relativa, muitos entusiastas recorrem a teorizações alheias,

estranhas e por vezes até mesmo contraditórias à proposta de Marini e da teoria marxista

da dependência, em especial, quando pretendem dar conta da análise de questões relativas

à superpopulação relativa ou exército industrial de reserva nas formações dependentes.

Todavia, ainda que não tenha sistematizado as observações a respeito do exército

industrial de reserva em um texto específico, Marini assinalou em várias ocasiões sua

importância e centralidade para o esquema teórico que propunha, como é o caso do trecho

acima e de outros citados nesse artigo.

Sendo assim, apresento brevemente a teoria de Marini a respeito das formações

dependentes e, em seguida, analiso a importância, o papel e a função desempenhada pelo

exército industrial de reserva (EIR) em sua proposta. Como esse conceito se insere no

escopo de uma teoria mais ampla, optei por uma breve exposição de algumas das teses

gerais nas páginas seguintes, o que pode tornar a leitura relativamente enfadonha para

aqueles que já dominam a teoria do autor, a princípio. É importante frisar também que,

dado esse objeto, não se pretende aqui nem “constatar a atualidade” da teoria de Marini

e, muito menos, “atualizá-la”, o que seria um outro exercício.

1. Dependência e superexploração da força de trabalho

A partir de Marx, Marini se propôs a compreender uma realidade concreta, no

caso, a economia latino-americana e brasileira, que se caracterizaria pelo fato de que, à

raiz das condições de sua formação e desenvolvimento histórico, “agrava até o limite as

contradições inerentes à produção capitalista” (Marini, 1978).

Para Marini, a análise do capitalismo na América Latina leva a notar que o que

ocorre, na verdade, é o que ele denomina um capitalismo sui generis, “que só tem sentido

se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto a nível nacional

como, e principalmente, a nível internacional” (Marini, 2008: 108), uma vez que é nas

condições colocadas pelo mercado mundial na qual ele se forma e desenvolve histórica e

estruturalmente as principais características que o distinguem. Neste sentido, é o

388 Amaral e Carcanholo (2008) é uma exceção de abordagem exploratória nesse sentido, voltada

principalmente para a análise da transferência de valor. Antes dele, e paralelamente a Marini, Osorio (1979)

também buscou analisar a relação entre dependência, superexploração e exército de reserva.

Page 324: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

324

conhecimento da forma particular que tomou o capitalismo latino-americano que permite

compreender sua gestação e as tendências que o levaram até esta forma na qual se

apresenta, dependente. Os fenômenos pelos quais se distingue nada mais são do que

manifestações da maneira particular de como incide nessa economia a lei geral da

acumulação de capital.

A dependência é entendida como “(...) uma relação de subordinação entre nações

formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações

subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da

dependência” (Marini, 2008: 111). Tal relação se configurou a partir da Revolução

Industrial, que correspondeu, na América Latina, à independência política de um conjunto

de países que começaram a gravitar em torno da Inglaterra, trocando bens primários por

manufaturas de consumo e dívidas. É o surgimento da grande indústria que estabelece as

bases da divisão internacional do trabalho em que a América Latina se articula

plenamente com a economia mundial na condição de países exportadores de bens

primários e matérias primas industriais. É, inclusive, essa participação da América Latina

que permite deslocar o eixo da acumulação nas economias industriais da produção de

mais valia absoluta para a relativa, isto é, que a acumulação, naqueles países, passasse a

depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da

exploração do trabalhador. O efeito dessa oferta mundial de alimentos será o de reduzir o

valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo que o incremento na

produtividade se traduza em taxas de mais valia cada vez mais elevadas. A oferta de

matérias primas industriais, por outro lado, contribuiu para que se superasse o aumento

relativo do capital constante, aspecto contraditório criado pela acumulação de capital. A

América Latina, portanto, cumpre uma função crucial para esse desenvolvimento

industrial das economias centrais do capitalismo, ainda que essa mudança qualitativa

daqueles países se dê de forma a promover o efeito contrário na periferia do sistema, ou

seja, se dê fundamentalmente com base na maior exploração do trabalhador.

Partindo das condições colocadas pelo mercado mundial e a fim de atender a uma

demanda externa, a produção na América Latina não depende de sua capacidade de

consumo, havendo, então, uma especificidade do ciclo do capital nessas economias: a

separação da produção de mercadorias da sua circulação. Afirma Marini, em Dialéctica

de la dependencia [1973]:

Page 325: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

325

“Nacida para atender las exigencias de la circulación capitalista, cuyo

eje de articulación está constituido por los países industriales, y

centrada sobre el mercado mundial, la producción latinoamericana no

depende para su realización de la capacidad interna de consumo. Se

opera así, desde el punto de vista de país dependiente, la separación de

los dos momentos fundamentales del ciclo del capital – la producción y

la circulación de mercancías – cuyo efecto es hacer que aparezca de

manera específica en la economía latinoamericana la contradicción

inherente a la producción capitalista en general, es decir, la que opone

el capital al trabajador en tanto que vendedor y comprador de

mercancías.” (Marini, 2008: 132).

Uma vez separadas as esferas da produção e da circulação, e considerando que o

consumo individual do trabalhador não interfere na realização das mercadorias, a

tendência é a maior exploração da força de trabalho, assim como a busca pela

incorporação e pela reposição de mais trabalhadores no sistema produtivo. É justamente

sobre a possibilidade e as condições nas quais ocorre essa incorporação e reposição da

força de trabalho que constituem uma das funções específicas do EIR nas economias

dependentes, aspecto a que voltaremos mais adiante. Sobre isso, Marini sintetiza:

“Como la circulación se separa de la producción y se efectúa

básicamente en el ámbito del mercado externo, el consumo individual

del trabajador no interfiere en la realización del producto, aunque sí

determine la cuota de plusvalía. En consecuencia, la tendencia natural

del sistema será la de explotar al máximo la fuerza de trabajo del obrero,

sin preocuparse de crear las condiciones para que éste la reponga,

siempre y cuando se le pueda reemplazar mediante la incorporación de

nuevos brazos al proceso productivo.” (Marini, 2008: 134).

Segundo Marini, essa tendência para explorar ao máximo a força de trabalho, ou

superexploração do trabalho, na produção interna, se dá basicamente por meio de três

mecanismos: aumento da intensidade do trabalho, prolongamento da jornada de trabalho

e redução do consumo do trabalhador para além de seu limite normal, ou transformação

do fundo de consumo do trabalhador em fundo de acumulação de capital. A característica

principal desses três mecanismos é o fato de se negar ao trabalhador as condições

necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho, “(...) en los dos primeros casos,

porque se le obliga a un dispendio de fuerza de trabajo superior al que debería

proporcionar normalmente, provocándose así su agotamiento prematuro; en el último,

porque se le retira incluso la posibilidad de consumir lo estrictamente indispensable para

Page 326: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

326

conservar su fuerza de trabajo en estado normal. En términos capitalistas, estos

mecanismos (que además se pueden dar, y normalmente se dan, en forma combinada)

significan que el trabajo se remunera por debajo de su valor, y corresponden, pues, a una

superexplotación del trabajo” (id.ib.: 127).

Marini também enfatiza outro aspecto que deve ser considerado na troca

comercial entre as economias exportadoras da periferia do sistema e as economias

industriais que é a queda relativa dos preços de alimentos e matérias primas em relação

aos preços das manufaturas e, portanto, ao intercâmbio desigual que caracteriza o

comércio internacional. Afirma Marini que essa queda relativa dos preços se constitui por

mecanismos de transferência de valor dados por maior produtividade e/ou pelo

monopólio de produção de determinadas economias em relação a outras. As nações

desfavorecidas pelo intercambio desigual não buscariam corrigir o desequilíbrio entre os

preços e o valor de suas mercadorias exportadas recorrendo a um aumento da capacidade

produtiva do trabalho, mas sim a uma maior exploração do trabalhador, ou seja,

recorrendo a um mecanismo de compensação que se trata do incremento da massa de

valor produzida por meio de uma maior exploração do trabalho. Sendo incapaz de

compensar a perda de mais valia por meio das relações de mercado, a economia

dependente a compensa, nesse sentido, por meio da produção interna, recorrendo a uma

maior exploração do trabalho. Porém, tal como já dito, é a própria integração ao mercado

mundial que dá as condições para que os mecanismos de superexploração do trabalho

sejam utilizados por parte dos capitalistas na economia dependente. A esse respeito,

Marini afirma:

“Por otra parte, no es en rigor necesario que exista el intercambio

desigual para que empiecen a jugar los mecanismos de extracción de

plusvalía mencionados [superexplotación del trabajo]; el simple hecho

de la vinculación al mercado mundial, y la consiguiente conversión de

la producción de valores de uso a la de valores de cambio que ello

acarrea, tiene como resultado inmediato desatar un afán de ganancia

que se vuelve tanto más desenfrenado cuanto más atrasado es el modo

de producción existente. (…) El efecto del intercambio desigual es – en

la medida que le pone obstáculos a su plena satisfacción – el de

exacerbar ese afán de ganancia y agudizar por tanto los métodos de

extracción del trabajo excedente” (Marini, 2008: 125-126).

A partir de uma produção baseada na superexploração do trabalho e voltada para

a exportação e de um consumo individual dos capitalistas que se realiza por meio de um

Page 327: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

327

comércio de importação, a economia dependente exportadora dá origem a uma

estratificação do mercado interno que se estrutura em duas esferas de circulação: a esfera

“alta” (dos não trabalhadores, do consumo baseado na mais valia não acumulada) e a

esfera “baixa” (dos trabalhadores, do consumo baseado no salário). A expectativa de

consumo das camadas remuneradas pela mais valia não acumulada não tem contrapartida

na produção interna, que é voltada para o mercado mundial, e, portanto, tem que se

satisfazer com importações. Por outro lado, a produção se funda na superexploração do

trabalho e não estabelece uma camada de trabalhadores cujo consumo influencie na

demanda interna, sacrificado em favor da exportação.

Essas contradições da economia exportadora são fundantes dos problemas e

tendências que se observam no momento em que parte dos países da América Latina se

industrializam e o sistema capitalista mundial atinge outro patamar de desenvolvimento.

Ao contrário de se corrigir ou de terem amenizadas as diferenças das economias latino-

americanas frente às antigas economias industriais, como previam as ideologias

desenvolvimentistas, o que ocorre após os anos 1930 é o recrudescimento dessas

contradições, ainda que em um outro nível, mais complexo.

Nas economias capitalistas clássicas, a acumulação de capital e a formação do

mercado interno se complementam; o capital cria o assalariado e também, ao mesmo

tempo, o consumidor. A ligação entre a esfera alta e baixa de consumo se distende, mas

não se rompe, uma vez que a esfera alta é uma consequência da transformação das

condições de produção (se estende na medida em que aumenta a produtividade do

trabalho). Todavia, os bens suntuários se convertem em produtos de consumo popular no

interior da economia industrial. Já a industrialização latino-americana se configura em

bases diferentes. Primeiro, porque se estabelece a partir de uma demanda preexistente e

se dá quando fatores externos fecham o acesso da esfera alta de consumo e circulação ao

comércio de importação. Nasce para suprir esta demanda preexistente e não se estrutura

a fim de incorporar como consumidores as camadas trabalhadoras, pelo contrário, é

independente delas e mantém as condições de superexploração que caracterizavam a

produção da economia exportadora. Ela, portanto, não cria a própria demanda e se

estrutura em função dos requerimentos de mercado precedentes dos países avançados. A

separação entre as esferas alta e baixa de consumo se transferem para o interior da própria

economia, mas sem os fatores que atuam nas economias clássicas e com um caráter muito

mais radical. Afirma Marini:

Page 328: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

328

“Dedicada a la producción de bienes que no entran, o entran muy

escasamente, en la composición del consumo popular, la producción

industrial latinoamericana es independiente de las condiciones de

salario: en primer lugar porque, como no es un elemento esencial del

consumo individual del obrero, el valor de las manufacturas no

determina el valor de la fuerza de trabajo; no será, pues, la

desvalorización de las manufacturas lo que influirá en la cuota de

plusvalía. Esto dispensa al industrial de preocuparse de aumentar la

productividad del trabajo para, haciendo bajar el valor de la unidad de

producto, depreciar la fuerza de trabajo, y lo lleva, inversamente, a

buscar el aumento de la plusvalía mediante una mayor explotación –

intensiva y extensiva – del trabajador, así como la rebaja de salarios

más allá de su limite normal. En segundo lugar, porque la relación

inversa que de ahí se deriva para la evolución de la oferta de mercancías

y del poder de compra de los obreros, es decir, el hecho de que la

primera crezca a costa de la reducción del segundo, no le crea al

capitalista problemas en la esfera de la circulación, toda vez que, como

hicimos notar, las manufacturas no son elementos esenciales para el

consumo individual del obrero.” (id.ib.: 141-142).

À medida que avançou a industrialização na América Latina, mudaram as

características das importações, que deixam de ser bens de consumo para se consolidarem

em matérias primas, produtos semielaborados e máquinas destinadas à indústria, assim

como adquirem especial importância a importação de capital estrangeiro sob a forma de

financiamento e investimentos diretos na indústria. Após a crise mundial, há uma nova

conjuntura no pós-II Guerra, que se caracteriza por: a) concentração e centralização do

capital em grandes corporações que buscam aplicação de capital no exterior; b) fluxo de

capital que se dirige principalmente para o setor industrial; c) interesse das economias

centrais na industrialização da periferia, com o propósito de criar mercado para a indústria

pesada, por conta do grande desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias

centrais; d) necessidade de exportar para a periferia equipamentos e maquinaria que se

tornavam obsoletos e que assim ficavam cada vez mais rápido. Há, nesse sentido, uma

nova divisão internacional do trabalho, na qual há transferência das etapas inferiores da

produção industrial para a periferia, reservando aos centros imperialistas as etapas mais

avançadas e o monopólio da tecnologia correspondente (produção de computadores e

indústria eletrônica pesada em geral, novas fontes de energia, como a nuclear, etc). Ou

seja, como descreve Marini, o momento em que as economias industriais dependentes

crescem e se voltam ao exterior para buscar tecnologias que deem conta desse

crescimento, incrementando sua produtividade, é o mesmo momento em que nos países

Page 329: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

329

centrais se formam importantes fluxos de capital que se dirigem até elas com tal

instrumental tecnológico. Porém, como o progresso e a difusão técnica se dão nas

condições de produção industrial das economias dependentes, quer dizer, na produção de

bens que não são consumidos pelos trabalhadores e com maior exploração intensiva e

extensiva da força de trabalho, é possível a reprodução de um fenômeno peculiar a essas

formações, que é o aumento da produtividade com mais exploração, sem alteração da taxa

de mais valia, já que esse aumento não significa necessariamente redução do valor da

força de trabalho:

“Es así como, incidiendo sobre una estructura productiva basada en la

mayor explotación de los trabajadores, el progreso técnico hizo posible

al capitalista intensificar el ritmo de trabajo del obrero, elevar su

productividad y, simultáneamente, sostener la tendencia a remunerarlo

en proporción inferior a su valor real. Para ello concurrió decisivamente

la vinculación de las nuevas técnicas de producción a ramas industriales

orientadas hacia tipos de consumo que, si tienden a convertirse en

consumo popular en los países avanzados, no pueden hacerlo bajo

ningún supuesto en las sociedades dependientes. (…) En esta medida,

y toda vez que no representan bienes que intervienen en el consumo de

los trabajadores, el aumento de productividad inducido por la técnica

en esas ramas de producción no ha podido traducirse en mayores

ganancias mediante la elevación de la cuota de plusvalía, sino tan sólo

mediante el aumento de la masa de valor realizado. La difusión del

progreso técnico en la economía dependiente marchará, pues, de la

mano con una mayor explotación del trabajador, precisamente porque

la acumulación sigue dependiendo en lo fundamental más del aumento

de la masa de valor – y por ende de plusvalía – que de la cuota de

plusvalía.” (ib.id.: 147. Grifos do autor).

Além disso, afirma Marini, o desenvolvimento tecnológico se concentra nos

ramos produtores de bens suntuários e há transferência de renda das camadas da esfera

baixa para a alta de circulação, aliados a investimentos e financiamentos do Estado para

estimular o consumo suntuário. Ao contrário de se aproximar, as duas esferas se afastam

mais e, inclusive, dão origem a uma estratificação industrial no interior da economia

dependente, entre indústrias “dinâmicas” (produtoras de bens suntuários e bens de capital

que se destinam a elas) e indústrias “tradicionais” (orientadas ao consumo de massas).

Enquanto as primeiras crescem a taxas elevadas, as outras tendem ao estancamento e até

à regressão. A produção baseada na superexploração do trabalho, mais uma vez,

estabelece o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo que divorcia o

Page 330: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

330

aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A estrutura de circulação se

adequa à estrutura de produção própria do capitalismo dependente, o que se reflete na

estratificação do aparato produtivo.

A partir dos anos 1960, dadas as restrições do mercado interno, há uma nova

expansão, mas, agora, voltada ao mercado externo. Isso faz com que haja mais uma

reaproximação do modelo da velha economia exportadora latino-americana, ainda que,

nesse momento, com exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de bens

suntuários:

“(...) no pudiendo extender a los trabajadores la creación de demanda

por los bienes suntuarios, y orientándose antes hacia la compresión

salarial que los excluye de facto de ese tipo de consumo, la economía

industrial dependiente no sólo ha debido contar con un inmenso ejército

de reserva, sino que ha obligado a los capitalistas y capas medias a

restringir la realización de las mercancías de lujo. Ello plantearía a

partir de cierto momento (que se define nítidamente a mediados de la

década de 1960), la necesidad de expandirse hacia el exterior, es decir,

de desdoblar nuevamente – aunque ahora a partir de la base industrial –

el ciclo de capital, para centrar parcialmente la circulación sobre el

mercado mundial. La exportación de manufacturas, tanto de bienes

esenciales como de productos suntuarios, se ha convertido entonces en

la tabla de salvación de una economía incapaz de superar los factores

disruptivos que la afligen”. (id.ib.: 148. Grifos do autor).

Nesse sentido, conclui Marini, o fundamento da dependência é a superexploração

do trabalho. É a superexploração o fenômeno que fundamenta a formação da economia

exportadora e, depois, determina o desenvolvimento da economia industrial dependente

nas suas diversas fases e na sua expansão produtiva. E a base da superexploração do

trabalho é, como afirma Marini, um “imenso exército industrial de reserva” que

caracteriza as formações sociais dependentes e as singulariza frente a outras formações.

É, assim, sobre este exército industrial de reserva (EIR) ampliado, base da

superexploração da força de trabalho, ou seja, sobre um EIR que se forma e se reproduz

socialmente com determinadas especificidades colocadas pela formação social

dependente que cabe agora discorrer.

2. Acumulação de capital e EIR (em geral e na formação social dependente)

Page 331: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

331

O conceito de EIR ou superpopulação relativa foi formulado por Marx no Livro I

de O Capital para dar conta de um fenômeno que está diretamente relacionado à

acumulação de capital389. Marini desenvolve e analisa as formas que assume o EIR numa

determinada situação concreta específica, isto é, nas formações sociais dependentes.

Antes de enumerar essas características específicas, cabe, portanto, explicar como se

forma e se reproduz socialmente o EIR de maneira geral.

No capítulo 23 de O Capital, A lei geral da acumulação capitalista, Marx examina

“a influência que o aumento do capital exerce sobre o destino da classe trabalhadora”

(Marx, 2013: 689). Seu fator mais importante é a composição do capital e as variações

que ela sofre ao longo do processo de acumulação. Marx demonstra, nesse sentido, que

há uma diminuição relativa do capital variável (parte que se refere ao valor da força de

trabalho, ou à soma total de salários) na composição do capital à medida que avançam a

acumulação e a concentração que a acompanha. Ou seja, o progresso da acumulação de

capital diminui relativamente seu componente variável enquanto aumenta o componente

constante, isto é, o valor dos meios de produção consumidos, ainda que haja aumento da

grandeza absoluta do capital variável. Quanto maior a acumulação, quanto maior o

desenvolvimento da produtividade do trabalho social, maior a mudança na composição

técnica do capital, com maior importância da sua parte constante em detrimento da sua

parte variável. É como se pudéssemos calcular essa composição em um dado momento

consolidada em 50% cada e, num segundo momento, com a acumulação do capital, em

70% de capital constante e 30% de variável, depois 80% e 20% e assim por diante. Com

isso, Marx se refere à tendência de aumento da composição orgânica do capital (COC) ao

longo do tempo, sendo que o aumento da COC faz com que se empregue, relativamente,

cada vez menos força de trabalho face aos meios de produção. Com o desenvolvimento

do modo de produção capitalista, há uma redução proporcional da força de trabalho

empregada:

389 Marx trata os dois termos como sinônimos no O Capital [1867], texto em que conceitua, revisa e publica.

Nos “Grundrisse” [1857], ele utiliza apenas a denominação “superpopulação” e faz menção também a um

contexto mais amplo, a outros modos de produção específicos que não o capitalista. É em O Capital que

ele utiliza EIR ou superpopulação relativa para designar um fenômeno do capitalismo, em especial. Há um

debate a respeito da melhor tradução para o português entre “exército de reserva industrial” ou “exército

industrial de reserva”, que foi utilizada nas publicações brasileiras. Antes dele, em 1845, Engels (2010)

descreve a situação de um “exército” ou “reserva” de trabalhadores desempregados na Inglaterra. Marx

também já lidava com a questão desde 1847, como se observa em outros manuscritos não publicados.

Ambos, porém, teriam retirado os termos (exército de reserva) de metáforas criadas no seio do próprio

movimento operário da época. Marini utilizou o que aqui abreviei na sigla EIR.

Page 332: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

332

“A contínua reconversão de mais-valor em capital apresenta-se como

grandeza crescente do capital que entra no processo de produção. Este

se torna, por sua vez, o fundamento de uma escala ampliada da

produção, dos métodos nela empregados para o aumento da força

produtiva do trabalho e a aceleração da produção de mais-valor. Se,

portanto, certo grau da acumulação do capital aparece como condição

do modo de produção especificamente capitalista, este último provoca,

em reação, uma acumulação acelerada do capital. Com a acumulação

do capital desenvolve-se, assim, o modo de produção especificamente

capitalista e, com ele, a acumulação do capital. Esses dois fatores

econômicos provocam, de acordo com a conjugação dos estímulos que

eles exercem um sobre o outro, a mudança na composição técnica do

capital, o que faz com que o seu componente variável se torne cada vez

menor em comparação ao componente constante.” (Marx, 2013: 700-

701).

Por sua vez, maior acumulação significa também mais capitalistas, quer dizer, o

crescimento do capital social se reflete no crescimento de muitos capitais individuais e,

com o crescimento destes, a concentração dos meios de produção, formação de novos

capitais e reprodução em escala ampliada. Junto à acumulação e à concentração que a

acompanha, Marx também se refere a outro processo, o de centralização do capital, que

é a conversão dos capitais menores em capitais maiores, a supressão de suas

independências individuais e a sua fusão em unidades maiores, o reagrupamento

quantitativo, portanto, dos componentes do capital social. Tanto o capital adicional,

formado no decorrer da acumulação, quanto o velho capital, que reproduz a cada

momento uma nova composição, ocupam relativamente menos trabalhadores. O primeiro

por atrair cada vez menos trabalhadores, proporcionalmente ao seu volume, o segundo

por repelir cada vez mais trabalhadores, a cada novo período de acumulação.

A acumulação capitalista produz constantemente, assim, uma parcela da

população trabalhadora que se torna supérflua em relação ao capital, isto é, relativamente

excessiva, excedente para as necessidades de valorização do capital. Marx a denomina

EIR ou superpopulação relativa. Segundo Marx, cada modo de produção particular na

história tem suas leis de população particulares, válidas historicamente, e, no caso do

capitalismo, a verificação de uma população excedente é tanto um produto necessário da

acumulação de capital quanto uma alavanca dessa acumulação e “(...) até mesmo uma

condição de existência do modo de produção capitalista” (id.ib.: 707). Ela fornece a suas

necessidades variáveis de valorização o material humano sempre pronto para ser

explorado, independentemente dos limites naturais do aumento populacional.

Page 333: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

333

Sendo determinado pela acumulação de capital, um produto dela, quanto maior

seu crescimento e maior a riqueza produzida, maior o EIR em todas as suas camadas,

incluído o pauperismo. Mais riqueza, mais miséria; eis a lei geral da acumulação, segundo

Marx:

“Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o

volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza

absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior

será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se

desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A

grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha,

pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse

exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto

maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na

razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem

as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de

reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral,

absoluta, da acumulação capitalista.” (Marx, 2013: 719-720. Grifo do

autor).

E, se é o capital que tem controle sobre a oferta de força de trabalho, criando, com

o aumento da COC, uma população trabalhadora sempre disponível, que independe do

crescimento natural da classe trabalhadora, é ele também que controla a demanda da força

de trabalho, que se dá de acordo com o próprio ritmo da acumulação de capital. É a

amplitude da acumulação de capital que faz fileiras do EIR serem recrutadas quando a

acumulação de capital aumenta e engrossarem quando ela diminui. Essas fileiras

acompanham as oscilações do mercado de força de trabalho e, por sua vez, os movimentos

da acumulação de capital nas suas fases média, de produção a todo vapor ou de crise e

estagnação, cada qual com maior ou menor absorção do EIR. Trata-se de um jogo de

“dados viciados”, conclui Marx, pois o despotismo do capital é completo: se institui tanto

na oferta de trabalho quanto na sua demanda:

“A demanda de trabalho não é idêntica ao crescimento do capital, e a

oferta de trabalho não é idêntica ao crescimento da classe trabalhadora,

como se fossem duas potências independentes a se influenciar

mutuamente. Les dés sont pipés [os dados estão viciados]. O capital age

sobre os dois lados ao mesmo tempo. Se, por um lado, sua acumulação

aumenta a demanda de trabalho, por outro, sua “liberação” aumenta a

oferta de trabalhadores, ao mesmo tempo que a pressão dos

desocupados obriga os ocupados a pôr mais trabalho em movimento,

Page 334: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

334

fazendo com que, até certo ponto, a oferta de trabalho seja independente

da oferta de trabalhadores. O movimento da lei da demanda e oferta de

trabalho completa, sobre essa base, o despotismo do capital.” (Marx,

2013: 715).

A produção e a existência de uma superpopulação relativa disciplina regimes e

dinâmicas de trabalho do exército ativo de trabalhadores, seja no sentido do capitalista

exigir a intensificação e/ou a extensão do seu trabalho, seja no sentido de impor o preço

da força de trabalho, o salário, ou outros ditames do capital. Por outro lado, afirma Marx,

dada a concorrência, o sobretrabalho que é exigido da parte ocupada da classe

trabalhadora termina por engrossar as fileiras do EIR.

No caso da economia dependente, é a existência do EIR que sustenta o regime de

superexploração da força de trabalho, assim como, ao mesmo tempo, a existência deste

regime estabelece a formação de um EIR ampliado. A superexploração do trabalho se

caracteriza, como já dito, pela intensificação do trabalho, pelo prolongamento da jornada

de trabalho e pela remuneração do trabalhador por debaixo do valor da força de trabalho,

quer dizer, pela maior exploração intensiva e extensiva da força de trabalho do exército

ativo de trabalhadores. A existência de um “imenso EIR”, como afirma Marini, é a base

desse regime, na medida em que dá as condições para a imposição do mesmo ao conjunto

da classe trabalhadora numa formação social dependente. Por outro lado, dadas as

singularidades desse regime, ao exigi-lo do exército ativo de trabalhadores, se forma e se

reproduz um EIR nas enormes proporções e com as características que se apresenta nos

países da periferia do capitalismo. A seguir, enumerarei os processos que levam à

produção desse EIR ampliado nas formações sociais dependentes.

a) papel do capital estrangeiro

Em “El ciclo del capital en la economia dependiente” (1979b), Marini demonstra

de que maneiras se manifesta a dependência em relação ao exterior nas economias

dependentes e o caráter que assume a produção interna a partir disso. Para tanto, ele

analisa as três fases do ciclo do capital: circulação, produção e circulação novamente,

sintetizados na fórmula D – M ... P ... M’ – D’. Na primeira fase de circulação, o capital

dinheiro toma a forma de mercadorias (meios de produção e força de trabalho). Na

economia dependente, esse capital dinheiro tem três fontes: o capital privado interno, o

investimento público (Estado) e o capital estrangeiro. Destas, assumem grande

Page 335: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

335

importância o Estado e o capital estrangeiro. Interessa-nos aqui principalmente o capital

estrangeiro, que se apresenta sob duas formas: como investimento direto (forma que era

predominante na América Latina até a década de 1960) e como investimento indireto, que

é quando o capital estrangeiro se põe à disposição dos capitalistas internos (nacionais e

estrangeiros) sob a forma de empréstimos ou financiamentos – maneira pela qual ele deixa

de assumir os riscos da produção e realização dessa mais-valia. É importante frisar que o

capital estrangeiro se move tanto no sentido de entrada na economia dependente quanto

no de saída, na forma de transferências de mais-valia para o exterior. Na medida em que

se incorpora nessa fase, o capital estrangeiro, fator externo à economia dependente e

totalmente fora de seu controle, se internaliza e se constitui como um fator direto do ciclo

de capital, do qual depende o processo de acumulação e produção e o restante do ciclo.

Importa destacar que essa economia depende do fluxo externo de capital, assim

como também depende, para completar a primeira fase de circulação, de meios de

produção adquiridos no exterior, o que faz com que o ciclo de capital seja, como afirma

Marini, duplamente articulado e duplamente dependente do exterior. Parte dos meios de

produção vem do exterior, particularmente equipamentos e maquinaria. Isso ocorre em

qualquer economia, porém, na economia dependente, se ganha um contorno especial, uma

vez que sua industrialização não é “orgânica”, quer dizer, a indústria de bens de consumo

não obriga e tem como consequência o desenvolvimento da indústria de bens de capital.

Segundo Marini, a economia dependente não conta com um setor dinâmico de bens de

capital, que têm origem em boa parte no setor de bens de capital dos países avançados,

adquiridos, portanto, do exterior, via mercado mundial. E essa dependência não é apenas

dos equipamentos, mas também do conhecimento necessário para operá-los e, quando é

o caso, da tecnologia para fabricá-los.

Dentre outras consequências, a inserção dessa maquinaria e tecnologia,

desenvolvidas para uma economia formada sobre outro padrão de produção e

produtividade, leva a uma rápida expansão do EIR na economia dependente. As novas

técnicas de produção inseridas são construídas em contextos no qual há busca por maior

produtividade da força de trabalho e redução do número de trabalhadores empregados.

A segunda fase do ciclo, de acumulação e produção, se desenvolve a partir da

primeira: as empresas estrangeiras ou associadas, com acesso a uma tecnologia mais

avançada, operam com meios de produção que lhes garante supremacia em relação às

empresas nacionais, obtendo uma mais-valia extraordinária e concentrando cada vez mais

do que se investe na economia dependente. As empresas médias e pequenas, que operam

Page 336: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

336

em condições médias de produção (ou abaixo disso) e transferem parte da mais-valia para

as empresas monopólicas, reagem a essa situação recompondo sua taxa de lucro através

da elevação da taxa de mais-valia, obtida a custo da extração de mais trabalho não

remunerado de seus trabalhadores e sem variação significativa na produtividade, ou seja,

através da superexploração do trabalho. Por sua vez, os capitais monopólicos também se

encarregam de empregar trabalhadores com remuneração similar à das demais empresas,

com salários inferiores ao valor da força de trabalho, e se completa, nesse sentido, um

círculo vicioso.

A produção, portanto, é realizada em condições de superexploração do trabalho e

com base na rápida criação e expansão de um EIR que cresce a partir de características

inerentes ao ciclo do capital na economia dependente, em especial, como já dito, a partir

da forma com que incide o investimento estrangeiro. A superexploração do trabalho, por

um lado, comprime o exército ativo e faz com que ele cresça lentamente, exigindo mais

trabalho da parte ocupada da classe trabalhadora. Por outro lado, o capital estrangeiro,

do qual depende o ciclo do capital desde o início, promove a inserção de tecnologias e

maquinaria “enxutas” em mão de obra, formando, por esses dois fatores, um EIR

ampliado. Na economia dependente, o aumento da produtividade expande de forma

radical o EIR. Aqui, como em todos os demais aspectos, a formação dependente revela

mais uma vez sua essência interna que, tal como descreve Marini, “corresponde à

agudização até o limite das contradições inerentes ao modo de produção capitalista” (id.

ib.). Marini resume:

“En la economía dependiente, ese ejercito de reserva tiende a crecer

desde el momento en que se introducen (principalmente a través del

capital extranjero, como ya vimos) nuevas técnicas de producción,

diseñadas para economías donde la mano de obra es relativamente

escasa y que obedecen, por lo demás, a la búsqueda natural de una

mayor productividad y, por ende, de más producción por hombre-hora.

Vimos también que a esa introducción de tecnología corresponde la

agilización de formas de superexplotación que implican también

arrancar más producción a los obreros ya en funciones. Se reduce en

consecuencia la capacidad del capital para emplear más mano de obra,

haciendo que el ejército obrero activo crezca a un ritmo lento, lo que

resulta como contrapartida en expansión rápida del ejército de reserva.”

(Marini, 1979b).

b) aumento da produtividade

Page 337: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

337

Como foi dito acima, o aumento de produtividade nas economias dependentes

corresponde a uma expansão radical do EIR. E, cabe mencionar, o aumento de

produtividade não é incongruente com o regime de superexploração do trabalho, que,

devido às características descritas anteriormente, obstaculiza a passagem da produção de

mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa enquanto forma hegemônica de produção

de valor nas economias dependentes. Ao contrário do que ocorreu no desenvolvimento

histórico do capitalismo clássico nos países avançados, a produção de mais-valia relativa

não se converteu dominante nas relações entre capital e trabalho nas formações

dependentes, considerando que a superexploração do trabalho, fundamento da

dependência, é o regime predominante. Como já se descreveu, o aumento da

produtividade na produção realizada na economia dependente não visa uma produção de

mais-valia baseada no rebaixamento do valor da força de trabalho, mas sim no aumento

da massa de valor produzida, uma vez que essa produção se volta para artigos que não

entram, ou entram muito escassamente, no consumo individual dos trabalhadores que, por

outro lado, estão sujeitos a um regime que preza pela intensificação do trabalho, pelo

aumento da jornada de trabalho e pelo rebaixamento indefinido dos salários.

Não há e nem houve, como muito já se debateu a respeito da teoria formulada por

Marini (2008; 2008a), ausência de aumento da produtividade na economia dependente,

ainda que, nesse sentido, tal aumento de produtividade se desenvolva em condições de

superexploração do trabalho, ou seja, não se confunda necessariamente com produção de

mais-valia relativa, que é o que ocorre nos países avançados, no mínimo desde o grande

período da Revolução Industrial na Inglaterra390.

Nesse sentido, em Dialectica de la dependência (2008 e 2008a) Marini faz

questão de diferenciar os conceitos de produtividade e de mais-valia relativa. Ele explica

que uma maior capacidade produtiva do trabalho não significa necessariamente aumento

da mais-valia relativa, ainda que seja uma condição primordial para que ela ocorra. Ao

aumentar a produtividade, o trabalhador cria mais produtos no mesmo tempo, mas não

mais valor. O capitalista, com isso, consegue rebaixar o valor individual das suas

mercadorias em relação ao seu valor social, isto é, ao que se atribui devido às condições

gerais da produção, e consegue assim uma mais-valia superior aos demais capitalistas,

uma mais-valia extraordinária. A busca pela apropriação dessa mais-valia, de um lucro

390 Vale lembrar que nos países avançados, desde este período, junto às transformações técnicas do sistema

produtivo se incorporou paulatinamente os trabalhadores no consumo dos bens produzidos pelas fábricas

da grande indústria.

Page 338: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

338

extraordinário, é, na verdade, o que move o capitalista. Mas isso não modifica a taxa de

mais-valia, o grau de exploração do trabalho na economia, o que apenas ocorre se houver

mudança na relação entre o tempo de trabalho excedente e o tempo de trabalho necessário

a favor do capitalista, ou seja, se reduzir o tempo em que o trabalhador reproduz o valor

de sua força de trabalho, o seu salário. E, para que o valor da força de trabalho seja

rebaixada, é preciso que a desvalorização das mercadorias produzidas incida sobre

aquelas que compõem o conjunto dos bens necessários para a reprodução da força de

trabalho, os bens-salário. Apenas quando se rebaixa o valor dos bens-salário há mudança

da taxa de mais-valia e, portanto, produção de mais-valia relativa. Sendo assim, o

aumento da produtividade provoca essa desvalorização dos bens-salário, mas isso não

ocorre necessariamente. E é justamente isso o que faz com que, nas economias

dependentes, por exemplo, haja a produção de mais-valia extraordinária e, nesse sentido,

aumento da intensidade e da produtividade do trabalho, sem que haja,

predominantemente, produção de mais-valia relativa. Marini, em conclusão, escreve que

esse é o problema de fundo que a teoria marxista da dependência está urgida a enfrentar,

isto é:

“(…) el hecho de que las condiciones creadas por la superexplotación

del trabajo en la economía capitalista dependiente tienden a obstaculizar

su tránsito desde la producción de plusvalía absoluta a la de plusvalía

relativa, en tanto que forma dominante en las relaciones entre capital y

el trabajo. La gravitación desproporcionada que asume en el sistema

dependiente la plusvalía extraordinaria es un resultado de esto y

corresponde a la expansión del ejército de reserva y al estrangulamiento

relativo de la capacidad de realización de la producción. Más que meros

accidentes en el curso del desarrollo dependiente o elementos del orden

de la transición, estos fenómenos son manifestaciones de la manera

particular de cómo incide en la economía dependiente la ley general de

la acumulación de capital. En última instancia, es de nuevo a la

superexplotación del trabajo que tenemos que referirnos para

analizarlos.” (Marini, 2008a: 163)

A dificuldade para se generalizar a mais-valia relativa não significa ausência de

incremento na produtividade do trabalho nas economias dependentes. E, como verificado

no processo de industrialização de alguns desses países, muito pelo contrário. Tal como

descrito por Marini (2008a), o aumento de produtividade se conjuga com a

superexploração do trabalho e é, inclusive, possibilitada por ele, na medida em que a

produção capitalista não suprime os mecanismos de maior exploração do trabalhador,

Page 339: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

339

mas, pelo contrário, os acentua, sempre que alcança uma forma de produzir mais em

menos tempo, ou no mesmo tempo que antes. Há uma estreita interdependência entre o

aumento da produtividade, a intensificação do trabalho e a duração da jornada, cada qual

possibilitando o incremento do outro.

Por sua vez, o aumento da capacidade produtiva do trabalho é, como já descrevia

Marx, expansão do EIR, uma vez que esse aumento implica na redução da parte relativa

à força de trabalho na composição do capital. Nas condições da formação social

dependente, tal tendência se agrava ao limite, pois o aumento da produtividade se

desenvolve em meio a um regime de superexploração do trabalho, exigindo mais trabalho

do exército ativo de trabalhadores ao mesmo tempo em que expulsa os trabalhadores

tornados supérfluos. O aumento da COC, quando é o caso, expressa maior exploração do

trabalho do exército ativo dos trabalhadores (intensificação, aumento da jornada) e não,

necessariamente, incorporação de mais força de trabalho em termos absolutos.

São essas conclusões a respeito do aumento da produtividade nas economias

dependentes que permitem a Marini fazer a crítica das teorias da marginalidade, então em

voga nos anos 1970, em especial das teses de José Nun e de Anibal Quijano. A produção

e a reprodução de um EIR ampliado se deve principalmente ao modo com que incide o

aumento da produtividade nas economias dependentes, que, como analisa Marini, se dá

de forma a acentuar a exploração da força de trabalho e não o contrário. É nesse sentido

que se deve compreender a enorme dimensão que toma o EIR nestas formações, quer

dizer, é dessa maneira que se expressa a lei geral da acumulação capitalista nas sociedades

latino-americanas.

“El primero [punto] es fundamental [la producción capitalista, al

desarrollar la fuerza productiva del trabajo, no suprime sino acentúa la

mayor explotación del trabajador], si se quiere entender como actúa la

ley general de la acumulación capitalista, o sea, por que se produce la

polarización creciente de la riqueza y la miseria en el seno de las

sociedades en que ella opera. Es en esta perspectiva, y solamente en

ella, como los estudios sobre la llamada marginalidad social pueden ser

incorporados a la teoría marxista de la dependencia; dicho de otra

manera, sólo así ésta podrá resolver teóricamente el problema planteado

por el crecimiento de la superpoblación relativa con las características

extremadas que presenta en las sociedades dependientes, sin caer en el

eclecticismo de José Nun, que el mismo Cardoso criticó con tanta razón,

ni tampoco en el esquema de Aníbal Quijano, que, independientemente

de sus méritos, conduce a la identificación de un polo marginal en esas

Page 340: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

340

sociedades que no guarda relación con la manera como allí se polarizan

las contradicciones de clase” (Marini, 2008a: 159).

O “ecletismo de Nun” que, como escreve Marini, teria sido criticado por Fernando

Henrique Cardoso “com tanta razão”, se caracteriza por uma teoria funcionalista a

respeito do papel desempenhado por determinados grupos populacionais face aos

sistemas de produção. Não se refere a uma teoria da acumulação, tal como expressava

Marx em O Capital na construção da noção de EIR, o que faz com que o que Nun (2001)

denomina “massa marginal” seja um conceito que não se insere numa asserção marxiana

ou marxista da realidade social latino-americana391. Para Marini, a teoria da

marginalidade social apenas faria sentido caso estivesse relacionada com a forma na qual

se desenvolve a acumulação nas sociedades dependentes, isto é, estivesse, por exemplo,

relacionada aos processos que levam ao aumento da força produtiva do trabalho e à

formação de um EIR específico nessas sociedades. Conclui Marini:

“(…) según el grado de desarrollo de las economías nacionales que

integran el sistema, y del que se verifica en los sectores que componen

cada una de ellas, la mayor o menor incidencia de las formas de

explotación y la configuración especifica que ellas asumen modifican

cualitativamente la manera como allí inciden las leyes de movimiento

del sistema, y en particular la ley general de la acumulación de capital.

Es por esta razón que la llamada marginalidad social no puede ser

tratada independientemente del modo como se entrelazan en las

economías dependientes el aumento de la productividad del trabajo, que

se deriva de la importación de tecnología, y la mayor explotación del

trabajador, que ese aumento de la productividad hace posible. No por

otra razón la marginalidad sólo adquiere su plena expresión en los

países latinoamericanos al desarrollarse en estos la economía

industrial.” (Marini, 2008a: 162).

c) acentuação do processo de concentração e centralização do capital

É necessário examinar ainda mais detidamente os efeitos provocados pelo

investimento estrangeiro na economia dependente. É a partir dele que, em grande parte,

se industrializam os principais países latino-americanos, em especial, após os anos 1940,

391 Conclui Cardoso sobre a tese de Nun: “Metodológicamente el concepto de “masa marginal” no se inserta

en el mismo universo de discurso del concepto de ejercito de reserva, se refiere a una teoría de la

funcionalidad de las poblaciones con respecto a los sistemas de producción y no a la teoría de la

acumulación. Además de esto, asume, en el plano epistemológico, la connotación de un concepto heurístico

y operacional y no el de una contradicción necesaria” (Cardoso, 2001: 180).

Page 341: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

341

como já descrevemos anteriormente. Em La acumulación capitalista mundial y el

subimperialismo (1977b), Marini chama a atenção para a acentuação do processo de

concentração e centralização do capital que ele acarreta, o que, via de regra, acontece

sempre, porém, dadas as condições da economia dependente, acaba assumindo

proporções muito maiores.

“(...) esto [proceso de concentración y centralización del capital]

acompaña la ampliación de escala de la acumulación capitalista, siendo

un fenómeno natural; sin embargo, por las condiciones económicas de

los países avanzados, en que son mayores los niveles tecnológicos y de

capital mínimo exigido para la puesta en marcha de la producción, la

inversión extranjera, al incidir en una economía más atrasada, provoca

de golpe una fuerte concentración del capital y conduce prontamente a

la centralización” (Marini, 1977b).

No artigo em questão, Marini (1977b) cita exemplos, como era o caso do Chile

em que, em 1968, cerca de 3% da indústria manufatureira controlava 44% da ocupação,

58% do capital e 52% da mais-valia gerada no total da indústria. Tais processos teriam

formado um grande capital extremamente superior frente ao conjunto da classe

capitalista. E, junto com eles, uma industrialização com baixa criação de empregos que,

somados a fenômenos estruturais das formações sociais latino-americanas, criou um EIR

de enormes proporções. Houve, nesse sentido, um grande desencontro entre a procura e

a oferta de empregos:

“Se ha asistido a un doble proceso: por un lado, las formas de tenencia

de la tierra y la introducción de innovaciones tecnológicas en el agro,

así como las expectativas de empleo y salario provocadas por la

industria manufacturera, han generado fuertes movimientos de

migraciones internas y un proceso acelerado de urbanización. Por otra

parte, en buena medida por la elevación del nivel tecnológico, aunque

también por limitaciones de la tasa de inversión, la masa trabajadora se

ha enfrentado a crecientes dificultades para encontrar trabajo.” (id. ib.).

Marini (id.) também cita exemplos, neste caso, da Venezuela, que, em rápida

industrialização no pós-Guerra, assistiu à taxa de desocupação no anos 1950 dobrar, de

6,2% a 13,7% em 1960. Cita ainda que, segundo a OIT, o denominado “desemprego

Page 342: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

342

disfarçado” ou subemprego nas zonas urbanas da América Latina atingiria 30 a 40% da

força de trabalho392.

d) absorção das estruturas pré-capitalistas

Outro fator relevante na formação de um EIR ampliado é o processo de absorção

das estruturas pré-capitalistas, que Marini qualifica como um “processo lento” nas

sociedades dependentes. Em “Estado y crisis en Brasil” (1977a), Marini comenta sobre

os aspectos que fazem com que haja uma debilidade da burguesia latino-americana frente

ao Estado, dividida num conjunto de classes e frações de classes presentes nas formações

sociais dependentes. Ao fazer esses comentários neste artigo, Marini afirma que “ainda

que articuladas e integradas sob a dominação do modo de produção capitalista, as

estruturas pré-capitalistas são objeto de um processo lento de absorção” (Marini, 1977a).

Este processo foi mais evidente ao longo da industrialização latino-americana, em

todas as suas contradições, sendo um dos fenômenos mais gritantes o já mencionado

desencontro entre as massas que buscaram os empregos na indústria das cidades e a

inexpressiva oferta dos mesmos, aliada aos baixos salários que foram oferecidos. O

resultado desse processo foi a tão conhecida formação urbana latino-americana

constituída por enormes bolsões de miseráveis e imensas cidades cercadas de bairros e

aglomerações com baixa ou nenhuma estrutura de serviços básicos como iluminação,

saneamento, assistência à saúde, transporte, limpeza, etc. Junto à expectativa de empregos

e salários, Marini cita outros fatores que levaram à migração campo-cidade e à acelerada

e precária urbanização nos países dependentes, em especial, as formas de propriedade da

terra, a ausência de uma reforma agrária e a introdução de novas tecnologias na

agricultura. Em Elementos para un balance histórico de treinta años de izquierda

revolucionaria en América Latina [1989], ele afirma:

“Por otro lado, esa industrialización, más o menos acelerada, que se

hace en los cincuenta, en vez de resolver los problemas de empleo y de

salario, en la medida en que se efectúa sin las reformas necesarias —

sobre todo sin la reforma agraria—, va a determinar que frente a un

cuerpo estancado haya un crecimiento del proceso de acumulación muy

392 No caso do Brasil, os conceitos utilizados no Censo encobrem uma importante porção do EIR sob a

forma de desemprego disfarçado, assim como, por exemplo, excluem as mulheres ocupadas no lar como

“inativas”. “Tudo leva a supor que o desemprego no Brasil, em termos relativos e absolutos, é muito

superior ao que indicam as cifras do desemprego aberto” (Marini, 1978).

Page 343: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

343

rápido en la ciudad, lo que conlleva una sobrepoblación creciente. En

la medida en que no se reforma el campo, la tierra está monopolizada y

el campesino no puede trabajarla bien, alcanzado solo una

productividad muy baja, y eso lleva a impulsar las migraciones a las

ciudades a gran escala. De esta forma, vamos a ver en los cincuenta el

crecimiento rápido de las ciudades, simultáneamente con el aumento

del desempleo y del subempleo y, por eso mismo, con la construcción

de un enorme ejército industrial de reserva. Todo ello genera una

presión para que los salarios en la industria se mantengan bajos. Así las

cosas, en este tipo de desarrollo no están solucionados, como esperaba

la CEPAL, los problemas del campo ni de los trabajadores urbanos.”

(Marini, 2012: 197-198).

Na medida em que não existem reformas básicas e não se oferecem empregos

suficientes nas cidades, o processo de absorção das estruturas pré-capitalistas em curso

nos últimos séculos na América Latina significa a produção de um EIR ampliado nessas

formações. Há que se considerar, nesse sentido, que, à medida que se desenvolve um

processo histórico lento no qual cada vez mais frações dessas populações são atraídas

às cidades, há o aumento do EIR, já que a proletarização dessas populações se dá por

meio de sua transformação em EIR, nas suas diversas formas (fluente, latente ou

estagnada).

Além disso, como discorre Marini na Dialéctica de la dependência (2008), apenas

com a proletarização se garante plenamente o regime de superexploração do trabalho.

Neste texto, Marini escreve a respeito do processo histórico de proletarização a fim de

demonstrar porque outras relações de trabalho constituem um obstáculo para a instituição

do regime de superexploração do trabalho, cujas características apenas se desenvolvem

completamente quando há proletários à disposição do capital. Só quando há sujeitos

“livres” e levados a vender sua força de trabalho é possível haver um regime no qual há

um rebaixamento indefinido do salário. O regime de trabalho escravo, por exemplo, é

incompatível com a superexploração do trabalho, pois o que é mercadoria é o trabalhador

e não apenas a força de trabalho. Quando o que é mercadoria é a força de trabalho, se

deixa ao trabalhador o cuidado do tempo não produtivo, do ponto de vista capitalista; se

apropria apenas do tempo de sua existência utilizável na produção e se possibilita, com

isso, o rebaixamento indefinido do salário. Para exemplificar essa questão, Marini cita

passagem do capítulo VI (inédito) de O Capital de Marx:

“En el caso del esclavo, el salario mínimo aparece como una magnitud

constante, independiente de su trabajo. En el caso del trabajador libre,

Page 344: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

344

este valor de su capacidad de trabajo y el salario medio que corresponde

al mismo no están contenidos dentro de esos limites predestinados,

independientes de su propio trabajo, determinados por sus necesidades

puramente físicas. La media es aquí más o menos constante para la

clase, como el valor de todas las mercancías, pero no existe en esta

realidad inmediata para el obrero individual, cuyo salario puede estar

por encima o por debajo de ese mínimo”. (Marx apud Marini, 2008:

128).

Sendo assim, considerando as questões acima explicitadas e tendo por base

diversas passagens dos textos de Marini bem como sua teoria mais ampla, é possível

afirmar que, nas economias dependentes, a acumulação de capital se dá de forma

ampliada, ou seja, além do movimento natural já descrito por Marx de diminuição

relativa do capital variável e aumento do EIR, há também compressão do exército ativo

de trabalhadores (concentração e centralização do capital peculiares), um regime de

superexploração do trabalho e um aumento da produtividade que, nestas condições,

redundam num enorme EIR, um EIR ampliado, formado com base num lento processo de

proletarização e absorção das estruturas pré-capitalistas. Esse EIR ampliado é, de

acordo com o próprio movimento de acumulação de capital, parcialmente incorporado (e

depois descartado) em regime de superexploração do trabalho no processo produtivo.

Logo, tal como veremos, enquanto uma das funções cumpridas pelo EIR ampliado, há

manutenção (ou recrudescimento) do regime de superexploração do trabalho, mesmo nos

momentos em que há crescimento econômico e aumento do exército ativo de

trabalhadores nas economias dependentes (e talvez principalmente nesses).

3) EIR ampliado e superexploração do trabalho

A existência de um EIR ampliado nas formações sociais dependentes possibilita

e reproduz o regime de superexploração do trabalho que as caracteriza. E o faz a partir de

uma série de funções que cumpre. A ameaça à situação do exército ativo de trabalhadores

e o debilitamento da capacidade reivindicativa da classe como um todo são algumas delas.

Em “El ciclo del capital en la economia dependiente” (1979b), ao analisar a fase

de acumulação e produção do ciclo do capital, Marini faz menção ao EIR como um

elemento fundamental para que possa operar a superexploração, ou seja, como menciona,

da existência do

Page 345: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

345

“(...) mecanismo fundamental mediante el cual el capital debilita la

capacidad de los obreros para levar adelante sus reivindicaciones: la

creación de un ejercito industrial de reserva, esa masa de obreros

sobrantes no incorporados a la producción (de manera permanente o

temporaria), que presionan constantemente sobre el mercado de trabajo

y amenazan la situación del sector empleado de clase obrera. (Marini,

1979b).

E acrescenta:

(…) Este [EIR] puede existir bajo forma abierta de desempleo, o

disfrazada de subempleo; pero, en cualquier caso, es un ejército de

reserva que merma la capacidad reivindicativa de la clase obrera y

propicia la superexplotación de los trabajadores.” (id.,ib.).

Há, nesse sentido, uma função política exercida pelo EIR nas formações

dependentes, de forma a criar as condições de trabalho e de remuneração que as

singulariza face a outras formações. É a pressão dos trabalhadores não ocupados, ou

ocupados de maneira irregular, sobre o setor empregado da classe que propicia com que

se mantenha o regime. Junto a essa pressão, o capital também recorre ao Estado a fim de

estipular procedimentos que fazem com que a função cumprida pelo EIR seja mais eficaz,

como é o caso da facilitação das demissões, contratações e recontratações ou, como elenca

Marini (1979a), dentre outras medidas, a eliminação da estabilidade laboral, a supressão

do direito de greve e a fixação de tetos salariais:

“(…) al incidir en una estructura productiva basada en la

superexplotación, el aumento de la productividad del trabajo conlleva

la aceleración del crecimiento de ejército industrial de reserva, con lo

que se viabiliza la presión del capital sobre las condiciones de trabajo y

remuneración de los trabajadores. El hecho de que junto a ello la

burguesía recurra al Estado para doblegar la resistencia obrera y hacer

más efectiva la acción del ejército de reserva (eliminando por ejemplo,

la estabilidad laboral, fijando topes salariales, suprimiendo el derecho

de huelga, etcétera) no modifica el problema, en sus términos

esenciales” (Marini, 1979a).

O governo da ditadura militar implantada no Brasil em 1964, por exemplo, foi

eficaz nesse sentido. Marini, em “Las razones del neodesarrollismo” (1978), cita a

instituição do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) como um mecanismo

que facilitou a ação do EIR, ao permitir maior rotatividade da mão de obra.

Page 346: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

346

“(…) la dictadura militar se ha preocupado de hacer efectiva la

existencia de la superpoblación obrera para el capital, facilitando y

acelerando la rotatividad de la mano de obra. El mecanismo para esto

ha sido el Fondo de Garantía de Tiempo de Servicio (FGTS), creado en

1967 (…). Sin embargo, se trata de un instrumento legal que, al suprimir

prácticamente la estabilidad del trabajador en el empleo, resume lo

esencial de la política económica del subimperialismo: crear mejores

condiciones para la superexplotación del trabajo, al agilizar la acción

del ejército industrial de reserva, y favorecer la centralización del

capital (…)” (Marini, 1978).

E sintetiza:

“Al promover la rotatividad de la mano de obra, el FGTS expande el

ejército industrial de reserva bajo su forma flotante y actúa directamente

sobre el nivel salarial” (id. ib.).

Com o FGTS, foi possível, portanto, que as empresas dispensassem os

trabalhadores na véspera das demissões coletivas e os readmitissem depois, ou

contratassem novos, por salários mais baixos que os estabelecidos no acordo salarial.

Além disso, as indenizações por tempo de serviço que os trabalhadores passaram a

receber no regime do FGTS eram menores do que as que recebiam pelo mesmo tempo no

regime anterior. A rotatividade propiciada pelo novo regime também influi,

indiretamente, no nível salarial, pois desorganizou os trabalhadores, privilegiando os

novos em detrimento dos mais antigos, cuja taxa de sindicalização, por exemplo, era

maior.

A pressão do EIR ampliado também influi sobre o nível dos salários e possibilita

que sejam reduzidos ou instituídos salários mínimos abaixo do valor da força de trabalho.

Em “La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo” (1977b), Marini observa

que a participação dos soldos e salários dos operários no valor agregado do setor

manufatureiro é no Brasil a metade do que representa nos Estados Unidos e Inglaterra.

Em “Las razones del neodesarrollismo” (1978), ele chega a afirmar que a ditadura militar

brasileira teria, inclusive, fixado o salário real por debaixo do valor da força de trabalho:

“Sobre la tasa de efectividad del ejército industrial de reserva y

apelando a mecanismos coercitivos (como la política oficial de

contención salarial y la represión policíaca), la dictadura militar ha

Page 347: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

347

viabilizado la tendencia del capitalismo brasileño a la fijación del

salario real por debajo del valor de la fuerza de trabajo”. (Marini, 1978).

O EIR ampliado, portanto, atua de forma a sustentar o regime de superexploração

do trabalho, garantindo a tendência de explorar ao máximo a força de trabalho do setor

ocupado da classe ao mesmo tempo em que possibilita a reposição dessa força de

trabalho e permite a fixação dos salários reais por debaixo de seu valor. Resume Marini,

em “Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital” (1979a):

“los mecanismos económicos que engendran la superexplotación y que

la refuerzan, en particular el crecimiento del ejercito industrial de

reserva, actúan naturalmente en el sentido de elevar la cuota de

plusvalía y crean, además, a nivel político, condiciones para que los

trabajadores sufran presiones que van en el mismo sentido.” (Marini,

1979a).

A ação do EIR ampliado se observa, em especial, nos momentos em que há maior

incorporação de suas camadas ao exército ativo de trabalhadores, como é o caso dos

períodos em que a acumulação de capital está em ritmo acelerado e se emprega mais força

de trabalho no processo produtivo. Marini (1977b) analisa o período compreendido entre

1956 e 1974 no Brasil, em que houve aumento do número de trabalhadores empregados

– em particular dos que recebiam até um salário mínimo – e demonstra que, junto a esse

aumento, houve decrescimento do valor do salário real. Ou seja, a incorporação do EIR

se deu com redução de salários reais, mesmo no período do denominado “milagre

econômico” brasileiro, entre 1968 e 1973. O EIR ampliado garante, nesse sentido, a

incorporação de mais força de trabalho sem alterar o regime de superexploração do

trabalho.

No capítulo já citado de O Capital, Marx analisa a relação estabelecida entre o

capital, o número da classe trabalhadora ocupada e os salários, de acordo com o aumento

ou não da COC. Supondo uma COC constante, Marx afirma a possibilidade de um

incremento salarial dada uma relativa escassez de mão de obra advinda de um incremento

da acumulação. Mais uma vez, no entanto, não é a oferta de trabalhadores disponíveis que

determina o nível dos salários, mas sim o próprio movimento do capital que, em sua etapa

expansiva, provoca uma escassez de mão de obra (e aumento salarial) e, em sua etapa de

contração e diminuição, um excesso de força de trabalho (e, consequentemente, um

descenso nos salários). Contudo, o movimento da acumulação de capital, mesmo que em

Page 348: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

348

períodos breves, é atrapalhado por uma escassez relativa de mão de obra e aumento dos

gastos com salários. É a formação e a reprodução de um EIR, criados no próprio

movimento de acumulação do capital e no aumento da COC, que permite ao capital não

depender do crescimento “natural” da classe trabalhadora para aumentar o exército de

operários em atividade. O EIR garante o aumento do exército ativo, a incorporação de

mais braços no sistema produtivo, ao manter uma camada de trabalhadores disponíveis e

evitar a escassez de força de trabalho nos momentos de expansão.

No caso das economias dependentes, a existência de um EIR ampliado implica

numa quase completa independência entre os movimentos da acumulação e as condições

de salário decorrentes desse movimento, ou seja, numa expressão limite da lei geral de

acumulação formulada por Marx. A incorporação de maiores parcelas do EIR, mesmo

nos ciclos expansivos do capital e consequente aumento do exército ativo, não significa

uma alteração nos níveis salariais. Essas variáveis são relativamente independentes nessas

formações, tal como se verificou nos períodos acima exemplificados. Mediado pelo EIR

ampliado, o processo de acumulação não altera os salários. Considerando, com Marini

(2008), que a acumulação nas economias dependentes depende mais do aumento da massa

de valor do que da taxa de mais-valia, mais uma vez, assim, se demonstra que a dinâmica

da acumulação nessas formações pouco se relaciona com o nível dos salários, mantidos,

em regra, em condições de superexploração do trabalho (abaixo do valor da força de

trabalho).

Marini credita que a singularidade com que se apresenta o capitalismo dependente

se deve à forma particular como incide neste a lei geral de acumulação, tendo as

contradições do modo de produção capitalista acirradas ao seu limite. A formação e a

reprodução do EIR ampliado, isto é, um EIR com características específicas das

formações dependentes, tal qual descrito no texto, portanto, expressa essas contradições

na base do regime que as fundamenta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Marisa; CARCANHOLO, Marcelo. Superexploração da força de trabalho e

transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In:

Ferreira; Osorio; Luce (orgs.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da

teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.

Page 349: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

349

AMARAL, Marisa; CARCANHOLO, Marcelo. Acumulação capitalista e exército

industrial de reserva: conteúdo da superexploração do trabalho nas economias

dependentes. Revista de Economia, v. 34, n. especial, p. 163-181, 2008.

BORGES NETO, João. Ruy Mauro Marini: dependência e intercâmbio desigual. Crítica

Marxista, n.33, p.83-104, 2011.

CARDOSO, Fernando H. [1970]. Comentario sobre los conceptos de sobrepoblación

relativa y marginalidad. In: Nun, Jose. Marginalidad y exclusión social. Buenos

Aires: FCE, 2001.

CARDOSO, Fernando H.; SERRA, José. As desventuras da dialética da dependência.

Estudos CEBRAP, número 23, 1978. p. 34-80.

MARINI, Ruy Mauro. [1989] “Elementos para un balance histórico de treinta anos de

izquierda revolucionaria en America Latina”. In: El Maestro en rojo y negro.

Quito: Editorial IAEN, 2012.

____. [1973] Dialectica de la dependencia. In: America Latina, dependencia y

globalizacion. Bogotá: Siglo del Hombre/Clacso, 2008.

____. [1973] En torno a Dialectica de la dependencia (postscriptum). In: America Latina,

dependencia y globalizacion. Bogotá: Siglo del Hombre/Clacso, 2008a.

____. [1977a]. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo. Cuadernos

Politicos, numero 12, abril-junio de 1977.

____. [1977b]. Estado y crisis en Brasil. Cuadernos Politicos, numero 13, julio-

septiembre de 1977.

____. [1979a]. Plusvalia extraordinaria y acumulacion de capital. Cuadernos Politicos,

numero 20, abril-junio de 1979.

____. [1979b]. El ciclo del capital en la economia dependiente. In: Oswald (coord).

Mercado y dependencia. Mexico: Nueva Imagen, 1979.

____. [1978]. Las razones del neodesarrollismo (respuesta a F.H. Cardoso y J. Serra).

Revista Mexicana de Sociologia, numero especial, 1978.

MARX, Karl. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

NUN, José. [1969] La teoría de la masa marginal. In: Marginalidad y exclusión social.

Buenos Aires: FCE, 2001.

OSORIO, Jaime. Acumulación y ejército industrial de reserva en las economías

dependientes. In: Oswald (coord.). Mercado y dependencia. México: Nueva

Imagen, 1979.

Page 350: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

350

PRADO, Fernando. A história do não-debate: a trajetória da teoria marxista da

dependência no Brasil. Comunicação & Política, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 2,

2011, p.68-94.

Page 351: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

351

ANEXO 2:

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título da Pesquisa: TRABALHO, MOBILIDADE ESPACIAL E TRANSFORMAÇÃO

SOCIAL: TRAJETÓRIAS DE TRABALHADORES RURAIS NA AMAZÔNIA ORIENTAL

Prezado Sr(a).

Sou doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) e desenvolvo o Projeto de Pesquisa intitulado Trabalho, mobilidade

espacial e transformação social: trajetórias de trabalhadores rurais na Amazônia

Oriental. Este Projeto prevê, dentre outras questões, analisar processos sociais

decorrentes das transformações colocadas pela expansão das atividades agropecuárias e

de mineração industrial nos municípios de Tucumã, Ourilândia do Norte e São Felix do

Xingu, no Pará. O Projeto de Pesquisa é registrado e financiado pela Fundação de Amparo

à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e está disponível no endereço virtual (ver

anexo): www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/170703/gil-almeida-felix/

Considerando a importância das atividades que desenvolve e sua relevância para o estudo

em andamento, venho, respeitosamente, solicitar uma entrevista com V. Sr., ocasião em

que poderei esclarecer possíveis dúvidas a respeito do Projeto e pela qual espero contar

com sua participação na pesquisa.

A participação é livre e voluntária. O Sr(a). poderá se recusar a participar da entrevista

ou, mesmo depois de ter concordado, retirar a sua concordância durante a realização da

entrevista, caso considere necessário. As entrevistas serão registradas e/ou gravadas e os

dados serão utilizados para fins de análise e posterior tese de doutorado, bem como

poderão ser utilizados para fins de publicação científica, ensino e encontros científicos.

Todas as informações fornecidas pelos entrevistados(as) serão tratadas com rigoroso

sigilo. Para assegurar o anonimato dos entrevistados, os nomes serão alterados e

substituídos por nomes fictícios.

Sempre que quiser, o(a) Sr(a). poderá pedir maiores informações sobre a pesquisa,

entrando em contato com o pesquisador através do e-mail [email protected] ou

do telefone (19) 81584240 e/ou (94) 81597342.

Tendo em vista os pontos acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto

o meu interesse em participar desta pesquisa.

______________________________________

Nome por extenso do entrevistado(a)

_______________________________

_

Local e Data

______________________________________

__

Gil Almeida Felix

Page 352: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE … · Santos. Um mês depois, em Marabá, Valdemar Barbosa de Oliveira. Junto com eles, em 2011, teriam tido outros 24, no mínimo,

352